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2005
RECENTRALIZANDO A FEDERAÇÃO?1
RESUMO
Este trabalho discute os movimentos contraditórios no sentido da descentralização e da centralização
examinando dois conjuntos de políticas: as que trataram de regular as relações fiscais entre os governos
nacional e subnacionais e aquelas que redefiniram as responsabilidades no tocante à provisão de alguns
serviços sociais. Sustenta-se aqui que, do ponto de vista das relações intergovernamentais, a federação
brasileira é um arranjo complexo em que convivem tendências centralizadoras e descentralizadoras, impul-
sionadas por diferentes forças, com motivações diversas, produzindo resultados variados.
PALAVRAS-CHAVE: centralização; descentralização; democratização; relações fiscais; serviços sociais.
Recebido em 10 de dezembro de 2004 Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 24, p. 29-40, jun. 2005
Aprovado em 18 de maio de 2005
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seus traços centrais durante os dois ciclos de capacidades fiscais e de decisão sobre políticas
autoritarismo, sob Vargas (1930-1945) e sob os para autoridades subnacionais; b) transferência
militares (1964-1984). Em conseqüência, as polí- para outras esferas de governo de responsabilida-
ticas sociais estiveram associadas ao crescimen- des pela implementação e gestão de políticas e
to da atividade da administração federal. Elas fo- programas definidos no nível federal e c) deslo-
ram marcadas por concepções autoritárias mate- camento de atribuições do governo nacional para
rializadas na predominância das agências do Exe- os setores privado e não-governamental3.
cutivo federal, dos procedimentos fechados de
Contudo, cada uma dessas formas tem con-
tomada de decisões e da gestão feita por burocra-
seqüências diferentes para as relações
cias centrais.
intergovernamentais. A segunda modalidade é per-
Dessa forma, no Brasil pós-autoritário, a feitamente compatível com elevada concentração
redefinição de competências e atribuições entre de decisões no nível federal4. De fato, no que diz
esferas de governo disse respeito sobretudo – ainda respeito às políticas sociais, ela ocorre mesmo em
que não exclusivamente – às políticas e progra- federações bastante centralizadas. Já a primeira e
mas sociais. É aqui, portanto, que os dilemas en- a terceira modalidades supõem uma redefinição
volvidos no processo podem ser observados com mais ampla do raio de ação do governo nacional,
mais clareza. no primeiro caso, e uma redução da atividade de
todas as esferas de governo, no terceiro.
De outra parte, o federalismo fiscal constitui a
espinha dorsal das relações intergovernamentais. De outra parte, não há porque imaginar que a
A forma como os recursos fiscais e parafiscais descentralização suponha inexoravelmente redu-
são gerados e distribuídos entre os diferentes ní- ção da importância do governo nacional, que pode
veis de governo definem, em boa medida, as fei- expandir-se para novos campos de ação ou assu-
ções da federação. mir novos papéis normativos, reguladores ou
redistributivos coetâneos com o aumento das res-
Na primeira parte do trabalho, procederemos
ponsabilidades dos governos subnacionais, das
à revisão de algumas questões analíticas relacio-
organizações privados ou não-governamentais5.
nadas à centralização/descentralização em siste-
mas federais. Na segunda, analisamos as tendên- Centralização e descentralização têm diferen-
cias à descentralização e recentralização nas rela- tes significados e diferentes conseqüências em
ções fiscais entre o governo nacional e as unida- estados unitários ou em sistemas federativos. A
des subnacionais. Na terceira, examinamos as relação entre federalismo e descentralização, em
características do processo de redefinição das termos conceituais e empíricos, está longe de ser
responsabilidades governamentais nas áreas de simples e incontroversa.
educação, saúde e assistência social. Finalmente,
William Riker (1975) descreve a formação de
apresentamos algumas conclusões.
