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M. D. Amado
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Empadas e Mortes
Autor: M. D. Amado
Ano de lançamento: 2009
Dedicatória
Dedico essa publicação especialmente aos meus filhos Bruno e Rafael, ao meu
afilhado Gabriel e à Natália Santos Brilhante.
Agradecimentos
Agradecimentos sempre são injustos, pois na emoção de querer mostrar o quanto somos gratos,
cometemos às vezes gafes imperdoáveis, momentaneamente nos esquecendo de pessoas
importantes, mas torço aqui para que isso não aconteça nesse momento:
Meu amigo Wady, responsável por eu retomar o hábito da leitura no início de 2004.
Richard Diegues, Camila Fernandes, Gian Celli e Rita Maria Félix, por terem me incentivado no
início de tudo, lá por volta de 2004, quando comecei a brincar de escrever. Em especial ao
Richard, pela oportunidade nos livros Necrópole, histórias de fantasmas e Paradigmas Volume I.
Ademir Pascale e Elenir Alves pela oportunidade e confiança no fanzine Terrorzine e nas obras:
Draculea – o livro secreto dos Vampiros, Metamorfose – a fúria dos lobisomens e Zumbis – quem disse
que eles estão mortos?
Rosana Raven (fã muito querida), Liartemis e Iam Godoy, pelo apoio e divulgação dos meus
trabalhos e sites, no Flores do Lado de Cima, Ravens House e em seus milhares de blogs (risos).
Eric Novello pelo apoio no Fantastik. Rober Pinheiro e Everson Probst, pela força e amizade e
pelas críticas sempre construtivas do Rober (valeu pelo press release também). Agnes Mirra (fã
desde o início), Miriam Castilho, Emilia Ract, Denise MG, Melissa Mell, Rodrigo Venkli,
Alessandro Reiffer (com minhas reverências), Vilminha e Mensageiro Obscuro pela força que
sempre me deram.
Natacia Araujo, Débora Andrade, Leonardo Pezzella e Liza pela oportunidade no blog A Arte Não
é Minha e pelo aprendizado com as poesias (especialmente Natacia).
Aos novos amigos que vem acompanhando meus textos e poesias: Nivia Gomis, Serena, Marius
Arthorius, Evandro Guerra, Adriano Siqueira, Giulia Moon, Juliano Sasseron, Luciana Fátima,
Roberta Nunes, Matheus Machado, Maurício Montenegro, Nana B. Poetisa, Ângela Nadjaberg,
Márson Alquati...
Espero realmente não ter esquecido ninguém... Se esqueci me perdoem (ou não... risos).
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Indice
Prefácio ..............................................................................................................................- 7 -
Não Fuja Mais....................................................................................................................- 8 -
A Inveja tem Cor ................................................................................................................- 9 -
Alvo e Rubro ....................................................................................................................- 10 -
Mortos Não Comem Empadas .........................................................................................- 11 -
Chovia Muito Naquela Noite...........................................................................................- 13 -
Eu Vejo Gatos Mortos......................................................................................................- 15 -
Dominantes......................................................................................................................- 20 -
Prognóstico ......................................................................................................................- 22 -
Puta Que o Pariu..............................................................................................................- 23 -
Então Era Natal................................................................................................................- 25 -
Não Sou um Monstro.......................................................................................................- 29 -
Motivos Para Esquecer......................................................................................................- 32 -
Não Estou Sozinho no Escuro ..........................................................................................- 34 -
Tábuas e Potes de Vidro ...................................................................................................- 36 -
O Desertor .......................................................................................................................- 38 -
A Torneira........................................................................................................................- 43 -
Fantoches .........................................................................................................................- 47 -
Leitor................................................................................................................................- 51 -
O Autor............................................................................................................................- 52 -
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Prefacio
Melancólico e sanguinário ao extremo. Clichê? Não, esta não é uma palavra conhecida por
M. D. Amado, pois quem conhece o gênero, sabe como é difícil mesclar o horror com o cômico.
O título Empadas e Mortes confirma a minha afirmação. Afinal, já era tempo: foram 13 anos de
dedicação ao terror explícito, centenas de contos e artigos publicados no site Estronho
(www.estronho.com.br), e agora temos o prazer de ler e reler alguns dos melhores contos deste
magnífico e promissor escritor, do qual já venho observando o seu trabalho em antologias e em
seu próprio site.
Como escritor e organizador cultural, estou sempre antenado no mercado literário. Este
ano li dezenas de livros, tanto nacionais como internacionais, entre eles Pride And Prejudice And
Zombies (Chronicle Books), uma paródia sobre zumbis criada pelo autor Seth Grahame-Smith,
baseada na consagrada obra Orgulho e Preconceito da escritora inglesa Jane Austen (1775-1817).
Ligado também no mundo da sétima arte, assisti ao trailer do longa-metragem estadunidense
Zombieland (Sony Pictures), uma comédia de horror que será lançada em outubro de 2009 no
exterior, mas que terá lançamento no Brasil apenas no final deste ano. Em uma palestra sobre
literatura no ano passado, pude ouvir de um editor que as editoras estão cansadas dos zumbis.
Pensei: por quê? Os únicos mortos-vivos que vemos sendo publicados atualmente são os vampiros, mas
raramente os zumbis estampam capas de livros. Com esta ideia em mente desde 2008, além de ver o
entusiasmo do pessoal de outros países com o tema, resolvi criar a coletânea Zumbis: Quem disse
que eles estão mortos? (All Print). O subtítulo Quem disse que eles estão mortos, é justamente para
mostrar que eles não estão esquecidos e, como convidado especial para compor na coletânea,
claro, M. D. Amado. Como disse logo no início deste prefácio, os contos de horror do Marcelo,
na maioria das vezes, são salpicados com uma boa pitada cômica, alguém que não poderia deixar
de convidar para este livro de horror, pois o seu texto trará certamente um bom diferencial para a
obra.
Empadas e Mortes apresenta dezessete contos, iniciando com Não Fuja Mais, um conto
que nos faz recordar dos malditos textos de Augusto dos Anjos, nos levando às sombras de becos
sinistros, dos quais podemos sentir até o seu fétido ardor, tamanha é a descrição do autor. Um
texto pesado e rico em palavras contundentes, se baseado no conceito do mais belo estilo gótico.
Se você já conhece o estilo e os trabalhos deste autor, está ai um prato cheio de puro horror, se
não conhece, acabe logo a leitura deste prefácio e inicie imediatamente a leitura dos contos.
