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Governos e sociedades locais em contextos

ARTIGO ARTICLE
de desigualdades e de descentralização

Local governments and local societies in unequal


and decentralized polities

Celina Souza 1

Abstract Brazil became a highly decentralized Resumo Com a redemocratização, o Brasil se


country as compared to other federal countries tornou um país altamente descentralizado em
following redemocratization. Decentralization comparação com outros países federativos. Es-
has changed intergovernmental relations as te fato trouxe inúmeras mudanças nas relações
well as the role played by local governments intergovernamentais e no poder relativo dos
and local societies. However, and despite the governos e das sociedades locais. Apesar da exis-
existence of many studies on decentralization, tência de uma vasta literatura sobre as conse-
the results of decentralization are rarely ana- qüências da descentralização, são ainda pouco
lyzed vis-à-vis the country’s inter- and intra- explorados seus problemas em contextos de al-
regional inequalities. This article argues that tas desigualdades inter e intra-regionais. Argu-
the results of decentralization in highly un- menta-se que em tais contextos os resultados
equal polities are contradictory. On the one da descentralização são contraditórios. Por um
hand, decentralization creates incentives for lado, a descentralização promove incentivos
the federal government to negotiate and com- para que o governo federal negocie com os go-
promise with subnational spheres the decision vernos subnacionais a decisão e a implemen-
and the implementation of public policies. De- tação de políticas públicas. A descentralização
centralization also creates incentives for greater também incentiva maior participação dos go-
participation of local governments in the pro- vernos locais na provisão de serviços sociais e
vision of social services and in the adoption of na adoção de políticas participativas, tornan-
participatory policies at the local level. These do complexas as relações entre os diferentes ní-
features, however, make the relations between veis de governo e entre estes e segmentos da so-
different levels of government and between lo- ciedade local. Por outro lado, a experiência bra-
cal government and local citizens more com- sileira de descentralização com desigualdade
plex. On the other hand, the Brazilian experi- desnuda os constrangimentos e as limitações da
ence of decentralization with inequality brings descentralização em países historicamente mar-
about the constraints and the limits of decen- cados por heterogeneidades regionais e sociais.
1 Departamento de Ciência
Política da Universidade
tralization in countries historically rooted in Palavras-chave Descentralização, Governo
de São Paulo, Universidade social and regional inequalities. local, Política social
Federal da Bahia. Key words Decentralization, Local govern-
Av. Prof. Luciano Gualberto
315/2047, 05508-900,
ment, Social policy
São Paulo SP.
celina@ufba.br
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Souza, C.

