Aqueles que ainda se lembram dos velhos tempos do Realismo
Socialista têm plena consciência do papel chave que cumpria a noção do "típico": a literatura verdadeiramente progressista devia retratar "heróis típicos em situações típicas". Os escritores que apresentavam uma ima- gem sombria da realidade soviética eram acusados não simplesmente de mentir, mas antes de apresentar um reflexo distorcido da realidade social, pois retratavam os remanescentes do passado decadente, em vez de concentrar-se nos fenômenos "típicos" no sentido de que expressavam a tendência histórica subjacente de progresso rumo ao Comunismo. Por mais ridícula que pareça esta noção, seu grão de verdade reside no fato de que cada noção ideológica universal é sempre hegemonizada por algum conteúdo particular que colore sua própria universalidade e é responsável por sua eficiência.
Na rejeição do sistema de bem-estar social pela Nova Direita nos
EUA, por exemplo, a noção universal de que o welfare é ineftciente sus- tenta-se na representação pseudoconcreta da mãe solteira afro-americana, como se, em última instância, o bem-estar social fosse um programa para mães solteiras negras - o caso particular da mãe solteira negra é tacitamente concebido como "típico" do Estado de bem-estar social e do que este tem de errado. No caso da campanha contra o aborto, o caso "típico" é exatamente o oposto: uma profissional sexualmente promíscua que valoriza mais a carreira do que a atribuição "natural" da maternidade - ainda que esta caracterização esteja em patente contradição com o fato de que a grande maioria dos abortos ocorre em famílias de classe mais baixa e com muitos filhos. Esta distorção específica - um conteúdo par- ticular que é declarado como "típico" da noção universal - é o elemento de fantasia, o pano de fundo (background) ou suporte fantasmático da noção ideológica universal. Em termos kantianos, cumpre o papel de "esquematismo transcendental'; que traduz o conceito universal vazio em uma noção que se relaciona diretamente com nossa "experiência concretà' e a ela se aplica. Como tal, esta especificação fantasmática não é, de modo algum, uma ilustração ou exemplo insignificante: é nesse nível que as batalhas ideológicas são ganhas ou perdidas - quando passamos a perceber como "típico" o caso de aborto em uma família numerosa de baixa renda sem condições de assumir mais um filho, a perspectiva muda radicalmente.! Este exemplo mostra com clareza a maneira como "o universal resulta de uma cisão constitutiva na qual a negação de uma identidade particular transforma esta identidade no símbolo de identidade e pleni- tude como tais"2: o Universal adquire existência concreta quando algum conteúdo particular começa a funcionar como seu substituto. Há poucos anos, a imprensa marrom inglesa concentrou -se nas mães solteiras como fonte de todos os males na sociedade moderna, das crises orçamentárias à delinqüência juvenil. Nesse espaço ideológico, a universalidade do "Mal social moderno" só era operacional por meio da cisão da figura da "mãe solteirà': nela mesma em sua particularidade e nela mesma como aquela que ocupa o lugar do "Mal social moderno". O fato de esta ligação entre o Universal e o conteúdo particular que funciona como seu substituto ser contingente significa precisamente que ele é o resultado de uma luta política pela hegemonia ideológica. No entanto, a dialética dessa luta é mais complexa do que supõe sua versão marxista clássica, segundo a qual interesses particulares assumem a forma de universalidade: "os direitos humanos universais são, na verdade, os direitos dos proprietários bran- cos do sexo masculino ..." Para funcionar, a ideologia dominante tem de incorporar uma série de características nas quais a maioria explorada seja capaz de reconhecer suas aspirações autênticas. Em outras palavras, cada universalidade hegemônica tem de incorporar pelo menos dois conteúdos particulares - o conteúdo popular autêntico, e sua distorção pelas relações de dominação e exploração. É claro que a ideologia fascista "manipulà' a aspiração popular à verdadeira comunidade e solidariedade social contra a concorrência feroz e a exploração; é claro que "distorce' a expressão dessa aspiração no intuito de legitimar a manutenção de relações de dominação e exploração sociais. Entretanto, para conseguir realizar a distorção dessa aspiração autêntica, precisa primeiro incorpo- rá-Ia ... Etienne Balibar tinha toda razão ao inverter a fórmula clássica de Marx: as idéias dominantes são, precisamente, não diretamente, idéias diretas daqueles que dominam3• Como o cristianismo tornou-se ideologia dominante? Incorporando temas e aspirações cruciais dos oprimidos - a verdade está do lado dos sofredores e humilhados, o poder corrompe, e assim por diante - e rearticulando-os de tal maneira que se tornassem compatíveis com as relações de dominação existentes.
Sentimos a tentação de referír-nos aqui à distinção freudiana entre
o pensamento-sonho latente e o desejo inconsciente expresso em um sonho. Os dois não são a mesma coisa: o desejo inconsciente articula-se, inscreve-se no texto explícito de um sonho através da própria perlabora- ção, tradução, do pensamento-sonho latente. De maneira homóloga, não há nada fascista (ou reacionário, ou etc.) no pensamento-sonho latente da ideologia fascista (aspiração à comunidade autêntica e à solidariedade social). O que dá à ideologia fascista o seu traço propriamente fascista é a maneira como esse pensamento-sonho latente é transformado e elaborado pelo trabalho do sonho ideológico em um texto ideológico explícito que continua a legitimar as relações sociais de exploração e dominação. E não ocorre hoje o mesmo no populísmo de direita? Os críticos liberais não descartam depressa demais os próprios valores que o populísmo classifica como inerentemente fundamentalístas ou protofascistas? Assim, a não-ideologia - o que Fredric Jameson chama de mo- mento utópico presente até na mais atroz ideologia - é absolutamente indispensável: de certo modo, a ideologia é nada mais que aforma corno aparece a não-ideologia, sua distorção/ deslocamento jórmal. Tomemos o pior caso imaginável: o anti-semitismo nazista não se alicerçava na aspiração utópica a uma vida comunitária autêntica, na rejeição plena- mente justificada da irracionalidade da exploração capitalista? Uma vez mais, o que procuramos apontar é que é teórica e politicamente incorreto denunciar essa aspiração como fantasia totalitária, ou seja, nela buscar as raízes do fascismo - este é o erro clássico da crítica liberal-individualista do fascismo: o que torna essa aspiração ideológica é a sua articulação, a maneira como se faz essa aspiração funcionar como legitimação de uma noção muito específica sobre o que é a exploração capitalista (resultado da influência judaica, do predomínio do capital financeiro sobre o pro- dutivo, sendo este o único que tende a uma parceria harmoniosa com os trabalhadores) e como a superaremos (livrando-nos dos judeus). Assim, pois, a luta pela hegemonia ideológica e política é sempre a luta pela apropriação dos termos que são espontaneamente vivenciados como apolíticos, ao transcender fronteiras políticas. Não é de admirar que o nome do mais forte movimento dissidente no comunismo do leste europeu fosse Solidariedade: um significante da plenitude impossível da sociedade, se é que algum dia isso existiu. Era como se, na Polônia da década de 1980, o que Laclau chama de lógica de equivalência tivesse sido levado a um extremo: comunistas no poder serviram como a encarna- ção (embodiment) da não-sociedade, da decadência e da corrupção, que magicamente unia todos contra eles, inclusive os próprios comunistas sinceros desapontados. Os nacionalistas conservadores acusavam os comunistas de traírem os interesses poloneses aderindo aos senhores soviéticos; os indivíduos com mentalidade empresarial viam neles um obstáculo à atividade capitalista desenfreada; para a Igreja Católica, os comunistas eram ateus amorais; para os agricultores, representavam a força da modernização violenta que tirou dos trilhos a vida rural; para os artistas e intelectuais, o comunismo era sinônimo de censura opressiva e estúpida: os trabalhadores consideravam-se não apenas explorados pela burocracia do Partido como também ainda mais humilhados pela afirma- ção de que isto era feito em nome deles; por fim, os velhos esquerdistas desiludidos percebiam o regime como traição ao verdadeiro Socialismo. A impossível aliança política entre todas essas posições divergentes e potencialmente antagônicas só foi possível em torno da bandeira de um significante situado, por assim dizer, na própria fronteira que separa o político do pré-político, e "Solidariedade" foi o candidato perfeito: sua operacionalidade política baseia-se na designação da unidade simples e fundamental dos seres humanos que deve uni-Ios para além de todas as diferenças políticas'. o que tudo isso nos diz a respeito da recente vitória eleitoral tra- balhista na Grã-Bretanha? Não só que, em uma operação hegemônica Jllodelo, os trabalhistas reapropriaram-se de noções apolíticas como decência; o que focalizaram com sucesso foi a obscenidade inerente à ideologia conservadora. As declarações ideológicas explícitas dos conser- vadores sempre se apoiaram em seu duplo sombrio, em uma mensagem obscena, não reconhecida em público, veiculada nas entrelinhas. Quando, por exemplo, lançaram sua infame campanha "de volta ao básico", seu obsceno complemento foi claramente indicado por Norman Tebbitt em "nunca se esquive de expor os segredos sujos do inconsciente conser- vador".': "muitos eleitores tradicionais dos trabalhistas perceberam que compartilhavam nossos valores - de que o homem não é só um animal social, mas também territorial; nossa agenda deve