Conselho: após lê-los, antes de dormir, pense duas vezes antes de apagar as luzes do seu quarto,
pois as palavras são poderosas, e se bem construídas, poderão se tornar mágicas e o seu conteúdo
pura realidade.
Que venha logo e sem delongas, o livro impresso de M. D. Amado, pois garra,
determinação, qualidade e público, é o que não falta para este escritor.
Ademir Pascale
Assim sou eu, ou melhor, assim sou você. Sou seu lado obscuro e recôndito.
Aquilo que você tenta rejeitar. Que finge não ver. Mas sua hipocrisia é em vão,
porque estou arraigado em sua alma. Não tente me repelir. Não tente me expulsar,
pois sou parte de cada um de vocês. Sou parte do mundo imundo que existe por
trás de toda essa maquiagem frágil e inexpressiva que vocês chamam de sociedade.
Sou seu verdadeiro ser. Quando venho à tona, sou tratado como doença.
Como desvio de personalidade. E minhas atitudes são denominadas de atrocidades.
Mas na realidade, o que faço é apenas revelar sua mente sem censura, sem pudor,
sem vergonha.
Não fuja mais. Não se canse à toa, pois qualquer noite dessas, vamos nos
encontrar frente a frente. E você não conseguirá resistir. Sentir-se-á atraído por
meus olhos negros e foscos. E numa questão de segundos sugarei essa farsa que
reside em seu corpo e inundarei sua alma com minha maldade, tomando aquilo que
por direito é meu.
Já pintei meu cabelo de vermelho imitando todos os tons de cada uma delas e
nem assim obtive sucesso. Marcinha e Roberta sempre chamaram a atenção com
seus cabelos ruivos. E nem eram naturais. Queria tanto ter o charme da Marcinha,
ter os cabelos da Roberta, o corpo da Juliana, que vestia tão bem qualquer vestido,
vermelho ou não. Os pés da Mariana e os olhos da Claudinha...
Alvo e Rubro
O cenário em nada combina com o lençol e as roupas manchadas de sangue.
Um fio de luz entra timidamente pela fresta da janela, iluminando parte do colchão,
o tapete com estampa da Betty Boop e um pedaço da estante de livros. O chão de
tábua corrida muito bem encerado reflete o ventilador de teto, que se encontra
ligado na velocidade mínima. A porta entreaberta ensaia uma pequena dança,
embalada pelo vento que vem do corredor, parecendo anunciar a entrada de alguém
a qualquer momento.
O relógio marca oito e trinta da manhã e não despertara, pois hoje ela não
iria trabalhar. Havia programado um merecido dia de folga.
— Aninha!!! Aninha!!!
Por volta de 16:00h dois sujeitos com cara de poucos amigos entraram,
olharam para o balcão de salgados e vieram na minha direção. Um deles, o maior e
mais forte, foi logo cuspindo seu pedido – cuspindo mesmo, porque o homem
parecia ter uma torneira aberta na boca.
Com uma das mãos ele o segurou pelo pescoço, deixando seus pés erguidos a
poucos centímetros do chão. Com as garras afiadas da outra mão, rasgou seu ventre
e alguns segundos depois retirou uma espécie de massa viscosa, amarelada e suja de
sangue. Depois disso soltou o sujeito, que agora trazia estampado em seu rosto o
pavor de estar vendo suas tripas caídas no chão imundo da lanchonete. A criatura
abriu a boca e jogou aquela massa gosmenta para dentro.
Antes de sair esbarrando em todas as pessoas ao redor, olhou para trás, parou
por um segundo e disse baixinho:
Quando tirei a coberta de cima das pernas, senti um vento frio vindo da
porta do corredor. Ainda descalço, caminhei até a janela para fechar as cortinas, mas
antes de puxá-las, olhei instintivamente para fora, como sempre fazemos durante
uma chuva forte. O vidro estava muito molhado por fora e um pouco embaçado
por dentro, mas foi possível ver um vulto atravessando a rua. Era algo absurdamente
grande e forte. Suas formas se confundiam diante das gotas de água que escorriam,
fazendo-o parecer um monstro. Não sei dizer ao certo sua altura, mas com certeza
era maior que o portão da casa de frente, detalhe que pude notar quando ele
terminou de atravessar a rua e parou por uns instantes em frente a esse portão.
Tinha uma cabeça enorme, semelhante a de um grande cachorro. Parecia estar
farejando algo no ar e olhava para todos os lados até perceber em determinado
momento, a minha silhueta na janela. Chegou a dar um passo em minha direção,
mas alguma coisa o fez mudar de idéia. Olhou assustado para a rua de baixo e saiu
correndo em sentido contrário.
Segundos depois, senti uma forte pancada e uma grande dor na cabeça.
Alguma coisa me atingiu e agora eu estava caído ali no chão da sala com tudo
molhado ao meu redor. Água e sangue.
Fiz um sinal com a cabeça, mas parece que ele não percebeu. Chamou outro
policial e ficaram olhando para minha janela. Novamente acenei com a cabeça, mas
nenhum dos dois parece ter visto. Acenei com os braços. Eles então vieram
novamente em direção à janela. A luz da lanterna me ofuscava a visão e quando
consegui perceber algo além daquele clarão diante de mim, vi os policiais pulando
pela janela. Nesse momento tive a impressão que estivessem passando por mim, sem
me notar.
Eles olharam para o chão molhado e para meu corpo estendido perto da
poltrona. Em minhas mãos eles encontraram um pedaço do vestido daquela
mulher. Ao meu lado, o seu coração. E na minha cabeça, um buraco de bala.
Mas as visões de Berenice eram inéditas. Ao menos pelo que se sabia até
então. Gatos mortos andando pelo corredor e pelos jardins nunca tinham sido
relatados anteriormente. Com medo do que pensariam os outros amigos a respeito
dela, Bia resolveu não contar para ninguém sobre o que estava acontecendo. Ela e
Léo levavam comida sempre que podiam e ficavam ao seu lado tentando acalmá-la,
sem muito sucesso.
— Eu vejo gatos mortos... Eu vejo gatos mortos... Mas aqui eles não me
machucam. Não me machucam. — dizia sempre, com os olhos arregalados e o
pavor estampado em suas pupilas.
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— Léo, temos que fazer alguma coisa. A Berenice tá pirada. Além do mais,
ela não pode ficar enfiada nesse sótão para sempre.
— Mas o que podemos fazer? Você não quer pedir ajuda para mais ninguém.
