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Mate Guillaume
A POLíTICA DO PATRIMÓNIO

Com prefácio inédito do autor

A POLÍTICA DO PATRIMÓNIO Tradução


[cana Caspurro
Autor: Marc Guillaume
Revisão e apresentação
Tradução: [oana Caspurro Vítor Oliveira Jorge
Revisão e apresentação: Vítor Oliveira Jorge (Professor Catedrático da Faculdade de Letras
da Universidade do Porto - Dcp. de Ciências e Técnicas do Património)

Direcção gráfica: Loja das Ideias


Capa: Rui Nascimento

© Editions Galilée, 1980


© CAMPO DAS LETRAS - Editores, S. A., 2003
Rua D. Manuel Il, 33 - 5.° 4050-345 Porto
Telef.: 226080 870 Fax: 226080880
Ernaíl. campo.letrastê'rnail.telepac.pt
Site. www.campo-lerras.pt

Impressão: Tipografia do Carvalhido - Porto


1.' edição: Setembro de 2003
Depósito legal: 198423/03
ISBN: 972-610-704-0
Código de barras: 9789726107040

Colecção: Campo das Ciências - 11 v~~\


o A D o A M 6 N o

:':

Breve apresentação do autor e do seu livro.


Perda da transcendência
e "fuga em frente "na ClVI
"li zaçao
- mo derna

o tempo retardado da criação torna-se de facto o verdadeiro luxo.


M. Guillaume
1.:Empire des réseaux (1999, p. 75)

Inconsolável civilização [a nossa) que recusa a alma mas acumula os


restos e os signos, que exclui, mas ao mesmo tempo quer tornar tudo
visível.

'Conservação, consumo, comunicação, produção do saber decorrem


do mesmo esquema fundamental; todas estas acumulações deixam um
resto, essencial, cujo efeito induz a necessidade de novos "progresso". E
este ciclo indefinidamente repetido constitui o nosso último acesso a uma
forma empobrecida e única do simbólico.

(...) todo o social está hoje ínfiltrado de museologia (...)

Todo o paradoxo da política do património vem daí: ela esforça-se por


pôr em cena uma continuidade com o passado, quando a conservação é
precisamente o local de uma ruptura radical com ele, ruptura que está,
pois, condenada a dissimular perpetuamente.
M. Guillaume
A Po!itica do Património
(1980, pp, 93, 98, 136, 124-125)

~,
1. Apresentação

A
obra que o leitor vai ler é uma das mais perturbantes, densas e
profundas (pelas suas implicações filosóficas gerais) já escritas
sobre o tema do património. Entre nós, não tenho dúvida em
afirmar que é um autêntico marco que pode inaugurar uma nova era de
debate e de maturação desta temática em Portugal.
Porque discutir o tópico "imperialista" do "património", como o autor
mostra, é envolver a sociedade toda, implicando os regimes actuais de con-
sumo, de comunicação, de produção do saber (ciência) - todos envolvidos
numa mesma lógic acumulação -, numa abrangência talvez inusitada
para alguns, que julg ão ainda que a questão se pode compreender no
quadro límítado lugares-comuns com que é normalmente abordada.
Essa visão"limitada tem sido responsável, em última análise, pelas
hesitações e incoerências da administração, bem como pelas debilidades
da reflexão universitária, neste campo - na medida em que, sem perce- .
ber clara e nitidamente o que está em causa e as suas implicações, não
se pode estudar, valorizar nem gerir o que quer que seja, de uma forma
que ultrapasse o mero casuísmo mais ou menos bem sucedido. Com isto
não quero assumir um tom "iluminado", professoral ou profético, nem
insinuar que as ideias aqui expostas sejam obrigatórias ou consensuais
- nada podia ser mais longínquo do pensamento de M. Guillaume e
certamente do meu próprio, que rejeitamos quaisquer dogmatismos. O
que digo é que, de ora em diante, não se poderá discutir "o património",
em Portugal, sem passar por esta obra - não se poderá ignorá-la.
Por detrás de um livro, e de uma obra, está, evidentemente, uma pessoa.
Se bem que o conceito de "autor" seja muito complexo e discutivel- como
Foucault mostrou - o que é certo é que lemos com mais facilidade, com
outra empatia, aqueles que conhecemos bem (se possível pessoalmente, e
até ainda melhor se a eles nos ligar uma amizade feita de todas as cumpli-
cidades que essa relação implica). Por isso não considero excessivo expor
a seguir, brevemente, o percurso pessoal do autor, não tanto, obviamente,

9
como um convencional "curriculum vitae", mas com o objectivo de, através 1973, tendo exercido as funções de seu -Více-Presldente entre 1973 e
dele, o leitor melhor se aperceber de quem escreveu o que vai ler - e o que 1975. Foi consultor cíentífíco na Direcção-Geral do Ensino Superior e
pode esperar deste grande (embora relativamente curto, mas condensado) da Investigação (Ministério da Educação Nacional) entre 1981 e 1984, e
livro, destinado, creio, e como escrevi acima, a ser uma peça indispensável delegado geral da Associação Descartes de 1990 a 1994.
para todos quantos pretendem pensar estes temas entre nós. Participou em numerosas iniciativas colectivas. Por exemplo, co-dírígíu
Professor universitário (Universidade de Paris IX - Dauphine), edi- até 1997 a IRIS-TS (Instituto de Pesquisa e de Informação Socioeconómica
tor (Édítíons Descartes & Cie), economista, pensador multifacetado na - Trabalho e Sociedade) na Universidade París-Dauphíne (laboratório
área das ciências sociais e humanas, figura discreta mas de uma extrema associado do CNRS - URA 1236 - desde 1986). É membro da Comis-
acutilância de raciocínio e elegância de trato, Marc Guillaume é um dos são Redactorial de revistas como Quintescience("Quintaciência "), Réseaux
autores franceses mais injustamente desconhecidos em Portugal, onde ("Redes"), Cahiers de médiologie ("Cadernos de Mediologia"). Participou
esta é, que eu saiba, a sua primeira obra a ser traduzida. no grupo de trabalho "Redes 2010" da Comissão Geral do Planeamento
Tópico por excelência de todo o tipo de lugares-comuns e de banali- (1996-1997). É membro da Comissão Científica do Centro Nacional da
dades, o património e a "política" que ele constitui são aqui, como disse, Cinematografia.
pensados de uma maneira diferente, extremamente rica e estimulante, No âmbito do ensino, dedicou-se sobretudo à econometria, econo-
ínter-relacíonada com tudo o que está à sua volta, e que nada perdeu da mia matemática, introdução aos métodos da pesquisa operacional. No
sua frescura por terem decorrido vinte e três anos desde a publicação campo da investigação, elaborou relatórios sobre a evolução dos sistemas
da edição francesa (1980). Por isso, acentuo de novo, este livro não é técnicos e as inovações e artigos sobre o que designou a sociedade e, em
mais um livro: é também, para esta área de actividade e de cultura,um particular, a cidade, "comutativa". O que há de mais fascinante é o seu
acontecimento .. rigor técnico conjugado com uma vontade de compreender o presente e
Marc.Gutllaume nasceu em Março de 1940 na região de Aveyron. de ligar a "economia", em que se formou, ao conjunto de sociedade. tal
Estudou na Escola Politécnica (1960) e na Escola Nacional de Estatística como ela evolui no mundo contemporâneo, numa permanente articulação
e de Administração Económica (1963), tendo-se finalmente doutorado de temas e pontos de vista aparentemente desgarrados, como acontece
em Economia em Paris em 1966; e obtido em 1968 o título de "Agregado" com todos os verdadeiros inovadores.
das Faculdades de Direito e Ciências Económicas. Os livros que publicou, a sua temática, e os autores a que se associou
Tem desempenhado numerosas funções fora da academia propria- para elaborar alguns deles são talvez o seu melhor "retrato", para uma
mente dita: membro do conselho científico da France Telecom, consultor caracterização rápida. Enumeremo-los: Les Marchés d' occasion et la dépre.
científico (e mesmo director científico, entre 1996 e 1998) do grupo de ciation du capital (Mercados de Produtos de Segunda Mão e a Depreciação
trabalho sobre a "Sociedade de Informação" (parceria entre a Comissão do Capital; PUF, 1966); Modéles économiques (Modelos Económicos, PUF,
Geral do Planeamento francesa e a DG 13 de Bruxelas), membro do 1971); L' Anti-Éconorrtique (O Antí-Económico, com J. Attali, PUF, 1973
Conselho de Administração da ANVIE (Associação Nacional para a - do qual existe uma tradução brasileira); Le Capital et son double (O Capital
Valorização Interdisciplinar das Ciências Sociais junto das Empresas). e o seu Duplo; PUF, 1975); É!oge du désordre (Elogio da Desordem; Galli-
Anteriormente, fora administrador do INSEE (Instituto Nacional de Es- mard, ·1978); A Política do Património (La Politique du patrimoine; Galilée,
tatística e de Estudos Económícos) (1965), colaborando com a Comissão 1980); L' Impératif culturel (O Imperativo Cultural; relatou Documentation
Geral do Planeamento (construção de modelos económicos no quadro Françaíse, 1982); r.: État des sdences sociales en France (O Estado das Ciên-
do VI e VII Planos Nacionais). Também foi Maitre de Conférencesna cias Sociais em França; coordenação; La Découverte, 1986);· L' Ordinaire
Universidade de Nancy (1969), bem como na Escola Politécnica (1969- de la télématique (O Comum da Telemática, IRIS, 1988); La Contagion des
1985), e na Universidade de Paris IX,Dauphine, onde é professor desde passions (O Contágio das Paixões; Plon, 1989); Figures de l'altérité (Figuras

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da Alteridade, com Jean Baudríllard, Descartes & Cie, 1994)j contribuição textos que emanam de um tessitura problemática, de uma rede conceptual
para a obra colectiva Prospectíve de la société françaíse (2015) (Prospectiva longamente pensada, tessitura essa que nos exige uma leitura atenta.
da Sociedade Francesa (2015); Comissão Geral do Planeamento, Odile Facilitar essa tarefa por parte do utilizador desta obra, sem me que-
jacob, 1996); Marx enjeu (Marx em Jogo; com [acques Derrida e J.-P.Vin- rer substituir à sua análise cuidadosa - que cada um fará, decerto, com
cent, Descartes & Cíe, 1997); Aménagement et réductíon du temps de travail proveito - é o objectivo desta breve apresentação, muito esquemática,
- ARTI (Ordenamento e Redução do Tempo de Trabalho - ARTTj com procurando porém acentuar certos travejamentos do texto, o que julgo
F. Labeyrie, IRIS, 1997)j Oú vont les autoroutes de l'ínformatíon? (Para Onde ' serem algumas (apenas) das ideias-força do mesmo. Apesar disso, será de
Vão as Auto-Estradas da Informaçãoi, coordenação, (Descartes & Cie, facto inevitável integrar também algumas reflexões minhas, num diálogo a
1998)j r.: EmlJire des réseaux (O Império das Redes; Descartes & Cie, 1999); }ilIi,
que não pude escapar, ao ler e reler uma obra que tanto nos interpela I
e, finalmente, Vírus Vert (Vírus Verde; Descartes & Cie, 2002).
Todo este percurso mostra bem os vários planos de actividade em que O livro, por detrás do qual se perfila, repito, toda uma rede de conceitos
Marc Guillaume tem actuado, as "redes" em que tem circulado, sem que extremamente bem urdida (que na segunda parte desta introdução, pegan-
isso revele dispersão, superficialidade ou diletantismo - mas antes, bem ao ' doem palavras do próprio autor, procuro de algum modo esquernatizar),
contrário, e como é tão característico da nossa "modernidade tardia", uma divide-se em duas grandes partes: "Os objectos da memória" (primeiros seis
experiência inquieta que pensa e se pensa, procurando permanentemente capítulos) e "O museu de Babel" (últimos cinco capítulos). Na primeira
estruturar linhas de força, dando assim sentido adaptativo, e crítico, à parte procura-se, por assim dizer, esboçar uma "teoria geral da conservação"
própria acção, unindo profundidade e capacidade de antecipação, for- na sociedade moderna e contemporânea, em articulação com uma espécie
mação longa e sentido de oportunidade. Isto é, a absoluta necessidade de "psicanálise colectiva" susceptível de fornecer "chaves" para explicar
de intervenção .no campo social (como cidadão, como especialista que aquela obsessão patrimonial (nas múltiplas formas e até "disfarces" que tal
procura' ser ouvido pelas instãncias de decisão) para se poder ser, hoje, obsessão reveste). Na segunda parte, ensaia-se uma interpretação histórico-
mais do que nunca, um cientista social (um investigador e pedagogo). -sociológica desta característica tão tlpica das nossas sociedades.
Um dos elementos estruturantes do livro é a distinção, fundamental,
A edição portuguesa deste livro surge enriquecida com um prefácio entre a nossa sociedade moderna e contemporânea (primeiro que tudo,
original do autor, basicamente composto por um extracto de um artigo ocidental) e as "outras". A nossa, homogénea e virada para fora, é domi-
seu nos Cahiers de Médiologie (2003). Prefácio em que alguns dos temas nada por uma vontade heterclógíca, isto é, um desejo de conhecimento
da obra são retomados, mas integrados numa problemática muito ampla total do outro.
e amadurecidamente exposta, no sentido de se conseguir ganhar uma Quanto às "sociedades-outras", elas aparecem, ao longo do livro,
ainda maior distância (melhor perspectiva) em relação a esse envolvente caracterizadas através de diversas expressões -. sociedades da ordem ou
"enigma do património" de que M. Guillaume fala no seu livro. estrutura simbólica, pautadas pelo principio da transcendência, hetero-
, Se a obra já era fascinante, este prefácio não o é menos - como aliás géneas, holistas, etc. ,_
todos os outros livros do autor, na medida em que são a emanação de e o
Na verdade, para nos pensarmos pensarmos Outro (condição indis-
um pensamento densamente estruturado. A formação de economista, pensável para estabelecermos a nossa identidade), precisamos de caracterizar
aliada à preparação filosófica (e, em geral, no âmbito das ciências sociais esse mesmo Outro: Mas, aqui, gostaria desde já de deixar, de certo modo,
e humanas) que permanentemente revela, e a uma grande atenção aos uma pergunta a M. Guillaume: uma certa uniformização, globalização, a
"sinais de mudança" que caracterizam todo o autor inserido no seu tempo, que a modernidade nos conduziu, não nos levará a, por reflexo especular,
tornam o que escreve M. Guillaume em algo de extremamente pertinente ter a tendência de criar um Outro de nós, que representasse de algum modo
para se poder pensar estes ptoblemas no contexto contemporâneo. São a inversão elo que somos, facilitando este processo de autodefinição?

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Parece evidente que esse Outro (as nossas próprias sociedades tradi- que a constituam em suporte estável do quotidiano e sua gestão, criando
cionais, as comunidades de outras culturas espalhadas pelo mundo), é uma nova cultura comum.
ele mesmo mítíco, existindo, pelo contrário, muitos" outros". A questão PQt isso - acrescento - muitos já se aperceberam de que a chamada
é se poderemos associar todos esses outros a uma característica.genérica "cultura" é hoje o cimento das sociedades, na medida em que é a raiz de
fundamental, sem correr o perigo de certo reducionisrno (que, a verificar- p\ilítícas transversais que permitiriam o travejamento da acção do Estado,
-se, nos poderia dificultar a compreensão do presente e do futuro). Neste sem o qual tudo são medidas desgarradas, sectorais, e finalmente inócuas.
sentido, talvez as pesquisas de Philippe Descola sejam pertinentes - no Este é que é o grande desafio da "mcdernídade tardia" em que estamos.
sentido de tentar estabelecer uma espécie de classificação das principais Essa centralidade da "cultura" não foi ainda entendida por muitos dos
"grandes ontologías" mundiais, das quais a europeia-ocidental, embora responsáveís políticos, como se verifica no arcaísmo de certos "programas
dominante, seria apenas uma entre várias. culturais" (aliás, muitos projectos - e isso é o mais fundamental - nem
Claro que a permanente fabricação de híbridísmos, de novos localis- Nl~npercebem de que o-são), consentâneo com a magreza de orçamento

mos - mas também de fundarnentalísrnos, esses perigosamente reducio- dos sucessivos Ministérios da Cultura. Enquanto "a cultura" é entendida
nistas - a que a globalízação está a dar azo deixa pairar um grande ponto como um reduto limitado (salvo excepções, uma espécie de "entretení-
de interrogação sobre qual o futuro da "convivência" das várias "culturas", mente de qualidade para iniciados"), evidentemente que os meios ao seu
que decerto não são nem entidades estáticas e fechadas, nem homogéneas, dispor são limitados, ao mesmo tempo que todos os outros ministérios
'lf'
mas relevando das mais insuspeitadas combinatórias. vão "fazendo cultura" através da acção prática, sem a pensarem como
"cultura" (conjunto de valores vividos, permanentemente acrualízados e
A abrangência - quase patológica - da ideia de património, de conser- lw.gociados na "vida real") que de facto é, de que de facto aquela acção
vação, revela que a nossa sociedade está a realizar.um imenso "trabalho de ('srA totalmente impregnada.
luto" em relação às sociedades tradicionais com as quais a modernidade
cortou. Sendo uma sociedade sem "invisível", sem transcendência, homogé-
O "trabalho de luto" impõe-se porque o tempo é írreversível, inelutável, nen, como escreve o autor, a nossa sociedade substituiu a religião pela cul-
e a luta contra ele obviamente destinada ao fracasso; mas também porque rura, mas, pelos vistos, sem querer ter demasiada consciência disso, Sociedade
a sociedade industrial e de consumo se alimenta da própria obsolescên- hedonísta, de massas, fragmentada no "zappíng" constante de tudo, nela
cia dos objectos (para produzir mais) e da frustração que cada consumo rW confrontam hoje os princípios merítocrátícos herdados da democracia
representa (indispensável à manutenção do desejo, isto é, à continuação rrndicional, com os do consumo compulsivo e mais imediatista, que dífun-
compulsiva do consumo). Há aqui, subtil, uma reflexão irónica, profunda, \.hl valores tendentes a desvalorizar o trabalho, e pode induzir à acentuação
sobre a sociedade que habitamos. . dl\ algum fosso entre um consumo de elites requintadas e educadas e um
A questão é de tal modo central que o Estado não deixa apenas em outro de massas que, embora acedendo cada vez mais a produtos culturais,
mãos alheias tão paternal tarefa de "velar pelo que é de todos nós" (aliás, ti fazem de uma maneira superflcíal ou "kítsch", Veja-se como o próprio

como cidadãos contribuintes, impregnados dessa ideologia, nós exigimos , \\ "nmbíente de trabalho" do computador é bem símbolo dessa fragmentação
- até de mais - isso mesmo dele). Daí que o património seja o pívô de v desse permanente deslize entre a reflexão (tradicionalmente solitária),
uma política ede uma retórica que são abrangentes, e procuram envolver, I1 "comunicação" sufocante e o jogo compulsivo.
em última análise, todos os cidadãos, pela ética da co-responsabilização. As "máquinas de memória" multiplicam-se, modernizam-se, sofistí-
O passado e o meio ambiente são valores de refúgio numa época em \tun-se, enraízam-se, disseminam-se aos níveis regional e local, estendem
"alta velocidade de aceleração", sobretudo para a classe média (base das hoje pela informática e pelas "redes" os seus tentáculos a todo o real,
sociedades modernas), em busca de uma memória e de uma identidade ullmentadas pela obsessão da conservação e pela apetência do turismo.

