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Iva n iL Lich

O DIR EIT O AO
DES EMP REG O
CRI ADO R
A DECADENCIA DA IDADE PROFISSIONAL

Editorial Alhambra
Título do o ri ginal inglês:
The Right To Useful Unemployment
and its professional enemies

Título do ori ginal espanhol:


La decadencia de la edad profesional

Tradução de
Joaquim Campelo Marques

© Ivan Illich, 1978


Ficam reservados todos os direitos.

É vedada a publicação deste texto, integral ou parcial,


por quaisquer meios de comunicação eletrônicos, mecânicos,
reprodução xerográfica, gravação, ou similares, exceto para
fim de citação critica, sem o consentimento prévio e por
escrito do editor e do Autor (detentor do copirraite).
ÍNDICE
INTRODUÇÃO ..............................................................................................3

1 A INTENSIDADE INABILITANTE DO MERCADO............................................4


a) Uma opção mundial ..............................................................................5
b) Para uma cultura de produtos estandardizados .......................................6
c) A pobreza modernizada ....................................................................... 11
d) A metamorfose das necessidades......................................................... 15

2 OS SERVICOS PROFISSIONAIS INABILITANTES ........................................ 19


a) Rumo ao fim de uma época ................................................................. 24
b) As profissões dominantes .................................................................... 26
c) As profissões tirânicas ......................................................................... 29
d) As profissões estabelecidas.................................................................. 32
e) A hegemonia das necessidades imputadas............................................ 34

3 COMO PASSAR UMA RASTEIRA NAS NECESSIDADES ................................. 41


a) Confusão entre congestão e paralisia ................................................... 43
b) Cegueira ante as ferramentas convivenciais .......................................... 47
c) A confusão entre liberdades e direitos .................................................. 50
d) A eqüidade no desemprego criador ...................................................... 53

4 FLANQUEANDO O NOVO PROFISSIONAL .................................................. 57


a) O traficante ........................................................................................ 57
b) A aliança dos benfeitores públicos........................................................ 59
c) A profissionalização do cliente .............................................................. 61

5 O ETHOS POS-PROFISSIONAL.................................................................. 63

APÊNDICE.................................................................................................. 65
INTRODUÇÃO

Há cinqüenta anos, nove de cada dez palavras que um homem


civilizado ouvia eram-lhe transmitidas como a um indiv íduo. Somente uma
em dez lh e chegava como elemento indiferenciado de uma multidão — na
sala de aula, na igreja, em reuniões ou esp et áculo s. As pala vras er am
en tão como cartas seladas, escritas a mão, bem diferentes da escória
que hoje contamina nosso correio. Atualmente são poucas as palavras
que tentam chamar a atenção de uma pessoa. Com regularidade de
relógio, assaltam nossa sensibilidade as imagens, idéias, sentimentos e
opiniões empacotadas e entregues através dos meios de comunicação,
como artigos padronizados. Duas coisas se tornaram evidentes: 1) O que
acontece com o idioma se tornou paradigmático para uma ampla gama
de relações entre necessidade e satisfação; 2) Est es sã o, já, fen ômen os
univ er sa is, e niv elam o profess or de No va Iorque, o membro da
comuna chinesa, o estudante de banto e o sargento brasileiro. Neste apêndice
a meu ensaio sobre a convivencialidade, pretendo fazer três coisas: a)
Descrever o caráter de uma sociedade de mercado-de-bens intensivo, na
qual a multiplicidade, especialização e volume das mercadorias destróem o
ambiente propício à criação de valores de uso; b) Insistir no papel oculto que
as profissões numa sociedade desse tipo desempenham ao modelar suas
necessidades; c) Propor algumas es tratég ia s para romper o poder
profissional que perpetua esta dependência do mercado.
1
A INTENSIDADE INABILITANTE DO MERCADO

Atualmente, chama-se crise àquele instante em que médicos,


diplomatas, banqueiros e todo tipo de engen heiros so ciais ass ume os
controles e se su s pen dem as liber dades . Tal como os pacientes , as
nações se catalogam conforme o estado crítico. E isto porque a crise, depois
de ter sido uma possibilidade de ligar rumos, hoje somente significa o ir -e-
vir de um para outr o lado. Remete, na atualidade, a uma ameaça
ominosa, mas controlável, contra a qual podem unir -se o dinheiro, a
força de trabalho e a administração. Um exemplo típico deste tipo de
resposta poderia ser o de uma cidade de 13 milhões de habitantes, a 2.500
metros acima do nível do mar, na qual, diante das cifras alarmantes de
escassez e das dificuldades no abastecimento de água para a maioria de seus
habitantes, que somente têm acesso a menos de cinco litros, declara-se uma
crise que dará mais trabalh o aos engen heiros, em vez de racio nar o
consumo de 5% das pessoas que utilizam a metade da água em suas tinas e
tanques. Entendida desta maneira, a crise acaba sendo sempre conveniente
para os executivos e comissionados, especialmente para os urubus que vivem
dos efeitos secundários, não desejados, do crescimento anterior: os
educadores qu e vivem da alienação da sociedade, os médicos que prosperam
à base do trabalho e do ócio que destruíram a saúde, os políticos que
triunfam graças à distribuição de um bem-estar que, em primeira instância,
foi tirado aos mesmos que recebem a assistência.

O termo crise, entretanto, não deve significar necessariamente isto. Nem


deveria implicar uma cor rida desatinada numa escalada pela
administração. Pode significar o instante de escolha, esse momento
maravilhoso em que a gente se torna consciente da própria prisão auto-imposta
e da possibilidade de uma vida diferente. Esta é a crise que hoje,
simultaneamente, os Estados Unidos e o mundo enfrentam.
a) Uma opção mundial
O mundo se uniformizou numas quantas décadas. As respostas humanas
aos acontecimentos de todos os dias se tornaram standard. Embora os idiomas
e os deuses ainda pareçam diferentes, a gente se une todos os dias à
admir ável maioria que marcha ao compasso do mesmo tambor. O
interruptor de luz, junto à porta, substituiu as múltiplas formas como
antigamente se acendiam os fogos, as velas, os candeeiros. O número de
pessoas que ligam interruptores de luz triplicou no mundo em dez anos; o
fluxo de água e o papel se converteram em condições essen ciais para
aliviar os intestinos. A luz que não provém das redes de alta voltagem e a
higiene que exclui o papel higiênico vêm funcionando como medidores da
pobreza de milhões de pessoas. A intromissão, sopotorífera às vezes, opaca
outras, dos meios massivos de comunicação, penetra muito prof undamente
no bair ro, no povoado, na sociedade, na escola. Os ruídos emitidos pelo locutor
e os anunciadores de textos programados pervertem diariamente as
palavras de uma linguagem falada, transformando-as em tijolos de
mensagens em pacotes. Para que os no ssos filhos hoje tenham a
possibilidade de brincar num ambiente em que uma de cada dez palavras
que ouvem lhes seja dirigida pessoalmente, eles devem estar isolados ou
afastados no tempo, ou melhor, devem converter -se em marginais opulentos
aos quais se proporciona cuidadosa pr oteção. Em qualquer parte do
mundo pode-se notar um rápido enquistamento da aceitação disciplinada que
caracteriza o auditório, o cliente, o comprador. A padronização da ação humana
vai-se estendendo.

Torna -se evidente agora que o problema crítico que a maior parte das
nações enfrenta é exatamente o mesmo: ou bem as pessoas se converterão
em cifras de uma multidão condicionada que avança para uma dependência
cada vez maior — e enfrentarão, portanto, batalhas selv agen s para obter
um mín im o das drogas que alimentam os seus hábitos — ou bem
en contrar ão o valor que é a única coisa que pode salvar no pânico; ou
seja, manter -se sereno e buscar em torno outra saída que não seja o óbvio já
marcado como saída. Entretanto, muitas pessoas às quais se diz que os
bolivianos, os canadenses, os húngaros enfrentam todos a mesma opção
fundamental, não só se sentem atingidas como também se ofendem
profundamente. A idéia lhes parece não apenas louca, mas chocante. Não
alcançam detectar a analogia nesta nova degradação amarga que vai
permeando a fome do índio do Altiplano, a neurose do trabalhador de
Amsterdã e a cínica corrupção do burocrata de Var sóvia.

b) Para uma cultura de produtos estandardizados


O desenvolvimento teve os mesmos efeitos em todas as sociedades:
viram-se apanhadas numa nova trama de dependência de mercadorias que
fluem do mesmo tipo de máquinas, fábricas, clínicas, estúdios de TV, «Think
tanks». Para satisfazer esta dependência, tem-se de continuar produzindo,
sempre mais, a mesma coisa: bens e serviços padronizados por engenheiros e
destinados aos consumidores que, por sua vez, são padronizados pelos
educadores e promotores comerciais para que acreditem necessitar do que
se lhes oferece.

