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2) E disso, dão-nos conta tanto Luis Alberto Warat, principalmente a partir de seus muitos artigos em WARAT,
Luis Alberto. Epistemologia e ensino no direito: o sonho acabou. v. II, Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004,
como SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência., o faz,
quando investiga o problema da razão moderna. Interessante notar que, embora partam, os autores, de locais
argumentativos algo distantes, restam por abordar o tema sob uma linha comum: a decadência das metanarrati-
vas emancipadoras da modernidade (se bem que Warat possa ser considerado um autor neomoderno), apontando
como núcleo comum do pensamento ocidental o racionalismo (científico). Ademais, Warat o faz com funda-
mento nos textos diurnos de Gaston Bachelard, como se nota, por exemplo, em seu texto Epistemologia y
Metodologia Jurídica, In: op. cit., p. 192; já Boaventura de Sousa Santos, na obra citada, adota, nesse ponto,
como marco teórico fundamental de sua investigação a obra de René Descartes, bem como as críticas a ele
endereçadas por Eugene Wigner, e por outros autores, inclusive provindos das ciência naturais, como Heisen-
berg, Bohr e Ilya Prigogine, por exemplo.
3) SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência., p. 76.
Jouissance (fr.), mencionado por Boaventura, na passagem citada, significa prazer, gozo, fruição. É quase certo
que Boaventura tenha retirado a acepção de livro de Roland Barthes: BARTHES, Roland. O prazer do texto. São
Paulo: Perspectiva, 2004.
4) Id., ibid., p. 70.
5) Notadamente, sobre KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. 5.ed. São Paulo: Editora
Perspectiva, 2000.
6) LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo.
7) “Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado),
faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de
suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem”. BARTHES, Roland. O prazer do texto. J.
Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2004, pp. 20-21.
8) “A palavra não se apresenta mais como palavra, mas como visão liberta das limitações da visão. Não de uma
maneira de dizer, mas uma maneira transcendente de ver”. BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. A
palavra plural, p. 68.
9) BARTHES, Roland. O prazer do texto, p. 65.
10) WARAT, Luis Alberto. Incidentes de ternura: Breve prelúdio para um discurso sobre o ensino jurídico, os
direitos humanos e a democracia nos tempos do pós-totalitarismo. Ensino jurídico: O fracasso de um sonho. In:
Epistemologia e ensino no direito: o sonho acabou. v. II, Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, pp. 391-394.
Certo que se pode ler Sade segundo um projeto de violência; mas tam-
bém se pode lê-lo (e é o que ele nos recomenda) segundo um princípio
de delicadeza. A delicadeza sadiana não é um produto de classe, um
atributo de civilização, um estilo de cultura. É uma potência de análise e
um poder de gozo: análise e gozo reúnem-se em proveito de uma exal-
tação desconhecida de nossas sociedades, e que por isso mesmo cons-
titui a mais formidável das utopias. Quanto à violência, segue um código
desgastado por milênios de história humana; e revirar a violência é ain-
da falar do mesmo código.11
Dessa forma, Barthes nos aponta uma dimensão da qual nos apropriamos, por-
que nos seduz, para conduzir o presente ensaio: a dimensão do sensível – um princí-
pio de delicadeza. E o método moderno, próprio da epistemologia e da problemática
científica do conhecimento natural possui, em si, o gérmen desse código de violência,
para que Barthes aponta, e segrega, indicando, a partir da subversão sutil das leituras
comuns de Sade, um devir da sensibilidade como princípio de delicadeza.
Devemos considerar, então, que, à primeira vista, qualquer método que se
adote aponta para um devir, entendido, a partir de Barthes, como um desejo de
deriva, segundo o qual “Meu prazer pode muito bem assumir a forma de deriva.
(...) à força de parecer arrastado aqui e ali ao sabor das ilusões, seduções e inti-
midações da linguagem (...), permaneço imóvel, girando em torno da fruição in-
tratável que me liga ao texto (ao mundo)”12.