Sozinhos não conseguiremos tirá-la de lá. E Bia... — ele parou próximo a porta e
disse com um tom abafado na voz — Eu... Eu preciso te contar uma coisa.
Olhou para os lados para ter certeza que ninguém poderia ouvi-lo e
continuou:
— O que tem isso demais? A pensão está cheia hoje. É sábado. O zum zum
zum não para.
— Ah, por favor, Léo! Você também não! Já me basta uma amiga maluca.
— Maluco? Mas Bia... É isso que você pensa de Berenice? Poxa, ela é nossa
melhor amiga.
Bia saiu para o jardim deixando para trás o amigo, envergonhado e ainda
cismado. Que voz teria sido aquela?
À noite Léo resolveu que ficaria com Berenice. Ia tirar a prova dos nove.
Entre um intervalo e outro onde repetia a frase “eu vejo gatos mortos”, a amiga
chegou a dizer que as aparições eram mais constantes durante a madrugada.
Quando Léo entrou no sótão, Berenice pulou de susto. Não o esperava ali. Mas ao
perceber que era o amigo, ela se acalmou e o chamou para ficar ao seu lado.
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— Eu não vou me enfiar debaixo desse tapete Berê. Pode esquecer! Fico aqui
perto de você, mas não ai debaixo.
— Não diga que não avisei. Ai fora você vai ser alvo fácil para eles.
Léo se acomodou perto de Berenice, mas não tão perto. O cheiro do tapete
lhe incomodava bastante. Tentou conversar com ela, mas era impossível. Ela só
repetia a mesma frase e ficava olhando para os lados. Nas primeiras horas da noite
nada aconteceu e ele acabou pegando no sono.
Pela manhã Léo desceu as escadas correndo à procura de Bia. Nunca havia
corrido tanto na vida dele. Seu corpo doía e as feridas e arranhões que se estendiam
por toda parte, ardiam como fogo. Virando no corredor, avistou Bia que entrava
pela porta que dava para o jardim dos fundos.
Bia olhou para os ferimentos, olhou nos olhos de Léo, suspirou e disse, já
virando de costas e voltando para o jardim:
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— Minha nossa... Tem alguma coisa na água dessa casa. Eu vou embora
daqui, antes que eu fique louca também.
Carlos, que esperava por um amigo na porta da sala, olhava assustado para
Léo, que ficou com cara de paisagem enquanto Bia sumia atrás das árvores do
jardim.
— Ei! Acorda Carlinhos! Se estiver com sono, é melhor nem ir para a quadra.
Vamos, estamos atrasados! – Disse-lhe Robson, que acabara de descer as escadas.
— Cara... – ele olhava ora para o amigo, ora para o gato parado na porta dos
fundos — Eu podia jurar que vi aquele gato discutindo com o outro que saiu pela
porta.
— Oi! Vocês viram a minha gata por ai? Ela não aparece há cinco dias.
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— Não, aquela azul com listras amarelas... Por acaso eu tenho outra gata?
Dominantes
É hora de escrever. Passa da meia noite e minhas mãos estão loucas para criar
uma nova história. Os olhos acompanham os movimentos sobre as teclas e vigiam o
que está sendo escrito. Mas a mente... Ah, a mente. Essa viaja numa velocidade
incrível. Monta cenários, molda corpos e rostos. Lança idéias e sugestões que
percorrem meu corpo até chegar as mãos. Em alguns momentos uma pequena
pausa. Um momento de dúvida para continuar a escrita. Dar uma lida no que
acabou de ser escrito também é válido para retomar o rumo. Ou quem sabe para
mudar a direção.
Mas as minhas mãos praticamente têm vida própria nessas horas. Muitas
vezes imagino um destino para aquela personagem e elas, mãos insanas, acabam
desenhando outro fim. Trocam a vida pela morte, o amor pelo sofrimento...
Esperam, criam, escrevem. Mãos assassinas.
É hora de escrever e elas repetem palavras e frases quando acham que devem.
A mente não concorda a princípio, mas depois se entrega. Ajuda. Melhora. Os
olhos também gostam de olhar para elas, quando estão em seu frenético balé da
escrita. Teclas e mais teclas sendo pressionadas, formando a sua história. Montando
o texto que vai fazer sentir medo ou que vai gerar comentários. Que vai agradar ou
desagradar. Causar admiração ou indiferença.
“Subindo as escadas ele não enxergava nada além de um ponto luminoso no alto.
Tomou aquele ponto como referência para entrar no quarto e por um fim àquela
história. Seus passos pesados sobre as tábuas podres chegavam a criar novas rachaduras
na velha madeira. A respiração ofegante podia ser ouvida a metros de distância.
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Quando se postou de frente para a porta, firmou o punho e ergueu o machado. Com a
mão esquerda girou a maçaneta e abriu a porta rapidamente...”
“... quando entrou no quarto, viu o escritor debruçado sobre o notebook, tentando
apagar o que acabava de escrever. Atravessou por cima da cama e atacou com toda força.
Partiu o crânio do homem ao meio. Fácil assim, como se corta uma melancia com um
facão. Inacreditável foi ver as duas mãos continuarem a escrever. O texto falava sobre
um homem que tinha medo do que escrevia e de uma força oculta que o guiava por
entre as palavras e frases soltas de um universo ficcional.
Prognostico
Saiu do consultório médico desolado. Alguns exames teriam que ser
repetidos, mas o prognóstico médico não era muito condizente com a tal esperança.
Com certa dor no peito, de ver um rapaz tão jovem com os dias contados, o
“doutor” lhe deu apenas alguns meses de vida. Ele que nunca ganhara nada em
sorteios, rifas ou loterias, ganhou um lugar entre os raros casos daquela doença
terrível. Um caso em cada milhão de pessoas.
Atravessou a avenida, pegou sua moto que tinha comprado há apenas uma
semana. Um dos sonhos de um jovem de 18 anos. Apenas um de uma lista enorme
que a juventude necessita. Não tinha forças para chorar. Concentrava toda sua
energia na torcida para que fosse um erro do laboratório. Uma troca de nomes, um
erro grosseiro de interpretação do médico. Fosse o que fosse ele nem pensava em
processar ninguém. Só queria viver. Começar a viver.
No caminho de casa tomou todo cuidado possível, pois ainda não acreditava
que aquilo poderia estar acontecendo com ele. Não queria morrer no trânsito e nem
em lugar algum. Não agora. Pensou na carreira que queria seguir, na namorada de
adolescência que sempre amou e que jurou fidelidade para sempre...
Ops! Hummmm...