Sejam eles tangíveis ou intangíveis, são estes os produtos estandardizados


do mundo industrial; assumem valor monetário como mercadores e se
estabelecem tanto pela ação do Estado como pelo mercado, embora o nível de
participação de um e outros varie nos diferentes regimes. As distintas
culturas chegam a ser assim resíduos insípidos de um estilo de ação
tradicional, perdidas numa paragem mundial; um terreno árido, desbastado
pela maquinaria necessária para pr oduzir e consumir. Nas margens do
Sena e nas do Niger , as pes so as se esq uec er am de como ordenhar,
porque o líquido branco lhes chega engarrafado. Graças à maior proteção do
consumidor, na França o leit e é men os tóxic o do qu e em Máli. É verdade
que agora existe um número maior de criaturas que beb em leit e d e
vaca, mas os seios d as mulheres, ricas e pobres, secam igualmente. A
dependência nasce com o primeiro vagido do bebê que tem fome, quando seu
organismo apreende o leite artificial, abandonando o seio materno que, desse
modo, se atrofia. Todas aquelas ações humanas, autônomas e criativas,
necessárias par a o florescimento do universo do homem, acabam por se
atrofiarem. Os tetos de barro ou de palha, de junco ou de telha, foram sendo
substituídos por tetos de concreto para uns poucos e de plástico para a
maior parte. Nem os obstáculos da selva, nem os matizes ideológicos
libertaram os po bres e os socialistas de se apressarem a construir auto-
estradas para os ricos, essas vias que os condu zem ao mundo onde os
economistas tomaram o lugar dos sacerdotes. A cunhagem das moedas
traga todos os tesouros locais e os ídolos. O dinheiro desvaloriza o que não
pode medir. A crise, pois, é a mesma para todos: a opção entre uma
maior ou uma menor dependência de bens de consumo industriais. Uma
dependência maior significaria a destruição rápida e total das culturas como
programas de atividades de subsistência que produzam satisfação; uma
dependência menor significa o florescimento variado de valores de uso em
culturas de intensa atividade. A opção é essencialmente a mesma para ricos
e pobres, ainda que, mesmo imaginá -lo, fosse extremamente difícil para
quantos já estão acostumados a viver em um supermercado, diferente, mas
somente no nome, das instituições para idiotas.

Nas sociedades de industrialismo tardio, toda a vida se organiza em


função das mercadorias. Nossas sociedades de mercado intensivo medem seu
progresso material de acordo com o aumento no volume e na variedade das
mercadorias produzidas; e, segundo es ta mesma linha, medimos o
progresso social de acordo com a distribuição do acesso a esses bens e
serviços. A economia política converteu-se na grande propagandista a serviço
da dominação dos que produzem em grande escala. O socialismo se degradou
ao transformar-se numa luta contra a distribuição não igualitária e a
economia de bem -estar identificou o bem público com a distribuição da
opulência e, num sentido mais estrito, com a humilhante opulência do pobre:
um dia de degradação organizada num hospital público, cárcere ou laboratório
educacional, nos Estados Unidos, alimentaria durante um mês uma família da
Índia.

Ao depreciar todos aqueles custos aos quais a Economia clássica não


fix ou preç os, a so cie dade indu stria l crio u um ambie nt e no qu al a gen te
não pode viver sem devorar cada dia o equivale nt e ao próprio peso em
metais, combustíveis e materiais de construção. Criou um mundo no qual a
constante necessidade de proteger-se contra os resultados negativos do
crescimento cavou novos abismos de discriminação, de impotência e de
frustração. Nunca esquecerei a afirmação do ianque diante de um chileno:
Seremos sempre nós os que, num mundo envenenado, vamos ter os filtros
de ar de maior potência. Até agora os movimentos ecológicos a serviço do
poder só têm servido para dar maior consistência a esta orientação, ao
concentrar a atenção pública na irresponsabilidade técnica de quantos irrigam
zonas habicionais com subprodutos venenosos e mutágenos e, no melhor
dos casos, têm desmascarado os interesses privados que aumentam, para o
indivíduo, a dependência de necessidades criada s. Ma s, ainda agora,
depois que se fixaram preços e custos para refletir o im pacto sobr e o meio
amb iente (a desvaloriz ação devida aos prejuízos ou o custo da polarização),
não temos sido capazes de perceber com clareza que este processo substituiu,
por artigos embalados e produzidos em série, tudo aquilo que as pessoas
faziam ou criavam por si mesmas.

Faz alg uns anos, cada se mana morre uma ou outra forma de
expressão. As que permanecem se uniformizam cada vez mais. Entretanto,
mesmo aquele s que se preo cupam com a perda de variedades genéticas
ou com a multiplicação de isótopos radiativos, não se advertem do
esgotamento irreversível das habilidades artesanais, das histórias e dos
sentidos da forma. Esta substituição gradual de valores úteis, mas não
mercantilizáveis, por bens industriais e por serviços tem sido a meta
compartida por facções políticas e regimes que, de outro modo, se
oporiam uns aos outros violentamente.

Por, este caminho, pedaços cada vez mais longos de nossas vidas se
transformam de tal maneira que a vida passa a depender quase exclusivamente
do consumo de mercadorias. Isto é o que deveríamos chamar crescimento
da intensidade de mercado nas culturas modernas. Naturalmente, os
diferentes regimes aplicam recursos de maneira distinta: aqui decide a
«sa bed oria da mão ocult a» do mer cado, ali a do ideólogo e o
planificador. Mas a oposição política entre estes proponentes de métodos
alternativos para a aplicação dos recursos, disfarça somente o próprio
desprezo grosseiro que todas as facções e partidos nutrem pela liberdade
e a dignidade pessoal. A política sobre energia em diferentes países nos dá um
bom exemplo para estudarmos a profunda identidade que ex iste en tre os
dif er en tes promotores do sist em a industrial, chamem-se eles socialistas ou
liberais. Se excluímos lugares como a Nova Camb oja, sobre a qual me falta
informação, não existe elite no governo nem oposição organizada que
conceba um futuro desejável fundado em um instrumental social cujo
consu mo de en er gia per cápit a fosse in ferior em várias ordens de
magnitude aos níveis que prevale cem hoje na Europa. Todas, as
correntes políticas insistem num pretenso imperativa técnico que torna
in ev it ável que o modo de produção moder no seja intensivo também no
uso de energia. Até agora não existe nenhum partido que reconheça que
um modo de produção desta espécie castra inevitavelmente a capacidade
criadora dos indivíduos e grupos primá rios. Todos os partidos insistem na
manutenção de níveis de emprego elevados na força de produção e parecem
ser incapazes de reconhecer que os empre gos tendem a destruir o valor de
uso do tempo livre. Insistem em que as necessidades dos indivíduos se
definam, na forma mais objetiva e total, por especialistas diplomados
publicamente para tal competição, e parecem insensíveis à conseqüente
expropriação da própria vida.

Nos fins da Idade Média, usou-se a assombrosa simplicidade do modelo


heliocêntrico como argumen to para desacreditar a nova Astronomia. Sua
elegância foi interpretada como ingenuidade. Em nossos dias, não são
poucas as teorias centradas no valor de uso, capazes de analisar o custo
social gerado pela economia estabelecida. Estas teorias foram propostas por
muitos outsiders da economia que situam suas perspectivas numa nova escala
de valores: a beleza, a simplicid ade, a ecologia, a vida em comunidade .
Como uma forma recorrente de solapar estas teorias, a economia moderna
e seus praticantes têm-se dedicad o a fals ear e ressa ltar os frac assos
que, com freqüência, estes outsiders sofreram ao experimentá-las em
novos estilos de vida pessoal e se recusam a olhá-las sequer — do mesmo
modo que o inquisidor legendário se recusou a olhar através do telescópio de
Galileu — sendo que sua análise poderia conduzir ao deslocamento do centro
convencional do sistema econômico vigente. Estes instrumentos analíticos
distintos poderiam levá-los a pôr os valores de uso não mercantilizáveis no
centro de uma cultura desejável na qual so mente se atribui um valor
àqu eles bens mercantis que fomentem uma extensão mais ampla desses
mesmos valores de uso. Porém o que continua valendo não é o que a gent e
faz ou cria, mas sim o produto das corporações públicas ou privadas. Todos
colaboram por igual no esforço de transformar nossas futuras sociedades numa
grande brincadeira inconseqüente, na qual cada lucro e cada satisfação de uma
pessoa se transforma inevitavelmente em perda para as outras.

Nesta estrada, ficaram destroçados inumeráveis conjuntos de infra-


estruturas nas quais a pessoa enfrentava a vida, nas quais brincava, comia,
estreitava laços de amizade e até de amor. Umas quantas das chamadas
«décadas de desenvolvimento» foram suficie ntes para des mantelar mais de
dois ter ços dos moldes culturais do mundo. Antes dessas décadas,
aqueles moldes permitiam às pessoas satisfazerem a maior parte de suas
necessidades segundo um modelo de subsistência. Depois delas, o plástico
substituiu a cerâmica, as bebidas gasosas substituíram a limonada, o Valium
tomou o lugar do chá de camomila, e os discos o do violão. Ao long o de
toda a História, a melhor medida dos tempos maus foi o percentual de
alimentos que se devia comprar. Nos bons tempos, a maior parte das famílias
conseguiam quase todos os seus alimentos através do que cultivavam ou
adqui riam num quadro de relações gratuitas.