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Obsessão, digo bem, aliás na sequência do autor (que fala de "repetição 1,,11' exemplo, ou seja, um pólo em que se une a colecção ou emulação
neurótica"), porque já adquirimos e utilizamos as coisas em função da sua i ulvctiva com a repercussão alargada), o privado/social (colecção par-
maior ou menor capacidade de se destinarem finalmente a um de dois Ikul.nl", por exemplo, que mais tarde pode constituir-se em museu), o
fins: o lixo (ligado a todas as ideologias da reciclagem, etc., num mito de .obtivo/individual e o privado/individual.
que tudo seria reaproveitável e sem desperdício, quando o que se passa é Se "a colecção é o equivalente narcísico do eu do coleccionador",
precisamente o contrário) ou o património, pessoal e sobretudo colectivo I i\1110 escreve o autor, ela é também, na relação que estabelece entre o
- um e outro tendem cada vez mais a confundir-se - mito complementar ru.idelo, o elemento (cada objecto) e a série (o conjunto organizado para
de que a vida é toda ela arquivável, quanto mais não seja em álbuns de i'!\posição, por um conservador de museu, por exemplo), um reflexo do
memórias, fotos, filmes, etc.). I mundo actual, onde cada um se sabe, e quer ser, elemento de uma série
De tal sorte que por vezes já só vivemos certas experiências, como (visibilidade e aceitação no espaço social) e, ao mesmo tempo, sujeito
as viagens, para gozarmos antecipadamente o prazer de colocarmos as único e irrepetível.
respectivas provas em arquivo; como toda a organização de projectos e Mas este é apenas um dos muitos paradoxos, ou dilemas, que consti-
preparação de documentos é hoje feita em função da obsessão arquivística, tuern a própria tessitura da modernidade. O importante é perceber que
possibilitada pelos computadores pessoais, com a fácil transferência de aquele jogo, como lhe chama Guíllaume, espelha afinal, a outro nível, o
"dados" que permitem. Trata-se portanto de um novo tipo de "arquivo", dn relação entre o Estado moderno omnipresente e o indivíduo centrado
que se estende à totalidade do real, incluindo naturalmente o que mais em si. De um e de outro foi evacuado o sujeito, ou, visto de outro modo,
hoje o caracteriza, a circulação, o fluxo na rede e a "transparência" (não li princípio de transcendência tradicional, o invisível colectivo, isto é, a
transparência de "essências", mas de aparências, tornadas essências) total "grande moldura" (Deus), como lhe chama Bragança de Miranda (ín As
de todos os elementos, isto é, apossibilidade prometida de aceder quase Imagens que nos Vêem, Porto, ADECAP, 2003). Trata-se de um ponto que
instantaneamente à totalidade da "informação" desejada. I(Ostariaque o autor tivesse desenvolvido um pouco mais. Somos sempre
.Este "voyeurismo" estende-se obviamente a todos os meios de comunica- demasiado exigentes para os que têm muito valor... "
ção social, nomeadamente à televisão, e dilui constantemente as fronteiras Carência, luto, memória, tempo, identidade, melancolia, nostalgia
entre o público e o privado (este último é, na sua encenação, todo potencial- - são algumas das (muitas) palavras (dos conceitos, ou vívências) que,
mente público). Trata-se de uma problemática aliás enquadrável noutro dos corno se sabe, gravitam em torno da nebulosa do património e da con-
livros de M. Guillaume, r; EmPire des réseaux (1999) - onde mostra como os servação, as quais M. GuiUaume vai convocando com maior ou menor
processos que chama de "comutação" são centrais nas nossas sociedades de ii~;
ênfase, ao longo do livro.
hoje -, cuja tradução, aliás, seria também altamente recomendável. Para o resumirmos cabalmente, para expormos de forma breve e com-
preensível a sua ossatura conceptual, precisaríamos, não de várias leituras
Para caracterizar esta sociedade da conservação (conservação essa que da obra, como fiz, mas de muitas, repetidas, e sobretudo concentradas
não forma um sistema, mas se encontra espartilhada por múltiplas práticas durante alguns meses, para incorporar inteiramente o livro, e ir seleccio-
e saberes), moderna, industrializada, o autor acentua quatro tópicos: o nando as linhas de força e os fios de ligação de um capitulo a outro. Nessa
individualismo, o acento na aparência material, o desaparecimento da impossibilidade, optei assim pela solução que a seguir apresento, e na qual
transcendência e o corte com o passado. tentei ser fiel ao pensamento do autor. De qualquer modo, são inevitáveis,
Tenta depois, apesar de tudo, equacionarvários "modelos" de conser- .11 num trabalho destes, um evidente reducionismo e muitas lacunas.
vação, ou pólos (dos quais os dois primeiros são os mais significativos),
iiHf
cujas variadas articulações orquestram, de algum modo, uma grande Vítor Oliveira Jorge
heterogeneidade de atitudes: o colectivo/social (museu, monumento, Junho de 2003

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sempre o que" ganhou", visando continuamente aumentar a colecção). Se
a melancolia é resultante da identificação nardsica do eu com o objecto
. abandonado, pode dizer-se que o melancólico ignora o que perdeu. Há
aqui, nas sociedades modernas, um processo de repetição (fuga para a
2. Alguns tõpicos (por ordem alfabética) frente) neurótico, tanto na conservação, como no consumo.
para entrar no livro" - Compulsão de repetição - a colecção, como a viagem, são as outras
faces do consumo, revelando uma necessidade constante de colmatar
cumulação - forma típica de agir do poder político, através

A
um vazio do sujeito. A repetição é um instinto de morte activad~ pelo
_ de estatísticas, inventários, arquiv.os, bases de dados - numa. luto, um desejo de aquiescência do Nirvana ocidental (tendência para a
palavra, multiplicação dos monumentos em documentos, abolição da tensão psíquica).
em discursos, em práticas reguladoras e normativas. Regulamentação e - Conservação - constitui um "habítus" geral da nossa sociedade na
autoridade cobrem a realidade da conservação incentivada pelo Estado, sua relação com o tempo. Representa uma luta fracassada de antemão
garante da memória autorizada. Formas de acumulação são o património, (e portanto jamais terminada) contra o tempo irreversível e seus efeitos.
o consumo, a comunicação e a produção do saber (ciência). É, no fundo, um álibi para podermos, também nós, esquecer. Vem a
_ Ciência - parte da crença de que o essencial é aquilo que é observável, jusante do sistema produtivo. O que deixa de ser produzido é protegido.
visível, inteligível: uma vontade de abrangência que tem como modelo A conservação é oposta à, e solidária, da produção. A conservação não
o olhar. Supostamente, o saber poderia também recuperar o passado, constitui um sistema; é antes uma amalgama de elementos multívocos,
tomado o Outro de nós, hoje. com origens e lógicas diferentes (palimpsesto, plural no seu sentido). En-
_ Classes médias - elemento fundamental da sociedade moderna e contra-se muitas vezes pulverizada em campos diversos, como a história, a
contemporânea e da laicização do mundo, com papel fortemente acultu- museografia, a arqueologia, etc.~conservação é,!.2t.Ç~M!;:io...em.,IllaSSa.d.e"
rante em relação a outros estratos sociais, nomeadamente em relação à simulacros a partir de restos. Conservar é sempre artificializar, encenar,
ideologia e política do património. mtr~aií!ãt;""'tràhsfõrma·t'~outro (coisa, ser vivo, pessoa) em objecto de
_ Colecção - supõe uma relação dialéctica entre o elemento e a série. observação de um sujeito observador. A conservação procura colocar o pre-
É uma simulação da relação entre o Estado e o sujeito moderno. Por outro sente em suposta continuidade com o passado, quando, paradoxalmente,
lado, a colecção é o equivalente do eu nardsico do seu autor (este ignora a característica das sociedades modernas, homogéneas, é precisamente esse
corte com o passado, com o heterogéneo, com o invisível. A política do
* Sugeridos com base na leitura e transcrição livre, mas de qualquer modo muito património vive no paradoxo de permanentemente disfarçar, dissimular, o
próxima, de passos da obra (só se não usam aspas, que teriam de ser constantes, para
que radicalmente a constitui: esse corte que a conservação institucionalíza.
não tornar enfadonha a utilização desta espécie de glossário). Agradeço ao meu colega
e amigo Prof. Rui Mota Cardoso (UP) a leitura do texto e algumas correcções. Também O objecto conservado funciona ao mesmo tempo ao nível de uma memó-
me socorri do Vocabulário da Psicanálise, de J. Laplanche e J .-B. Pontalis (Lisboa, Presen- ria vulgar (documento, arquivo) ede uma memória activa (implicando o
ça, 7" ed., 1990) e, mais genericamente, do Dicionário Geral das Ciéncias Humanas, dirigi. inconsciente) (monumento, guardíão), No conjunto, constitui o que M.
do por G. Thínes e A. Lempereur (Lisboa, Ed. 70, 1984). É evidente que as definições G. designa um "objecto memorial", ou seja, a associação de uma memória
apresentâdas foram organizadas por mim, mas com base no texto de M. Guillaume, a um discurso, permitindo ligar entre si "os vários planos da memória",
pelo que não são de minha autoria a maior parte das frases transcritas, sob a pena de
- Conservação "deslocada" - conservação de objectos fetiches ou de
incorrer em plágio. Apenas é de minha responsabilidade qualquer imprecisão ou má
colecções, reforçando fixações neuróticas ou estados melancólicos.
interpretação que possa resultar desta tentativa de "glossário" muito simplificado, e
pela qual peço desde já escusa ao autor e aos leitores. Em trabalhos ulteriores conto - Conservação memorial- agrupa todos os objectos que permanecem
poder debruçar-me mais detidamente sobre a obra de M. Guillaume. nos locais do luto, permitindo a ab-reacção (descarga emocional liberta-

,e ,a
dora) do sujeito, e portanto o esquecimento sem lesão (progressivo), o ciência perdida): enciclopedismo, etnologia (absorção do outro), estatística
esquecimento positivo. (monitorizaçâo da totalidade através do cálculo), saber médico, higienismo
- Consumação - 'desperdício, despesa luxuosa, destruição, são as (sujeição do indivíduo e seu corpo à clínica e às políticas sanitárias - co-
formas em que se concretiza. O sujeito não se contenta com o valor de lonização da intimidade), política de conservação, ecologia, etc.
uso de um objecto (valor económico), que é fastidiante, necessitando de - Eco-conservação - conservação em espaço aberto, visando preservar
um valor simbólico, que implica um Outro, É para isso que a publicidade realidades vivas e implicando a participação das próprias pessoas, o que
apela - a consumação é, paradoxalmente, a outra face do consumo. a aproxima da ecologia e da etnologia. .
- Consumo - processo de repetição supostamente indispensável à ma- - Elemento - de certo modo o mesmo que uno, ou modelo, por
nutenção do sujeito, à necessidade, mas na realidade ligado ao desejo e a oposição a série: algo de único, de singular.
todo o funcionamento da sociedade de mercado. Articula-se intimamente - Efemeridade, obsolescência - característica das sociedades con-
com o individualismo, o culto do efémero e do presente na sociedade temporâneas e seus produtos e, ao mesmo tempo, realidade em que elas
contemporânea. se instalam e a que estão particularmente atentas, procurando reagir de
- Corte com o passado - uma das características distintivas da mo- diversas formas (práticas de conservação/restauro, e, em geral, toda a pa-
dernidade ocidental. Paradoxalmente (toda a modernidade se instala em trimoníalízação). A efemerídade do presente e o individualismo têm o seu
paradoxos), é ela que vai incrementar o interesse pela história e pelo passado,
contraponto na conservação colectiva, que acentua compensatoriamente
criando a ideia de património. Recusando a presença (invisível, transcen-
os valores da duração e do passado. O património surge como uma forma
dente) do passado, a nossa sociedade acumula os restos materiais deste.
ele tornar vivível, aceitável, a aceleração do presente, o sofrimento de uma
- Discursos metacientíficos - a psicanálise, a epistemologia, a hís-
sociedade em fuga para a frente.
toriografia, entendidas nesta acepção, apresentam-se como resistências,
- Esquecimento - são formas do esquecimento: o esquecimento
como levantando problemáticas, ao funcionamento paradigmático das
neutro (coisas insignificantes), o esquecimento negativo (recalcamento
ciências humanas dominantes - e, como tais, muito úteis. É óbvia, na
e memória transviada no inconsciente) e o esquecimento positivo (cura,
obra (e noutros livros do autor), a. profunda influência da psicanálise.
ligada à palavra).
Inicialmente, as ciências humanas em geral constroem-se sobre o desco-
- Heterologia - saber sobre o outro, a partir de uma entidade (nós) que
nhecimento do seu próprio fundamento.
se constituiu a si mesma como observador externo. É nesta ideologia que
- Discurso (retórica) da conservação e do património - é um pretexto
se baseia toda a ciência, e em particular as ciências sociais e humanas.
velado para a dominação do económico nas sociedades modernas. É um
- Holismo - conformidade dos elementos ao todo, à ordem, própria
discurso de autoiustificação que traduz simultaneamente fragilidade e
autoridade. Revela o paternalismo do Estado (acentuando o seu aspecto elas sociedades tradicionais, onde impera a simbolícidade. Opõe-se ao
protector, "versus'' o de censor) e permite o desenvolvimento do seu apa- individualismo moderno e contemporâneo,
relho (instâncias administrantes de novos valores ou recursos; reformas, - Homogeneidade - apagamento da transcendência (ou seja, da
criação de instituições em relação com novos dispositivos de segregação e heterogeneidade, do invisível) próprio das sociedades modernas. Valori-
controlo do espaço). Responsabiliza (conservar para transmitir) e mobiliza zação da materialielade (visibilidade e espectacularidade) das coisas, e por
grupos sociais para essas tarefas. É um discurso estereotipado, repetitivo, conseguinte dos objectos patrimoniais de todos os tipos. f
"velho", sobretudo se lido nos documentos administrativos ou jurídicos - Individualismo - característica das sociedades ocidentais industria-
que lhe dizem respeito - está petrificado em valores do início do século lizadas. Vai a par com um sentimento de perda radical do sujeito (suporte
XIX: Beleza, História, Natureza, Arte, etc. transcendente) e com formas disseminadas de heterogeneidade na vida
- Dispositivos de saber e de poder - surgem na época moderna e corrente. É o reverso da desestruturação simbólica em que cada indivíduo
contemporânea com uma vocação totalizante (substituição da transcen- é integrado no homogéneo da nossa sociedade.