incluir a satisfação desses instintos básicos de tribalismo e territorialidade"6 Era, pois, nisto que a "volta ao básico" realmente consistia: na reafirmação de instintos básicos egoístas, tribais, bárbaros que espreitam por trás do semblante de sociedade burguesa civilizada. Todos recordamos a (merecidamente) famosa cena do filme Basic Instirzct (Instinto selvagem, 1992), de Paul Verhoeven, na qual, durante um inquérito policial, Sharon Stone abre fugazmente as pernas e revela aos fascinados policiais o que é (será?) um relance de seus pelos pubianos. Uma declaração como a de Tebbitt sem dúvida é o equivalente ideológico desse gesto, pois permite que se vislumbre por um instante a obscena intimidade do edifício ideológico tatcherista. (A própria Lady Tatcher era por demais dignificada para realizar com muita freqüência esse gesto à Ia Sharon Stone, de forma que o pobre Tebbitt teve que atuar em seu lugar.) Contra esse pano de fundo, a ênfase dada pelo Partido Trabalhista à decência não era um caso de simples moralismo - sua mensagem consistia antes em dizer que eles, /(10 estão jogando o mesmo jogo obsceno, que suas declarações não contêm, nas entrelinhas, a mesma mensagem obscena. Na constelação ideológica geral de hoje, esse gesto é mais impor- tante do que pode parecer. Quando o governo Clinton resolveu o impasse dos gays no exército americano recorrendo à solução de compromisso "Não pergunte, não diga!" - por meio da qual não se pergunta diretamente aos soldados se são gays, e eles não são obrigados a mentir e negar, e, embora não lhes seja formalmente permitido pertencer ao exército, eles são tolerados desde que mantenham sua orientação sexual na esfera da privacidade e não se empenhem ativamente em fazer com que outros dela participem -, essa medida oportunista foi merecidamente criticada por avalizar atitudes homofóbicas. A interdição direta da homossexualidade não é para ser aplicada, mas SU8. mera existência é uma ameaça virtual que obriga os gays a não se assumir publicamente, afeta seu status social concreto. Em outras palavras, essa solução equivaleu a erigir explicita- mente a hipocrisia em princípio social, a exemplo da atitude em relação à prostituição em países católicos tradicionais - se fingirmos que os gays do exército não existem, é como se de fato não existissem (para o grande Outro). Os gays devem ser tolerados, desde que aceitem a censura básica quanto à sua identidade ... Embora a noção de censura utilizada nesta crítica seja plenamente justificada em seu próprio nível, com seu pano de fundo foucaultiano de poder que, no próprio ato de censura e de outras formas de exclusão, gera o excesso que ela se empenha em conter e dominar, falta-lhe algo em um ponto crucial: deixa de perceber a maneira como a censura não só afeta o status da força marginal ou subversiva que o discurso do poder esforça-se em dominar, mas, em um nível ainda mais radical, gera, de dentro, o próprio discurso de poder. Aqui é preciso formular uma per- gunta ingênua, porém cmcial: por que o exército resiste com tanta força a aceitar publicamente gays em suas fileiras? Só há uma resposta coerente possível: não porque a homossexualidade represente uma ameaça à su- posta economia libidinal fálica e patriarcal da comunidade do exército, mas, ao contrário, porque a própria comunidade do exército baseia-se em uma homossexualidade impedida/repudiada como componente chave dos vínculos masculinos entre os soldados. Em minha experiência pessoal, lembro-me de que o velho e infame Exército Popular da Iugoslávia era homofóbico ao extremo - quando se descobria que alguém tinha inclinações homossexuais, ele era logo transformado em pária antes de ser formalmente excluído do exército - mas, ao mesmo tempo, a vida cotidiana no exército era excessivamente perpassada por alusões homossexuais. Por exemplo, quando os soldados faziam fila para o almoço, uma brincadeira vulgar comum era enfiar o dedo no ânus de quem estava na frente e retirá-lo rapidamente, de forma que, quando a vítima surpresa olhava para trás, não saberia qual dos soldados, todos com um estúpido sorriso obsceno no rosto, tinha feito aquilo. Uma forma predominante como os soldados se cumprimentavam na minha unidade era dizer, em vez de simplesmente "oi'; "fume meu pau!" (em servo-croata, "pusi kurac!"); a tal ponto esta fórmula tornara- se um clichê que perdera toda conotação obscena e era pronunciada de maneira totalmente neutra, como puro ato de cortesia.
Esta frágil coexistência de homofobia extrema e violenta com
economia libidinal homossexual "subterrânea'; isto é, não reconhecida publicamente, vem atestar o fato de que o discurso da comunidade militar só pode funcionar mediante a censura de seu próprio alicerce libidinal. l~m um nível ligeiramente diferente, o mesmo se aplica à prática de lrotes - espancamento e humilhação cerimoniais dos fuzileiros navais americanos pelos colegas mais antigos, que lhes grudam medalhas na pele, etc. Quando a revelação dessas práticas (gravadas secretamente em vídeo) suscitou grande indignação, o que perturbava o público não era o trote em si (todos sabiam da existência dessas coisas), mas sua divul- gação. Será que, para além dos confins da vida militar, não encontramos um mecanismo estritamente homólogo de autocensura no populismo conservador, com seu viés sexista e racista? Nas campanhas eleitorais de Jesse Helms, a mensagem racista e sexista não é reconhecida publica- mente - às vezes é até violentamente repudiada -, e sim articulada em uma série de frases de duplo sentido e alusões codificadas. Este tipo de autocensura é necessário para que o discurso de Helms mantenha sua eficácia nas condições ideológicas atuais. Caso fosse articulado em públi- co de forma direta, o seu viés racista se tornaria inaceitável no discurso político hegemônico; caso abandonasse a mensagem racista codificada c auto-censurada, poria em risco o apoio de seu público-alvo eleitoral. Assim, o discurso politico populista conservador constitui um caso exemplar de discurso de poder cuja eficiência depende do mecanismo de autocensura: baseia-se em um mecanismo que só é eficaz na medida em que permanece censurado. Contra a imagem, onipresente na crítica cultural, de discursos ou práticas subversivas radicais "censuradas" pelo poder, surge até a tentação de afirmar que hoje, mais do que nunca, o mecanismo de censura atua, predominantemente, para intensificar a eficiência do próprio discurso de poder. A tentação a ser evitada aqui é a velha noção da esquerda de "para nós é melhor lidar com o inimigo que admite abertamente o seu viés (racista, homofóbico, etc.) do que com a atitude hipócrita que consiste em denunciar publicamente o que se avaliza secreta e efetivamente". Esta noção subestima decisivamente o significado ideológico e político de manter as aparências: a aparência nunca é uma mera aparência, mas afeta profundamente a posição sócio-simbólica real das pessoas em questão. Se as atitudes racistas se tornassem aceitáveis no discurso político e ideo- lógico predominante (mainstream), o equilíbrio de toda a hegemonia ideológica seria modificado de forma radical. É provavelmente o que Alain Badiou tinha em mente ao designar ironicamente o seu trabalho como uma busca do bom terror: hoje, diante do surgimento de um novo racismo e sexismo, a estratégia deve ser tornar essas enunciações improferíveis, para que todos os que nelas se basearem se desqualifiquem automatica- mente - assim como, no nosso universo, os que se referem ao fascismo com aprovação. Por mais que se tenha consciência da maneira como os autênticos anseios por, digamos, comunidade são transformados pelo fascismo, não se discutirá, ostensivamente, "quantas pessoas realmente morreram em Auschwitz", "o lado bom da escravidão'; "a necessidade de cortar os direitos coletivos dos tra.balhadores", e assim por diante; aqui a posição deve ser intransigentemente "dogmática" e "terrorista": estes não são objetos de "debate aberto, racional e democrático". A essas cisão e auto censura inerentes ao mecanismo de poder, deve-se opor o tema foucaultiano da interconexão de poder e resistência. Estamos dizendo não só que a resistência é imanente ao poder, que po- der e contra-poder geram-se um ao outro; não é só que o próprio poder gera o excesso de resistência que não pode mais dominar; não é só que - no caso da sexualidade - a "repressão" disciplinar de um investimento libidinal erotiza o próprio gesto da repressão, como no caso do neurótico obsessivo que obtém satisfação libidinal dos próprios rituais compulsivos destinados a represar ajouissance (gozo) traumática. Esse último ponto deve ser radicalizado ainda mais: o próprio edificio do poder está divi- dido por dentro, ou seja, para reproduzir-se e conter o seu Outro, tem de basear-se em um excesso inerente que o alicerça. Para formulá-Io em termos hegelianos de identidade especulativa, o poder é sempre-já sua própria transgressão; para que possa funcionar, tem de recorrer a uma espécie de suplemento obsceno - o gesto de auto censura é co-substancial ao exercício do poder. Assim, não basta dizer que a "repressão" de algum conteúdo libidinal erotiza retroativamente o próprio gesto de "repressão" - esta "erotização" do poder não é um efeito secundário de seu exercício sobre o seu objeto, e sim o seu próprio alicerce repudiado, seu "crime constitutivo", seu gesto fundador que tem de permanecer invisível para que o poder funcione normalmente. O que vemos no tipo de manobras militares que aparecem na primeira parte do filme de Kubrick sobre o Vietnã, Nascido para matar (Full Metal Jacket - 1987), por exemplo, não é uma erotização secundária do procedimento disciplinar que cria sujeitos militares, mas o suplemento obsceno constitutivo desse procedimento que o torna operativo.
