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Paula Zacharias Gabriel

O MERCADO COMO GRANDE OUTRO


Um Olhar Sobre o Consumo e a Mídia
na Sociedade Contemporânea

São Paulo
Julho, 2008
2

Paula Zacharias Gabriel

O MERCADO COMO GRANDE OUTRO


Um Olhar Sobre o Consumo e a Mídia
na Sociedade Contemporânea

Monografia orientada pelo professor Clóvis


Pereira e apresentada à Coordenadoria Geral de
Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
ao curso de Semiótica Psicanalítica – Clínica da
Cultura, como parte dos requisitos para
obtenção do título de Especialista.

São Paulo
Julho, 2008
3

Agradecimento

Aos meus amigos, cuja diversidade é uma grande fonte de inspiração.


4

Sumário

1. INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 06
1.1. TEMA DA PESQUISA .......................................................................................... 09

2. COMO CHEGAMOS ATÉ AQUI .......................................................................... 10


2.1. IMPORTANTES CONSEQUÊNCIAS ECONÔMICAS DO SÉCULO XX ......................... 10
2.2. AS BASES ESTABELECIDAS PELA GLOBALIZAÇÃO .............................................. 14
2.2.1. Um esforço incerto para o capitalismo global ........................................... 15

3. COMPORTAMENTO RESULTANTE .................................................................. 19


3.1. A CRISE DOS ABSOLUTOS................................................................................. 19
3.2. A CONSOLIDAÇÃO DO PÓS-MODERNO ............................................................... 22
3.2.1. Mas o que é pós-moderno? ...................................................................... 23
3.2.2. “Vem comigo que no caminho eu te explico”............................................ 23

4. A REALIDADE QUE CONSTRÓI AS BASES PARA O FUTURO ..................... 28


4.1. DESEJO E ALIENAÇÃO ...................................................................................... 28
4.2. O MERCADO .................................................................................................... 29
4.2.1. A definição do “eu” através do outro ........................................................ 29
4.2.2. Quem encarna hoje o Grande Outro ........................................................ 30
4.3. A MÍDIA ALIMENTA ESSA DINÂMICA DE MERCADO ............................................... 33
4.3.1. A publicidade e o mestre do gozo ............................................................ 37

5. UM NOVO HORIZONTE PARA A HUMANIDADE ............................................. 40


5.1. A POSSIBLIDADE DIGITAL ................................................................................. 40
5.2. I INTERNET COMO AGENTE DE MUDANÇAS ........................................................ 42

6. CONCLUSÕES .................................................................................................... 46

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 48


5

Resumo

A presente pesquisa procura investigar as causas e as conseqüências do


papel do Mercado como Grande Outro, ilustrada pelas relações sociais e
interpessoais do mundo civilizado contemporâneo, com especial atenção para a
sociedade brasileira. Procurará avaliar a maneira pela qual o consumo determina os
valores e os desejos das pessoas, contribuindo para o estabelecimento de uma
sociedade de lógica materialista alimentada pela mídia.

“Diz-me o que consomes e te direi quem és”, uma adaptação contemporânea


de um provérbio antigo, é a frase que melhor define o comportamento humano que é
objeto deste estudo.
6

1. Introdução

O sujeito não se constitui da mesma forma ao longo da história da humanidade


porque o Outro é determinante para essa constituição, ou seja, todas as referências
externas a esse sujeito são fundamentais nesse processo. Numa sociedade como a
nossa, pautada pelo capitalismo consumista e permeada pela mídia, devemos nos
perguntar: quem encarna o Grande Outro hoje? Aparentemente o Mercado, com
suas regras onipresentes e sua influência sobre todos os aspectos sociais. E quais
serão as conseqüências de se viver balizado por essa grande referência? Ou como
a constituição de um sujeito, tratado pela indústria como “consumidor” determina as
relações humanas entre si e com o mundo?

Hoje, o sujeito reconhece o Outro no Mercado e na Mídia e, dessa forma, molda-


se com base nesse espelho. Alguns exemplos disso são: a moda, que adquiriu um
alto grau de efemeridade (a duração de uma tendência e a duração dos próprios
tecidos diminuiu muito do século passado pra cá, embora a tecnologia permita criar
roupas mais duráveis); a cultura das celebridades, especialmente em países como o
Brasil, onde quinze minutos de fama podem compensar mais que décadas de
trabalho; "a tirania das marcas em um planeta [praticamente] vendido” 1, expressão
de Naomi Klein em seu livro “Sem Logo” para designar o valor que as marcas têm
em detrimento do seu verdadeiro significado (elas adquirem poder corporativo e
certa “personalidade” diante dos consumidores, o que lhes confere um valor muito
mais alto do que o valor real do produto que representam); a simples cultura de
consumir por consumir, de ter para poder ser, entre outros tantos exemplos com os
quais topamos diariamente.

Nesse contexto, pode-se dizer que uma nova versão imaginária do Outro ocupa
o lugar (onisciente, onipresente e onipotente) deixado vazio quando grande parte da
humanidade parou de orientar suas escolhas a partir da crença no Deus judaico-
cristão. Vale lembrar que se trata aqui da porção “civilizada” da sociedade,
simbolizada pelo mundo ocidental e urbano, que representa a maioria da população

1
KLEIN, Naomi. Sem Logo: A tirania das marcas em um planeta vendido. Rio de Janeiro/ São Paulo:
Record, 2002.
7

mundial e tem definido a nossa história recente desde o nascimento do


mercantilismo. Então este Outro, que enuncia o que deseja de nós e promete suas
bênçãos a quem o atender, é de fato simbolicamente o Mercado. Pois bem, esse
“deus” tem como voz a publicidade, que se alimenta da motivação consumista e
produz influência sobre ela de volta ciclicamente, e assim está armado o circo. Por
isso parece possível afirmar que cada vez mais as pessoas são reconhecidas e
classificadas pelo que têm (dinheiro, aparência, vida social) e não mais pelo que são
(profissão, formação, família, ideais). Parece que sobrou pouco espaço (ou
oportunidade) para o conteúdo se manifestar, uma vez que as características
superficiais e de apresentação imediata se impõem primeiro. Prato cheio para o
reinado da mídia de massa.

Durante praticamente seis décadas, desde o surgimento da televisão, talvez o


símbolo de maior impacto da tecnologia eletrônica sobre a nossa história, a
comunicação de massa adquiriu um poder gigantesco sobre a sociedade. Levando-
se em conta que, para muitos, a mídia se constitui na principal fonte de informação e
entretenimento, ela influencia a opinião pública, dita regras de comportamento,
determina os assuntos que entrarão na nossa pauta de discussão, enfim, ela
interfere até na imagem que fazemos de nós mesmos. Esse poder todo se deve a
uma equação muito simples: alcance e imposição da mensagem levam à
padronização de pensamento ou comportamento. Alcance por ter presença global e
poder divulgar qualquer coisa em praticamente todos os cantos do planeta.
Imposição porque a mensagem tem via de mão única, propagada pelos meios de
comunicação e recebida homogeneamente por todas as pessoas (descontando a
interpretação pessoal da mensagem, consideramos que ela chega exatamente da
mesma maneira para bilhões de pessoas). E, finalmente, padronização, que é a
tendência conseqüente desse processo, manifesta na ocidentalização do mundo e
na globalização de mercado e de conhecimento.

Mas hoje não se pode ignorar um fator relativamente novo e de grande impacto
sobre essa equação. Pela primeira vez na história recente estamos diante de uma
tecnologia que muda a principal regra do atual modelo de propagação de
informação: o emissor. A internet, além de proporcionar uma comunicação sem
fronteiras, permite que mais um elemento passe a produzir conteúdo além dos
8

produtores e detentores dos meios de comunicação. Esse elemento é o próprio


receptor, ou seja, todos nós. A possibilidade de alterar a ordem do processo de
comunicação não é menos do que fantástica se considerarmos que ela pode dar a
tônica de uma nova sociedade. O receptor, não sendo mais passivo em relação à
mensagem, será capaz de interferir no Mercado, na Política, na Opinião Pública?
Creio que sim.
9

1.1. Tema da pesquisa

“A onipresença das mídias afeta a subjetividade, individual e


coletivamente. O “ser-no-mundo” atual decorre da mediatização da
existência, a ser entendida como um fenômeno irreversível, onde a
tecnologia permite estruturar os processos sociais, culturais,
políticos, econômicos e psíquicos de grande parte da população
planetária. Assim sendo, a realidade social construída pelos meios
de comunicação define um campo de investigação privilegiado, pois
ali se cruzam os aspectos simbólicos e imaginários da ideologia.”
(Oscar Angel Cesarotto. Doutor em Comunicação & Semiótica
pela PUC-SP).

Ilustrada pela descrição acima, a intenção com a presente pesquisa é avaliar


o impacto da interferência do Mercado e da Mídia no comportamento dos seres
humanos hoje e na formação dos futuros habitantes deste Planeta, justamente num
momento em que o capitalismo atingiu a sua fase mais consumista. Procurará
analisar a maneira pela qual as pessoas vêm compreendendo a questão do
consumo considerando a sua importância econômica e social, por um lado, e suas
conseqüências por outro.

Para tanto, será seguida a seguinte linha de raciocínio: de início, serão


levantados os principais aspectos da história que contribuíram para a configuração
atual que é objeto deste estudo. A seguir, será feita uma análise do recente impacto
desses aspectos sobre a sociedade e o reconhecimento das suas conseqüências
para o sujeito, procurando culminar em uma iminente mudança proporcionada pela
internet.
10

2. Como chegamos até aqui?

Tudo leva a crer que as conseqüências econômicas do século XX, a lógica


pós-moderna, o processo de globalização e a crise dos absolutos, bem
representados pelos Estados Nacionais, são elementos que, se combinados, dão a
tônica necessária para o entendimento da sociedade atual.

2.1. Importantes conseqüências econômicas do século XX

O século XX deixa um legado inegável de questões e impasses. Para Eric


Hobsbawn2, este período foi breve e extremado: sua história e suas possibilidades
edificaram-se sobre catástrofes, incertezas e crises, decompondo o que foi
construído no longo século anterior. As conseqüências dessa configuração são de
extrema importância para o entendimento da realidade globalizada que nos foi
apresentada no fim do século.

