consumo e obsessão feminina em parecer estrela pornô.
A câmera se aproxima. A moça ergue a blusa, exibe os seios
cirurgicamente retocados. A pequena multidão de estudantes que lota a praia na Flórida urra. A moça não se constrange. Ao contrário, abre um sorriso. E em outros cantos da praia, alguém repetirá seu gesto. A câmera gravará. Os vídeos serão vendidos. E nenhuma de suas estrelas receberá um centavo.
É como se toda mulher agora quisesse parecer uma estrela
pornô e, sem pensar, ajudasse a propagar a própria imagem (e a das demais) como objeto sexual, diz a jornalista Ariel Levy, 30. Lançado em setembro, seu livro "Female Chauvinist Pigs: Women and the Rise of Raunch Culture" (Porcas chauvinistas: as mulheres e a evolução da cultura vulgar) está na lista dos mais vendidos do "New York Times". Parece que Levy conseguiu o que queria: iniciar um debate, que ganha fôlego com duas novas obras -"Pornified: Como a Pornografia transforma nossas vidas, relacionamentos e famílias", de Pamela Paul, e "Os Homens são Necessários? Quando os sexos colidem", da colunista do "New York Times" Maureen Dowd.
Espantada com o fenômeno desde que uma amiga ficou
obcecada por strippers, a repórter da revista "New York" decidiu investigar o que acontecia e onde se perderam as lições do feminismo.
"Esse comportamento não é mais uma conquista feminina. Ele
é um antídoto para as outras coisas que conseguimos [na carreira e na sociedade]. Um pedido de desculpas aos homens", diz.
A cena narrada no primeiro parágrafo, que a jornalista
testemunhou, se repete a cada "spring break" -a "semana do saco cheio" nos EUA, em março, quando os estudantes lotam as praias do sul. Nas livrarias,volumes como "Como Fazer Amor como uma Estrela Pornô", da estrela Jenna Jameson, são sucesso. Nas bancas, as capas de revista exibem atrizes famosas seminuas, siliconadas, lipoaspiradas, lisas, loiras. Meninas envergam camisetas da Playboy. E a dondoca profissional Paris Hilton é ídolo. Isso num país onde a direita cristã triunfa, o programa de educação sexual das escolas públicas defende a abstinência e a aparição por segundos do seio da cantora Janet Jackson no intervalo de um megaevento esportivo varreu as manchetes e provocou debate nacional. "O puritanismo é o outro lado da mesma moeda", diz Levy. "Americano tem medo de sexo."
A autora, que no mês passado esteve na Austrália, mas nunca
veio ao Brasil, acredita que o fenômeno não seja exclusivo dos EUA, embora não se atreva a avaliar o que ocorre em outros países. "Você tem de perguntar o que isso diz sobre o modo como vemos as mulheres." Leia a seguir os principais trechos da entrevista que Levy concedeu à Folha, por telefone, de Nova York.
Folha - Como você liga o pós-feminismo a essa imagem que
parte das mulheres tenta incorporar? Ariel Levy - Acho que parte disso é uma questão de gerações. As filhas das mulheres que foram pioneiras no movimento feminista nos anos 60 e 70 estão se tornando adultas, e ninguém nunca quer virar a própria mãe, então esse é o jeito delas de se "rebelarem", seja sua mãe uma feminista dos anos 70 ou uma conservadora carola. Outro ponto é que daquela época até agora, o ideal de antimaterialismo se perdeu. Hoje, pelo menos nos EUA,
as pessoas não têm vergonha de consumir,
elas são descaradamente capitalistas, não há resistência ideológica. Em um ambiente assim, as pessoas reduzem a sexualidade a algo que se pode comercializar, seja sob a forma de implantes de silicone, fio- dental de poliéster ou na venda real de sexo, como na prostituição, pornografia ou strip-tease. Ambas as formas se encaixam no nosso perfil de consumo. Folha - O que as mulheres estão tentando obter a partir disso? Levy –
Acho que como as mulheres avançaram muito com o
movimento feminista, muitas se sentem como que se obrigadas a se mostrarem como um objeto sexual. Vejo como um modo de nos desculparmos pelas nossas conquistas, é como dizer aos homens: "Olha, agora você vai ter de competir comigo no trabalho, na universidade, mas não se preocupe, eu ainda posso incorporar essa fórmula óbvia e imediata de sexualidade".
Não é que as mulheres estão pensando que agora vão fazer o
que quiserem da própria sexualidade.
É apenas que elas querem responder a
essa demanda comercial por um dado tipo de sexualidade. Parece um modo de nos reassegurarmos, e assegurarmos aos homens, que mantemos um papel do passado facilmente identificável.