. Então, voltando à recente vitória dos Trabalhistas, pode-se ver
como esta não só implicou uma reapropriação hegemônica de uma série de questões habitualmente inscritas no campo Conservador - valores da família, da lei e da ordem, responsabilidade individual; a ofensiva ideo- lógica trabalhista também separou estes temas do subtexto fantasmático obsceno que os sustentava no campo Conservador -, no qual "firmeza contra a criminalidade" e "responsabilidade individual" referiam-se sutil- mente a egoísmo brutal, desdém para com as vítimas e outros "instintos básicos". O problema, contudo, é que a estratégia do Novo Trabalhismo continha sua própria "mensagem nas entrelinhas": aceitamos totalmente a lógica do Capital, não vamos mexer nela. Hoje, crise financeira é um estado permanente que empresta le- gitimidade às reivindicações de corte nas áreas de gastos sociais, saúde, apoio à cultura e à pesquisa científica - em suma, o desmantelamento do Estado de bem-estar. Mas será que essa crise permanente é realmente uma caracteristica objetiva da nossa vida sócio-econômica? Não se trata antes de um dos efeitos da mudança no equilíbrio da "luta de classes", cuja balança está pendendo para o lado do Capital, resultado tanto do papel crescente das novas tecnologias como da internacionalização direta do Capital e da redução do papel codependente do Estado-nação, que tinha mais capacidade de impor certos requisitos e limitações mínimos à explo- ração? Em outras palavras: a crise só é um "fato objetivo" se, e somente se, aceitarmos de antemão a lógica inerente ao Capital como premissa inquestionável - como um número crescente de partidos de esquerda e liberais têm feito. Assim, estamos diante do estranho espetáculo de partidos social-democratas que chegam ao poder enviando ao Capital, nas entrelinhas, a mensagem de que "faremos o trabalho de que você precisa de maneira ainda mais eficiente e indolor do que os conservado- res". O problema, é claro, é que, nas atuais circunstâncias sócio-políticas globais, é praticamente impossível questionar de modo efetivo a lógica do Capital: até uma modesta tentativa social-democrata de redistribuir a riqueza além do limite aceitável pelo Capital "efetivamente" leva à crise econômica, à inflação, à queda da renda, etc. No entanto, sempre se deve ter em mente que a conexão entre "causa" (elevação dos gastos sociais) e "efeito" (crise econômica) não é de natureza causal direta e objetiva: está sempre-já encravada em uma situação de antagonismo e luta social. O fato de uma crise "realmente advir" caso não sejam respeitados os limites traçados pelo Capital não "prova'; de modo algum, que a necessidade desses limites seja uma necessidade objetiva da vida econômica. Esse fato deve ser antes interpretado como prova da posição privilegiada do Capital na luta econômica e política, como na situação em que o parceiro mais forte ameaça que, se você fizer X, será punido com Y e, quando você faz X, de fato advém Y. Uma ironia da história é que, nos países ex-comunistas da Eu- ropa Oriental, os comunistas "reformados" tenham sido os primeiros a aprender esta lição. Por que muitos deles voltaram ao poder por meio de eleições livres? Seu retorno constitui a prova definitiva de que esses estados realmente entraram no Capitalismo. Ou seja, o que represen- tam hoje os ex-comunistas? Em virtude de suas ligações privilegiadas com os capitalistas emergentes - em sua maioria, membros da antiga nomcnklatura responsável pela "privatização" das empresas que antes administravam -, são, em primeiro lugar e acima de tudo, o partido do grande capital; além disto, para apagar os vestigios de sua breve, mas mesmo assim traumática, experiência com a sociedade civil politicamente a(iva, eles costumam defender ferozmente um distanciamento em relação ,) ideologia, um recuo de um engajamento ativo com a sociedade civil para um consumismo passivo e apolítico - exatamente os dois traços que caracterizam o Capitalismo contemporâneo. Assim, os dissidentes descobrem com assombro que desempenharam o papel de "mediadores que desaparecem" no caminho que levou do Socialismo ao Capitalismo, 110 qual a mesma classe de antes continua sendo a dirigente, mas com nova
máscara. Portanto, é um erro afirmar que o retorno dos ex-comunistas
ao poder assinala que o povo soheu uma decepção com o Capitalismo e tem saudade da velha segurança socialista - antes, em uma espécie de "negação da negação" hegeliana, foi só com a volta ao poder dos ex- comunistas que o Socialismo foi efetivamente negado; ou seja, o que os analistas políticos interpretaram erradamente como "decepção com o Capitalismo" é, na verdade, decepção com um entusiasmo ético-político para o qual não há lugar no Capitalismo "normal" 7. Em um nível algo diferente, a mesma lógica está subjacente ao impacto social do ciberespaço: esse impacto não deriva diretamente da tecnologia, mas baseia-se na rede de relações sociais. Ou seja, a maneira predominante como a digitalização afeta a nossa auto-experiência é me- diada pelo marco da economia de mercado globalizado do Capitalismo tardio. Bill Gates costuma festejar o ciberespaço como algo que abre perspectivas para o que ele chama de "Capitalismo sem atrito" - expres- são que traduz perfeitamente a fantasia social subjacente à ideologia do Capitalismo do ciberespaço: a de um meio de troca completamente trans- parente, etéreo, de onde desaparece o último vestígio de inércia material. O ponto crucial aqui é que o "atrito" que descartamos na fantasia do "Capitalismo sem atrito" não se refere apenas à realidade dos obstáculos materiais em que qualquer processo de troca se sustenta, mas, acima de tudo, ao Real de antagonismos sociais traumáticos, relações de poder, ele., que marcam o espaço da troca social com uma torção patológica. Nos Gnmdrisse, Marx assinalou que a própria disposição material de uma planta de produção industrial do século XIX materializa diretamente a relação capitalista de dominação - o trabalhador como mero apêndice subordinado à maquinaria de propriedade do capitalista; mutatis mutandi, o mesmo vale para o ciberespaço. Nas condições sociais do capitalismo tardio, a própria materialidade do ciberespaço gera automaticamente o espaço abstrato ilusório de troca "sem atrito" no qual a particularidade da posição social dos participantes é obliterada. A "ideologia espontânea do ciberespaço" predominante é chama- da de "ciber-revolução", baseada na noção de ciberespaço - ou World Wide Web - como organismo "natural" que se auto desenvolves. É crucial aqui o desvanecimento da distinção entre "cultura" e "natureza": o reverso da "naturalização da cultura" (mercado ou sociedade como organismos vivos) é a "culturalização da natureza" (a própria vida é concebida como um conjunto de dados que se auto-reproduzem - "os genes são memes").9 Assim, essa nova noção de Vida é neutra em relação à distinção entre processos naturais e culturais ou "artificiais". Tanto a Terra (como Gaia) quanto o mercado global são vistos como gigantescos sistemas vivos auto-regulados cuja estrutura básica é definida em termos do processo de codificação e decodificação, de transmissão de informações. A idéia da World Wide Web como organismo vivo é muitas vezes evocada em contextos que podem parecer libertários - contra a censura estatal da Internet, digamos. Contudo, essa própria demonização do Estado é com- pletamente ambígua, pois quem se apropria dela é, predominantemente, o discurso populista de direita e/ou o liberalismo de mercado: seus alvos principais são as intervenções estatais que tentam manter uma espécie de equilíbrio e segurança sociais mínimos. O título do livro de Michael Rothschild - Bíonomícs: 771e Inevítabílity of Capitalism - é indicativo neste sentido10 Então, os ideólogos do ciberespaço podem sonhar com o próximo passo evolutivo, no qual não mais haverá indivíduos "carte- sianos" interagindo mecanicamente, no qual cada "pessoa" cortará seus vínculos substanciais com seu corpo individual e verá a si mesmo como parte da nova Mente holistica que vive e age por meio dele; todavia, o que essa "naturalização" direta da World Wide Web ofusca é o conjunto de relações de poder - de decisões políticas, de condições institucionais - de que "organismos" como a Internet (ou o mercado, ou o Capitalis- mo ...) precisam para prosperar. Assim, seria preciso reafirmar a velha crítica marxista da "reifica- ~'ão":hoje, enfatizar a lógica econômica "objetiva" despolitizada contra Cormas de paixões ideológicas supostamente "superadas" é a forma ideológica predominante, pois a ideologia é sempre auto-referente, ou seja, sempre define a si mesma por meio de uma distância em relação a um Outro rejeitado e denunciado como "ideológico" 11, Jacques Ranciere deu uma expressão pungente à "surpresa ruim" que espera os atuais ideólogos pós-modernos do "fim da política": é como se estivéssemos testemunhando a confirmação definitiva da tese de Freucl, em O mal-estar tia civilização, de que, após cada afirmação de Eros, 111anatos reafirma- se com uma vingança, No exato momento em que, segundo a ideologia oficial, estamos finalmente abandonando as paixões políticas "imaturas" (o regime do "político" -luta de classes e outros antagonismos divisores "superados") para entrar no universo pragmático pós-ideológico "ma- duro" de administração racional e consensos negociados, no universo, livre de impulsos utópicos, em que uma administração desapaixonada dos assuntos sociais caminha pari passu com um hedonismo estetizado (o pluralismo de "formas de vidà'), neste exato momento, o político sub- metido à foraclusão está festejando uma volta triunfante sob sua forma mais arcaica: a de ódio racista em estado puro e bruto contra o Outro, o que torna a atitude racional tolerante totalmente impotente12, Neste sentido preciso, o racismo "pós-moderno" contemporâneo é o sintoma do capitalismo tardio multiculturalista, trazendo à luz a contradição inerente do projeto ideológico liberal-democrata, A "tolerâncià' liberal fecha os olhos ao Outro folclorizado, privado de sua substância - como a multiplicidade de "culinárias étnicas" em uma megalópole contem- porânea; contudo, qualquer Outro "real" é imediatamente denunciado como "fundamentalistà', pois o ceme da alteridade (otherness) reside na regulação de seu gozo (jouissance): o "Outro real" é, por definição, "patriarcal", "violento", nunca o Outro de sabedoria etérea e costumes encantadores, Sente-se aqui a tentação de reativar a velha noção mar- euseana de "tolerância repressivà: concebendo-a agora como tolerância do Outro em sua forma asséptica, benigna, que submete a foraclusão à dimensão do Real do gozo (jouissance) do OutroD A mesma referência ao gozo (jouissance) permite que lancemos uma nova luz sobre os horrores da guerra da Bósnia, tais como se refletem em Underground, filme de Emir Kusturica (1995). O significado político deste filme não reside primariamente em sua tendenciosidade explícita, na maneira como toma partido no conflito pós-iugoslavo - sérvios heróicos versus eslovênios e croatas traiçoeiros, pró-nazis -, mas antes em sua atitude estetizante muito "despolitizada'~ Quer dizer, quando, ao conversar com os jornalistas de Cahiers du cinéma, Kusturica insistia em que Underground não é, de forma alguma, um filme político, e sim uma espécie de experiência subjetiva liminar semelhante a um transe, um "suicídio adiado': sem saber estava colocando na mesa suas verdadeiras cartas políticas e indicou que Underground encena o pano de fundo fantasmático "apolítico" da limpeza étnica pós- iugoslava e das crueldades da guerra. Como? O clichê predomi- nante a respeito dos Bálcãs é que os balcânicos estão presos ao redemoinho fantasmático do mito histórico - visão que o próprio Kusturica endossa: "Nesta região, a guerra é um fenômeno natural. É como uma catástrofe natural, como um terremoto que eclode de tempos em tempos. No meu filme, tentei esclarecer o estado de coisas neste pedaço caótico do mundo. Parece que ninguém é capaz de localizar as raízes desse terrível conflito" 'o'. O que encontramos aqui, é claro, é um caso exemplar da "balcanismo'; que funciona de maneira similar ao conceito de "orientalismo" em Edward Said: os Bálcãs como espaço atemporal em que o Ocidente projeta seu conteúdo fantasmático. Juntamente com Antes da chuva de Milche Manchevski (que quase ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1995), Underground é, assim, o mais acabado produto ideológico do multiculturalismo liberal ocidental: o que esses dois filmes oferecem ao olhar liberal ocidental é precisamente o que esse olhar deseja ver na guerra dos Bálcãs: o espetáculo de um ciclo de paixões mítico, atemporal, incompreensível, em contraste com a vida ocidental decadente e anêmica'5. O ponto fraco do olhar multiculturalista universal não reside em sua incapacidade de "jogar fora a água suja do banho sem perder o bebê": é profundamente errado dizer que, ao jogar fora a água suja nacionalista - fanatismo "excessivo" -, deve-se ter o cuidado de não perder o bebê da identidade nacional "saudável'; de forma que se deveria traçar e seguir a linha divisória entre o grau apropriado de nacionalismo "saudável", que assegura o mínimo necessário de identidade nacional, e o nacionalismo "excessivo". Tal distinção, de senso comum, reproduz o próprio raciocinio I/acionalista que visa a livrar-se do excesso "impuro". Assim, sente-se a lcntação de propor uma homologia com o tratamento psicanalítico, cujo objetivo também é, não se livrar da água suja (sintomas, tiques patoló- gicos) para manter o bebê (o cerne do Eu saudável) em segurança, mas antes jogar fora o bebê (suspender o Eu do paciente) para confrontar o paciente com sua "água suja'; com os sintomas e fantasias que estruturam seu gozo (jouissance). Na questão da identidade nacional, deve-se fazer o esforço de jogar fora o bebê (a pureza espiritual da identidade nacional) para tornar visível o sustentáculo fantasmático que estrutura o gozo (jou- issance) na Coisa nacional. E o mérito de Underground é, sem perceber, tornar visível essa água suja.