O historiador divide o século em três “eras”. A primeira, “da catástrofe”, é


marcada pelas duas grandes guerras, as ondas de revolução global, em que o
sistema político e econômico da URSS surgia como alternativa histórica para o
capitalismo, e pela amplitude da crise econômica de 1929. Também nesse período
os fascismos e o descrédito das democracias liberais surgem como proposta
mundial. A segunda são os “anos dourados” das décadas de 1950 e 1960 que, em
sua paz congelada, viram a viabilização e a estabilização do capitalismo,
responsável pela promoção de uma incrível expansão econômica e transformações
sociais profundas. Foi o auge do “American way of life” e a explosão da propaganda
é lembrada pelos anúncios de eletrodomésticos e da Coca-Cola, muito
característicos da época. Entre 1970 e 1991 dá-se o desmoronamento final, em que
caem por terra os sistemas institucionais que previnem e limitam o barbarismo
contemporâneo, dando lugar à brutalização da política e à irresponsabilidade teórica
da ortodoxia econômica, abrindo as portas para um futuro incerto.

2
HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX - 1914 a 1991. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997.
11

Este breve século acabou em problemas para os quais ninguém tinha, nem
dizia ter, soluções. Enquanto tateavam o caminho para o terceiro milênio, os
cidadãos do fin-de-siècle só sabiam ao certo que acabara uma era da história. E
muito pouco mais. Assim, pela primeira vez em dois séculos, faltava inteiramente ao
mundo da década de 1990 qualquer sistema ou estrutura internacional. O fato
mesmo de terem surgido depois de 1989 (ano da queda do Muro de Berlim),
dezenas de estados territoriais sem qualquer mecanismo independente para
determinar suas fronteiras já fala por si. Onde estava o consórcio de grandes
potências que antes estabelecia fronteiras contestadas? Onde estavam os
vencedores da Primeira Guerra Mundial que supervisionavam o novo desenho do
mapa da Europa e do mundo, fixando uma linha de fronteira aqui, insistindo num
plebiscito ali? Onde, na verdade, estavam aquelas conferências internacionais de
trabalho tão conhecidas dos diplomatas do passado, tão diferentes das breves
conferências de cúpula para fins de relações públicas e sessões de fotos que agora
tomavam o seu lugar? Que eram, na verdade, as grandes potências internacionais,
velhas ou novas, no fim do milênio?

O único Estado restante, que teria sido reconhecido como grande potência,
no sentido em que se usava a palavra em 1914, eram os EUA. Com o fim da
Segunda Guerra, este país se viu numa situação privilegiada como a mais forte,
coesa e próspera economia mundial, situação que se sustentou e evoluiu até o
século terminar. A Rússia tinha sido reduzida ao tamanho que possuía no século XII.
A Grã-Bretanha e a França gozavam apenas de um status puramente regional e a
Alemanha e o Japão eram potências apenas econômicas, sem apoiar seus recursos
econômicos em força militar. Se a natureza desses “atores” no cenário internacional
não era clara, o mesmo ocorria com a natureza dos perigos que o mundo
enfrentava. O século XX fora de guerras mundiais, frias ou não, feitas por grandes
potências e seus aliados em cenários de destruição de massa cada vez mais
apocalípticos, culminando na ameaça nuclear das superpotências, felizmente
evitado. O que quer que trouxesse o futuro, o desaparecimento ou a transformação
de todos os velhos atores do drama mundial (exceção aos EUA) significava que uma
Terceira Guerra Mundial do velho tipo era uma das perspectivas menos prováveis. O
que não significava que a era das guerras tivesse acabado, mas elas já pareciam
12

cada vez menos necessárias num mundo novo e ainda indefinível que estava
surgindo.

Em suma, o século acabou numa desordem global, cuja natureza não estava
clara, e sem um mecanismo óbvio conhecido nosso para acabar com ela ou mantê-
la sob controle. O motivo dessa impotência estava não apenas na verdadeira
complexidade da crise mundial, mas também no aparente fracasso de todos os
programas, velhos e novos, para controlar e melhorar os problemas da raça
humana. Os dois problemas centrais, e a longo prazo decisivos, identificados na
obra de Eric Hobsbawn, eram o demográfico e o ecológico. Em geral, esperava-se
que a população do mundo, explodindo de tamanho desde meados do século XX, se
estabilizasse em cerca de 10 bilhões de seres humanos ou 5 vezes seu número em
1950 em algum momento por volta de 2030. E o que fazer para manter uma
população mundial estável? Já os problemas ecológicos, a longo prazo decisivos,
não eram tão imediatamente explosivos. Mas os defensores das políticas ecológicas
tinham razão: a taxa de desenvolvimento devia ser reduzida ao sustentável a médio
prazo para se chegar a um equilíbrio a longo prazo. Só que isto era visivelmente
incompatível com uma economia mundial baseada na busca ilimitada do lucro por
empresas econômicas dedicadas a esse objetivo e competindo umas com as outras
num mercado livre e global. Do ponto de vista ambiental, se a humanidade queria ter
um futuro, o capitalismo das décadas de crise não podia ter nenhum.

Mas mesmo entregue a si mesma, as previsões eram de que a economia


mundial continuaria a crescer. A grande exceção era o aumento do abismo entre os
países ricos e pobres do mundo, processo acelerado pelo impacto negativo da
década de 1980 sobre grande parte do Terceiro Mundo e as dificuldades de
reestruturação dos países ex-socialistas. A crença, segundo a economia
neoclássica, de que o comércio internacional irrestrito permitiria aos países mais
pobres chegar mais perto dos ricos vai contra a experiência histórica e contra o bom
senso. É só observar alguns aspectos da economia mundial de fins do século XX
que davam motivos para alarme. São eles: 1. A tecnologia continuou a forçar a mão-
de-obra na produção de bens e serviços, sem proporcionar trabalho suficiente do
mesmo tipo para os que expulsava, nem assegurar uma taxa de crescimento
econômico suficiente para absorvê-los; 2. Enquanto a mão-de-obra continuava
13

sendo um fator político importante, a globalização da economia transferiu a indústria


de seus velhos centros nos países ricos, com mão-de-obra de alto custo, para
países cuja principal vantagem eram mãos baratas. Como conseqüência, observa-
se a transferência de empregos dos locais de altos salários para os de baixos
salários e a queda de salários nos primeiros, sob a pressão da competição salarial
global. A pressão dessa nova ordem passou a ser combatida com protecionismo, o
terceiro aspecto preocupante da economia mundial; 3. O triunfo do protecionismo e
o da ideologia de livre mercado puro enfraquecia ou mesmo eliminava a maioria dos
instrumentos para controlar os efeitos sociais das convulsões econômicas. A
economia mundial era uma máquina cada vez mais poderosa e incontrolável.

Era, portanto, provável que a moda da liberalização econômica e da


“marketização”, que dominara a década de 1980 e atingira seu pico após o colapso
do sistema soviético, não durasse muito. A combinação da crise mundial do início da
década de 1990 com o fracasso dessas políticas quando aplicadas como “terapias
de choque” nos países ex-socialistas, já causava reconsiderações entre alguns
antigos entusiastas – quem teria esperado que consultores econômicos nesta
década anunciassem que talvez Marx estivesse certo? Contudo, o maior obstáculo
que se erguia no caminho de um retorno ao realismo era o processo de
globalização, reforçado pela desmontagem de mecanismos nacionais para proteger
as vítimas da livre economia global dos custos sociais daquilo que se descrevia
como o “sistema de criação de riqueza”. Como admitia o editorial do Financial Times
(24/12/1993), “Cerca de dois terços da população mundial ganharam pouca ou
nenhuma vantagem com o rápido crescimento econômico.”3 Vivemos num mundo
conquistado, desenraizado e transformado pelo processo econômico e
tecnocientífico do desenvolvimento do capitalismo, que dominou os dois últimos
séculos e que não tem garantia de continuar imperando absoluto no cenário
econômico por muito tempo. Garantias, ao que parece, não as temos há algum
tempo.

3
HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX - 1914 a 1991. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997.
14

2.2. As bases estabelecidas pela Globalização

A globalização é descrita freqüentemente como um fenômeno recente e


inevitável sobre cujos desdobramentos todos nós ainda temos muitas dúvidas.
Dependendo do rumo que a economia mundial tomar, esse fenômeno terá
representado o início de uma nova ordem onde as relações econômicas trarão
benefícios às pessoas ou, o contrário, poderá ser o responsável por destruir o
sistema econômico que conhecemos hoje, contribuindo apenas para aumentar as
diferenças entre ricos e pobres. Positiva, negativa, ou ambas as coisas, a
Globalização é um fator determinante para a definição do comportamento humano
atual, na medida em que apresenta uma situação relativamente nova e ambígua,
onde as relações humanas se dão em dois planos distintos: o real e o virtual.

Ainda não é possível prever o resultado do processo que teve início há alguns
séculos, como veremos mais adiante, e só emergiu com o nome de globalização há
cerca de duas décadas. Mas já são nítidas algumas de suas conseqüências, bem
como sua manifestação no comportamento das pessoas. A própria moda deixou de
ser “ditada” para ser mais democrática e multifacetada. Acompanhando a tendência
mundial de maior acesso a informação, matérias-primas, produtos e culturas, que a
nova ordem mundial proporcionou – representada principalmente pela globalização
–, a maneira individual de se vestir e se comunicar mudou radicalmente desde que
se tem notícia de algum tipo de moda na história da humanidade. E a moda é uma
das principais formas de expressão de identidade, razão para ser um exemplo útil de
efeitos da Globalização.

Esse fenômeno tem como precursores mais evidentes os mercados livres e a


integração econômica surgida no século XIX. Tal tendência, entretanto, teve seu
desenvolvimento atrasado durante o desenrolar da Revolução Industrial4 por causa
do entusiasmo pelo coletivismo, pela necessidade do planejamento econômico
nacional (em detrimento das relações internacionais) e mais pra frente, em seus
casos mais extremos, pelo o comunismo. Já em boa parte do século XX, a mão
invisível do mercado foi capaz de dar a direção para a qual correram as economias
4
A Revolução Industrial aconteceu na Inglaterra na segunda metade do século XVIII e encerrou a
transição entre feudalismo e capitalismo, a fase de acumulação primitiva de capitais e de
preponderância do capital mercantil sobre a produção.
15

das nações ocidentais, superando a mão protetora do Estado. E quando as demais


nações de grande importância política emergiram do comunismo e do socialismo –
que tiveram seu colapso no fim da Guerra Fria (em 1989-91) – o fenômeno ganhou
força, tornando-se visivelmente inevitável, apesar de ainda estar longe de terminar.
Embora os efeitos da mão do Estado em muitas economias ainda impeçam a
globalização de extrapolar seus limites de liberdade de mercado, por razões
preventivas, ela continua reinando no mundo atual e determinando o modo de vida
das pessoas.5

Creio que estamos vivendo uma era de “iluminismo do mercado”, cujo


aspecto mais sedutor é a possibilidade de diminuir as tensões provenientes de
diferenças étnicas, lingüísticas e territoriais a partir de uma aparente igualdade
proporcionada pelo consumo, se concordarmos que o livre mercado nos iguala
enquanto consumidores. Nesse caso, mesmo que exista uma diferença entre as
pessoas por seus hábitos e escolhas de consumo serem distintas, elas todas
acabariam igualadas pelo próprio ato de consumir. Porém, é fundamental apontar
que o consumo não cria um novo laço social, porque não há laço entre
consumidores, e sim uma separação entre aqueles que possuem e os que não
possuem o objeto.

