Discover millions of ebooks, audiobooks, and so much more with a free trial

Only $11.99/month after trial. Cancel anytime.

A Igreja com o Poder
A Igreja com o Poder
A Igreja com o Poder
Ebook575 pages49 hours

A Igreja com o Poder

Rating: 0 out of 5 stars

()

Read preview

About this ebook

A diferenciação entre Jesus real e histórico do divinizado pela Igreja Cristã, estruturada pelo Império Romano através de seu líder Constantino I, é fundamental para desigualar o projeto de Deus e os ensinamentos de Jesus das doutrinas religiosas pregadas pelas diversas Igrejas Cristãs, ou por parte destas. Destacamos o marco divisor da Igreja primitiva, povo de Deus, para uma Eclésia a serviço do poder ou dos poderes, através da suposta conversão de Constantino I. E aqui perguntamos: foi Constantino que se converteu ou ele remodelou o cristianismo para que este passe a estar com o poder e a serviço do poder? Jesus foi um líder político comunista? Ao longo da história cristã relatamos as experiências onde o centro das ações eclesiásticas foi voltado ao humanismo com suas necessidades espirituais e materiais. Porém em vários outros momentos as Igrejas (ou frações delas) estiveram com o poder, seja ele político, ideológico ou econômico, descaracterizando-se, como instituição comprometida com a boa-nova, com o Evangelho. Questões relevantes como o Tribunal da Inquisição, a Igreja da Idade Média, apoio ao Absolutismo e regimes ditatoriais, o destino manifesto, revoluções socialistas, a misteriosa morte do Papa João Paulo I, a Teologia da Libertação e o papel da Igrejas Pentecostais e Neopentecostais na América, são temas de análise e reflexão desta obra.
LanguagePortuguês
PublisherViseu
Release dateAug 1, 2022
ISBN9786525420745
A Igreja com o Poder

Related to A Igreja com o Poder

Related ebooks

Religion & Spirituality For You

View More

Related articles

Reviews for A Igreja com o Poder

Rating: 0 out of 5 stars
0 ratings

0 ratings0 reviews

What did you think?

Tap to rate

Review must be at least 10 words

    Book preview

    A Igreja com o Poder - Cirilo Fronza

    Dedicatória

    Sempre tive o sonho de escrever um livro e agora que o sonho se tornou real quero fazer agradecimentos a pessoas a quem devo muito, pois estiveram sempre comigo incondicionalmente.

    A meus pais, Arquile e Gelma. Claro que não puderam suprir todas as minhas necessidades e dos meus irmãos, mas fizeram tudo o que podiam e muito mais. Minha eterna gratidão pelos valores éticos, sociais e religiosos. Sei que perderam muitas horas de descanso, lazer e trabalho por minha causa e se fosse preciso fariam tudo novamente. Pai e Mãe, obrigado por tudo.

    A meus Irmãos. Para ser irmão de verdade tem que ter múltiplos e diversificados momentos: brigas e abraços, choros e risos, tristezas e alegrias. Porém sempre tem amor fraternal e histórias para contar. Abraços!

    A meus professores (tornei-me professor de história para seguir meus três grandes mestres: Clarice, Celito e Marino).

    Clarice Corazza Zanatta. Nas séries iniciais, lá na década de 1970, havia poucos professores formados e sem estabilidade no cargo, provocando várias trocas de educadores, dificultando a alfabetização e a aprendizagem. Foi então que surgiu a Professora Clarice, e a minha vida foi mudada, passei a ter prazer em estudar e tudo ficou melhor. Obrigado por tudo, professora — aquele abraço.

    Celito Urbano Luft. Que aulas divertidas eram aquelas! Lúdicas e com muita responsabilidade e criticidade. Aguardava com ansiedade, não via a hora de ter aula com o Professor Celito. Obrigado por influenciar tanto, e positivamente, minha vida. Forte abraço.

    Marino Casali. As aulas com o Professor Marino sempre tinham uma didática fenomenal, que, além de atrair muito a atenção, deixava qualquer conteúdo saboroso. Tranquilidade, respeito e dedicação e tantas outras virtudes eram praxe cotidiana. Abraço e tudo de melhor.

    A meus amigos(as) e colegas de profissão. Quando você não tem familiares por perto, amigos(as) e colegas passam a ser irmãos e irmãs do coração, e estão contigo em todos e quaisquer momentos. Abraços fraternos a todos.

    E, especialmente, a minha filha Diagna. Minha filha é o que de mais importante aconteceu na minha vida. Perdi algumas horas de sono (brincadeiras à parte), mas os momentos de emoção e alegria são quilometricamente maiores. Sou um pai que aprendeu muito com minha amada filha, da qual tenho o maior orgulho. Obrigado, filha, por ser essa pessoa magnífica. Beijos, beijos, beijos.

    Prefácio

    Não posso deixar de registrar a minha alegria e satisfação em escrever este prefácio. Meu pai sempre esteve presente nos principais momentos da minha vida, agora sou eu que quero compartilhar a felicidade dele ao escrever seu primeiro livro.

    Somos o que fazemos. Essa premissa tem sido reiterada na história da humanidade, desde o existencialismo de Jean-Paul Sartre até a psicologia contemporânea, estando presente também no lugar-comum. Tal ideia implica não haver essência intrínseca aos indivíduos e entidades; do contrário, são suas ações que determinam quem ou o que são no mundo. No âmbito dos indivíduos, a prática constrói caráter, personalidade e moralidade. Para as entidades, como organizações e instituições, suas práticas demonstram seus propósitos, valores e missão.