sistemas federativos como um processo de cen-
II. FEDERALISMO E DESCENTRALIZAÇÃO tralização política. Atores racionais – indíviduos
e/ou unidades políticas – aliam-se e entram em
Entenderemos por descentralização a “trans-
acordo para formar um governo central, que ab-
ferência de autoridade e responsabilidade, no que
sorverá algumas das prerrogativas políticas pre-
diz respeito a funções públicas, do governo cen-
viamente pertencentes às unidades constitutivas
tral para governos locais ou intermediários, para
organizações governamentais semi-independentes
e/ou para o setor privado” (WORLD BANK,
2002)2. 3 Beer (1988, p. XV) denomina essas diversas modalida-
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da federação6. Riker acrescenta que a única clas- contraste com o estado unitário. Nesse sentido,
sificação possível das federações é aquela que toma sua definição de federação é mais precisa do que
em consideração o grau em que “o locus real de aquela proposta por Riker. Entretanto, ela parece
tomada de decisão muda dos governos constitu- mais adequada para nomear o tipo de arranjo fe-
intes para o governo nacional” (idem, p. 132). derativo conhecido como federalismo dual. Esse
federalismo dual correspem que ao modelo norte-
Por seu turno, Elazar (1987, p. 35-36) consi-
americano original – simultaneamente descritivo
dera que as federações são estruturas não-centra-
e prescritivo – em que “os poderes dos governos
lizadas, característica que as diferencia de estru-
geral e estadual, mesmo quando existem no inte-
turas estatais descentralizadas7. Na mesma dire-
rior dos mesmos limites territoriais, constituem
ção, Vincent Ostrom (1994, p. 225) sugere que o
soberanias distintas e separadas, que agem em
policentrismo é – e deve ser – a forma de organi-
separado e com independência, nas esferas que
zação adequada a uma federação democrática8.
lhes são próprias” (ACIR, 1981, p. 3)9.
Elazar e Ostrom buscaram captar o traço es-
As federações contemporâneas, em boa medi-
pecífico da organização política federativa em
da, não cabem mais no modelo de federalismo
dual. Elas são melhor descritas por um dos dois
6 Stepan (1999) criticou essa definição argumentando que
modelos da tipologia baseada na natureza das re-
lações intergovernamentais: o federalismo centra-
pode haver duas lógicas diferentes na organização das fede-
rações: juntar e manter junto. A centralização política ocor- lizado e o federalismo cooperativo. Ambos tratam
re apenas no primeiro caso, considerado paradigmático por de capturar as transformações do arranjo dual,
Riker. em decorrência da expansão do escopo dos go-
7 “Não-centralização não é o mesmo que descentralização, vernos, em geral, e do governo federal, em parti-
apesar de este último ter sido erroneamente usado no lugar cular. O primeiro é o federalismo centralizado,
do primeiro para descrever os sistemas federais. quando estados e governos locais quase se trans-
Descentralização implica a existência de uma autoridade formam em agentes administrativos de um go-
central, um governo central que pode descentralizar ou verno nacional com grande envolvimento nos as-
recentralizar de acordo com sua vontade [...]. Em um siste- suntos subnacionais, predomínio nos processos
ma político não-centralizado, o poder é difuso e não pode
ser legitimamente centralizado ou concentrado sem romper
de decisão e no controle dos recursos financei-
a estrutura e o espírito da Constituição. Os sistemas fede- ros10. O segundo é o federalismo cooperativo,
rais clássicos [...] são sistemas não-centralizados. Todos caracterizado por formas de ação conjunta entre
têm um governo geral, ou nacional, um governo que tem esferas de governo, em que as unidades
poder em muitas áreas e com muitos propósitos, mas não subnacionais mantêm significativa autonomia
um governo central que controla todas as linhas de comuni- decisória e capacidade de autofinanciamento11.
cação e de decisão política. Em todos os sistemas não-
centralizados, estados, cantões ou províncias não são cria-
Esse é um arranjo complexo que pode combinar
turas do governo federal. Com este último, derivam sua as duas primeiras acepções de descentralização
autoridade diretamente do povo. Estruturalmente, eles são
substancialmente imunes à interferência federal. Funcio-
nalmente, eles compartilham muitas atividades com o go- 9 É um modelo adequado para descrever o arranjo federa-
verno federal, sem perder seu papel de formulação política
tivo característico da I República (1891-1930), no Brasil.