2.2.1. Um esforço incerto para o capitalismo global

Se a globalização consiste na maior integração entre os mercados produtores


e consumidores de diversos países, em sua essência, então as navegações do fim
do século XV podem ser consideradas como participantes desse processo e, mais
do que isso, são o provável embrião do que estamos vivendo hoje. O que motivou as
navegações foi o Mercantilismo, quando o comércio ultrapassou os limites
continentais a que o homem vivia submetido e os países ditos civilizados
enxergaram a vantagem de se colonizar novas terras que serviriam de fonte de
matéria-prima para as relações comerciais.

5
LINDSAY, Brink. Against the dead hand: The Uncertain Struggle for Global Capitalism. New York:
Hardcover, 2001
16

Mas o que efetivamente parece ter tornado esse processo perceptível,


quando ele ganhou o seu nome atual, foram os acontecimentos dos anos setenta.
Nessa época, em meio à crise do petróleo, uma série de medidas foi tomada para
dar maior dinamismo ao mercado internacional. Os Estados Unidos decidiram
abandonar o padrão-ouro como base do mecanismo de sustentação cambial,
provocando um efeito de liberalização dos controles cambiais que logo se difundiu
para as demais economias desenvolvidas. O mercado financeiro superou os limites
tradicionalmente representados pelas fronteiras nacionais e os capitais financeiros e
as empresas transnacionais foram os maiores beneficiados com isso, especulando
livremente com as oscilações de valor entre as moedas fortes. Essas empresas
existiam desde o século XIX, mas seu número era limitado. Elas só começaram a se
multiplicar com os investimentos da reconstrução européia no pós-guerra e com as
políticas de investimento, típicas da Guerra Fria. Mas foi com as medidas de
liberalização dos anos setenta que elas encontraram o campo fértil para a sua
difusão pelo mundo e é daí que data o fenômeno da globalização atual propriamente
dito. O desenvolvimento da tecnologia, que permitiu a transferência de informação e
dados em alta velocidade, desencadeou uma revolução nas comunicações,
permitindo uma atividade especulativa sem precedentes, um dos componentes da
nova realidade que extrapola os moldes até então conhecidos e não ocorre mais em
tempo real nem depende de limites físicos.6

No entanto, a globalização tem muito mais conseqüências para a sociedade


do que estas que já estão evidentes. Por exemplo, as grandes corporações
ganharam um poder de ação que tende a prevalecer sobre os sistemas políticos, os
parlamentos, os tribunais e, inclusive, afetar a opinião pública. Desde a revolução
Científico-Tecnológica até os anos setenta, a tendência histórica foi que os estados
nacionais controlassem a economia e essas corporações, impondo-lhes um sistema
de taxação pelo qual transferiam parte dos seus lucros para setores carentes da
sociedade, o que caracterizou a fórmula mais equilibrada de prática democrática,
chamada “Estado de bem-estar social”. Ao Estado cabia um papel de proteção
social, contenção dos monopólios e contrapeso ao poder econômico, e à sociedade,

6
SEVCENKO, Nicolau, Virando Séculos: a corrida para o século XXI, no loop da montanha-russa,
São Paulo, Companhia das Letras, 2001
17

em forma de organizações operárias, sindicatos e associações, cabia a pressão às


corporações e ao Estado para que ambos cumprissem a sua parte. Mas com a
Globalização a situação mudou. As grandes empresas adquiriram tal poder de
mobilidade, redução de mão-de-obra e capacidade de negociação que tanto a
sociedade como o Estado se tornaram seus reféns e o tripé de sustentação da
sociedade democrática moderna foi quebrado. É nessa configuração que se
desenrolam as relações humanas e suas conseqüências são a nova realidade que
estamos enfrentando hoje, que é de um capitalismo globalizado e alimentado pelas
facilidades tecnológicas, tais como rapidez de propagação da informação e maior
acesso a produtos e serviços.

Após descrever essa situação, torna-se possível analisar qual é o efeito que a
globalização tem sobre nós, considerando que seu maior aliado para a vida em
sociedade agora é a tecnologia. Adaptar-se cada vez mais rápido às novidades
tecnológicas se tornou fundamental para quem está no mercado de trabalho, assim
como absorver as informações de todas as partes do planeta que circulam em
grande velocidade. As pessoas em idade mais avançada tendem a apresentar maior
resistência a essa adaptação, embora ela seja inevitável para qualquer cidadão
urbano no século XXI. “A verdade é que a revolução tecnológica se tornou a refinada
técnica de criar e recriar necessidades desnecessárias – que se tornam
absolutamente imprescindíveis no lançamento de cada uma delas. Nunca precisei
do celular, do e-mail nem do Microsoft Word. Ocorre que perco o emprego se voltar
a viver sem eles. Sim, já não é mais a sociedade que faz a pergunta ou apresenta o
problema, forçando a tecnologia a correr atrás da resposta ou da solução. Desde
meados dos anos 80, aurora da idade digital, a tecnologia entra com a solução ou
com a resposta antes que a sociedade lhe apresente o problema ou lhe faça a
pergunta.”7

Já a nova geração, que nasce imersa nessa realidade tecnológica,


informatizada e de rápida mutação, apresenta um comportamento muito mais
receptivo às novidades, como é de se esperar. Essa diferença de adaptação à
tecnologia, entre pessoas mais jovens e mais velhas, é um dos principais fatores de

7
Joelmir Beting - UOL notícias
18

influência das relações entre pais e filhos, um novo modelo de conflito de gerações,
como veremos nos capítulos que seguem. Contar com a cultura jovem como
consumidora e fonte de inspiração para a tecnologia é um dos recursos que nos
fazem entender a realidade globalizada. Afinal, se não fosse pela “garotada”, uma
verdadeira folha em brando pronta para ser rabiscada, viveríamos num mundo de
saudosismo absoluto. Principalmente agora, em época de Pós-modernismo
consolidado, quando a ausência de valores sólidos leva até mesmo os jovens a
saudar os valores do passado.
19

3. Comportamento resultante

3.1. A crise dos absolutos

“Creio que estamos diante da inversão de um processo secular, a


longa onda histórica de construção e fortalecimento gradual dos
Estados territoriais ou Estados nacionais no sentido político do
termo.” (HOBSBAWN, Eric. O Novo Século, entrevista a Antonio
Polito. São Paulo: Companhia das Letras, 1999)

A tendência de fortalecimento dos Estados nacionais, sabiamente analisada


por Eric Hobsbawn, dominou o mundo desenvolvido pelo menos desde o século XVI
e até por volta da década de 1960, segundo o autor. Em todos os regimes, fossem
eles liberais ou conservadores, fascistas ou democráticos, o Estado tornou-se capaz
de definir cada vez mais a área e a população sob o seu controle, sua soberania e
ampliou a sua eficiência em termos administrativos. Em outras palavras, acumulou
conhecimento, conquistou poder, alargou suas ambições e intervenções, e assumiu
mais responsabilidades. E no auge desse processo muito pouco permaneceu fora
do seu controle (década de 1960), quando todos os países do mundo se
estruturaram sob a forma de Estados dotados de amplos poderes, principalmente
para os Estados Unidos. Mas até o século XIX, nenhum Estado conseguia sequer
realizar um censo acurado, controlar a população rural ou até mesmo delimitar com
exatidão as fronteiras que demarcavam o território nacional, razão pela qual o
processo de seu fortalecimento durou tanto tempo. Mas qual é a influência dessa
configuração no nos dias atuais e o que isso tem a ver com o comportamento das
novas gerações? É o que se pretende analisar aqui.

A partir da década de 1960, o processo de fortalecimento dos Estados


nacionais parece ter chegado ao seu limite, perdendo impulso. Não diminuiu o poder
do Estado, mas sim a disposição dos indivíduos em obedecer as leis do Estado. Um
marco do início dessa nova fase, por exemplo, são os acontecimentos de 1968 com
os estudantes e radicais da Nova Esquerda, não conformados com as regras
vigentes, que rejeitavam o procedimento do Estado na aplicação das leis e agiam
20

como se não mais reconhecessem os princípios fundamentais que conduziam os


assuntos públicos, princípios que antes todos os cidadãos tinham o dever de
respeitar. A mesma lógica de comportamento se aplica aos jovens que criticavam a
participação dos Estados Unidos da Guerra do Vietnã e a todas as manifestações
contra as decisões e regras do Estado em várias partes do mundo. Era o momento
mais propício para questionamento e mudanças, o que facilitou o nascimento de
tantas revoluções que marcaram os chamados “Anos rebeldes” no mundo ocidental:
revolução sexual, movimento feminista, reação da comunidade negra contra o
preconceito na América, a disseminação de idéias marxistas, dentre outros. No
Brasil, a revolução se dava às escondidas nas universidades e redutos de artistas,
no plano intelectual e cultural, como reação a uma ditadura instalada. E desses anos
pra cá, nunca mais foi o mesmo o poder do Estado sobre o comportamento do
cidadão.

No final do século XX, refletindo a movimentação da população da qual


falamos, a nova situação é a de que não se pode mais pressupor a disposição das
pessoas e dos países para aceitar uma autoridade superior. Começou com as
revoluções jovens e das minorias, que conquistaram direitos reais e tomou forma
com o surgimento de grupos, tribos, sindicatos, enfim, da união de pessoas em torno
de um ideal comum tão freqüente nos anos que se seguiram, coisa que não se via
antes. Com a mesma atitude de insubordinação, muitos países, antes obedientes às
grandes potências, partiram para uma maior autonomia econômica e política, ainda
que lenta. Fizeram isso formaram blocos econômicos regionais, encerrando
períodos de ditadura em seu território (América Latina) e até ameaçando
desenvolver (ou mesmo desenvolvendo) armas nucleares para a sua própria
proteção e algum poder diante das grandes potências. Mas depois da onda de
revoluções, quando todo mundo quis acreditar que poderia conquistar um lugar ao
sol (entre as décadas de 1960 e 1980), o processo sofreu certa desaceleração. Com
quase todos os direitos conquistados e garantidos por lei, as pessoas entraram na
última década do século com a sensação de dever cumprido: era hora de aproveitar
as conquistas, de gozar da vida e, naturalmente, de consumir.