Olhou mais uma vez para o celular, na esperança de ver uma resposta.
Nada... Deu dois passos em direção a máquina. Um colega ao lado tentou chamar
sua atenção, dizendo para se afastar. Ele ignorou.
Queria ver a morte chegando. Sonhava com ela há várias noites. Tinha
curiosidade de saber como era. Se realmente uma velha senhora vestida de negro, ou
uma jovem mulher linda e carinhosa. Torcia para que não fosse um homem. No
entanto não houve tempo para que ele pudesse vê-la chegar. Quando viu o seu
próprio sangue jorrando em grande quantidade e suas mãos rolando para o outro
lado da prensa, sendo completamente esmagadas por 15 toneladas de pressão,
acabou desmaiando. Nunca pode com sangue.
...
Amor... O tão sonhado amor. Tão procurado, tão exaltado por poetas e
escritores. Cantado em lágrimas por músicos e por pessoas comuns, no chuveiro, no
trabalho... Na vida. Acho que eu estava me cansando desse tal amor. Talvez,
cansando, não seria a palavra mais correta. Acho que desistindo seria o mais certo.
Sabe... Na verdade, a palavra eternizando também se encaixaria. Confuso isso não?
Tentarei explicar. É que cheguei ao ponto de amar tanto, que todo o sofrimento
por qual havia passado se transformou em anestesia. Comecei a aceitar coisas e fatos
sem me importar com os efeitos e consequências. Voltei a viver a vida de outra
pessoa, apenas esperando o dia em que tudo terminaria. Era certo. Mais do que
certo que tudo terminaria um dia. Os sonhos dela falavam muito mais alto que o tal
amor. Estávamos vivendo partes de uma longa despedida. Mais dia, menos dia, o
adeus chegaria. Tentei viver aqueles meses de forma a aproveitar cada segundo ao
seu lado. Juras de amor cruzavam nossos olhares. Juras de amor eterno. E sinceros.
Cada lado ao seu modo. Eterno seria o sentimento, contrapondo-se a proximidade
do término do relacionamento. Era só uma questão de tempo. Não fosse num
próximo concurso ou proposta de trabalho, seria na seguinte, ou na outra... Ou
meses depois. Mas estava escrito que ela seguiria o seu caminho passando por cima
de todo o seu sentimento por mim. Atropelando a saudade, o desejo e até mesmo o
prazer que sentia ao ficar deitada, nua, em silêncio, de olhos fechados apenas
recebendo meus carinhos e meus mimos.
Naquele dia de Natal eu entendi porque meus dias anteriores estavam tão
tristes e cinzentos. Não eram somente as nuvens de chuva que eu avistava pela
janela. E o arrepio nos pelos dos braços não eram causados pelo vento frio que
soprava em meu corpo. O que eu estava sentindo por perto era a morte de mais um
sonho. O de viver ao lado dela. De fazer parte de sua vida, não como coadjuvante,
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mas sim como um dos protagonistas. E se era realmente amor o que eu sentia,
estava na hora então de desistir de tudo e deixar que ela fosse feliz. Deixar que ela
alçasse voo, livre de mim. Livre de preocupações práticas de uma vida a dois. Por
isso estava ali, vivendo aquela longa despedida. Dando adeus aos poucos. Trocando
sorrisos por lágrimas a cada despedida. Vivendo a felicidade ao seu lado e a tristeza
em sua ausência.
A bem da verdade você talvez tenha realmente perdido seu tempo lendo uma
baboseira, mas não é o caso de acreditar ou não nessas criaturas, pois não sou
nenhuma delas. Ou talvez seja um pouco de cada.
parei o carro e joguei o seu corpo no mato. Para uma mulher tão feia, ela até que
tinha seios muito bonitos... E bem gostosos, literalmente falando. Quando passei
em frente ao posto policial tive medo de ser parado. Não teria como explicar o
sangue no banco do passageiro e também em minhas roupas. E muito menos aquele
mamilo que acabará de ver sobre o painel do carro – não consegui mastigar. Parecia
chiclete.
Não fui parado e segui meu caminho, disposto a por um fim em tudo, para
iniciar novamente juntos, sem nada mais que pudesse atrapalhar os meus sonhos.
Sim, os meus. Não queria mais viver os sonhos de outra pessoa. Era a minha hora e
eu passaria por cima de tudo e de todos para realizar a minha vontade. Parei num
posto de gasolina para ir ao banheiro e tentar esfriar a cabeça com um pouco de
água fria na nuca, pois eu já não estava tendo controle sobre meus reflexos ao
dirigir. Mas o que aconteceu ali naquele lugar foi algo que chocou até a mim
mesmo.
Eu? Bem... Eu estou livre. Caminhando pela estrada, sem pressa, sem rumo.
Brincando com um pedacinho de osso do meu crânio, que peguei no chão no posto
de gasolina. Caiu quando os caras colocaram meu corpo no rabecão, junto com a
sacolinha com os pedaços do meu cérebro e rosto.
Ela agora vai seguir o seu caminho e ser feliz. E eu vou vivendo essa nova
vida, cheia de novidades e mistérios. A cada quilômetro eu vivo o meu castigo. A
cada cem passos eu me transporto daquilo que vocês chamam de inferno até as
lembranças que me fizeram feliz ao lado dela. Depois retorno ao inferno com um
sorriso no rosto, certo de que vou cumprir minha promessa, de amá-la eternamente.
Piegas, não?
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Então aconteceu.
Não sei como, mas um dia acordei preso a certas correntes. Meu corpo
jogado em um calabouço de estranhas sensações. De um lado o característico
cenário de um lugar como esses: podridão, escuridão e umidade. O ar pesado da
tortura do tempo invadia minhas narinas, enchendo meus pulmões de bactérias.
Atrás de mim, um ambiente puro. Paredes pintadas de um verde claro quase
balsâmico. Uma brisa fresca batendo em meus cabelos e costas, trazendo um pouco
de esperança. Se movesse minha cabeça levemente para a direita, era capaz de
escutar Brahms. Sem muita precisão, poderia dizer que era um concerto para
violinos. Voltando-me novamente para frente, a composição era permeada pelo som
de gotas e ratos.
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Fui julgado. Ou talvez justamente o contrário. Não tive veredicto. Mas ainda
assim era estudado. Observado.
Monstro.