20 2\
- lrreversibilidade - característica fundamental do tempo, na sua os cidadãos (tornados agentes activosde vigilância e salvaguarda) e, por outro,
acepção corrente. A colecção teria como função imaginária a abolição na atribuição ao Estado da sua certificação, ou seja; do monopólio das regras
da irreversibilidadé. da memória autorizada. O museu é uma espécie de local de culto dos tempos
- Materialidade (valorização da) - própria da sociedade moderna modernos. É também um aparelho de propaganda retrospectiva ..
industrializada, que enfatiza o visível e o material. A materíalídade das - Museo-conservação - organiza-se de forma fechada, em torno de
coisas é também o suporte de diversos discursos, uma espécie de cápsula colecções separadas da vida real e do tempo, e seleccionadas, ordenadas,
de sentidos e de práticas (de fruição, de consumo) muito diversas. hierarquizadas por um conservador, que se torna assim autor de uma
- Melancolia - forma psicótica de depressão, que se revela, por exem- encenação ou representação do passado, que no entanto tende tradicional-
plo, na mania da colecção. Como é sabido, a melancolia é particularmente mente a ser mostrada como "verdade" ao visitante. O que é por natureza
característica da psicose maníaco-depressiva. multivocal, diverso, pode tornar-se unívoco no discurso museal.
- Memória autorizada - tem uma função discursiva, através da escrita da - Nostalgia - sentimento doloroso resultante da consciência' da fugaci-
história (ideologia da continuidade) com base no documento, e uma função dade do tempo e da efemeridade das coisas, mas inevitável, e pressupondo
não discursiva, que repousa no monumento, no sistema de conservação um trabalho de luto conseguido. Distingue-se da melancolia, na medida
, e no cruzamento da imagem com o texto que esse monumento possibilita. em que esta, pelo contrário, implica já uma perda do sentimento do
- Memória colectiva - incide sobre realidades materiais, ou imateriais (!U, uma fraqueza, uma ausência de objecto memorial em que o sujeito
(oralídades, práticas correntes). Dela faz parte a memória autorizada .. (Individual ou colectivo) se apoie.
- Memória heterológica - organiza-se a partir de documentos e mo- - Objecto - o objecto permite fazer, mas também dizer, e uma das
numentos e produz-se e reproduz-se através das «máquinas de memória" suas propriedades é servir de embraiador entre o estático e o dinâmico,
(museus, bibliotecas, arquivos, sítios monumentalízados, etc.). Visa atri- li acção, o discurso e a recordação. Pode de certo modo dividir-se em

buir um sentido unívoco ao passado. É tendencialmente conservadora. dois grandes tipos: o objecto velho, anónimo, vulgar, primeiro integrado
.;: Memória simbólica - persiste, disseminada, ao nível individual em (e representativo de) sistemas de produção e consumo, e com valor
e familiar das práticas sociais, onde pode e deve actuar uma poética da económico, antes de ser descartado (ordem do efémero), o objecto antí-
memória e concomitante esquecimento. É uma memória longa, que se ),(0, nobre ou enobrecido, prestigioso, singular (objecto de arte, objecto

enraíza no quotidiano e suas práticas. É tendencialmente pluralísta: sagrado, etc.) (ordem do perene). No entanto, a singularidade deste se-
- Monumento - figura da conservação colectiva, como o museu, o I!\\l'l.dotipo (objecto conservado) é obscura, pois é evidente que qualquer
monumento é um signo, isto é, apela para uma realidade-outra, que lem- Inventário é um processo de homogeneização. O que se pode dizer é que
bra, comemora, ou de que é a metáfora. Frequentemente, o monumento . estes objectos consagrados (garantes de uma função simbólica, sagrada)
é apenas um suporte, um álibi, para o esquecimento: sabemos que ele está H1i() intermediários entre a colectividade e a:transcendência, eportanto
lá, mas ninguém o olha, a não ser o turista. Os monumentos (como em Hn() heterogéneos em relação à ordem comum.

geral todos os restos históricos) são estereótipos, por vezes representativos - Objectos mnemónicos - são arquivos ou monumentos (na acepção
de um espaço (urbano, por exemplo). I muls ampla destas palavras), repositórios informativos, mas também são
- Museu - visa dar 'nova utilidade ao que foi repelido como inútil ou símbolos de acontecimentos, e são alvo de interpretação (actualízação)
ultrapassado. A ideia de musealízaçãoestendeu-se a todo o planeta (terra consrante. Funcionam em complementaridade com os objectos de sutura,
como museu), em relação com a prática e ideologia do turismo. Entre o l\lu·tI constituir a função mnemotécnica contemporânea.
coleccionador e o museu (e respectivo público), o conservador tem como - Objecto memorial- articula os diversos planos da memória e é,
objectivo apresentar as colecções como conjuntos completos. A musealízação slmulranearnenre, objecto mnemónico e objecto de sutura (na verdade,
do mundo caminha, por um lado, no sentido da sua interiorização por todos ronatíruí uma variante deste último). O objecto memorial acumula a

22 23
função de memória com a do discurso. Tal memória é, ou a memória IIma manobra de diversão, uma compensação para a uniformidade e funcío-
vulgar (documento-arquivo), ou a memória activa, a que está ligada ao nalismo das sociedades industriais. É um mal menor. É a parte desactivada
monumento como guardíão. Uma racionalização consciente esconde, de das coisas vivas - produções, instituições, língua - que passa a ser alvo de
facto, um mecanismo inconsciente. Tem uma função terapêutica: permite lima referência valorizante. O património tem por vocação homogeneizar
o esquecimento, fixando o trabalho do luto na sua própria causa. (enquadrar os elementos mais heterogéneos num todo homogéneo, arqui-
- Objectos de sutura - objectos que visam colmatar uma carência, coser vístico-conservatórlo). A sua única eficácia é acumular-se indefinidamente.
uma ferida simbólica, remendar um buraco da memória, permitindo o es- - Práticas quotidianas - ao nível micro-social,. todo um conjunto
quecimento. O desejo do sujeito resulta de uma carência ou luto (procura de práticas discretas, furtivas, procuram, com astúcia, fugir ao dilema
de plenitude e sua frustração), que o leva a juntar determinado objecto à dominante do consumo e da conservação, baralhando os dados, na vida
sua colecção ..Esse processo de procura, de adição, é radical e compulsivo, concreta das pessoas.
em fuga para a frente, e jamais está satisfeito. O mesmo no plano colectivo. - Rememoração - possibilita o acesso à cura (caminho do sintoma até à
Tal movimento, na sociedade moderna, é o duplo do processo de consumo, slruação traumática original; re-construção do passado antes inacessível).
que vive, para se manter, da própria frustração da aquisição anterior, para - Repetição - liga-se ao retorno do recalcado, ou seja, é um sintoma
continuar activo. Assim, o património (tanto ao nível individual como neurótico (lesão da memória). A colecção é um sintoma de compulsão
colectivo) processa-se num modo obsessivo, para não dizer paródíco, reve- de repetição.
lando por vezes sintomas de repetição neurótica. O objecto vem preencher - Série - sequência ou conjunto de realidades ou termos, ordenados
a ausência do transcendente, numa sequência repetitiva votada ao fracasso, temporalmente, em oposição a modelo. Implica certa repetição, perda
à frustração, que todavia no quotidiano se encontra dissimulada. O objecto de singularidade.
de sutura recorda para permitir esquecer o que o consciente não tolera. - Simulacro - forma de manter o passado aparentemente "activo",
- Passado - é uma pseudotopia, um espaço fictício, mas permite recriar nomeadamente através da manutenção (subsidiada, por exemplo) do'
diferenças que o presente já não tolera, dá-las a ver como espectáculo. "típico", em particular para fins turísticos. Entre a morte e o simulacro,
O passado, como a ecologia, é um valor-refúgio. É o Outro da sociedade o projecto (ou obsessão) conservatório escolhe o segundo - não há hoje
'presente - objecto da história e de outras ciências humanas -, uma he- alternativa para essa política de multiplicação do património, o que sig-
_ terologia (saber sobre o outro). As sociedades modernas caracterizam-se nifica a proliferação dos simulacros, daquilo que pretende artificialmente
pela separação em relação ao passado, ao contrário das tradicionais, que resistir à irreversíbilidade do tempo. Nada do que é vivo resiste ao encer-
viviam em continuidade com ele. O passado é uma narrativa que, repor- ramento, ao isolamento, à artíflcíalídade que a prática da conservação
tando-se a acontecimentos, está sempre em reformulação e em negociação. intrinsecamente instala.
O passado, como a morte ou o prazer sexual, exprime-se com frequência - Sociedades industriais, modernas - promovem o desenraizamento,
de forma obsessiva, e é indizível em si, apenas sendo evocável através dos li destruição, bem como aobsolescência dos objectos banais que continua-

seus signos. O voyeurismo contemporâneo generalizado alimenta-se desta mente produzem. A sua outra face é a da conservação material de alguns
ficção de querer compreender, ver, tudo: passado (história, património), objectos, ligada a uma certa consciência da temporalidade e à ideologia
presente e futuro (planeamento). individualista. Aqueles objectos que são alvo da conservação seriam os
- Passado colectivo - é uma ficção, que se relaciona com uma vontade autênticos, preciosos, artesanais, antigos, Estas sociedades procuram
de crença numa construção que contribua para a coesão social. conciliar dois elementos (pelo menos à primeira vista) contraditórios: a
- Património - tem tendência para se generalizar à realidade toda (do criação, a mudança, com a continuidade e a conservação. Há uma vontade
.inerte ao vivo, do passado ao presente, do material ao ímateríal). É um con-' de totalidade: produzir e proteger são duas faces da mesma moeda destas
traponto à incerteza de futuro, mas um contraponto não rranquílízador. É sociedades, e dos aparelhos heterológicos (conhecimento e absorção do

24 25
outro) que as caracterizam. Visíbilização (presentífícaçâo) do passado e
antecipação (planeamento) do futuro. Estas sociedades estão ligadas ao
desenvolvimento das classes médias (que precisam de criar elementos de
cultura comuns, e entre eles o do património) e ao consumo.
- Sociedades tradicionais - votadas à ordem simbólica, à essência do
Para Virginie, Alexandre, Emmanuel
Ser, nelas os restos são sobretudo imateriais e invisíveis. O passado não está
separado do presente. São sociedades heterogéneas, ou seja, sociedades
onde o sujeito, as suas carências individuais, ainda não ocorreram, como
não ocorreu o heterogéneo no campo social (estes dois últimos fenómenos
parecem ser concomitantes).
- Suspensão de destruição - característica de muitas pequenas (ou
grandes) coisas que conservamos, que coleccionamos, e cuja unidade se
funda sobre a vontade de quem assim organiza essas constelações.
- Transcendêncía - unidade do real sustentada por uma entidade
"superior" ao mundo material e social e capaz de lhe dar sentido, princí-
pio regulador geral supra-material,' invisível, que teria sido perdido para
sempre com a modernídade, no mundo industrializado. Trata-se do Outro
simbólico que a modernidade aboliu, instalando a ausência de um sentido
subjacente às coisas, e ficando reduzida à visibilidade, espectacularídade,
materíalídade destas. A transcendência seria a condição da felicidade e da
festa, ou seja, da independência em relação a uma ordem de conservação
obsessiva e de centração no sujeito desejante (realidades coetâneas uma
da outra). Além disso, sem estrutura simbólica não há diferença entre o
significativo e o trivial. A nostalgia é o imaginário do simbólico.
- Valor - para além de um valor económico, e de um valor simbólico,
existe um valor serníológico, que é muito importante para compreender
o ser humano e em particular as suas práticas de conservação privada
ou colectiva.
- Vestígios - o que resta da vida, o que escapa ao tempo. O trabalho
sobre esses vestígios, a sua conservação, é sempre resultado de uma preo-
cupação com a morte. Mas, paradoxalmente, talvez o passado imaginado
a partir dos seus restos ainda seja a última forma possível de simbolízação,
de criar um mundo habitável. .

Compilação de v: O. J.

26
L f A o A M 6 N o

Este ensaio foi escrito paralelamente a uma investigação (financiada Prefácio do autor à edição portuguesa
pelo CORDA) dirigida por Miehel de Certeau e por mim próprio, realizada
por Laurence Bachman e }udith Epstein.

A
Embora largamente independente dessa investigação, este livro bene- publicação em português de um livro escrito há mais de vinte anos
ficiou muitas vezes das hipóteses e das sugestões que aqueles autores me oferece-me a oportunidade de uma releitura e de um re-exame
propuseram. Para eles vai a expressão da minha profunda gratidão. das minhas hipóteses.
O objectivo principal do meu livro era mostrar que a conservação do patri-
mónio não era uma questão simples, que ela se alimentava de falsas evidências
'.' que, aliás, num passado relativamente recente, as sociedades não tinham
til inlquer preocupação em deixar vestígios materiais. O meu desejo era, pois,

explorar, ou mais do que isso, desvendar o enigma do património.


Com o recuo, parece-me que deixei subsistir uma mancha cega na minha
uhordagem, diria mesmo uma mancha central. Tentei elucidar as práticas
Individuais de conservação de alguns vestígios, e, seguidamente, as políticas
rqlcctivas do património. Entre estes dois níveis, existem alguns elos, mas
h;'! igualmente uma oposição que não explicitei suficientemente. Quando
n mservamos uma coisa que nos emociona, aquilo a que chamei um objecto
d•.! .\utura,trata-se de manter um vestígio simbólico do efémero e da emoção
'llll~lhe está associada. Ao passo que o património colectivo decorre de uma
ItllI.lllrVaçãoheterológica que tenta esquivar-se à violência do efémero e que se
Inscreve num desejo de imortalidade e já não de eternidade.
É o que me leva a propor aos leitores desta edição algumas páginas
dI' reflexão sobre o efémero', esperando que elas permitam uma melhor
cotnpreensão das políticas voluntaristas a favor da conservação duradoura
que caracterizam especificamente as nossas sociedades modernas.
,',o

***
"O amor puro só é puro durante um instante, ou seja, fora de qualquer
ilurução'". Vladímír [ankélévítch insiste longamente sobre a aporia da

I Extraídas de um artigo a ser publicado brevemente nos Cahiers de médiologie,

hlYIII'd, 2003.
I. V.jankélévltch, Le Paradoxe de la morale, Seuil, p. 84.

29
relação amorosa: como amar sem sentir o peso de si próprio, da preocupa- que permita uma aproximação do abismo: o surgimento na consciência
ção de si próprio! Mas como amar sem estar presente em si próprio, sem da estreiteza da vida concentra-se, implode neste instante-limite. Este
existir realmente? Se não se é, onde está o amante, onde está o sujeito do efémero é a irrupção de um estado insustentável no curso ordinário da
verbo amar? Esta impossibilidade só pode ser apercebida, sustentada, na exlstência, Não é um tempo curto - isso é o efémero vulgar -, mas um
fulgurância de um instante, quase na abstracção de uma interrupção de tempo fora do tempo, essência do efémero (ou ainda Efémero)i.,:t
movimento. O affeccus do amor puro é um estado-limite, evanescente, uma Sim, estes momentos existem e não apenas como percepções mentais,
aparição em desaparecimento. "O amor ainda puro, isto é 'ínexístente', experiências de pensamento. Pensamos imediatamente nos instantes em
que está para lá do ser, confunde-se à mínima tangência, num milésimo de que nos desfazemos de nós, no êxtase erótico, momentos a que Georges
milímetro e num milionésimo de segundo, num movimento impalpável Bataille se refere em termos de "cumo da vida", pois neles ela se revela com
e fugitivo do nosso humor'". O mesmo acontece, de resto, com o impetus "a maior força e a maior intensidade". Momentos em que esta intensidade
moral (pois "a vocação moral do homem é amar"): "É nesses instantes, dn vida é também uma aproximação abismal da morte. "É pelo facto de
em que ela (a vida moral) está prestes a escapar-se e em que desesperamos sermos humanos, e de vivermos na sombria perspectiva da morte, que
por agarrá-la, que ela é mais autêntica: temos então que agarrar no ar a conhecemos a violência exasperada, a violência desesperada do erotismo ...
ocasião, na sua viva flagrâncía'". Não terão razão aqueles que dão o nome de 'pequena morte" à sua fase
terminal, quando apercebem nela o seu sentido fúnebre!"!
Italo Calvino imagina um Cavaleiro inexistente - uma armadura vazia Se seguirmos a ligação, que Bataille não cessou de recordar, entre o
- capaz, entre outros feitos, de fazer viver à viúva Priscilla, que tem con tudo crotísmo e o sagrado", ela conduz-nos a outro momento singular. O do
alguma experiência, a sua mais bela noite de amor. Esta parábola não é (',,{ase místico, descrito como "êxtase branco" por Michel de Certeau,
senão uma outra forma de explorar a impossibilidade de uma relação de pois neste momento de luz, tudo se confunde numa ausência de som-
amor perfeitamente puro. Uma ficção que converge, aliás,para a mesma bra, de segredo e de expectativa (não há expectativa, portanto já não há
constatação: este amor só pode durar ... uma noite. neeessídade de falar ...).
Estes momentos-limite - orgasmo, iluminação, abandono absoluto -,
Na realidade, existirão estados de presença simultaneamente flagrante
estas experiências de que não podemos falar senão dizendo o que elas não
e deflagrante; instantes durante os quais a inexistência e a plenitude são,
tliio, não são apenas efémeras pelo facto de não podermos suportar a sua
simultaneamente acessíveis?Momentos em que uma compreensão imedia-
Intensidade, uma intensidade paradoxal, vívível e invivivel ao mesmo tem-
ta se estabelece entre nós e o mundo. Compreensão: somos tomados num
IK1, ao mesmo tempo viável e inviável (lankélévítch recorda-o a propósito
todo. Quando entramos neste estado fazemos parte do mundo, formamos
uma combinação com ele, que não é uma relação de poder, de saber ou de
de Tolsroí, que desespera por "nunca alcançar uma 'vida' cristã ou por,
Ines mo que por um instante apenas a alcançasse, não poder manter-se
interesse. O sentimento de existir modifica-s~ nesta combinação, dissolve-
-se e, ao mesmo tempo, potencialíza-se, Mas este estado, não o podemos
• Petitemort: expressão metafórica para designar o orgasmo. (N. daT.)
fazer durar. Pois a sua intensidade, ~ desregulação que o acompanha,
I O. Bataille, Les !armes d'Éros, UOE, 10/18, pp. 61-62.
desafiam todos os relógios. É antes um grão de eternidade. Mais exacta- 6 "O sagrado (está ligado) a momentos em que o isolamento da vida é subitamente
mente, se este estado durasse, não poderia ter uma relação intensa com a I/lldlrado, um momento de comunicação não somente dos homensentre si mas dos
nossa existência, cuja brevidade, através da nossa consciência da morte, é luunens com o universo no qual habitualmente estão como estrangeiros. Comuní-
a componente essencial. É preciso um carácter comum, uma adequação rH~i\o deverá entender-se aqui no sentido de uma fusão, de uma perda de si próprio,
1'11)11 integridade só se consuma na morte e de que a fusão erótica é uma imagem. Tal
l Op. cit., p. 180. umcepção ... tende a identificar o.que a experiência mística apreende" .0. Bataille in
4 Op. cit., p, 183. l.nure, Écrits, UOE, 10/18, 1978, p. 161. .