e seus poderes de decisão. Para usar um outro tipo de
imagem, a descentralização implica hierarquia – uma pirâ- 10 Nesse caso, é difícil definir os limites empíricos e
mide de governos em que o poder flui do topo para a base conceituais que distinguem o federalismo de estados unitá-
– ou do centro para a periferia [...]. A não-centralização é rios descentralizados. Como observou Carl Friederich
melhor conceituada como uma matriz de governos com (1968, p. 223), “a expansão da cooperação efetiva entre
poder distribuído de tal forma que a ordem dos governos agências federais e estaduais obscurece as diferenças entre
não é fixa” (ELAZAR, 1987, p. 35-36). um arranjo federativo com fortes controles centrais e um
8 “[...] Um sistema político policêntrico seria composto governo descentralizado, como o da Inglaterra, de tal forma
que há poucos anos era possível prever o dia em que o
por: (1) muitas unidades autônomas formalmente indepen-
caráter do estado mudaria ou transformar-se-ia em uma
dentes umas das outras, (2) que escolhem atuar de maneira
espécie de unidade administrativa responsável pela
a tomar em consideração umas às outras, (3) por meio de
implementação de planos e políticas federais”.
processos de cooperação, competição, conflito e resolução
de conflito. A resolução de conflito não precisa depender 11 Riker (1975, p. 104) observa que “[...] função após
de mecanismos centrais [...]. Mecanismos não-centraliza- função, não, há de fato, divisão de autoridades entre os
dos de resolução de conflito também existem”. governos constituintes e o centro, mas, antes, mistura”.
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discutidas anteriormente, ou seja, pode ser mais Embora a força de governadores e prefeitos
ou menos centralizado. tenha crescido de modo significativo, durante a
transição do autoritarismo para a democracia, a
Finalmente, é importante levar em considera-
existência de normas constitucionais favorecen-
ção que, apesar de um certo grau de centralização
do a descentralização não pode ser explicada ape-
caracterizar as formas existentes de federação,
nas por sua influência direta. Os governadores
todas possuem mecanismos que impedem sua
foram ativos durante os trabalhos da Constituin-
transformação em estado unitário. Em outras pa-
te, assim como o foram os prefeitos, suas associ-
lavras, sob regime democrático, as federações
ações e seus assessores. De outra parte, cerca de
possuem um desenho institucional que multiplica
metade dos constituintes ocuparam previamente
pontos de veto e assegura algum grau de não-
postos nos governos e/ou assembléias
centralização (TSEBELIS, 1995; TSEBELIS &
subnacionais13. Mas o apoio à descentralização
MONEY, 1997; GIBSON, 2004).
era mais amplo e incluía as forças políticas mais
Em resumo, nem a definição de Elazar nem a importantes, tivessem ou não relação com inte-
de Riker parecem completamente satisfatórias para resses subnacionais. Democracia com
pensar o federalismo contemporâneo. Há mais do descentralização era uma idéia-força e como tal
que não-centralização nas federações existentes tinha gravitação própria.
na atualidade. Por outro lado, o critério de graus
Em conseqüência das novas normas constitu-
de centralização para classificá-las parece simpli-
cionais, o poder de taxação dos estados foi ampli-
ficar demais as possibilidades institucionais que
ado para incluir petróleo, produtos minerais, trans-
resultam da cooperação entre esferas de governo.
