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O documento descreve como a visão dos índios brasileiros oscilou entre duas perspectivas extremas na filosofia européia - o "bom selvagem" puro versus o selvagem "atrasado". A visão foi influenciada por obras como as de Montaigne e Rousseau, embora Hobbes tenha promovido a visão do homem selvagem como egoísta e mau. Atualmente busca-se uma visão mais respeitosa que reconheça a história e especificidades dos índios como parte da cultura brasileira.
Descriere originală:
Titlu original
Bom selvagem, mau selvagem - Revista de História.pdf
O documento descreve como a visão dos índios brasileiros oscilou entre duas perspectivas extremas na filosofia européia - o "bom selvagem" puro versus o selvagem "atrasado". A visão foi influenciada por obras como as de Montaigne e Rousseau, embora Hobbes tenha promovido a visão do homem selvagem como egoísta e mau. Atualmente busca-se uma visão mais respeitosa que reconheça a história e especificidades dos índios como parte da cultura brasileira.
O documento descreve como a visão dos índios brasileiros oscilou entre duas perspectivas extremas na filosofia européia - o "bom selvagem" puro versus o selvagem "atrasado". A visão foi influenciada por obras como as de Montaigne e Rousseau, embora Hobbes tenha promovido a visão do homem selvagem como egoísta e mau. Atualmente busca-se uma visão mais respeitosa que reconheça a história e especificidades dos índios como parte da cultura brasileira.
O imaginrio brasileiro sobre o ndio oscila entre os extremos de duas vises
herdadas da filosofia europeia. Ele puro ou atrasado? Mrcio Pereira Gomes 1/4/2013 Leia tambm Dossi - Somos ndios Admirvel ndio novo Tutela nunca mais
Admirao e desprezo, encantamento e repulsa. Os mesmos sentimentos dos portugueses que primeiro se depararam com um grupo tupinamb na costa de Porto Seguro, h mais de 500 anos, perduram ainda hoje. Do mais odiento dos fazendeiros ao mais diligente dos antroplogos, compartilhamos doses variadas dessa ambgua impresso sobre os ndios brasileiros. Pode-se argumentar que o encantamento e o respeito vm se impondo nas ltimas dcadas. Provas disso seriam a Constituio de 1988, a extenso de terras demarcadas, o crescimento demogrfico indgena, a participao do ndio no panorama poltico-cultural brasileiro. Finalmente aprendemos a respeitar o ndio? Tal certeza se esvai quando, na menor confuso que surge na mdia disputa de terras, atitudes beligerantes contra invasores, assassinatos de ndios e por ndios levantam-se as suspeitas antigas: os ndios, afinal, so gente inconfivel, incontrolvel... incivilizvel! Foi pelo espanto que comeou a ser elaborada a viso sobre os ndios. Cartas de Amrico Vespcio se difundiram pela Europa desde sua publicao, em 1512. L estava o encantamento e a repulsa pelo ndio, sua nudez confiante, seu destemor, seu comunismo primitivo, mas tambm sua crueldade, sua inconfiabilidade e o mais abominvel de todos os seus costumes: o canibalismo. A partir de ento, muitos visitantes se arriscaram a escrever sobre os ndios que viviam no Brasil. No entanto, foram dois pensadores que nunca conviveram com os ndios que escreveram as obras mais influentes do sculo XVI. O telogo e humanista ingls Thomas Morus publicou em 1516 aquele que seria um dos mais importantes livros de todos os tempos: Utopia. Trata-se de uma descrio conjectural de um no lugar, numa ilha do Atlntico Sul, com uma baa esplendorosa e ao fundo uma cadeia de montanhas. Ali viveria um povo diferente: homens e mulheres solidrios uns aos outros, sem diferenas sociais ou econmicas, decidindo os assuntos polticos em coletivo. De onde Morus havia tirado as informaes? No prlogo, ele relata que conversara com marinheiros irlandeses que haviam estado no Brasil e lhe contado detalhes sobre o povo que l vivia: eram os tupinambs. Foi esse povo o modelo para a obra que iria influenciar todo um sonho utpico do Ocidente. Em Paris, na dcada de 1560, alguns tupinambs foram trazidos da Baa da Guanabara para conhecer os franceses. Na ocasio, atravs de um intrprete, Michel de Montaigne indagou sobre seus costumes, sua viso de mundo e at suas opinies sobre a Frana. No brilhante artigo Dos canibais, ele demonstra ter compreendido bem o significado do canibalismo tupinamb, que horrorizava os europeus: os inimigos aprisionados so honrados como grandes guerreiros ao serem mortos e devorados, transmitindo sua coragem aos vencedores. Sorrateiramente, Montaigne compara a prtica com as guerras civis que estavam ocorrendo entre huguenotes e catlicos franceses, e seus horrendos mtodos para obter informaes, castigar ou simplesmente torturar os inimigos mtuos todos franceses. Corpos despedaados, chumbo derretido derramado nos ouvidos, queima nas fogueiras. Quem o selvagem nessa comparao? Montaigne sugere que a repulsa e as crticas a costumes diferentes brotam da viso interna de cada cultura, que pensa que os seus so os hbitos mais naturais e corretos o que mais tarde a antropologia iria nomear de etnocentrismo. E foi assim que Montaigne