30 3t
nela'"). Elas são efémeras pela razão, mais profunda, de constituírem Estes pontos acolchoados que dão, portanto, forma à existência são
desafio à territorialidade do tempo, de parecerem sair do tempo. Talves' tumbém os que dão origem aos meios humanos para partilhar, suportar,
fosse melhor dizer que elas revelam que o tempo não é uma grandeza de 1i !;~ unnsmítír a emoção que lhes está associada. Do instante da morte do
uma dimensão, que esta dimensão é fraccionária, ou seja, que o tempo ,C 111'1' próximo surgem a sepultura, o mito, a religião. A morte está assim
é fractal, que apresenta anfractuosidades simultaneamente mínúsculas na origem da obra, da arte - uma arte oriunda da sua crueldade, um ar-
e de extensão infinita. Voltas e reviravoltas. [acques Derrida: "Sinto de lindo absolutamente necessário, por exemplo para impedir que o morto
forma urgente e mais aguda que nunca a necessidade de pensar o que Il'uresse para nos atormentar (death harrasmentl). Reencontramos aqui a
quer dizer essa coisa enigmática a que chamamos a 'vez' e de cada vez o oposição, feita por Hannah Arendt, entre a técnica e os seus artefactos
're-torno', estas coisas do re-torno, esta' causa de um retorno eterno até (.\lll' um lado, e por outro a obra que é a essência do artifício humano e
na mortalidade de um dia, na inegável finitude do eférnero"." ÜIl,ia função é "oferecer aos mortais uma estadia mais duradoura e mais
Esta representação fractal do tempo acaba por estar bastante próxima f'Mt:'tvel que eles próprios";
de uma noção híbrida e subtil que desempenhou um papel importante no Imagens, e lendas, música e poesia, o efémero deixa assim vestígios, o
pensamento de Mareei Duchamp, a noção de "ínfra-leve'". Pela sua ina- lnnpreensível inscreve-se no duro, na duração.' Conservar vestígios, este
preensível fugacídade, o Efémero torna sensível o facto de o tempo nos ser IW~:t(J especificamente humano, é com efeito o eco paradoxal do que
contado e nos fugir, mas, ao mesmo tempo, que isso não tem importância: e:JI'apaà duração. Estes vestígios do efémero adquirem o seu valor pela
angústia e alívio. Desta mistura instável surge a fruição humana, o poder ííU:\ capacidade ele recriarem uma emoção fundada no desaparecimento,
singular desta forma concentrada do eférnero, um efeito que dá "poder" por vezes os objectos mais insignificantes (objectos heteróclitos en-
ao homem enquanto humano. Sob este efeito, que não pode durar, que runtrados após a partida: ou a morte do ser amado, por exemplo) que
certamente não dura o tempo de uma vida inteira, a vida humana toma podem, em certas condições, desempenhar este papel. Aliás, a sua própria
uma amplitude paradoxal. Deixa de se medir em duração, limitada" mas hwlgnificância amplifica o sentimento do irreversível da morte e do tempo,
em intensidade, em graus de poder, para retomar os termos de Deleuze a lt'oniva o sofrimento ligado à consciência do efémero. Os objectos mais
propósito da teoria do conhecimento de Espinosa. Nesta teoria, atingir o hUlIltÍS despertam a nostalgia mais inapaziguável, materializam o próprio
mais alto nível de poder é estabelecer relações adequadas com a totalidade IJl1Nsado,a passeité *. São objectos de sutura, que conservamos para coser
do mundo e ter assim acesso à noção de eternidade. UIIlI\ ferida simbólica, para guardar o vestígio dos momentos de emoção
Deste modo, a nossa vida, fractal, escapa à temporalidade vulgar, i1'1 tensa , a memória dos pontos acolchoados.
concentra-se e dilata-se nestes momentos de efémera singularidade, cujo Mas são também, num modo mais duradouro e colectivo, as obras de
retorno é procurado, encantado e cuja presença-ausência assombra as i.lItt,~(mais precisamente a sua componente sagrada, que, segundo Roger
nossas práticas mais banais, ergue a estagnação quotidiana da vida para (;;dHois, desaparecia com a arte contemporânea), que conservam o poder
fora de si própria. Tais momentos são os pontos do acolchoado * * que atra-
•.h' evocar a emoção associada à sua criação. Obras que, quase sempre, se
vessa o estofo da existência - gestos, encontros; palavras trocadas, labores
hWí'l'cvemnum suporte material, um artefacto, que é necessário proteger
- e lhe dão uma forma, uma sustentação.
(:'ir! vezes até tornar invisível para o conservar), mas que se exprimem
ntruvés de um artifício. É o artifício o retorno do efémero, o retorno ou
7 V. [ankélévítch, op. cít. p. 10.
S J. Derrida, Voyous, Galílée, 2003, p. 19.
'I H. Arendt, Condition de l'homme modeme, Calmann-Lévy, 1961, p. 205.
• No original, infra-minee: a tradução por "infra-leve" é a proposta por António
Rodrigues no posfácio à edição portuguesa da obra Mareei Duehamp - Engenheiro do • Neologismo criado pelo autor para designar a caracrerístíca que as coisas têm
Tempo Perdido, Assírio Alvírn, 1990. (N. da T.) 01., I!t' tornarem passado e que será amplamente desenvolvido ao longo desta obra.
•• Points de eapiton, no original.(N. da T.) íN, "li T.)

32 33
a re-criação do que "foi", na condição de que para lá da aparência surja.' Esta conservaçãopatrimoníal, na qual os objectos de sutura se diluem
aquilo aque Duchamp chama."a aparição da aparência", o impulso que: Hlt~perderem a sua especifícídade, atesta a rejeição de um modo simbólico
a aparência dá ae espírito daquele que olha.; d\~ presença do passado no presente. Os mortos já não assombram com
, Estará este poder do efémero, presente na obra de arte, ameaçado pela II NUapresença invisível o mundo dos vivos. A conservação, a memória
reprodução em massa? Não é certo. Roland Barthes mostrou bem que a IJIHtóricajá não se inscrevem num registo simbólico mas numa heterologiall
fotografia, pela fidelidade do seu artefacto técnico, mergulha-nos, mais. 11msaber sobre o outro - que faz parte do paradigma moderno do ver e
brutalmente que qualquer pintura,numa certa autenticidade do."isto foi" ;';rn, dI! saber. Uma vez que nada mais de transcendente se esconde por detrás
o artefacto objectivo - a objectiva da máquina fotográfica - confere um h iln aparência, são os artefactos materiais, visíveis, legíveis, que importa
poder maior ao artifício, "força" o retorno, a irrupção do efémero. rnnservar. Para assim tornar o passado visível e sustentar a ficção da sua
Isto quer dizer que o efémero, na era da reprodução em massa, tem um l' presença e de um futuro previsível. Tudo isto se salda por uma perda: deixa
estatuto mais complexo do que uma leitura rápida de Walter Benjamínâ ,h,~haver transcendência, deixa de haver eternidade. Esta perda abre-se
poderia levar a pensar. Se a obra autêntica, ao contrário da sua repro4u~,;; .' " tiubre o abismo sem fim de uma ausência que a acumulação indefinida
ção, conserva uma "aura", é porque ela ainda pode provocar a aparição,tlP' '.\IIS vestígios não pode colmatar.
o "retorno" do gesto que a produziu. Mas a fotografia, sobretudo quando:N
capta um sujeito humano, mais. particularmente a "fotogenia" de um ros>;! Este corte que separa a idade moderna - a primeira a escolher a valorí-
to, ou. ainda a música, não perdem necessariamente, na sua reprodução,J). ! ;'II\~iiodo tempo e da mudança como emblema - das sociedades simbólicas
técnica, o poder do eférnero. Porém, esta transmissão do efémero só pode ,!i li, pois, fortemente desenhado pelo contraste das práticas de conservação
conservar o 'seu poder se for inscrita numa eterna re-criação. .;
(1\ de memória). Ele é ainda reforçado pelo jogo da obsolescência e da
Neste caso, sendo re-criada a componente "sagrada", transcendente,
,11'IIITuiçãoque o desenvolvimento industrial implica. Aos fluxos rápidos
do poder do efémero, podemos falar de conservação simbólica. Compre-s
dl~ degradação e de desaparecimento das mercadorias, das construções
ende-se assim melhor que as sociedades simbólicas do passado tenham}:
I' das paisagens (para dar lugar, nos processos de consumo e produção,
manifestado uma indiferença nítida aos suportes materiais da conserva-il .
,( outros objectos e outras infra-estruturas), respondem as políticas
á

ção. E deixado desaparecer ou destruir os objectos, os monumentos, osj!;'


tI"trimoniais, que vão deixando inúmeros restos sedimentarern-se numa
vestígios que tinham deixado de ser portadores de aparição, de emoção.::
couetelaçâo de museus e de espaços preservados. Chega-se assim a tratar
Sendo a Essência do Ser irnaterial e invisível, o que importa do passado!,!
Utl objectos do passado recente e mesmo do presente no modo de um
não pertence à ordem das coisas e do visível. O novo não expulsa o antigo,}
futuro passado (em museus de actualidade) para adiantar e compensar
o presente permanece ligado a um passado que mantém uma estrutura '
I I IIt!Udesaparecimento programado. A estratégia industrial do efémero
simbólica viva. Esta presença simbólica do passado liberta da preocupação'
Imbrica-se assim na estratégia patrimonial do perdurável.
da sua conservação materiapo.. .
Tudo isto conduz. a distinguir firmemente e até a opor duas linhas
É só na época moderna, sob o efeito convergente de múltiplos facto-
Ilml ligam o efémero ao duradouro. A primeira é a que sai do Eférnero
res, que apareceno Ocidente um regime de conservação completamente
diferente, a conservação patrimonial.
11 Dei assim o exemplo do papa Júlio Il, que destruiu em 1505 a igreja de São
10 Benjamin evoca assim. as antigas fotografias "em que a aura nos faz sinal, uma p•.dro de Roma, construída doze séculos antes, para a substituir por urna igreja mais
última vez", in L'Oeuvre d.'arc à l'êre de sa reproducCibilicé cechnique, 1935. E Louise 111'111 adaptada ao espírito da época. O que parece hoje ímpensável não era sinal de
Merzeau: "A fotogenia não é apenas o que convida a retermo-nos num rosto; ela é, de 1111111 falta de respeito pela Antiguidade, A convicção de Júlio II era a de não estar
forma mais radical, o que obriga a olhar a imagem como o próprio lugar da retenção," 1I1'I\ílo a restaurar São Pedro, pois a igreja era para ele uma entidade indestrutível cuja
L. Merzeau, "Da fotogenía", Les Cahiers de mediologie, n.s 15, 2002, "I'"rOnda material podia ser modificada sem que a sua essência fosse alterada.

34 35
enquanto tempo intenso fora do tempo. De ponto de acolchoado para o~ viVI! l! o inerte, tornam-se vagas. A biologia contemporânea já não visa
jecto de sutura, ela mantém a presença activa do passado numa socieda,'"
'}/IJPI)I1I\:; o domínio dos corpos como também o dos códigos, e através deste
simbólica que reserva um lugar à transcendência e à ideia de eternidade. ii' WllfI 11110 é a mutação da espécie que está em jogo. Amanhã, ultrapassadas
segunda é a que liga o efémero vulgar, tornado ainda mais sensível nu ",0''''1'''''1 reticências 13, aplicar-se-à ao homem a engenharia genética, de que
sociedade industrial votada à velocidade e à destruição, aos artefactos heneficíam as nossas plantas e animais de rendimento, para conser-
conservação e que desemboca num fantasma de imortalidade.., I;l_,' , , .. ,q! II vida como um simples código. Estes artifícios do terceiro tipo, ao
Com a modernidade, é o segundo encadeamento que se impõe, aind~ IHI"l'vll'emsobre os patrimónios genéticos, surgem como portadores de
que o património conserve também; a título de caução e de um vago elb mutação irreversível.
com um passado volvido, alguns vestígios que evocam o Eférnero intenso t )H primeiros artifícios da medicina antiga supunham já uma brecha na
(objectos de sutura pessoais, artifícios, obras de arte, vestígios sagradô~, ········,1I'oh!1\l simbólica. O desejo contemporâneo de uma imortalidade atravé~
ainda susceptíveis de recriar uma ernoçãol'ê.
n'ldigo, da conservação dos homens como a das coisas, supõem uma
I!tmh,%l radicalmente heterológica, uma perda total da ordem simbólica.
Actualmente, portanto, o perecível, a destruição e a conservaçâê
compensatória, a artificialização sem artifício exercem o seu dommíí
....
sobre a totalidade de um mundo no qual a experiência do Efémero A criatura do doutor Frankenstein encarna a primeira aparição desse
tornou uma experiência solitária, quase incomunicável, insuficiente pari! i'iil\la~made uma imortalidade fabricada pelo homem. O "velho mundo",
servir de referência. . lili!lIi1ficção - o doutor que brinca aos aprendizes de feiticeiro, a sua
Mas a nossa época dá mais um passo ao estender a conservação das';;' .hllnrlla, os seus amigos, o seu amor -, permanece votado à intensidade
coisas à do ser vivo. Outrora, a morte e a decomposição dos corpos eram" 01,'1 Hfémero, marcado aqui por uma sucessão de mortes atrozes. Outros
conjuradas por um objecto, uma imagem, um duplo da morte. Nesse; 1.1ll10spontos acolchoados que conservam a forma simbólica deste mundo
tempo em que a sepultura fazia as vezes de museu, ela era o espelho da':;; I,It'Il\ilsiadohumano. Também a criatura tenta inserir-se nele, entrar na
morte, um espelho que ao terror da decomposição opunha a image ..., 1,H'lII~msimbólica dos homens. Por uns instantes submersa pelo desejo de
tranquilizante de um objecto conservado. Quando o homem cessa de cr, tll'" limada, ela conhece esta vertigem de eternidade antes de ser lançada
na sua alma e na eternidade, quando reduz a vida à vida do corpo, deíx nuubsoluto da maldade. É o negativo do Cavaleiro inexistente: demasiado
de conseguir enfrentar a destruição e a morte. Desvia o olhar e mergulha IUltfncto, nenhum artifício: à noite repleta de amor corresponde o dia
na esperança de uma restauração indefinida. Procura compensar a perdâ,}1 ,1.1 rejeição horrorizada.
da eternidade pela imortalidade artificial. ". Se o romance de Mary Shelley está na origem do único grande mito da
Hoje, todos nós nos deslumbramos com a fecundidade e a facilidade') 11 lude moderna, é porque ele torna concebível o fim de uma certa forma
dos procedimentos artificiais. Podemos esconder a morte, apagar os sinais dI' humanidade e põe em jogo a fascinação e o terror que lhe estão asso-
~\f;
do desgaste, restaurar mais ou menos indefinidamente os corpos - e até,;?! rludos. É certo que, no fim do século do XVIII, o desenlace do romance
criogenizar os cadáveres. As fronteiras entre os corpos individuais, entre;;! ulnda é tranquilizador: o homem triunfa e destrói a sua criatura artificial.