Até fin s do século XVIII, o alimen to que se produzia além do


horizonte abarcável pela vista do consumidor que olhasse de um campanário
ou minarete era menos de 1% em todo o mundo. As leis encaminhadas para
controlar o número de galináceos e de porcos no âmbito dos muros da
cidade sugerem que, exceção de umas quantas zonas urbanas mais extensas, '
quase a metade dos alimentos também se cultivava igualmente dentro da vila.
Antes da segunda guerra mundial, os alimentos trazidos de fora para uma
região determinada constituíam menos de 4% do total que se consumia; além
disso, estas importações estav am destinadas, em grande parte, às 11
cidades que tinham mais de dois milhões de. habitantes. Atualmente, 40% das
pessoas sobrevivem graças ao acesso que têm aos mercados interregionais.
Conceber hoje em dia um mundo em que se reduzisse radicalmente o
merc ado mundial de capitais e bens representa um tabu pelo men os tão
abso lu to como conceb er um mundo no qual pessoas autônomas utilizassem
ferramentas convivenciais para libertarem -se da necessidad e de consu mir
e par a cria r valores de uso em abundância. Neste tabu se reflete a crença
de que as ativ idades úteis por meio das quais as pesso as se expressam e
satisfazem as suas necessidades podem ser substituídas indefinidamente
por bens e por ser viços.

c) A pobreza modernizada
Passado certo umbral, a multiplicação de mercadorias induz à impotência, à
incapacidade de cultivar alimentos, de cantar ou de construir. O afã e o
prazer, condições humanas, chegam a converter -se em privilégio de
alguns ricos caprichosos. Em Acat zingo, como na maioria dos povoadozinhos
mexicanos de seu tamanho, existiam, quando Kennedy lan çou a Aliança
para o Progresso , quatro bandas de música que tocavam em troca de um
trago e serviam a uma população de 800 pesso as. Atualm ente, os discos
e as rádios ligadas a alto -falantes afogam todo o talento local. Só
ocasionalmente, num ato de nos talgia, se faz uma coleta para trazer um
conjunto formado com rapazes que abandonaram a Universidade, para
cantar velhas can ções em alg uma fes ta especial. No dia em que a
legislação venezuelana determinou para cad a cidadão um direito
«habitacio nal» concebido como mercadoria, três quartas partes das famílias
acharam que as casinhas levantadas com suas próprias mãos ficavam
rebaixadas ao nível de telheiros. Além disso, e isto era o mais importante,
existia já um prec onceito contra a autoconstrução. Não se podia iniciar
legalmente a construção de uma casa sem antes apresentar o plano desenhado
por um arquiteto diplomado. Os dejectos e sobras da cidade de Caracas,
úteis até então como excelentes materiais de construção, criavam agora o
problema qu e er a livrar-se de refugos sólidos. O homem que tentava levantar
a própria «morada» era olhado como um transviado que recusava cooperar
com os grupos de pressão local para a entrega de unidades habitacionais
fabricadas em série. Além do mais, promulgaram-se inumeráveis regulamentos
que acoimaram sua ingenuidade de ilegal e até de delituosa. Este exemplo
ilust ra o fato de que sã o os pobres os prim eiros a sofrer quando uma
nova mercadoria castra um dos tradicionais ofícios de subsistência. O
desemprego útil dos inativos se sacrifica à expansão do mercado de
trabalho. A construção da casa, como atividade escolhida por alguém,
converte -se no privilégio de alguns ricos, ociosos e extravagantes.

Uma vez se tenha incrustado numa cultura, a dependência à opulência


paralisante gera «pobreza modernizada» . Esta é uma forma de desvalor que se
associa necessariamente à multiplicação de produtos industrais; escapou à
atenção dos economistas porque não se pode apreender com suas medições, e
à dos serviços sociais porque seus métodos não são operativos para estes
casos. Os economistas não dispõem de meios efetivos para incluir em seus
cálculos o que a sociedade perde quanto a uma certa satisfação que não tem
seu equivalente no mercado. Assim, podía mos atualmente definir os
economistas como mem bros de uma confraria que somente aceita aquelas
pessoas que, no exercício de seu labor profissional, sabem praticar uma
cegueira adestrada até a conseqüência social mais fundamental do crescimento
econômico: além de certo umbral, cada grau que se acrescenta quanto à
opulência em mercadorias traz como conseqüência uma queda na habilidade
pessoal para fazer e criar.

Enquanto a pobreza modernizada afetou somente aos pobres, sua


existência e sua natureza permaneceram ocultas mesmo nas conversações mais
correntes. Na medida que o desenvolvimento, ou a moderniza ção, chegou
aos pobres que até então tinham conseguido sobreviver, apesar de sua
exclusão de muitos setores da economia de mercado, estes foram vendo -se
implacavelmente constrangidos a sobreviver adquirindo mercadorias num
sistema de compras, o que para eles significa sempre e necessariamente
obter as escórias do mercado. Os índios de Oaxaca, que anteriormente não
tinham acesso às escolas, são agora recrutados pelo sistema educacional
para que «ganhem» uns certificados que medem precisamente sua
inferioridade em relação à população urbana.

Além disso, e eis aqui a ironia, sem esse pedaço de papel, não podem
sequer trabalhar numa construção.

Esse processo — a modernização de renovados as pectos da pobreza


dos pobres — continua ocultando-se, culpando as vítimas por sua apreciação
indiferente diante do acesso aos privilégios do progresso. En quanto isso, a
aliança non-sancta entre os produtores de mercadorias e seus assistentes
profissionais continua unindo-se coesamente sem questionamento.

Um resultado de forte significação social do que dizemos é que agora a


pobreza modernizada se transforma na exper iência comum de todos, à
ex ceç ão daqueles que não são tão ricos que p odem retirar-se para sua
Arcádia. A medida que as facetas da vida, umas depois das outras, se fazem
dependentes das mercadorias padronizadas, muitos poucos nos livra mos
dessa experiência recorrente da pobreza modernizada. Nos Estados Unidos, o
consumidor médio ou ve por dia quase cem anúncios publicitários, mas só
uma dúzia deles o fazem reagir e, na maioria dos ca sos, de forma negativa.
Até os compradores bem providos de dinheiro adquirem, junto com a
mercadoria novidadeira, uma nova experiência de desutilidade. Sentem que
adquiriram algo de valor duvidoso, talvez inútil a curto prazo, ou mesmo
daninho, algo que exige também complementos ainda mais custosos. As
vezes, as atividades dos organismos de proteção ao consumidor tornam
consciente este processo porque, se bem começam por exigir controles de
qualidade, podem levar a uma resistência radical por parte do consumidor. Há
muitos que se acham quase dispostos a reconhecer abertamente a
existência de uma nova forma de riqueza: a riqueza frustradora,
produzida pel a ex pan são cad a vez maior de uma cult ura de mercado
intensivo. Além disso, os opulentos chegam a pressentir o reflexo de su a
própria condiç ão no espelho dos pobres. Entretanto, esta intuição
geralmente não se desenvolve além de uma espécie de romanticismo.

A ideologia que identifica o progresso com a opulência não se restringe,


naturalmente, aos países ri cos. Essa mesma ideologia degrada as atividades
não mercantilizáveis aind a em zonas onde, até pouco, quase todas as
necessidades se satisfaziam através de um modo de vida de subsistência. Os
chineses, por exemplo, inspirando-se em sua própria tradição, pareciam estar
dispostos a ser capazes de redefinir o progresso técnico. Viam-se prontos a
optar por uma bicicleta em lugar do jato. Parecia que davam importância a
seu próprio poder de decisão local como uma meta de um povo inventivo
mais do que como um meio para a defesa nacional. Mas, em 1977, sua
propaganda glorifica a capacidade industrial chinesa de dar, a baixo custo,
maior assistência técnica, educa ção, habitação e bem-estar geral. Atribuem-
se provisoriamente funções meramente táticas às ervas que se encontram nas
bolsas dos médicos descalços ou aos métodos de trabalho intensivo na
produção. Neste caso , como em outros, a produção heterônoma de bens
— quer dizer, dirigida por outros — padronizada para distintas categorias de
consumidores anônimos, fomenta as expectativas irreais e, em último termo,
frustradoras. E além disso este processo corrompe inevitavelmente a confiança
da gente nessa sempre surpreendente competição autônoma que existe
den tro de si mesmo e em seu vizinho. A China representa simplesmente o
último exemplo da particular versão ocidental da modernização por meio
da depen dência de um mercado intensivo, que se apodera de uma
sociedade tradicional, da mesma forma como alguns cultos irracionais surgiram
em comunidades isoladas como resultado da invasão desses estranhos seres
que se matavam na segunda guerra mundial.
d) A metamorfose das necessidades
Entretanto, tanto nas sociedades tradicio nais como nas modernas
ocorreu uma alteração importante em um período muito curto: modificaram-se
radicalmente os meios socialmente desejáveis para satisfazer as necessidades.
O motor atrofiou o músculo, a instrumentação escolar tolheu a curiosidade,
o méd ico se fez necessário para todo homem em pleno vigor. Como
conseqüência disso, as necessidades e os desejos adquiriram um caráter que
não tem precedentes históric os. Pel a primeira vez , as nec es sidades se
tornaram quase exclusivamente co-limitantes como as mercadorias. A liberdade
de mover-se se degradou no esforço feito para produzir, distribuir e
consumir o direito a transporte. A busca insistente de criar um âm bit o de
liber dade se ec lipso u ante o dir eito de consumir. Enquanto as pessoas
chegavam onde podiam chegar por meio dos próprios pés, não precisavam
para sua mobilidade senão da liberdade de movimento. Porém agora qu e
os homens compreendem que são entes que devem transportar -se,
distinguem -se uns dos outros pela amplidão e qu alidade de se us direitos
ao uso de quilômetro-passageiro. O mundo já não é tão grande e distante, mas
sim uma sucessão de lugares de estacionamentos. Para a maioria das
pessoas, os desejos de adquirir acompanham as novas necessidades, e elas
não podem imaginar sequer que um homem moderno possa aspirar a
libertar -se de viver nesta dependência de ser transportado. Esta situação,
que se ap resen ta hoje como uma inter dependência rígida entre
necessidades e mercado, legitima-se por meio de um chamado à perícia de
uma elite cujo conhecimento, devido a sua própria nature za, não pode ser
compartido. Os economistas de todo tipo informam ao político que o número de
empregos depende dos watts em circulação. Os educadores convencem o
público de que a produtividade depende do nível de instrução. Os ginecólogos
insistem em que a qualidade da vida infantil e materna depende de sua
intromissão nela. Portanto, não podemos questionar efetivamente a extensão
quase universal das culturas de mercado intensivo de mercadorias
enquanto não se tenha destruído a impunidade das elites que legitimam o
vínculo entre mercadoria e necessidade. Este ponto fica muito bem ilustrado
com o relato de uma mulher sobre o parto. Encontrava-se num hospital e
sentiu que o filho ia nascer. Chamou a enfermeira, a qual, em vez de
ajud á-la, correu em busca de uma toalha esterilizada para empurrar a
cabeça da criança para dentro, de volta ao útero. Então ordenou à mãe que
deixasse de fazer força porque «o doutor Levi ainda não chegou».