Em poucos dias depois de estar nesse lugar, vi meus pés sendo cobertos por
escamas. As unhas enegrecendo e tornando-se afiadas. O mesmo acontecia com
minhas pernas, aos poucos. Minhas coxas ainda não tinham sido tomadas por tal
revestimento. Ainda sentia frio em meu corpo nu. Certa noite, minha garganta
começou a coçar. Tentei pigarrear. Tentei ouvir minha voz e apenas sons guturais
brotaram de dentro de mim. Senti meus lábios enrijecerem. Me veio em mente um
de meus contos, onde um homem lagarto era um terrível raptor de mulheres, afim
de que elas lhe servissem como parideiras de sua prole. Mas ali eu era o prisioneiro.
Na manhã seguinte, confirmei quase sem espanto, a minha condição. O sol
iluminava parte de meu tétrico lar provisório e abaixo de mim (comentei que estava
pendurado com as mãos presas?), o reflexo na poça de urina me mostrou no que me
transformei.
Em algumas poucas horas no dia, sentia sua presença atrás de mim. Como se
ela mesma tocasse os violinos. Todos ao mesmo tempo. Remédio para minhas
dores. Lavagem cerebral para que não me revoltasse.
“Nunca disse que era” – a resposta chegava numa voz doce, carregada de
dúvidas.
Senti meu corpo mais forte. Estava tomado por completo por essa criatura
que me veste. Foi quando ela ficou diante de mim, na parte suja. Pegou uma
enorme chave enferrujada e abriu os cadeados.
“Você está livre. Não preciso mais observá-lo. Não vejo porque ficar mais
com você.”
Uma briga de casal. Uma briga idiota como outra qualquer, como todos os
casais. Dessas incontáveis discussões que não levam a lugar nenhum e que sempre
retornam de tempos em tempos. Um bom dia, um beijo e uma brincadeira
inocente. Aquele dia teria começado como todos os outros dias perfeitos que eles
sempre tiveram, não fosse um detalhe. Um único e pequeno detalhe: a perda do
controle.
Sua cabeça agora começava a doer. Ela não se lembrava mais do motivo da
briga. Tentou relembrar todos os passos daquele dia, mas algo parece ter bloqueado
sua mente. Lembrou de tudo que aconteceu desde que acordou naquela manhã.
Lembrou-se de gritos, portas batendo, ironias, lágrimas... Mas o motivo de tudo
aquilo ter acontecido se perdeu. Por um instante tirou os olhos do espelho, olhou
para o quarto e viu as colchas jogadas ao chão. O lençol fora do lugar e roupas
jogadas pelo quarto. Sorriu ao se lembrar de como ele a pegou na cama, após terem
feito amor, fazendo muitas cócegas em sua barriga.
possível ver de longe os movimentos e era quase audível o som do sangue que por
ali corria.
Ela voltou seu olhar para o espelho e novamente leu: Eu sempre te amei.
Ainda não conseguia se lembrar porque a briga começou. Abaixou a cabeça, deixou
seu corpo escorregar pelos azulejos e ficou de cócoras no chão, segurando os cabelos
e deixando que as lágrimas novamente corressem por seu rosto, enquanto lembrava
os últimos passos de seu amado.
Ela ainda não tinha tido coragem de olhar. Desde que tudo aconteceu, ela
não conseguiu olhar para o lado, perto do vaso sanitário. Então tomou coragem,
respirou fundo primeiro olhando para o teto e foi lentamente virando a cabeça em
direção ao corpo caído no chão, agora já sob a forma humana. Sem vida, sem raiva,
sem ódio, sem medo. A bala de prata atravessou seu peito e conteve sua fúria.
Ouço o som macabro do vento nas arestas da janela. O som dos carros
começa a diminuir e estou com uma sensação estranha. Acho que não estou sozinho
aqui dentro. Sinto a presença de alguém. Eu percebo que alguém entrou na minha
casa. Mas não escutei nenhum barulho de porta, chaves ou mesmo de janela se
abrindo. O vento uivou mais forte dessa vez e escutei o barulho de uma latinha
rolando na rua. Um carro passa... Tem alguém aqui dentro.
Tento me mexer, mas não consigo. Minhas pernas não se movem. Escrevo
para tentar disfarçar uma pequena lasquinha de medo que começo a sentir. A
sensação de que alguém se aproxima está aumentando. Parece que está no quarto
agora... Meu Deus! Sinto a cama afundando ao meu lado. Como se alguém estivesse
deitado comigo... A lasquinha de medo agora é um bom pedaço incômodo de
pavor. Ainda não consigo mexer minhas pernas e tenho medo de olhar pro lado. No
entanto não consigo eliminar as imagens periféricas. Pelo canto do meu olho, eu
vejo uma sombra se aproximando de meu ouvido... Meu Deus!!! Estou com medo!
Com muito medo... Não consigo falar ou gritar. Só me resta escrever...
A sombra... Agora começa a tomar forma. Não vou mover meu rosto... Não
vou. Não quero! Mas... Não adianta. Vejo um olho... A luminosidade da tela do
notebook está refletindo no rosto feminino que vejo ao meu lado. Ela tem olhos
negros...
Minha Nossa!!! Eu senti... Por Deus, eu juro que senti o toque gelado de um
nariz em meu rosto. Estou tremendo... Tenho que voltar várias vezes para corrigir o
que escrevo. Meus dedos estão... Meu Deus! A sua mão... Ela vai me segurar. Tem
unhas compridas, parecem pintadas de preto... Não, é roxo... Deu pra ver agor...
Ela me tocou... Meu coração está disparado. Estou tremendo cada vez mais,
mas não consigo parar de escrever. Socorro... Alguém... Me ajudem... Ela beijou
meu rosto. Um beijo frio, muito frio. Me arrepiei por inteiro. Acho que... Acho que
vou me virar. Espere... Agora que reparei que... Minha mãe do céu! Não tem
nenhum corpo ao meu lado... Na posição em que está o rosto e a mão, tinha que
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dar para ver o corpo deitado e eu o sinto afundando a cama perto de meus pés
também. O que será isso meu Deus?
Vou me virar...
Um fato intrigante é que o homem nos conta que estava sem energia em sua casa
e que ele estava utilizando as baterias do notebook. Mas os vizinhos dizem que não
faltou luz naquele dia. E quando entramos em seu quarto, o computador estava ligado,
usando a tomada como fonte de energia. Conferimos na companhia de luz e não houve
registro de chamada ou de reparo na rede elétrica da rua, ou mesmo da casa.