Underground traz para a luz do dia o "subterrâneo" obsceno do
discurso público oficial- representado no filme pelo regime comunista de Tito. Deve-se ter em mente que o "underground" a que se refere o título do filme não é só o âmbito do "suicídio adiado", da eterna orgia de beber, . cantar e copular que acontece na suspensão do tempo e fora do espaço público: representa também a oficina "subterrânea" onde os trabalhado- res escravizados, isolados do resto do mundo e, assim, convencidos de que a Segunda Guerra Mundial ainda não acabou, trabalham dia e noite e produzem armas vendidas por Marko, o herói do filme, seu "dono" e grande Manipulador, o único a fazer a mediação entre o "subterrâneo" . e o mundo público. Kusturica refere-se aqui ao velho tema europeu de conto de fadas dos anões diligentes (habitualmente controlados por um mago do mal) que, durante a noite, enquanto os demais dormem, saem do esconderijo e trabalham (arrumam a casa, cozinham) para que, de manhã, as outras pessoas acordem e encontrem seu trabalho magicamente feito. O "subterrâneo" de Kusturica é a última corporificação desse tema, que aparece desde Ouro do Reno de Richard Wagner (os Nibelungen que trabalham em suas cavernas subterrâneas, comandados pelo senhor cruel, . o anão Alberich) até Metropolis de Fritz Lang, onde os trabalhadores industriais escravizados vivem e trabalham muito abaixo da superfície da terra produzindo riqueza para os capitalistas no poder. Essa trama dos escravos subterrâneos dominados por um Senhor maligno manipulador é apresentada contra o pano de fundo da oposição entre as duas figuras do Senhor: por um lado, a autoridade pública sim- bólica "visível"; por outro lado, a aparição espectral "invisível". Quando é dotado de autoridade simbólica, o sujeito atua como apêndice de seu título simbólico, ou seja, ele é o "grande Outro': a instituição simbólica, que age por seu intermédio: basta recordar o juiz que pode ser uma pessoa desprezível e corrupta, mas, no momento em que enverga a toga e outras insígnias, suas palavras são aquelas da própria Lei. Por outro lado, o Senhor "invisível" - cujo caso exemplar é a figura anti-semita do "judeu" que, invisível aos olhos do público, mexe os pauzinhos da vida social - é uma espécie de estranho duplo de autoridade pública: tem de agir na sombra, invisível para o público, irradiando uma onipotência fantasmagórica, espectra1'6. O Marko do Underground de Kusturica deve ser situado nessa linhagem de mago maligno que controla um império invisível de trabalhadores escravizados: é uma espécie de estranho duplo de Tito como Mestre público simbólico. O problema de Underground é que o filme cai na cilada cínica de apresentar esse "subterrâneo" obsceno tomando uma distância benevolente. Claro que Underground é multi- camadas e é auto-reflexivo, joga com inúmeros clichês (o mito sérvio do homem de verdade que continua a fazer calmamente a refeição mesmo quando as bombas caem ao seu redor, etc) que "não devem ser entendidos literalmente" - no entanto, é precisamente por meio desse autodistancia- mento que funciona a ideologia cínica pós-moderna. Em seu texto muito conhecido e com várias edições, "Catorze teses sobre o fascismo" (1995), Umberto Eco enumerou a série de características que define o cerne da atitude fascista: tenacidade dogmática, falta de humor, insensibilidade à argumentação racional... ele não poderia estar mais errado. O neofascisl11o de hoje é cada vez mais "pós-moderno", civilizado, jocoso, envolvendo auto distanciamento irônico, mas nem por isto é menos fascista. Assim, de certa forma, Kusturica está certo em sua entrevista concedida a Cahiers du cinéma: ele de algum modo "esclarece o estado de coisas nesta parte caótica do mundo" ao trazer à luz o seu sustentácu- 10 fantasmático "subterrâneo", Assim apresenta, sem saber, a economia libidinal do massacre étnico da Bósnia: o transe pseudo-batailleano do gasto excessivo, o ritmo louco e contínuo de beber-comer-cantar- fornicar. I': nisto consiste o "sonho" dos que promovem limpezas étnicas, nisto reside liresposta à pergunta "como eles puderam fazer aquilo"? Se a definição padrão de guerra é a de "uma continuação da política por outros meios'; o fato de Radovan Karadzic, líder dos sérvios da Bósnia, ser poeta é mais do que uma coincidência gratuita: a limpeza étnica na Bósnia foi a "continuação de uma (espécie de) poesia por outros meios".
Mas como essa poesia ideológica multiculturalista está encravada
no capitalismo global de hoje? O problema por trás disto é o do uni- versalismo. Etienne Balibar distinguiu três níveis de universalidade nas sociedades atuais: a universalidade "real" do processo de globalização e do processo complementar de "exclusões internas" (em que o destino de todos nós hoje se articula à intricada rede de relações globais de merca- do); a universalidade da ficção que regula a hegemonia ideológica (Igreja ou Estado como "comunidades imaginadas" universais que permitem que o sujeito adquira uma distância em relação à imersão em seu grupo social imediato - classe, profissão, sexo, religião - localizando-o como um sujeito livre); a universalidade de um Ideal, como exemplificado pela reivindicação revolucionária de égaliberté (igualdade-liberdade), que continua sendo um excesso incondicional, pondo em movimento a insurreição permanente contra a ordem estabeleci da, e que, portanto, nunca pode ser "cooptado", incluído na ordem existentel7. A questão, é claro, é que a fronteira entre esses três universais nunca é estável e fixa: égaliberté pode servir de idéia hegemônica que possibilita a identificação de cada um com o seu papel social (sou um artesão pobre mas, precisamente como tal, participo da vida do meu Estado-nação como cidadão livre e igual) ou de excesso irredutível que desestabiliza a ordem social fixa. O que no universo jacobino era a universalidade desestabilizadora do Ideal, que punha em movimento o processo incessante de transformação social, tornou-se mais tarde a ficção ideológica que permite que cada indivíduo identifique-se com o seu lugar específico no espaço social. Em "hegelianês'; a alternativa aqui é a seguinte: o universal é "abstrato" (oposto a conteúdo concreto) ou "concreto" (no sentido de que experimento meu modo muito particular de vida social como forma específica de minha participação no universal da ordem social)? Balibar aponta, é claro, que a tensão entre os dois é irredutível: o excesso de universalidade abstrata-negativa -ideal, sua força perturbadora-desestabilizadora, nunca pode ser completamente integra- do ao todo harmonioso de uma "universalidade concretà'18. Há, contudo, outra tensão, que hoje parece mais crucial: a tensão entre os dois modos da própria "universalidade concretà'. Quer dizer, a "real" universalidade da atual globalização por meio do mercado global implica sua própria ficção (ou mesmo ideal) hegemônica de tolerância multiculturalista, respeito e proteção dos direitos humanos, democracia e assim por diante; implica sua própria "universalidade concretà' pseudo-hegeliana de uma ordem mundial cujas características universais de mercado mundial, direitos humanos e democracia permitem que cada "estilo de vida" específico flo- resça em sua particularidade. Assim, emerge inevitavelmente uma tensão entre essa "universalidade concretà' pós-moderna, pós- Estado-nação, e a "universalidade concretà' anterior, a do Estado-nação. Hegel foi o primeiro a elaborar o paradoxo propriamente mo- derno de individualização através de identificação secundária. No co- meço, o sujeito está imerso na forma de vida particular em que nasceu (família, comunidade local); a única maneira como pode separar-se dessa comunidade "orgânica" primordial, cortar seus vínculos com ela e afirmar-se como "indivíduo autônomo" é modificando sua fidelidade fundamental, reconhecendo a substância do seu ser em outra comuni- dade, secundária, que é universal e, simultaneamente, "artificial", não mais "espontâne,{' porém "mediadà: sustentada pela atividade de sujeitos livres e independentes - nação versus comunidade local; uma profissão em sentido moderno (um emprego em uma grande empresa anônima) versus a relação "personalizada" entre o aprendiz e seu mestre-artesão; a comunidade acadêmica de conhecimento versus a sabedoria tradicional transmitida de geração em geração. Nessa passagem da identificação primária à secundária, as identificações primárias tendem a sofrer uma espécie de transubstanciação: começam a funcionar como forma de aparecimento da identificação secundária universal - por exemplo: é precisamente sendo um bom membro da minha família que contribuo para o funcionamento apropriado do meu Estado-nação. A identificação secundária universal permanece "abstrata" na medida em que é direta- mente oposta às formas particulares de identificação primária, ou seja, na medida em que força o sujeito a renunciar a suas identificações primárias; lama-se "concreta" quando reintegra as identificações primárias, trans- Cormando-as nos modos de aparecimento da identificação secundária. Pode-se discernir claramente esta tensão entre universalidade "abstrata" e "concreta" no status social precário da Igreja Cristã dos primórdios: por um lado, havia o zelo excessivo dos grupos radicais que não viam como combinar a atitude verdadeiramente cristã com o espaço existente de relações sociais predominantes, e que portanto representavam uma séria ameaça à ordem social; por outro lado, houve tentativas de conciliar o cristianismo com a estrutura de dominação existente, de tal forma que participar da vida social e ocupar um lugar em uma hierarquia fossem compatíveis com o fato de ser um bom cristão - de fato, cumprir seu determinado papel social não era visto apenas como compatível C()n1 a vida de um cristão, mas até percebido como maneira específica de cumprir o dever universal de ser cristão. Na era moderna, a forma social predominante do "universal concreto" é o Estado-nação como meio de nossas identidades sociais particulares: a forma determinada da minha vida social (como, digamos, trabalhador, professor, político, agricultor, advogado) é o modo específICO de minha participação na vida universal do meu Estado-nação. No que diz respeito a essa lógica de transubstanciação que garante a unidade ideoló- gica do Estado-nação, os Estados Unidos da América cumprem um papel de exceção que é único: o elemento chave da "ideologia americana" padrão consiste no esforço para transubstanciar a fidelidade às próprias raizes étnicas de cada um em uma expressão de "ser americano": para ser um bom americano, não é preciso renunciar às suas raizes étnicas - italianos, alemães, negros judeus, gregos, coreanos, eles são "todos americanos'; ou seja, à particularidade de sua identidade étnica - a maneira como se dá a "adesão" a ela faz deles americanos. Essa transubstanciação por meio da qual é superada a tensão entre minha identidade étnica particular e minha identidade universal como membro de um Estado-nação hoje se encontra ameaçada: é como se a carga positiva da identificação patriótica patética com o marco universal do Estado-nação norte-americano tivesse sofrido grave erosão; a "americanidade", o fato de "ser americano", surte cada vez menos o sublime efeito de fazer parte de um gigantesco projeto ideológico ~ "o sonho americano" -, de forma que o Estado americano é cada vez mais vivido como simples marco formal para a coexistência da multiplicidade de comunidades étnicas, religiosas ou de estilo de vida.