Chegou o momento de tomar uma decisão públi ca. As sociedades


modernas, sejam ricas, sejam pobres, podem tomar duas dir eções
opostas. Podem produzir uma nova lista de bens — mais seguros, com menos
desperdícios e mais fáceis de compartilhar — e, por fim, intensificar ainda
mais a dependência de produtos padronizados. Ou podem abordar o
proble ma da relação entre necessidades e satisfação de uma forma
in teiramen te nova. Em outras palavras: as sociedades podem manter suas
economias de mercado intensivo trocando somente o desenho do produto; ou
podem reduzir sua dependência da mercadoria. Esta última solução encerra a
aventura de imaginar e construir novas infra-estruturas nas quais os indivíduos
e grupos primários possa desenvolver um conjunto de ferramentas
convivenciais. Estariam organizadas de maneira que permitissem às pessoas
formarem e satisfazerem, direta e pessoalmente, uma crescente proporção de
suas necessidades.

A primeira opção mencionada representa uma contínua identificação do


progresso técnico com a multiplicação de mercadorias. Os administradores
burocráticos do et os ig ualitário e os tec nocratas do bem-estar
coincidiram num chamado à austeridade: substituir os bens que — como os
jatos — não podem obviamente ser compartidos, por um equipamento
chamado «social» — como os ônibus; distribuir mais eqüitativamente as
decrescentes horas de emprego de que se dispõe e limitar a tradicional
semana de traba lh o a 20 horas; desenhar o novo tempo de vida de ócio
para ocupá-lo em reaprendizagens ou serviços voluntários, à maneira de Mao,
Castro ou Kennedy. Este novo estágio da sociedade industrial — se bem
socialista, efetiva e racional — nos introduziria simplesmente num novo estado
da cultura que degrada a satisfação dos desejos ao convertê-los num alívio
repetitivo de necessidades imputadas por meio de artig os padronizados. No
melhor dos casos, esta alterna tiva produziria bens e serviços de tal forma que
sua distribuição fosse mais eqüitativa. A participação simbólica do indivíduo
nas decisões sobre o que se deve ria fazer poderia transferir-se da
vociferação no mercado ao voto na assembléia política. Poder-se-ia suavizar o
impacto ambiental da produção. Entre as mercadorias, cresceriam certamente
muito mais rapidamente os serviços do que a manufatura de bens. Enormes
somas de dinheiro se inverteriam na indústria oracular, a fim de que os
profetas da administração pudessem fabricar cenários «alternativos»
desenhados para escorar esta primeira opção. E interes sante notar qu e
estes oráculos convergem para um mesmo ponto: em que se ria
in su portável o cust o social necessário para produzir desde cima a
austeridade indispensável numa sociedade ecologicamente factível, mas que
ainda continua centrada na indús tria.

A segund a opção faria cair o p ano sobre a dominação absoluta do


mercado e fomentaria um etos de au st erid ade em ben ef ício de uma
var iedade de ações satisfatórias. Se bem que na primeira alternati va
austeridade queira dizer aceitação dos ucasses administrativos em benefício da
crescente produtividade institucional, na segunda, austeridade quer significar
essa vir tu de so cia l pela qual a gen te rec onhec e e decide os limites
máximos de poder articulado que qualquer pessoa possa exigir, a fim de
conseguir sua própria satisfação e sempre a serviço dos demais. A «austeridade
convivencial» inspira uma sociedade a proteger valores de uso pessoais diante
do enriquecimento inabilitante. Se num lugar as bicicletas pertencem à comuna
e em outra aos ciclistas, a natureza convivencial da bicicleta como ferramenta
não muda em nada. Tais mercadorias continuariam sendo produzidas em
g rande escala com métodos industriais, mas seriam vistas e avaliadas de
forma distinta. Atualmente, as mercadorias são consideradas soment e
como bens de consumo que alimentam as necessidades criadas por seus
inventores. Dentro desta segun da opção, as mer cadorias se valoriz ariam
por ser matér ias básicas ou ferramentas que permit em às pessoas
gerarem valores de uso para manter a subsistência de suas comunidades
respectivas. Mas esta opção depende, certamente, de uma revolução
copernicana em nossa percepção de valores. Hoje, os bens de consumo e os
serviços profissionais constituem o centro de nosso sistema econômico e os
especialistas relacionam nossas necessidades exclusivamente com esse centro.
A inversão social que consideramos aqui colocaria no centro de nosso sistema
econômico os valores de uso criados pelo próprio indivíduo. E certo que a
discriminação mundial contra os autodidatas viciou a confiança de muitas
pessoas na definição de suas próprias metas e necessidades. Mas essa própria
discriminação deu or igem a uma minoria crescente que está enfurecida por
esse despojamento insidioso.
2
OS SERVICOS PROFISSIONAIS INABILITANTES

Est as min oria s vêe m já a ameaça que en cer ra para elas — e para toda
a vida cultural autóctone — os mega-instru ment os qu e expropr iam
sistematicament e as condições ambientais. Elas estão prontas para pôr
fim a uma Idade. Estão resolvidas a recuperar sua autonomia para fixar suas
próprias metas, decididas a proteger o domínio sobre o próprio corpo, a
mem ória e su as habilid ades , deter min adas a lu tar contra a expropriação
sistemática do ambiente vital perpetrada pelo sistema industrial em expansão.
Embora seja uma maioria que se encontra frustrada pelo transporte, poucos
são os que estão decididos a opor-se a uma invasão ulterior de mais redes
de estradas; se bem seja uma maioria que vê seus sonhos e sua capacidade
de sonhar destruídos pelo estrangulamento de se us rit mos vit ais , sã o
so men te uns poucos aqueles que estão dispostos a pagar o preço necessário
para rechaçar tal situação. Ainda que estejam em maioria o número de
mulheres que vêem seu equilíbrio hormonal destruído pela pílula
anticoncepcional e uma maioria de empregados, os espaços de silêncio
in terior contaminados pel a músi ca ambiental, sã o somente uns poucos os
que se organizam ativamente. Mas cada uma destas minorias representa
uma categoria de pobreza modernizada que potencialmente se pode
reconhecer como sendo a maioria. O industrialismo tardio justificou a
organização da sociedade como um conglomerado de múltiplas maiorias,
todas estigmatizadas pelas burocracias provedores de serviç os; não obstant e,
no in terio r de cada uma destas maiorias se desenvolvem e crescem
minorias ativas, que se combinam entre si numa nova forma de
dissidência.

Mas, para poder liqu id ar com uma Id ade, el a deve ter um nome que
pegue. Proponho que se dê o nome de Idade das Profissões inabilitantes
porque ela compromete a quantos a utilizam. Revela as funções anti-sociais
exercidas pelos fornecedores menos desafiados — pelos educadores, pelos
médicos, os assistentes sociais, os cientistas e outras belas pessoas.
Simultaneamente instaura um processo contra a complacência dos cidadãos
que se submeteram, como clientes, a esta servidão multifacetada. Falar
do po der das profissões inabilitantes envergonha as vítimas e as leva á
reconhecer a conspiração do eterno estu dante, do caso ginecológico ou do
consumidor, com seus respectivos administradores. Ao descrever o
decênio dos anos sessenta como o apogeu dos solucionadores de problemas,
evidencia -se de imediato não só o orgulho de nossas elites acadêmicas como
também a credulidade gulosa de suas vítimas.

Mas este enfoque nos fabricantes da imaginação so cia l e nos valores


cult urais pret en de, mais que expor e denunciar: ao designar os últimos
25 anos como a Idade das Pro fissões tirânicas, também estamos propondo
uma estratégia. Indica-se a necessidade de ir mais além na redistribuição
planejada de mercadorias de refugo, irracionais e paralisantes, que são a marca
do Profissionalismo radical. O que proponho vai obviamente muito mais além da
critica da própria profissão, que veio ganhan do forma, nos últimos anos,
tanto na América do Norte e na Europa quanto em certos países pobres, entre
médicos, advogados ou professores, que se autodefinem freqüentement e
como profissionais radicais. Esta estratégia exige nada menos que o
desmascaramento do etos profissional. A fé e a confiança no técnico
profissio nal, seja ele cientista, seja terapeuta ou executivo, constitui o
calcanhar-de-aquiles do sistema industrial. Portanto, somente as iniciativas dos
cidadãos e as tecnologias radicais que desafiem diretamente a dominação
enervante das profissões inabilitantes poderão abrir o caminho para a
conquista da liberdade medi ante uma competição não hierárquica, baseada
na comunidade. Invalidar o etos profissional tal como existe atualmente é
condição necessária para o surgimento de uma nova relação entre
necessidades, ferramentas contemporâneas e satisfação pessoal. O
pri meiro passo para alcançar essa invalidação libertadora é que o cidadão
adote um postura céptica e condescendente diante do técnico profissional. A
reconstrução social começa pela dúvida.
Cada vez que proponho a análise do poder profissional, como a chave para
a reconstrução da sociedade, pergunto se não é um erro perigoso escolhe r
este fenômeno como eixo da recuperação do sistema industrial. Por acaso as
formas organizativas dos estabelecimentos educacionais, médicos e de
planificação são outra coisa que o reflexo da distribuição do poder e do
privilégio de uma elite capitalista? Não será irresponsável minar a confiança
que o homem da rua depositou em seu protetor preparado cientifica mente,
em seu médico ou em seu economista, precisamente nos momentos em que
os pobres precisam de protetores, precisam do acesso à escola, às clíni cas
e aos técnicos? Não deveria processar o sistema industrial, denunciando com
maior força os Rockefellers e os Stalins? Por acaso não será uma
perversi dade denegrir aquele que adquiriu com tanto esforço o
conhecimento necessário para reconhecer e servir nossas necessidades de
bem-estar, particularmente, se os den unciados provêm da mesm a
clas se que protegem? De fato, não se devia assinalar e escolher estes
indivíduos como os líderes mais aptos a cumprir as tarefas sociais — já em
marcha — e para identificar as necessidades das pessoas?