Introdução rização do Magistério (Fundef), em 1996-1997, e


com a promulgação da Emenda Constitucional
A literatura sobre descentralização, relações in- 29/2000, que vincula parcela das receitas públi-
tergovernamentais e federalismo enfatiza a ten- cas, inclusive municipais, à saúde, a liberdade de
são existente entre níveis de governo, tanto em gasto do município tem sido reduzida. Todavia,
estados unitários como em estados federais. Es- algumas leis orgânicas municipais já exigiam vin-
sa tensão tem tendido a favorecer as unidades culações de recursos maiores do que a determi-
subnacionais, na medida em que muitos países nada pela Constituição, bem como vinculações
com diferentes características culturais, sociais, a outras funções, principalmente para a saúde.
políticas e econômicas têm, cada vez mais, ado- No entanto, a descentralização tributária,
tado medidas visando à maior descentralização que permite que alguns municípios apresentem
de seus governos e instituições e à maior parti- relativa “saúde” financeira, não é a realidade de
cipação da comunidade local nos processos de- todo o país. Como mostrou Bremaeker (1994),
cisórios. mais de 200 municípios no Nordeste não têm
Em 1997 o Brasil tinha 5.507 municípios. A possibilidades de arrecadar recursos próprios.
criação de novos municípios teve um impulso As razões para essa impossibilidade estão na
extraordinário nas duas últimas décadas, parci- inexistência de atividade econômica significati-
almente como resultado da redemocratização. va e no tamanho da sua população pobre. Cálcu-
Somente entre 1988, ano da promulgação da los de Samuels (2000) mostram que quase 75%
Constituição, e 1997, por exemplo, foram cria- dos municípios brasileiros arrecadam menos de
dos 1.328 novos municípios. Esse aumento de- 10% da sua receita total via impostos e que cer-
ve-se ao fato de que, durante o regime militar, as ca de 90% dos municípios com menos de 10.000
exigências para a criação de novos municípios habitantes dependem quase que em 100% das
eram difíceis de ser cumpridas. Do ponto de vis- transferências de FPM e de ICMS.
ta tributário, segundo a literatura sobre descen- A despeito dos números absolutos da des-
tralização fiscal, apesar do desenvolvimento de centralização financeira impressionarem, a gran-
vários métodos para medir o grau de centrali- de maioria dos municípios tem de sobreviver às
zação/descentralização dos recursos públicos, custas das transferências federais e estaduais,
ainda existem reservas quanto ao rigor dessas mostrando que muitos governos locais não au-
mensurações (Levin, 1991). Apesar desse reco- mentaram seu grau de independência política e
nhecimento, não existem dúvidas de que os mu- financeira a partir da descentralização, o que
nicípios brasileiros no seu conjunto foram os afeta, obviamente, a autonomia política local
maiores beneficiários da descentralização tri- (Souza & Blumm, 1999). Além do mais, apesar
butária promovida pela abertura política do fi- de muitas experiências de gestão pública bem-
nal dos anos 70 e, posteriormente, pelas medi- sucedidas poderem ser encontradas hoje por to-
das descentralizadoras introduzidas pela Cons- do o Brasil, assim como existem várias “cidades
tituição de 1988. Além do mais, os municípios que dão certo”, parafraseando o título do livro
possuem uma margem relativa de liberdade pa- de Figueiredo & Lamounier (1996), o mesmo
ra determinar a alocação de seus recursos pró- não se pode dizer de muitos municípios brasi-
prios e para financiar e administrar suas recei- leiros. Não faltam a esses municípios apenas a
tas, especialmente a partir de 1988, situação que capacidade de reinventar o governo, em mais
começou a mudar no final dos anos 90. Os mu- uma paráfrase do título do polêmico trabalho
nicípios brasileiros são, também, relativamente de Osborne & Gaebler (1995), mas as condições
capitalizados em relação aos países em desenvol- mínimas para o exercício do próprio governo.
vimento. Em 1996, a transferência de recursos Apesar da existência de situações diferencia-
federais, via FPM, atingiu R$10 bilhões, e a de das entre os milhares de municípios brasileiros,
recursos estaduais, via a quota-parte dos muni- dados coletados e analisados por vários autores
cípios no ICMS, R$15,4 bilhões (Ministério da (Afonso, 1994; Arretche, 2000; Souza, 2001a, en-
Fazenda/Secretaria da Receita Federal, 2000). A tre outros) mostram que estados e municípios
única restrição nas transferências constitucio- estão substituindo o governo federal em algumas
nais imposta aos municípios pela Constituição funções, enquanto outras estão sem nenhum
de 1988 foi o percentual de 25% da sua receita apoio financeiro governamental devido à polí-
total que deveria ser despendido em educação. tica de controle fiscal do governo federal.
No entanto, com a criação do Fundo de Desen- É diante desse quadro, de profunda hetero-
volvimento do Ensino Fundamental e de Valo- geneidade local, que algumas questões que se-
