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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(2): 57-67, 2004 A RECONVERSÃO DO SOCIAL: DILEMAS DA REDISTRIBUIÇÃO NO ...

A RECONVERSÃO DO SOCIAL
dilemas da redistribuição no tratamento focalizado

ANETE BRITO LEAL IVO

Resumo: Este artigo caracteriza o processo de reconversão da questão social no Brasil no contexto do projeto
neoliberal. Analisa o processo de despolitização da questão social contemporânea, por meio das políticas so-
ciais focalizadas num quadro dissociado da proteção e dos direitos. Explicita as fragilidades desse modelo no
plano institucional, societário e político, bem como os efeitos na segmentação da exclusão, aprofundando um
conflito redistributivo de base, entre pobres e quase-pobres.
Palavras-chave: políticas sociais focalizadas; pobreza; Brasil.

Abstract: This article characterizes the process of re-conversion of the social question in Brazil in the context
of the neo-liberal project. It analyses the process of depoliticization of the contemporary social question, through
the focused social politics in an independent scheme of protection and rights. It emphasizes not only the fragility
of such model in the institutional, social and political plans, but also the effects of the segmentation of exclusion,
increasing the distributive conflict, between the poor and the almost poor.
Key words: focused social politics; poverty; Brazil.

A política social é uma dimensão necessária da de-


mocracia nas sociedades modernas e está estrei-
tamente ligada aos valores da eqüidade que fun-
dam a legitimidade política e a concepção que as socieda-
condicionadas pela natureza das relações entre capital e
trabalho, estando diretamente relacionadas às tendências
que conformam a dinâmica do mercado de trabalho em
cada sociedade – principal mecanismo de inclusão so-
des e os governos têm do seu projeto político e de seu cial. Ou seja, não se pode compreender os dilemas da
destino. política social fora da dimensão do trabalho, entendido
No quadro institucional, as políticas sociais integram como a forma concreta de reprodução e inserção social
um sistema de ação complexo resultante de múltiplas cau- e como valor histórico e culturalmente instituído, que
salidades e diferentes atores e campos de ação social e confere identidade social e matriz de sociabilidade no
pública: proteção contra riscos; combate à miséria; desen- marco de uma construção coletiva. Em outras palavras,
volvimento de capacidades que possibilitem a superação as políticas sociais estão associadas a processos civili-
das desigualdades e o exercício pleno da cidadania; re- zatórios que definem as possibilidades de construção dos
distribuição de riquezas; etc. Assim, elas são dispositivos vínculos e do contrato social. Contudo, partindo de diag-
institucionais criados com o objetivo de assegurar a cada nósticos equivocados, podem constituir-se em antipo-
um as condições materiais de vida que permitam ao cida- líticas, desde que seus resultados aprofundem as desi-
dão exercer seus direitos sociais e cívicos. Atuando no gualdades e reduzam a capacidade redistributiva que toca
âmbito redistributivo, elas envolvem necessariamente re- o conjunto da sociedade.
lações de poder e são, portanto, conflitivas e qualificado- Assim, a nebulosidade das polêmicas e análises relati-
ras da democracia e do projeto de inclusão social das so- vas às políticas sociais guardam estreita relação com a
ciedades.1 construção da política num sentido mais amplo e expres-
Neste sentido, as políticas sociais se articulam neces- sa clivagens ideológicas que orientam as alternativas e
sariamente com a dinâmica do crescimento e são opções de diferentes atores diante do projeto político e

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de desenvolvimento nacionais, no confronto com as pers- a capacidade do uso da força de trabalho (doenças,
pectivas do neoliberalismo econômico que entende “mer- invalidez, desemprego, velhice, acidentes, etc.),
cado” como o melhor regulador das relações sociais. reconvertendo uma noção de responsabilidade, antes res-
Neste artigo, procura-se caracterizar o processo de re- trita ao âmbito individual, para uma noção objetiva de
conversão profunda dos sentidos e alcances do novo tra- proteção social.4 Ou seja, o direito social criou as condi-
tamento da questão social no contexto de hegemonia de ções de intervenção crescente do Estado na prevenção de
um projeto neoliberal, analisando a natureza e as ambi- perigos que ameaçam a sociedade, consolidando o prin-
güidades dessa transição num país historicamente marca- cípio de uma responsabilidade pública institucionalizada.
do pelas elevadas taxas de desigualdades, como o Brasil, Da mesma forma, no contexto do pós-guerra, a estru-
e os efeitos que o tratamento focalizado das políticas so- turação das políticas sociais constituiu-se na resposta his-
ciais, tomadas como eixo central de enfrentamento da tórica ao dilema de organização dos interesses privados
pobreza, traz para o conjunto da sociedade brasileira, so- no contexto do interesse público, em torno de uma políti-
bretudo se confrontado ao projeto de inclusão social uni- ca da redistribuição de riqueza. As mediações historica-
versalista desenhado na Carta Constitucional de 1988. mente construídas pelo Direito, pela justiça e pelas políti-
A idéia central que norteia a presente análise é a de cas sociais resultaram na governabilidade gerada contra a
que as mudanças que orientam o conjunto das políticas influência desorganizadora do mercado.
sociais atualmente objetivam, por um lado, reduzir os efei- A tensão permanente entre a organização da defesa da
tos adversos do ajuste estrutural (têm, portanto, caráter sociedade (que contou com o apoio das classes trabalha-
compensatório) e, por outro, se implantarem à margem da doras) e a regulação dos mercados estruturou as socieda-
institucionalidade vigente no campo da proteção social des modernas, tendo nos Estados nacionais modernos a
(neste sentido, possuem natureza flexível e não se consti- versão institucional dessa regulação e na matriz salarial a
tuem em direitos). Esta tendência contraria os ganhos de- norma definidora das condições de identidade e de socia-
mocráticos e o projeto de sociedade pactuado entre elites bilidade da classe trabalhadora, base de sua cidadania.
e trabalhadores no quadro Constitucional, gerando pro- Desta perspectiva, o “social” refere-se a um conjunto
blemas de governabilidade 2 e uma profunda disso- de mediações que se estabelecem entre três ordens: a eco-
cialização na sociedade brasileira. Este artigo busca es- nômica, a política e a doméstica, como afirmam Théret
clarecer algumas dessas questões a partir da análise dos (1992) e Lautier (1999). Entendidas no sentido amplo –
alcances da política focalizada no quadro atual. tanto o direito social como as contribuições sociais – a
transferência e a distribuição de bens e serviços gratuitos
O CONTEXTO CONTEMPORÂNEO são mediações jurídicas, monetárias e de serviços (públi-
cos) que recobrem todo um sistema de direitos e obriga-
A Natureza do “Social” na Modernidade: a ções entre os cidadãos e o Estado. Estes direitos e obriga-
“Desmercantilização”3 Parcial da Força de Trabalho ções têm um forte componente arbitrário e dependem do
contexto cultural e histórico em que se inscrevem. Desta
O “social” constituiu-se, historicamente, como regis- perspectiva, tanto as políticas sociais como os direitos
tro da modernidade, centrado e estruturado em torno do sociais representam uma desmercantilização do trabalho
trabalho. A centralidade do trabalho na organização das parcial (Esping-Andersen, 1990), resultante da força do
sociedades contemporâneas ligava-se, por um lado, à ca- movimento sindical dos trabalhadores no período do pós-
pacidade do movimento operário de integrar e articular guerra.
interesses mais amplos da sociedade e, por outro, à capa- A perspectiva neoliberal, no entanto, parte do suposto
cidade do Estado em regular o conflito dos interesses di- de que é impossível a preservação das regras que orien-
vergentes. tam a política social no marco da concepção do Estado de
No âmbito institucional, passou-se de um regime basea- Bem-Estar Social, dada a crise fiscal, a excessiva inter-
do na responsabilidade individual e fundado no direito civil venção do Estado no mercado e os possíveis estímulos
para um regime de solidariedade assentado num contrato negativos que os dispositivos institucionais geram no
social e fundado na noção de direito social (Ewald, 1986), âmbito do comportamento dos indivíduos, alimentando,
através de um conjunto de leis relacionadas às condições supostamente, comportamentos morais indesejáveis, como
do trabalho e à proteção aos trabalhadores que perderam “possível parasitismo dos trabalhadores às custas do es-