    Amar o próximo, compartilhar bens e perdoar são exemplos de práticas exercidas e incentivadas por Jesus Cristo a seus seguidores para estabelecer uma sociedade altruísta e igualitária. Não se contentando com um raso ‘dizer ser’, o cristianismo é, portanto, fazer — é a prática guiada pelas palavras (e ações!) de Cristo.

    No entanto se a essência de um indivíduo ou entidade é construída por sua prática, a primeira se modifica em decorrência da segunda. Ao longo deste livro, percebemos como as práticas da Igreja se modificam durante seu percurso histórico, em uma tendência que se distancia progressivamente dos ensinamentos de Cristo e se aproxima de uma lógica capitalista pautada em individualismo e ganância, e sustentada pela desigualdade social. Passa, portanto, de uma Igreja do fazer para uma Igreja do ‘dizer ser’: pouco faz em consonância aos ensinamentos de Cristo, mas ainda diz ser cristã. Porém uma Igreja sem visão de aspectos sociais, sem luta de classes, sem interesse por igualdade, esvazia-se dos fundamentos cristãos e se manifesta na silhueta de uma corporação multinacional interessada em garantir os próprios lucros e a manutenção do status quo que permite e estimula sua avareza.

    O eventual resgate da Igreja de Cristo, propriamente dita, requer o ajuste de suas práticas em consonância com os ensinamentos de seu Messias. A mudança, no entanto, é precedida pela denúncia. O empoderamento trazido pelo conhecimento já foi enfatizado no Evangelho de Tomé; faz-se necessário identificar e compreender a distância atual entre Cristo e a Igreja, para que se reivindique uma Igreja desapegada do poder e separada do Estado, preocupada com sua verdadeira missão consoante a teologia da libertação: agir sobre o mundo de maneira concreta e humanitária, em prol dos mais pobres.

    Este livro discorre de maneira detalhada e crítica sobre a história e o funcionamento atual de uma Igreja Católica deturpada pelo poder. E denuncia os pecados de uma instituição que, por ser composta por seres humanos, é imperfeita, mas marcou de maneira decisiva e continua tendo impactos dificilmente mensuráveis sobre a história da espécie humana.

    Introdução

    Evidentemente não pretendemos descrever toda a história milenar do cristianismo e de suas principais religiões, pelo motivo principal: o extenso volume que teria esta publicação. Também porque pretendemos fazer uma obra concisa e destacar os pontos essenciais que representaram mudanças no rumo do cristianismo e de suas associações com o Estado.

    Começamos conceituando o que significa Igreja e caracterizando o modo de ser Igreja das primeiras comunidades cristãs, onde o cristianismo era vivenciado ao ‘pé da letra’ numa experiência incrível de socialização dos bens e a partilha com os necessitados. Um lugar de acolhimento, principalmente, aos escravizados e as mulheres que eram muito desvalorizadas pelo Império Romano.

    Um capítulo que consideramos de suma importância trata da suposta conversão do Imperador Romano Constantino I. Questionamos a atitude do ‘novo convertido’, pois este deixou de perseguir os cristãos para se tornar um deles, porém esta foi a única mudança na vida de Constantino I. A convergência entre Igreja e o Imperador acontece com a transformação do próprio cristianismo. Na Idade Média, tivemos uma Igreja Católica que de defensora da justiça, dos oprimidos e explorados, torna-se opressora e injusta, sendo responsável pelo aparelhamento ideológico do sistema feudal, criando e ameaçando os hereges com o fogo do inferno e o Tribunal da Inquisição.

    Veremos as críticas que defensores de ideologias socialista e comunista fizeram à postura de Igrejas na defesa de governantes espoliadores de direitos e da dignidade das pessoas mais humildes, como os textos de Rosa de Luxemburgo. Em contrapartida, estas ideologias são bombardeadas, não só pelas cúpulas eclesiásticas, como também pelos Estados constituídos.

    O apego ao poder político e à cobrança de dízimos e ofertas, além de outros negócios no mínimo duvidosos, como a venda de indulgências plenárias e simonias e a corrupção do clero, possibilitou grande acúmulo de bens materiais, tornando uma instituição superpoderosa. Estes e outros motivos levaram a Reforma Religiosa iniciada por Martinho Lutero. Para recuperar o número de fiéis, o catolicismo pegou carona nas Grandes Navegações promovidas pelos estados absolutistas, criando a Companhia de Jesus para catequizar os nativos e escravizados, como foi o caso do Brasil.

    A Reforma Religiosa possibilitou o surgimento de inúmeras novas religiões, como, por exemplo, os pentecostais e neopentecostais com funções e metas políticas, ideológicas e até mesmo de espionagem, apoiando golpes e ideologias extremistas de direita. Além de práticas religiosas exóticas, nada convencionais, como, por exemplo, comer capim ‘sagrado’ e sexo oral com o pastor afirmando ter o ‘pênis sagrado’. No próprio catolicismo e em outras religiões, os casos de pedofilia se proliferaram, mas muitos foram abafados por superiores.

    Com a proliferação de número expressivo de seitas e religiões diferentes, com diferentes rituais, ideologias, dogmas e liturgias, a intolerância religiosa aumentou nas mesmas proporções, gerando crises, conflitos e até guerras, na disputa por seguidores e áreas de influências.