Folha - Mas você vê isso como uma coisa a mais que as
mulheres tem a conquistar? "Seja uma profissional competente, uma ótima mãe, uma boa dona-de-casa e ainda uma deusa do sexo"? Levy –
Não, não é bem como uma conquista a mais. É um antídoto
para as outras coisas, que são intimidadoras. É algo para reconfortar mesmo, para pedir desculpas por sermos tão competentes e competitivas. Folha - Uma análise superficial nos leva a crer que a atual geração de adolescentes deve reproduzir esse modelo sexual em um grau muito maior do que as mulheres hoje na casa dos 30. Você entrevistou várias adolescentes. Essa percepção se confirma?
Levy - Sim! Muito! Quando eu e você éramos crianças, mesmo
adolescentes, o movimento feminista ainda estava de certa forma presente. Mas, para essas meninas, é como se ele nunca tivesse existido. Elas não tinham nem nascido quando o movimento era ativo. Ou seja, elas não têm nada com o que comparar aquilo que estão vivendo hoje. Nenhum histórico de idealismo ao qual se aferrar.
Aqui nos EUA uma coisa importante para os adolescentes é o
"spring break", quando eles vão todos para a praia. Há um grupo chamado "Girls Gone Wild" [garotas enlouquecidas] que vende fitas de vídeo dessas meninas mostrando os seios, se agarrando, tirando a roupa. E elas não são pagas, não ganham nada. Eu entrevistei algumas meninas no "spring break" no ano passado. Perguntei para uma menina de 19 anos que acabara de mostrar os seios o que ela ganhava com aquilo, por que fazia, já que não estava sendo paga. Ela respondeu: "É um reflexo". Acho que é isso mesmo.
Folha - Elas nem pensam?
Levy - Não, afinal a cultura toda as induz a isso. Elas vêem
atletas olímpicas tirando a roupa para a Playboy, mulheres bem- sucedidas tentando imitar performances sexuais... vão fazer o quê?
Folha - Esse tipo de comportamento muda a percepção
masculina sobre as mulheres?
Levy - Sim. De uma forma lenta e sutil, está transformando o
modo como todos nós, homens e mulheres, enxergamos a feminilidade. É como se fizesse parte do papel obrigatório da mulher essa performance sexual. Se uma mulher não é recalcada, ela automaticamente tem de se render a essa estética, a esse modelo de comportamento da pornografia.
Folha - Então não é algo exclusivo de mulheres mais
superficiais, ou menos intelectualizadas?
Levy - Não, e é aí que está o ponto mais interessante. A razão
pela qual decidi escrever esse livro foi porque minha melhor amiga, que eu acho que é muito inteligente e se importa com uma série de questões relacionadas ao feminismo, passou, há uns dois anos, a ficar obcecada com pornografia e estrelas pornôs, comprar livros a respeito. Não sei como é no Brasil, mas aqui as estrelas pornôs são celebridades. Não é como era antes, pessoas ganhando seu dinheiro. Elas são ídolos, estão em todo lugar. Entre os livros na lista de mais vendidos sempre há um de uma estrela pornô, os videoclipes são estrelados por atrizes pornôs.
Folha - Não chegamos ao mesmo ponto no Brasil, mas a capa
da Playboy aqui é sinal de status, e dançarinas ou assistentes de palco seminuas na TV são celebrizadas...
Levy - Então é parecido. Se essas são as estrelas da nossa
cultura, as mulheres nas quais devíamos nos inspirar... Não é que elas não tenham seu valor, mas esse é o trabalho delas. Simular a luxúria. Fingir que estão excitadas. Quando nós as imitamos, estamos imitando uma imitação. Fica muito longe da autenticidade.
Folha - Você vê paralelo entre essa mulher "pornificada" e um
homem mais sensível, preocupado com o visual, mais feminilizado, como os metrossexuais?
Levy - Boa pergunta, não havia pensado nisso. Para mim essa coisa de metrossexual foi exagero, é mais um fenômeno de marketing.
Folha - E no caso das mulheres, não é fenômeno de
marketing?
Levy - Acho que é mais profundo. Com as mulheres não se
trata apenas de comprar calcinhas fios-dentais ou fazer "Brazilian wax" [depilação total], mas de ter livros sobre atrizes pornôs entre os best- sellers, e mulheres em todo lugar usando camisetas com o coelhinho da Playboy. Sabia que aqueles Playboy Clubs originais, com mulheres vestidas de coelhinhas circulando entre os freqüentadores, agora estão reabrindo? Pois é. É uma mudança bem mais profunda que está se operando. Por um breve momento até achamos que havia algo culturalmente errado com o fato de mulheres serem tratadas como um ornamento, e queríamos reforçar a idéia de que as mulheres eram pessoas, donas de uma sexualidade complexa como a dos homens, que não podia ser reduzida a "gostosinhas".