Esse colapso gradual- ou melhor, perda de substância - do "sonho
americano" atesta a inesperada inversão da passagem da identificação primária para a secundária proposta por Hegel: em nossas sociedades "pós- modernas'; a instituição "abstratá' da identificação secundária é cada vez mais experimentada como um quadro externo, puramente formal, não realmente vinculante, de forma que as pessoas buscam cada vez mais apoio em formas de identificação "primordiais'; geralmente menores (religiosas, étnicas). Mesmo quando estas formas de identificação são mais "artifi- ciais" do que a identificação nacional - como é o caso da comunidade gay -, elas são mais "imediatas" no sentido de que capturam o indivíduo de maneira direta e irresistivel em seu "estilo de vidá' específico, restrin- gindo assim a liberdade "abstratá' que ele possui como cidadão de um Estado-nação. Portanto, hoje estamos lidando com um processo inverso ao da constituição moderna inicial de uma nação: em contraste com a "nacionalização do étnico" - a des-etnização, a "superação" (Aufhebung) do étnico no nacional - trata-se agora da "etnização do nacional", com uma busca (ou reconstituição) renovada de "raízes étnicas". Contudo, o ponto crucial aqui é que esta "regressão" das formas secundárias para formas "primordiais" de identificação a comunidades "orgânicas" já é "mediadá': trata-se de uma reação à dimensão universal do mercado mundial- por ser como tal, ocorre no terreno e contra o pano de fundo do mercado mundial. Por essa razão, trata-se nesses fenômenos não de uma "regressão", mas da forma de surgimento de seu exato oposto: em uma espécie de "negação da negação'; essa própria reafirmação da identi- ficação "primordial" sinaliza que a perda da unidade orgânico-substancial está totalmente consumada. Para que isto fique claro, é preciso ter em mente o que talvez seja a lição fundamental da política pós-moderna: longe de ser uma unidade "natural" da vida social, um quadro equilibrado, uma espécie de entelechia aristotélica rumo à qual todo desenvolvimento prévio avança, a forma universal de Estado-nação é todavia um equilíbrio precário e temporário l'nlrc a relação com uma Coisa étnica particular (patriotismo, pro palria I/lOri, etc) e a função (potencialmente) universal do mercado. Por um lado, "depassa" (sublates) formas locais orgânicas de identificação em uma identificação "patriótica" universal; por outro lado, posiciona-se como uma espécie de fronteira pseudonatural da economia de mercado, delimitando o comércio "interno" do "externo" - a atividade econômica l' assim "sublimada", elevada ao nível da Coisa étnica, legitimada como l'ontribuição patriótica à grandeza da nação. Este equilíbrio está sob Ull1stante ameaça de ambos os lados, tanto do lado das formas "orgânicas" prévias de identificação particular, que não desaparecem simplesmente mas continuam sua vida subterrânea fora da esfera pública universal, quanto do lado da lógica imanente do Capital, cuja natureza "trans- nacional" é intrinsecamente indiferente às fronteiras do Estado-nação. Além disso, as novas identificações étnicas "fundamentalistas" de hOje implicam uma espécie de "des-sublimação", um processo de desintegra- yão dessa unidade precária da "economia nacional" em suas duas partes constitutivas: a função de mercado transnacional e a relação com a Coisa étnica19. Portanto, é apenas hoje, nas comunidades étnicas, religiosas ou de estilo de vida, contemporâneas "fundamentalistas", que a cisão entre a forma abstrata de comércio e a relação com a Coisa étnica particular, inauguradas pelo projeto iluminista, estão plenamente realizadas: os atuais "fundamentalismo" e xenofobia étnicos ou religiosos pós-modernos não são não-regressivos, apresentando a prova suprema da emancipação fmal da lógica econômica de mercado em relação ao apego à Coisa étnica20 Ali reside o mais elevado esforço especulativo da dialética da vida social: não em descrever o processo de mediação do imediato primordial - como a desintegração da comunidade orgânica em sociedade individualista "alienada" -, mas em explicar de que maneira exatamente esse processo de mediação característico da modernidade pode fazer nascer novas formas "orgânicas" de imediaticidade. A história padrão da passagem de Gemeinschaft" para Gesellschaft" deveria, pois, ser complementada por um relato de como esse processo que leva a comunidade a tornar-se so- ciedade, dá lugar a diferentes formas de comunidades novas, "mediadas" -, digamos, as "comunidades de estilo de vida". Como, então, o universo do Capital se relaciona com a forma de Estado-nação em nossa era de capitalismo global? O melhor modo de designar essa relação talvez seja "auto-colonização": com o funcionamento multinacional direto do Capital, já não estamos lidando com a oposição padrão entre metrópole e países colonizados; uma empresa global corta, por assim dizer, seu cordão umbilical com a nação-mãe e trata o seu país de origem como mais um território a ser colonizado. É isto que perturba tanto os populistas patrióticos de direita, de Le Pen a Buchanan: o fato de as novas multinacionais terem, para com a população local francesa ou americana, exatamente a mesma atitude que em relação à população do México, do Brasil ou de Taiwan. Não há uma espécie de justiça poética nesta virada auto-referencial? Assim, o capitalismo global de hoje é, uma vez mais, uma espécie de "negação da negação" após o capitalismo na- cional e sua fase internacionalista/colonialista. No começo (idealmente, é claro), há capitalismo dentro dos confins de um Estado-nação, com o comércio internacional que o acompanha (troca entre Estados-nação so- beranos); decorre daí a relação de colonização, na qual o país colonizador subjuga e explora (econômica, política e culturalmente) o pais colonizado; o momento final desse processo é o paradoxo da colonização em que só há colônias, sem país colonizador - o poder colonizador não é mais um Estado-nação, mas diretamente a empresa global. A longo prazo, todos nós não só usaremos camisas Banana Republic como também moraremos em repúblicas de bananas. E, é claro, a forma ideal de ideologia deste capitalismo global é o multiculturalismo, a atitude que, a partir de uma posição global vazia, trata cada cultura local da maneira como o colonizador trata o povo colonizado - como "nativos" cujos costumes devem ser cuidadosamente estudados e "respeitados". Ou seja, a relação entre o colonialismo imperialista tradi- cional e a autocolonização capitalista global é exatamente a mesma que a relação entre o imperialismo cultural ocidental e o multiculturalismo: assim como o capitalismo global implica o paradoxo da colonização sem a metrópole do Estado-nação colonizador, o multiculturalismo implica uma distância e/ou respeito eurocênt6co condescendente pelas culturas locais, sem raízes em alguma cultura particular própria. Em outras palavras, o Illlllticulturalismo é uma forma repudiada, invertida e auto-referencial de racismo, um "racismo com distanciamento" - "respeita" a identidade do ( llltro, concebendo o Outro como uma comunidade "autêntica" e auto- l( 1I1lidaem relação à qual ele, o multiculturalista, mantém uma distância possibilitada por sua posição universal privilegiada. O multiculturalismo ,'.lIm racismo que esvazia sua própria posição de todo conteúdo positivo (o multiculturalista não é um racista direto, não opõe ao Outro os valo- res particulares de sua própria cultura), mas mantém sua posição como o ponto vazio da universalidade, privilegiado, a partir do qual se pode ;q)reciar (e depreciar) apropriadamente as outras culturas particulares o respeito do multiculturalista pela especificidade do Outro é a forma IlIesma como afirma sua própria superioridade. E o que dizer do contra-argumento bastante óbvio de que a neutra- Iidade do multiculturalista é falsa, pois sua posição privilegia tacitamente () conteúdo eurocêntrico? Esta linha de raciocínio está certa, mas pela razào errada. O pano de fundo cultural (ou raizes) em que a posição Illulticulturalista sempre se sustenta não é a sua "verdade", escondida sob a máscara da universalidade - "o universalismo multiculturalista é, de fato, Eurocentrismo" -, mas o oposto: a marca das raizes particulares na tela fantasmática que oculta o fato de que o sujeito já está profundamente "sem raizes': de que sua verdadeira posição é o vazio da universalidade. Permitam-me recordar aqui minha própria paráfrase do chiste de Quin- cey sobre a simples arte de assassinar: "quantas pessoas começaram com lima inocente orgia de sexo grupal e terminaram jantando juntas em lIm restaurante chinês!"21. A finalidade desta paráfrase está em inverter a relação clássica entre o pretexto superficial e o desejo nào identificado: ,\s vezes, a coisa mais dificil é aceitar a aparência do que está na superfície por seu valor "nominal" - imaginamos diversos