    Por fim, fizemos uma análise crítica sobre os evangelhos e livros que fazem parte da Bíblia Sagrada e, principalmente, sobre os que foram excluídos e por que foram, como os Evangelhos de Maria Madalena e de Pedro, além da negação ao gnosticismo. Maria Madalena era considerada a Apóstola dos Apóstolos e sempre esteve ao lado do Mestre nos principais momentos da vida D’ele. Dentre os apóstolos homens, Pedro sempre se destacou, tanto é que o próprio Jesus o escolheu para ser a ‘Pedra’ fundamental da Igreja. E aí fica a pergunta incalável: por que os evangelhos da Apóstola Maria Madalena e do Apóstolo Pedro não fazem parte da Bíblia?

    Vamos nos deleitar na leitura.

    O que é ser Igreja

    Usando a palavra ‘Povo de Deus’ não nos referimos a um determinado grupo de fiéis no seio da Igreja em contraposição a outro grupo da hierarquia. O conceito designa a Igreja como uma grande unidade. Mas todos os homens são chamados a pertencer a esse novo povo querido por Deus. Esse povo, permanecendo uno e único, deve estender-se a todo o mundo e por todos os tempos, para que se cumpra a vontade de Deus, que é a salvação de todo homem. Deus quer congregar seus filhos dispersos, esclarece Jackson Erpen — Vatican News.

    Interpretando as palavras do Vatican News, por Jackson Erpen, entendemos que ser igreja e fazer parte do povo querido por Deus não significa somente pagar o dízimo, ir a missas, cultos, batizar-se, proferir o nome de Jesus, rezar orações prontas, dobrar os joelhos, postar frases religiosas nas redes sociais etc. ‘Deus quer congregar seus filhos dispersos’, portanto Deus não quer ninguém passando fome, sendo agredido, violentado, abandonado, humilhado, explorado. Ser igreja é ter compromisso com a vida plena e digna de todo o povo de Deus e não apenas de alguns privilegiados.

    Muitas vezes nos deparamos com pessoas que se autoincluem no povo querido de Deus, que rogam por sua prosperidade econômico-financeira, mesmo que para isso causem danos à vida e à saúde de outros membros que comungam da mesma instituição que, em sua equivocada razão, consideram ser inferiores, numa perspectiva que deve haver, dentro de uma suposta normalidade, exploradores e explorados, fartura e miséria, fome e abundância.

    Numa pura visão capitalista, individualista, onde os meios justificam os fins para se obter lucros e acumular bens que são de seu uso exclusivo e não compartilhado com os irmãos do povo de Deus.

    A revista Instituto Humanitas Unisinos nos remete à reflexão mais abrangente do significado de Igreja. Meditamos — profunda e permanentemente — a vida de Jesus de Nazaré para perguntarmo-nos sempre: nessa situação concreta social (sócio-econômico-político-ecológico-cultural-religiosa) e individual em que nos encontramos, como Jesus de Nazaré agiria? Marcos Sassatelli, frade dominicano, doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção – SP) e professor aposentado de Filosofia da UFG, escreveu artigo publicado originalmente por Portal das CEBs. Eis o artigo.

    "Na história do ser humano, no mundo com o mundo (a Irmã Mãe Terra, Nossa Casa Comum), ser Igreja significa ser – nessa mesma história – a continuidade da presença visível de Jesus de Nazaré.

    Nós cristãos e cristãs não queremos ‘imitar’ Jesus de Nazaré de maneira formal e não histórica, de maneira individualista e subjetivista, de maneira mecanicista e fundamentalista, mas queremos viver hoje como Jesus de Nazaré viveu no tempo dele; lutar hoje como Jesus de Nazaré lutou no tempo dele; morrer hoje como Jesus de Nazaré morreu no tempo dele e ressuscitar hoje como Jesus de Nazaré ressuscitou no tempo dele. Queremos, pois, segui-lo.

    Meditamos – profunda e permanentemente – a vida de Jesus de Nazaré para perguntarmo-nos sempre: nessa situação concreta social (sócio-econômico-político-ecológico-cultural-religiosa) e individual na qual nos encontramos – como Jesus de Nazaré agiria?

    Hoje, contemplamos a Jesus Cristo tal como os Evangelhos nos transmitem para conhecermos o que Ele fez e para discernirmos o que nós devemos fazer nas atuais circunstâncias" (Documento de Aparecida – DA 139).

    A Igreja, a todo momento (reparem: a todo momento!), deve escutar os sinais dos tempos (ou seja, ouvir a voz de Deus nos acontecimentos) e interpretá-los à luz do Evangelho (ou seja, na ótica dos pobres, desde os pobres, a partir dos pobres), de tal modo que possa responder, de maneira adaptada a cada geração, às interrogações eternas sobre os significados da vida presente e futura e de suas relações mútuas. É necessário, por conseguinte, conhecer e entender (reparem novamente: conhecer e entender!) o mundo onde vivemos, suas esperanças, suas aspirações e sua índole frequentemente dramática" (Concílio Vaticano II. A Igreja no mundo de hoje – GS 4. Cf. Também: DA 33).

    O método (‘caminho’) — ver, julgar, agir (analisar, interpretar, libertar) — vivido pela chamada Igreja da Caminhada nos coloca em atitude de escuta permanente. Ele nos permite articular, de modo sistemático, a perspectiva cristã de ver a realidade (que é a perspectiva desde os pobres); a assunção de critérios que provêm da fé e da razão (ou seja, da razão iluminada pela fé) para seu discernimento e valorização com sentido crítico; e, em consequência, a projeção do agir como discípulos missionários de Jesus Cristo (DA 19).