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forço das coletividades e/ou o uso clientelístico nas tran- A segunda etapa, a dos ajustes institucionais da déca-
sações”. Assim, a única via de retomada do crescimento da de 90, representou um momento de interferência auto-
da economia seria, por esta visão, romper a articulação ritária do Estado nacional sobre as conquistas trabalha-
entre “emprego e proteção social”, sacrificando o “social” doras, dando prosseguimento a uma agenda de reformas
(a proteção social, a política de salário mínimo, etc.). O do Estado (crise fiscal, redução das responsabilidades
desenho da nova política de redistribuição no quadro neo- sociais do Estado, etc.). O resultado do processo de ajus-
liberal pressupõe, portanto, a distensão da relação entre te do Estado reforçou o Executivo e atribuiu alto peso às
proteção social e emprego, rompendo o modelo que ca- tecnocracias na tomada de decisões, especialmente aque-
racterizou a construção do Estado social. las vinculadas às áreas estratégicas da economia e da po-
Isto implica que a renda não seja mais indexada sobre lítica tributária, centrais ao jogo dos ajustes.
o emprego ocupado. O centro dessa mudança situa-se na Este momento representa uma vivência controvertida
ruptura da proteção através das reformas da Previdência,5 da democracia, no qual o regime, ao mesmo tempo em
afetando fundamentalmente os direitos dos trabalhadores que se reafirma como valor moral, se expressa, na práti-
protegidos,6 e na reorientação da universalidade para a ca, pela desregulação dos direitos sociais, afetando, por-
operação de diferentes programas estratégicos e compen- tanto, as condições de inclusão social e de participação
satórios da assistência focalizada na linha da pobreza se- da comunidade nacional pela via do trabalho. Em vez de
gundo diferentes “públicos-alvo”.7 possibilitar maior integração social, gerou, na prática, mais
exclusão, fomentando a perda de sentidos da organização
Ciclos de Tratamento do Conflito Social no Brasil da vida coletiva e menor credibilidade e confiança na
política, que, para alguns, reaparece como espaço de pri-
A retomada da questão da pobreza como prioridade da vilégios e de desordem social, estimulando, muitas vezes,
agenda política no Brasil, no final da década de 90, emer- a anomia.
ge no curso de um processo conflitivo de mudanças, no Na terceira etapa, que se consolida sobretudo no fi-
qual distinguem-se três movimentos e conjunturas distin- nal da década de 90, 8 reconhece-se que a estabilização é
tas nas relações entre Estado e sociedade, que expressam importante, mas absolutamente insuficiente. Observam-
movimentos de hegemonia e contra-hegemonia entre ato- se os limites perversos da ação imperiosa da desregulação
res multilaterais e atores nacionais e locais, determinan- autoritária e a urgência de ações que contemplem for-
do limites e desafios ao Estado nacional e à ação pública, mas de integração social como prioridade, equacionadas
especialmente quanto ao tratamento da questão social. de forma fragmentada através de diversos programas
A primeira etapa (1970-1980) expressou-se pela luta compensatórios de enfrentamento da pobreza, descentra-
democrática de abertura política e de explosão de movi- lizados e operados em parceria com a sociedade civil,
mentos reivindicativos pelos direitos dos cidadãos, espe- na qual ganha importância o papel das organizações não-
cialmente nas áreas urbanas. Duas forças fundamentais governamentais do chamado Terceiro Setor. As alterna-
conduziram este processo: o novo sindicalismo e os mo- tivas para esta política são diversas e, longe de configu-
vimentos sociais, além de uma explosão de redes asso- rarem consenso, expressam, pelo contrário, um enorme
ciativas que canalizavam demandas, expressando-se por campo de controvérsias de sentidos da ação e dos obje-
meio de diversas arenas públicas e pela via da representa- tivos.
ção legislativa. Essas mudanças culminaram com a insta- Do ponto de vista governamental, no entanto, o deba-
lação da Assembléia Nacional Constituinte e a conseqüente te restringe-se tecnicamente às “escolhas públicas efici-
promulgação da Constituição de 1988. Este quadro cons- entes” em face da restrição dos gastos sociais. Isto sig-
titucional inovou o tratamento da política social como nifica desenvolver uma inteligência estratégica que
política de inclusão social de caráter universalista e de intervenha na política social nos limites dos ajustes
extensão dos direitos sociais às camadas mais pobres da econômicos, o que na prática implica contrapor as polí-
população, associadas ao resgate da cidadania e à sua ticas de assistência às de proteção e dar flexibilidade e
universalização, sob a égide da Seguridade Social, que, contingenciamento aos benefícios da assistência, o que
como dizem Theodoro e Delgado (2003), “estão longe de se contrapõem ao sentido mais amplo da justiça redis-
se constituírem mecanismos de transferência de renda para tributiva e da responsabilidade pública. Em vez de en-
pobres e carentes”. frentar o problema pelas suas causas (estruturais), a po-