cenários fantasmáticos para encobri-Io com "significados mais profundos': Pode perfeitamente ser que o meu "verdadeiro desejo" a ser discernido por trás de minha recusa em participar de um jantar chinês seja o fascínio que tenho pela lill1tasia de uma orgia grupal, mas o ponto chave é que a fantasia que estrutura o meu desejo já é, em si, uma defesa contra minha pulsão "oral" que faz o que quer de forma absoluta ... O que encontramos aqui é o exato equivalente do exemplo de \)arian Leader sobre o homem que está no restaurante com a namorada e que, ao pedir uma mesa ao garçom, diz "Quarto para dois, por favor!", em vez de "Mesa para dois, por favor!" Deve-se inverter a explicação freudiana clássica ("Claro, seu pensamento já estava na noite de sexo que planejara para depois do jantar!"): esta intervenção da fantasia sexual subterrânea é antes a tela que serve de defesa contra a pulsão oral, que de fato é muito mais importante para ele do que o sexo.22 Em sua análise da Revolução de 1848 na França (em A luta de classes na França), Marx apresenta um exemplo semelhante desse duplo engano: o Partido da Ordem, que assumiu o poder após a Revolução, apoiava abertamente a República, mas acreditava secretamente na Restauração - seus membros não perdiam uma oportunidade de zombar dos rituais republicanos e sinalizar, de todas as maneiras possíveis, onde "estava o seu coração" 23 O paradoxo, no entanto, era que a verdade de sua atividade residia na forma externa daquilo de que privadamente zombavam e desprezavam: esta forma republicana não era um mero semblante sob o qual espreitava o desejo monarquista - foi antes o apego secreto ao monarquismo que permitiu que cumprissem sua verdadeira função histórica: impIemcn- tar a lei e ordem burguesa republicana. O próprio Marx assinala que os membros do Partido da Ordem tinham imenso prazer em seus atos falhos monarquistas ocasionais contra a República - por exemplo, refe- rir-se à França como reino em seus debates parlamentares: esses lapsos articulavam suas ilusões fantasmáticas que serviam de tela mediante a qual cegavam-se para a realidade social daquilo que estava acontecendo na superfície.
E, mutatis mutandis, o mesmo se aplica ao capitalista de hoje que
ainda se apega a alguma herança cultural particular, identificando-a como fonte secreta de seu sucesso - os executivos japoneses que participam da cerimônia do chá ou obedecem ao código bushido - ou, ao contrário, os jornalistas ocidentais em busca do segredo particular do sucesso ja- ponês: esta referência a uma fórmula cultural particular é uma tela para o anonimato universal do Capital. O verdadeiro horror não reside no conteúdo particular oculto por trás da universalidade do Capital global, mas antes no fato de o Capital ser, de fato, uma máquina global anônima '1uc percorre seu rumo às cegas, de não haver nenhum Agente Secreto I'articular que o anime. O horror não é o fantasma (particular vivo) na Ill,íquina (universal morta), e sim a máquina (universal morta) no cerne ,Ic cada fantasma (particular vivo). A conclusão a ser tirada é que a problemática do multiculturalismo a coexistência híbrida de diversos mundos da vida culturais - que hoje SI' impõe é a forma de aparecimento do seu oposto, da presença maciça ,I,) capitalismo como sistema mundial universal: atesta a homogeneização sel11precedentes do mundo contemporâneo. De fato, já que o horizonte ,LI imaginação social não mais permite que alimentemos a idéia de que () (,'pitalismo um dia desaparecerá - pois, como se poderia dizer, todos ;I(citam tacitamente que o capitalismo está aqui para ficar -, é como se .1 l'nergia crítica tivesse encontrado uma saída substitutiva na luta pelas dikrenças culturais que deixa intacta a homogeneidade básica do siste- IlIa mundial capitalista. Assim, estamos lutando via PCs pelos direitos das minorias étnicas, de gays e lésbicas, de diferentes estilos de vida, etc, "lIquanto o capitalismo prossegue em sua marcha triunfante - e a teoria ITílica de hoje, sob as vestes de "estudos culturais'; está prestando o ser- vi~:odefinitivo ao desenvolvimento irrestrito do capitalismo ao participar ,I' ivamente do esforço ideológico que visa tornar invisível a sua presença 11Iaciça:em uma "crítica cultural" pós-moderna típica, a mera menção de capitalismo como sistema mundial tende a suscitar a acusação de "l'ssencialismo", "fundamentalismo" e outros crimes. A estrutura aqui é de um sintoma. Quando se está lidando com 11mprincípio estruturante universal, sempre se supõe automaticamente que - em princípio, precisamente - é possível aplicar esse princípio a lodos os seus elementos potenciais, e que a não-realização empírica do 11rincípio é uma mera questão de circunstâncias contingentes. Contudo, 11111 sintoma é um elemento que - embora a não-realização nele do prin- rípio universal pareça articular-se a circunstâncias contingentes - tem de permanecer uma exceção, ou seja, o ponto de suspensão do princípio IIniversal: se o princípio universal também fosse aplicado a esse ponto, () próprio sistema universal se desintegraria. Como se sabe muito bem, Ilcgel demonstrou, nos parágrafos sobre sociedade civil de sua Filosofia r 10 direito, que a existência de uma "ralé" (Pobel) numerosa na sociedade livilmoderna não é o resultado acidental de má gestão social, medidas inadequadas de governo ou má sorte econômica: a dinâmica estrutural inerente à sociedade civil gera necessariamente uma classe que é excluída dos benefícios da sociedade civil, uma classe privada de direitos humanos elementares e, portanto, também isenta de deveres para com a socie- dade, um elemento dentro da sociedade civil que nega o seu princípio universal, uma espécie de "des-Razão inerente à própria Razão" - em suma, seu sintoma. Estaremos hoje diante do mesmo fenômeno, e até mais forte, com o crescimento de uma subclasse excluída, às vezes por gerações, dos be- nefícios da sociedade liberal-democrata afluente? As "exceções" de hoje - sem-teto, habitantes de guetos, desempregados crônicos - são o sinto- ma do sistema universal do capitalismo tardio que nos lembra, de forma crescente e permanente, qual é a lógica imanente do capitalismo tardio: a própria utopia capitalista é a de que, tomando-se as medidas certas (para os liberais progressistas, ação afirmativa ou discriminação positiva; para os conservadores, uma volta à auto-suficiência e aos valores da família), essa "exceção" poderia ser - pelo menos em longo prazo e em princípio eliminada. E também estamos diante de uma utopia homóloga na no- ção de "coalizão arco-íris'; na idéia de que, em algum momento futuro utópico, todas as lutas "progressistas" - pelos direitos de gays e lésbicas, das minorias étnicas e religiosas, a luta ecológica, feminista, etc - estarão unidas na "cadeia de equivalências" comum? Uma vez mais, a necessidade do fracasso é estrutural: o problema não é simplesmente que, devido à complexidade empírica da situação, nunca haverá uma união de todas as lutas "progressistas" particulares, que sempre ocorrerão cadeias de equiva- lências "erradas" - por exemplo, o encadeamento da luta pela identidade étnica afro-americana à ideologia patriarcal e homofóbica; trata-se, ao contrário, de que as emergências dos encadeamentos "errados" estão ali- cerçadas no próprio princípio estruturante da política "progressista" atual de criação de "cadeias de equivalências": o próprio âmbito da multidão de lutas particulares, com seus deslocamentos e condensações em constante mutação, é sustentado pela "repressão" do papel chave da luta econômica - a política de esquerda em relação às "cadeias de equivalências" entre a pluralidade de lutas é estritamente correlativa ao abandono tácito da análise do capitalismo como sistema econômico global e à aceitação das relações econômicas capitalistas como marco inquestionávept t\ falsidade do liberalismo multiculturalista elitista reside, pois, 11,1 h'mi\o entre conteúdo e forma que já caracterizava o primeiro grande 1IIIIj,,(O ideológico de universalismo tolerante: o da franco-maçonaria. t\ dllll! rina da franco-maçonaria (fraternidade universal de todos os 1\iIlIIl'nS com base na luz da Razão) é claramente conflitante com sua 11111\101 de expressão e organização (uma sociedade secreta com seus 1IIII,lis de iniciação) - a própria forma de expressão e articulação da 11,11 \t', l-maçonaria desmente sua doutrina positiva. De modo estritamente Illllllillogo, a atitude liberal "politicamente corretà' atual, que percebe a si 11Il'~;lllacomo superando as limitações de sua identidade étnica ("cidadão .111IlIlIndo" sem âncoras em nenhuma comunidade étnica particular), 1llllliona, dentro de sua própria sociedade, como reduzido círculo elitista dL' dOlsse média alta em nítida oposição à maioria das pessoas comuns, 1 kSl'rezadas por estarem presas dentro de seus estreitos limites étnicos 1111 l"omunitários.
