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Flvia Rosemberg
O uso estratgico da infncia em processos de dominao social tem sido uma constante nas
relaes entre o norte civilizado e o sul selvagem. Talvez o registro histrico mais antigo que se
tenha, no caso brasileiro, seja a carta do jesuta Manuel de Nbrega a Dom Joo III rei de Portugal,
em 1551.
Vendo os padres que a gente crescida estava to arraigada em seus pecados, to obstinada
no mal, to cevada em comer carne humano, que a isto chamavam verdadeiro manjar e vendo
quo pouco se podia fazer com eles por estarem todos cheios de mulheres, encarniados em guerra
e entregues a seus vcios, que uma das coisas que mais perturba a razo e tira de seu sentido,
resolveram ensinar a seus filhos as coisas de sua salvao para que depois eles ensinassem a seus
pais, e assim indo pelas aldeias os juntavam para lhes ensinar a doutrina crist... (apud
Chambouleyron, 2004, p. 59).
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Inicia-se, pois, no sculo XVI, uma ininterrupta narrativa do norte sobre os habitantes do sul
seus adultos e crianas interpretando, via de regra, a especificidade do sul como pecado, vcio,
patologia, anomia, subdesenvolvimento, incompetncia, especificidades que devem ser substitudas
pelas lies e conselhos do norte para que os nativos atinjam a civilizao.
De l para c, piratas, colonizadores, bandidos, viajantes, diplomatas, rainhas e prncipes,
governantes, acadmicos, cientistas, artistas, polticos, militantes de organizaes internacionais e
humanitrias, brasilianistas, assessores de organizaes no governamentais e multilaterais
interpretam o Brasil e sua infncia a partir de seus prprios parmetros, interesses, lngua e fontes.
No raro, como o jesuta, propem ou impem solues. Tais solues, por vezes, so incorporadas
pelo prprio sul, que se narra segundo a tica do norte.
Este artigo se prope a descrever e discutir como a desigualdade social e econmica atinge
as crianas pequenas brasileiras (at 6 anos de idade) dando nfase s polticas sociais que vm
sendo definidas, tambm, no contexto das relaes norte-sul.
1. Breve estado da arte