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lítica social orienta a ação pelos seus efeitos, ou seja, o DE UM PROJETO CONSTITUCIONAL INCLUSIVO
combate à pobreza, subordinando a ética da solidarieda- PARA UMA ASSISTÊNCIA MITIGADORA
de institucional e responsabilidade pública do Estado à
contabilidade dos gastos. 9 A Reversão da Perspectiva Constitucional
do Estado Social Inclusivo
Uma Transição Complexa: as Contradições entre
Inclusão Política e Exclusão Social No eixo de encaminhamento desse dilema, observa-se
a reconversão do tratamento da “questão social” no Bra-
Este processo de transição contém um paradoxo da sil, de uma dimensão de política de inclusão social
sociedade brasileira no contexto atual, caracterizado por universalizada e de proteção, voltada para a produção de
uma inversão entre o regime político democrático conquis- justiça social, para centrar-se sobre seus efeitos, ou seja,
tado, que tende a incluir politicamente e ampliar a cida- em programas mitigadores, setorializados e focalizados
dania, e a dinâmica de uma economia dessocializada, que da pobreza.
historicamente produziu as maiores taxas de desigualda- Na visão universalista das políticas sociais, o mercado
des socioeconômicas e hoje levou massivamente à exclu- é o objeto do embate distributivo, o que supõe um papel
são, negando a cidadania pela destituição dos direitos decisivo e regulador do Estado.14 A perspectiva focaliza-
sociais mínimos num quadro recessivo e de desemprego da abandona a dimensão da universalidade inclusiva e faz
crescente. a opção pela “gestão estratégica da pobreza”, num am-
A clivagem entre inclusão e exclusão, em face dos di- biente adverso à mudança. Este novo paradigma, entre-
reitos sociais constitucionalmente reconhecidos, possibi- tanto, supõe o fortalecimento da capacidade dos pobres
lita analisar o campo de atuação e o grau de segurança ou para lutarem contra pobreza,15 como sujeitos deste pro-
incerteza das políticas sociais, que podem ser agrupadas cesso, o que significa que o encaminhamento da erra-
em três núcleos que configuram tipos de direitos distin- dicação da pobreza supõe considerar também variáveis
tos:10 políticas e societais no controle e implantação dessas po-
- aquelas que respondem pelos direitos sociais básicos líticas pelos seus usuários, bem como a construção de
estruturados no aparelho do Estado;11 arenas concertadas com atores sociais locais.
- alguns programas que respondem pela garantia dos di- Ou seja, no contexto atual, desloca-se o centro da polí-
reitos sociais previstos na Constituição, mas que depen- tica social de uma dimensão de redistribuição da riqueza
(imperfeita e inconclusa) para o tratamento compensató-
dem da opção dos governos por meio de programas estru-
rio dos seus efeitos (o controle parcial e mitigador da
turais – são vinculados constitucionalmente mas não estão
miséria). Como analisa Lautier (1999), desvinculando a
protegidos de cortes;12
pobreza dos seus determinantes estruturais, separam-se os
- e aqueles programas emergenciais voltados para o en- indivíduos submetidos a essa condição dos seus lugares
frentamento de carências e situações de vulnerabilidade no sistema produtivo (como projeto ou como perda). As-
social de segmentos específicos. Apresentam caráter tran- sim, o diagnóstico da erradicação da pobreza desvincula
sitório e sua continuidade dependente, essencialmente, das o sistema de proteção social, dos direitos sociais, passan-
opções de governo, atendendo a uma demanda difusa e do a assistência a constituir um atributo individual para
não estruturada no aparelho do Estado.13 aqueles que “moralmente” têm direito ou potencialidade
Essa ambivalência entre inclusão e exclusão, bem como para se desenvolverem.
suas contradições, funda um dos principais dilemas da Conforme apresentado em Ivo (2001), esta reconver-
governabilidade no Brasil, país com uma das mais eleva- são da questão social para o âmbito exclusivo da assis-
das taxas de desigualdades: manter a ordem jurídica e tência subordinada à tese da eficiência dos gastos sociais
política baseada no princípio da igualdade básica entre tende a despolitizar e tecnificar a questão social, trans-
cidadãos, num contexto de ampliação dos direitos políti- formando direitos sociais (universais) em programas e
cos, abalados pelas inúmeras desregulações dos direitos medidas técnicas ou estratégicas de distinguir, contar e
sociais, redefinição de compromissos pactuados e apro- atribuir benefícios a um conjunto de indivíduos selecio-
fundamento das desigualdades no acesso à distribuição de nados pelos inúmeros programas sociais focalizados, sem
riqueza e aos bens públicos. se constituir em direitos. Ademais, além de alterar a pers-

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pectiva política constitucional, dilui o princípio do direi- A focalização como princípio ordenador das políticas
to à racionalidade técnica do gasto público. sociais é um conceito que se situa numa instância princi-
Opera-se, portanto, uma ruptura estrutural entre os pla- palmente instrumental e operativa, relacionada à seletivi-
nos social, econômico e político, através de um processo dade do gasto social. Focalizar é estabelecer mecanismos
de transição que prioriza o tratamento da questão social e critérios idôneos para delimitar “quem” tem direito aos
com base em um novo modelo de assistência16 focaliza- serviços básicos que se outorgam como subsídio público
do. A transição desse processo compreende: (Candia, 1998). Assim, a focalização constitui um com-
- um processo de desconstrução (a retórica da crise) sim- ponente básico e permanente para a formulação de uma
bólica e ideológica dos sistemas de seguridade anterio- política social “racional” (estratégica), no marco de eco-
res, por meio da ruptura entre trabalho e proteção e da nomias abertas e competitivas. São políticas dirigidas às
centralidade do equacionamento da questão social restri- áreas consideradas “brandas”, ou seja, que não compro-
to à eficiência do gasto público, pela qual opera-se a trans- metam nenhum aspecto da reforma estrutural. Portanto,
figuração dos direitos de proteção por ações de assistên- estão deslocadas da institucionalidade da proteção social.
cia e a política redistributiva em gestão técnica do social. A sua operacionalização enfatiza: a diferenciação de aces-
- a centralidade do tratamento da inserção dos indivíduos so; o subsídio à demanda; a focalização da população; a
ao mercado, através de transferências monetárias, esti- descentralização das ações; e a governança, ou seja, a
mulando o consumo e a demanda de serviços de assistên- mobilização de atores sociais e políticos numa ação con-
cia, rompendo a dimensão de solidariedades coletivas mais certada segundo objetivos e metas dos programas.
amplas; Este modelo se orienta por três paradigmas:
- o primeiro, de natureza institucional-estratégica, diz
- uma organização e mobilização da sociedade civil e dos
respeito a uma racionalidade institucional e à eficácia da
próprios pobres na construção e controle dos programas,
operacionalização da política social pela via da focalização
por meio de parcerias entre Estado e sociedade civil.
do atendimento, o que envolve o desenvolvimento cons-
Esta transição tem levado alguns analistas a entende- tante de novas “tecnologias” de medição da “população-
rem a situação que se aprofunda na segunda metade dos alvo” dos programas, a partir de diferentes centros de
anos 90 como mais uma “década perdida”, mais proble- operação do tecido social em situação de vulnerabilidade
mática que o contexto da década de 80, que, apesar da (Candia, 1998; Fleury, 1998; Lautier, 1999);
crise inflacionária, expressou ganhos políticos no aper-
- o segundo integra-se aos objetivos próprios a uma ra-
feiçoamento democrático e na construção de um projeto
cionalidade econômica, sob hegemonia do mercado, e
de transformação social e política para o país. O quadro
implica a transferência monetária direta aos beneficiá-
recessivo do presente repercutiu sobre as possibilidades
rios, estimulando as condições de sua integração ao mer-
de enfrentamento da pobreza e da indigência, que atual-
cado, como consumidores e/ou pequenos empreendedo-
mente apresenta novos contornos17 e cuja avaliação não
res, 18 e à falta de políticas estruturais mais amplas de
pode deixar de considerar a qualidade do crescimento, as
crescimento;
responsabilidades reguladoras do Estado e o compromis-
so ético do desenvolvimento inclusivo e sustentado. - o terceiro, de caráter societal, envolve a definição de
responsabilidades partilhadas entre Estado e sociedade
Uma Circularidade sem Saída: a Natureza das civil (parcerias) e a descentralização das ações no âmbito
Políticas Sociais Focalizadas local, supondo os pobres como sujeitos políticos ativos.
Do ponto de vista de uma percepção positiva dessas
A reorientação da política social centrada no combate políticas, alguns agentes reconhecem a contribuição que
à pobreza aparece, então, neste contexto, com o objetivo alguns desses programas podem exercer no aumento do
de reduzir os efeitos adversos dos ajustes estruturais e da impacto sobre os beneficiados; outros reconhecem uma
reestruturação produtiva, institucionalizando-se à margem relação mais favorável do custo-benefício desses progra-
do campo da proteção social. Esta mudança se faz através mas; outros, ainda, observam como a identificação do pro-
do paradigma da focalização da política social no blema e a adequação de soluções diferenciais, ajustadas
encaminhamento da questão do combate à pobreza e à ao perfil dos beneficiados, são mais eficazes. Outros re-
desigualdade. conhecem a importância desses programas apenas em cir-

