Rev. Bras. Psiquiatr. vol.21 n.4 So Paulo Dec. 1999 http://dx.doi.org/10.1590/S1516-44461999000400006
A periculosidade social e a sade mental
No Cdigo Penal de 1940, podamos observar a presena de uma medida de segurana como necessidade jurdica para reprimir e tambm para prevenir o delito atravs da verificao da periculosidade do agente infrator da lei. Atravs dessa medida, cabia aos psiquiatras avaliar o "estado perigoso" daqueles indivduos que tivessem cometido algum ilcito penal. A medida de segurana era aplicvel tanto aos doentes mentais que tivessem infringido a Lei, quanto aos reincidentes em crimes dolosos ou aos aliados a bando ou quadrilha de malfeitores (C.P. art. 78). Dessa maneira, indivduos como o estudante de medicina recentemente envolvido no "crime do shopping" poderiam ser considerados socialmente perigosos, e a eles poderia ser aplicada a medida de segurana, assim como ao ex- deputado federal Hildebrando Pascoal ou ao traficante colombiano Joaquim Hernando Castilha Jimenez. Em 1984, a Parte Geral do nosso Cdigo Penal 2 foi revista, e passou-se a reservar a qualificao de periculosidade social, de forma muito preconceituosa, apenas para os doentes mentais que venham a infringir a Lei (C.P. art.97). Em outras palavras, a medida de segurana fica restrita hoje apenas para os doentes mentais que forem considerados penalmente inimputveis, o que acaba vinculando a periculosidade social s doenas mentais e estigmatizando os portadores das mesmas. Assim, com essa mudana do nosso cdigo, no Brasil apenas os doentes mentais passaram a ser considerados perigosos. Isto fez com que o pblico leigo muitas vezes tenha feito uma associao errnea entre doena mental e criminalidade. Sabe-se, no entanto, que o problema da transgresso s leis algo muito mais complexo. O crime no conseqncia da doena mental, mas est vinculado incapacidade do indivduo aceitar as normas morais necessrias para a adaptao social. A periculosidade social deve ser um assunto de estudo da psicopatologia forense, da criminologia, da sociologia, dos legisladores, ou seja, da articulao entre a sade e a Justia 3 . A avaliao da periculosidade humana envolve no s a observao da periculosidade ps-delitiva do indivduo, mas tambm a pr-delitiva, ou seja, a tarefa preventiva da "capacidade do ser humano delinqir". A questo da periculosidade pr-delitiva particularmente complexa, o que fica evidente pelos diversos e surpreendentes assassinatos e chacinas que ocorrem nos dias de hoje. Para pensar sobre quem deve se responsabilizar pela avaliao da periculosidade pr- delitiva, podemos tomar como referncias o exemplo do mdico Jos Cssio do Nascimento Pitta, responsvel pelo acompanhamento do estudante de Medicina acima, assim como o ocorrido com o mdico Bernardo Blay h poucos anos. Em ambos os casos, esses psiquiatras tiveram sob seus cuidados pacientes portadores de transtorno mental que cometeram homicdios, no tendo sido possvel observar a periculosidade pr-delitiva dos mesmos. Certamente, no foi por negligncia ou impercia que psiquiatras to competentes estiveram impossibilitados de prever a periculosidade de seus pacientes. Mesmo assim, comum a algumas pessoas a reao de se querer atribuir aos psiquiatras alguma responsabilidade profissional, em decorrncia da falsa associao entre a doena mental e a periculosidade social. A prpria imprensa, que cumpre a sua funo de divulgao dos fatos, algumas vezes faz julgamentos precipitados, contribuindo para a estigmatizao das pessoas envolvidas. Frente ao trgico, a sociedade procura encontrar rapidamente razes lgicas para explicar o ocorrido, ainda que no caso em questo, a periculosidade social no tenha podido ser suspeitada por pessoas de convvio prximo ao indivduo, como familiares, professores ou colegas, nem tampouco pelos profissionais que o atenderam durante o perodo de internao hospitalar. A discusso aqui apresentada no entra no mrito da avaliao da imputabilidade ou no da pessoa que cometeu o ilcito penal, ou, em outras palavras, se o Direito se utilizar da criminologia ou da psicopatologia forense para explicar o ato criminoso em questo. Pode-se prever que, de algum modo, o indivduo ser responsabilizado socialmente pelo seu ato. O que cabe aqui questionar como a sociedade poder encontrar formas de avaliar a periculosidade pr-delitiva num contexto de preveno social. Certamente, a avaliao da periculosidade humana no compete apenas aos psiquiatras, mas sim a equipes multiprofissionais envolvendo profissionais de sade e de Justia, na medida em que sabe-se ainda muito pouco a respeito da problemtica psicossocial envolvida na periculosidade pr-delitiva nos seres humanos. patente que no ser atravs da associao com a doena mental ou com a toxicofilia que ser possvel explicar a complexidade dos atos anti-sociais. O entendimento da transgresso ao ilcito penal somente poder ser alcanado atravs de um maior conhecimento a respeito da personalidade das pessoas que os cometem, e de uma melhor classificao das caractersticas comuns a estas personalidades. Dessa forma, poder ser possvel identificar as pessoas que infringem a Lei como pessoas com caractersticas na sua personalidade que no lhes permitem a adaptao social, em vez de continuar reduzindo todo e qualquer indivduo infrator da Lei apenas sob o rtulo de portador de transtorno mental do tipo personalidade psicoptica ou anti-social. Alis, j h um aspecto positivo da nossa Lei de Execuo Penal 4 , em seu art.5, que prev a necessidade de se avaliar a personalidade do condenado para individualizar a execuo da pena, ainda que na prtica isto no venha sendo cumprido. O estudo multiprofissional das caractersticas humanas comuns queles que infringem a lei poder viabilizar, no futuro, a identificao da periculosidade pr-delitiva e a preveno de condutas anti-sociais. Esta identificao mais precisa poder, apesar de todas as dificuldades envolvidas, abrir caminhos para o desenvolvimento de abordagens teraputicas para estes desvios na personalidade de alguns seres humanos.
Claudio Cohen Professor associado do Departamento de Medicina Legal e tica Mdica da Faculdade de Medicina da USP. Responsvel pelo curso de ps-graduao em Sade Mental e Justia. Referncias 1. Cdigo Penal: decreto 2.848 (Dez. 7, 1940). 2. Cdigo Penal: Lei 7.209 (Jul. 11, 1984). 3. Cohen C, Ferraz FC, Segre M. Sade Mental, Crime e Justia. So Paulo: Edusp; 1996. 4. Lei de Execuo Penal: Lei 7.210 (Jul. 11, 1984).
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Princípio Da Precaução No Direito Brasileiro e No Direito Internacional Comparado. in VARELLA, Marcelo Dias_ PLATIAU, Ana Flávia Barros. Princípio Da Precaução. Belo Horizonte - Del Rey, 2004.
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Princípio Da Precaução No Direito Brasileiro e No Direito Internacional Comparado. in VARELLA, Marcelo Dias_ PLATIAU, Ana Flávia Barros. Princípio Da Precaução. Belo Horizonte - Del Rey, 2004.
SANDS, Philippe. O Princípio Da Precaução. in VARELLA, Marcelo Dias - PLATIAU, Ana Flávia Barros. Princípio Da Precaução. Belo Horizonte - Del Rey, 2004.