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“Fire it up”... ainda “Black Label Society”... Essas guitarras mais roucas e
pesadas me lembram o êxtase com que eu arrancava os corações e olhos daquelas
pessoas. Sem olhos para se encantarem pelo físico e sem o coração para sentir aquela
maldita palpitação que nos faz tremer o corpo quando achamos que encontramos a
pessoa certa, não haveria mais amor. Sem amor eles não se destruiriam. Sei que isso
parece contraditório, mas eu os libertei de um erro. O maior de todos...
Agora preciso ir. Tenho que comprar mais tábuas para novas estantes e
bonitos potes de vidro que vi numa feirinha de artesanato. Logo minha coleção
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aumentará e ainda preciso dar um jeito de roubar mais éter do hospital de meu
pai...
“Rasteje através das chamas que comem sua carne. Afogado nas águas que
conhecem você melhor. Pode entrar eu tenho esperado por você aqui. Nos seus joelhos,
onde você deve rastejar. Voando tão alto você nunca vai cair. Pode entrar nos
esperávamos você aqui. Curve-se, você fez sua escolha. Ele nunca da, ele sempre pega. A
queima elétrica que alimenta o fogo. É apenas seu messias suicida...” (Black label
society)
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O Desertor
Lucius, como era conhecido entre os vampiros, era na verdade Mário Lúcio.
Tinha 34 anos quando foi mordido por seu próprio tio Demétrius, que optou por
manter seu nome mesmo depois de se tornar um dos mais terríveis vampiros de sua
geração. Lucius sempre teve idéias revolucionárias quando ainda era um simples
funcionário público. Vivia se metendo em confusões com sindicatos e associações. E
esse ímpeto rebelde não mudou depois que deixou de ser um mero mortal.
bafo quente do fogo à sua frente. Quando percebeu as chamas lambendo aquilo que
um dia fora um par de cortinas na janela, decidiu ir embora. Que o fogo
consumisse tudo. Pouco lhe importava. Antes de sair, ainda pegou alguns papelotes
de droga que estavam sobre a mesa. Um pouco para uso próprio. Um pouco para
servir de isca.
Nessa mesma noite, antes de sair do albergue para sua refeição rápida, pegou
em sua mochila uma caixinha de madeira onde guardava algumas recordações. Na
verdade, era apenas um disfarce para o seu registro de mortos. Fazia pequenas
marcas com canivete, no interior da caixa e também em sua tampa. Sua memória
não era boa para números. Então registrava na tampa, através de uma combinação
de riscos horizontais e verticais, o número de vampiros destruídos. As iniciais de
seus nomes eram marcadas no interior da caixa. Com o passar dos anos, ficou tão
confiante no sucesso de suas missões quase semanais, que passara a escrever as
iniciais e a aumentar a contagem de mortos antes mesmo de iniciar a abordagem
das futuras vítimas. Abriu seu canivete e fez a ducentésima trigésima quarta marca
na tampa. No interior da caixa, fez um minúsculo “D”. Era hora de acertar as
contas com o titio.
Não seria difícil encontrar seu tio. Bastava prestar a atenção em carros esporte
importados, rodeados de vampiras patricinhas. Em poucos minutos de caminhada
Lucius viu um BMW conversível com três mulheres ao redor e uma em seu
interior. Era Karime. Uma das favoritas de Demétrius. Das que ele nunca
descartava. Atravessou a rua com olhar fixo na garota, que imediatamente percebeu
estar sendo observada e voltou-se para Lucius.
— Karime...
— Acredito que não, mas o que há de errado? Não posso mais passear pelo
seu território? Rever a... Família? – perguntou com ironia.
Ela se afastou, olhou de soslaio para sua direita, dando a entender que
Demétrius estava se aproximando. Ficou parada, encarando Lucius. Ela o devorava
com os olhos. Ele não se fez de rogado e também demorou a desviar seu olhar.
Notou que a cada década ela parecia estar mais linda e sensual. Porém algo em seu
olhar dizia que ela estava diferente. Não era a mesma Karime de anos antes. Tinha
algo de perverso em seu doce tom de voz.
— Você sabe que não sou dado a esse tipo de tratamento – disse Lucius,
tentando disfarçar com um sorriso a sinceridade com que falava aquilo.
seminuas pulando de colo em colo, rindo e bebendo. Duas ou três trepavam ali
mesmo no salão principal. Demétrius passou por uma dessas, puxou-a pelos
cabelos, arrancando-a de cima do homem que a penetrava.
— Eu não lhe disse que essa noite você deveria se guardar para as minhas
novas amigas?
— Eu só estav...
— Estava porra nenhuma! Já para cima e leve essas duas com você. Vá para o
seu quarto, pois o meu receberá um convidado especial. E não vá se servir antes de
mim... Não ouse!
As três seguiram até o fim do salão e subiram a grande escadaria forrada com
tapetes cor de vinho. Demétrius virou-se pra Lucius e quase sussurrando lhe disse ao
pé do ouvido:
— Não sei o que diabos você está querendo e por que resolveu aparecer
depois de tanto tempo. Depois conversaremos melhor. Só quero que saiba que não
sou nenhum idiota. Por enquanto, divirta-se...
Uma ponta afiada de gelo parecia ter corrido pela espinha de Lucius. Não
gostou daquilo. Seria mais difícil do que ele pensara. Seu tio já se armara todo.
Talvez o melhor caminho seria aproveitar a primeira chance e agir de surpresa. Para
isso usaria Karime. Sabia das perversões de seu tio. Se fosse para cama com ela,
certamente mais tarde Demétrius apareceria para a “festa” e provavelmente muito
bêbado. Era sua chance.
Cerca de uma hora depois, como previsto por Lucius, Demétrius apareceu no
quarto. Karime estava sentada na beirada da cama, nua e ainda suada. Em seu colo,
o notebook aberto. Demétrius se aproximou para ler o que ela escrevia. Na tela, a
palavra eliminado foi surgindo aos poucos, ao lado do nome de Lucius. Em seguida
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A Torneira
Tudo começou com a torneira da pia da cozinha. Quando a fechou, um
filete de água insistiu em sair. Ele então girou mais forte a torneira e escutou um
estalo. Ela abriu novamente jorrando a água com toda força. Novamente ele a
fechou e dessa vez tomou mais cuidado, usando de menos força para fechá-la.
Outra vez o filete de água. Bem devagar, ele girou a torneira até o final. Cessou.
Naquele dia recebeu a notícia de que um dinheiro que deveria receber não
havia sido depositado. Tentou entrar em contato com a pessoa que lhe devia e não
conseguiu. Também naquele dia sentiu um aperto no peito ao fazer amor com sua
namorada. Pareceu-lhe que aquela era uma das últimas vezes que se encontrariam.