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cunstâncias emergenciais e recessivas, ou, ainda, quando Estado e cidadãos. A responsabilidade dos indivíduos não
acompanhados por políticas de vocação universal. Final- criaria necessariamente direitos construídos e pactuados
mente, alguns identificam um impacto dos programas na na esfera da vida coletiva, o que contribui para a ruptura
melhoria do consumo da população beneficiada, num qua- dos vínculos contratuais de um Estado democrático, ge-
dro de profunda miséria e indigência, aliviando as condi- rando tensões de governabilidade e resistências cívicas.19
ções de reprodução mínima dessas populações.
O ACIRRAMENTO DO CONFLITO
A Reconversão dos Sentidos da Solidariedade DISTRIBUTIVO NA BASE
Institucional e o Aprofundamento das Fraturas Sociais
A Segmentação da Assistência: a “Exclusão”
O caráter fragmentado da incorporação de diferentes da Exclusão
segmentos das classes trabalhadoras ao sistema (baseado
na atribuição do direito social, restrito à camada assalaria- Esses mecanismos operativos da nova política social
da) gerou uma conversão perversa de benefícios-obriga- geram segmentação e seletividade crescentes entre os ge-
ções dos segurados em supostos privilégios. Hoje, o que nericamente considerados “pobres”, “os mais pobres en-
é dever de proteção do Estado (para todos) reconverte tre os pobres”, sedimentando um universo de “excluídos”
supostamente os segurados (de forma perversa) em indi- da proteção social.20
víduos-perversos-imorais ao sistema, atribuindo-lhes en- Falar em “direito à assistência”, de acordo com o ins-
tão a responsabilidade pela miséria dos outros. Ou seja, trumento legal de 1993, no Brasil, apenas institucionaliza
por meio de uma operação de reconversão simbólico-ideo- o princípio restritivo. Lautier (1999), analisando as con-
lógica, deslocam-se a insuficiência e a fragilidade do Es- seqüências dessa intervenção, mostra que a Lei de Assis-
tado social, ou a opção restrita da ação do Estado em
tência mistura princípios objetivos (ativos preexistentes
matéria de assistência, para a responsabilidade individual
na forma de terra, competência, residência, etc.) com da-
dos que a ele acederam. Segmentos da classe média (as-
dos subjetivos (espírito de empresariamento, desejo de ul-
salariados dos setores público e privado) são ao mes-
trapassar as condições de pobreza) para operar a seleção
mo tempo vítimas e bandidos de um sistema inconcluso.
dos que são “dignos” de serem ajudados. Entretanto, ex-
A base desse raciocínio são os cálculos matemáticos da
cluem-se dos argumentos algumas “necessidades” eviden-
contribuição/benefício da perspectiva individual e não o
tes dos pobres, de caráter distributivo, como a Reforma
papel e a responsabilidade social do Estado. Com isso,
Agrária e questões vinculadas à institucionalidade do sis-
dilui-se a compreensão dos determinantes estruturais da
tema de previdência, seguro e emprego. Através de um
crise e tomam-se os efeitos por causas (Ivo, 2001), optan-
eqüacionamento equivocado que identifica trabalhadores
do por um acirramento do conflito distributivo na base –
protegidos como “privilegiados”, pelo acesso legítimo aos
muito bem levantado por Theodoro e Delgado (2003) –,
bens e serviços públicos não disponíveis ao conjunto da
que contrapõe pobres desprotegidos aos menos pobres.
sociedade, cria-se um falso problema que induz a um con-
No âmbito do tratamento da questão “social”, retira-se
flito no âmbito das relações das diversas categorias de tra-
o caráter universalista dos direitos, passando-se gradati-
balhadores entre si e dessas com o Estado.21
vamente a uma individualização da ação pública segundo
Além dos efeitos que esta segmentação e distorção de
atributos pessoais (dos mais aptos). A formação de um
sentidos geram no âmbito da construção de uma nação,
sistema dual, de proteção e assistência, cria irracio-
do ponto de vista das relações entre os cidadãos e o Esta-
nalidades na coordenação do sistema. A definição da as-
do de direitos cria-se, enfim, uma nova estratificação na
sistência aos mais necessitados tem caráter restritivo, vol-
relação desses com o Estado democrático, tendo em vista
tado para aqueles que não possuem qualquer chance de
as possibilidades “da inclusão”, com a seguinte configu-
integrar os circuitos produtivos nem a redistribuição con-
ração:
tratuais, de acordo com a Lei Brasileira de Assistência,
- os cidadãos protegidos (“privilegiados”);
de dezembro de 1993, conforme analisa Lautier (1999).
No plano da cidadania, esta individualização das res- - os protegidos da assistência garantida pela LOAS;
ponsabilidades gera uma inversão no binômio clássico - os atendidos por programas estruturantes, como a Re-
entre direitos e obrigações que organiza a relação entre forma Agrária, mas dependentes de opções orçamentárias;

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A RECONVERSÃO DO SOCIAL: DILEMAS DA REDISTRIBUIÇÃO NO ...