12 Contudo, este domlnio das políticas do património que o Ocidente impõe,


Ll Para alguns, a intervenção no genoma toca no que o homem tem de mais
toda a boa consciência, ao resto do mundo não faz desaparecer algumas modalidades
IiIlHl:Odo,
já que o recebeu dos seus pais, que por sua vez o receberam dos seus e por
mais simbólicas de relação com o passado e com o Efémero. No Japão, por exemplo,
u] fora até ao Pai Criador. Tocar no genoma evoca assim o parricídío, ou até o dei-
o Efémero é objecto de um culto que se inscreve numa forma subtil e "natural" de
ddio: o genoma, nesta representação, desempenha o papel da alma, da essência do
conservação: é bem curto o tempo das cerejeiras em flor, mas ele regressa... homem,

36
37
pOLfrlC' D o PATRIMÓNIO
Hoje, a imortalidade artificial, a conservação de uma matéria ou de um
código, que as bíotécnicas deixam entrever, já não decorre unicamente da
ficção. E este movimento de artíficialízação torna arcaico, para não dizer
impossível, o pensamento do artifício, conduz o homem à perda da sua
alma, enquanto movimento para a eternidade.
Introdução
M.O.
Abril de 2003

U
ma nova forma de paixão pelo passado parece atingir as socieda-
des industriais do Ocidente. Tudo é património: a arquitectura,
as cidades, a paisagem, os edifícios industriais, os equilíbrios
ecológicos, o código genético. O tema suscita um consenso, superficial
mas bastante alargado, já que satisfai sem grandes custos diversas atitu-
des nacionalistas ou regionalistas. Jogando com uma certa sensibilidade
'lI ecológica, ele surge em todo o caso como um contraponto razoável às
ameaças e incertezas do futuro.
Contudo, por detrás das boas intenções e do charme antiquado dos
restos do passado, há que ler um sintoma social e descobrir que ele não
é tranquilízador,
Estes esforços de conservação, apesar da sua multíplícídade, continuam
relativamente irrisórios nos seus efeitos. Eles não se encontram à escala
dos mecanismos das sociedades industriais, destinadas por natureza ao
desenraizamento, à obsolescência e à destruição. Ora o imperativo indus-
trial mantém-se mais do que nunca na ordem do dia, nestes tempos de
competição mundial exacerbada. O imperativo da conservação encontra-se
subordinado a ele e é com frequência contraditório. O eco que suscita é
na realidade' a expressão dolorosa desta 'subordinação e desta contradição.
Um protesto contra uma evolução económica e técnica que impõe a sua
lei a todos - mesmo ao poder político. Uma prática contra-dependente do
consumo e da sua lógica do efémero. Uma reserva relativamente ao que
hoje se vislumbra do futuro e, em particular, uma tentativa de conjurar a
perda da história específica de um espaço nacional que se dilui no sistema
capitalista mundial.
É por isso que esta vontade de conservar exprime muito mais do
que Uma simples nostalgia do passado. Ela participa de um verdadeiro
trabalho de luto relativamente a um mundo em ir~eversível desapareci-
mento. A nós não nos resta senão 'resignarmo-nos ao facto de os objectos,

38
39
após nos terem cercado por todo o lado no dia-a-dia, se escaparem e se eficácia; ainda que as destruições e o esquecimento sejam o produto de
desvanecerem, atacados por uma infinita obsolescência ou disperses nas condições gerais de vida contra as quais nada podemos fazer, sentimo-
vitrinas dos museus. Aceitarmos que práticas culturais, muitas das quais -nos todos vagamente culpados. A partir daqui, basta agitar as ameaças,
subsistiram até agora, desapareçam definitivamente. Bem sabemos que não repartir as culpas, encontrar os bodes expiatórios. Para, finalmente, fazer
é toda a rede de museus e de espaços protegidos que vai salvar grande emergir a figura tranquílízadora e benevolente de um Estado protector e
'coisa do esquecimento, mas mesmo assim... Estes elementos conservados conservador, mais "amável" do que a do Estado-censor.
tornam-se os álibis do esquecimento. Mas a política do património não se reduz a hábeis efeitos de discurso
Há, pois, um certo tom patético no encantamento por um património e de ideologia, que exploram as angústias e as culpabilidades da época,
constituído por alguns vestígios materiais. Prepara-se uma herança, mas permitindo um desenvolvimento real do aparelho de Estado sob a forma
não sabemos ao certo quem serão os herdeiros, de tal forma vivemos de um acréscimo de normas, instituições e novos dispositivos de segregação
assombrados pelo espectro da destruição total. A bomba de neutrões, já e controlo do espaço. Ela tem a capacidade de mobilizar múltiplos grupos.
alguém o disse, simboliza à sua maneira o ano do património: destruir a sociais cada vez mais ameaçados de ano mia. Pois não é só a memória que
vida, mas conservar o material. está em perigo de se perder, é também a identidade. As classes sociais e as
Por conseguinte, os governos dos países ocidentais enriqueceram o seu suas culturas específicas que outrora estruturavam firmemente a sociedade
arsenal de propaganda com um novo artifício: a política do património. desvanecem-se para dar lugar a uma imensa classe média, a uma amalgama
Oportuna manobra de diversão e sucesso inesperado neste período de de grupos sem uma cultura comum bem definida. Para aqueles que já não
dificuldades económicas. O ano do património vem rematar triunfalmente possuem nem território-nem identidade social própria, a única possibili-
o triângulo edipiano começado com o da mulher e o da criança. Por que dade que continua aberta é a da reconstrução de "raizes", de um espaço
não uma década do património para atravessar a crise e tentar alcançar o compensatório fictício no passado, uma pseudo-topia, numa tentativa de
III milénio com uma herança em bom estado? Há quarenta anos, durante o ai recriarem artificialmente as diferenças que o presente já não tolera. O
período de Víchy, "a França tradicional que é preciso reerguer'", a província passado, como a ecologia, torna-se um valor-refúgio. Para quebrar com a
folclórica, surgiam já como os valores-refúgio para os quais se voltavam uniformidade e o funcionalismo da paisagem industrial e das habitações,
as ideologias em declínlo. Mas hoje a retórica do património apresenta-se para as tornar habitáveis, os destroços antigos são o último recurso.
como uma metamorfose muito mais subtil do paternalismo do Estado. A política do património é pois, efectivamente, uma política, no sentido
Antes de mais, responsabilizar. Temos o dever de conservar para trans- mais tradicional da palavra, uma arte de apascentar o rebanho humano,
mitir. Duplo dever, quer face aos nossos antepassados quer aos nossos hoje disperso e reconduzido ao campo tranquilizante de uma ficção: a de
filhos, com que se forja a cadeia que não devemos cortar. Mas um dever uma sociedade supostamente capaz de, melhor do que as outras, conciliar
impossível de cumprir, pois, além das próprias destruições materiais, é a continuidade com a mudança, a conservação com a criação.
o laço vivo das gerações que se encontra hoje à beira da ruptura, quanto Para assegurar esta ficção, as "máquinas de memória" (arquivos, mu-
mais não seja pela separação das crianças e dos avós'. É deste fosso pro- seus, monumentos, cidades protegidas, etc.) estendem os seus domínios
duzido na memória colectiva que a política do património retira a sua de intervenção: ao presente que passa depressa demais, ao que está vivo,
tratado como quantidade de informação; organizam uma hierarquia
1. Philippe Pétain, mensagem de 8 de Dezembro de 1940. mundial dos vestigios: a terra oferecida como museu exposto ao turismo;
2 "Nas sociedades rurais ... as crianças pequenas ficam confiadas à guarda dos afinam as suas estratégias através de medidas de conservação indirecta, de
'velhos', e é destes, tanto ou até mais do que dos seus pais, que eles recebem o legado descenrralização, de autogestão: cada qual é convidado a assumir o estatuto
dos costumes e das tradições de toda a espécie." Marc Bloch, Mémoire colJective, de conservador-associado para autogerir aquilo que no património local
rraditions er coutumes, Revue de synthese historique, 1925, no118-120, p. 79. ainda não é controlado centralmente.

40 41
Através destes novos aparelhos, delineia-se o ideal do Estado moderno:
assegurar para si o monopólio da memória, reduzir a: memória do todo à
memória ínscríta.conservada, autorizada. Escrever, ou mandar escrever sob
o seu controlo, o texto do passado, para aparecer como o único avalizador
do seu sentido, e pô-lo ao serviço da ideologia presente.
I. Os objectos da memória
Não é possível uma oposição a esta política. A sua força vem do facto
de se alimentar de todos os lutos, de todas as nostalgias geradas por um
mundo em desaparecimento, que já não garante um mínimo vit~l de
simbolicidade. De resto, embora não conserve do passado senão fantas-
mas" restos materiais criogenizados, ela é quase sempre a menos má das
estratégias compensatórias, a única solução de urgência possível.
Mas os dispositivos institucionais de conservação não suportam senão
uma memória dura, superficial, e que acaba por ser frágil. Se fizermos um
desvio pelas tácticas individuais e familiares, descobrimos uma memória
simbólica que resiste aos aparelhos heterológicos. mais do que opor-se
aos artefactos do património, esta serve-se deles como de um suporte,
desvia-os do seu uso programado e da sua significação unívoca. Por detrás
da repetição neurótica das atitudes conservadoras, encontramos, como
noutros domíníos - no do consumo ou no da comunicação - a mesma
densidade de artifícios e a mesma presença discreta da dissipação. Não
somos apenas utentes passivos ou disciplinados da conservação do passa-
do. Aprendemos a jogar com os seus simulacros, a apanhá-los por vezes
nas suas próprias armadilhas. Aprendemos também a jogar com os seus
estereótipos que, como no campo da sexualidade, são o sinal de uma
emoção que não se pode dizer senão no modo obsessívo..o que assombra
o pensamento do passado - a morte - encontra na repetição codificada
dos termos o meio de se exprimir num modo paródico.
A obsessão pela conservação do material, do visível e do espectacular
não apaga as artes dam~mória, inúmeras e desconhecidas. Elas transfor-
mam-se em busca de uma nova forma de simbólico que nos permita ainda,
"com todo o mérito, mas como poetas", conservar - e destruir, guardar
na: memória - e esquecer.

42
o f T I C A D o M 6 o

1. A conservação como palimpsesto

e lutar contra o tempo. Procurar subtrair alguma


C
onservar
coisa aos efeitos normais da destruição, da perda ou do esque-
cimento. É também tentar opor-se, tentativa evidentemente
sempre coroada de fracasso, àquilo que é a própria essência do tempo, o
irreversível. Neste sentido muito lato, a conservação pode aplicar-se em
primeiro lugar aos objectos materiais, mas também ao saber, à língua, à
cultura, à própria vida. Pode inscrever-se em representações do mundo,
práticas e instituições muito diferentes. O que dá a tudo isso uma certa
unidade, embora do exterior e de forma abstracta, é essa dimensão de luta
contra os efeitos e a essência do tempo, e também a sombra de fracasso
final que paira sobre tal luta.
É por isso que é possível apreender a conservação no seu conjun-
to como habitus geral de uma sociedade na sua relação com o tempo.
Expor assim as principais linhas de força neste domínio e aproxima-las
de outras estruturas sociais globais. Distinguir particularmente o que
constitui a originalidade da época moderna na sua aparente generaliza-
ção das atitudes conservatórias, e procurar as suas causas nas mutações
da representação, na escalada do Estado, na generalização do modo de
produção capitalista, etc. . .
Esta atitude é tão mais necessária quanto a questão da conservação
nunca e abordada numa perspectiva socio-histórica de conjunto. Ela é
pulverizada em vários campos disciplinares bem estruturados, como a
história, a museografia ou a arqueologia. Aliás, os trabalhos dos espe-
cialistas destas disciplinas caracterizam-se muitas vezes pela sua perfeita
indiferença quanto a esta questão, pela sl.)~inutilidade total no que res-
peita às próprias disciplinas e ao que as fundamenta. Polarizados pelo
seu objecto, segmentados em períodos e em territórios, estes trabalhos
desviam-se da questão da sua origem e do que constitui a própria condição
da sua possibilidade. Esta posição é de resto uma das características das
ciências humanas em geral, que se constroem sobre uma vontade de não
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11

saber o que as funda, a partir de um "buraco negro" na compreensão que


difícil de decifrar. Ele presta-se a múltiplas interpretações e falsificações I1
li
lhes serve de axioma de partida. Veja-se, por exemplo, o estudo crítico
mais ou menos intencionais, pois é da sua própria natureza ser multívoco.
da ciência médica. por J. ClavreuJl. A nossa abordagem da conservação
É nesta condição - a de perder uma parte do seu sentido numa arnbí-
inscreve-se num outro espaço de análise. Aquele que aos poucos vai sendo
guidade constitutiva - que a conservação pode realizar a sua essência,
aberto pelos discursos meta-científicos, oriundos por exemplo da psicaná-
ser o que ela é e o que queremos que ela seja, isto é, um fio imaginário
lise, da epistemologia, da historiografia. Estes discursos não pertencem
que atravessa toda a história das civilizações humanas. E é também por
ao paradigma das ciências humanas actualmente dominantes, pois que
isso que qualquer discurso, sistemático ou ideológico, que queira dar à
eles se legitimam precisamente por explicitarem as "resistências" destas
e oS.Jogos de interesses que elas ocultam. conservação uma significação fechada e datada, poderá elucidar certos
valores da sociedade presente - o último texto do. palimpsesto - mas
Seja como for, está fora de questão propor inversamente uma análise
perderá forçosamente a própria essência da conservação,
sistemática da conservação ou delinear a sua totalidade social com a aju-
Todavia, é impossível tornar de repente legível esta sedimentação de
da de uns: quantos conceitos. Pois o que é do domínio da conservação
intenções e de significações que suportam todas as coisas conservadas.
não constitui um sistema. Falar de um modo de conservaçdo, por exemplo,
Há que adoptar um caminho progressivo, encontrar uma via de acesso a
mesmo em sentido lato e para caracterizar de longe um modo dominante
esta mo nu mentalidade geológica, isolar um fragmento e uma camada do
de comportamentos e de atitudes, não é legitimo. O recurso à noção
palimpsesto, explorar todos os seus aspectos antes de os recolocarmos no
marxista de modo de produção ou de modo de normalização pode ser
seu contexto histórico e social.
útil, desde que nos acautelemos relativamente ao seu poder redutor, para
O fragmento que escolhemos a titulo de introdução caracteriza-se antes
caracterizar configurações relativamente homogéneas. A conservação não
de mais pela sua pertença à época moderna e ao Ocidente industrializado.
dá azo, mesmo de um ponto de vista externo e global, a tais abstracções
Isto é, a sociedades que partilham certas estruturas e valores sociais gerais
simplificadoras. Pois ela está destinada à sedimentação, à amálgama, à
aos quais elas devem o seu carácter excepcional na história das civilizações:
hibridação até, de dispositivos, de textos e de representações oriundos
o reconhecimento dos valores escolhidos pelo ser humano individual,
de períodos históricos profundamente diferentes, saídos de genealogias
isto é, o individualismo, por oposição ao que L. Dumont chama o holismo,
distintas, obedecendo por vezes a lógicas. divergentes. Está destinada a
para designar as sociedades que valorizam em primeiro lugar a ordem e
isso pela Sua lógica interna mais profunda: porque ela visa e atinge por
a conformidade de cada elemento à sociedade tomada como um todo',
vezes uma duração muito longa, alguns objectos ou instituições atra-
a predominância da materialidade (a essên~iados seres reduzindo-se ao
vessam numerosos períodos históricos, mudando de Significações ou
que é material e visível) e a sua inscrição no desenvolvimento industrial
sobre-impondo-as, e cheguem até nós como palimpsestos cujo sentido
e tecnocrático, paralelamente, o apagamento, ou o desaparecimento
só poderia ser fundamentalmente múltiplo. A instituição da colecção,
I mesmo, de elementos transcendentes, heterogéneos à ordem social, que
por exemplo, é extraordinariamente antiga, pois parece remontar a umas
2 contrariamente resumiam o real das sociedades holístas. A modernídade
dezenas de milénios ; a do museu remonta pelo menos à Antiguidade.
caracteriza-se finalmente, e mais particularmente, na nossa perspectiva,
Há uma filiação segura entre estas formas ancestrais e aquilo a que hoje
por um distanciamento - e um afastamento - em relação ao passado, ou
chamamos colecções ou museus, mas ao mesmo tempo elas adquiriram
seja, também aqui por uma separação temporal nítida, desconhecida da
na idade moderna uma significação radicalmente diversa. É por isso que
maioria das sociedades tradicionais.
o sentido do que é conservado e das práticas de conservação é sempre
Este enquadramento na modernidade conduz, por conseguinte, muito
naturalmente, a um enquadramento mais estreito: da conservação não
I J. Clavreul, L'ordre médli:al,Seuíl, 1978.
2 Cf. A. leroi-Oourh"an, Préhistoire de I'art oCcidental, Paris, 1971.
l L. Dumont, Homo aequalis, Oallimard, 1977, p, 12.