    Para viver isso, a Igreja — que somos todos nós seguidores de Jesus de Nazaré — precisa voltar ao Evangelho, ser uma Igreja realmente evangélica, despojar-se e libertar-se de todas as insígnias imperiais, feudais e capitalistas que — no decurso da história — incorporaram em sua estrutura e desfiguraram totalmente o seu rosto.

    O Concílio Vaticano II (1962 – 1965) e a II Conferência Episcopal Latino-Americana e Caribenha de Medellín (1968) abriram caminhos para podermos fazer isso. Cabe a nós percorrer com amor e perseverança esses caminhos! Até o momento, o processo de renovação e de libertação da Igreja depois do Concílio Vaticano II foi longo, com muitos altos e baixos, avanços e recuos, mas a esperança nunca morre. A luta continua!"

    Nessa primeira série de artigos — a começar do presente texto, que é a introdução — farei algumas reflexões teológico-pastorais sobre a Igreja, na perspectiva da Eclesiologia da Libertação, tendo como plano de fundo e fonte inspiradora, a ‘Fotografia da Igreja que o Concílio Vaticano II sonhou’ de Dom Aloísio Lorscheider.

    O Concílio Vaticano II fez-nos passar por mudanças significativas, com o objetivo resgatar a verdadeira face de Igreja, povo querido de Deus, dando amplitude à significação do cristianismo.

    * De uma Igreja-instituição ou de uma Igreja-sociedade perfeita para uma Igreja-comunidade, inserida no mundo, a serviço do Reino de Deus.

    Nossa reflexão sobre o significado institucional da Igreja que, perante o Evangelho, perde praticamente toda a sua importância, dado que o Evangelho de Jesus Cristo ou seus ensinamentos se diferencia largamente das ações praticadas nos templos ‘tidos’ como cristão e também fora dele. Observa-se que, principalmente no período anterior ao Concílio Vaticano II, o ritualismo, as aparências e a não observância dos princípios cristãos eram insinuantes. E ainda contavam com associações ao poder político, protegendo e se submetendo aos interesses de governantes ligados a todo o tipo de mazela que acometia as camadas sociais mais elevadas, deixando, assim, os vulneráveis abandonados à própria sorte. Não era uma Igreja-comunidade, não só por viver no luxo e outros pecados capitais, mas por não compartilhar a vida com os excluídos da dignidade e desamparados do amor fraternal, primícias do Cristianismo.

    * De uma Igreja-poder para uma Igreja pobre, despojada, peregrina;

    Havia uma necessidade de mudança significativa e rápida e de se desgarrar do poder, abraçando incondicionalmente os pobres e miseráveis, que viviam em condições de sofrimento enquanto na riqueza a Igreja se consolidava e aumentava seu poder, descaracterizando-se completamente da Igreja ‘povo querido de Deus’.

    * De uma Igreja-autoridade para uma Igreja-serva, servidora, ministerial;

    A autoridade e o autoritarismo da Igreja iam bem além de prescrições religiosas e morais e influência na política, ajudava a dar sustentabilidade a pessoas poderosas que compravam o apoio do clero, em detrimento de pessoas humildes seguidoras do Evangelho; na justiça dos homens, conchavos seguiam os mesmos propósitos; na economia, os interesses paroquianos em blindar abonados de seus delitos estavam intimamente ligados ao pagamento de dízimos e ofertas.

    * De uma Igreja piramidal para uma Igreja-povo;

    Como já vimos, a característica básica da Igreja era a preferência pelo topo da pirâmide, pois havia uma estreita relação de interesses mútuos e com distância quilométrica da base da pirâmide, ou seja, o povo necessitado.

    * De uma Igreja pura e sem mancha para uma Igreja santa e pecadora, sempre necessitada de conversão, de reforma;

    Para acobertar seus erros e desgovernos a Igreja Católica se revestia com a máscara da pureza e santidade, e se negava a admitir que pode ser santa, sim, mas feita por humanos com falhas, desvios de rumo e recaídas. Portanto pecadora.

    * De uma Igreja-cristandade para uma Igreja-missão, uma Igreja toda ela missionária.

    Ser missionário significa dar-se totalmente pelo Reino de Deus. Ser missionário significa também desprender-se de tudo e de todos, de todas as seguranças e viver somente para o Reino, para anúncio do Evangelho, descendo do pedestal, do altar, abraçando o povo e conduzindo para a libertação.

    Portanto para ser verdadeiramente Igreja, o caminho a seguir é aquele que Jesus Cristo nos ensinou: estar do lado dos pobres e excluídos pela sociedade, engajar-se na luta por um mundo mais justo, solidário, fraterno e cristão na verdadeira concepção da palavra. A partilha, demonstrada e ensinada num dos momentos mais marcantes da vida do Messias, onde Ele instituiu a Eucaristia repartindo e compartilhando o alimento do corpo e da alma.

    Por que Jesus veio ao mundo?

    Deus não reina quando se fala, mas só quando se atua (1Cor 4,20).