semeou no pensamento ocidental a noo de relativismo cultural. Mais uma vez, a partir dos tupinambs. Na Inglaterra, um sculo depois, Thomas Hobbes escreveria o Leviat (1651) o grande tratado que inaugura no pensamento poltico ocidental a viso de que o Homem um ser intrinsecamente egosta e mau, ainda mais na condio de selvagem, de ser da Natureza. Ilustrssimo conselheiro do rei Carlos II, Hobbes argumenta que s a dureza do poder soberano e a submisso dos homens a esse poder que poderiam controlar os maus instintos. A viso hobbesiana sobre o Homem teve influncia bem mais profunda e abrangente do que as obras de Morus e Montaigne. Estas, porm, iriam inspirar a filosofia do genebrino Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e a teoria do bom selvagem. Em Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, ele afirma que a utopia teria existido, sim, como um estado da humanidade: uma sociedade igualitria, na qual o bem comum prevalece sobre o individualismo. Mas esse estado teria sido suplantado desde o surgimento do egosmo e da propriedade privada. quela altura, s com leis e um contrato social que os homens teriam jeito. Restavam no mundo apenas ilhas de igualitarismo social, ainda no passado do bom selvagem. Como os tupinambs. No Brasil do sculo XIX, o ndio emerge como heri trgico no romance O Guarani, de Jos de Alencar, e como heri das razes nacionais no poema pico Os timbiras, de Gonalves Dias, ambos publicados em 1857. Dom Pedro II usava sua estola real feita com penas de papo de tucano, moda indgena, mesmo quando seu principal historiador, Francisco Adolpho de Varnhagen (1816-1878), apregoava que a civilizao s poderia chegar aos rinces do pas pela destruio do ndio incivilizvel. Veio a Repblica e, em 1891, a Igreja do Apostolado Positivista props Assembleia Constituinte o reconhecimento do ndio como parte da nao, porm com direitos especficos: que suas terras fossem consideradas estados autctones americanos. Anos depois, em 1910, um membro dessa igreja no crist e que era oficial do Exrcito, o ento coronel Cndido Rondon, inauguraria o Servio de Proteo ao ndio, a agncia mais francamente favorvel assistncia e ao respeito aos indgenas, com a atitude filosfica mais humanista jamais estabelecida por um Estado. Rondon e seus seguidores consideravam os ndios como "naes autnomas com as quais o Brasil deveria procurar estabelecer laos de amizade". Ao entrar em um territrio presumivelmente indgena, era preciso pedir licena a eles; se a resposta fosse um ataque, no se devia revidar, prevalecendo a atitude de "Morrer se preciso for, matar nunca!". Ao contrrio de tantos slogans inteis, este teve consequncias reais. Em mais de cem anos de poltica indigenista rondoniana, foram muitos os que morreram cumprindo o solene dever de jamais atacar ou revidar o ataque de algum grupo indgena belicoso. Esse esprito influencia em muito a crescente tolerncia do brasileiro com o ndio. A teoria do bom selvagem prevalece no esprito nacional. O ndio inocente, puro, vive em harmonia com a natureza, contra estradas que rasgam a Amaznia, contra desmatamentos criminosos e hidreltricas que destroem rios e espcies animais e vegetais. Certo? Nem tanto. Os ndios so seres histricos. Vivem na natureza, mas a modificam, criando novos meios ambientes. Agregam excedentes econmicos, criam sociedades complexas. Antes da chegada de Cabral, o Brasil abrigou, em bacias amaznicas, sociedades indgenas estratificadas, com sistemas religiosos complexos e cermica artisticamente elaborada. Seres histricos fazem coisas histricas. Da o espanto veemente sobre aspectos considerados negativos na atualidade indgena. Por que o ndio vende madeira escondido das autoridades? Por Publicar no Facebook 82 82 82 82 82 82 82 82 82 Publicar no Twitter Compartilhar no Orkut Publicar no Google+
que aqueles que tm to poucas terras, sobretudo nos estados do Sul e no Mato Grosso do Sul, as arrendam para os brancos? Por que se tornam dependentes de programas de alimentao, quando tm tantas terras para plantar? Por que no se integram logo ao pas e se sujeitam aos mesmos direitos dos demais brasileiros e sem mais privilgios? O mau selvagem preguioso e incapaz, e sua cultura tem pouco a oferecer humanidade. Melhor conhecimento da nossa histria: eis o que precisamos para incorporar o ndio como parte da cultura brasileira, aceitando suas especificidades. Lutar por uma viso respeitosa, amorosa e solidria para com os ndios essencial para a sua pertinncia no mundo contemporneo, mas tambm para a transformao do Brasil numa nao digna e aberta aos seus primeiros filhos. Mrcio Pereira Gomes antroplogo, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro e ex- presidente da Funai.
Saiba mais - Bibliografia CUNHA, Manuela Carneiro da(Org.) Histria dos ndios no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1992. GOMES, Mrcio Pereira. Os ndios e o Brasil. So Paulo: Ed. Contexto, 2012. MELATTI, Jlio Cesar. ndios do Brasil. Rio de Janeiro: EdUSP, 2007. RIBEIRO, Darcy. Dirios ndios. So Paulo: Companhia das Letras, 1995.