Esse devir, transfigurado em desejo de deriva, sem embargo, deve osten-
tar, como ponto de partida, um princípio de fruição e de delicadeza, como con-
teúdos afetivos desse devir metodológico. É com fundamento na parcela humana
sensível, renegada pelo método tradicional das Ciências Naturais, de concepção
Moderna, que devemos analisar o método, portanto.
Esse método, como afirmamos, lido sob uma perspectiva de delicadeza,
denuncia-o em sua parcela de narrativa metafórica. Isso porque a metáfora é a
figura capaz de constituir, discursivamente, uma realidade sensualista entre os
termos da fala, em sua intersecção, tomada a partir de um elemento comum. Tal
elemento indica, desde a etimologia grega da palavra metaphorá, o sentido de
uma mudança, de uma transposição13. Para nós, esse elemento comum trans-
posto seria a afetividade que liga o sujeito a seu projeto e, da mesma maneira, a
11) BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. São Paulo: Brasiliense, 1990, pp. 158-159.
12) BARTHES, Roland. O prazer do texto, p. 26.
13) É o que nos dá conta HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora
Objetiva, 2001.
Assim, Barthes enuncia seu método das excursões, que Warat, tempos de-
pois, referiria como a tática de passeios ao léu15. Tal método, e ora nos fiamos à
original concepção, a de Roland Barthes, pode ser interpretado mais que apenas
como espaço lúdico. Sua ambientação metafórica propõe um método transluci-
damente imaginativo, criativo e poético. Além disso, indica textualmente uma
valorização da afetividade humana: ao mesmo tempo em que a criança se demo-
ra, na metáfora de Barthes, ao redor da mãe – locus afetivo e seguro imemorial –
, dela se distancia, buscando a vida e a descoberta da vida por si mesma, num
exercício delicado de autonomia amorosa.16
Diante disso, vemos que a autoridade da verdade científica resta posta de
lado. O sentido da afetividade é objeto de valorização do método das excursões.
Método, esse, carregado de nossas pré-compreensões acerca da infantilidade,
da sedução de um descobrimento que revela, às vezes o novo, às vezes o óbvio,
da eroticidade discursiva que perpassa essa área de jogo, aproveitando nossa
proximidade táctil do mundo, e nos instiga a descobrí-lo com a autenticidade e
a autonomia do incondicionamento infantil.
Método que podemos entender como ponto de partida para uma nova pers-
pectiva que, longe de repisar o fundamento repressivo dos instrumentais coerci-
tivos do direito, legitimados pela força e pelo procedimento, ou pela autoridade
dogmática dos professores, descortina um espaço fabuloso de fantasia e desco-
berta: uma ciência poética17. Analogamente, é o método que nos conduz: lem-
brando o devir como desejo de deriva, persiste, na afetividade metodológica bar-
14) BARTHES, Roland. Aula. Trad.: Leyla-Perrone Moises. São Paulo: Cultrix: 2004, p. 44.
15) WARAT, Luis Alberto. Incidentes de ternura. In: Epistemologia e ensino do direito, pp. 391-394.
16) Algo próximo do conceito de idiorritmia em Barthes, encontrável em BARTHES, Roland. Como viver
junto: simulações romanescas de alguns aspectos do cotidiano, p. 19.
17) Algo que aparenta presença constante, por exemplo, nas obras de Gaston Bachelard. Ao mesmo tempo em
que Bachelard admite a concepção de obras voltadas ao problema da epistême e do espírito científico – que
foram, comumente, denominadas suas obras diurnas –, o mesmo Gaston Bachelard se revela um descobridor da
poesia em seus magníficos ensaios sobre temas que envolvem psicanálise e espaço poético – obras que lhe foram
imputadas como sendo de sua faceta noturna. Longe de ser uma incoerência, Bachelard se mostra um autor capaz
de congregar as duas facetas, demonstrando, pela força e exuberância de suas obras principais, que nenhuma de
suas perspectivas deve ser esquecida ou desprezada – e que não se tratam de realidades incompatíveis.
18) Referimo-nos ao momento logo posterior ao encontro com Dominique Bretodeau, mas sobre ele
discorreremos logo a seguir.