    Certamente todos nós já presenciamos discursos políticos inflamados, pregações religiosas eloquentes, falas que nos convencem e declarações que nos enchem de entusiasmo, porém totalmente desconectadas da prática. Como observamos na obra de Paulo Freire, a Pedagogia do oprimido, na abordagem sobre a relação teoria e prática perpassa o compromisso existente dos sujeitos na construção de saberes e com a transformação da sociedade. No processo pedagógico, teoria e prática precisam dialogar permanentemente, fugindo da ideia tradicional de que o saber está somente na teoria, construído distante ou separado da ação/prática. Na concepção de Freire, teoria e prática são inseparáveis, tornando-se, por sua relação, práxis autênticas, que possibilitam aos sujeitos reflexão sobre a ação, proporcionando educação para a liberdade. A práxis, porém, é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo. Sem ela, é impossível a superação da contradição opressor-oprimido (FREIRE, 1987, p. 38).

    Percebemos que a proposta freireana caracteriza-se num contexto originariamente dialético, ou seja, a educação que se quer fazer exige ao educador(a) e educando(a) um posicionamento de reconhecimento e emancipação humana, para isso o seu fazer, ação e reflexão, não pode dar-se sem a ação e a reflexão dos outros, se seu compromisso é o da liberdade. A práxis pedagógica e epistemológica em sua conjuntura veem na condição humana potencial de esperança, amor, autenticidade, diálogo e transformação, com capacidade de compreensão e intervenção do mundo. Estas disposições fazem com que os sujeitos se coloquem diante do outro, com propósito de modificar a realidade e contexto opressor/dominador.

    A pedagogia freireana se encaixa perfeitamente nas Igrejas, na política, nos sindicatos, associações, enfim, em todas as situações, especialmente na sociedade do Império Romano (27 a.C. a 476), onde a escravização, o desprezo pelas mulheres, a exploração e a corrupção eram práticas submetidas à maioria absoluta da população dominada pelo Império Romano. É neste contexto socioeconômico que Jesus, o Cristo, vem ao mundo para anunciar a boa-nova, anunciar que outra sociedade com valores humanitários é possível, denunciar as injustiças, todas as formas de atentados contra a vida e a podridão das estruturas políticas e religiosas daquela época.

    Estamos sendo chamados a construir a comunidade do povo de Deus em todos os lugares, exercendo ações concretas, participando ativamente, com as ‘mãos na massa’, na realização do Reino do Pai de todos. Uma comunidade que continue o jeito de ser e de se relacionar do Mestre, portanto uma comunidade solidária e fraterna onde tudo se partilha. A adesão ao modelo é tamanha que as pessoas que dela estão imbuídas sentem a necessidade de estender a rede, alcançar sempre mais espaços, chegando aos confins do mundo (At 1,8).

    A Missão no local onde se encontra significa agir concretamente, participar ativamente, ajudar transformar a realidade concreta de pessoas, de grupos, de sociedades, anunciando a Boa-Nova, antes de tudo pelo testemunho de religiosos e leigos que se intitulam cristãos ou defensores da vida plena.

    Missão como consequência de um encontro, missão é ação generosa, gratuita, que parte de uma motivação interior, por isso o missionário e missionária são movidos, são conduzidos por uma força que nada poderá conter, nem os desafios, resistências, perseguições ou mesmo ameaças.

    Missão é resgatar as sementes do Verbo em cada cultura, em cada época, revelado na cultura de solidariedade em vista da utopia de um novo mundo, de uma nova sociedade. É o anseio por estabelecer uma nova ordem sempre presente em cada cultura, cada época; é o sonho de todos viverem em paz, sem posse por isso, sem ganância ou fome. Nada pelo qual matar ou morrer. Uma irmandade de homens e mulheres alicerçados na partilha, na comunidade, no trabalho, no lazer, alimentando-se no amor recíproco, vivendo para que a vida plena seja real e constante.

    A missão de Jesus recebida do Pai esteve sempre presente nos anseios mais recônditos de cada ser humano, apesar de, na maioria das vezes, ser abafada pela cultura de consumo e de morte. Jesus que veio realizar a missão recebida do Pai de anunciar a Boa-Nova aos pobres, proclamar a remissão aos presos e aos cegos, a recuperação da vista, para restituir a liberdade dos oprimidos (Lc 4, 18-19), assim, o cidadão e a cidadã de hoje, assumem a luta que Jesus iniciou contra os poderes do mal, que empobrecem a vida do povo.

    A razão pela qual Jesus veio ao mundo deve estar sempre presente na vida de todos os seres, como realizadores do projeto de vida plena: Eu vim para que tenham a vida e a tenham em abundância (Jó 10, 10). Por isso, como consequência lógica, o seu lugar social é sempre onde a vida está ameaçada, por causa do sistema econômico injusto que exclui e marginaliza, empobrecendo o povo cada vez mais, e onde o sistema religioso já não revela o rosto e as palavras de Jesus Cristo, onde o Templo é reduzido a um supermercado, a um lugar de show gratuito, de manifestações de emoção superficial e que anestesia o ser humano, deixando de ser lugar de reflexão, de anúncio da Palavra, de alimento da comunhão fraterna, memória de Jesus.

    O Brasil, considerado um dos países mais ricos, com maior potencial em riquezas naturais, extensão de terra, volume de água doce, riquezas minerais e biodiversidade, é um país onde milhões de pessoas passam fome, onde a criminalidade armada, as milícias, o narcotráfico, a prostituição, o desemprego e o analfabetismo apresentam índices gritantes. É um país onde o capitalismo selvagem, pela concentração de terras, de riquezas nas mãos de poucos, onde muitos corruptos que se dizem cristãos, escandaliza a todos. É um país onde as fraudes, as corrupções e a impunidade enfraquecem o sistema de segurança, desautorizando a sua ação.