- os parcial e temporariamente assistidos dos programas discutíveis de uma perspectiva longitudinal e inter-
focalizados; geracional, quando se observa a taxa de crescimento ele-
- uma ampla faixa de “excluídos da assistência, da prote- vada da demanda da assistência nos segmentos etários
ção e do trabalho” que, de fato, forma a grande maioria posteriores (de 18 a 24 e de 25 a 59 anos). Estes, no mes-
da “população ajudável” — os no man’s land, conforme mo período, apresentaram taxas de crescimento da deman-
designação de Lautier (1999) e os desafiliados de Castel da superiores ao total do Brasil, respectivamente, de 20%
(1995): os assalariados precários que perderam os direi- e 17%, indicando claramente que, numa perspectiva tem-
tos ao seguro; os não-assalariados (autônomos de servi- poral e intergeracional, ou seja, ao se analisar a pobreza
ços e comércio instável), incapazes de provar potencial como processo subordinado à dinâmica do mercado de
produtivo; os qualificados inativos que não são dignos de trabalho, as ações focalizadas têm impacto restrito e ape-
integrar os focos assistenciais, pois não são muito pobres nas adiam e acumulam o problema.
ou não são muito velhos; e os eventualmente suspeitos de Ademais, a relação entre as metas do atendimento
simulação, os “falsos pobres”. focalizado sobre a demanda potencial são muito restritas,
Em relação ao primeiro grupo observa-se uma tendên- além de contingenciadas pela garantia de verbas. As metas
cia declinante. De 1980 até hoje, o emprego formal e pro- previstas para 2004, em relação à cobertura da Bolsa
tegido teve sua participação reduzida de modo continua- Família, por exemplo, corresponderá apenas a 9% da popu-
do, configurando um quadro crescente de precarização da lação potencialmente demandante de assistência de 2001.
força de trabalho, com a informalidade atingindo, em ju-
nho de 2003, cerca de 60% da PEA ocupada. A taxa de A TECNIFICAÇÃO DA POLÍTICA
desemprego, que em termos gerais do país correspondia a
7,15%, registrou, em 2002, taxas bem mais elevadas nas Avaliação da Racionalidade Instrumental da Gestão
principais áreas metropolitanas, 22 passando de 12,9% da Pobreza como Escolha Pública Eficiente
(março de 2002) para 13% (junho de 2003), segundo da-
dos da Pesquisa Mensal de Emprego (Ipea, 2003:80). Esta tese coloca o dilema da questão social no âmbito
Este quadro de precarização do mercado de trabalho, da “escolha pública eficiente”. Segundo essa perspectiva,
associado às ações mitigadoras e compensatórias dos pro- os recursos governamentais destinados à política social
gramas focalizados de transferência de renda,23 tem efei- são suficientes, restando apenas serem bem focalizados
tos crescentes sobre a demanda de assistência e acesso aos ou administrados.26 Theodoro e Delgado (2003) esclare-
direitos sociais porque não apenas reduz a massa salarial cem que essa idéia acaba por “embutir uma solução ‘ba-
e, portanto, a capacidade de contribuir, mas também am- rata’ para a questão social sobretudo pela redução do es-
plia a população potencialmente demandante de serviços forço fiscal associado”.
de assistência social, além de outros aspectos. Observando-se o conjunto das políticas sociais de ca-
A estimativa dessa população compreendia, em 2001, ráter focalizado aplicadas mais recentemente no Brasil,
um total de 164,8 milhões de pessoas, expressando um constata-se, por exemplo, uma redução das metas de mui-
crescimento de 12% em relação a 1996, quando represen- tos desses programas,27 em 2002. Isto é revelador da fle-
tava 147, 5 milhões de pessoas distribuídas diferentemente xibilidade e vulnerabilidade das políticas públicas, con-
segundo faixas etárias e regiões do país.24 dicionadas pelas incertezas e vulnerabilidade da política
O único segmento populacional que registrou declínio econômica nesses países.28
da demanda por assistência, entre 1996 e 2001, com uma O desempenho e a cobertura dos programas focaliza-
redução de 2%, foi aquele das pessoas carentes com 7 a dos são constantemente redefinidos, levando muitas ve-
14 anos, num quadro geral de crescimento da demanda da zes à redução da cobertura e gerando uma focalização da
ordem de 12%. A retração da demanda nesta faixa etária focalização, à medida que se restringem as áreas de apli-
resulta, provavelmente, da ação dos programas sociais di- cação do programa aos beneficiários mais pobres entre os
recionados para juventude, especialmente o Bolsa Escola previamente identificados, criando discriminações
e o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – Peti, involuntárias no atendimento em populações igualmente
Brasil Jovem.25 ou até mais carentes29 e acirrando o conflito redistributivo
Por um lado, se este declínio pode reforçar a justifica- na base da pobreza entre os que acedem e os que não ace-
tiva da focalização, por outro, seus efeitos inclusivos são dem aos benefícios dos programas.