Como, então, a esquerda atenta para essa falsidade do pós-mo-
d"l'Ilismo multiculturalista reage a isso? Sua reação assume a forma do qlle Hegel chamou de julgamento infinito: o julgamento que postula a idl'ntidade especulativa de dois termos profundamente incompatíveis rI exemplo hegeliano mais conhecido está no subcapítulo sobre freno- IL19ia da Fenomenologia do Espírito: "o Espírito é um osso". O julgamento iIIlinito que condensa esta reação é: "Adorno (o mais sofisticado teórico I ríl ico "elitista") é Buchanan (o que de mais inferior tem o populismo OII11ericano de direita):' Quer dizer, esses críticos do elitismo multicul- lllralista pós-moderno - de Christopher Lasch a Paul Piccone - correm o risco de endossar o populismo neoconservador, com suas noções de reafirmação da comunidade, democracia local e cidadania ativa como única resposta política pertinente à predominância onipresente da "Razão instrumental': da burocratização e instrumentalização de nosso mundo da vida's. Claro que é fácil desqualificar o populismo atual dizendo que se (rata de uma nostálgica formação reativa ao processo de modernização como tal, intrinsecamente paranóica - que procura uma causa externa de malevolência, um agente secreto que mexe os pauzinhos e é, assim, responsável pelos infortúnios da modernização - os judeus, o capital internacional, os administradores multiculturalistas não-patrióticos, a burocracia estatal, etc.; o problema é, antes, conceber esse novo po- pulismo como uma nova forma de "falsa transparência" que, longe de opor um sério obstáculo à modernização capitalista, prepara o terreno para ela. Em outras palavras, bem mais interessante do que lamentar a desintegração da vida comunitária em decorrência do impacto das novas tecnologias é analisar a maneira como o próprio progresso tecnológico suscita novas comunidades que aos poucos se "naturalizam" - como as comunidades virtuais. O que esses defensores de esquerda do populismo não percebem é que o populismo de hoje, longe de representar uma ameaça ao capi- talismo global, continua sendo seu produto inerente. Paradoxalmente, os verdadeiros conservadores de hoje são antes os "teóricos críticos" de esquerda que rejeitam o l11ulticulturalismo liberal e também o populis- mo fundamentalista, os que percebem com clareza a cumplicidade entre o capitalismo global e o fundamentalismo étnico. Eles apontam para o terceiro âmbito que não pertence nem à sociedade de mercado global nem às novas formas de fundamentalismo étnico: o âmbito do político, o espaço público da sociedade civil, da cidadania ativa responsável - a luta pelos direitos humanos, a ecologia e assim por diante. Entretanto, o problema é que essa própria forma de espaço político está cada vez mais ameaçada pela investida da globalização; por conseguinte, não se pode simplesmente voltar a ela ou revitalizá-Ia. Evitemos um mal- entendido: não desejamos afirmar o velho "essencialismo econômico", segundo o qual, no caso da Inglaterra de hoje, a vitória do Trabalhismo realmente não muda nada - e, como tal, é ainda mais perigoso do que a continuação de um governo Conservador, pois dá margem à impressão enganosa de que teria havido uma mudança. O governo Trabalhista pode realizar numerosas coisas; pode ajudar muito a passar do tradicional chauvinismo inglês tacanho a uma democracia liberal mais "esclarecidà; com um elemento muito mais forte de solidariedade social (da saúde à educação) para respeito dos direitos humanos (em suas diversas formas, dos direitos das mulheres aos de grupos étnicos); deve-se usar a vitória Trabalhista como incentivo à revitalização de diversas formas de luta pela égaliberté. (Com a vitória eleitoral Socialista na França, a situação é .IIl1d,1111.lÍsambígua, pois o programa de Jospin contém alguns elemen- 111'.d.' IO!ll'ronlo direto com a lógica do capital.) Mesmo quando a mu- dnll\a ni\() c substancial, mas um mero semblante de um novo começo, 11111 ."prio filto de uma situação ser percebida pela maioria da população , '11111' "!lOVOcomeço" abre espaço para rearticulações ideológicas e po- IIII1"5 importantes - como já vimos, a lição fundamental da dialética da Id"l dogia c que as aparências importam. No entanto, a lógica do capital 1"":; i:,sl'lllo-nação continua sendo o Real que espreita no fundo da cena, ,to p"sso que todas as três principais reações de esquerda ao processo d.' glllb,llização - multiculturalismo liberal; tentativa de abraçar o po- IllJlislllo d·iscernindo, sob sua aparência fundamentalista, a resistência .0111\';\ a "razão instrumental"; tentativa de manter aberto o espaço do I'lllíl ico - parecem inadequadas. Embora se baseie na percepção I 11I1('[ada cumplicidade entre multiculturalismo e fundamentalismo, 1','.11' úllimo enfoque evita a pergunta crucial: corno reinventar o espaço l'lllíf;(() lias atuais condições de globalização? A politização da série de 1111"5 parliculares que deixa intacto o processo global do capital é insu- I1I1"ll1e.Isto significa que se deve rejeitar a oposição que, no marco da 11l'lllocracia liberal do capitalismo tardio, impõe-se como eixo principal d,1 lula ideológica: a tensão entre tolerância liberal universalista pós- Ilkológica e os "novos fundamentalismos" particularistas. Contra o 1.'nl ro liberal que se apresenta como neutro e pós-ideológico, baseado 110I':stado de direito, deve-se reafirmar o velho tema de esquerda da ""'Tssidade de suspender o espaço neutro do Direito. Tanto a esquerda como a direita têm seu próprio modo de suspen- :,,,.,do Direito em nome de algum interesse superior ou mais fundamental. 1\ suspensão de direita, dos anti-Dreyfus a Oliver North, reconhece que I'ral ica uma violação da letra da lei, mas a justifica pela referência a algum interesse nacional superior: apresenta-a como auto-sacrifício doloroso I'ara o bem da Nação. 26 Quanto à suspensão de esqu erda, basta mencionar li.lis fIlmes: Under Fire (de Roger Spottiswoode, 1983) e Watch on the Rhi- 1/(' (de Hennan Shumlin, 1943). O primeiro se passa durante a revolução
nkaragüense, quando um foto-jornalista americano enfrenta um dilema
Ill'rlurbador: logo antes da vitória da revolução, os somozistas matam 1I!l1líder sandinista carismático, de forma que os sandinistas pedem ao jornalista que forje uma fotografia de seu líder morto, apresentando-o como vivo para desmentir os somozistas que afirmavam sua morte - ele contribuiria assim para uma pronta vitória da revolução e reduziria o derramamento de sangue. A ética profissional, é claro, proíbe estritamente esse ato, pois viola a objetividade sem viés da reportagem e torna o jor- nalista um instrumento da luta política; contudo, o jornalista escolhe a opção "de esquerda" e forja a foto. Em Watch on the Rhine, filme baseado em uma peça de Lillian Hellmann, este dilema é ainda mais grave: no final da década de 1930, uma família alemã de emigrantes políticos envolvidos na luta antinazista vai para a casa de parentes afastados, uma família de classe média em uma cidadezinha americana idílica; pouco tempo depois, contudo, a família enfrenta uma ameaça inesperada por causa de um conhecido da família americana, um homem de direita que chantageia os emigrantes e, através de seus contatos com a embaixada alemã, põe em perigo membros da resistência clandestina na própria Alemanha. O pai da família de emigrantes decide matá-Io, colocando assim a família americana em um dilema moral difícil: a vazia solidariedade moralista com as vítimas do nazismo se acaba; agora eles realmente têm de tomar partido e sujar as mãos, encobrindo o assassinato. Também neste caso a família faz a opção "de esquerda". "Esquerda" é definida pela disposição de suspender o marco moral abstrato, ou, parafraseando Kierkegaard, de realizar uma suspensão política do Ético.