portes e telecomunicações. Os recursos fiscais
No caso da federação brasileira remodelada foram redistribuídos em prejuízo do governo fe-
pela Constituição de 1988, o modelo cooperativo deral, dado o crescimento das receitas comparti-
adotado combinou a manutenção de áreas própri- lhadas com estados e municípios. As receitas
as de decisão autônoma das instâncias transferidas dos estados para os municípios tam-
subnacionais; descentralização no sentido forte de bém se expandiram. Em 1985, o Fundo de Parti-
transferência de autonomia decisória e de recur- cipação dos Estados (FPE) e o Fundo de Partici-
sos para os governos subnacionais e a transfe- pação dos Municípios (FPM) chegavam respecti-
rência para outras esferas de governo de respon- vamente a 14% e 16% das receitas federais pro-
sabilidades pela implementação e gestão de políti- venientes de impostos. Em 1993, eles atingiram
cas e programas definidos no nível federal. Em 21,5% e 22,5%. Ademais, 10% do Imposto sobre
conseqüência, a avaliação dos rumos do federa- Produtos Industrializados (IPI) foi destinado a um
lismo brasileiro, em termos da polaridade fundo de compensação para os estados que dei-
descentralização-recentralização, deve levar em xaram de taxar suas exportações de manufatura-
conta a complexidade desse arranjo cooperativo e dos e 3% do Imposto de Renda e do IPI foram
as formas distintas que assumem as relações go- alocados em um fundo de desenvolvimento regi-
vernamentais em diferentes áreas de políticas pú- onal, que deveria apoiar projetos no Norte, Nor-
blicas. deste e Centro-Oeste do país.
III. FEDERALISMO FISCAL NO BRASIL DE- Assim, depois de 1988, a descentralização de
MOCRÁTICO12 recursos fiscais beneficiou estados e sobretudo
municípios. A Tabela 1 e os gráficos 1 e 2 mos-
A Constituição de 1988 traduziu o anseio por
tram essa mudança de distintas maneiras. Ade-
descentralização compartilhado pelas forças de-
mais, como mostraram Afonso e Lobo (1996), a
mocráticas predominantes. A federação foi
descentralização implicou também redistribuição
redesenhada em benefício dos estados e, sobre-
entre regiões, em benefício dos estados e municí-
tudo, dos municípios, transformados em entes
pios mais pobres.
federativos (SELCHER, 1989; LEME, 1994; SOU-
ZA, 1997; MELLO, 2005).
13 De acordo com Rodrigues (1987, p. 49-62), 21% dos
constituintes haviam sido vereadores e 37%, deputados es-
12 Esta seção utiliza em larga medida informações e análi- taduais, enquanto 15% tinham experiência prévia em admi-
ses de Afonso e Melo (2000) e Rezende e Afonso (2002). nistrações municipais e 36%, em administrações estaduais.
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Contudo, a Constituição de 1988, que ampliou um regime fiscal dual (REZENDE & AFONSO,
a porção das receitas fiscais da União comparti- 2002, p. 11), que compatibilizou a descentralização
lhadas com os governos subnacionais, também fiscal com a manutenção do gasto público federal
permitiu a expansão dos recursos do governo fe- em níveis elevados. Na verdade, ao longo dos anos
deral por meio da contribuições sociais, cujo ob- 1990, as contribuições sociais foram o mecanis-
jetivo deveria ser o financiamento das políticas mo de compensação do governo federal pela per-
sociais. Nos anos 1990, os recursos não partilha- da de receitas resultante da descentralização, como
dos, à disposição da União, foram aumentados se observa no Gráfico 3. As contribuições soci-
com a criação da Contribuição Provisória sobre ais, que em 1980 significavam 4,9% das receitas
Movimentações Financeiras (CPMF), posterior- do governo federal, atingiram 20% em 2000.
mente tornada permanente. Estabeleceu-se, assim,
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coordenar a ação fiscal dos governos em um sis- subnacionais a prerrogativa de decidir o conteúdo
tema federativo. A experiência internacional mos- e o formato das políticas. Em outros, estados e
tra que há alternativas, como, por exemplo, dar municípios tornaram-se responsáveis pela execu-
incentivos federais para que os estados definam ção e gestão de políticas e programas definidos
suas próprias normas de responsabilidade fiscal em nível federal. Finalmente, governos transferi-
(WEBB, 2003). ram a organismos não-estatais a provisão de ser-
viços sociais.