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(2) 2004

Ademais, essa vulnerabilidade está condicionada pela Na base da monetarização da assistência localiza-se
base do financiamento desses programas. Analisando-se um diagnóstico da crise social como crise de consumo,
o comportamento do Fundo Nacional de Assistência So- resultante de políticas em favor da rentabilidade do
cial – FNAS, entre 2002 e 2003, observa-se um decrés- capital. Desta perspectiva, a defesa dos programas de
cimo real de 6,3%, ou seja, de R$ 5,2 bilhões para R$ transferência de renda tem como pressuposto de base a
4,9 bilhões, apesar do acréscimo dos valores nominais idéia implícita da incapacidade de suprir as necessidades
de R$ 200 milhões em 2003. Mesmo observando uma mínimas da inserção via mercado de trabalho. Assim, se
expansão de 6,1% da Cofins no FNAS, em 2003, esse o tratamento das políticas voltadas para transferência de
aumento não foi suficiente para compensar a queda de renda, por um lado, possibilita algum acesso ao consumo
12,2% verificada nos recursos do Fundo de Combate à e, portanto, alguma condição de reprodução e inserção
Pobreza – FCP, com efeito sobre o financiamento dos social, por outro, reconverte do ponto de vista político
programas focalizados. O Programa Brasil Jovem, por “o assistido” em cidadãos-consumidores tutelados dos
exemplo, teve a sua dotação reduzida em 58,3% (Ipea, sistemas de assistência social, elevando o ato da compra
2003). a ato cívico.
O problema é que as ações focalizadas constituem-se
em programas e em acompanhamentos e avaliações, e não As Políticas de Proximidade no
em direitos ou em políticas, sendo constantemente afetadas Enfrentamento da Pobreza
segundo critérios de contingenciamento financeiro ou
demandas políticas. Ou seja, o suposto remédio da crise Na base desse paradigma das políticas de proximidade
na implantação da “política estratégica focalizada” encontra-se um diagnóstico da nova questão social que
encontra seus limites no próprio “remédio”: a crise do identifica o processo de vulnerabilidade social, entendi-
Estado determina a adoção de medidas flexíveis e da pela conjugação entre precarização do trabalho e fra-
estratégicas na intervenção social, em razão da vulnera- gilidade dos suportes relacionais (Castel, 1995) e a idéia
bilidade dos mercados. Essa própria vulnerabilidade, no de que as redes de solidariedades primárias têm se consti-
entanto, é responsável pelos cortes e pela falta de tuído em capital social importante nas condições de in-
continuidade de muitas das ações desses programas sociais, serção social de camadas populares. Agrega-se a este diag-
freqüentemente submetidos à contingência e incerteza da nóstico a noção de uma maior eficácia da geração de
política econômica. projetos de desenvolvimento auto-sustentáveis locais e na
O dilema, portanto, não diz respeito à alocação eficaz operacionalização das políticas sociais no âmbito das po-
do recurso existente, mas sim à recriação de um novo con- líticas sociais descentralizadas e sob o controle da socie-
trato social que tenha como princípio ordenador o Estado dade civil local.
social de inclusão prescrito na Constituição de 1988. E A questão central dessas teses30 é que a implementa-
esta questão não é técnica, mas sobretudo de política de ção local da política supõe, por um lado, atores organiza-
desenvolvimento do Estado nacional. dos e, por outro, municípios com capacidade institucio-
nal de gerenciamento nem sempre compatível com a
A Tese da Transferência de Renda como Base de realidade preexistente da rede de municípios brasileiros.31
Acesso à Cidadania: o Consumidor Tutelado Efetivamente, dados sobre a aplicação da Lei de Respon-
sabilidade Fiscal no âmbito dos municípios brasileiros
Sem desconhecer o efeito do alívio que esses progra- revelam que 3.425 deles se encontram com balanços atra-
mas de transferência de renda possam ter sobre as famí- sados (Folha de S.Paulo, 15/09/2002). Isto revela, de al-
lias vulnerabilizadas e desempregadas, a monetarização guma forma, a fragilidade institucional dos municípios no
da assistência tem implicações políticas importantes. gerenciamento e operacionalização dos programas sociais.
Como mencionado no início desse artigo, não se pode Do ponto de vista da organização dos atores locais, ob-
desvincular o desenho das políticas sociais da conforma- serva-se que a eficácia desses projetos está condicionada
ção do mercado de trabalho, principal mecanismo de in- à existência de atores organizados e que esta organização
clusão social, de sociabilidade e da política, uma vez que não pode estar limitada à esfera das sociedades locais,
a condição de acesso ao trabalho livre define a condição devido aos riscos de serem capturadas pelas estruturas de
da cidadania. poder local.32

64
A RECONVERSÃO DO SOCIAL: DILEMAS DA REDISTRIBUIÇÃO NO ...

Quanto às variáveis políticas, cabe perguntar: como devam ser consideradas com reservas, dada a configura-
garantir eficácia das ações de parceria entre público e pri- ção histórica e excludente dos mercados de trabalho no
vado (um dos paradigmas da governança) sob o controle Brasil.
de sociedades civis locais tradicionalmente condiciona-
das por um Estado patrimonial, que organiza os interes- CONCLUSÃO
ses de muitas elites locais pela privatização de estruturas
públicas e institucionais? Os dados apresentados revelam processos de exclusão
Ademais, a focalização não pode encaminhar a solu- de uma parcela populacional pertencente ao segmento
ção de problemas estruturais, geradores da vulnerabilida- daqueles que estão fora das políticas de proteção, pois não
de e da exclusão, próprios da dinâmica econômica nacio- têm empregos e nem renda para a cotização privada e es-
nal, e sobre os quais as instâncias locais não têm poder tão fora do mercado, mecanismo central das políticas de
para solucioná-los ou alterá-los. Na pesquisa de 1997, integração social.
verificou-se que os ganhos de eficiência de muitos proje- Entretanto, as políticas compensatórias, ao restringi-
tos sociais foram anulados pelas obrigatoriedades do pa- rem sua ação segundo objetivos focalizados, deixam de
gamento da dívida pública com a União (Ivo, 1997; 2000). lado um conjunto de indivíduos efetivamente necessita-
Ou seja, existem problemas estruturais que estão longe de dos, provocando segmentação e seletividade entre os as-
serem resolvidos exclusivamente através das ações com- sistidos do Estado, que se localizam entre os que estão
pensatórias ou das solidariedades primárias e que reque-
fora da proteção e os que estão fora da assistência focali-
rem a construção de políticas mais amplas de geração de
zada, num contexto político democrático que reconhece
emprego e renda.33
igualdade de oportunidades e tratamento a todos os cida-
As saídas econômicas via o desenvolvimento de uma
dãos.
Economia Solidária, por sua vez, estão longe de repre-
Cria-se, assim, uma “circularidade do social”, um fe-
sentar a realidade da economia informal no Brasil. Análi-
chamento sobre si mesmo, incapaz de mediar a articula-
se desenvolvida por Borges e Franco (1999), sobre as
ção entre os diferentes níveis da estrutura social: o eco-
características do setor informal na Região Metropolita-
nômico, o social e o político, ou seja, na construção dos
na de Salvador - RMS,34 revela que a economia informal,
vínculos estruturais.
longe de se constituir em matriz societária capaz de estru-
Num contexto de economias abertas e competitivas,
turar alternativas sólidas de uma economia de base soli-
postulam-se políticas flexíveis ajustadas às variações do
dária, assentada no trabalho familiar e com alta capaci-
dade de integração ao mercado, representa um grau mercado e aos ajustes dos gastos públicos, como critério
radicalizado de individualização do trabalho, com carac- de eficácia. No âmbito da solução encontrada, de flexibi-
terísticas de baixíssima socialização, tais como: predomi- lidade e focalização dos programas, os seus limites situam-
nância de um único trabalhador (o trabalhador autônomo se na sua própria causa, ou seja, na instabilidade dos mer-
e por conta-própria); baixíssimo nível de constituição ju- cados e da economia que comprometem a continuidade
rídica dessas “microempresas”; funcionamento na via dos programas. Isso leva a considerar a reprodução de
pública, revelando não se tratar de um setor organicamente círculos lógicos sem saídas, cujo fechamento restringe
integrado à cadeia produtiva, mas significando, sobretu- efetivamente o êxito desses programas, reduzindo o con-
do, uma estratégia de sobrevivência de trabalhadores flito redistributivo para uma luta entre os pobres e os “qua-
precarizados, num contexto de dificuldades de incorpo- se” pobres.
ração e de destruição de postos de trabalho da economia A dissociação entre políticas sociais aplicáveis a todos
formal. As autoras ainda atestam o baixo nível de cober- e políticas sociais focalizadas dificulta os objetivos cu-
tura dos direitos sociais do segmento dos trabalhadores mulativos de combater a pobreza, construir cidadãos e
que integram a economia informal. eliminar a exclusão (Fleury, 1998), restringindo a cidada-
Estes argumentos levam a concluir que as teses rela- nia a uma dimensão parcial do atendimento e do consu-
tivas ao empreendedorismo e ao enfrentamento da po- mo, assegurados pelo estatuto de uma cidadania cívica e
breza via mercado, estimulados através de estratégias de segmentando a condição de inserção e a relação desigual
capacitação ou empowerment desses sujeitos historica- dos cidadãos (aqueles atendidos e protegidos e os
mente submetidos às condições estruturais de pobreza, desassistidos) com o Estado.