As argumentações contidas nestas perguntas só apresentam uma defesa


frenética dos privilégios por parte daquelas elites que, inclusive podendo
perder em dividendos, na verdade conseguiriam certamente maior status e
poder se se tornasse mais eqüitativo o acesso a seus serviços nesta nova
forma de economia de mercado intensivo. Uma segu nda série de obje ções
que se suscitam diante da possibilidade de uma so ciedade moderna centrada
nos valores de uso é ain da mais sér ia: su rge da cons ciên cia do pap el
central que a segurança nacional adquiriu. Esta objeção particulariza, como
ponto central da análise, os conglomerados da defesa, que aparentemente se
encontram no centro de toda sociedade burocrático-industrial. O argumento
exposto postula que as forças de segurança são o motor que está por trás da
regulamentação contemporânea universal no que diz respei to à disciplina
que depende do mercado. Identifica como principais fabricantes de
necessidades as burocracias armadas que nasceram quando, sob Luís XIV,
Richelieu estabeleceu a primeira polícia profissional, ou seja, agências
profissionais que estão atualmente encarregadas de armamentos, da
inteligência e da propag anda. Desde Hiroxima, estes chamad os
«serviços» têm sido, parece, os qu e deter minam a pesquisa, o
planejamento da produção e do emprego. Estes serviços repousam sobre bases
civis: como a escolaridade para a disciplina, o treinamento do consumidor para
o desfrute do inútil, o hábito às veloci dades violentas, a engenharia médica
para a vida num refúgio que abarca a terra e a dependência padronizada dos
temas da atualidade que dispensam policiais benévolos da cultura. Esta linha de
pensamento vê na segurança do estado o gerador dos padrões de produ ção
da sociedade e pensa que a economia civil é, em grande parte, um resultado
ou um pré -requisito do militar.

Se fosse válida uma argumentação construída em torno desta noção, teria


uma sociedade deste tipo a possibilidade de renunciar ao poder atômico,
mesmo sabendo quão venenoso, tirânico ou contraprodutivo pode resultar o
excesso de energia ulterior? Como esper ar que um estado conduzid o
pela su a def esa tolerasse a organização de grupos de cidadãos descontentes
que desconectam suas vizinhanças do consumo para proclamar a liberdade de
produzir — em pequena e intensiva escala — valores de uso, liberdade dada
numa atmosfera de austeridade prazenteira e satisfatória? Não teria uma
sociedade militarizada que mover-se de pronto contra os desertores de
necessi dades, qualificá-los de traidores e, se fosse possível, expô-los não só ao
desprezo mas também ao ridículo? Não teria uma sociedade conduzida pela
defesa que suprimir aqueles exemplos que levariam a uma modernidade não
violenta, nestes instantes em que a política pública exige uma descentralização
da produção de mercadorias (que lembra Mao) e um consumo mais racional,
eqüitativo e supervisionado profissionalmente?

Esta argumentação confere um crédito indevido ao militar como fonte da


violência num estado industrial. Devemos denunciar como uma ilus ão a
presunção de que as exigências militares são culpadas da agressividade e
destrutividade da sociedade industrial avançada. Sem dúvida, se fosse
verdad e que os militares usurparam de algum modo o sistema industrial,
que de algum modo se desviaram do con trole civil, as numerosas esferas de
esforço e ação social, então o presente estado da política militarizada teria
alcançado um nível irreversível; pelo menos impossível para uma reforma
civil. Esta é, de fato, a argumentação que os líderes militares do Brasil
esgrimem, os quais vêem nas forças armadas os únicos tutores legítimos da
busca pacífica da industrialização durante o resto deste século.

Mas isto simplesmente não é assim. O estado in dustrial tardio não é um


produt o do exér cito. O exército constitui mais um dos sintomas de sua
orientação firme e totalizadora. É certo qu e o pr es ente modo de
organização industrial pode ter seus antecedentes militares mais remotos em
tempos napoleôni cos. É certo que a educação obrigatória dos meninos
camponeses, em 1830, a atenção universal da saúde para o proletariado
industrial, em 1850, as crescentes redes de comunicação, tal como a maior
parte das formas de padronização industrial, foram estratégias introduzidas na
sociedade, em primeiro lugar, como exigências militares, e só mais tarde se
entenderam como formas dignas de progresso pacífico, civil. Mas o fato de os
sistemas de saúde, de educação e de bem-estar necessitarem de uma lógica
militar para ser promulgados como leis, não significa que não tivessem
consistênci a com o impu lso industrial básico qu e, de fat o, nunca foi
não-vio lento, pacíf ic o ou respeitador das pessoas.

Hoje em dia é mais fácil ter esta visão. Primeiro, porque desde o Poláris,
já não é possível distinguir en tre ex ér cit os de tempos de paz e de
guer r a, e, segundo, porque desde a guerra contra a pobreza, a paz está
em pé de guerra. Atualmente, as sociedades industriais estão constante e
totalmente mobilizadas; estão organizadas para constantes emergências
públicas; são bombardeadas com estratégias variadas em todos os setores;
os campos de batalha da saúde, da educação, do bem-estar e da igualdade
positiva estão semeados de vítimas e cobertos de ruínas; as liberdades dos
cidadãos se suspendem continuamente para lançar campanhas contra
males sempre redescobertos; cada ano descobrem-se novos habitantes
fronteiriços qu e devem ser protegidos ou recuperados de alguns novos
mal-estares, de alguma ignorância previamente desconhecida. As necessidades
básicas formuladas e imputadas por todas as agências profissio nais são
necessidades para a defesa contra males.

Os professores e cientistas sociais que hoje procuram culpar os militares


pela destrutividade das sociedades mercantilizadas intensamente são gente
que tenta deter, de forma bastante torpe, a erosão de sua própria
legitimidade. Alegam que os militares levam o sistema industrial a este
estado frustrador e destrutivo, e distraem, desta maneira, a atenção da
natureza profundamente destruidora de uma sociedade de mercado
intensivo que leva seus cidadãos às guerras de hoje. A quantos procuram
proteger a autonomia profissional como uma vítima do estado militarizado, se
responderá com uma simples alternativa: a direção que os cidadãos livres
devem seguir a fim de superar a crise mundial.

a) Rumo ao fim de uma época


Para o senso comum, são cada vez mais evidentes as ilusões que
levaram a instituir as próprias profissões como árbitro das necessidades
cada vez mais evidentes. Freqüentemente, a gente vê já o que realmente são
os procedimentos no setor de serviços — por exemplo, os das companhias de
seguros, ou os rituais que ocultam aos olhos do emaranhado formado pelo
provedor-consumidor a posição existente entre o ideal em honra do qual se
rende o serviço e a realidade engendrad a por est e serviço. As esc olas
que prometem a mesma ilustração para todos geram uma meritocracia
degradante e uma dependência permanente de uma tutoria cada vez maior.
Os veículos compelem todos a irem cada vez mais longe e a correrem mais.
Mas o público ainda não tem claras as possibilidades de escolha. Os projetos
patrocinados pelos líderes profissionais poderiam desembocar no surgimento
de credos políticos compulsivos (com suas versões que acompanham um novo
tipo de fascismo), ou então as experiências que os cidadãos
empreendessem poderiam desfazer nossa hybris como se fosse outra coleção
histórica de loucuras, se bem neoprometeicas, embora essencialmente
efêmeras. Uma opção informada requer que examinemos o rol específico
das profissões para determinar quem nesta Idade obtém que coisa e por quê.

Para ver o presente com clareza, imaginemos as crianças que logo


brincarão entre as ruínas das escolas secundárias, dos Hiltons e dos hospitais.
Nestes castelos profissionais convertidos em catedrais, construídos para
proteger-nos da ignorância, contra o desconforto, a dor e a morte, os meninos
de amanhã representarão de novo nas suas brincadeiras as desilu sões de
nossa Idade das Profissões, tal como nós reconstituímos as cruzadas dos
cavaleiros contra o pecado e os turcos, na Idade da Fé, em antigos
castelos e catedrais. Em seus brinquedos, as crianças asso-ciarão o grasnido
universal que contamina hoje nossa linguagem com os arcaísmos herdados dos
grandes gângsters e dos caubóis. Imagino-os chamando-se uns aos outros de
«Senhor Presidente da Assembléia» ou «Senhor Secretário», em vez de
«Chefe» ou «Xerife».

Recordaremos a Idade das Profissões como aque le tempo em que a


política entrava em decomposição quando os cidadãos, guiados por
professores, confia vam a tecnocratas o poder de legislar sobre suas
necessidades, a autoridade de decidir sobre quem necessitava de tal coisa e o
monopólio dos meios que satisfaziam estas necessidades. Lembraremos como a
Idade da Escolarização os tempos em que se treina vam as pessoas durante
um terço da vida para que acumulassem necessidades prescritas, para durante
os dois terços restantes passarem a ser clientes de prestigiosos traficantes que
dirigiam seus hábitos. Recordaremos a Idade das Profissões como aquela na
qual as viagen s de recreio signif ic avam o olh ar fix o e formal para os
estranhos e na qual a intimidade era um requentado programa de
televisão da noite anterior, e votar era dar sua aprovação a um vendedor
só para alcançar mais dele.