Quando as grandes máximas já não faziam mais sentido (“Brasil: ame-o ou


deixe-o”) e as alternativas de escolha não eram mais restritas a dois pólos apelas
21

(Direita versus Esquerda, Capitalismo versus Comunismo, Cristãos versus Judeus,


Negros versus Brancos) instalou-se na sociedade uma verdadeira crise de
absolutos, uma perda de referências. Diferente de seus pais, as gerações que
desabrocharam e começaram a enfrentar a vida a partir da década de 1990 não se
encontravam mais amparadas por nenhuma máxima e nem precisaram escolher
alguma verdade como absoluta. Elas gozaram do “Tudo é divino maravilhoso” e do
“É proibido proibir” (Caetano Veloso). As alternativas passaram a ser múltiplas, seus
direitos já estavam garantidos e só lhes restava desfrutar dos recursos disponíveis e
se desenvolver individualmente. Afinal, o que elas poderiam fazer pelo mundo que
seus pais já não tivessem feito? Foi o momento propício para a disseminação da
cultura do individualismo, que hoje é tão nítida no mundo ocidental e que foi lançada
pelos Estados Unidos, o país do consumo, a terra da oportunidade, o símbolo do
capitalismo e seu laissez faire. Que outra atitude esperar de jovens que cresceram
sob essas circunstâncias de “liberdade”?

Ação, revolução e luta são ícones da época anterior. Pequenos grupos com
muita força deram lugar a uma grande massa com pequenos ideais que não tem
mais a pretensão de mudar grandes regras, mas sim de modificar pequenas coisas
em sua realidade individual. O próprio pertencimento a uma tribo já não é bem
definido, na medida em que os jovens transitam livremente entre diversos grupos de
acordo com a sua conveniência. É comum encontrar figuras de classe alta nas
metrópoles como a de um adolescente que foi hippie do colégio, depois virou
clubber e agora é “descolado” e dispensa classificações. Aparentemente, não há
nada de mal nisso. O que os impede? São pessoas patrocinadas pelos pais, com
acesso irrestrito à informação e cujo grande investimento da vida (por parte dos pais
e vontade delas mesmas) foi morar no exterior, desenvolver-se profissionalmente
para se destacar no mercado e ser capaz de fazer sua fortuna, realizando seus
desejos de consumo. Seus maiores problemas agora são resolvidos através de um
bom psicólogo e de tratamentos estéticos. Esse exemplo é emblemático para que
então faça sentido perguntar: Lutar pelo que, então?

Para quem viveu o século XX em sua plenitude, mudou o rumo dos


acontecimentos políticos e sociais ou participou de grandes guerras, topar com essa
realidade é uma grande ruptura. Mas o que se há de fazer? Os “baby boomers”
22

(geração de pessoas nascidas após a segunda Grande Guerra, numa explosão


populacional) fizeram toda aquela revolução jovem favorecidos por uma vantagem
numérica quando chegaram à maioridade, mas estão envelhecendo. Aquela massa
que inaugurou os “anos dourados”, que se influenciou pelo “american way of life”,
que foi impressionada pelas maravilhas dos eletrodomésticos e fez da televisão a
principal invenção do século, sumirá do planeta em breve. Não adianta lamentar que
os males do mundo são culpa de uma juventude conformada, passiva ou mimada. A
verdade mais aparente é a de que os valores individuais e coletivos mudaram,
porque as pessoas mudaram, assim como seus sonhos.

As conseqüências em longo prazo dessa nova configuração não são


conhecidas, mas suas previsões também não costumam ser boas. O jovem que foi
ícone da mudança no século que passou, hoje é sujeito e também vítima da nova
realidade, mais passiva e mais homogeneizada (graças à tecnologia e à
comunicação de massa). E, como toda novidade, essa realidade assusta e faz
parecer que estamos sem rumo. É baseado nessa premissa que se desenvolveu o
interesse pelo estudo que me propus a fazer aqui porque é nas crises que
costumam aparecer os caminhos para grandes mudanças.

3.2. A consolidação do Pós-moderno

“Há qualquer coisa no ar. Um fantasma circula entre nós nestes anos
oitenta: o pós-modernismo. Uma vontade de participar de uma
desconfiança geral. Jogging, sex-shops, mas gente dizendo: “Deus
está morto, Marx também e eu não estou me sentindo muito bem.”
Videogames em casa, auroras de laser na danceteria. Nietzsche e
Boy George comandam o desencanto radical sob o guarda-chuva
nuclear. Nessa geléia total, uns vêem um piquenique no jardim das
delícias; outros, o último tango à beira do caos.”
(Jair Ferreira dos Santos, 2000, p. 7)
23

3.2.1. Mas o que é Pós-moderno?

O termo "pós-modernidade" é de ampla definição e foi cunhado pelo famoso


historiador britânico Arnold Joseph Toynbee (1889-1975) na década de 1940,
quando escrevia os seus doze volumes intitulados Um Estudo da História. Toynbee
era um filósofo católico, porém influenciado por religiões orientais.8 Segundo ele, a
pós-modernidade se caracteriza especialmente pela decadência da cultura
ocidental, do cristianismo e de tudo o que é absoluto. Resumindo, no pós-
modernismo, perde força o Cristianismo com sua única verdade absoluta (Jesus
Cristo) e tudo passa a ser relativo. Alguns filósofos franceses também debruçaram-
se sobre o tema da pós-modernidade, entre eles, Jean-François Lyotard, Michel
Maffesoli e Jean Baudrillard.

Mas ninguém sabe por certo quando a pós-modernidade começou. Alguns


afirmam que sua origem foi no início do século XX, outros dizem que foi na metade
do século XX e outros asseguram que foi no início da década de 1980, no pós-punk.
Porém, uma coisa é certa: diversos analistas culturais afirmam que, apesar de não
sabermos quando esta era começou, estamos de fato vivendo em uma sociedade
pós-moderna.

3.2.2. “Vem comigo que no caminho eu te explico” 9

Já na década de oitenta, pairava sobre as sociedades pós-industriais um


clima de dúvida, incômodo, estranheza e desconfiança, muito bem descrito pelo
autor do trecho destacado acima. Foi o momento em que o tal Pós-modernismo
pareceu ter efetivamente se instalado entre nós e que nós, por conseqüência,
parecemos ter acordado para ele. Era uma realidade completamente nova e sem
lógica, em que as coisas não tinham mais o mesmo sentido do tempo dos nossos

8
TOYNBEE, Arnold. Um estudo da História. Brasília: Universidade de Brasília, co-edição Livraria
Martins Fontes, 1986.

9
SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 2000.
24

pais. Mas, apesar de termos nos dado conta disso, não se pode dizer exatamente
que sabemos lidar com essa “(não tão) nova ordem” que aí está.
“Pós-modernismo é o nome aplicado às mudanças ocorridas nas ciências,
nas artes e nas sociedades avançadas desde 1950, quando, por convenção, se
encerra o Modernismo (1900 – 1950). Ele nasce com a arquitetura e a computação
nos anos cinqüenta. Toma corpo com a arte Pop nos anos sessenta. Cresce ao
entrar pela filosofia durante os anos setenta, como crítica da cultura ocidental. E
amadurece na década de oitenta, alastrando-se na moda, no cinema, na música e
no cotidiano, programado pela tecnociência (ciência e tecnologia, invadindo a rotina
com desde alimentos processados até microcomputadores), sem que ninguém saiba
se é decadência ou renascimento cultural.”10 A observação do autor sobre a
tecnociência previu o que seria o cotidiano do ser humano neste terceiro milênio: o
triunfo da tecnologia de massa e individual, saturando-o de três conceitos-chave
para esta análise: informação, diversão e serviços. Informação em excesso, diversão
mais acessível e serviços de todo tipo e pra todos os gostos.

Fredric Jamenson tenta conceituar o Pós-modernismo como “uma revolução


cultural no âmbito do próprio modo de produção capitalista”, passando ainda pelo
conceito de “uma cultura sem profundidade. Aquela que melhor representa a
sociedade de consumo, etapa do capitalismo posterior à 2º Guerra Mundial”. Para o
francês Jean Baudrillard – “Pós-moderno é tudo aquilo que achamos pós-moderno.
Pode ser tudo, ou pode ser nada”.

A fim de se fazer entender o contexto em que se localizam os objetos de estudo


desse trabalho, seguem enumeradas algumas características essenciais do Pós-
moderno em contraposição ao período imediatamente anterior (o Modernismo):

1) Lidamos mais com signos que com coisas, mais com imagens e simulações
que com a realidade crua. Há uma “desreferencialização” do real e uma
supervalorização do simulacro, do espetáculo, já que a maior parte das
informações que chegam até nós se dão através de relatos (a versão

10
SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 7-8
25

fragmentada e parcial de alguém) e não dos próprios fatos. Vide a


importância da televisão e a necessidade de se divertir com a ficção;
2) Vivemos o auge da sociedade de consumo, calcada no prazer que se obtém
usando bens e serviços. É um consumo personalizado que se utiliza do
recurso da sedução e da moral hedonista;
3) No campo da arte em geral, houve a negação do Modernismo, que levava
seu objeto muito a sério, a exemplo de Picasso. O que predomina agora é a
crença de que a arte precisa ser entendida por todos e, inclusive, deve se
inspirar no povo que a contempla. É a arte “pop”, que se dilui nas banalidades
da vida, porque que esta já está saturada de signos estéticos massificados,
uma anti-arte definida pela singularização do banal;
4) No campo da música, mais especificamente, o pós-moderno começou com o
rock e o new wave, que tinham letras niilistas e descontraídas (como “A gente
somos inútil”, do Ultraje a Rigor).
5) No cinema, a inauguração se deu com “Indiana Jones” (uma adaptação do
formato “histórias em quadrinho”), “Guerra nas estrelas”, que eram batalhas
medievais no cosmos, “Blade Runner”, um filme policial com tecnociência e,
ainda, “Salve-se quem puder”, do Godard ou mesmo “Paris-Texas”, do Wim
Wenders, apenas para referência;
6) Nasceram muito próximas as subculturas yuppie (jovens adentrando o
mercado de trabalho com exaltação e aumentando seu poder de consumo) e
punk (jovens pregando a negação total das regras e da moral vigentes,
acreditando que não há futuro);
7) Este período evoca estilos de vida e filosofia onde predomina o niilismo11, o
vazio e ausência de valores. É preciso se entregar ao tempo presente e ao
prazer, ao consumo e ao individualismo, muito mais do que lutar por grandes
causas ou se inspirar no futuro, como ocorria na década de sessenta.
8) Contempla uma civilização pós-industrial, caracterizada pela dedicação às
minorias que atuam na “micrologia” do cotidiano. Já no Modernismo de
antigamente, a civilização industrial era ligada à mobilização de grandes
massas e luta política. Estamos vivendo a chamada “Revolução Molecular”,

