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Ver Montebello, in: La durée et la nature.
Seja como for, não devemos levar as dualidades bergsonianas até às últimas
conseqüências, já que estas não são reais; são ideais, idéias reguladoras que permitem
graduar a realidade, como um afinador eletrônico de guitarra que, conforme a vibração e a
tensão de uma corda, marca a nota mais próxima da escala, na qual deve precisamente soar
essa corda se quisermos que o instrumento esteja afinado, isto é, em harmonia com o
conjunto das demais cordas / notas.
Julgamos que essa harmonia não depende de divindades nem do Ser supremo, muito
menos da totalidade, já que esta é desprovida de qualquer finalidade e tampouco pode ser
preestabelecida pelo legislador (embora ele se aproxime bastante desse ideal – em teoria); a
harmonia deve ser conquistada pelas ações que realizamos cotidianamente e pelo esquema
geral de ação que consolidamos ao cabo de alguns anos, do qual seremos cada vez mais
dependentes e por isso mesmo incapazes de livrar-nos quando nos for mais conveniente. Do
grau de flexibilidade ou de rigidez que tenhamos atingido dependerá nossa adaptação às
mudanças (internas como o envelhecimento, externas como uma crise financeira).
Compreende-se, portanto, que a “intuição da duração” constitui um verdadeiro
mélange entre atividade e passividade, na medida em que não se trata apenas de uma
atividade e na medida também que, contra Bergson, essa intuição não deixa de ser, de certo
modo, uma maneira de contemplação. Se Bergson opõe a “ação” à “contemplação” para
desqualificar o misticismo oriental, elevando o misticismo cristão à categoria de
“misticismo completo”, então, sua filosofia acaba, de fato, traindo-se a si mesma, visto que
não consegue livrar-se das “novas” oposições (sociedade aberta – fechada, religião e moral
estática – dinâmica, etc).
Sendo mais fiéis ao bergsonismo que o Bergson das Duas fontes (por mais bizarre
que essa afirmação possa parecer), pensamos que, hoje em dia, os místicos orientais
(budistas, por exemplo) encontram-se muito mais próximos do misticismo completo que os
cristãos, sobretudo nas formas que atualmente exaltam as manifestações messiânicas2
(evangélicos e católicos não-praticantes, estes últimos carregando sua crença mais como
uma medalha do que como uma convicção religiosa – prática concreta da fé, que é posta a
prova nas ações da vida e aprofundada constantemente pelo estudo).
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Historicamente, as religiões baseadas na transcendência do Criador e na volta de um messias [mashiah em
hebraico, christós em grego]. Ver Chauí, M. Aula inédita sobre o rompimento de Espinosa com as religiões de
Deus: muçulmanos e judaico-cristãos. (ver também A nervura do real).
Em outras palavras, essa prática da fé que procura coincidir com a própria duração
para transcendê-la e obter, desse modo, uma experiência integral, uma intuição da
“imanência transcendental”, consiste precisamente numa atividade contemplativa, ou antes,
na contemplação ativa da vida enquanto nos toca vivê-la, enquanto esta dura. Talvez assim,
quando compreendamos que a vida é como um vento, consigamos impulsionar nossos
desejos como um barco à vela, na direção da nossa felicidade, sabendo que esta não se
encontrará jamais num suposto porto de chegada, senão que estará aí, camuflada no próprio
caminho, na duração, que não é outra coisa senão a nossa própria vida.
E até mesmo quando fizermos algum redemoinho, ou precisamente nesses
momentos, saberemos que fomos capazes de sentir, ou melhor, de intuir que a vida posou
em nós e se apossou de nossa duração ao passo que nós agimos nela (“Em quem vivemos,
nos movemos e temos nosso Ser” – epístola de São Paulo citada por Berkeley e também por
Bergson).