Não sabia porque, mas algo dentro dele tentava o preparar para o fim daquele
romance. Chegou a comentar por alto com ela, que sentia algo estranho. Um
pressentimento ruim. Ela, cansada de ouvir essas coisas vindas dele, com sua
habitual falta de paciência e estupidez iniciou uma discussão sobre os constantes
pensamentos negativos dele. Inutilmente ele tentava explicar a ela, que era algo
muito forte e que ele não conseguia controlar essas emoções. Bateram portas, saíram
pisando duro e se deitaram, virados de costas, um para o outro.
No dia seguinte ele desceu para fazer o café e encontrou a torneira da cozinha
pingando. Enquanto a água fervia, tentou arrumar a torneira. Desparafusou, olhou
seu mecanismo e acabou por assumir que não entendia muito daquilo. Colocou
tudo novamente no lugar, reapertando fortemente o parafuso. Enquanto estava ali a
torneira não mais pingou. Ainda sentia aquele aperto no peito. Aquele seria o dia da
partida de sua namorada, que morava em outra cidade e eles demorariam em se
encontrar novamente. Subiu e a viu ainda dormindo. Não quis usar o banheiro do
quarto para não acordá-la. Fechou a porta do quarto e foi no outro banheiro. Lavou
as mãos e fechou bem a torneira, confundindo-a momentaneamente com a da
cozinha. Entrou em seu escritório e foi ler notícias na internet.
Quando o almoço estava quase pronto ela desceu. Deu-lhe um abraço terno e
carinhoso. Pediu desculpas pela discussão do dia anterior e o beijou. Ao se
separarem, ela olhou para a pia e perguntou ironicamente se ele era sócio da
companhia de água e esgoto da cidade. Ao olhar na mesma direção que ela, notou a
torneira com um filete de água. Aquilo já começava a irritá-lo.
Ligou para o homem que lhe devia. Ouviu uma série de desculpas e a
promessa que no dia seguinte teria o seu dinheiro. No mesmo dia, durante a tarde,
bateu o carro. Estava com ele apenas há três dias. Era um carro mais velho, porém
muito conservado e o chateou bastante ver o estrago causado.
Num final de semana em que não precisava acordar cedo, ele despertou por
volta de 9 horas da manhã. Entrou no banheiro e viu sua torneira aberta. Soltou um
palavrão em voz alta e a fechou. Saiu do quarto, passou pelo outro banheiro e deu
uma conferida na torneira. Estava fechada. Foi até o quintal colocar ração para os
cachorros e viu o chão da área todo molhado. A torneira da máquina de lavar estava
aberta e jorrando água por cima. Outro palavrão. Voltou para a cozinha e somente
então notou que o pinga-pinga da pia havia aumentado consideravelmente. Quase
arrancou os cabelos de tanta raiva. Imediatamente pegou a chave do carro e resolveu
sair para comprar outra torneira, mas o toque do telefone o deteve. Era seu sócio.
Numa conversa rápida e direta, teve a notícia de que eles teriam que fechar a
empresa. Estava tudo acabado. Desolado, desistiu de sair e se jogou no sofá
chorando de nervoso. Dois dias antes havia terminado o namoro por telefone. O
homem que o devia sumiu e não atendia mais o celular. A empresa havia falido.
Desejou morrer. Desejou de verdade, de coração.
De repente o silêncio tomou conta de tudo. Não havia mais o barulho dos
carros na avenida. Os vizinhos não faziam mais a algazarra de sempre. Os cachorros
estavam quietos e ele não ouvia mais o som da serra elétrica da madeireira ao lado.
Por outro lado, mais nítido do que nunca e bem mais alto, ele começou a ouvir o
pinga-pinga na torneira da pia. Aquele som parecia invadir sua cabeça. Teve a
impressão que seu coração acompanhava o ritmo dos pingos caindo sobre a pia de
aço inoxidável. Tentou se levantar, mas algo o segurou. O barulho foi aumentando
e ele fechou os olhos. Tentou gritar, mas sua voz não saiu. Colocou as mãos
tapando as orelhas, tentando sem sucesso, fazer com que o som diminuísse. Olhou
para o lado e notou a porta do lavabo aberta. De onde estava viu que a torneira
estava aberta e jorrando água com muita força. Olhou para o chão da cozinha e viu
que tudo estava inundado. Voltou novamente seu olhar para o lavabo e viu a água
transbordando na pia. Das escadas que davam acesso ao segundo andar, começava a
escorrer muita água, quase formando uma pequena cachoeira nos degraus. A sala
começava a se parecer com uma piscina e ele não conseguia se mexer. O celular
tocou. Viu pelo identificador que era sua namorada, ou ex, no caso. Tentou
atender, mas sua voz não saia. Do outro lado ela tentava dizer que o amava e que
estaria ao lado dele sempre. Pedia desculpas e queria tentar de novo. Mas ele só
queria pedir socorro e não conseguia. O nível da água subiu rapidamente. Nervoso
ele atirou o celular contra a parede e concentrou suas forças em suas pernas,
tentando mais uma vez se levantar do sofá. Não conseguiu. Não entendia como
aquela água toda estava entrando pela casa e muito menos compreendia por que ela
não estava escapando pelas frestas das portas.
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A água já lhe cobria o peito e subia cada vez mais rápido. Tinha desejado
morrer, mas agora o medo da morte lhe percorria o corpo. Sem conseguir se
segurar, ele literalmente se borrou de pavor. Os olhos arregalados olhavam ainda
incrédulos para água que já lhe cobria o queixo...
Parou de escrever...
— Ah, estava tão empolgado aqui escrevendo um conto e justo perto da cena
final, eu perdi o fio da meada. Não consigo finalizar.
Fechou o notebook e com um sorriso concordou com sua esposa. Disse para
ela se adiantar, porque ia apenas beber um pouco de água e já iria ao seu encontro
no banho. Desceu as escadas ainda pensando em como terminaria o conto. Se o
homem morreria afogado ou se escaparia. Seria um sonho ou ele realmente morreria
daquela maneira bizarra em sua própria sala?
Fantoches
Há milênios venho intuindo meus escolhidos a fazerem o que eu bem
entendo. Não sujo minhas mãos, pois não é preciso. Sempre tive quem fizesse isso
por mim, ou até quem transferisse essa tarefa a terceiros, levando assim apenas a
fama, o que para mim sempre foi uma ótima e deliciosa forma de me esconder.