Os estudantes do futuro se sentirão tão confundidos pelas supostas


diferenças entre as instituições profissionais capitalistas e as socialistas, como
se sentem os estudantes de hoje com as pretendidas diferenças entre as
últimas seitas cristãs reformadas. Descobrirão também que os bibliotecários
profissionais, os cirurgiões, os desenhistas de supermercados nos países
pobres ou nos países socialistas, em fins de cada decênio, terminam com os
mesmos registros, utilizando os mesmos instrumentos e construindo os
mesmos espaços que seus colegas dos países ricos tinham introduzido nos
inícios da década. Os arqueólo gos não fix arão os per ío dos de noss a Idade
de acordo com os restos de cerâmica encontrados nas escavações, e sim com
as modas profissionais refletidas nas tendências das publicações das
Nações Unidas.

Seria pretensioso predizer se esta Idade, na qual as necessidades se


projetam profissionalmente e de antemão, será lembrada com um sorriso ou
uma maldição. Naturalmente, espero que se lembrará da noite em que o pai
saiu para a pândega, malbaratou a fortuna da família e obrigou os filhos a
c omeçarem do nada. Desgraçadamente, é muito mais provável que esta
Id ade se ja lemb rada como os tempos em que toda uma geração se lançou
numa busca frenética de riqueza empobrecedora, permitindo a alienação
de tod as as liberdad es, e que dep ois de ter pos to a política à mercê das
garras organizadoras dos receptadores de bem-estar, deixou que se extinguisse
num totalitarismo técnico.

b) As profissões dominantes
Enfrentemos primeiro o fato de que as associa ções de especialistas que
atualmente dominam a fabricação, a adjudicação e a satisfação de
necessidades formam um novo tipo de cartel. E importante também saber
reconhecer as novas características essenciais do profissional no industrialismo
tardio. Se não se reconhecerem, ocorrerá inevitavelmente, no momento da
discussão, o novo biocrata se ocultará por trás da máscara benévola do
médico da família de antanho; o novo pedocrata, em seus esforços para
«modificar comportamentos», tomará a forma do inocente mestre de
Kindergarten, que faz umas experi ências interessantes, e a luta que
travemos contra o novo selecionado r de pessoal, armado de todo um
arsenal psicológico para a degradação, será levada a cabo ineludivelmente
com as antigas táticas desenvolvidas para defender-se contra o capataz da
fábrica. Se devêssemos batizar a estes novos profissionais, eles
mereceriam ser chamados de algum termo dife rente, que ainda não temos.
As novas profissões se encontram entrincheiradas muito mais profundamente
que uma burocracia bizantina. São mais internacio nais que uma igreja
universal, mais estáveis que um sindicato, dotadas de maiores capacidades
que qualquer xamã e exercem um domínio mais forte que o de qualquer máfia
sobre aqueles que desejam controlar.

Entretanto, devemos distinguir cuidadosamente entre os novos especialistas


organizados e os chantagistas mafiosos. Por exemplo: os educadores podem
atualmente dizer à sociedade o que deve aprender e podem desqualificar
tudo que for aprendido fora da escola. De acordo com este tipo de
monopólio, que lhes permite impedir que você faça suas compras em qualquer
outro lugar ou que você fabrique seu próprio licor, parecer ia à prim eira vista
que lhes qu adra a definição que o dicionário dá à palavra gângster. Mas os
gângsters acuam uma necessidade básica, ao controlar os acontecimentos
em proveito próprio. Atualmente os médicos e os assistentes sociais —
como antes os sacerdotes e advogados — ganham um poder legal de criar
necessidades que, de acordo com a lei, somente eles podem satisfazer.
Convertem o estado moderno numa corporação que abarca outras
empre sas, as quais, por sua vez, facilitam o exercício de suas capacidades,
garantidas pelas mesmas empresas.

O controle legalizado sobre o trabalho tomou muitas formas distintas:


os soldados ocasionais recusavam lutar enquanto não tivessem licença para
sa quear. Lisístrata organizou as mulheres submetidas par a, pelo
refreamento do sexo, obrig ar os seus homens à paz. Os doutores de
Cos se juramentaram para div ulg ar so mente aos filh os os seg red os do
oficio. Foram as corporações que estabeleceram os currículos, as orações, os
exames, as peregrinações e as provas por que teve de passar Hans Sachs
antes que lhe permitissem calçar seus vizinhos do burgo. Nos países
capitalistas, os sindicatos procuram con trolar quem há de trabalhar,
durante quantas horas e qual o salário a perceber. Todas estas associações
representam os esforços que os especialistas fazem para determinar
como e por qu em deverá ser feito certo tipo de trabalho. Mas nenhum
destes gr upos constitui uma profissão em sentido estrito. As profissões
tirânicas de hoje, das quais constituem um bom exemplo os médicos — o
exemplo, literalmente, mais doloroso — vão muito mais longe: eles decidem
sobre o que é qu e se deve fabricar , por qu em e como se deve
administrar. Elas proclamam um conhecimento especial, incomunicável, não
somente sobre o que as coisas são e como devem ser feitas como
também so bre a razão por que se dev e nec ess it ar de se us serviços. Os
comerciantes vendem os artigos que armazenam. Os homens do grêmio
garantem a qualidade. Alguns artesãos confeccionam o artigo de acordo com
as medidas e os desejos do cliente. Os profissionais dizem a você o que é
que você precis a. Reclamam para si o poder de receitar. Não só
recomendam o que é bom, como também decretam o que é correto. A
característica do profissional não é nem o lucro, nem uma longa preparação,
nem as tarefas delicadas, nem a condição social. Seus rendimentos podem ser
baixos ou consumidos pelos impostos, sua preparação pode demorar
semanas em vez de anos. Seu status pode ser comparado ao da profissão
mais antiga da História. Melhor: é a autoridade que o profissional tem para
tomar a iniciativa de definir uma pessoa como cliente, para determinar as
necessidades dessa pessoa e para entreg ar a essa pessoa uma receita
que a defina neste novo rol social. Ao contrário das prostitutas de antanho, o
profissional moderno não é aquele que vende o que os outros dão grátis, é
prin cip almente aquele que dec id e o que se dev e vender e não se deve
entregar gratuitamente.

Existe outra diferença entre o poder profissional e o de outras


ocupações. Este poder provém de fontes distintas. Uma corporação,
um sindicato ou uma máfia obrigam a respeitar seus interesses e direitos
por meio das greves, do suborno ou da violência aberta. Uma profissão, tal
como um clero, exerce o poder cedido pela elite, cujos interesses apóia.
Tal como um clero oferece o caminho da salvação seguindo os passos de um
soberano ungido, uma profissão interpreta, protege e administra um interesse
especial e deste mundo aos súditos de uma sociedade moderna. O poder
profissional é uma forma especial que o privilégio assume para receitar o que
é correto para os demais e que, portan to, prec isam disso. Est e poder é
a fonte de status e de mando na Idade industrial tardia. Este tipo de po der
profissional só pode ex istir nas sociedades em qu e pertencer à elite se
consegue e legitima por meio do status profissional. Iss o cai
per feitamente bem à Id ade em que, até o aces so ao Parlamen to, ou
se ja, à Câmara dos Co muns, se encontra, de fato, rest rito a quantos
obtiveram o título de mestre que abona seu patrimônio de conhecimentos
armazenados, ministrados na universidade. A autonomia e a licença profissíonal
para definir as necessidades da sociedade são a forma lógica que a
oligarquia adota numa cultura política que substitui as antigas formas de
credibilidade por certificados de stocks de conhecimentos entregues pelas
universidades. O poder que as profissões têm sobr e o trabalho que seus
membros realizam é diferente, portanto, não so men te quanto a sua
extensã o como também quanto a sua origem.

c) As profissões tirânicas
O médico ambulante se converteu em doutor em medicina quando deixou o
comércio dos medicamentos aos farmacêuticos e reservou para si a
faculdade de receitar. Nesse momento, ganhou uma nova forma de
autoridade, juntando três papéis num só personagem. A autenticidade
sapiente para aconselhar, ins truir e dirigir; a autoridade moral que faz sua
aceitação não só útil mas obrigatória; e a autoridade carismática que permite
ao médico apelar a certo interesse supremo de seus clientes, que não só
está por cima de sua consciência, como, às vezes, até por cima da razão
de estado. Naturalmente, este tipo de doutor ainda existe, mas dentro do
sistema médico moderno é uma figura do passado. Atualmente é bastante
mais comum um novo tipo de cientista da saúde aplicada. Cada vez mais se
ocupa de casos e não de pessoas; ocupa-se dos desvios que detecta no
caso, mais do que da dor que aflige o indivíduo; protege o interesse da
sociedade mais do que o inter esse da pessoa. Os tipos de autoridade que se
acumularam na imagem do doutor dos velhos tempos, durante os anos de
liberalismo, e que colaboravam com o facultativo individu al no tratamento do
paciente, são desempenhados atualmente pela corporação profissional a serviço
do Estado. E a esta instituição que se atribui hoje uma missão social.