A lição de tudo isto, que ganhou em realidade diante da reação
ocidental à guerra da Bósnia, é que não há como fugir de ser parcial, pois a neutralidade implica tomar partido - no caso da guerra da Bósnia, a conversa "equilibrada" a respeito da "guerra tribal" étnica dos Bálcãs já avaliza o ponto de vista sérvio: a eqüidistância liberal humanitária pode facilmente escorregar para o seu oposto, ou coincidir com ele, e de fato tolerar a mais violenta "limpeza étnica': Assim, em suma, a esquerda não apenas viola a neutralidade imparcial liberal: o que ela afirma é que essa neutralidade não existe. O clichê do centro liberal é, obviamente, que ambas as suspensões, a de direita e a de esquerda, acabam conduzindo ao mesmo, a uma ameaça totalitária ao Estado de direito. Toda a consistência da esquerda depende de conseguir provar que, ao contrário, cada uma dessas duas suspensões segue uma lógica diferente. A direita legitima sua suspensão da Ética com base em sua postura antiuniversalista, por meio de uma referência à sua identidade particular (religiosa, patriótica) que predomina sobre qualquer parâmetro universal moral ou legal, ao passo que a esquerda legitima sua suspensão da Ética precisamente por meio de uma referência à verdadeira Universalidade que ainda está por vir. Ou, para dizê-lo de outra maneira, a esquerda ao mesmo tempo aceita o caráter antagônico da sociedade (não há posição neutra, a luta é constitutiva) e permanece universalista (falando em nome da emancipação universal): na perspectiva de esquerda, aceitar o caráter radicalmente antagônico - ou seja político - da vida social, aceitar a necessidade de "tomar partido", é a única maneira de ser efetivamente universal. Como compreender este paradoxo? Só pode ser concebido se o llntagonismo for inerente à própria universalidade, ou seja, se a própria universalidade for dividida, por um lado, em universalidade concreta "(-~llsà'que legitima a divisão existente do Todo em partes funcionais e, por outro lado, em demanda impossível/real de universalidade "abstrata" (a égaliberté de Balibar). O gesto político de esquerda por excelência (em contraste com o tema direitista de "a cada um o seu próprio lugar") é, pois, questionar a ordem universal concreta existente em nome de seu sintoma, em nome da parte que, embora inerente à ordem universal existente, não tem nela "lugar próprio" (como os imigrantes ilegais e os sem-teto nas nossas sociedades). Este procedimento de identificar-se com o sintolna é o exato e necessário inverso do gesto crítico e ideológico clássico, que consiste em reconhecer um conteúdo particular por trás de alguma noção universal abstrata ("o 'homem', de humano, é efetivamente o proprietário branco de sexo masculino"), em denunciar a universalidade neutra como falsa: nela afirma-se pateticamente o ponto de exceção/exclusão inerente, o ''abjeto'' da ordem positiva concreta como único ponto de verdadeira universalidade, como o ponto que desmente a universalidade concreta existente. É fácil mostrar que, digamos, a subdivisão das pessoas que vivem em um país em cidadãos "plenos" e trabalhadores imigrantes temporários privilegia os cidadãos "plenos" e exclui os imigrantes do espaço público propriamente dito - da mesma maneira como o homem e a mulher não são duas espécies de um genus universal neutro da humanidade, pois o conteúdo do genus, como tal, implica algum modo de "repressão" do feminino; muito mais produtiva, tanto teórica como politicamente - pois abre caminho para a subversão "progressistà' da hegemonia - é a operação oposta de identificar a universalidade com oponto de exclusão; no caso que nos ocupa, o oposto de dizer "somos todos trabalhadores imigrantes': Em uma sociedade hierarquicamente estruturada, a medida de sua verdadeira universalidade reside na forma como suas partes relacionam-se com as que eSlão "embaixo': excluidas por e de todas as demais - na ex-Iugoslá- via, por exemplo, a universalidade era representada pelos muçulmanos albaneses e bósnios, desprezados por todas as outras nações. A recente declaração patética de solidariedade - "Sarajevo é a capital da Europà' - também foi um caso exemplar dessa noção de exceção como algo que incorpora a universalidade: a maneira como a Europa liberal esclarecida relacionou-se com Sarajevo atesta a maneira como se relaciona consigo mesma, com sua noção universaF7. Desta afirmação da universalidade do antagonismo não decorre, de modo algum, que "na vida social não há diálogo, somente guerrà'. A direita fala de guerra social (ou sexual), ao passo que a esquerda fala de luta social (ou de classe). Há duas variantes da declaração infame de Joseph Goebbels, "quando ouço a palavra 'cultura', saco a pistolà': "quando ouço a palavra 'cultura; saco o talão de cheques'; proferida pelo cinico produtor de cinema do filme Mépris, de Godard, e o inverso I1uminista de esquer- da, "quando ouço a palavra 'arma', saco culturà: Quando o manifestante neonazista de hoje ouve a expressão "cultura cristã ocidental': puxa a arma para defendê-Ia dos turcos, árabes, judeus, destruindo assim o que simula defender. O capitalismo liberal não precisa dessa violência direta: o mercado encarrega-se de destruir a cultura com muito mais suavidade e eficiência. Em claro contraste com ambas atitudes, o I1uminismo de es- querda define-se por apostar que a cultura pode servir de resposta eficiente às armas: a explosão de violência bruta é uma espécie de passagem ao ato enraizada na ignorância do sujeito - como tal, pode ser contrabalançada pela luta cuja principal forma é o conhecimento reflexivo. , II.slecurto-circuito entre Universal e Particular também tem, é claro, o nome de "sutura": 1\ tljll'l'ação de hegemonia "sutura" o Universal vazio a um conteúdo particular. ) 1',I"IIestoLaclau, Emancipation(s), Verso, Londres, 1996, pp. 14-15. I Vl'r Etienne llalibar, Ia crainte des masses, Paris, 1997. , Mas quando termina esse momento mágico de solidariedade universal, o significante que, ,'nl alguns países pós-socialistas, está emergindo como significante da "plenitude ausente" da sociedade é honestidade: constitui o foco da ideologia espontânea das "pessoas comuns" I"W1Sna turbulência econômica e social em que as esperanças de uma nova plenitude da mdedade, que deveria seguir-se ao colapso do socialismo, foram cruelmente traídas de lill"ll1aque, a seu ver, as "velhas forças" (ex-comunistas) e os ex-dissidentes que entraram para as fileiras do poder deram-se as mãos para explorá-los, ainda mais do que antes, sob a bandeira da democracia e da liberdade. A batalha pela hegemonía agora enfoca, é claro, tl conteúdo particular que dará rotação a este significante: o que significa honestidade? E, 11111a vez mais, seria errado pretender que o conflito se dá, afinal de contas, em torno dos dill:rl'ntes significados do termo honestidade: o que fica perdido neste esclarecimento se- 111:1nticoé que cada posição pretende que sua honestidade é a única verdadeira honestidade: .1luta não é apenas entre diferentes conteúdos particulares, é uma luta que divide, a partir de dentro, o próprio universal. " jacqueline Rose, States ofFal1tasy, Oxford, 1996, p. 149. " Citado em ibid . ..l\etrospectivamente, percebe-se como o fenômeno da chamada "dissidência" estava profun- damente inserido no marco ideológico socialista, a tal ponto que a "dissidência", exatamente l'lll seu "moralismo" utópico (pregando a solidariedade social, a responsabilidade ética, etc.) proporcionou o repudiado cerne ético do socialismo: talvez um dia os historiadores venham a tlbservar que - no mesmo sentido em que Hegel afirmou que tl verdadeiro resultado espiritual da guerra do Peloponeso, seu Fim espiritual, é o livro de Tucidides sobre ela - a "dissidência" foi o verdadeiro resultado espiritual do Socialismo Real. "Ver Tiziana Terranova, "Digital Darwin", New Fonnation, n° 29, verão (hemisfério Norte) de 1996. "Ver Richard Dawkins, The Seifish Gene, Oxford, 1989. '" Michael L. Rothschild, I3iollOlnics: The 1I1cvitability ofCapitalis1ll, Armonk, NY, 1992. " Ver Slavoj Zizek, "Introdução", Mapping Ideology, Verso, Londres, 1995. A edição brasileira roi publicada pela editora Objetiva (O mapa da ideologia). 12 Ver ]acques Ranciere, On the Shores of Politics, Verso, Londres, 1995, p. 22. " Para um relato mais detalhado do papel da jouissance no processo de identificação cultural, ver Slavoj Zizek, The Plague ofFantasies, Verso, Londres, 1997, capo 2. 14 "Prop()s de Emir Kusturica", Cahiers du cinéma, n o 492, junho de 1995, p. 69. 15 A respeito desta percepção ocidental dos Bálcãs como tela de fantasia, ver Renata Saleci, The Spoils ofFreedom, Londres, 1995. 1(, Ver Slavoj ZiZek, "I hear You with My Eyes"; ou "The Invisible Master", in Renata Salecl e Slavoj Zizek, (eds.), Gaze and Voice as Love Objects, Durham, NC, 1996. 17 Ver Balibar, La crainte des masses, pp. 421-54. l' Aqui é claro o paralelo com a oposição de Laclau entre a lógica da diferença (sociedade como estrutura simbólica diferencial) e a lógica do antagonismo (sociedade como "impos- sível'~ ímpedida por uma fratura antagônica). Hoje, a tensão entre a lógica da diferença e a lógica do antagonismo assume a forma da tensão entre o universo liberal-democrata de negociação e o universo "fundamentalista" de luta entre o Bem e o Mal. l' Um dos acontecimentos menores, e contudo eloqüentes, que atestam esse "desvaneci- mento" do Estado-nação é a lenta multiplicação da instituição obscena das prisões privadas nos EUA e outros países ocidentais: o exercicio do que deveria ser monopólio do Estado (violência física e coerção) torna-se objeto de um contrato entre o Estado e uma empresa privada que, em troca de lucro, exerce coerção sobre indivíduos - estamos aqui simples- mente diante do fim do monopólio do uso legítimo de violência que, segundo Max Weber, define o Estado moderno. 'u Esses três estágios (as comunidades pré-modernas, o Estado-nação e a atual "sociedade universal" transnacional emergente) ajustam-se obviamente à tríade de tradicionalismo, modernismo e pós-modernismo, elaborada por Fredric )ameson: aqui também, os retro- fenômenos que caracterizam o pós-modernismo não devem nos iludir - a ruptura com a pré-modernidade só se consuma plenamente com o pós-modernismo. Assim, a referência a Postmodernism, 01;the Cultural Logic olLate Capitalism (Verso, Londres, 1993), de )ameson, no titulo deste ensaio, é proposital. 21 Slavoj Zizek, Enjoy your Symptom!, Nova York, 1993, p. 1. 22 Ver Darian Leader, Why Do W0111enWrite More Letters T/Ja11 They Post?, Londres, 1996. 'J Karl Marx, "The Class Struggles in France: 1848 to 1850", in Surveys ji-Olll Exile. Politieal Writings: Volume 2, Londres, 1973. 2' Ver Wendy Brown, States oflnjury, Prínceton, 1995. 15 Ver Paul Piccone, "Postmodern Populism", Telas, n° 103, primavera (hemisfério Norte) de 1995. T\nnbém é ilustrativa aqui a tentativa feita por Elizabeth Fox-Genovese de opor I!Ofeminismo de classe média alta, interessado em problemas de teoria literária e cinema- IOMI'lllka,direitos das lésbicas, etc., um "feminismo familiar" que se concentra nas reais lll'cocupaçôes da mulher comum que trabalha e articula questôes concretas sobre como Mohl'cviverlla família, com filhos e trabalho. Ver Elizabeth Fox-Genovese, l'eminism is Not 1/11'Story o(my Lije, Nova York, 1996. I" 11Itll'lllulação mais concisa da suspensão de normas (juridicas) públicas segundo a direita ~ da autoria de Earmon de Valera: "O povo não tem o direito de cometer delitos" ("lhe
p,'ol'le has no right to do wrong").
)1 n assim, talvez, que deveriamos ler a noção de singulier universel de Rancíére: a afirmação da cxceção singular como loeus de universalidade que simultaneamente afirma e subverte a universalidade em questão. Quando dizemos "Somos todos cidadãos de Sarajevo'; estam os, ohviamente, fazendo uma designação "falsa", uma designação que viola a distribuição geo- Mnllka correta; precísamente por isto, contudo, esta violação traduz em palavras a injustiça dI! ordem geopolítíca existente. Ver Jacques Rancíére, La Mésentente, Paria, 1995(edição hl'l1silcira publicada como O desentendimento, Rio de Janeiro, editora 34).