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rão discutidas neste artigo – descentralização, Não existem grandes conflitos envolvendo o
relações intergovernamentais e empowerment conceito de RIGs, em contraste com a polêmica
dos governos e das sociedades locais – se inscre- em torno do conceito de governo local. As RIGs
vem. Deve-se ressaltar, todavia, que a heteroge- estudam as relações entre diferentes níveis de
neidade local não se manifesta apenas entre as governo. Esta aparentemente simples definição
regiões, mas também no interior de cada região. esconde uma disputa entre diferentes áreas das
Ribeiro (1996), por exemplo, analisa as desi- ciências sociais sobre como abordar os estudos
gualdades no interior das regiões metropolita- relativos às RIGs. Smith (1985) sumariza este
nas do Rio de Janeiro e São Paulo; e Arretche debate afirmando que a abordagem histórico-
(2000), dentro do estado de São Paulo. legal focaliza as mudanças institucionais e pro-
O argumento principal desenvolvido neste cedimentais que alteram a distribuição de poder
trabalho é o de que em países marcados por al- entre níveis de governo. A abordagem da com-
to grau de heterogeneidade, a descentralização munity politics (ou poder local, como alguns a
apresenta resultados contraditórios e cria novas traduzem) ressalta a importância dos contextos
tensões para antigos problemas, como o das de- político e econômico locais na neutralização de
sigualdades inter e intra-regionais. mudanças nas RIGs. Já os estudos organizacio-
O trabalho apresenta primeiro uma breve nais chamam a atenção para a natureza multi-
discussão sobre os conceitos de relações intergo- dimensional das RIGs. No entanto, estudos ba-
vernamentais e descentralização, os quais guiam seados nessas três abordagens tendem a isolar
as análises posteriores sobre os governos locais os conflitos entre níveis de governo de outros
no Brasil contemporâneo. Em seguida, dedica- conflitos políticos existentes na sociedade. Já a
se atenção especial ao papel dos governos locais literatura sobre escolha racional define as RIGs
na provisão de serviços sociais e nas possibili- de forma mais abrangente, focalizando na rela-
dades abertas pela descentralização para a par- ção entre os formuladores de políticas públicas
ticipação das sociedades locais no processo de- – em geral, os legisladores – e os implementado-
cisório sobre investimentos e políticas públicas res da política – em geral, a burocracia (Sheps-
locais. Algumas conclusões preliminares são le & Bonchek, 1997).
apresentadas na última seção. A necessidade de se promoverem mudanças
nas abordagens sobre as RIGs justifica-se pela
necessidade de se superar o que Elazar (1984)
O conteúdo político das relações denominou de orientação teórica obsoleta, ou
intergovernamentais e da seja, a visão das RIGs como parte do modelo
descentralização “centro-periferia”. Elazar defende a necessidade
de um referencial capaz de incorporar aspectos
O surgimento do estado-nação gerou a expan- importantes das RIGs, tais como os elementos
são do papel dos governos, criando também constitutivos da Federação e se as RIGs são veí-
tensões relativas à distribuição de poder entre culos apenas administrativos, mas também po-
esferas públicas. Durante o século que se fin- líticos. Além do mais, essas relações estão hoje
dou, complexos arranjos e articulações foram se expandindo para além dos limites dos gover-
montados em função das relações intergover- nos, com a entrada de organizações multilate-
namentais (RIGs). Em países federais como o rais, supra-nacionais e das ONGs nas decisões
Brasil, a principal questão sobre a qual o estudo e no financiamento de políticas locais, caracte-
das RIGs se baseia diz respeito a como as esfe- rizando o que vem sendo chamado de gover-
ras governamentais se articulam para resolver nança de múltiplo nível. Este conceito se refere a
problemas comuns, como analisado, por exem- trocas negociadas entre sistemas de governança
plo, em Souza (1997, 1999). Entretanto, a maior em diferentes níveis institucionais, reduzindo
parte das contribuições teóricas sobre as RIGs ou abolindo comandos hierárquicos e formas
em países federais baseia-se na experiência dos de controle tradicionais. A base do conceito, de
EUA, Canadá e Austrália, enfatizando, portan- acordo com Pierre & Stoker (2000), está na ne-
to, uma visão anglo-saxônica da questão. Além gociação, e não na submissão, e na mobilização
do mais, muitos trabalhos tendem a tratar as ar- conjunta das esferas pública, privada, nacional
ticulações resultantes das RIGs relacionando- e multinacional.
as à produção e distribuição de serviços, a for- Este trabalho interpreta as RIGs como veí-
mas de financiamento e a medidas reguladoras, culos de negociação política que produzem pa-
desprezando seus aspectos políticos. drões capazes de colocar grupos com menor po-
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Souza, C.