    Em defesa dos mais pobres

    Jesus retomou na Galileia a profecia de Is 61,1s: O Espírito do Senhor está sobre mim, pois ele me consagrou com a unção, para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e, aos cegos, a recuperação da vista: para dar liberdade aos oprimidos e proclamar um ano de graça (Lc 4,18-19). Logo em seguida, ele diz que aquelas palavras da Escritura se cumpriram naquele dia pela sua pessoa. Toda a prática de Jesus foi a realização dessas coisas lidas na sinagoga. Dessa forma, ele sofrerá a perseguição e a própria morte por viver o amor de Deus Pai na pessoa dos sofredores e pobres. Ele foi pobre primeiro porque não tinha onde reclinar a cabeça. O programa de Jesus deve ser o da Igreja e de todos os seguidores D’ele. Se a igreja quer ser de fato discípula missionária de Jesus Cristo, que trilhe os mesmos passos de seu Mestre. Somos chamados pelo Espírito de Jesus a anunciar o Evangelho de Jesus Cristo a todos. Esta deve ser a nossa opção, visto que Deus ama os que mais sentem necessidade para, assim, amar os que se sentem bem.

    A opção pelos pobres não é algo extrínseco a nossa missão, mas ela deve ser essencial para a correspondência de nossa vida Àquele que nos chamou um dia para trabalhar em sua messe, não consistindo apenas em ensinar algo para a melhoria de suas vidas, mas ela aponta a aprendizagem deles na forma como se processa a vida. É a consciência de que eles nos evangelizam pela sua forma de vida e de desprendimento das coisas. Muitas vezes, a palavra de Jesus é mais assumida por eles na dor, no sofrimento e na luta pelo bem. O Evangelho se lhes torna carne e alimento para suas vidas.

    A opção se faz por uma conversão pastoral. Jesus diz aos seus discípulos e hoje esta palavra é dirigida a nós: Convertei-vos e crede na Boa-Nova (Mc 1,15). Toda a pastoral deve ser perpassada pela opção pelos pobres. Jesus Cristo convivia com os pobres e os defendeu a vida toda, doou sua vida aos necessitados, discriminados e explorados, mostrando que a riqueza dos abonados advinha do trabalho, do suor, dos sacrifícios dos humildes, enquanto os soberanos e sua turma reservavam para si os privilégios e a vida sem compromissos.

    A opção pelos pobres, opção do Cristo Jesus, faz o discípulo missionário ver Jesus Cristo no rosto dos sofredores, o qual nos chama a servi-los neles. Esses aparecem nas crianças, desempregados, mulheres, drogados, anciãos abandonados. A palavra de Jesus fica como uma exortação para uma prática de vida que se vislumbrará no dia do julgamento: Todas as vezes que fizestes isso a um destes mais pequenos, que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes (Mt 25,40).

    Está explícito, como vimos, que a vinda do Jesus Cristo a este mundo não foi para fazer afagos em poderosos e exploradores como fazem muitos líderes religiosos do passado e do presente; não foi para construir templos luxuosos; não foi para impor a cobrança de dízimo; não foi para acumular ouro, terras e outras riquezas. Jesus veio para defender os pobres e excluídos e denunciar as estruturas organizadas para favorecer os poderosos, exploradores e tudo aquilo que é contra a vida, pois sempre defendia a vida, a vida em abundância, a vida plena.

    Jesus, o Grande Pastor das ovelhas, tem significado valoroso e muito simbólico para os nossos dias. As ovelhas são animais muito afáveis, ‘doces’ e frágeis, pois são muito cobiçadas pelos predadores, assim como estão os pobres e humildes diante das armadilhas do capitalismo selvagem e predador.

    O que é pastoral?

    Para melhor compreendermos o sentido de igreja, vamos nos dirigir ao significado de pastoral, pois a Igreja precisa da pastoral para ser igreja e a igreja necessita da ação pastoral junto ao seu ‘rebanho’, para protegê-lo e guiá-lo rumo à construção da comunidade que partilha, que coopera e segue o caminho trilhado por Jesus.

    É sabido que o termo ‘pastoral’ está ligado à figura bíblica do Pastor. Jesus se apresenta como o Bom pastor que dá a vida pelas suas ovelhas (Jó. 10, 11). A Igreja continua a ação de Jesus no mundo, cuidando das ovelhas: Apascenta as minhas ovelhas! (Jó. 21, 15)

    Ao longo da história da Igreja e da reflexão teológica, a palavra pastoral tomou vários significados. O Concílio de Trento (1545 – 1563) deu grande ênfase à figura do pastor, aplicando este termo primeiramente à figura do Bispo e depois à figura do Padre. O projeto de reforma da Igreja, neste Concílio, passa por uma definição das características do pastor e a seleção e formação de pastores: bispos e padres. Assim, a palavra ‘pastor’ era utilizada para definir as funções do bispo e do padre, em oposição ao apostolado dos leigos.

    Antes da segunda metade do século XIX, a palavra passou a ser interpretada a partir dos três ofícios de Cristo: sacerdotal, profético e real. Essa noção é assimilada pelo Concílio Vaticano II. Assim, toda a ação dos cristãos como continuadores da missão de Cristo seria também entendida como uma ação pastoral. E, ainda a partir deste conceito, toda a ação da Igreja seria também uma ação pastoral.