11
Niilismo - Filosofia: Doutrina segundo a qual nada existe de absoluto. Ética: Doutrina segundo a
qual não há verdade moral nem hierarquia de valores. Política: Doutrina segunda a qual só será
possível o progresso da sociedade após a destruição do que socialmente existe. (Novo Dicionário
Aurélio).
26

que prega a morte ao “todo” e a exaltação da “partícula”, ou seja, a


valorização das causas individuais em detrimento das causas coletivas. Há
uma desmobilização e uma despolitização das massas, que se tornaram,
acima de tudo, consumistas e conformadas;
9) Ao indivíduo falta um tanto de substância e a aparência precisa dar conta da
identidade. A diferenciação mais segura que se pode fazer de uma pessoa
para a outra é a externa (moda, narcisismo, imitação, simulação);
10) Há uma digitalização do social, que pede tomadas de decisão mais rápidas,
impulsivas e típicas do consumismo. O digital é arbitrário e dissociado
(realidade atual), enquanto que o analógico era contínuo e associado a um
referencial (realidade passada). E a tecnociência não busca mais a verdade,
como a ciência de antigamente, mas busca a performance e o resultado
(exemplo: os esforços estão voltados muito mais para o aprimoramento da
qualidade digital de uma foto do que para a criação de novas máquinas de
congelar a imagens);
11) É representado por um ecletismo, pela mistura de várias tendências e estilos
sob o mesmo nome de “período Pós-moderno”, que é plural, mutante,
inacabado e sem definição precisa;

Uma interpretação negativa do Pós-moderno é a que define a arte como


pastiche (imitação) e ecletismo, condenada a perder a originalidade e acusada de
não saber mais criar. E isso se dissipa para todos ou outros campos da atuação
humana. Outra interpretação, dessa vez positiva, é a de uma “praga saudável”, que
abala preconceitos, põe abaixo o muro entre arte culta e de massa e traz de volta as
coisas boas do passado, encarando a desordem como fértil. Afinal, será a Pós-
modernidade uma decadência fatal ou um renascimento hesitante? “Será agonia ou
êxtase?”12, nas palavras de Jair Ferreira dos Santos.

Hoje, esta dúvida permeia as ações e pensamentos humanos na sociedade


ocidental globalizada e isso é percebido através da pergunta que todos nós fazemos
ou, pelo menos, ouvimos com certa freqüência: “onde o mundo vai parar?” E alguém
sabe? Uma explicação de Nietzsche sobre o niilismo pode nos dar uma idéia de

12
SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 7-8
27

quais seriam as conseqüências do período Pós-moderno: “O niilismo será a fonte


para uma transvaloração de todos os valores”. Significa que novos valores virão em
bases mais sólidas e, ainda, que a saturação do Pós-moderno é a própria semente
para a superação do niilismo. A arte será o fio condutor para um novo estilo de vida.
Haverá a superação do niilismo através de um rejuvenescimento cultural, que aposta
na vida instintiva, na intensificação dos sentidos, no prazer acima de qualquer regra
limitante. Levaremos uma vida enraizada no presente, porém aberta ao futuro. Em
2008 já arrisco dizer que Nietzsche parecia estar cheio de razão.
28

4. A realidade que constrói as bases para o futuro

4.1. Desejo e alienação

Ao indicar que o objeto do desejo é "o que falta", Platão13 (427 - 347 A.C.), em
sua obra “O Banquete”, concebe o desejo segundo o modelo da necessidade: o
desejo é um desequilíbrio que deve ser anulado pela satisfação, isto é, a posse
daquilo de que se carece. Sócrates (470 - 399 A.C.), por sua vez, estabelece que o
desejo é falta, em virtude de sua própria definição, de sua essência. É por isso que,
necessariamente, segundo ele, desejamos o que falta.

Uma objeção possível consistiria em dizer que podemos desejar o que já


possuímos (saúde, por exemplo) no sentido de que queremos conservar essas
coisas. Sócrates rebate esta objeção mostrando que ela em nada muda a ausência
que sempre caracteriza o objeto do desejo: desejar um bem para o futuro,
independentemente de possuí-lo agora ou não, é sempre desejar algo de que não
dispomos (ainda). A rigor, só é possível desejar para o futuro a conservação de um
objeto porque a antecipação da perda (da falta eventual) também é possível.

O objeto, então, só se faz desejar na medida em que não é atual nem


presente. O objeto do desejo só brilha pela sua ausência. O desejo é compreendido
em Platão do ponto de vista de sua função: de nos estimular a corrigir um
desequilíbrio, a restabelecer um equilíbrio, a resolver uma falta. Sabe-se que o
funcionamento da sociedade contemporânea é baseado na repressão dos desejos
do indivíduo e seu re-encaminhamento para o investimento no trabalho: a civilização
impõe o triunfo do princípio da eficácia sobre o princípio do prazer

H. Marcuse14 (1898 - 1979), afirma que a alienação é um estado de


subordinação e de frustração. Isto porque, no trabalho, o indivíduo não desenvolve

13
PLATÃO, O Banquete. Lisboa: Edições 70, 1991.
14
MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1999, 8ª edição.
29

suas próprias faculdades e desejos, mas sim o executa no sentido da coletividade


que o reprime. Ao invés de representar uma realização para o agente, o trabalho
reduz-se a uma atividade penosa, imposta. O lazer, em função disso, é apenas um
momento de recuperação. Aprende-se com Marx e Freud que para assegurar a
generalização de um trabalho percebido como penoso a sociedade deve restringir a
libido de forma eficaz. Esse princípio, próprio de uma sociedade orientada para o
lucro e a produtividade, deve prevalecer sobre o princípio do prazer, isto é, sobre a
busca da felicidade pelo indivíduo que deseja.

Também segundo Freud, esta substituição exige uma manipulação das


consciências para sublimar os instintos de agressão e os desejos sexuais em
interesse por trabalho. Trata-se de interiorizar a autoridade social por aqueles que
dela são vítimas. É o que Marcuse15 denomina “sobrerepressão”, na qual os
indivíduos, impossibilitados de identificar qualquer dominação, reconhecem-se
exatamente nesta sociedade que os oprime. A ordem social, apresentada como
ordem natural ou normal, permite aceitar melhor a conversão do princípio de
prazer16 em princípio de eficácia. A força do liberalismo, portanto, está na ilusão de
liberdade, causa a sensação de que há uma felicidade razoável e ocasional e
provocando a conversão do desejo de felicidade em frenesi de consumo.

4.2. O Mercado

4.2.1. A definição do “eu” através do outro

Se a felicidade pode ser traduzida em frenesi de consumo, é válido considerar


que, na nossa era, consumir é existir. E saber-se “existindo” pressupõe uma
comparação com o outro, na medida em que a existência do outro é que dá
condições para o sujeito reconhecer a própria existência, como veremos adiante em
Sartre.

15
MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1999, 8ª edição.
16
FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer (1920). Rio de Janeiro: Imago, 1976.
30

Segundo R. Descartes17 (1596 - 1650), só uma troca de signos indica a


presença da alma num corpo e pode nos fazer considerar a existência de um alter
ego. Já E. Husserl18 (1859 - 1939) descreve o encontro com o outro como uma
experiência que dá sentido à aparição do outro na paisagem mental do sujeito, mas
não coloca em questão a estrutura do “meu” próprio ser. Já para J-P. Sartre19 (1905
- 1980), ao contrário, o aparecimento do outro afeta profundamente o sentido do que
“eu” sou. Ele afirma que, para se dar conta do encontro com o outro, o sujeito não
pode se limitar, como propunham Descartes e Husserl, a uma operação interior da
consciência. Porque a partir do momento em que o outro se apresenta a mim e
começa a me olhar, tudo se altera.

A partir desses pensamentos, pode-se concluir que o olhar do outro nos


“envelopa”, nos limita. Quando alguém nos olha demoradamente não se pode
impedir certo estranhamento ou curiosidade da nossa parte a respeito. Isso revela
uma inquietação: o sentido do que “eu” sou parece estar a mercê do julgamento do
outro; enfim, a experiência do outro também é definidora do “eu”.

Nesse caso, não se trata mais de compreender como eu encontro o outro a


partir da consciência que tenho de mim mesmo (Husserl), mas como, a partir do
outro, determina-se o sentido do que eu sou. Resumindo, enquanto Husserl
descreve o encontro com o outro a partir de uma experiência do eu, Sartre, do seu
lado, considera o eu como constituído pelo olhar do outro.

4.2.2. Quem encarna hoje o Grande Outro?

O capitalismo, cenário fértil para o deleite do desejo e que se estende por


praticamente todo o globo, tem um modelo de mercado que supera qualquer
diferença cultural e um objeto de consumo que pode ser entendido como uma

17
DESCARTES, René. Lettres au marquis de Newcastle (23 novembre 1646). Paris: Classique
Garnier, 1973.
18
HUSSERL, Edmund. Erste Philosophie (1923-1924), Husserliana, 1959.
19
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.
31

materialização do que Lacan chamava de “objeto a” (objeto causa do desejo). Por


não rivalizar com nenhum outro modo de produção, este sistema revelou a
economia como sendo meio e finalidade entre os paises ocidentais. Segundo
Marcos do Rio20, em seu texto intitulado “Objeto do desejo. Objeto do gozo. Objeto
do consumo”, “Quando da falência da União Soviética, alguns analistas chegaram a
interpretar esse fato histórico como uma vitória do sujeito diante da submissão ao
gozo do Outro”. Embora esse sistema, hoje quase sem oposições, pareça libertar
completamente o sujeito da mão protetora do Estado e a sociedade de qualquer
órgão regulador dos meios de produção, é interessante notar que, na verdade, há
sim um Outro que funciona como instância anônima e reguladora das vontades
individuais. Este Outro é o mercado.

Também segundo Marcus do Rio Teixeira, se Sujeito e Mercado estivessem


articulados, então o mercado funcionaria, teoricamente, de forma perfeita e as trocas
sociais seriam reguladas pela soma das vontades individuais de lucrar, e somente
isso. Então cada sujeito daria livre curso ao seu desejo, com sua característica mais
egoísta, e mesmo assim o resultado seria a melhor sociedade possível. Mas isso se
opõe à concepção freudiana que apontava um antagonismo entre as pulsões e a
cultura. Aquele que para Freud seria talvez um perverso é, segundo a nova
concepção, o bom cidadão, que busca o extremo do seu gozo.