der político em confronto com outros, cada qual das aos atuais regimes políticos. Um exemplo é
na luta para elevar sua posição. Este jogo, entre- que vários países europeus e os EUA vêm mos-
tanto, não é dicotômico, mas sim um continuum. trando uma tendência à descentralização, en-
A partir dessa orientação conceitual, a compre- quanto a Grã-Bretanha está tomando o cami-
ensão sobre como os conflitos são negociados se nho de maior centralização de poder e de deci-
torna mais importante para os objetivos de qual- são sobre políticas públicas, ao mesmo tempo
quer análise sobre as RIGs que se produzem com em que tem delegado certa autonomia legisla-
a descentralização do que a investigação dos ar- tiva para a Escócia, o País de Gales e a Irlanda
ranjos administrativos e legais que também as do Norte. Para uma teoria rival ao marxismo, a
regem. O encaminhamento de conflitos no âm- teoria da escolha pública, a descentralização é
bito das RIGs gera padrões que se sustentam em vista como fator importante na limitação da vo-
estruturas e processos muitas vezes mais infor- racidade dos burocratas como maximizadores
mais do que formais, gerando também padrões de despesas. Para essa teoria, a descentralização
extraconstitucionais e extralegais de articulação. estimula a opção dos consumidores em escolhe-
No que se refere à descentralização, apesar rem livremente suas prioridades. Assim, se um
de políticas descentralizadas estarem em voga município não atende às demandas de um con-
na maioria dos países, o conceito de descentra- sumidor, este se muda para outro, onde suas
lização é vago e ambíguo. A popularidade da preferências serão mais bem atendidas. Essas
descentralização respalda-se em vários fatores, duas visões da descentralização são difíceis de
dentre eles nos ataques da direita e da esquerda se aplicar em países em desenvolvimento. A vi-
contra o poder excessivo dos governos centrais, são marxista, por causa do papel proeminente
assim como na capacidade que o conceito traz que o Estado sempre teve nesses países. Já a teo-
embutida de prometer mais do que pode cum- ria da escolha pública também se mostra de di-
prir. Enquanto alguns autores enfatizam a des- fícil aplicação, porque cidadãos (ou consumi-
concentração administrativa, outros vêem a des- dores) pobres não parecem ter o direito de es-
centralização como uma questão política que colha de moradia baseado em nada além do que
envolve uma efetiva transferência de autoridade a disponibilidade de emprego.
para setores, parcelas da população ou espaços A descentralização tem sido o foco central da
territoriais antes excluídos do processo decisó- literatura sobre desenvolvimento. Dentro dessa
rio. Nesse sentido, o conceito de empowerment ótica, a descentralização é vista como um dos
passa a ser parte constitutiva do conceito de principais instrumentos do desenvolvimento e
descentralização. como estratégia para a redução do papel do Es-
Vários são os problemas envolvendo as for- tado. Vários problemas teóricos não-resolvidos
mulações conceituais sobre a descentralização. pela literatura sobre desenvolvimento podem
O primeiro encontra-se no fato de que a litera- ser apontados, tais como:
tura passou a enfatizar o slogan “pense global e • para cada princípio a favor da descentrali-
aja localmente”, ignorando a importância de ou- zação, pode-se igualmente identificar outro que
tras esferas, tais como, no caso dos países fede- o contrarie;
rais, os estados-membros. O segundo problema • as vantagens e as limitações da descentrali-
é que a descentralização tem significado, espe- zação são em geral apresentadas em termos nor-
cialmente na literatura anglo-saxônica, um re- mativos, sem relacioná-las com contextos polí-
direcionamento para o mercado e para os atores ticos e econômicos mais amplos, gerando, por-
locais, reduzindo as instâncias de politização. tanto, uma despolitização do debate;
Em terceiro lugar, as formulações teóricas • a linguagem usada na literatura é a da “efi-
sobre a descentralização levam em conta a reali- ciência”, “efetividade” e “controle”, sugerindo,
dade dos países industrializados, tornando suas implicitamente, que países centralizados care-
bases conceituais e metodológicas difíceis de se- cem dessas três capacidades;
rem aplicadas em outros países. Como exemplo • a literatura trata a descentralização como
dessa limitação pode-se apontar o fato de que as uma política concedida do centro para as esferas
formulações marxistas sobre a descentralização subnacionais, o que não se aplica a países como
explicam a centralização e a descentralização o Brasil, onde a decisão de expandir a descentra-
como correspondentes aos movimentos mun- lização foi tomada pelos constituintes de 1988;
diais do capitalismo. Tal explicação encontra- • a literatura tende a ignorar níveis interme-
se hoje sem sólida base empírica, dado que ten- diários de governo, focalizando apenas nas re-
dências divergentes não estão claramente liga- lações entre o centro e as esferas locais;
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• não existem garantias de que os benefícios de financeira promoveu o aumento do poder rela-
políticas descentralizadoras serão eqüitativamen- tivo dos governos e das sociedades locais, aliado
te distribuídos, como argumentam Prud’homme ao fato de que a descentralização não foi uma
(1994), Slater (1989) e Smith (1985). política adotada pelo governo federal (ou cen-
O sumário aqui apresentado sobre o trata- tral), como na maioria dos países que estão ho-
mento da literatura sobre RIGs e descentrali- je experimentando processos de descentraliza-
zação teve o objetivo de apoiar o argumento de ção, mas sim pelos constituintes de 88, am-
que discutir o papel dos governos e das socie- pliando, portanto, o conteúdo político da des-
dades locais em termos gerais e a partir de mol- centralização e das RIGs.
duras conceituais mais tradicionais e/ou norma- A descentralização entrou para a agenda da
tivas parece não significar muito nos dias atuais. redemocratização como uma resposta a diver-
Isto porque a descentralização não ocorre em sos fatores. Primeiro, como reação à centraliza-
um vazio político-institucional. Além do mais, ção do regime anterior e não como resposta a
a descentralização promove novos conflitos en- clivagens étnicas, religiosas, lingüísticas ou por
tre diferentes grupos sociais e afeta a distribui- ameaças de cisão do território, como na maior
ção de poder político e de bens a diferentes gru- parte dos países que a adotam. Nesse sentido,
pos da sociedade local e entre diferentes níveis os conceitos de descentralização e de federalis-
de governo. Dessa forma, análises baseadas em mo se entrecruzam e passam a sofrer influência
evidências empíricas sobre o desenvolvimento também do conceito de democracia consocia-
político e tributário da esfera local nas duas úl- tiva desenvolvido por Lijphart (1984). O segun-
timas décadas podem contribuir para o desen- do fator é que a descentralização sempre este-
volvimento de questões mais precisas sobre as ve fortemente associada à redemocratização,
conseqüências da descentralização. Por essas não apenas em 88, mas em todos os períodos
razões, as seções seguintes buscam mapear três de retorno à democracia, como em 1946. O ter-
diferentes dimensões e momentos da experiên- ceiro fator, de viés normativo e influenciado
cia recente de descentralização no Brasil, seus pelas premissas das teorias do desenvolvimen-
principais resultados e impactos sobre as rela- to, é que a descentralização também esteve as-
ções intergovernamentais e a participação das sociada à promessa de tornar os governos mais
sociedades locais. eficientes e mais acessíveis às demandas dos ci-
dadãos locais.
O segundo momento da descentralização se
Dimensões e momentos relaciona com a decisão propriamente dita. Es-
da descentralização sa decisão foi condicionada pela intensa inter-
seção de interesses conflitantes entre as regiões
A análise do processo de descentralização no e entre os estados e os municípios, tornando-se,
Brasil requer que se considerem três dimensões. assim, um ponto crucial para o entendimento
A primeira se refere ao entendimento de como de por que a descentralização ocorreu no Brasil
a descentralização foi introduzida na agenda da de forma tão intensa e acelerada quando com-
redemocratização. A segunda lida com a forma parada com outros países. O processo decisó-
como se deu o processo decisório relativo à des- rio sobre a descentralização refletiu a natureza
centralização. A terceira dimensão se reporta complexa das decisões políticas e de políticas
ao entendimento de como a descentralização é públicas quando tomadas durante as comoções
operacionalizada em contextos de heterogenei- que envolvem mudanças de regimes políticos.
dade. Essas dimensões mostram que a descen- Devido aos fatos relacionados a esse segundo
tralização e as RIGs passaram por três diferentes momento, a decisão de descentralizar não foi
momentos, cada qual influenciando o momen- precedida de discussões e avaliações sobre suas
to seguinte. conseqüências e trade-offs. Não havia tempo ou
Apesar de o primeiro momento se relacio- oportunidade para se construir um consenso
nar com a redemocratização, isso não significa social mínimo sobre o que deveria ser perse-
que a descentralização resultou exclusivamente guido com a descentralização e as condições
da Constituição de 1988. Várias medidas e fatos para sua efetivação, assim como funcionariam
anteriores a 1988 sinalizavam que a descentra- as RIGs nesse novo formato.
lização seria um dos resultados mais previsíveis O fato da decisão de descentralizar ter sido
da nova Constituição. A importância da Cons- tomada pelos constituintes durante os debates
tituição está no fato de que a descentralização sobre o novo desenho político, institucional e
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Souza, C.