    Mais tarde o termo pastoral foi empregado para significar somente a terceira da tríplice missão de Cristo e dos seus seguidores: o cristão teria uma missão sacerdotal, como dom sagrado para santificar o mundo; uma missão profética, de anúncio e denúncia; uma missão pastoral (real) de cuidado da vida e da dignidade do ser humano.

    Pode-se perceber haver uma dificuldade de compreensão da ação pastoral da Igreja no mundo, especificamente em relação à primeira missão.

    O Concílio Vaticano II (1962 – 1965), após longos debates, apresenta um novo significado para o termo pastoral. O primeiro passo nessa direção foi dado pelo Papa João XXIII, indicando como ponto saliente do Concílio sua orientação predominantemente pastoral. O Papa vai mais longe, quando introduz, na linguagem e no programa do Concílio Vaticano II, novas palavras como aggiornamento e sinais dos tempos. Aggiornamento indica, na intenção do Papa, que o Concílio não seja uma mera repetição da doutrina, mas uma apresentação desta mesma doutrina, com uma roupagem nova, com uma linguagem atraente e adequada aos novos tempos. Que o Concílio falasse a linguagem do povo. Com sinais dos tempos, o Papa expressa a atenção que a Igreja deve dar à situação do mundo atual através da qual Deus nos fala.

    O Concílio Vaticano II, partindo de um conceito pós-tridentino de pastoral, não limita a ação pastoral aos pastores (bispos e padres), mas nela envolve também os leigos. De outro lado, não só considera como pastoral a ação intraeclesial, voltada para a edificação da comunidade, mas reconhece como pastoral a preocupação de estabelecer o diálogo e o relacionamento com as condições concretas da humanidade no mundo, na situação histórica de hoje (Pe. Alberto Antoniazzi).

    A partir destas reflexões, podemos entender que Pastoral, de um lado, faz referência à fé cristã e à acolhida de Deus em nossa vida; de outro, significa o compromisso da Igreja de dar uma resposta às necessidades do ser humano, dentro da situação do mundo em que vive.

    Portanto não podemos compreender uma pastoral desvinculada da fé cristã e nem alheia à realidade que vivemos. A ação pastoral deve unir fé e vida, espiritualidade e compromisso concreto, evangelização e transformação social.

    As primeiras comunidades cristãs

    O Bispo Dom José Ionilton Lisboa de Oliveira da Prelazia de Itacoatiara, no Amazonas, destaca o texto dos Atos dos Apóstolos (2, 42-47). Lucas diz que os primeiros cristãos eram perseverantes em ouvir o ensinamento dos Apóstolos, na comunhão fraterna, na fração do pão e nas orações. Faz bem para nós, comunidades do século XXI, refletir sobre cada um destes aspectos para avaliarmos nossa perseverança hoje.

    Gostaria, no entanto, de aprofundar melhor neste artigo, outras características das primeiras comunidades, segundo Lucas:

    a) Viviam unidos e colocavam tudo em comum: podemos dizer que este modo de vida das primeiras comunidades deve inspirar nosso jeito de ser Igreja hoje e, também, nosso compromisso com uma sociedade mais justa e fraterna, fundamentada no bem comum. Podemos afirmar, sem medo de errar, que é isto que falta na Igreja e na Sociedade no mundo e no Brasil: valorizar o que é de interesse comum. O Compêndio da Doutrina Social da Igreja nos lembra que o zelo pelo bem comum exige que se aproveitem as novas ocasiões de redistribuição de poder e riqueza entre as diversas áreas do planeta, em benefício das mais desfavorecidas e até agora excluídas ou à margem do progresso social e econômico (n.º 363) e que o assumir o bem comum se torna a finalidade e o critério regulador da vida pública (cf. n.º 407). O Texto Base da Campanha da Fraternidade do ano de 2020 diz que a caridade social nos leva a amar o bem comum e a buscar efetivamente o bem de todas as pessoas (n.º 117). Esta caridade social se expressa no empenho e na atuação política dos cristãos e das Comunidades Eclesiais Missionárias (Texto Base CF/2020, n.º 120). Esta atuação política é um ato de caridade indispensável, que tem por objetivo organizar e estruturar a sociedade de modo que o próximo não venha a se encontrar na miséria (Texto Base da CF/2020, n.º 124).

    b) Repartiam o dinheiro conforme a necessidade de cada um. Perguntemo-nos: na Igreja e na sociedade o dinheiro é repartido assim como nas primeiras comunidades, conforme a necessidade de cada um? Como andam a comunhão e a partilha entre as Comunidades de uma mesma paróquia, entre as paróquias de uma mesma diocese ou prelazia, entre as dioceses e prelazias de um mesmo regional, entre os diversos regionais de uma mesma conferência episcopal? E na organização da sociedade quem tem mais recursos paga mais impostos, para isentar quem tem menos recursos de pagar impostos? Ou os riquíssimos, os ricos, a classe média, os pobres e os empobrecidos pagam impostos todos do mesmo jeito? O dinheiro público, gerado pelos impostos, é distribuído conforme a necessidade de cada um, como nas primeiras comunidades? Quem recebe mais benefícios com o dinheiro público? Dar conforme a necessidade de cada um é o que se chama equidade, ou seja, deve receber mais quem precisa mais. Podemos aqui recordar o princípio da destinação universal dos bens, que comporta um esforço comum visando obter para toda pessoa e para todos os povos as condições necessárias ao desenvolvimento integral, de modo que todos possam contribuir para a promoção de um mundo mais humano, onde cada um possa dar e receber, e onde o progresso de uns não seja mais um obstáculo ao desenvolvimento de outros, nem um pretexto para a sua sujeição (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n.º 175).