Outra ótica, não menos interessante, vem de Ricardo Estacolchic21 em um


artigo de 1997. Nele, o psicanalista chama a atenção para a maneira pela qual
costumamos nos referir ao mercado, como se este fosse um sujeito, o que pode ser
constatado em enunciados como “o mercado reagiu bem à declaração do ministro”,
ou “o mercado ficou nervoso com a venda da companhia tal”. E se o mercado pode
ser encarado como uma espécie de sujeito, então as corporações que são a base de
sustentação desse mercado também podem sofrer comparação semelhante. Isso
resgata uma questão central citada no capítulo 2.2, “As bases estabelecidas pela

20
TEIXEIRA, Marcus do Rio. Psicanalista, editor da Agalma, autor de Genealogia do banal (1981) e A
feminilidade na psicanálise e outros ensaios (1991).
21
ESTACOLCHIC, Ricardo. Corrupção. In: GOLDENBERG, Ricardo (org.) – Goza!: Capitalismo,
globalização e psicanálise. Salvador: Ágalma, 1997. In: MARTINS, Valdir. O boato como expressão
comunicacional do mercado financeiro. In: Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da
Comunicação. XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Santos: INTERCOM, 2007.
32

Globalização”: as corporações ganharam um poder de ação que tende a prevalecer


sobre os sistemas políticos, os parlamentos, os tribunais e, inclusive, afetar a opinião
pública.

Este poder é ilustrado no peculiar veredicto dado por um juiz americano em


1886 quando o Condado de Santa Clara, Estados Unidos, enfrentou nos tribunais
uma poderosa companhia de estradas de ferro. A argumentação era de que "a
corporação ré é um indivíduo que goza das premissas da 14ª Emenda da
Constituição dos Estados Unidos, que proíbe ao Estado negar, a qualquer pessoa
sob sua jurisdição, igual proteção perante a lei" 22. Isso significa que, a partir daquele
momento, era estabelecida uma jurisprudência através da qual, perante as leis
norte-americanas, corporações poderiam se considerar indivíduos. Não à toa o
nome que se dá a essa condição é de “Pessoa Jurídica”.

No documentário The Corporation (A Corporação)23, encontra-se uma


radiografia das corporações encaradas como seres autônomos, que funcionam de
acordo com um conjunto de regras e motivações que são bem diferentes das que os
seres humanos têm. Elas apresentam um "comportamento" que, de tão voltado à
busca pela realização “pessoal” em detrimento de qualquer dano causado a
terceiros, esbarraria numa psicopatia. O objeto de análise do filme é o
relacionamento das grandes companhias com os indivíduos, social, cultural e
politicamente.

Por terem sido criadas com o único objetivo de tornar mais eficiente o
acúmulo de capital, essas empresas têm regras corporativas que vão muito além do
que os seus acionistas ou presidentes podem controlar, inclusive prejudicando
cidadãos e a sociedade sem que essas pessoas físicas possam fazer algo a
respeito. Pessoas nesses cargos representam uma companhia, mas não têm
qualquer poder para impedir um impacto, por exemplo, ecológico se o sistema assim

22
SOARES, Tiago. Frankestein no divã. In: REVISTA ESPAÇO ACADÊMICO. Julho de 2004. Mensal.
Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/038/38cult_soares.htm
23
The Corporation (A Corporação): direção de Mark Achbar e Jennifer Abbott, roteiro de Joel
Bakan, Canadá, 2004. Documentário, baseado no livro “The corporation - the pathological pursuit of
profit and power”, de Joel Bakan.
33

autorizar (e estiver nos termos da lei, claro). Pessoa física e jurídica totalmente
descoladas em uma relação já fora de controle e balizada pelas regras capitalistas,
eliminando a força de qualquer bom senso. Irônico e assustador, porque pessoas
jurídicas não têm sentimentos, não têm medo, não têm consciência. Pessoas físicas
os têm, mas eles de nada adiantam se elas estiverem sem possibilidade de agir no
âmbito corporativo, que tem dimensões astronômicas quando comparadas ao
universo do humano.

Num cenário em que Mercado e Corporação podem atuar como personagens,


seria de igual coerência dizer que, apesar de vivermos em uma sociedade onde a
presença de um Deus é altamente questionada, quiçá duvidosa, parecemos todos
necessitar da crença em um Grande Outro, onisciente e onipresente. Maria Rita
Kehl24 tem uma visão interessante que convida a refletir sobre essa comparação. Se
o mercado conta com certa força do acaso, então seus “deuses” dispõem as
mercadorias em circulação no mundo na mesma proporção em que o Deus cristão
dispunha as forças da natureza, para castigar ou recompensar seus fiéis.

Uma nova versão imaginária do Outro parece ocupar o lugar de um ser


poderoso deixado vazio pelo Deus cristão. Este Outro pode ser, simbolicamente, o
mercado e, nesse caso, como se quer provar neste trabalho, as pessoas passam a
pautar suas escolhas de vida por esse parâmetro. E esse mesmo deus,
aproveitando a metáfora, tem como meio de propagação da sua palavra a mídia.
Portanto hoje o laço social é organizado com base em um Outro emissor de imagens
que se oferecem à identificação e apelam ao gozo, quase ilimitado.

4.3. Mídia alimenta essa dinâmica de mercado

O fato original, real, está encoberto pelo véu da versão. Freud, por
sinal, faz-nos crer ter-se dirigido ao real enquanto factual, mas o real
está posto a partir do primeiro traço de inscrição da, se assim

24
KEHL, Maria Rita. A publicidade e o mestre do gozo. Comunicação, Mídia e Consumo, publicação
quadrimestral. São Paulo: Escola Superior de Propaganda e Marketing.
34

podemos dizer imaginariamente, primeira versão apresentada ao


25
sujeito pelo campo da linguagem. (Paulo Medeiros)

Para Lamizet26 o sujeito na comunicação pode ser observado em três


dimensões fundamentais: a primeira, um modo de descrição dos comportamentos e
das práticas sociais; a segunda, uma abordagem única das relações entre os
sujeitos no campo da cultura e das representações simbólicas; e a terceira, a
dimensão enunciativa do sujeito, ou seja, da sua função de discurso.

Na primeira dimensão, o sujeito é a sua trajetória social e a manifestação de


um aprendizado social duradouro. É nessa dimensão que temos noção de
pertencimento uma comunidade. Já a segunda dimensão é pertencer a um grupo e
ter um papel na sociedade, caracterizada pela “solidariedade mecânica” (Durkeim) e
pelos “laços de comunidade” (Tonnies). Nela, o sujeito existe na medida em que se
parece com os demais, considerando uma sociedade anterior ao indivíduo e
marcada por uma consciência coletiva, e sua identidade não é o que o diferencia
dos demais, mas sim aproxima pela semelhança. Por fim, a terceira dimensão é que
atribui à comunicação um sentido estético, material, que dá corpo à linguagem e dá
à realidade do sujeito uma visibilidade socialmente reconhecida.

A relação da subjetividade com a produção informativa (que podemos


considerar iniciada antes da prensa de Gutemberg, talvez já com a confecção dos
livros pelos monges da Idade Média pré-inquisição) sempre colocou produtores e
produtos informativos em lados opostos. O que faz um jornal não é a soma das
notícias puras, relatando ipsis litteris um evento, mas sim os jornalistas que as
escrevem a partir do olhar de um observador desse evento. Descontando o fato de
que o surgimento da internet, tema a ser tratado mais adiante, deve mudar essa
relação de produção e consumo de conteúdo, sempre estivemos sob uma lógica
unilateral que tornava o sujeito apenas passivo em relação aos meios de
comunicação. Isso formatou a nossa sociedade como ela é hoje por vários séculos,

25 MEDEIROS, Paulo. Conceitos Fundamentais da Psicanálise - Apresentação, leitura e comentários


de Seminários e Textos de Jacques Lacan: Os Nomes-do-Pai e Os quatro conceitos fundamentais da
Psicanálise, junho de 2004.
26
LAMIZET, B. Les lieux da la communication. Liège: Magdaga, 1992. In: BARROS Filho, Clóvis de.
a
Ética na comunicação. São Paulo: Summus Editorial, 1995, 5 edição.
35

uma vez que nós somos limitados pelos nossos sentidos, que nos impedem de
flagrar o mundo todo em sua completude, e vivemos impactados pelos relatos
transmitidos pelos meios de comunicação.

A dinâmica dos meios de comunicação estabeleceu um certo domínio sobre a


forma como os seres humanos se relacionam com o mundo e entre si. Vejamos, por
exemplo, a hipótese da “Agenda Setting, apresentada por McCombs e Shaw27
(1972), elaborada a partir do estudo da campanha eleitoral para a Presidência dos
Estados Unidos, em 1968. Ela destaca que os meios de comunicação têm a
capacidade (não intencional nem exclusiva) de agendar temas que são objeto de
debate público e que a comunicação inter-pessoal é importante no que diz respeito à
manutenção ou não dos temas na agenda pública e à intensidade de debate público
sobre esses temas.

Enfim, se não fosse pela comunicação e suas diversas formas


contemporâneas de manifestação e propagação, as imposições do Mercado,
principal foco deste trabalho, provavelmente não teriam tanto fôlego para influenciar
e alterar a dinâmica da sociedade.

As primeiras referências aos estudos sobre meios de comunicação são da


Escola de Frankfurt e apontam o termo “indústria cultural”, usado por dois de seus
28
teóricos, T. Adorno e M. Horkheimer , que se referem a esses meios como sendo
elementos de controle e manipulação do pensamento. Nesse contexto, o consumo
de produtos culturais implicaria em posturas de aceitação da ordem social levando
todos os elementos da cultura a uma fórmula de banalização pela repetição e pelo
excesso de exposição. Isso define a comunicação de massa à que estamos
expostos mais intensamente desde a popularização da tecnologia televisiva.

Um expectador passivo, portanto, estaria sob o controle de quem detém o


conteúdo dos meios de produção e não seria ele um sujeito dessa indústria, mas sim
produto dela. Ou, se preferirmos acreditar que o expectador não é completamente

27
The agenda setting function of mass media, Public Opinion Quarterly, n.36, 1972, p. 176-187. In:
BARROS Filho, Clóvis de. Ética na comunicação. São Paulo: Summus Editorial, 1995, 5a edição.
28
Ver: ADORNO, Theodor W. A Indústria cultural. In: COHN, Gabriel. Comunicação e Indústria
Cultural. São Paulo: Nacional, 1975.
36

passivo, uma vez que interpreta a mensagem de forma particular, então teríamos
sim um sujeito que participa ativamente dessa indústria cultural. Mas isso só seria
verdadeiro se esse sujeito de fato interferisse no conteúdo produzido, exigindo, por
exemplo, qualidade e rejeitando apelação. Talvez essa seja uma distinção possível
de se fazer quando se compara uma Alemanha com o Brasil, considerados os
índices de educação desses países e o grau de envolvimento da opinião pública
com o conteúdo propagado. Mas não se pode negar que em qualquer lugar
civilizado do mundo a força da mídia se impõe e faz prevalecer o gosto médio, a
padronização, graças ao seu aspecto “massificador”.