46
47
reteremos primeiramente senão a sua componente mais simples, a que POLrTICA D o PATRIMÓNIO

se prende com os objectos materiais, excluindo o que é imaterial e ne-


cessàriamente colectívo (a língua, a cultura, as instituições ...). A análise
será depois e principalmente focalizada pela maneira como os objectos
conservados permitem jogar com a temporalidade, e isto antes de tudo ao
nível mais individual que é possível isolar. Tal é pois o objecto local que 2. As quatro formas da conservação
nos servirá simultaneamente de introdução ede pedra de toque: a conser-
vação material, nas suas relações com a temporalidade e com a ideologia

O
individualista. Fragmento de um fresco infinitamente mais vasto, mas destino habitual das coisas é envelhecerem sob o peso das degra-
i~dubitavelmente situado no cerne da nossa modernidade. dações e perderem-se na ínsígniflcância. Apenas alguns objectos 'li

não envelhecem: tornam-se antigos. Outros ainda parecem colo- Ili'


cados, desde a sua origem, ao abrigo dos atentados do envelhecimento. Estes li,

objectos singulares são investidos dos privilégios da conservação: rodeados


de cuidados, guardados e examinados, geralmente afastados de qualquer
função utilitária. Embora não tenham uso no sentido vulgar do termo,
acontece frequentemente que o valor económico destes objectos se torna
extraotdinariaménte 'elevado. Alguns escapam até à ordem do valor eco-
nómico e apresentam-se como inalienáveis. Unia distinção empírica separa
assim os objectos nobres ou enobrecidos pelo tempo, ou por qualquer outra
causa, geralmente individualizados por um nome próprio, da infinidade de
todos os outros objectos anónimos e designados genericamente.
Esta separação em duas categorias raramente é analisada. Embora im-
precisa e instável, ela é tratada como uma fronteira que se impõe a priori,
como urna evidência. Pois estas categorias parecem agrupar coisas que
pertencem a ordens diferentes. A primeira não é decerto homogénea, mas
a constelação de objectos que a constitui parece organizar-se, estruturar-
-se em torno de alguns modelos: o objecto de arte, o objecto sagrado, a
antiguidade, etc. Apesar da sua diversidade, eles são todos essencialmente
da ordem do simbólico, e embora não exista uma análise uníficada destes
objectos-modelo, uma problemática comum inspira as diversas abordagens
dos mesmos. A segunda categoria agrupa sobretudo as produções econó-
micas e, mais geralmente, os objectos unitários. Neste caso, os objectos já
só surgem através dos sistemas ou dos processos: abordagem económica
da produção e do consumo, análise etno-tecnológica ou semiológica do
sistema dos objectos, problemas ligados à sua destruição e à acumulação
do que aparece como desperdício.
As aparências conduzem, portanto, a uma divisão simplista da reflexão.
De um lado, examina-se a relação de conservação com o objecto indivi-

48
49
dualmente especificado; do outro, estuda-se os processos de produção,,';;;.,
consumo, destruição. Esta separação entre a conservação do prestigiosOi>;W;!' rejeitará aquilo que doravante era suposto dispensar - os emblemas do
que é da ordem.do simbólico, e a produção/consumo/destruição do:g;!fi' Antigo Regime -, mas com o mesmo gesto criará o próprio lugar do museu
vulgar, que pertenceria à ordem económica, é no entanto problemática.,' onde aquilo que ele aparentemente repeliu encontrará um novo espaço
Há que ver em primeiro lugar que ela é constitutiva de uma ideologia, e novas.funções que lhe serão úteis. Da mesma maneira, as instituições
essencial ao bom funcionamento da sociedade industrial. Esta ideologia\ imporão a língua francesa e repelirão os dialectos, ao mesmo tempo que
pode aceitar e até recuperar muitas correcções, mas não pode tolerar que' os constituem em objecto de estudo. Assim, o que já não é directamente
se ponha em causa o princípio de obsolescência dos seus produtos. É assim activo na produção, nas instituições ou na língua nunca fica perdido,
que ela pode adaptar-se ao slogan "small is beautiful", mas rejeita abso- sendo antes fechado e tra1l$formado para constituir um universo Outro que
lutamente "old is beaunful" aplicado ao objecto actualmente produzido, serve de referência valorizante. .
para o reservar exclusivamente ao que não é resultante da indústria, pelo A outro nível, a separação enfre a conservação e a produção! destruição,
menos da indústria presente. A separação em causa torna assim compa. como qualquer artefacto da representação, barra o acesso a uma com-
tíveís, ao colocá-los em planos distintos, o desenvolvimento económico. preensão mais profunda - e mais correcta - do real. Ela pbscurece
ligado ao consumo e à obsolescência acelerados, por um lado, e uma certa particularmente o problema da conservação, pois não trata do objecto
regulação simbólica através da conservação, por outro. . senão através de dois modos de apreensão que se excluem um ao outro:
,
Este desenvolvimento e esta regulação são não Só compatibilizados ora como representante de um sistema ou de um processo no qual a sua
como ainda se reforçam mutuamente: o objecto banal, produzido em singularidade se perde; ora como um objecto singular, cuja conservação
série pela indústria, tem por ideal simétrico,no imaginário social, o se explica unicamente por essa singularidade, sendo neste caso o sistema
objecto autêntico, precioso, artesanal - e em particular o obiecro antigo. da conservação que fica em parte obscuro.
O primeiro faz referência ao segundo através da publicidade ou do acon- O sintoma mais manifesto desta obscuridade é o carácter particular-
dicionamento para se ornamentar com uma certa dimensão simbólica, para menteapodíctico e estereotipado do discurso sobre-a conservação. Trata-se
fazer acreditar numa continuidade natural. Mas o referente é ao mesmo de um discurso velho, ele próprio conservado, corno se o objecto de que trata
tempo posto à distância, colocado fora do campo económico. Referência tivesse desbotado sobre ele. Este facto é particularmente nítido no discurso
sem interferência. Inversamente, a insignificância e a obsolescência vul- institucional ou jurídico: todas as medidas administrativas ou jurídicas
gares do objecto industrial exaltam a perenidade das coisas que escapam relativas à conservação, desde o relatório do abade Grégoíre de 1793, que
à dura lei do económico. inaugura uma verdadeira política neste domínio, justificam os seus objec-
De uma maneira geral, a posição de um objecto no sistema da conser- tivos com os termos vagos "de interesse nacional do ponto de vista da arte
vação é ao mesmo tempo o índice do seu estatuto na produção. Quanto' ou da história", sem nunca precisarem mais nada. É certo que é habitual
menos uma coisa está inserida na lógica desta última, menos vulnerável ela que um discurso ínstítucional se mantenha à superfície das coisas, mas
é à obsolescênda. O que permite, por exemplo, que um objecto industrial este está particularmente petrificado em valores - a Beleza, a História, a
deixe de envelhecer para passar a ser antigo (e que a sua desvalorização Natureza, a Arte - e em formas que já tinha no início do século XIX. Esta
temporal se inverta, através duma valorização) é em primeiro lugar a in- permanência na auto-justificação disfarça mal a fragilidade de um discurso
terrupção da sua produção. A conservação estabelece-se assim na peugada que, fora da sua tonalidade ideológica, nada-diz sobre as funções reais da
do Sistema produtivo e este último age neste espaço da conservação que conservação e das suas novas modalidades nas nossas sociedades. Ele limita-
ele constitui como um vínculo diferente. mas necessário. A produção -se a combinar as injunções, as proibições e as ameaças, e este estatuto de
repele a conservação, mas ao mesmo tempo fá-Ia servir os seus fins. Tal autoridade faz-segraças ao poder de interditarqualquer elucidação. I
processo de afastamento é geral. Durante a Revolução Francesa, o poder Fora destes discursos institucionais e ideológicos, a análise "sábia"
da conservação é, ela também, invalidada por múltiplos pressupostos.

50
5t
Reconhecendo a universalidade do fenómeno através da história e das priori em limites que lhe dão a sua coerência artificial e a interditam de
civilizações, ela opta geralmente por explicá-lo pela transcendência de se aplicar por extensão aos mecanismos gerais da conservação.
certos objectos e das relações que os baseiam. Estes objectos consagra- É por isso que, seguindo um caminho complementar e por vezes OpOS-
dos surgem assim como meios de intermediação entre a colectividade e to, nos devemos colocar antes de mais nessa zona de sombra que parece
certas entidades desproporcionadas em relação à ordem que regula a sua marcar a separação entre vários mundos e várias classes de objectos. No
vida quotidiana. Eles materializam e tornam visível um princípio de centro de um território pouco explorado, onde a conservação não é dada
transcendêncía, um ferrolho simbólico que contribui para manter a coe- à partida como um fenómeno colectivo, e onde se deve evitar preconceitos
são e a ordem da colectividade. Portadores desta função, estes objectos acerca do papel dos factores simbólicos e económicos.
são, eles também, excluídos da ordem comum das coisas, radicalmente Esta atitude cria imediatamente uma necessidade de clarificação suple-
heterogéneos (no sentido de Bataílle) a esta ordem. Esta heterogeneidade. mentar. Em qualquer processo de conservação podemos distinguir uma
interdita a sua reinserção nas práticas comuns da vida social; ela explica componente de valorização e uma componente de efectivação. Cada uma
que eles só possam, ou ser destruidos (ritualmente), ou conservados com destas componentes pode revestir uma dimensão individual ou colectiva.
todo o cuidado. Com efeito as coisas só são conservadas por apresentarem um valor no
Esta análise dos objectos conservados, porque singulares no campo sentido mais lato, mas esta valorização pode ser apenas individual ou
social e garantes duma função activamente simbólica, sagrada até, é útil, então ser reconhecida ao nivel de um grupo social mais ou menos vasto.
mas ainda insuficiente e local. As práticas e os espaços de conservação podem ser igualmente colectivos
Útil, pois ela coloca em primeiro plano esta função de ferrolho sim- (os objectos conservados são neste casa bens colectivos) ou estritamente
bólico que exercem certos objectos, função que o imperativo actual da privados. Podemos, pois, imaginar quatro figuras-limite, quatro modelos
conservação tende a camuflar, amalgamando todos os objectos numa de conservação entre os quais a realidade necessariamente oscila.
única categoria, na grisalha de um inventário geral. Mas, inversamente, A conservação colectiva/social, efectivação colectiva de uma valoriza-
a permanência de certos objectos singulares não deve ocultar o sistema ção social, representa a forma mais tipificada e mais tradicional, ilustrada
da conservação, e o nascimento, na época moderna, de uma política do por exemplo pelo museu ou pelo monumento. É ela que serve implicita-
património. mente de referência à maioria das análises, e que está no primeiro plano
Insuficiente, pois ela não esclarece a origem e a função de um princípio da política do património na época moderna.
de transcendêncía, e a necessidade de o materializar através de objectos. A conservação privada/social, efectivação privada de uma valorização
Por outras palavras, ela indica o seu ponto de partida, para nunca mais social, é nomeadamente ilustrada pela colecção particular de obras de
regressar a ele, permanecendo assim largamente tautológica. arte ou pelo entesouramento de valores económicas. Ela' diz igualmente
Local, porque ela não diz verdadeiramente respeito senão a uma respeito a todos os objectos antigos que se introduzem, hoje cada vez
ínfima fracção das coisas conservadas. Por que razão se conserva um de- mais, no domínio dos bens comuns de consumo. Quase sempre a apro-
terminado objecto que se considera ter sido sagrado numa sociedade hoje priação privada faz com que a valorização seja ela própria infiltrada por
desaparecida? Por que é que o tempo lhe volta a dar um valor particular, elementos individuais. Por outro lado, as fronteiras entre espaço privado
como o dá a objectos banais conservados por acaso? Por que é que certas e domínio público são muito permeáveis a elementos valorizados social-
coisas são preciosas para uma pessoa e, de alguma forma, heterogéneas ao mente. Os objectos de arte passam da colecção particular ao museu, e
nível individual, e sem nenhuma significação colectiva? Como explicar ao este tem origem naquela (tal como a banca nasceu da acumulação de
mesmo tempo a permeabilidade das fronteiras entre o colectivo e o indivi- riqueza privada).
dual, a ordem simbólica e a ordem económica? A estas questões, a análise A conservação colectiva/individual não constitui um modelo efec-
convencional não pode dar qualquer resposta, visto que ela se fechou a tivamente realizado. Não que represente uma verdadeira contradição

153
S2
nos termos, já que a conservação individual pode ser, e é efectivamente, de segredo, de esquecimento e de astúcia que, precisamente, tornam este
objecto de um reconhecimento colectivo. Mas o recurso a um espaço quotidiano vivível. Ao mesmo tempo, elas propõem uma nova maneira
colectivo para objectos de interesse individual não tem significação nem de ver as forças que se encontram em acção nos dispositivos colectivos
utilidade prática. Aproximamo-nos no entanto de um modelo destes de conservação, e na ideologia que lhes está associada.
relativamente aos objectos que apresentam, à parte um interesse princi- Ponhamos assim a questão: por que é que se conservam objectos sem
palmente individual, uma eventual significação colectiva (arquivo público valor colectivo (económico ou simbólico) reconhecido? Tal questão focaliza
de documentos privados).
a investigação sobre um espaço de práticas reduzido e demarcado artifi-
A conservação privada/individual, última divisória desta classifica- cialmente (para as necessidades da análise) no conjunto da conservação
ção, só pode representar, uma situação-limite; isto porque a valorização privada. Pôr em evidência, neste conjunto, factores não colectivos, é tentar
individual depende em última instância de atitudes e de valores sociais isolar o grau mais fraco de interacções indivíduo - sociedade - partindo
gerais, quanto mais não seja o reconhecimento do individualismo. Mas do principio de que não é possível atingir um grau zero de interacção.Ao
tais factores sociais não intervêm directamente nas opções individuais. Eles fazê-lo, afastamos uma infinidade de objectos e de factores. Dentre todas
impõem certas estruturas mas deixam a essas opções múltiplas margens as coisas conservadas em espaços privados, a maioria tem efectivamente
de manobra no interior destas estruturas. Por exemplo, a colecção de um valor económico (eventualmente ligado a uma função de especulação
objectos (que em si mesmos podem ser insignificantes,',caixas de fósforos ou de protecção contra as desvalorizações; o entesouramento do ouro é
ou porta-chaves) constitui-se a partir de uma regra que o .indivíduo escolhe disso um exemplo) ou / e um valor simbólico colectivo. Este valor colectivo
livremente. Liberdade de escolha que o museu interdita absolutamente, é muitas vezes a causa principal da conservação; ele é também, em muitos
mas liberdade que se inscreve perfeitamente no individualismo tolerado casos, uma razão secundária ou uma racionalização que oculta uma razão
pela modernidade, e tal como o vamos encontrar na base do mercado ou mais profunda e menos simples. Há também todos os objectos antigos
do funcionamento político.
conectados com o consumo corrente, tais como móveis de época, antigui-
Estes quatro modelos de conservação não têm o mesmo estatuto quan- dades diversas, automóveis antigos, etc. Estes objectos têm em geral um
to à sua representatividade das práticas reais. Mais do que categorias con- valor simultaneamente económico e simbólico, mas sobretudo, de certa
sumadas, devemos considerá-los como pólos a partir dos quais qualquer forma, um valor semiológico (e portanto também colectivo).
objecto conservado pode ser referenciado. Na geografia coordenada por Trata-se, pois, de afastar provisoriamente todos os objectos desta na-
estes pólos, certos'objectos desenham trajectórias que passam por exemplo tureza e de examinar a situação-limite, mas todavia real, do "objecto sem
da conservação ,privada/individual à conservação privada/social, para qualidades" - sem qualidades reconhecidas no campo colectivo -, mas,
acabar na conservação colectiva/social.;
ainda assim, conservado. Esta conservação privada/índívidual constitui
É pelo estudo de tais trajectórias q!e é, possível destrinçar os factores uma parte - a mais intima - da marca material de um indivíduo ou de uma
que actuam na amalgama complexa dos mecanismos de conservação. E família, a sua inscrição ídlossíncrásíca na imensa desordem das coisas.
é na vizinhança da conservação privada/individual que se pode definir A priori esta marca não é muito legível, também ela se apresenta ini-
melhor a origem de alguns destes mecanismos. Não que' esta conser- cialmente como um conjunto desordenado. Mas, seja 'qual for a diversi-
vação ocupe o primeiro lugar, histórica, ou logicàmente, nem que seja
dade das coisas conservadas, elas partilham desde logo essa característlca .•.•."',~.
independente, como acabamos de ver, de factores' colectivos. Mas estes comum de serem desprovidas de valor colectivo, sem uso aparente, e \
factores não vêm baralhar totalmente os jogos que a governam ao nível todavia possuídas e protegidas, numa suspensão de destruiçãO, unicamente
mais microssocial e quotidiano. Jogos discretos, quase imperceptíveis, pelo por vontade do proprietário. Este laço constitui-as dlscretamente em co-
que sempre negligenciados pela análise histórica ou sociológica. E, no lecção, ou melhor, numa constelação, fundada numa unidade que remete
entanto, estas práticas furtivas e ordinárias gerem no quotidiano espaços
directamente para o sujeito que a mantém assim suspensa,

54
5&
P A T R
M 6 N , o
OLIT'C'
D o

Traçar o mapa desta constelação doméstica, torná-la legível, é ao mesmo


tempo constituir uma tipologia de objectos e desenhar as relações que
se estabelecem entre estas classes.constituídas. Descobriremos então que
não conservamos, ao acaso, uns quaisquer objectos banais, mas que, pelo
contrário, respeitamos estruturas mais ou menos subterrâneas. 3. Da colecção
Trazer à luz estas estruturas não tem somente o interesse de definir
melhor os comportamentos individuais. É também, e mesmo sobretudo,
uma forma de chegar, a partir desses comportamentos, a figuras de con-
objecto de colecção apresenta-se quase sempre disfarçado. Orna-

O
servação colectiva tais como o monumento e o museu. Evidentemente,
a este respeito há que nos precavermos de cair no erro, simétrico do do de funções económicas (colecciona-se objectos de valor como
anteriormente denunciado, de querer explicar estas formas colectivas meios de entesouramento) ou carregado de valores culturais,
unicamente a partir de factores individuais. Forças colectivas actuam a estéticos ou científicos, o objecto de colecção parece perder a sua especi-
todos os níveis, não existindo, aliás, nenhum nível puramente individual ficidade. Mas também acontece que ele entre no campo da: conservação
(essa ficção não passa de facto de um modelo de análise). Trata-se unica- privada/individual, e apareça então despido de tudo o que habitualmente
mente aqui de estudar, num duplo elo de interdependência, o nível que ihe pode servir de cofre ou de cortina. Trata-se, por exemplo, das colecções
permite passar das estruturas da conservação privada/individual às da de objectos colectivamente insignificantes, como as colecçõrs de porta-
conservação colectiva/social. chaves, de anéis de charutos, de mata-borrões publicitários, etc- -.
Entre estas estruturas, uma primeira figura é facilmente referenciável: a
da colecção. O comportamento do coleccionador, pela sua singularidade e
universalidade, suscitou tantas análises que bastará relembrar aqui os seus Colecção e repetição
principais aspectos característicos. Isso permitirá seguidamente examinar
a filiação, teórica e histórica, da colecção relativamente ao museu, ou mais Numa situação assim destituída de todos os outros factores parasitas,
exactamente o elo complexo e reciproco entre estas duas formas. o que aparece em plena luz, e na sua abstracção pura, é o elo que liga
Há uma outra estrutura menos fácil de adivinhar. Ela agrupa objectos cada objecto à colecção de que faz parte. É certamente este elo, através
aparentemente.insignificantes e heteróclitos, porém interligados por um das diferentes estruturas que põe em evidência, que está na origem desse
fio vermelho que acaba sempre por os associar a uma situação de carên- outro elo que prende a colecção ao coleccionador.
cia ou de luto. A estes objectos chamamos objectos de sutura. Entre eles,
• Cada objecto da colecção é singular; desejado, procurado, adquirido
pode-se distinguir um conjunto mais homogéneo, o dos objectos memoriais.
ou obtido por si mesmo. Se possível, ele deve ser autêntico, único, perfeito.
Estes últimos de algum modo constituem monumentos domésticos, na
Mas, ao mesmo tempo, ele só encontra a sua significação essencial na
medida em que a partir deles se desenha a concatenação que conduz aos
série onde se insere. Se ele é único no universo dos objectos, ele é, a outro
monumentos vulgares.
nível, intercambiável com todos os outros objectos da colecção.
É por isso que,ao mesmo tempo que confere a cada um dos seus ele-
mentos a sua significação essencial, a série amputa-o igualmente de uma
parte da sua Singularidade. Uma tal relação dialéctica entre o elemento
e a série simula a do sujeito humano e da colectividade a que pertence.
. Cada homem é e deseja ser único no mundo e ao mesmo tempo ser