19) Nota-se que é desde sua especial condição, consistente em sua impossibilidade de enxergar, que ele se comunica
com os outros à sua volta. O chamamento provém de sua condição e é instrumental; sua bengala produz o som,
convocando à intervenção útil e solidária. O senhor cego não pronuncia uma única palavra, durante a cena – e
mesmo assim, seu maravilhamento sensitivo transborda nas cores quentes de sua face, ao final da seqüência.
20) No original: LE FABULEUX Destin d’Amélie Poulain. Direção de Jean-Pierre Jeunet. Produção de Jean-
Marc Deschamps. São Paulo: Miramax Vídeo distribuidora, 2001. DVD (120 min.): DVD, son., color..
21) Doença “imaginária”, aliás; diante de seu frio pai, que apenas a tocava durante exames médicos, Amélie
sentia seu coração disparar pelo contato – taquicardia que seu médico (e pai) limitava-se a diagnostica como
doença de coração. Contudo, isso já revela que sua descoberta teria de ser afetiva, entendido o coração como
representação do centro emotivo pessoal.
22) E o banheiro é a área em que resguardamos a própria intimidade; portanto, ser de relevância o fato de o
pequeno tesouro encontrar-se “enterrado”, justamente, em local tão próximo da intimidade humana.
23) Essa moradora, vizinha de Amélie, na mesma oportunidade, fala-lhe acerca do falecido marido e oferece-se para ler
suas antigas cartas de amor – discurso apaixonado que, decididamente, influenciará Amélie no desenrolar da história.
26) Símbolo androgênico que, para nós, é o responsável simbólico pela união de Nino e Amélie.
27) QUINTANA, Mário. Caderno H. São Paulo: Globo, 2006, p. 62; para quem “O fantasma é um exibicionista póstumo”.
28) Isso se justifica pela proporção que a continuidade adquire na obra de Georges Bataille. Diz Bataille que as
experiências próximas da morte e do erotismo são experiências de continuidade, que se antepõem às vivências
descontínuas dos sujeitos (v. BATAILLE, Georges. O erotismo. São Paulo: L&PM, 1987, p. 18). Por isso, o fato
de Amélie projetar na figura simbólica androgênica, em alguma medida, a morte – que é o discurso que está por detrás
de suas perseguições do que imaginava ser um fantasma – coloca-lhe o problema da continuidade e, por força dele,
a experiência do erotismo, na leitura de Georges Bataille, a ser vivida na proximidade da personagem de Nino.
29) E, aqui, seria possível trazer algo da leitura que Carl Gustav Jung fizera acerca da Alquimia e da unio mystica,
principalmente em JUNG, Carl Gustav. Ab-reação, análise dos sonhos, transferência.
30) Aproveitamos para a remissão do título de livro de BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso
amoroso. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986.
31) Algo que Barthes trabalha junto à temática dos textos de prazer, deles dizendo: “O texto que se escreve tem
de me dar a prova de que ele me deseja. Tal prova é a escritura”. BARTHES, Roland. O prazer do texto, p. 11. E,
ainda, “(...) no texto de prazer, as forças contrárias não se encontram mais em estado de recalcamento, mas de
devir: nada é verdadeiramente antagonista, tudo é plural”. Id., ibid., p. 40. Essas duas passagens, em Barthes,
permitem afirmarmos que os textos das cartas enviadas à vizinha pelo falecido marido aparecem como textos
de desconforto, a ponto de expulsarem Amélie de seu contentamento diário, fazendo-a buscar o amor em Nino;
todavia, a premissa é discursiva: apodera-se, antes, Amélie, de alguns fragmentos de textos de prazer, despertan-
do para a possibilidade de, no devir, dizer as mesmas palavras a alguém como se fossem suas. Esse apoderar-se
do texto amado é um traço bastante característico em Barthes, valendo ser destacado.
40) Como propôs em A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência, ao discorrer sobre sua
concepção acerca de um conhecimento prudente para uma vida decente.
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