A segunda forma de limitação da autonomia de
gasto dos governos subnacionais resultou de re- Para as forças que empurraram a democrati-
gras voltadas a garantir a regularidade, a estabili- zação a descentralização significava essencialmen-
dade ou o uso adequado dos recursos destinados te o fortalecimento dos governos municipais. Es-
a programas sociais. tes, na medida do possível, deveriam arcar com a
responsabilidade da provisão dos serviços soci-
No período de inflação alta e grande instabili-
ais. Nesse sentido, a descentralização significou
dade econômica, a preocupação com a eficiência
quase sempre municipalização. No que respeita à
das políticas sociais favoreceu a opção pela
atuação social, a reforma da federação deixou os
vinculação de receitas e de transferências
estados sem atribuições claras.
intergovernamentais para gastos sociais específi-
cos. Mesmo antes da Constituição de 1988, o No terreno das políticas sociais, a Constitui-
Congresso Nacional aprovou a vinculação para ção apontava para uma modalidade de federalis-
gastos com educação na razão de 18% e 25%, mo cooperativo, caracterizado pela existência de
respectivamente, das receitas tributárias líquidas funções compartilhadas entre as diferentes esfe-
do governo federal e de estados e municípios. Em ras de governo e pelo “fim de padrões de autori-
2000, o Congresso Nacional aprovou a vinculação dade e responsabilidade claramente delimitados”
para a saúde de 12% da receita tributária líquida (ACIR, 1981, p. 4).
do governo federal.
A nova Carta estabeleceu competências co-
De outra parte, o governo federal transfere a muns para União, estados e municípios nas áreas
estados e, especialmente, municípios recursos vin- de saúde, assistência social, educação, cultura,
culados a programas sociais específicos, com fre- habitação e saneamento, meio ambiente, proteção
qüência sob a forma de fundos regidos por nor- do patrimônio histórico, combate à pobreza e in-
mas rigorosas de utilização e dispêndio. Essas tegração social dos setores desfavorecidos e edu-
transferências sustentam a trama complexa de cação para o trânsito. Legislação complementar
relações intergovernamentais, por meio das quais deveria definir as formas de cooperação entre os
se dá a provisão de serviços sociais básicos como três níveis de governo (BRASIL, 1988, art. 23).
saúde, educação, assistência social21. É o que
Atribuíram-se competências legislativas con-
veremos a seguir.
correntes22 aos governos federal e estaduais em
IV. AS POLÍTICAS SOCIAIS NA NOVA FEDE- uma ampla gama de áreas: proteção ao meio am-
RAÇÃO biente e aos recursos naturais; conservação do
patrimônio cultural, artístico e histórico; educa-
A redefinição de competências e atribuições na
ção, cultural e esportes; juizado de pequenas cau-
esfera social, tratadas neste trabalho, foi parte de
sas; saúde e previdência social; assistência judici-
um processo de transformação de um modelo de
ária e defensoria pública; proteção à infância, à
federação centralizada para um tipo de federalis-
adolescência e aos portadores de deficiências e
mo cooperativo. Nesse sentido, implicou um pro-
organização da polícia civil (idem, art. 24).
cesso de descentralização diverso daqueles que
podem ocorrer em estados unitários. Ele signifi- Além de criar competências concorrentes e
cou a transformação das funções exercidas pelo comuns, e de estabelecer um extenso rol de direi-
governo federal e implicou, conforme o caso, pro- tos sociais, a Constituição de 1988 contém um
cessos de realocação de competências e atribui-
ções dos três tipos discutidos anteriormente. Em
22 A União tem competência para estabelecer normas ge-
alguns casos, transferiu-se a governos
rais que podem ser complementadas por legislação estadu-
al. Na ausência de legislação federal, os Estados exercem
21 Sobre o tema, ver Arretche (2003). competência legislativa plena.
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capítulo sobre a ordem social em que se define o incentivos adequados para convencer os municí-
perfil da seguridade social, educação, cultura, es- pios a assumir novas responsabilidades e da exis-
portes e ciência e tecnologia23 . A atenção à saúde tência de experiência administrativa prévia nos go-
recebeu tratamento minucioso, com o definição vernos locais.