87
56
reconhecido na sua singularidade por todos os outros membros da
colecção surge adjacente à do consumo corrente e é contemporânea do
colectividade. Mas este reconhecimento como sujeito da colectividade,
seu desenvolvimento'. /
como para o objecto de colecção, faz-se acompanhar de uma perda de
• Mas a colecção joga também, a um outro nivel, com o tempo: ela
singularidade. O jogo da colecção pode assim interpretar-se como uma
abole imaginariamente a sua írreversíbílídade, ao transformar uma série
simulação desse outro jogo dialéctico entre o Estado moderno e I) sujeito,
temporal num conjunto que pode ser percorrido (pelo olhar, pelo pen-
e daquilo que ele comporta de alienação radical (no sentido de Hegel)
samento) em todos os sentidos e de modo reversível. No agrupamento
para este último. Não é talvez por acaso que no Ocidente a colecção
espacial dos objectos realiza-se até um duplo apagamento da Irreverslbíli-
se desenvolve como institUição social na idade clássica, no momento
dade: a da cronologia de introdução dos objectos na colecção (portanto, a
em que os valores do individualismo e a forma correlativa do Estado
moderno estão a nascer, do tempo' vivido pelo coleccionador); e a dos períodos históricos distintos
a que os objectos pertencem. Para Baudrillard, o móbil psicológico da
• Na constituição temporal de uma colecção, supõe-se que cada objecto
colecção situa-se essencialmente nesta simulação regressiva, neurótica, de
recentemente obtido satisfaça o desejo que ele desencadeou. Evidente-
um tempo cíclico que substitui o tempo real: "A colecção representa o
mente, tal desejo não o pode ser de forma duradoura, pois a sua causa
perpétuo recomeço de um ciclo dirigido, em que o homem se entrega a
não é o objecto, mas antes a falta, radical e irredutivel, do próprio sujeito.
cada instante e infalivelmente, partindo de um termo qualquer e seguro
Mas o malogro da satisfação induzido pelo termo n da série é oculto pelo
de voltar a ele, o jogo do nascimento e da morte2• O jogo da colecção permite
desejo já desencadeado pelo termo n + 1. Dai a necessidade deste termo.
assim ultrapassar simbolicamente a existência real e o seu deslize írrever-
n + 1, de um termo sempre ausente e desejado, que simboliza por si só
sível para a morte. Nesta perspectiva, a colecção pode ser comparada à
o processo temporal da colecção, o qual simula ele próprio o jogo do
viagem, pois também esta permite uma deslocação reversível e simula um
desejo: desejo do objecto n, satisfação fugaz, retoma da corrida do desejo
regresso, bem sucedido no espaço e falhado no tempo.
sustido pelo objecto n + 1, etc. Há na mania da colecção um sintoma
Estas relações estruturais têm em comum o facto de permitirem simular,
próximo do da melancolia: o melancólico não sabe aquilO que perdeu, o
reactivar ou ultrapassar simbolicamente a falta do sujeito que as põe em
coleccionador não sabe aquilo que ganhou. O primeiro estabelece uma
prática: a colecção, na sua própria estrutura (pouco importam os objectos
identificação narcísica do seu eu com o objecto abandonado; a colecção
é o equivalente narcfsico do eu do coleccionador., em causa, pelo menos a este nível de generalidade), é este jogo (paixão) de
repetição cumulativa, através do qual o coleccionador conjura simbolica-
Deste POnto de vista, o objecto de colecção é vítima do mesmo engodo
mente os aspectos da vida e do tempo reais que não consegue suportar. Isto
do desejo que o vulgar objecto de consumo. Deste esperamos também
quer dizer que a colecção pode ser interpretada como um sintoma que se
uma completa satisfação, persuadindo-nos de que ele responde apenas
inscreve no campo da compulsão de repetição, senão ao nlvel da psicopatologia
a necessidades, o que nos permite continuara desconhecer a' nossa
carência radical, que ele apenas vem ocultar. O malogro da satisfação
1 Sobre a função do objecto de consumo como engodo do desejo sob a máscara
completa racionaliza-se de outro modo (geralmente através de qualquer
da necessidade, cf. M. Ouillaume, Eloge du désordre, Gallimard, 1978, p, 132-136. O
manipulação ou pressão da publicidade, dos produtores, da sociedade ...),~
objecto de colecção deveria ter chamado a atenção dos economistas uma vez que
mas acaba por induzir uma fuga para a frente mais ou menos análoga aparece como um objecto singular no seu campo conceptuah ele tem um' valor de
para novos bens de consumo, que supostamente respondem melhor às uso (individual) e não um valor de troca (e no entanto ele pode ser raro). O paradoxo
necessidades. Há" portanto, no consumo, o mesmo processo de repeti- deve-se ao facto de a sua posse não poder reduzir-se de modo algum à racionalização
ção que na conservação, só que mais dissimulado (pela necessidade) e em termos de necessidades (como é abusivamente o caso com o objecto de consumo),
mais abstracto (os objectos não se acumulam e não permitem "jogar" estando antes ligada directamente ao jogo do desejo. Isto quer dizer que tal paradoxo
lança uma luz perigosa sobre todo o alicerce da economia ortodoxa.
com um conjunto). Mais uma vez aqui não é por acaso que a figura da
2 J. Baudríllard, Lesysttme des objets, Denoêl/Gonthter, 1968, p. 115.

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59
concreta, pelo menos ao nível da elaboração teórica. Sem entrarmos em antes uma teoria dos conjuntos (por oposição às séries, que são conjuntos
mais detalhes, esta rápida abordagem psicanalítica vai ajudar-nos agora a ordenados temporalmente) de objectos heterogéneos relativamente à ordem
precisar uma outra perspectiva, a da colecção como instituição social. social", A unidade destes conjuntos não resulta da sua elaboração ao longo
do tempo; ela é o reflexo directo das representações sociais que impõem
certas categorias de objectos, e não o de uma estrutura psicológica indi-
Colecção e museu
vidual e largamente independente da natureza das coisas coleccionadas.
Não se encontram, aliás, nos conjuntos constituídos especialmente para
Com efeito, parece natural aproximarmos uma prática largamente 'o público, nenhum dos móbeis psicológicos que possam "apanhar na
individual (embora sob a dependência de factores culturais gerais) da ins- armadilha" esse público, como o fazem com o coleccionador (a não ser
tituição social, muito antiga, quase universal, da colecção. Historicamente, de forma muito atenuada e indirecta). Nem o elo dialéctico entre cada
os primeiros museus foram muitas vezes criados a partir, de colecções elemento na sua singularidade e a série que o engloba. Nem a simulação de
privadas. Por outro lado, a definição de colecção, tomada de um modo um tempo imaginário irreversível. Nem sobretudo o curso do desejo sem-
mais geral, não introduz uma distinção nítida entre espaço individual pre dirigido para o termo seguinte: pelo contrário, a instituição procura
e espaço colectivo. A que K. Pomian nos propõe, por exemplo, recobre apresentar as suas colecções como conjuntos completos. Não há nada no
um largo espectro de situações: "Qualquer conjunto de objectos naturais museu, por exemplo, que possa oferecer ao seu visitante um domínio (uma
ou artificiais, mantidos temporaria ou definitivamente fora do circuito possibilidade de simulação) sobre e através dos objectos apresentados. Ele
das actividades económicas, sujeitos a uma protecção especial num local não possui estes objectos, não decide sobre as regras que os constituem
fechado preparado para este efeito, e expostos ao olhar."! Tal definição como conjuntos, não segue o desenvolvimento desses conjuntos, etc, Entre
adequa-se às oferendas funerárias, aos objectos sagrados, às antlguídades, o coleccionador e o museu interpõem-se o conservador e as suas regras,
às obras de arte, e praticamente a todas as formas de colecção. que filtram tudo quanto na colecção "convida ao prazer".
Na realidade, a maior parte das análises aplicam-se implicitamente à Dever-se-à por conseguinte pôr definitivamente de parte a colecção
colecção como instituição, isto é, ao que decorre da conservação privada/ privada/individual e considerá-Ia como um dispositivo marginal reflectin-
social ou colectiva/social, e eventualmente à fillação entre estas duas do de longe a escalada de valores do individualismo ou, mais precisamente,
formas de conservação. Em contrapartida, a colecção privada/individual, como um sintoma/simulação dos mecanismos do consumo e do Estado
forma cuja análise quisemos primeiramente privilegiar, está afastada das moderno? O museu aparecerá então, na época moderna, na linhagem de
investigações sociológicas ou históricas. Embora tal forma seja evocada uma longa genealogia, isto é, saído afinal dos conjuntos de objectos hete-
por Pomian desde o início do seu. artigo, o autor nunca mais voltará a rogéneos do passado, mas largamente (e autoritarlamenre) colectívízados,
estudá-Ia. A situação de objectos insignificantes coleccionados por um para restabelecer em um vínculo social, um consenso geral conforme à
indivíduo não lhe interessa. Esta exclusã~ é paradoxal, pois tal situação ideologia da sociedade democrática., Objectos esses, ao mesmo tempo,
realmente ilustra, no estado puro, o mecanismo interno da colecção tornados visíveis para se inserirem no novo paradigma da visibilidade que
enquanto série constituída termo a termo.
O paradoxo disfarça, sob o termo de colecção, 'uma confusão de no- 4 Pomian não usa a noção de heterogeneidade mas a de invisibilidade, à qual ele

ções. A quase totalidade das análises do fenómeno social da colecção _ e a contere progressivamente uma significação abstracta. O que vai dar mais ou menos ao
de Pomian em particular - não propõem uma teoria geral da colecção, mas mesmo, pois os objectos mediadores entre o visível e o!invisivel, que são 05 objectos
privilegiados das colecções, podem também ser qualificados como heterogéneos, O
invisível é, com efeito, aquilo que está muito longe no espaço ou no tempo, ou ainda
3 K. Pornían, "Entre I'lnvisible et le visible: la collection", Libre, n03, Pavor, que não tem materialidade. Portanto, é afinal aquilo que não tem comparação com
1978, p.6.
a ordem quotidiana de uma sociedade.

60 61
caracteriza a modernidade. "O museu surge como uma das instituições radical do sujeito. Podemos então arriscar a hipótese de que estes dois
cuja função consiste em criar um consenso em torno desta maneira de modos de marcação, apesar de culturalmente muito diferentes, são on-
opor o visível ao-invisível que havia começado a desenhar-se por volta de tologicamente idênticos; que a carência radical do sujeito é equivalente,
finais do século XIV, e, portanto, em torno de novas hierarquias sociais, ao nível individual, ao surgimento do heterogéneo no campo social. A
justificando-se a posição privilegiada que tem no seu seio através da relação luz desta hipótese, não é o museu que aparece como o prolongamento
privilegiada que tem com 'o novo invisível. Por outras palavras: os museus da colecção; é antes esta que aparece como uma nova forma cultural de
vêm substituir as igrejas enquanto locais onde todos os membros de uma museu; como museu doméstico, que o reconhecimento do indivíduo
sociedade podem comungar na celebração de um mesmo culto."! como valor social veio tornar concebível e legítimo. Em vez de organizar
A genealogia parece-nos, na realidade, mais complexa. Ela apresenta uma simbolização material de um invisível imediatamente colectivo, a
ramos distintos, ao mesmo tempo que uma híbrídação que parece pro- modernidade propõe-se assim colectivizar as suas stmbolízações ou os
duzir-se na época moderna, nomeadamente no. século XIX. Existe sem seus sintomas individuais.
dúvida por um lado uma filiação directa entre a igreja e o museu pela
via da colecção particular de objectos de valor, fílíação que regista as
mudanças da relação da sociedade com o visível e o invisível. Mas, por
outro lado, a colecção privada/individual, a que inscreve o mecanismo
próprio da colecção, vai-se separando progressivamente da colecção tra-
dicional e começa a ser reconhecida socialmente. O objecto vulgar faz a
sua entrada na conservação, e a literatura reconhece uma nova paixão, a
do coleccionador, seja qual for o objecto desta paixão. Ao mesmo tempo,
o universo das coisas cuja acumulação é considerada perfeitamente legí-
tima alarga-se consideravelmente. São procurados e valorizados objectos
cada vez menos antigos, e o mesmo acontece com objectos simplesmente
pitorescos. Os critérios de valor estético tornam-se menos restritivos e mais
vagos. Os próprios museus abrem-se a um espectro cada vez mais amplo
de objectos, aceitando ínclusívamente colecções desde que a sua regra de
constituição (e não a natureza das coisas conservadas) seja suficientemente
singular. Este alargamento contribui para uma crescente legitimação da
prática individual da colecção pela colecção, de tal maneira que entre esta
prática e o museu tradicional se vai desvanecendo uma franca ruptura
de continuidade.
Tal apagamento, que age sobretudo ao nível da racionalização e da
legítímação da componente neurótica da colecção pura, é ao mesmo
tempo o sinal de um movimento mais profundo. O que é conservado no
campo colectivo remete para o invisível, para o heterogéneo. A prática
da colecção pura é um modo individualizado de expressão da carência

5 Pomían, op, cit., p. 53.

62
63
POLITICA D o P A T R M 6 N o

4. Objectos de sutura

A
estrutura de conservação que queremos agora examinar carac-
teriza-se antes de mais por uma ambivalênciai uma espécie de
indiferença pontuada de sinais de afeição. Objectos modestos
vão-se acumulando lentamente e sem que lhes prestemos atenção. Vão-se
sedimentando em camadas sucessivas nos sótãos, caves e armários. Meio
esquecidos, meio desaparecidos, deixamos de olhar para eles. Mesmo que
aconteça não estarem escondidos, mas antes pelo contrário expostos ao
olhar, já ninguém olha para eles. Tal como certos monumentos comemo-
rativos na cidade, estes objectos tornaram-se (parcialmente) invisíveis. E,
no entanto, esta indiferença e esta ínvísíbílldade quotidianas conjugam-
-se com uma afeição real, que qualquer perda ou ameaça de perda vêm
reactivar e pôr em evidência.
Que objectos são estes? Para lá da multiplicidade infinita das práticas
e dos objectos na sua completa singularidade, é possível díscernír algumas
grandes categorias. Cartas, livros, fotografias: superfícies de inscrição de
uma escrita ou de uma imagem, portanto. E uma infinidade mais hete-
róclita ainda de objectos, porém oriundos todos de situações particulares:
objectos herdados, objectos trazidos (de viagem, do passado), objectos
dados, objectos ligados a uma ocasião ou a um encontro marcante.
Esta identificação de algumas categorias é suficiente para indicar o fio
que as interliga. Estes objectos têm em comum o facto de a presença do
Outro insistir neles, de remeterem para situações e experiências onde se passa
pela procura de uma plenitude e pela sua impossibilidade: experiências
da carência em que o objecto é o seu resto sígnífícante,
Guardamos cartas, cartas de amor em particular; não certamente, ou
pelo menos não somente, para conservar na memória a sua mensagem.
Pois se uma carta conservada se reduzisse a não ser mais do que a memória
de uma informação, lia cerímóníade devolução das cartas seria menos
aceite, como forma de encerramento, na extinção dos fogos das festas do
amor" (Lacan). Se tais cartas são trocadas, queimadas - outra pequena