    c) Partiam o pão pelas casas: tem um canto de nossa Igreja que nos ensina a partilha, quando em uma de suas estrofes faz-nos rezar: Dar um pouco do que tem a quem tem menos ainda enriquece o doador, faz a vida ainda mais linda. Esta experiência das primeiras comunidades faz-nos entrar em sintonia com a Campanha É tempo de cuidar da CNBB e da Cáritas Nacional, inspirada, por sua vez, no lema da Campanha da Fraternidade de 2020: Viu, sentiu compaixão e cuidou dele. Podemos confirmar o que dizem os Bispos da América Latina e do Caribe, reunidos em Aparecida (SP) no ano de 2007, em seu Documento Final: Alegra-nos o profundo sentimento de solidariedade que caracteriza nossos povos e a prática de compartilhar e de ajuda mútua (n.º 99g). Jesus nos ensina a partilhar o pão. Duas vezes ela sente compaixão das pessoas que lhe escutavam e determina aos apóstolos que providenciem o alimento para as pessoas (cf. Mc 6, 33-44; 8, 1-9). No primeiro relato, Marcos narra que os apóstolos queriam que Jesus mandasse embora o povo com fome (cf. Mc 6, 36). Jesus não aceita a proposta egoísta dos apóstolos e determina que eles dessem comida ao povo, partissem o pão, como de fato, aconteceu (cf. Mc 6, 41-43). No segundo relato, Marcos diz que Jesus toma a iniciativa, por compaixão, de querer alimentar o povo que lhe escutava (cf. Mc 8, 3). Os apóstolos colocam dificuldade, querendo fazer Jesus desistir de ser solidário, praticar a partilha e combater a fome (cf. Mc 8, 4). Mas Jesus não aceita a proposta deles e novamente sacia a fome das pessoas (cf. Mc 8, 8). As primeiras comunidades por certo partiam o pão nas casas, inspiradas nestas ações de Jesus. Nós hoje, século XXI, devemos fazer como Jesus e como as primeiras comunidades: saciar a fome dos famintos, através da partilha solidária. Somente quem age assim, a festa irá celebrar: Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que meu Pai vos preparou desde a criação do mundo! Pois eu estava com fome e me destes de comer (Mt 25, 34-35). Seguindo o jeito de ser e viver de Jesus, no que diz respeito à realidade das pessoas com fome, o Papa Francisco falando a juízes no Vaticano disse: Não existe democracia com fome, desenvolvimento com pobreza, nem justiça com iniquidade (citado pelo Texto Base da CF/2020, nº 131).

    d) Louvavam a Deus: observemos como o louvor vem após terem colocado tudo em comum e de terem repartido o pão. Louvor sem compromisso com os pobres vira exibicionismo, farisaísmo, hipocrisia. Jesus mesmo disse isto dos fariseus, anciãos e doutores da lei: O Profeta Isaías bem profetizou a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: ‘Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. É inútil o culto que me prestam, as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos (Mc 7, 6-7). Podemos, também, lembrar de outra passagem do Profeta Isaías, neste contexto de um louvor sem repercussão na vida: Parai de trazer oferendas sem sentido! Incenso é coisa aborrecida para mim! Lua nova, sábado, celebração solene… não suporto maldade com festa religiosa… Quando estendeis as mãos para mim, desvio o meu olhar. Ainda que multipliqueis as orações, de forma alguma atenderei, porque vossas mãos estão sujas de sangue (1, 13.15). Recordemos o que diz o Documento de Aparecida: Lamentamos algumas tentativas de voltar a um certo tipo de eclesiologia e espiritualidade contrárias à renovação do Concílio Vaticano II e nossas débeis vivências da opção preferencial pelos pobres e percebemos uma ênfase no ritualismo sem o conveniente caminho de formação… Preocupa-nos uma espiritualidade individualista. O Texto Base da CF/2020, n.º 176 nos traz uma afirmação do Papa Francisco em Bañado Norte, Paraguai, em julho de 2015: A fé nos faz próximos, aproxima-nos da vida dos outros. A fé desperta o nosso compromisso com os outros, desperta a nossa solidariedade… A fé que não se faz solidariedade é uma fé morta. É uma fé sem Cristo, uma fé sem Deus, uma fé sem irmãos. Neste sentido da fé que se faz solidariedade, podemos lembrar do que o Papa Francisco fala na Exortação Apostólica Querida Amazônia: O Evangelho propõe a caridade divina que brota do Coração de Cristo e gera uma busca da justiça que é inseparavelmente um canto de fraternidade e solidariedade, um estímulo à cultura do encontro.

    Uma Comunidade Cristã do século XXI, que se inspira e atualiza o jeito de viver das primeiras comunidades cristãs, que Lucas nos faz um retrato no livro dos Atos dos Apóstolos, poderá cantar como as CEBs cantam: Eu sou feliz é na comunidade; é na comunidade que eu sou feliz! e pão em todas as mesas, da páscoa a nova certeza, a festa haverá e o povo cantará, aleluia.

    Como seria ótimo se as primeiras comunidades cristãs persistissem até os dias de hoje. Lembraremos o significado de comunidade: é um grupo local, de tamanho variável, integrado por pessoas que ocupam um território geograficamente definido e estão irmanados por uma mesma herança cultural e histórica; que comungam os mesmos objetivos.

    Enjoying the preview?
    Page 1 of 1