das linhas gerais de um sistema único24 e descen-
Ainda que a tendência geral fosse na direção
tralizado – o Sistema Único de Saúde (SUS) –
do aumento das responsabilidades dos governos
assentado em uma clara concepção de coopera-
locais, nos marcos do federalismo cooperativo a
ção entre as três esferas de governo.
descentralização significou coisas diferentes e
Durante os anos 1990, extensa produção ocorreu em ritmos diferentes, de acordo com o
legislativa – além de normas no âmbito ministerial desenho específico de cada política, com a distri-
– foi dando conteúdo aos princípios constitucio- buição prévia de competências e de recursos en-
nais. Longe de ser uma política coerente, a tre as três esferas de governo25.
descentralização foi um processo longo e espas-
O Quadro 1 sintetiza as informações sobre a
módico. Seu êxito dependeu da disposição de mi-
descentralização da educação fundamental, aten-
nistérios e agências federais de abrir mão de ca-
ção básica à saúde e assistência social. Ele revela
pacidade decisória e recursos; de sua capacidade
padrões muito diferentes de relacionamento entre
de negociação e de inovação institucional criando
as esferas de governo em cada caso.
23 Foi estabelecida uma concepção ampla de seguridade to caberia aos estados supervisionar os sistemas munici-
social incluindo a previdência social, a atenção a saúde e a pais, apoiar a descentralização e prover serviços, de forma
assistência social e contando com um orçamento próprio supletiva, nos municípios que ainda não possuíssem capa-
financiado por recursos orçamentários do governo federal, cidade de fazê-lo. Ao governo federal caberiam funções de
estados e municípios; pela contribuição previdenciária paga regulação e financiamento do sistema.
por empresas e empregados; e recursos provenientes de 25 As principais inovações institucionais, que propicia-
loterias.
ram incentivos adequados à transferência de responsabili-
24 Anteriormente, os serviços de saúde eram prestados dades, foram estabelecidas pela Lei Orgânica da Saúde
pelos governos federal, estaduais e municipais, por meio (1990), e especialmente a Norma Operacional Básica n.1
de redes próprias que constituíam três sistemas indepen- (NOB 01/1996) e a Norma Operacional de Assistência à
dentes. O SUS instaurou um sistema único, com responsa- Saúde n.1 (NOAS 01/2001); o Fundo para o Desenvolvi-
bilidades definidas para cada nível de governo. A atenção mento do Ensino Fundamental (FUNDEF), estabelecido
básica e formas mais complexas de atendimento deveriam por emenda constitucional e lei federal em 1997, e a Lei
progressivamente tornar-se atribuições municipais; enquan- Orgânica da Previdência Social (1993). Ver Arretche (2000)
e Almeida (2002).
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Na área da saúde, o governo federal está no da era Cardoso no Bolsa-Família, gerido pelo Mi-
centro do arranjo cooperativo: detém o controle nistério do Desenvolvimento Social, mostra a op-
do processo decisório, definindo o formato da ção do governo Lula pela permanência de um
cooperação e a destinação dos recursos transferi- modelo centralizado na área das políticas de trans-
dos. Os municípios são executores e gestores de ferência direta de renda.
uma política definida no plano federal.
Em resumo, enquanto arranjos com diferen-
Na educação básica, o Fundo de Manutenção tes graus de descentralização e a cooperação
e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de intergovernamental predominam nas áreas tradi-
Valorização do Magistério (Fundef) é um instru- cionais de política social, as novas iniciativas
mento poderoso de influência do governo federal dirigidas aos segmentos mergulhados na pobreza
sobre a municipalização do ensino fundamental, extrema re-introduziram a centralização da deci-
mas estados e municípios, ao longo do tempo, são, recursos e implementação na esfera federal.
tiveram políticas próprias, alicerçados no contro-
V. CONCLUSÕES
le sobre recursos de seus próprios orçamentos.