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cerimónia, sacrifícíal - ou guardadas, é porque a sua própria posse não e antecipadamente falhada, de parar o tempo, de agarrar o real, de con-
é insignificante. Se é necessário conservá-las, devolvê-las ou queimá-las servar "em vida" os objectos e os seres. Esta tentativa é uma experiência
simbolicamente, é porque elas desempenham um papel simbólico. Um particularmente perturbadora no retrato fotográfico, para o sujeito e para
papel cujo princípio geral é a contradição: contradizer a carência, essa que o operador: "A fotografia representa esse momento extremamente subtil
se sente na ausência ou no indizível. Pois a permanência, a plenitude da sua em que, a bem dizer, eu não sou nem um sujeito nem um objecto, mas
materialidade de significante opõe-se a um significado de ausência ou de antes um sujeito que se sente tornar-se objecto: vivo então uma mícro-
não-sentido, porque o escrito conservado apõe um valor de permanência a experiência da morte ... O fotógrafosabe-o bem, e ele próprio tem medo
instantes que, sem esses restos; seriam apagados como todos os outros. Esta dessa morte na qual o seu gesto me vai embalsamar ... Não haveria nada
ambivalêncía é geral: um objecto que simboliza (ao nível do seu significado) mais engraçado (não fôramos nós a sua vítima passiva) do que as con-
um acontecimento passado contradiz ao mesmo tempo (ao nível do seu torsões dos fotógrafos para "dar àquílo um ar vivo" ... mas assim que me
sígnífícante) a carência ou a ausência ligada a esta símbolização. observo no produto desta operação, aquilo que eu vejo é que me tornei
Guardamos os livros: mesmo quando são lidos e amados; quase nunca Todo-Imagem, isto é, a Morte em pessoa; os outros - o Outro - desa-
são relidos, mas, quase sempre, conservados. propríam-me de mim mesmo, fazem de mim,ferozmente, um objecto."
Que carência esta conservação confessa? A que surge de qualquer escri- (Barthes, La Chambre claire.)
ta e, portanto, de qualquer verdadeira leitura. Proust confia as angústias Deste modo, a fotografia vai de encontro, no preciso momento em que
infantis que sentia ao chegar ao fim de um livro: "Queríamos tanto que é tirada, à intenção claramente museográfica que, antes da sua invenção,
o livro continuasse, ter outras informações sobre todos aqueles persona- animava o jogo do retrato, da estatuária, das cópias. Só que a fotografia
gens, ficar agora a saber algo das suas vidas, empregar a nossa em coisas acrescenta um elemento perturbador suplementar que Barthes captou
que não fossem completamente estranhas ao amor que eles nos haviam perfeitamente: é que o referente existiu efectivamente, a coisa ou a pes-
inspirado e cujo objecto nos fazia de repente falta, não ter amado em vão, soa estava realmente presente no passado. É o facto de atestar a realidade
por uma hora, uns seres que amanhã mais não seriam do que um nome do passado, de ser o passado no presente que dá a uma fotografia o seu
sobre uma página esquecida, num livro sem relação com a vida e sobre valor e a sua plenitude por vezes insuportável. É por isso que é difícil
cujo valor nos havíamos bem enganado, já que a sua sorte cá em baixo não deitá-Ia fora, embora ao mesmo tempo a sua conservação seja rodeada de
era nada, como julgáramos, a de conter o universo e a existência, mas a precauções: "Só a posso colocar num ritual (sobre a minha mesa, num
de ocupar um lugar bem estreito na biblioteca do notário, entre os fastos álbum) se, de alguma forma, eu evitar olhá-la (ou evitar que ela me olhe)."
sem prestígio do Journal des Modes illustré e a Géographie d'Eure-et-Loir."l (Barthes, op.cit.) O que aqui se indica é que a fotografia repete e amplifica
Os livros amados, cartas de amor imaginárias de destinatário anónimo; a carência sentida no desejo de agarrar, de parar o instante presente (que
são cruelmente limitados para aquele que passa pela experiência crédula só posso conceber no modo do passado): eu não posso agarrar o "isto
de se investir nestes enclaves de ficção "sem relação com a vida". A sua foi", que qualquer fotografia atesta, senão fugazmente, pelo choque, pela
conservação ficará certamente bem aquém da frustração que provocam, revelação operada graças a um "golpe" do olho e a um breve movimento
mas é o único gesto possível para a atenuar. de abertura da consciência. É impossível focar essa existência situada no
Guai:damos fotografias. Evidentemente, nelas se inscrevem, como passado, impossível analisá-la. "Isto foi", mas eu nada disso posso alcan-
sempre, recordações, memória, mas não apenas no sentido de uma çar, nada mais dizer. Não posso senão manter a possibilidade de refazer,
informação conservada. Qualquer fotografia guarda também o vestígio ulteriormente, a experiência deste captar instantâneo e desta frustração.
da intenção original que a funda, designadamente a tentativa, ingénua É por estes sofrimentos repetidos mas necessários que as fotografias,
como as cartas que nunca chegam ao seu destinatário, permanecem "em
1M. Proust, "Sur la lecture", p. 35. La Renaissance !atine, 15 juin 1905. sofrímento"; '

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A partir destes poucos exemplos, descobre-se que o facto aparente- casos, de coser uma ferida simbólica, de remendar algo que constitui um
mente banal de que guardar à nossa volta alguns objectos familiares ou buraco na memória. A imagem da sutura pode, aliás, ser explorada numa
íntimos faz parte de uma exigência espiritual especificamente humana. perspectiva complementar: podemos considerar esta sutura como uma
Para lá das suas aparências biográficas.restas práticas de conservação pri- trama para uma infinidade de narrativas. Com efeito, todos estes objectos
vada encontram a sua origem em situações em que uma sutura deve ser suscitam e suportam signos, ritos, ficções.
feita para ultrapassar a prova da carência. Suturas irrisórias, é verdade, Este carácter das coisas conservadas - de induzir ficções, isto é, cons-
lit~ralmente em papel- cartas, livros, fotografias -, mas contudo indis- truções, de ter a função de pré-texto ou mais exactamente de pré-narrativa
pensáveis. E o mesmo acontece com todos os outros objectos oriundos _ confirma o seu estatuto fenomenológico. O objecto surge precisamente
de ocasiões particulares. Objectos herdados, dados: suturas de um luto onde o Ser falta, coloca-se como uma cortina diante do Nada impensável
real ou de um laço simbólico inefável. Objectos trazidos de viagens: e indizível, gerador de angústia. Posição tranquilizante, já que ela permite
suturas entre o tempo da vida ordinária e o tempo - talvez vivido sob o ao Nada, que se desvendou na angústia, permanecer inscrito como vestí-
modo fantasmagórico, pouco importa - da vida extraordinária. Objectos gio no objecto familiar e tranquilizador. Tranquilizante também porque
trazidos da infância: suturas entre a vida de adulto e a vida de criança ou ela alimenta uma confusão permanente entre o que decorre do Ser - da
a sua recordação. realidade-humana, do Dasein - e o que pertence ao plano do "que é'"
Todos estes objectos, apesar do cuidado enternecido que os salva da - o da realídade-dada.
perda, estão assim marcados por um definhamento imperceptível. As Com esta confusão, o objecto constitui um ob~táculo à questão do
diferentes "camadas" que se vão escalonando, como uma série de placas Ser: ele é obstáculo - e ao mesmo tempo asilo - que interdita o surgi-
sensíveis, da memória consciente ao inconsciente (para retomar a céle- mento da relação com o Ser enquanto essência do homem, ou antes, que
bre imagem empregada por Freud na Traumdeutung) mantêm o vestígio desvia este surgimento reconduzindo-o ao plano do "que é". Perante um
da experiência intima à qual estão ligadas. Sequência de impressões e sofrimento inefável (que não se pode dizer) o objecto de sutura, objecto
de máscaras que jogam com o inconsciente, aderências de uma mesma do luto por excelência, permite construir uma ficção, hábitos ou ritos,
cicatriz que atravessa todos os níveis da memória. Todos estes objectos isto é, falar, agir, dar sentido em torno do sofrimento, mas num plano
participam assim, silenciosamente, de um trabalho de luto. diferente do dele'.
Objectos do luto: por aí se explica a sua relativa "Invíslbílídade". Pois O que constitui sutura não é pois unicamente a materialidade do
eles estão quase sempre guardados à parte, escondidos, meio perdidos e objecto. É a sua capacidade, a partir da sua origem e das suas característi-
esquecidos, raramente "visitados". Então pode tornar-se mais precisa a cas, de captar múltiplas significações; de ser objecto do discurso, de gerar
sua comparação com os monumentos: eles são mais propriamente mo- narrativas e práticas. É por isso que a sua presença, a sua visibilidade no
numentos funerários. quotidiano não têm grande importância. O que importa é a articulação
Estes últimos significam também uma não-ausência, e opõem-se como no objecto do não-díscursívo e do discursivo: a materíalídade do objecto
signífícantes ao vazio e ao absurdo da morte", E são também, no campo atesta a narrativa, grava-a e fixa-a de forma duradoura e incontestável; a
colectivo, o objecto de uma conservação ambivalente feita de um isola- . narrativa acaba de tecer a sutura que o objecto enceta pela sua própria
mento (desde há alguns séculos, no Ocidente) e de uma atenção certa
mas limitada, em geral e através de rituais, a algumas visitas.
• No original, étant (o que é), por analogia com o néant (o nada) (N. T.).
O termo objectos de sutura parece, pois, impor-se aqui, por ser bastante
l Do mesmo modo, a história e mais geralmente as ciências ditas humanas cons-
imagético. Efectivamente, não há dúvida de que se trata, em todos estes troem ficções que são sintomas do Ser (é por o homem moderno se querer apoderar
de si enquanto Ser que vai construindo incansavelmente todas estas histórias), mas
2 D. Urbain, La société de conservation, Payot, 1978, p. 32. que apenas sé apoderam do "que é".

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Certos objectos são as testemunhas e os monumentos da matéria bruta passivo, funcional, eventualmente reversível, e não dessa estratégia do
do passado e da escolha deliberada da sua significação. Eles podem, antes esquecimento posta em prática pelos objectos de sutura. Há, pois, uma
de mais, constituir uma memória material sob a forma de arquivos e de diferença radical de natureza entre certa. memória técnica, voluntária, na
todos os objectos que contenham uma informação útil, cumprindo assim qual cada elemento tem um sentido único e bem definido, e certa me-
uma função utilitária, mnemotécnica, comparável à de uma memória mória activa com que o inconsciente trabalha, feita de uma constelação
periférica num computador. Mas acima de tudo eles servem para mate- de objectos com significações múltiplas e flutuantes.
rializar e simbolizar determinado acontecimento, determinado aspecto do Todavia, estas duas funções de memória estão quase sempre presentes
passado, que eu decidi reter e valorizar (aos meus olhos e aos das pessoas num mesmo objecto, uma servindo simultaneamente de suporte e de
do meu círculo). Pouco importa que eles deformem nessa ocasião o que máscara à outra: a conservação sutural não pode confessar-se como tal,
realmente se passou, uma vez que ainda assim participam da significação apresentando-se sob a forma, mais inocente e funcional, de uma simples
presente que eu quero dar a esse passado. conservação mnemónica, Há aqui uma estrutura perfeitamente clássica e
Por outro lado, estes objectos mnemónicos, objectos-arquivo ou objec- geral que permite que um mecanismo inconsciente encontre a sua eficácia
tos-emblema, são comparáveis, pelo menos parcialmente, aos arquivos enquanto se mantém dissimulado por uma. racionalização consciente;
colectivos e aos monumentos emblemáticos, já que estes também conser- ela toma a forma de uma verdadeira teia de elementos conscientes e
vam uma parte dos factos brutos do passado e que, sobretudo, procuram inconscientes (do mesmo modo, os jogos do desejo implantam-se privile-
conferir-lhes um sentido compatível com o projecto político (dominante) giadamente nas necessidades mais manifestas, as quais servem ao mesmo
do presente. Esta forma de conservação tem, portanto, inscritos, quer ao tempo de veículos e de camuflagem a tais jogos).
nível individual quer colectivo, elementos do passado inextricavelmente A maioria das coisas conservadas apresenta-se assim sob a forma apa-
mesclados com significações do presente. E já a este nível, puramente rentemente anódina de uma mnemotécnica, ao passo que esta função
intencional, a memória surge como um processo diferencial de valorização posta em primeiro plano não passa na realidade, quase sempre, de uma
e apagamento, de recordação e esquecimento. função de ecrã. Por detrás da aparência de um sentido unlvoco, de uma
Os objectos de sutura têm lugar, a um outro nível, neste processo da vulgar memória do passado, esconde-se uma riqueza polissémica que
memória. Comemoram qualquer coisa para fazerem desaparecer dela, ajuda a suportar esse passado. Daí o duplo estatuto habitual do objecto
para repelirem dela, a componente essencial que o consciente tolera conservado de ser simultaneamente memória vulgar e memória activa
ma1. São as transferências e os instrumentos do nosso "saber esquecer", (implicando o inconsciente), ao mesmo tempo documento (arquivo) e monu-
uma outra componente material do nosso património mnésico. Todos os mento (guardíão). De ser assim um memorial, que permite simultaneamente
objectos de sutura de que nos rodeamos são indispensáveis ao trabalho o estabelecimento de uma memória e a construção de uma narrativa.
da memória aos seus diferentes níveis. Do mesmo modo que o sonho é
o guardião do sono, eles são o guardião do esquecimento, esse "outro
caminho da memória". Luto, melancolia, nostalgia
Trata-se aqui de uma memória completamente diferente da que se
inscreve nos objectos mnemónícos. Estes paliam o esquecimento da me- Desta teia da memória, Margueríte Yourcenar propõe-nos, a partir de
mória consciente, amplificam deliberadamente certos elementos e apagam uma caixinha de objectos herdados da sua mãe (cartas de amor, notas, cader-
outros. Mas não se inserem num processo activo dos diferentes níveis de nos, livros, fotografias, cabelos, jóias, prendas), um exemplo em que vemos
.memória. É verdade que pode acontecer que os objectos que pretendem diferentes funções misturarem-se e dissimularem-se umas às outras:
ter a função de auxiliares da memória não sirvam de facto senão para "A caixinha selada por Michel cumpriu a sua obrigação, que era a de
facilitar ou acelerar o esquecimento. Mas trata-se de um esquecimento me pôr a sonhar com tudo aquilo. E no entanto tais desperdícios plenos

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de devoção fazem invejar os animais, que, nã~ possuem nada, senão a pela sua própria insignificância, o único valor de signo que lhe resta, o
vida, que tantas vezes lhes tornamos; fazem-nos igualmente invejar os valor do passado. "São por vezes as lembranças mais banais que despertam
sadus e os anacoretas. Sabemos que estas ninharias foram caras a alguém, inexplicavelmente em nós a nostalgia mais difícil de apaziguar ... Não é
úteis eventualmente, preciosas sobretudo na medida em que ajudaram o lamentável que aqui se lamenta (pois talvez nada haja a lamentar), é
a definir ou a elevar a imagem que essa pessoa fazia de si própria. Mas a o aspecto arbitrário, irrazoável, irracional até, da característica em si de
morte do seu possuidor torna-os vãos como esses acessórios-brinquedo todas as coisas se tornarem passado.P
que encontramos nos túmulos. Nada constitui melhor prova do pouco Podemos levar a bom termo inumeráveis lutos, evitar sossobrar na
que é a individualidade humana, que tanto prezamos, do que a rapidez melancolia, mas não podemos escapar à nostalgia, a esse charme agridoce
com que certos objectos que são o seu suporte e às vezes o seu símbolo se do passado, que é a própria armadilha do tempo.
tornam por sua vez caducos, são deteriorados ou perdidos."! Este charme permanece agarrado às coisas antigas como uma aura
Esta caíxinha, que está no centro de uma cerimónia a que Yourcenar imperceptivel que tolda e suaviza a nossa relação com elas. Ele acompanha,
chama a ocultação das relíquias, representa toda a memória material da interminavelmente, todos os objectos ligados por recordações, discursos
defunta ("esse resíduo da minha mãe"). Nela se reúnem objectos-arqui- ou rituais, ao imaginário do passado. E num terreno social, submetido
vo, objectos-emblema, objectos memoriais (para a mãe) e ainda objectos a mutações aceleradas, desprovido de processos de actuação simbólica
com valor simbólico ou económico (íóías, cabelos, medalhinhas bentas, suficientes para os ter em conta, o sentimento do irreversível generaliza-
etc.) Todas estas coisas perdem o seu sentido original para a filha, não -se e agarra-se a: qualquer coisa que deixe de ser funcional. A nostalgia
representando para ela senão um objecto de sutura. Um suporte para o invade o quotidiano.
devaneio e para o discurso. Um pré-texto. , "O viajante reconhecerá que a magnificência e a prosperidade de Mau-
Pois, embora ela não atribua valor a todos estes objectos na sua ma- rília, agora que se tornou uma metrópole, quando comparadas com o que
terialidade, não deixa de especificar o que foi feito de cada um deles, era a velha Maurília provinciana, não compensam uma certa graça perdida,
de que modo este último "resíduo" se dispersou e perdeu. Será que o a qual no entanto só no presente se pode saborear, nos velhos postais,
discurso e o livro correspondem à última etapa de um trabalho de luto? enquanto que noutros tempos, perante uma Maurilia provinciana, a bem
Sem dúvida, mas nada no discurso indica essa libertação que caracteriza dizer nada víamos dessa graça, e dela veriamos hoje menos que nada, se
o fim do luto. Pelo contrário, é a expressão de uma tristeza, de um senti- Maurília tivesse permanecido tal e qual, e seja como for a metrópole tem
mento de facticidade que domina. Melancolia? De forma alguma; o luto este atractivo suplementar, que é o facto de, através do que ela é agora,
acabou, completamente. Não há na posição da escritora o menor vestígio se poder repensar com nostalgia no que ela era antes. "4
,
de fraqueza ambívalente nem de perda de sentimento do eu.
Esta tristeza é o signo de outra coisa: uma reacção contra o irreversível,
uma dor especifica perante a fugacidade do passado, a nostalgia. Ela surge
aqui através de uma oscilação - que se produz frequentemente, tanto no
domínio individual como no colectivo -: do "valor" dos objectos: aquilo
que era a coisa mais querida para um ser humano torna-se insignifican-
te. Esta perda súbita de sentido simula, amplifica, a irreversibilídade da
morte e do tempo, reactiva o sofrimento que provoca o sentimento do
eférnero. De modo mais geral, o objecto menos significante põe .a nu,
l V. Jankélévitch.L'i1Téllersible et la nostalgie. Flammarion, 1974. p. 286.

2 M. Yourcenar, Soullenirs pieux, Gallímard, 1974, p.70'7i. 4ltalo Calvino, Les vi!les inllisibles. trad. française, Seuil, 1974, p. 39.

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