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(2) 2004

NOTAS 17. A referência aqui é aos novos pobres, com impossibilidade de in-
clusão e perda das perspectivas coletivizadas no encaminhamento da
1. As dimensões da relação entre pobreza e democracia, nas socieda- política da questão da inserção, num quadro de desregulação da prote-
des contemporâneas, e a análise dos dispositivos que orientam as al- ção social.
ternativas contemporâneas de recriação das soluções para o encami- 18. Nesta linha muitas teses têm sido desenvolvidas em termos da eco-
nhamento da pobreza foram objeto de análise, em livro escrito em 1999, nomia solidária e da transformação dos cidadãos em “consumidores”.
editado pelo CLACSO em 2001 (Ivo, 2001). Grande parte das teses
aqui apresentadas foi extraída deste livro e atualizada em dois artigos, 19. Ver sobre governabilidade Ivo (2001: cap. II). Esta ruptura leva à
mais recentes (Ivo, 2003a e 2003b). construção, por parte de muitos atores, de que os pobres foram relega-
dos à sua própria sorte.
2. Não falo da crise fiscal diante de demandas insatisfeitas, mas de
uma governabilidade democrática e civilizatória, no sentido de o go- 20. Os no man’s land, segundo Lautier (1999).
verno atuar para construir a solidariedade nacional. 21. Esses privilegiados seriam os trabalhadores protegidos pela legis-
3. Aproprio-me da expressão usada por Esping-Andersen (1990). lação trabalhista e com acesso ao sistema previdenciário, os trabalha-
dores rurais com direito à previdência rural e, especialmente, os fun-
4. Ver a propósito o texto de Jamur (1999), que desenvolve uma aná-
cionários públicos dotados de regime especial (Theodoro; Delgado,
lise da construção dos processos institucionais de solidariedade.
2003).
5. Não discutirei aqui as questões polêmicas que envolvem os objeti-
22. Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Por-
vos, os recortes e os alcances da reforma da Previdência, que fogem
to Alegre.
aos objetivos mais restritos desse artigo. Essa análise deve ser feita a
partir da perspectiva mais amplas da capacidade redistributiva da ren- 23. A população atendida pelos programas de transferência de renda
da, os verdadeiros beneficiários dessa reforma e o que ela contempla correspondeu a um total de 3,7 milhões de famílias na Bolsa Escola;
em termos de aperfeiçoamentos da justiça social e dos direitos sociais, 810 mil crianças no Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – Peti,
econômicos e cívicos. 326 mil famílias com Bolsa Alimentação; 349 mil no Cartão Alimenta-
6. Especialmente os regimes especiais do funcionalismo público. ção e 6,9 milhões do Auxílio-Gás em 2003. Tentando racionalizar o pro-
cesso de transferência de renda para a população carente, o governo lan-
7. Esta reconversão, por exemplo, transforma o tratamento de comba- çou em fins de 2003 o Bolsa Família (associado aos programas de Bolsa
te ao desemprego em ações de assistência e não em projetos de inser- Escola, Auxílio-Gás, Cartão Alimentação e Vale-Refeição), que contem-
ção incluídos num projeto de desenvolvimento sustentado. plou 3,6 milhões de famílias, com um benefício médio de R$ 73,00/
8. No contexto internacional, desde o final da década de 80, observa- família. Para 2004, o governo prevê ampliar sua ação na área metropo-
se a construção de uma agenda de combate à pobreza nos dispositivos litana e chegar a uma cobertura de 4,5 milhões de famílias, o que equi-
normativos dos documentos do Banco Mundial. No Brasil, este pro- vale a atender cerca de 15 milhões de pessoas carentes.
cesso ganha centralidade na agenda política do segundo governo de 24. Conforme dados extraídos do Ipea (2003:80-81).
Fernando Henrique Cardoso.
25. Não há evidência direta dessa relação no âmbito desse artigo, mas
9. Esta afirmação não significa reforçar saídas românticas fora das a suposição se baseia na prioridade que os programas focalizados ti-
condições reais e efetivas das contas públicas, mas trata-se de subor- veram para esta faixa de idade e também a sua maior cobertura, espe-
dinar os gastos às escolhas de prioridades que contemplem a respon- cialmente quanto às metas do Peti (ainda que sua população total seja
sabilidade pública de inclusão social e desenvolvimento. bem mais reduzida).
10. Conforme sistematização de Theodoro e Delgado (2003). 26. A partir dessa avaliação aponta-se um conjunto de recomendações
11. Previdência básica; SUS – hospitalização e consultas; benefícios e importantes mas não suficientes, como o combate ao clientelismo, maior
prestações continuadas da LOAS e seguro-desemprego (Ipea, 2003). direcionamento dos recursos às atividades-fins, diminuindo os custos
das transações, etc. (ou seja, um conjunto de recomendações normati-
12. Programa de Reforma Agrária; projetos estruturantes, como “Fome
vas do “bom governo”, desde fins da década de 80 recomendadas pe-
Zero”; Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental – Fundef;
las agências multilaterais), maior integração e racionalidade institu-
Merenda Escolar (Ipea, 2003).
cional do próprio sistema federal e medidas de eficácia à descentrali-
13. Inclui-se aí toda uma variedade de programas focalizados na linha zação, etc.
de pobreza, que resolvam demandas legítimas não atendidas nos dois
núcleos anteriores. 27. Segundo dados publicados pela Folha de S.Paulo, 26/05/2002, a
Bolsa-Alimentação projetava um número de beneficiários da ordem
14. Conforme análise de artigo de Theodoro e Delgado (2003). de 1.623.000 enquanto só atendeu, efetivamente, 208.000 beneficia-
15. A perspectiva da organização política dos pobres origina-se de uma dos; a Bolsa-Escola previa atender um total de 10.195.000 crianças e
perspectiva de desenvolvimento social e humano construída por atendeu 8.526.002; a implantação do Vale-Gás projetava um total de
Amartya Sem, Prêmio Nobel de Economia de 1998, que supere a vi- 9.300.000 beneficiários em 2002 e, até maio daquele ano, havia bene-
são do desenvolvimento ao simples crescimento econômico. Esta pers- ficiado pouco mais da metade da meta prevista, ou seja, 4.996.634
pectiva induziu transformar os pobres de um “sujeito passivo”, bene- famílias. Dos programas sociais focalizados, aquele que havia cum-
ficiário de planos sociais para “sujeito ativo”, protagonista da mudan- prido as metas previstas em 2002 foi o Peti, que projetou um total de
ça social. Esta abordagem, que envolve o desenvolvimento de capaci- 813.000 beneficiários, tendo beneficiado 801.714 famílias (maio de
dades estratégicas e orientou os relatórios do PNUD, tem sido 2002), apesar de também ter sofrido reduções de gastos e readequação
reapropriada com diferentes sentidos segundo diversos atores políti- das metas desse Programa.
cos e sociais. Uma análise sobre esses diferentes sentidos foi apresen- 28. No que pese reconhecer os limites desses programas, especialmen-
tado em Ivo (2001: cap.III; 2003a; 2003b). te em relação à universalidade da cobertura dos benefícios e à necessi-
16. Não se desconhecem aqui alguns efeitos positivos dos programas dade e dependência de políticas de crescimento macro-estruturais de
de transferência de renda sobre os beneficiários, sobretudo sua eficá- emprego e renda, não se pode deixar de reconhecer que a atuação do
cia no estímulo ao consumo. Entretanto, acredita-se que os esforços Programa tenha melhorado as condições de reprodução das famílias
distributivos mais efetivos situam-se na centralidade dos programas beneficiadas, ainda que não as tenha retirado da condição de pobreza.
universais e inclusivos no âmbito da saúde, da previdência, do traba- Prova disto é o aumento da população carente nas faixas etárias da
lho, da reforma agrária, etc. população adulta, anteriormente mostrado.