social do país, fortalece a visão da descentrali- instrumentos que formatam as RIGs. Em sínte-
zação como um processo político e não apenas se, o compromisso em relação à descentraliza-
administrativo. Se tal decisão não é primordial- ção difere profundamente, seus resultados mos-
mente política, por que os constituintes se preo- tram-se altamente variáveis e as formas como
cupariam com ela? No entanto, embora a deci- as relações entre os diversos níveis de governos
são tenha sido tomada pelos constituintes, isso e de governança se estabelecem reforçam os as-
não significa a inexistência de pressões dos ato- pectos contraditórios da descentralização, es-
res subnacionais. Esses atores foram cruciais pecialmente em contextos de alta heterogenei-
não apenas nas pressões a favor da descentrali- dade.
zação, mas também nos vetos sobre os detalhes
de como a descentralização iria ser operada e
qual a sua abrangência. Portanto, interesses Descentralização política e financeira:
conflitantes foram a principal variável na expli- alguns indicadores
cação da abrangência e do formato que a des-
centralização assumiu no Brasil. Existe um consenso hoje de que o Brasil é um
O terceiro momento da descentralização, is- dos países mais descentralizados do mundo em
to é, o entendimento sobre o seu funcionamen- desenvolvimento. Do ponto de vista dos recur-
to numa sociedade heterogênea, será examina- sos, antes da Constituição de 1988, o governo
do nas próximas seções. Devido à ausência de federal detinha 44,6% do total da receita públi-
um consenso social sobre o que seria alcançado ca, passando posteriormente para 36,5%, o que
com a descentralização, acentuado pelos altos representa 5,7% do PIB. A participação dos es-
níveis de desequilíbrios inter e intra-regionais, tados no mesmo período passou de 37,2% para
os governos locais estão respondendo de forma 40,7% (cerca de 6,3% do PIB) e a dos municí-
diferenciada à descentralização. Respostas dife- pios de 18,2% para 22,8% (3,5% do PIB). O au-
renciadas à descentralização não são, em si, pa- mento nas receitas subnacionais decorreu de
radoxais. Isto porque a descentralização se apóia várias fontes, mas duas são de maior importân-
em duas premissas. A primeira, mais conhecida cia. A primeira se deu pela transferência de cin-
e debatida, é a transferência de poder financeiro co impostos federais para os estados, aumen-
e decisório para instâncias, setores ou grupos tando a base do seu principal imposto, o ICMS,
anteriormente excluídos da estrutura de poder. beneficiando, assim, os estados economicamen-
A segunda, pouco enfatizada na literatura pu- te mais ricos. A Constituição também dotou os
blicada no Brasil, resulta da premissa anterior e estados de maior liberdade para determinar as
implica a liberdade das instâncias, setores ou alíquotas do ICMS, assim como total liberdade
grupos para decidirem o que fazer com os re- para a sua aplicação, a única restrição sendo a
cursos e o poder que lhes foram transferidos. A transferência de 25% para os municípios. A se-
idéia-força da descentralização a partir da se- gunda forma de incremento das receitas se deu
gunda premissa é a de que políticas e priorida- pelo aumento dos percentuais de transferência
des sobre certas questões serão decididas local- de dois impostos federais, o IR e o IPI, am-
mente, sem controle central, até sobre seus re- pliando, assim, os recursos dos fundos de par-
sultados (Souza & Carvalho, 1999). ticipação (FPE e FPM) e beneficiando os esta-
No entanto, e apesar dos problemas listados dos e municípios de economias mais frágeis.
acima, os governos locais, no agregado, estão Os governos subnacionais arrecadam hoje
substituindo o papel do governo federal em vá- cerca de 32% dos impostos coletados no país.
rias funções, especialmente na provisão de ser- Acrescidas as transferências, eles são responsá-
viços sociais. Além do mais, devido ao fato de veis por 43% dos recursos tributários. Em rela-
que a redemocratização foi um processo sem ção à despesa, eles são responsáveis por 62% da
ruptura com o regime político anterior, velhas folha de pessoal e por 78% dos investimentos
e novas elites políticas estão envolvidas com a públicos. O governo federal tem concentrado
implementação de políticas descentralizadas. suas despesas no pagamento do sistema previ-
Esses fatores, aliados a conflitos que emergiram denciário e dos juros, que correspondem, res-
durante o processo decisório sobre a descentra- pectivamente, a 80% e 90% da despesa pública
lização, caracterizam a forma como a descen- nessas duas funções (Serra & Afonso, 1999).
tralização está sendo implementada e reforçam No que se refere à descentralização política,
a importância das forças políticas na imple- existe um consenso de que os governadores e os
mentação de políticas públicas e o papel dos prefeitos das grandes cidades tiveram seu po-
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der ampliado com a redemocratização, graças capacidade financeira e administrativa dos mu-
ao papel que desempenham nas coalizões de nicípios, nas reformas econômicas voltadas para
governo, quer apoiando ou vetando suas polí- o controle fiscal, o que faz com que alguns ser-
ticas. Além do mais, a descentralização não se viços sociais estejam em uma espécie de limbo
restringiu à transferência de poder entre esfe- governamental, no recente sucesso do governo
ras governamentais, mas também destas para federal na recentralização dos recursos finan-
certos segmentos da sociedade local, através da ceiros e na vinculação de recursos subnacionais
adoção de políticas participativas. O poder de a determinadas políticas. Apesar dessas limita-
governadores e prefeitos assume várias formas ções, pode-se investigar os resultados da des-
e apresenta objetivos e agendas diferenciados. centralização em dois aspectos. O primeiro se
Mas o que importa destacar no contexto deste refere à tendência ao maior envolvimento dos
trabalho é que este poder tem forçado o gover- governos locais na prestação de serviços sociais.
no federal a negociar com os entes subnacionais O segundo se refere ao debate se a descentrali-
questões que são eminentemente nacionais, o zação aumentou o poder de segmentos da so-
que traz conseqüências também para as RIGs. ciedade local antes excluídos do processo deci-
Apesar desse poder ampliado de governado- sório. Busca-se conciliar, aqui, duas visões rivais
res, prefeitos e de segmentos das sociedades lo- sobre o papel dos governos locais. A primeira
cais, o Executivo federal não tem sido um ator enfatiza o papel do governo local como presta-
passivo e tem reagido, muitas vezes com suces- dor de serviços. A segunda enfatiza a questão da
so, contra a descentralização financeira. Vários representação da comunidade como forma de
são os exemplos bem-sucedidos que ilustram a contrabalançar o desequilíbrio de poder entre
atual tendência à recentralização. Em primeiro os que decidem e os que são afetados pelas de-
lugar, desde a promulgação da Constituição, o cisões e como forma de estimular a criação de
governo federal adotou a política de aumentar capital social.
a alíquota dos impostos e das contribuições que
não são partilhados com os entes subnacionais. O papel dos governos locais
Em segundo lugar, o governo federal vem re- nos serviços sociais
duzindo suas despesas em investimentos e em
políticas sociais, pressionando os governos sub- O principal constrangimento relacionado
nacionais para preencher o vazio deixado pela com a descentralização e com a prestação de ser-
ausência da esfera federal. Em terceiro lugar, viços sociais está nas disparidades inter e intra-
várias reformas constitucionais e/ou leis ordi- regionais, o que desmonta a hipótese implícita
nárias estão colocando limites na capacidade na literatura de que um círculo virtuoso seria
arrecadadora e de despesa das esferas subna- estabelecido por políticas descentralizadoras e
cionais, do qual a Lei de Responsabilidade Fis- que as virtudes da descentralização se distri-
cal, a Lei Kandir, o Fundo de Estabilização Fiscal buiriam eqüitativamente. As evidências empí-
(FEF), o Fundef e a Emenda Constitucional 29/ ricas já mencionadas mostram que a maioria
2000, que vincula recursos para a saúde, são al- dos municípios não tem capacidade para ex-
guns exemplos. Essas medidas mostram que o pandir a arrecadação de impostos nem é capaz
Executivo federal não reduziu sua importância de financiar nenhuma atividade além do paga-
como instituição política, o que significa que a mento dos servidores públicos, muitos com sa-
disputa de poder entre os entes federativos tem lários abaixo do mínimo, e de desempenhar,
aumentado e que os conflitos decorrentes das com recursos transferidos para tal fim, algumas
RIGs se tornaram mais complexos. Elas mos- atividades relacionadas à prestação de serviços
tram também que não existe clareza se os go- de saúde e educação. Esses municípios não pos-
vernos subnacionais poderão manter os inves- suem atividade econômica significativa e são ca-
timentos e as despesas com a provisão de servi- racterizados pela extrema pobreza de suas po-
ços sociais, o que será discutido adiante. pulações. Dessa forma, as desigualdades inter e
intra-regionais anulam o objetivo último da
descentralização, que é o de permitir maior li-
Alguns resultados preliminares berdade alocativa aos governos e às sociedades
da descentralização locais. Além do mais, ao restringir os recursos
federais, a descentralização também constrange
Os resultados da descentralização são afetados a política de transferência de recursos das re-
por vários fatores, tais como a diversidade na giões economicamente mais desenvolvidas pa-
438
Souza, C.