Enquanto recomeço minha escalada por essas rochas imundas, cheias de musgo e
sangue, relembro algumas das mais belas atrocidades que provoquei direta ou
indiretamente. Ah, como isso me dá um cruel sorriso de satisfação. Sinto meus
poros arderem com a acidez do ar por onde passo agora, mas me deleito com essas
lembranças.
Poderia citar inúmeras passagens antes da era cristã, mas quero partir
justamente dessa época, pois é minha preferida. A traição de Judas não se deu como
esses tolos homens da igreja insistem em divulgar. O buraco era mais em baixo, mas
de qualquer forma eu estava lá. Procurando uma forma de acabar com toda aquela
politicagem que um dia dividiria os homens ainda mais. Mas quando percebi que
não conseguiria, deixei as coisas seguirem conforme os tais desígnios de Deus. A
única coisa que me restou foi aproveitar o ensejo e me divertir um pouco.
Crucificações eram tão comuns naquela época. Eu só soprei algumas palavrinhas
nos ouvidos das pessoas, para que caprichassem mais no sangue e na dor.
Eu tinha plena convicção de que aquela coisa toda não poderia ter acabado
daquele jeito. Mas hoje, se eu fosse um tolo cristão, daria graças ao senhor por não
ter conseguido fazer o que pretendia. Se tivesse conseguido, teríamos menos
conflitos religiosos pelo mundo. Meu fracasso foi uma vitória em longo prazo.
Gargalho ao ver o nome de Deus ser usado para matar.
credos, raças e todo tipo de idiotice preconceituosa. Para nós, as almas são incolores
e desprovidas de razão ou credo. Deliciava-me junto com meus comandados, entre
os banhos de sangue e os gritos incessantes de espíritos errantes. Aos que tinham o
privilégio de ver com nossos olhos, o cenário eram da mais pura beleza e
desarmonia. Um mar de cadáveres e moscas. A podridão depois de alguns dias e as
larvas se alimentando da carne, enquanto pateticamente alguns mortos tentavam
reaver seus corpos. Deixávamos que sofressem essa dor por alguns dias, até que nós,
ou aqueles que vestiam branco, os conduziam ao seu destino.
A fama acabou por ficar com eles. Só queria e ainda quero, apenas o
resultado. A fama é prejudicial.
E por falar nela, meu grande e famoso amigo: Vlad III. Homem de coragem,
bruto e com a maldade arraigada. Mas também precisou de uns pesadelos em seu
leito para aceitar o meu jeito de brincar. A primeira vez que atravessou uma lança
no corpo de um homem, Vlad se ajoelhou e orou ao seu Deus, implorando perdão.
Dei-lhe logo um belo safanão para que deixasse de ser covarde. Em poucos dias ele
já havia empalado e ordenado a matança de centenas de homens. Ganhou o apelido
de “empalador” e depois ainda levou a fama de vampiro. Sou obrigado a rir...
Diziam que ele gostava de sangue. Não era ele. Era eu quem bebia todo o sangue
que escorria daqueles “palitinhos humanos”. Hummm... Ainda sinto o delicioso
cheiro da morte e o sabor enferrujado do vermelho daqueles corpos. O único
incômodo era o agradável clima da Valáquia.
Essa superfície que não chega. Acho que estou ficando molenga com o passar
dos séculos. Antes eu fazia esse percurso com menos tempo. Minhas mãos já estão
feridas. E ainda tenho que passar por toda aquela camada grudenta e viscosa. Ora
bolas... Isso não é justo.
Gostei de Londres. 1888. Enganar a polícia foi tão fácil. Não foi um feito de
grandes proporções, como eu prefiro, mas a energia era intensa e sombria.
Montaram um verdadeiro circo à procura de um único homem. Deram-lhe até um
nome: Jack, the ripper. Ah, como eu ri desses tolos. Nunca existiu um Jack. Eram
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vários Jacks. Todos levados por mim a cometer aqueles assassinatos exatamente da
mesma maneira. E eu dormia calmamente nos aposentos da rainha. Por que
prostitutas? Ora... Não me lembro. Eu devia estar entediado, de saco cheio de
energias sexuais. Aliás, eu já havia brincado em Londres cerca de mil anos antes,
quando incuti na cabeça dos Vikings que eles deveriam destruir a cidade, que ainda
se chamava Lundenwic. Acho que acabei fazendo um enorme bem a eles. Afinal
Londres é um nome muito mais fácil de pronunciar. Londres... London... Deviam
me agradecer... Malditos ingleses.
Homem inteligente, culto e educado. Só queria o melhor para seu povo. Era
amante das artes. Isso até me conhecer. Infiltrei-me em sua vida e me instalei em
teus sonhos. A descoberta do anti-semitismo, alguns anos antes de se tornar um
líder, foi um presentinho meu. Um pequeno investimento para o futuro. Hoje ele é
odiado por milhões de espíritos espalhados pelos quatro cantos do mundo e por
todas as dimensões onde ainda vivem algumas das mais de cinqüenta milhões de
vítimas de nosso expurgo. Seu nome é citado em livros, pesquisas, trabalhos e ainda
causa muita discórdia por esse mundo afora. Talvez tenha sido minha maior obra
prima até hoje. Alguns idiotas ainda tentam reviver seus feitos e seguir o que não se
pode mais recriar. Não entendem que essas coisas não podem se repetir. A maldade
está na novidade. A crueldade surge do inesperado.
Nas últimas décadas tenho estado mais calmo. É... Até que pensando melhor,
acho que estou mesmo me tornando um moleirão. Tenho me limitado a incentivar
gangues, quadrilhas de traficantes, contrabandistas e terroristas. Estou mesmo é
precisando de algo maior. De enormes proporções. Superar todos os números
somados até hoje. Dizimar a humanidade... Não, espere... Não posso dizimar.
Senão perco meus propósitos e minha diversão. Mas até que uma quase destruição
total não seria tão ruim. Quase consegui isso há alguns anos, mas os malditos
tinham que inventar uma trégua. Saudades da guerra fria.
Que tal você? Sim, você mesmo. Não quer conversar um pouco? Preciso me
apresentar?
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Leitor
Caro leitor, já que teve paciência de chegar até aqui, peço que deixe um
comentário na página dedicada a esta publicação, no link:
www.mdamado.com.br/empadas
Obrigado,
Abraços horripilantes,
O Autor
M. D. Amado (Marcelo Dias Amado) é natural
de Belo Horizonte, MG. Foi cuspido no
mundo em 17 de janeiro de 1969, sendo que
69 é sua dezena preferida.