Nos últimos vinte e cinco anos, a medicina se converteu, de uma profissão


liberal, numa profissão dominante ao adquirir o poder de indicar o que
constitui uma necessidade de saúde para o povo em geral. Os
especialistas da saúde, enquanto corpora ção, adquiriram a autoridade para
determinar que tipo de atenção médica se deve ministrar à sociedade em
geral. Já não é um indivíduo profissional o que atribui uma «necessidade» a
outro indivíduo como cliente, e sim uma agência corporativa que atribui uma
necessidade a camadas inteiras da população e que, depois, se arroga o
mandato de submeter à prova a popula ção inteira a fim de identificar
aqueles que pertencem ao grupo dos clientes potenciais. E o que acontece na
esfera do atendimento médico é totalmente coerente com o que acontece
em outros domínios. Cada dia, uma nova seita se atribui uma nova missão
terapêutica e esta missão ganha legitimidade pública. Obviamente, os
educadores conquistaram o poder de diagnosticar e ministrar terapias do
comportamento, co mo também os trabalhadores sociais, os policiais e os
arquitetos, tal como os médicos, que gozam de ampla autoridade para criar
instrumentos de diagnóstico que utilizam para caç ar o cliente,
in st rumentos que o público já não ousa checar. Dezenas de fabricantes
de outras necessidades procuram imitá -los. Os banqueiros internacionais
se atribuem o poder de diag nosticar as necessidades chilenas, sob
Allend e ou baixo Pin ochet , e de de fin ir as condiç ões sem as quais não
ministrarão as terapias. Os especialistas da segurança avaliam o risco que
vários tipos de cida dãos representam e se atribuem a competência de
invadir o seu ambient e pr ivado. Já não há jeito de parar a escalada de
necess idades se não se expõem de forma política aquelas ilusões que
legitimam a tirania profissional. Muitas profissões se encontram tão
firmemente estabelecidas que não só exer cem tutoria sobre o cidadão -
feito-cliente como também dão forma a seu mundo-convertido-em-custo/dia.
A linguagem em que se percebe a si mesmo, sua per cepção dos direitos
e liberdades, e sua consciência das necessidades, derivam da hegemonia
profissional. A diferença existente entre o artesão, o profissional liberal e o
novo tecnocrata pode tornar-se clara se enfatizamos suas típicas reações ante a
gente que desprezava seus respectivos conselhos. Se alguém desprezava o
conselho do artesão, era um louco. Se alguém desprezava o conselho liberal,
era condenado pela so ciedade. Se alg uém escapa a tualmen te da atenção
que o cirurgião ou o psiquiatra decidiram aplicar-lhe, o governo ou a
profissão mesmo podem ser inculpadas.

De artesão-mercador ou conselheiro culto, o profissional se transformou


num cruzado filantropo que sabe como se deve alimentar as crianças, que
alunos devem continuar os estudos mais avançados e que rem éd ios a pes so a
não dev e tomar. De tutor que observava enquanto alguém decorava a
lição, o mestre-escola se transformou num educador cuja cruzada
moralizadora lhe confere títu lo para intrometer-se entre alguém e
qualquer coisa que deseje aprender. Até os empregados do canil de Chicago
se transformaram em técnicos de controle canino. Como resul tado dessa
mudança, o custo par a elim in ar um ca chorro se elevou em vinte anos de
$7.50 para $320.00 dólares. Entretanto, 5.4% de todas as lesões tratadas
no hospital Cook County — o maior do mundo — são mordidas do melhor
amigo do homem.

Os profissionais exigem um monopólio sobre a definição de desvio de


conduta e sobre suas soluções. Por exemplo: os advogados afirmam que
so mente eles têm competência e direito legal para dar assistência num
divórcio. Se alguém descobre um método para um divórcio «faça você
mesmo», vai se meter numa dupla complicação: se não for advogado,
ex põe-se à acusação de prat icar sem licença; se é mem bro de um
es crit ório de advocacia , pode ser expulso por falta de ética profissional.
Os profissio nais proclamam também um saber oculto sobre a natureza
humana e su as fraquez as, saber que só eles podem aplicar com
vantagem. Os cove iros, por exemplo, não se transformaram em
membros de uma profissão por passarem a chamar-se empresários de
pompas fúnebres, nem por obter diplomas escolares, nem por aumentarem
os lucros, ou por se libertarem do odor que acompanha seu negócio quando
um deles se elege presidente do Lions Club. Mas os empregados de pompas
fúnebres formam uma profissão, dominante e inabilitante, a partir do
momento em que têm força para conseguir que a polícia impeça o teuenterro
se não tiveres sido embalsamado e encaixota-'do por el es . Em qu alquer
campo em que se poss a imaginar uma necessidade humana, estes novos
profissionais inabilitantes proclamam ser os especialistas exclusivos do bem
público.

d) As profissões estabelecidas
A transformação de uma profissão liberal em dominante é equivalente ao
estabelecimento legal de uma igreja de estado. Os médicos transformados em
biocratas, os professores em gnoseocratas, os agentes funerários em
tanatocratas é algo que está muito mais próximo das «clerezias» subsidiadas
pelo Estado d o que as associacões comerciais. O profissional, como mestre da
linha de moda da ortodoxia, atua como teólogo. Como empresário moral,
atua no papel do sacerdote: com sua atuação, cria a necessidade para su a
med iação. Como cruzado benef actor, atua no papel de missionário à
caça de ovelhas transviadas. Como inquisidor, põe fora da lei o não -
ortodoxo: impõe suas soluções ao recalcitrante que recusa reconhecer-se como
problema. Esta investidura multifacetada, combinada com a tarefa de aliviar os
inconvenientes específicos da condição humana, faz que cada profissão seja
análoga a um culto estabelecido. A aceitação pública das profissões
tirânicas é essencialmente um fato político. Toda afirmação nova de
legitimidade profissional significa que as tarefas políticas de legislar, a revisão
judicial de casos e o poder executivo perdem algo de sua independência e de
suas caracteristicas próprias. Os assuntos públicos passam das mãos de
leigos escolhidos por seus semelhantes às de uma elite que se outorga seus
próprios créditos.

Qu an do a med icin a sobrepujou rec entemen te suas limitações liberais,


invadiu o campo legislativo e estabeleceu normas públicas. Os médicos sempre
tinham determinado em que as enfermidades consistiam; atualmente a
medicina determina quais são as enfermidades que a sociedade não tolerará. A
medicina invadiu as cortes de justiça. Os médicos sempre ti nham
diagnosticado quem era o enfermo; atualmente porém a medicina resolve sobre
os que merecem tratamento. Os médicos liberais prescreviam um
trata mento: a medicina dominante tem poderes públicos de ret if ic ação;
ela dec id e o que ter em os de fazer com o doente.

Numa democracia, o poder de legislar, de aplicar as leis e de fazer justiça


deve derivar dos próprios cidadãos. Este controle do cidadão sobre os
pode res chaves foi restringido, enfraquecido e até abolido pela ascensão de
profissões «clericais». Um governo que dita suas leis de acordo com as
opiniões técnicas de tais profissões pode ser um governo para o indivíduo
mas nunca do indivíduo. Este não é o momento de pesquisar quais foram as
intenções para enfraquecer assim o poder politico, se a tirania profissional
legitimou a sua invasão do poder legislativo por estar a serviç o da cla ss e
méd ia, de quantos ganharam o poder com o suor do rosto, da
multinacional ou da tentativa de estabelecer o socialismo, ou se
respon dendo à indagação de «a cada um segundo seu traba lho» ou «a
cada qual segundo suas necessidades». Como condição necessária para tal
subversão, basta in dicar a desqualificaç ão da opinião do vulgo p or parte
dos profissionais.

As liber dades civ is se fundam na norma que exclui todo testemunho


de ouvido das declarações em que se baseiam as decisões públicas. O que a
pessoa pode ver por si mesma e interpretar dev er ia ser a base comum
para estabelecer normas obrigatórias. As opiniões, as crenças, as deduções ou
persuasões não deveriam ser levadas em conta quando entram em conflito com
testemunhos oculares: invertendo esta norma, as elites de técnicos
poderiam converter -se em profissões dominantes. Nos apar elhos legislativos
e nas cortes de just iça, descartou -se, de fato, o regulamento contra a
evidência que antes proporcionava testemunhos orais e oculares e se
substituiu pelas opiniões proferidas pelos membros destas elites que se
auto-abonam.

Mas seria arriscado confundir o uso público de conhecimentos técnicos


com o juízo normativo entregue ao exercício corporativo de uma profissão.
Quan do a corte de justiça citava um perito artesanal — por exemplo, um
fabricante de armas — para que revelasse ao júri os se gredos de seu
ofício , nes se mesmo lugar ele poderia inst ruir o jurado sobre sua arte.
Apontava, numa demonstração prática, a parte do carreg ador do revólv er de
onde a bala tinha parti do. Hoje, a maioria dos técnicos desempenha papel
diferente. O profission al dominante leva ao júri ou aos legisladores a
opinião dos colegas, todos iniciados na matéria, em vez de apresentar
evidência baseada em fatos e em alguma destreza. Atua como teólogo a
serviço da corte. Exige que se suspenda o regulamento dos testemunhos
de ouvido, e solapa inevitavelmente o poder da lei. Deste modo, o poder
democrático se enfraquece cada vez mais.

e) A hegemonia das necessidades imputadas


Se não fosse por estar o indivíduo pronto a considerar como carência o
que os técnicos lançam em sua conta como necessidade, as profissões não
teriam podido chegar a tornar-se dominantes e inabilitantes.

A depend ência entre uns e outros (como tutores e alunos) se tornou


resistente à análise porque se acha obscurecida por uma linguagem
degenerada. As boas palavras de antigamente se transformaram em ferros
em brasa que reclamam o controle dos técnicos sobre o lar, a loja, o
comércio e o espaço e sobre tudo o que ocorre nesse meio. A linguagem,
o bem comum mais fund amental, se acha cont aminada assim por esses
fiapos de gíria retorcidos, pegajosos, cada um sujeito ao controle de uma
profissão. O empobreci mento das palavras, o esgotamento da
linguagem cotidiana e sua degeneração em terminologia burocrática
equivalem, de maneira mais intimamente degradante, à de gradação
ambiental tão discutida. Não se pode propor mudanças possív eis nos
pla nos, nas atitudes e nas leis se não nos fazemos mais sensíveis ao
repúdio destes nomes errôneos que só ocultam a domin ação. Qu ando
apren di a fala r, fala va- se de problemas somente nas matemáticas ou no
xadrez, de soluções só quando eram sali nas ou juríd ic as, e nec es sit ar
se conjugava, mas quase não se usa va como substantivo. As expressões
«tenho um problema» ou «tenho uma neces sidade» so avam loucas.
Qu ando cheguei à adole sc ência , e Hitler bu sc av a soluções, também se
estendeu «o problema social». Descobriram-se «meninos problemas» com
matizes sempre novos, entre os pobres, à medida que os trabalhadores sociais
aprendiam a catalogar suas vítimas e a padronizar suas «necessidades». A
necessidade, usada como substantivo, chegou a ser a forragem que
engordou as profissões até a tirania. Assim se modernizou a pobreza. Os
novos termos transformaram uma experiência pessoal e comunitária em
assunto de técnicas: os pobres se fizeram necessitados.