ra as menos desenvolvidas via ações e recursos sa-escola. Em 1999, três estados e 20 municípios
federais. Mesmo em países como o Brasil, onde adotavam o programa bolsa-escola, alcançando
existem mecanismos de transferência desses re- 140 mil famílias e 700 mil pessoas. Se em termos
cursos, como é o caso do FPM, esses mecanismos absolutos esses números impressionam, esses
têm pouco impacto para o enfrentamento das programas significam ainda pouco diante da es-
heterogeneidades regionais. Essas questões de- timativa oficial de que existem 10,3 milhões de
monstram os limites da descentralização em famílias que têm renda per capita mensal me-
países caracterizados por extremas desigualda- nor do que R$65,00 (Lavinas, 1998).
des inter e intra-regionais. Muitos trabalhos também estão mostrando
No entanto, e apesar dos constrangimentos que várias cidades, especialmente as capitais,
mencionados, os governos locais têm aumenta- adotaram políticas de aumento de suas receitas
do sua participação na prestação de serviços so- próprias, contrariando a hipótese da literatura
ciais e se tornaram nos seus principais prove- sobre federalismo fiscal, em especial aquela in-
dores. O aumento da participação dos governos formada pela teoria da escolha pública, de que
locais na prestação de serviços sociais pode ser quando as transferências governamentais têm
visto pelos números do quadro 1. peso nas receitas, os governos locais tendem a
Apesar de o governo federal permanecer co- diminuir seus esforços na arrecadação de recur-
mo o principal investidor, 65% dos seus recur- sos próprios. A taxa de crescimento das receitas
sos para a área social são gastos com o sistema próprias de 11 capitais aumentou mais de 10%
previdenciário, 17% com saúde e 8,5% com ao ano entre 1989 e 1994 (Jayme, Jr. & Marquet-
educação (Draibe, 1999). ti, 1998), diminuindo, assim, a dependência das
A despesa por região demonstra que as re- transferências federal e estadual, e aumentando
giões economicamente menos desenvolvidas as possibilidades de maiores investimentos em
apresentam gastos per capita na área social duas programas considerados prioritários pela coa-
vezes menores do que as regiões e estados com lizão política local. No entanto, mais uma vez
maior desenvolvimento econômico. No entanto, as heterogeneidades inter e intra-regionais se
tem sido significativo o esforço dos três níveis fazem presentes, já que menos da metade das
de governo na região Nordeste, onde a despesa capitais adotaram essa política, o que mostra
social per capita tem atingido 30% do PIB da que a descentralização promoveu resultados di-
região, enquanto no Norte tem sido 19,5%, no ferenciados e gerou agendas também diferen-
Sudeste 18,1%, no Sul 17,8% e no Centro-Oes- ciadas nas grandes cidades brasileiras.
te 22% (Draibe, 1999). Resumindo, os governos locais no Brasil va-
Dados das contas subnacionais entre 1986 e riam consideravelmente na sua capacidade de
1995 (Ministério da Fazenda, 1997) mostram tirar vantagens da descentralização e de inves-
que as capitais estaduais vêm, antes mesmo da tir em programas sociais. No entanto, a litera-
Constituição de 1988, priorizando gastos na tura sobre descentralização e muitos trabalhos
área social. No entanto, o papel do governo mu- sobre os governos locais no Brasil tendem a tra-
nicipal tem aumentado não só devido ao maior tá-los como uniformes e como tendo a mesma
volume de recursos investidos, mas também de- capacidade de jogar um papel expandido nas
vido à redução relativa dos gastos federais. tarefas que lhes foram transferidas. A literatura
Outra área em que o papel dos municípios brasileira sobre o tema, com poucas exceções,
tem sido importante concentra-se nos progra- ainda resiste em considerar as enormes hetero-
mas de combate à pobreza, especialmente a bol- geneidades do país e a ignorar o fato de que po-