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A RECONVERSÃO DO SOCIAL: DILEMAS DA REDISTRIBUIÇÃO NO ...

29. Recentemente, um chefe de família ouvido sobre a prioridade ini- IBGE. Economia informal urbana: Brasil e grandes regiões. Rio de
cial do Programa Fome Zero do governo federal, que vive em situação Janeiro, v.3, 1997.
de indigência, mas morador de uma região que apresenta indicadores IPEA. Anexo Estatístico. Políticas sociais: acompanhamento e análi-
de desenvolvimento humano mais elevados, mostrava sua indignação se. Brasília, DF, ago. 2003.
quanto ao fato (injusto) de não ter sido contemplado pelos critérios
iniciais de implantação do Programa. IVO, A.B.L. Políticas sociais de combate à pobreza nos anos 1990:
novas teses, novos paradigmas. In: SEI - Superintendência de Es-
30. O termo está no plural porque inclui-se, nesta linha, um conjunto tudos Econômicos e Sociais da Bahia. Pobreza e desigualdades
de princípios normativos ou mesmo institucionais de desenvolvimen- sociais. Salvador, 2003a. (Série Estudos e Pesquisas, 63).
to local: local governance; capital social; desenvolvimento auto-sus-
tentado; etc. ________ . As novas políticas sociais de combate à pobreza na Amé-
rica Latina: dilemas e paradoxos. In: SEMINÁRIO INTERNACIO-
31. Lavinas (1998), em paper apresentado à Anpocs sobre a capacida- NAL O PAPEL DO ESTADO NA LUTA CONTRA A POBRE-
de dos municípios brasileiros de absorver essa política, demonstra que ZA. Recife: CLACSO/CROP/FJN, mar. 2003b.
apenas 5% deles têm condições de implementar plenamente políticas
________ . Democracia, desigualdades e capital social. In:
de renda mínima, dada sua pobreza econômica e conseqüente insufi-
SCHIMIDT, B. (Org.). Integração, identidade e capital social.
ciência da arrecadação e do aparato institucional local.
Brasília: Editora da UnB, 2003c (prelo).
32. Numa pesquisa sobre os limites da governança, desenvolvida em ________ . Metamorfoses da questão democrática: governabilidade
1997, observou-se que os resultados desses programas estavam condi- e pobreza. Buenos Aires: Clacso/Asdi, 2001.
cionados pela força dos atores sociais envolvidos e pela extensão da
rede de solidariedade de sua sustentação, resultando em segmentação, ________ et al. O poder da cidade. Limites da governança urbana.
tecnificação dos processos democráticos de participação cidadã e na Salvador-Bahia: EDUFBA, p.201-242, 2000.
idéia de arenas públicas nominais e vazias no contexto da formação ________ . Uma racionalidade constrangida: a experiência da gover-
de “consensos mínimos e relativos”, incapazes de construir solidarie- nança urbana em Salvador. Caderno CRH. Salvador: EDUFBA/
dades mais amplas (Ivo, 1997; 2000). CRH, n.26/27, p.107-145, jan./dez. 1997.
33. Ver o texto de Ivo (2003c). JAMUR, M. Solidariedade(s). O social em questão. Rio de Janeiro, v.
34. Com base na pesquisa realizada pelo IBGE (1997). 3, n.4, p.25-60, jul./dez. 1999.
LAUTIER, B. Les politiques sociales en Amérique Latine. Propositions
de méthode pour analyser un éclatement en cours. Cahiers des
Amériques Latines. Paris, n.30, p.19-44, 1999.
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1999. Providence. Paris: Le Seuil, 1995.
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1998. THEODORO, M.; DELGADO, G. Política social: universalização ou
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DONZELOT, J. L’invention du social. Paris: Fayard, 1994.
ESPING-ANDERSEN, G. The three worlds of welfare capitalism.
Cambridge University Press, 1990.
ANETE BRITO LEAL IVO: Socióloga, Pesquisadora do CRH, Professora
EWALD, F. L’État providence. Paris: Grasset, 1986. participante do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
FLEURY, S. Politica social, exclusion y equidad en America Latina UFBA; Pesquisadora associada do Credal-CNRS-Fr. Foi Professora
en los 90. Nueva Sociedad. Caracas, n.156, p.72-94, jul./ago. 1998. Visitante da Universidade de Paris III na Cátedra Simon Bolivar (2000).

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