Some-se a isso o imenso poder de propagação de uma mensagem e o efeito


causado pela recorrência dessa propagação, para então ter uma idéia de quanta
informação chega até nós sob a forma de relatos. Isso faz lembrar que, para
qualquer tipo de assunto, independente do grau de “fidelidade” ao fato original,
sempre haverá potencial para a formação de uma “opinião pública”.

Como o agenda setting, existe também a hipótese da “Espiral do Silêncio” 29, de


autoria da professora alemão Elizabeth Noelle-Neumann, e de igual sucesso no
meio científico. Trata-se de um modelo que incide sobre a relação entre os meios de
comunicação e a opinião pública, que representou uma nova ruptura com as teorias
dos efeitos limitados da comunicação social. Essas idéias, conciliadas com a
hipótese do agenda setting, contribuíram para reafirmar a visão de que a
comunicação social tem efeitos poderosos e diretos sobre a sociedade e as
pessoas. Seu pressuposto é de que as pessoas temem o isolamento (por isso o
“silêncio”), buscam a integração social e gostam de ser populares. Por isso, têm de
permanecer atentas às opiniões e aos comportamentos majoritários e procuram se
expressar dentro dos parâmetros da maioria.

Mas qual o papel da comunicação social na formação da espiral do silêncio?


Nessa teoria, os meios de comunicação tendem a dar mais espaço às opiniões
dominantes, fazendo-as se assemelhar ao consenso e contribuindo para neutralizar
as minorias ao isolar as suas opiniões. Ou então, tendem a privilegiar as opiniões

29 a
BARROS Filho, Clóvis de. Ética na comunicação. São Paulo: Summus Editorial, 1995, 5 edição.
37

que parecem dominantes devido, por exemplo, à facilidade de acesso de uma


minoria ativa aos órgãos de comunicação social, reforçando o sentimento de que
essas opiniões são dominantes quando não são. Pode até existir uma maioria
silenciosa que passe por minoria devido à ação dos meios de comunicação. Sob
este prisma, o conceito de opinião pública como opinião dominante ou opinião
consensual é uma ficção. Confunde-se opinião pública com o conjunto das opiniões
expressas pelos meios da comunicação social, já que é através destes que a opinião
se torna pública.

Bem, as pessoas precisam consumir as informações veiculadas pelos meios de


comunicação que, por sua vez, exercem sobre elas uma influência forte e direta. As
condições para isso ocorrer baseiam-se em três pilares: exposição sucessiva aos
meios; uniformidade da informação veiculada pelos meios, devido à forma
semelhante como as notícias são fabricadas e transmitidas; e a publicidade, que
pretende traduzir o caráter público das opiniões expressas nos meios. Seu
componente persuasivo acaba impulsionando determinados comportamentos sociais
e esse fato muito nos interessa para essa análise.

4.3.1. A publicidade e o mestre do gozo

A publicidade sobrevive do desejo humano, que, como já foi citado aqui, se


alimenta do consumo e, em tese, nunca cessa.

Afirmar, como faz René Girard30, que o desejo se constitui sempre sobre um
modelo mimético é mostrar que o desejo é provocado não tanto por um objeto, mas
por um outro, o rival, que já deseja este objeto. Em outras palavras, a estrutura do
desejo é triangular: há sempre o sujeito, o objeto e o rival que os coloca em relação
por seu próprio desejo.

É possível deduzir, portanto, que a necessidade do sujeito de ter um modelo


se inscreve num fundo de incerteza sobre si e de sentimento de incompletude: ele

30
GIRARD, René. La Violence et le Sacré. Paris: Grasser, 1972
38

não nasce com uma identidade já constituída; ele deve se constituir como sujeito.
Para tanto, deve emprestar alguma coisa a um outro que parece se afirmar pelos
seus próprios desejos, como vemos em Lacan. Este empréstimo se dá por
mimetismo, isto é, por uma forma de imitação em função da qual acreditamos nos
apropriar de uma personalidade. Ora, o que faz a publicidade oferecendo razões o
tocando o coração dos consumidores nada mais é que oferecer a eles fantasias,
personagens, personalidades, identidade por analogia.

O mundo capitalista que, como já foi comentado, está em sua fase mais
consumista é organizado pelo fetiche, como lembra Maria Rita Kehl31. Nas
sociedades de consumo o fetichismo é a normalidade. O que já se conhecia através
de Marx, como o fetiche da mercadoria, passa a incluir também a leitura freudiana
desse mesmo fetiche, que está associada às modalidades perversas de gozo. A
publicidade, como é o caso aqui, soma às mercadorias um tipo de fetiche, da
imagem e da marca, que será exposto numa mídia de massa e, portanto, estará à
disposição do olhar de todos, não importando o poder aquisitivo. Nesse contexto,
pode-se atribuir aos publicitários (sempre munidos de pesquisas de mercado e
sabendo perfeitamente o que querem de seu “público-alvo”) o papel de “mestres do
gozo”, cujo poder de influência se parece com o fascínio que os perversos exercem
sobre os neuróticos.

Também no texto de Maria Rita Kehl é feita uma referência a Eugênio Bucci
em vários de seus artigos para a Folha de São Paulo e o Jornal do Brasil, que diz
que “o apelo psicológico comum a todas as formas de publicidade visa à dinâmica
da inclusão e da exclusão”. Isso se explica pelo fato de que a publicidade se constrói
sempre sobre a mesma lógica, aquela que propõe uma inclusão do sujeito às custas
da exclusão do outro. Naturalmente, o espectador que se identifica como
consumidor do produto anunciado, produto este que se apresenta como sendo
capaz de agregar valor à sua personalidade ou imagem, promove a sua inclusão
imaginária no sistema de gosto e de estilos que dá o tom da nossa sociedade. O
interessante é observar que não se goza tanto com a própria inclusão (que pode ser

31
KEHL, Maria Rita. A publicidade e o mestre do gozo. Comunicação, Mídia e Consumo, publicação
quadrimestral. São Paulo: Escola Superior de Propaganda e Marketing.
39

apenas fantasiosa) mas muito mais pela não-inclusão do outro que, segundo essa
lógica, nos qualificaria.

A publicidade também pressupõe a proliferação de uma mercadoria-imagem,


graças à presença maciça da “tela fundamental”, a grande intermediária entre o ser
e o mundo. Vale lembrar que todos nós conhecemos o mundo através de relatos dos
fatos, principalmente, e não só por experiências ou o contato real com esses fatos
propriamente ditos, claro. Bem, essa proliferação permite certa democratização do
gozo, já que nem todos têm acesso à posse da mercadoria mas têm acesso ao gozo
das suas imagens.
40

5. Um novo horizonte para a humanidade

Se a dinâmica dos meios de comunicação estabeleceu para a humanidade


certo domínio sobre a forma como as pessoas se relacionam (com o mundo e entre
si), então a era em que estamos vivendo é um marco de mudança nesse tipo de
relação.

Como já foi visto nesse trabalho, segundo Nietzsche, a saturação do Pós-


moderno é a própria semente para a superação do niilismo. Vimos com ele que a
arte seria o fio condutor para um novo estilo de vida e que o niilismo seria superado
via rejuvenescimento cultural. Que levaríamos uma vida enraizada no presente,
porém aberta ao futuro. A seguir, eis porque todos esses elementos parecem fazer
sentido.

5.1. A possibilidade digital

Dos três registros de Lacan32, nos quais se desenvolve a experiência humana,


interessa-nos nesse momento o Simbólico, definido como o domínio da organização
estrutural da vida social. Como Lacan subordina a sociedade e a cultura à
linguagem, a ordem simbólica nada mais é que um conjunto de significantes que
determina os lugares que cada um pode ocupar na vida social. Partindo desse
pressuposto, se considerarmos a internet como o principal meio de comunicação e
de propagação da linguagem daqui por diante, a pergunta natural seria: “como isso
vai afetar a ordem social do nosso tempo?”.

Antes de analisar mais a fundo o meio internet, faz-se necessário dar um passo
adiante e investigar o impacto de uma vida digital sobre a humanidade. Segundo
descrição que se encontra na enciclopédia online Wikipedia, digital é a informação
do mundo real transformada na linguagem do composto binário. Segundo o
dicionário Michaelis da Língua Portuguesa, refere-se ao circuito eletrônico que

32
LACAN, Jacques. Os nomes do pai. Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
41

produz e responde a sinais que se encontram em vários níveis possíveis


(geralmente dois), facilitando a transmissão e o processamento dos dados. Ou seja,
pode-se considerar que a era digital, com impacto sobre a grande massa
populacional, teve início com a popularização dos computadores e,
consequentemente, a criação de uma nova cultura, uma cultura digital.

Pierre Lévy em sua obra “A inteligência coletiva”33 analisa a relevância das


redes virtuais de comunicação para o surgimento de um novo espaço do saber e
destaca a emergência de uma "inteligência coletiva", que só é possível graças às
tecnologias de informação, que permitem aos grupos sociais compartilhar
conhecimentos. Este é o ciberespaço, onde nasceu a cibercultura, uma expressão
que pretende centralizar os múltiplos usos do mundo virtual. Lévy afirma que são
três os princípios fundamentais da cibercultura: a interconexão, as comunidades
virtuais e a inteligência coletiva. Nesse conceito, a conexão é sempre preferível ao
isolamento, ela é um bem em si mesmo porque insere a humanidade em um mundo
sem fronteiras.

Inicialmente, ponderou-se que o ciberespaço poderia apenas reproduzir o


espetáculo e a mídia em grande escala, concorrendo com as demais formas de
propagação da informação, somente como um novo meio de comunicação. Mas hoje
está claro que ele tem potencial para muito mais, sendo possível afirmar que já está
se “formando” toda uma geração centrada na inteligência coletiva. O que há de novo
é a apropriação social da tecnologia da web e o progressivo crescimento de um tipo
de espaço público global. O próprio Lévy arrisca dizer, como já apareceu no discurso
científico, que o futuro deve nos apresentar algum tipo de inteligência artificial
distribuída.

Quanto mais pessoas tiverem acesso ao ciberespaço, mais amplas serão as


formas de sociabilidade que as envolvem e maior será o grau de apropriação das
informações por diferentes agentes, com poder para customizá-las segundo seus

33
LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Loyola,
2000.
42

próprios valores (culturais e estéticos). Por isso, para Lévy, se o ciberespaço


globaliza o consumo de produtos e informação isso nada tem a ver com dominação.
O que ocorre é que quanto mais universal for essa oferta, menos totalitárias serão
as condições em que ela existe.