Quadro 1
Gasto social por nível de governo

1980 1985 1992 1994 1995 1996 Média 1994/1996


Gasto social 100 100 100 100 100 100 100
Federal 66 62 57 60 59 57 59
Estadual 24 25 26 23 24 23 24
Municipal 11 13 16 16 17 19 18
Fonte: Oliveira (1999).
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líticas descentralizadas para as esferas locais po- condição política e social. Ou seja, a noção de
dem produzir resultados altamente diferencia- empowerment implica a tomada de consciência
dos. Como discutido anteriormente, a diversi- sobre injustiças e iniqüidades, mas, ao mesmo
dade de resultados é da natureza mesma da des- tempo, implica a crença nas possibilidades da
centralização. No entanto, como argumentado ação coletiva para promover mudanças (Nylen,
por Souza & Carvalho (1999), essa diversidade 2000).
em contextos de altas desigualdades reduz as A participação como voz e não como em-
possibilidades de construção dos requisitos mí- powerment tem sido largamente adotada no
nimos de uma cidadania social nacional. Brasil. Estimulada por políticas nacionais, co-
mo recomenda o Banco Mundial, ou por re-
Empowerment da sociedade? cursos externos – nacionais ou dos organismos
multilaterais – que requerem a constituição de
Com a redemocratização e a descentraliza- conselhos comunitários para a liberação de re-
ção, grandes esperanças e expectativas foram cursos para a área social, principalmente saúde,
geradas no que se refere ao empowerment dos educação, assistência social e infra-estrutura lo-
governos, mas sobretudo das sociedades locais. cal, a maioria dos governos municipais criou vá-
Essas expectativas têm se mostrado de difícil rios desses conselhos. Avaliações sobre o funcio-
materialização, além de apresentar resultados namento desses conselhos começam a ser pro-
muito variados. No entanto, assim como ocorre duzidas, mas ainda não nos permitem um qua-
com o conceito de descentralização, o de partici- dro claro sobre o que acontece no seu interior,
pação também embute significados diferentes. especialmente do ponto de vista comparativo.
Entre esses vários significados, dois merecem No entanto, alguns problemas podem ser levan-
atenção especial: o de participação como em- tados. A obrigatoriedade de constituição desses
powerment e o de participação como voz (Sou- conselhos pode significar, em muitas localida-
za, 2001b). des, a mera reprodução formal das regras dos
Para a maioria das organizações multilate- programas, ameaçando os fundamentos prin-
rais, participação parece significar a incorpora- cipais da participação, quais sejam, credibilida-
ção da voz de segmentos marginalizados ao de, confiança, transparência, accountability, etc.
processo decisório. Para essas organizações, a Além do mais, a mídia tem divulgado casos de
voz das pessoas locais, particularmente dos po- corrupção no uso dos recursos que são aloca-
bres, pode ser incorporada através de reformas dos pelos conselhos, assim como o controle que
induzidas por políticas nacionais, que permitirão muitos prefeitos exercem sobre os mesmos.
a essas pessoas maior espaço para se associar a Já a participação como empowerment tem
organizações não-governamentais, sindicatos e a sido perseguida por alguns governos locais, par-
outras formas de associativismo, com o objetivo ticularmente, embora não exclusivamente, os
de melhor entender e influenciar as decisões que liderados pelo PT. As experiências mais conhe-
lhes dizem respeito [tradução da autora] (World cidas são a do orçamento participativo de Porto
Bank, 1994). Assim, para a comunidade multi- Alegre e Belo Horizonte. Essas experiências têm
lateral, a participação é uma forma de integrar sido exaustivamente estudadas e foge ao objeti-
os desorganizados, isto é, os pobres, à chamada vo deste trabalho discuti-las. No entanto, a ten-
sociedade civil, gerando capacidade de influen- dência à recentralização de recursos comenta-
ciar (e não de decidir) sobre questões que lhes da anteriormente, aliada à política federal de
afetam diretamente. A visão da participação co- aumentar a parcela de recursos locais para a
mo voz e não como empowerment mostra cau- educação e a saúde, talvez reduzam as possibili-
tela em relação ao papel das instituições formais dades de expandir as experiências de participa-
da democracia representativa, preocupando-se ção como empowerment.
em preservar a capacidade decisória dos que Sintetizando, políticas participativas vêm
foram eleitos para representar os distintos in- ocorrendo no Brasil incentivadas pelo aumen-
teresses das comunidades locais. to dos recursos locais, pelos requerimentos de
Em outra direção está a noção de participa- programas nacionais e pelos recursos dos orga-
ção como empowerment, o que significa que nismos multilaterais, o que ressalta a importân-
pessoas ou grupos anteriormente excluídos do cia das RIGs, em especial da incorporação do
processo decisório tomam consciência da sua conceito de governança de múltiplo nível. No
exclusão e, como resultado, passam a participar entanto, assim como nas questões analisadas
do jogo político como forma de modificar sua acima, a visão sobre o conteúdo e a abrangência
440
Souza, C.