O Brasil é hoje uma federação mais descentra-
Na assistência social, os governos federal e
lizada do que fôra sob o autoritarismo burocráti-
estaduais são quase exclusivamente repassadores
co. A democratização trouxe consigo um movi-
de recursos, fundo a fundo, para os municípios
mento de idéias e interesses a favor da
que possuem significativa autonomia decisória e
descentralização. Partidos e lideranças políticas que
uma teia de relações com organismos não-gover-
se opuseram ao governo dos militares considera-
namentais prestadores de serviços26.
vam a descentralização uma dimensão importante
Por outro lado, desde os anos 1990, uma nova do sistema democrático. De outra parte, interes-
geração de políticas sociais – programas focaliza- ses subnacionais revelaram-se forças poderosas
dos de transferência direta de renda – ganharam durante a transição do autoritarismo para a demo-
importância. De início, eles surgiram como inici- cracia. Governadores de partidos oposicionistas
ativa de governos locais, em algumas cidades foram importantes para minar o poder dos milita-
médias e capitais de estados27. Todavia, depois res depois de 1982. Prefeitos e políticos locais
de 1998, o governo Cardoso criou seis diferentes também foram importantes na construção dos ali-
programas focalizados de transferência de renda, cerces dos partidos que construíram a democra-
todos centralizados no governo federal, ainda que cia.
sob responsabilidade de diferentes ministérios. A
Todavia, a idéia de que é no centro do sistema
criação desses programas significou uma ruptura
político que se pode discernir com mais nitidez as
com o modelo prévio de federalismo cooperativo,
soluções mais adequadas dos problemas da agen-
predominante na área social, e uma volta clara à
da pública é uma representação arraigada das eli-
formas centralizadas de prestação de benefícios
tes políticas, burocráticas e profissionais no país.
sociais. A justificativa da centralização, de acordo
Ela não é típica de um partido em particular, mas
com autoridades federais, era a busca de formas
pode ser encontrada, em maior ou menor grau,
eficientes de enfrentar a pobreza extrema, evitan-
em todos os que ocuparam o governo federal por
do a instrumentalização clientelista dos programas
mais favoráveis à descentralização que fossem
pelas elites locais.
seus discursos e suas plataformas políticas.
A experiência fracassada do Programa Fome
Assim, tendências descentralizadoras e impul-
Zero e a unificação dos seis maiores programas
sos centralizadores materializaram-se em institui-
ções que fizeram da federação um arranjo coope-
26 O governo Lula tem ensaiado mudanças na área, anun- rativo complexo, no qual governo federal, esta-
ciando sua disposição de fazer um “SUS para a Assistência dos e municípios articularam-se de maneiras di-
Social”, o que poderia implicar maior ativismo do governo versas nas diferentes áreas de ação governamen-
federal e menor autonomia para os municípios.
tal.
27 O primeiro programa de renda mínima foi estabelecido
em Campinas, sob administração do PSDB. Entretanto, a O governo federal foi importante na criação
experiência foi disseminada por administrações petistas e dos mecanismos que possibilitaram o redesenho
transformou-se em uma das principais bandeiras do PT. das relações intergovernamentais para o provimen-
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to de serviços sociais. Ele foi também crucial para processo de recentralização. A tensão entre im-
alcançar e garantir a estabilidade da moeda e al- pulsos centralizadores e descentralizantes é
gum equilíbrio fiscal, ainda que frágil. As esco- constitutiva e sempre presente nas relações
lhas de políticas fiscais e sociais, em alguns ca- intergovernamentais na federação brasileira e pro-
sos, circunscreveram a autonomia de estados e duz diferentes resultados de acordo com a ques-
municípios. Mas elas não são suficientes para tão de política pública em pauta.
avalizar o diagnóstico de que está em curso um
Maria Hermínia Tavares de Almeida (mhbtdalm@usp.br) é Pós-doutora em Ciência Política pela University
of California e Professora Titular do Departamento de Ciência Política e do Instituto de Relações Inter-
nacionais da Universidade de São Paulo (USP).
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RECENTRALIZANDO A FEDERAÇÃO?
OUTRAS FONTES
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ABSTRACTS
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RÉSUMÉS
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