Cabe apontar a definição para "virtual" não como sendo algo que se opõe ao
"real", mas sim ao "atual". O virtual seria, portanto, o que existe potencialmente.
Esse raciocínio de “existir potencialmente” abre caminho para um entendimento
muito amplo do ciberespaço, permitindo classificar o “local” onde se encontra uma
informação de pontos de vista distintos: fisicamente ela está estocada em algum
servidor, mas se pode ser recuperada de qualquer ponto e a qualquer momento,
então ela está em toda a parte ou, melhor ainda, ela está sempre à nossa
disposição. "Virtual" e "atual" são, portanto, dois modos opostos que desafiam até
mesmo a nossa concepção sobre o tempo, sendo o primeiro aquele que aponta para
o futuro e para o “sempre”.

Por fim, a noção de que o ciberespaço não é só mais um meio, passível de ser
classificado na mesma dimensão dos “multimídia”, leva a crer que, na verdade, ele é
o suporte das mudanças culturais mais rápidas e, arrisco dizer, mais significativas da
nossa era. Ou seja, não é tanto a representação da informação, mas o modo de
relação entre as pessoas, totalmente reinventado pela internet, que impulsionará as
transformações daqui pra frente. A internet será o meio e a motivação, portanto, de
uma nova ordem mundial.

5.2. A internet como agente de mudanças

Por tudo o que já foi exposto nesse capítulo, a rede não funciona apenas como
uma ferramenta para a democracia ou a ampliação do conhecimento coletivo. Ela é
fundadora de uma verdadeira civilização. E isto está apenas começando.

O mundo virtual está cada dia mais ao alcance da grande massa. Anunciou o
Jornal Meio&Mensagem, de junho de 2008, que “a venda de computadores no Brasil
já supera a de TV. Estudos de Mercado apontam mais de 40 milhões de internautas
43

no Brasil (Ibope) ou até 50 milhões (Datafolha) e o recorde mundial em navegação


diária”. Combinada com a TV digital, que permite gravar e programar os conteúdos
veiculados de acordo com o “gosto do freguês”, e com toda a mobilidade
proporcionada pelos celulares, computadores portáteis e conexão sem fio, o perfil do
usuário de tecnologia tende a não parar de se diversificar (e se qualificar). A
resposta da indústria a isso se vê através da propaganda. Em matéria do Jornal
Propaganda & Marketing, de 23 de junho de 2008, encontra-se a informação de que
“no primeiro trimestre deste ano os investimentos publicitários em internet
ultrapassaram os da TV a cabo e da mídia outdoor”. Isso representa um crescimento
de 47% em relação ao ano anterior.

Mas a publicidade também sabe que está encontrando pela frente um novo
consumidor, um novo público-alvo. Este antigo “receptor” das informações
disponibilizada pelos meios passa a ser um receptor-agente, na medida em que
recebe, mas também produz, o conteúdo que circula na rede. Estamos prevendo a
participação do espectador em um processo de interação com o conteúdo.
Diferentemente da relação tradicional, por exemplo, com a televisão, que impõe seu
conteúdo e sua forma de propagação, na interatividade há uma relação entre
máquina e usuário na construção da mensagem. Gianfranco Bettetini34, no ensaio
intitulado “Semiótica, computação gráfica e textualidade”, define a interatividade
como a “capacidade do sistema de acolher as necessidades do usuário e de
satisfazê-lo”.

Isso modifica a lógica do agendamento dos temas a serem tratados (agenda


setting); a Espiral do Silêncio e sua lógica da opinião dominante; a exigência desse
consumidor, que tem acesso a um mundo inteiro de informações irrestritas; a
experiência dele com um produto; a sua exposição a uma mensagem, enfim, isso
modifica completamente todas as regras de comunicação e as medidas de eficiência
dos meios que conhecíamos até hoje.

34
BETTETINI, Gianfranco. Semiótica, computação gráfica e textualidade. Rio de Janeiro: Objetiva,
1996.
44

Nesse novo jeito de encarar e interagir com o mundo, talvez a conseqüência


mais encantadora diga respeito à identidade das pessoas e ao vínculo social entre
elas, pois ambas as coisas podem se expandir via intercâmbio de conhecimento.
Indo mais longe, a rede permite que todas as pessoas participantes dela se
apresentem e atuem segundo seu conteúdo, eliminando completamente o peso da
imagem ou do histórico. Ou, melhor que isso, criando para si uma nova “imagem”,
desta vez virtual. Por exemplo, no metaverso35 “Second Life” (http://secondlife.com/)
mais importante do que ter capital ou contar com pessoas influentes, é entender de
programação visual, pois esse conhecimento possibilita modificar e definir todos os
elementos que compõem esse universo.

Se por um lado, é essencialmente via conhecimento compartilhado que as


pessoas têm a chance de se apresentar às outras no ciberespaço, por outro as
formas de conexão entre elas são as mais variadas e todas têm uma motivação
muito forte de conteúdo para existir. Inicialmente, a internet se apoiou sobre o pilar
da Informação. Depois ficou evidente que a sua força se devia em partes à
Interatividade que ela proporcionava. Hoje, o sucesso da rede é atribuído também à
Experiência que ela permite viver. Informação, Interatividade e Experiência formam o
tripé de sustentação dessa magnífica possibilidade de se relacionar com o outro e
com o mundo.

Embora o tripé funcione sempre junto, é especialmente por causa do pilar da


Experiência que os “produtos da rede” hoje são tão diversificados e se desenvolvem
em ritmo acelerado, garantindo a permanência cada vez maior dos internautas
online. Ferramentas de busca (lideradas pelo Google); redes sociais como Orkut,
Facebook ou MySpace; disponibilidade de conteúdo audiovisual para download,
divulgação e compartilhamento, como Youtube, LimeWire ou Flickr (especialmente o
caso a música, que obrigou a indústria fonográfica a se enquadrar em novas regras
de direitos autorais e distribuição, ainda não muito bem resolvidas); os blogs e

35
O Metaverso é um mundo virtual, descrito a primeira vez por Neal Stephenson em uma obra de
1992, intitulada Snow Crash, onde humanos interagiam como avatares com outros “indivíduos’ que
eram, na verdade, softwares de computador, num espaço tridimensional que representava o mundo
real. (definição da wikipedia: http://en.wikipedia.org/wiki/Metaverse)
45

fotologs, verdadeiras “revistas” individuais que não impõem barreiras ao conteúdo e


à propagação da mensagem; ou simplesmente viver uma experiência de compra e
conhecer determinado assunto à distância de um click. E o que dizer da linguagem
utilizada na internet (abreviada, modificada, recriada), que é muito particular e
estabelece códigos totalmente novos para a comunicação? Do ponto de vista
semiótico, essa questão daria um trabalho de conclusão de curso inteiro só a seu
respeito, partindo das novas formas de manifestação da identidade que essa
realidade inaugurou.

Não pretendendo aprofundar esse trabalho no âmbito das interfaces da rede,


faz-se necessário apenas apontar mais um exemplo que ajuda a construir uma
conexão com a conclusão. O desenvolvimento das comunidades virtuais se apóia na
interconexão. Uma comunidade virtual é motivada pela identificação, via afinidades
de interesses, de conhecimentos, em um processo de cooperação ou de troca das
pessoas participantes, anulando a necessidade de uma variável geograficamente
favorável. Qualquer semelhança com as características de uma religião não é mera
coincidência.

Resgatando Lévy, o princípio da inteligência coletiva seria a perspectiva


espiritual da cibercultura, sua finalidade última. E é essa perspectiva que nos aponta
o caminho para uma reflexão a respeito do Grande Outro de que tanto tratamos
aqui. Se a cibercultura é quase uma nova fé, então talvez o mercado tenha nela uma
grande concorrente, daqui por diante, pela ocupação do espaço deixado vazio pelo
Estado e pelo Deus judaico-cristão. Poderia sugerir que as relações sociais tendem
a deixar de ser somente balizadas pelas leis de mercado, como acontece hoje, mas
não arriscaria dizer como seriam as “novas leis” desse plano. É difícil conseguir
enxergar (apenas) um grande novo mestre nesse universo de infinitas possibilidades
e muitos “donos”, que é o campo virtual.
46

6. Conclusões

Demonstrou-se nesta pesquisa que todas as configurações sociais, políticas e


econômicas do último século resultaram num cenário contemporâneo fortemente
determinado pelas leis de mercado. Falamos hoje em “consumidores” quando
queremos nos referir a “pessoas”. Dessa forma, foi possível investigar as causas de
se atribuir ao mercado o papel de Grande Outro.

Analisando-se sob essa perspectiva a situação que se seguiu, foi possível


investigar as conseqüências dessa configuração. Mais adiante, atribuiu-se ao
surgimento de meios mais interativos a possibilidade de se estabelecer uma nova
relação (mais ativa) das pessoas com a comunicação e a informação, abrindo
caminho para novas leis nas relações sociais que poderiam diminuir ou anular a
atribuição do mercado como único Grande Outro. A própria situação das novas
gerações, que têm desde cedo uma relação muito diferente e “multi-tarefa” com a
tecnologia, profetiza uma extraordinária mudança na maneira como nos
relacionamos entre nós e com o mundo.

“Diz-me o que consomes e te direi quem és”, em breve, provavelmente, será


substituído por “diga-me o que você quer ser para que eu possa escolher como me
apresentar, então”.

Desenha-se diante de nós um mundo completamente novo, cujas regras nós


ainda não conhecemos bem. Está aberta outra dimensão para as relações de
consumo, que provavelmente vai redefinir a lógica do capitalismo (ou qualquer que
seja o “sistema” coerente com esse novo mundo). A influência de quem detém a
informação parte de uma regra que podia ser de 1 para 1 milhão e agora tem chance
de alcançar o “1 pra 1”.

Sem dúvida, essa é uma nova ordem disposta a delegar muito mais poder ao
indivíduo. Parece que o ser no mundo passa a ter muito mais responsabilidade
sobre a coletividade do que pudemos ver durante toda a história da humanidade e
suas revoluções. E isso, além de influenciar a comunidade, certamente vai afetar a
47

construção da nossa identidade. Já que a alteridade é determinante para a


configuração do sujeito, diante de um Outro virtual como esse sujeito se
configuraria? Será que esse “eu” não vai dispensar muitas classificações e preferir a
possibilidade múltipla e indefinida de ser o que bem quer e quando quer? Diante de
um Grande Outro que não é só mais um, mas pode ser todos nós, creio que o
mundo nunca mais vai ser o mesmo. E quero estar viva para saber responder a
essas perguntas.
48

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