da participação também é variada. Da mesma diminuindo ou limitando o uso dos recursos


forma, registra-se uma maior participação dos transferidos. Ademais, quedas nas transferên-
governos locais na provisão de serviços sociais, cias estaduais para os municípios também vêm
que também apresenta resultados e agendas di- ocorrendo devido à política de incentivos fis-
ferenciados. Por essas razões, a hipótese nor- cais dos estados para atrair investimentos pri-
mativa sobre os resultados virtuosos da descen- vados, baseada em isenções do ICMS.
tralização precisa ser examinada com cuidado. A segunda questão remete ao fato de que a
Isto porque circunstâncias e características so- correlação de forças que se estabelece entre di-
ciais, políticas e econômicas variam considera- ferentes níveis de governo e entre estes e os or-
velmente em sociedades muito desiguais como ganismos multilaterais está longe de ser relati-
a brasileira. As questões analisadas acima mos- vamente homogênea. Ou seja, as esferas locais
tram que as características e as circunstâncias registram capacidades altamente diferenciadas
locais e regionais influenciam os incentivos e os na competição por recursos externos. Existem
constrangimentos dentro dos quais as políticas vários e concorrentes centros de poder que pas-
públicas se materializam. Com o que se pode saram a ter voz e poder de veto em questões na-
concluir que não se deve esperar da descentra- cionais e locais. Existem também muitos gover-
lização mais do que ela pode cumprir. nos locais que tiram poucas vantagens da des-
centralização em virtude das suas precárias con-
dições sociais e financeiras. Esses governos têm
Conclusões escassas oportunidades de prover serviços so-
ciais e de promover o empowerment da socie-
O Brasil é um país federativo caracterizado pe- dade local.
la existência de múltiplos centros de poder, por A terceira questão diz respeito à prestação
um sistema complexo de dependência política e de serviços sociais. Se os governos locais estão
financeira entre as esferas governamentais, não- mais envolvidos nessa tarefa, precisa-se saber
governamentais e multilaterais, pela existência como esses serviços estão sendo prestados e co-
de vários caminhos para a prestação de políti- mo os indivíduos estão tendo acesso a eles. Co-
cas públicas e por grandes disparidades inter e mo mencionado acima, a maior parte dos ser-
intra-regionais. Desde a redemocratização, vá- viços sociais opera atualmente dentro de um
rios centros de poder, embora com pesos dife- formato institucional diferente do passado, ou
renciados, têm acesso aos processos decisórios e seja, eles incorporam a participação da socieda-
à implementação de políticas públicas de corte de, deles participam diferentes níveis de gover-
social (Souza, 2001a). Os governos e as socieda- no, de instituições não-governamentais e mul-
des locais se transformaram em uma das fontes tilaterais. Torna-se necessário, portanto, exa-
de apoio e de veto às coalizões governistas na- minar, tanto isolada como comparativamente,
cionais, mas também em importantes provedo- o papel das instituições políticas locais em limi-
res de serviços sociais e em experimentadores tar ou expandir o acesso dos cidadãos à presta-
de políticas participativas. No entanto, essa for- ção desses serviços. Torna-se necessário tam-
ça não significa que o governo federal seja um bém entender melhor como os conflitos entre
ator passivo, como discutido acima. os múltiplos atores institucionais estão sendo
Acessar os limites e as possibilidades da des- negociados. Essas questões são cruciais porque
centralização e das relações intergovernamen- as instituições são moldadas pela história, cul-
tais em um país como o Brasil depende de várias tura, incentivos e constrangimentos, para usar
questões. Uma delas se refere a até quando po- a linguagem neo-institucionalista, que variam
derão os governos locais sustentar o atual nível e se transformam em cada ambiente, especial-
de investimento em programas sociais? A res- mente em um país heterogêneo como o Brasil.
posta a esta questão é importante devido: a) ao Apesar das mudanças na forma como a des-
endividamento de muitos governos locais ou à centralização financeira vem funcionando vis-
sua incapacidade de cumprir os acordos de suas à-vis ao que foi desenhado na redemocratização,
dívidas firmados com o governo federal, em es- os resultados da descentralização são condicio-
pecial os grandes municípios; b) às dificulda- nados por problemas que foram em grande
des de ampliação de seus recursos, seja pela re- parte ignorados pelos regimes políticos anterio-
sistência de certos segmentos sociais, seja pela res, tais como as históricas desigualdades inter
política de juros altos; e c) à recente tendência e intra-regionais. Dessa forma, a capacidade dos
à recentralização e/ou vinculação de recursos, governos locais de participar mais ativamente
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da provisão de serviços sociais e de estimular a mentais, criando contradições e tensões. As mu-
participação de segmentos sociais é muito dife- danças no ambiente político e financeiro pro-
renciada. No entanto, dilemas nacionais como moveram a emergência de novos atores políti-
o das desigualdades inter e intra-regionais per- cos e de novas instituições de ação coletiva no
manecem como uma questão nacional, embo- cenário local, gerando resultados de políticas
ra não constem ainda da agenda de prioridades públicas e padrões de negociação de conflito que
do país. ainda são pouco conhecidos e que extrapolam
Este artigo ressaltou que as disparidades in- as estruturas e os processos constitucionais, le-
ter e intra-regionais moldam os resultados da gais e institucionais.
descentralização e das relações intergoverna-

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Artigo apresentado em 5/1/2002


Versão final apresentada em 20/1/2002
Aprovado em 15/2/2002

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