Folha - Você vê nisso um comportamento consciente, a idéia
de usar a sexualidade em benefício próprio?
Levy - Não acho nem que se trate de sexualidade. Há muitos
jeitos de ser sexual e ser humana. E é simplesmente impossível, estatisticamente, que a coisa mais erótica para tantas mulheres seja colocar silicone no peito e parecer uma atriz pornô. Há muitos jeitos de parecer sexy, não acredito que esse seja um jeito que sirva para todo mundo. Para aquelas que acham que isso as estimula sexualmente, ótimo. Mas para a maior parte das mulheres que eu entrevistei não é o caso. As adolescentes são o maior exemplo do que é não-autêntico nessa história. Com 16, 18 anos, elas não sabem direito ainda nem quem são sexualmente, e um de seus principais objetivos de vida é tentar assimilar essa imagem supersexualizada. Elas nem experimentaram muito ainda, não viveram o suficiente para saber o que serve para elas, e já querem se enquadrar em um padrão sexual.
Folha - A mídia tem papel nisso?
Levy - A mídia tem uma reação de reciprocidade com o
público. Se a mídia começa a falar de Paris Hilton, isso a torna mais famosa. Mas as pessoas, por sua vez, querem ler, querem comprar, porque a Paris Hilton virou um ícone dos nossos valores. Rica, gostosa, loira, não- intelectual, materialista. É isso que ela simboliza. Não acho que a mídia decida o que as pessoas querem, acho que a mídia reflete o que as pessoas querem, para o bem e para o mal.
Folha - Boa parte da sociedade americana parece estar
ficando cada vez mais puritana. E ao mesmo tempo atrizes pornôs viram estrelas. Uma coisa está ligada à outra?
Levy - Acho que sim, são os dois lados da mesma moeda. Os
americanos morrem de medo de sexo. São muito recalcados. Nossas raízes puritanas continuam aí, firmes. Já tentamos até regulamentar a sexualidade com leis! Na última eleição presidencial [em 2004], ficamos obcecados com a discussão sobre casamento gay. As pessoas só queriam falar nisso, enquanto o país estava em guerra! Além disso, em 80% das escolas públicas americanas se ensina a abstinência sexual aos adolescentes, em vez de educá-los. Para mim, faz muito sentido se você tem uma sociedade totalmente reprimida em termos de sexo e as pessoas tentarem confrontar isso, e a coisa acabar explodindo. Só que aconteceu de uma forma falsa, comercial. Não temos nem a coragem nem a sofisticação para explorar a sexualidade, para permitir que ela se desenvolva de todas as suas formas.
Em vez disso ficamos repetindo a mesma coisa, as atrizes
pornôs, as strippers, a Playboy, pois aquilo passa a fazer sentido. Só que é literalmente plástico. É uma versão mecânica da sexualidade. Não é humano. Porque, quando as coisas chegam a um nível humano, sujo, feio, as pessoas têm medo.
Folha - Você acredita que a tendência se reverta?
Levy - Não acho que necessariamente possamos fazer algo
para mudar, mas acho que temos de começar uma discussão a respeito. Afinal, ninguém falou nisso por muito tempo.
"Nova mulher" intrigou Levy
Aos 30 anos, pouco conhecida e sem grandes destaques em sua carreira ou formação, a jornalista Ariel Levy só queria começar uma discussão: por que suas amigas a estavam convidando para ir a shows de strippers e suas vizinhas adolescentes promoviam performances ao beijar todos os meninos da turma de uma vez? Ás dezenas de entrevistas, a americana criada na minúscula Larchmont, Nova York,
acabou concluindo que nem todas as mulheres estavam tão
satisfeitas com o novo papel, mas ainda assim o reproduziam sem pensar, mecanicamente.
Mais do que respostas, com seu estilo divertido, a redatora da
New York Magazine conseguiu atiçar uma polêmica latente. Chegou à lista de mais vendidos do "New York Times", e à de recomendações dos editores. Ganhou até uma coluna do renomado William Safire. Mas nem todo mundo concorda com seus argumentos. "Acho que um dos motivos do sucesso do meu livro é o fato de haver um ponto de vista oposto, gente que acha que é tudo normal, que isso mostra na verdade um avanço das mulheres", diz. Há gente citando-a na imprensa americana já como "a nova e provocativa voz" do pós-feminismo". Se há fôlego para continuar e tentar promover alguma mudança? Ela responde: "Não sei mais o que fazer além de começar a discussão".