Durante a segunda metade de minha vida «ser necessitado» chegou a


constituir algo respeitável. As necessidades, computáveis e imputáveis,
promoviam na escala social. Ter necessidades deixou de ser um sin al de
pobrez a. O ren dim en to ec onômic o abríu novos registros de necessidades.
Spok, Comfort e os divulgadores de Nader treinaram os leigos na compra de
soluções dos problemas que tinham aprendido a cozin har de acordo com
rec ei tas profis si onais . A educação qualificou os diplomados para subirem
a alturas cada vez mais raras e plant ar e cultivar ali cepas sempre novas
de necessidades híbridas.

Cada vez mais, um número crescente de medicamentos teve que ser


adquirido com receita autorizada. Aumentou a prescrição e diminuiu a
competição. Por exemplo, na medicina, receítaram -se cada vez mais
remédios farmacologicamente ativos e as pessoas perderam a vontade e a
habilidade de enfrentar uma indisposição ou um mal-estar. Cerca de mil e
quinhentos produtos novos aparecem cada ano nas prateleiras dos
supermercados norte-americanos: depois de um ano só 20%
sobrevivem . O resto se retirou após algum tempo, tendo servido aos
vendedores como gancho, seja para experíências, ou por terem sido moda
efêmera, ou por se terem revelado perigosos para o consumidor,
antieconômicos para o produtor ou por não terem resistido à competição.
Cada vez mais, os consumidores se vêem forçados a procurar ajuda dos
protetores profissionais do consumidor.

Além do mais, a substituição constante dos produtos faz que os desej os


se tornem superfíci aís e plásticos. Embora soe paradoxal, o resultado é que
o consumo elevado segue a par de uma nova forma de indiferença de parte do
consumidor: quanto maior for o número, o volume e a especificidade das
necessidades que se lhes atribui profissionalmente, m aior se torna a
indiferença para satisfazer seus próprios desejos, que já não sabe especificar.
Cada vez mais, as necessidades se criam por slogans comerciais, as compras
se fazem por ordens do decano universitá rio, ou das especialistas em
beleza, ou do ginecólogo, do dietista e de dezenas de outros
diagnosticadores com poder de receitar. O resultado lógico é que os
quiromantes e os astrólogos nunca tenham experi mentado tanta
prosperidade quanto hoje. Uma atri buição desse tipo parece quase razoável
numa cultura em que a ação própria não é o result ado de uma
experiência pessoal em busca de uma satisfação, e em que o consumidor
conseqüentemente adaptado substitui as necessidades sentidas pelas
aprendidas. A medid a que a pess oa se torna técnica na arte de
apren der a nec ess it ar, cheg a a se r cada vez mais remota a capacidade
de aprender a moldar os desejos de acordo com a exp eriência. A
medida que as necessidades se partem em pedacinhos cada vez mais
pequenos, cada um ministrado pelo especialista apropriado, o consumidor
sente dificuldade de integrar num todo significante — que se pudesse
desejar com empenho e possuir com gosto — as ofertas que em separado lhe
fazem seus distintos tutores. Os administradores de empresa, os conselheiros
do estilo de vida, os assesso res acadêmicos, os especialistas em dieta de
moda, os desenvolvedores da sensibilidade e outros semelhados, percebem
claramente as novas possibilidades de controle e se mobilizam para
equiparar os bens enlatados com estas necessidades interesseiras.
«Necessidade», empregado como substantivo, é a reprodução individual de
um modelo profissional; é a réplica em isopor do molde no qual os profissionais
marcam seus artigos; é o molde publicitário do favo de mel do qual se
fabricam os consu midores. Ser ignorante ou não estar convencido das
próprias necessidades chegou a ser o ato de dissolução social imperdoável. O
bom cidadão é aquele que se atribui nec essidades grampeadas umas às
outras com tal convicção que afoga qualquer desejo de procurar alternativas
ou de renunciar a estas necessidades.

Quando nasci, antes que Stalin, Hitler ou Roose velt fossem conhecidos,
só os ricos, hipocondríacos e membros dos sindicatos poderosos falavam de
necessidades de cuidados médicos quando lhes subia a temperatura. Era uma
necess idade questionável, porque os doutores não podiam fazer muito mais
do que a avó tinha feito. Na medicina, a primeira mutação das
necessidades chegou com a sulfa e os antibióti cos. Quando o controle
das infecções chegou a ser uma rotina simples e efetiva, cada vez mais
remédios passaram para a list a das receitas. A anotação da papeleta
médica do enfermo passou a ser um mono pólio do médico. A pessoa qu e
se sentia mal tinha que ir a uma clínica para ser etiquetada com o nome
de uma enfermidade e poder assim ser declarada legitimamente membro da
minoria dos chamados doen tes; ou seja: pessoas dispensadas do trabalho,
necessitando de ajuda, colocadas sob ordens médicas e obrig adas a se r
curadas, a fim de volt arem a se r novamente úteis. Em outras palavras:
quando a técnica farmacológica — teste e medicamentos — chegou a ser tão
barata e predizível que a gente poderia ter prescindido do médico, o
sacerdócio médico chamou em seu auxílio o braço secular.

A segunda mutação que as necessidades médicas experimentaram ocorreu


quando o doente deixou de ser minoria. Atualment e, muito poucas pessoas
se livram de estar sob ordens médicas durante algum lapso de tempo.
Tanto na Itália, como nos Estados Unidos, na França ou na Bélgica, um de
cada dois cidadãos está sendo acompanhado simultaneamente por mais de
três profissionais da saúde, que o tratam, aconselham-no ou simplesmente o
observam. O objeto desta atenção especializada é, na maior parte dos
casos, a condição dos dentes, do útero, das emoções, da pressão sanguínea
ou dos níveis hormonais, que o próprio paciente não está percebendo. Os
pacientes já não são minoria. Os que são minoria atualmente são os vários
tipos de transviados qu e escapam de um modo ou de outro das
diferentes listas de pacientes. Esta minoria está constituída pelos pobres, os
camponeses, im igrantes recentes e vários outros qu e, às vezes por
vontade própria, se converteram em desertores do sist ema méd ico. Há
so men te vinte anos, constituía indício de saúde normal, que se presumia
bom, poder passar sem médico . A mesma condição de não-pacient e se
vê hoje como indicadora de desamparo ou de dissidência. Até mesmo a
condição de hipocondríaco mudou. Para um profissional liberal, esta era a
etiqueta aplicável e alguém qu e chegava batendo com a porta, ou seja,
designação reservada ao doente imaginário. Agora, os médicos a utilizam
para referir-se à minoria que lhes escapa: hipocondríacos são os sãos
imaginários. Ser parte do sistema profissional, como cliente toda a vida, já
não é um es tig ma qu e se para o in capacit ado do cidadão co mum.
Vivemos hoje numa sociedade organizada para as maiorias transviadas e
para seus guardiões. Ser cliente ativo de muitos profissionais não permite
ter um lugar bem definido no reino dos consumidores para os quais esta
sociedade funciona. Deste modo, a transformação da medicina, de profissão
liberal de consulta, em profissão dominante e inabilitante, aumentou
incomensuravelmente o número de necessitados.

Neste momento crítico, as necessidades imputadas experimentam sua


terceira mutação. Estão-se fundindo no que os técnicos chamam problema
multi-disciplinar e que, portanto, requer uma solução multi-profissional. Em
primeiro lugar, a multiplicação das mercadorias, procurando cada uma delas
converter-se numa exigência para o homem moderno, conseguiu um
treinamento eficaz do consumidor para necessitar quando lhe fosse ordenado
que necessitasse. Depois, a fragmentação progressiva das necessidades em
partes cada vez menores e mais desconectadas conse guiu que o cliente
dependesse do juízo profissional para poder combinar suas necessidades
num todo que tivesse sentido. Um bom exemplo nos dá a indústria automotriz.
Em fins dos anos sessenta, o equipamento opcional que se necessitava
para fazer desejável um Ford comum havia aumentado enormemente. A
maior parte desse equipamento era instalada na própria cidade de Detroit,
e o comprador que vivia em Plains ou em qualquer outra cidade somente
tinha a possibilidade de escolher entre o conversível que desejava, mas com
os assentos verdes que ele detes tava, e o com assentos de pele de leopardo
que ia alegrar a namorada, mas com teto comum. O consumidor, que já havia
aprendido a depender da merca doria , agora tem que apren der a
resignar - se que outros escolham por ele.

Por fim, o cliente treina para que necessite de uma ajuda-de-equipe ao


receber o que seus guardiães consideram um «tratamento satisfatório». Os
serviços pessoais que fazem o consumidor sentir-se melhor ilustram este
ponto. A abundância terapêutica esgo tou o tempo de vida disponível de
muitas pessoas sobre as que os serviços profissionais diagnosticaram
«necessitar ainda mais». A intensidade da economia de ser viç os tornou
cada vez mais in su fic ien te o tempo, de que se necessita para o consumo de
tratamentos pedagógicos, médicos ou sociais. A escassez de t em po pode
converter -se muito cedo no maior obstáculo para o consumo de
serviços receitados, amiúde financiados por organismos públicos.
Sintomas desta escassez vão-se tornando evidentes desde os primeiros
anos de qualquer pessoa. Desde o jardim da infância, a criança está sujeita ao
controle de uma equipe constituída de especialistas, como o alergista, o
patologista da linguagem, o pediatra, o psicólogo infantil, o trabalhador social,
o instrutor de educação física e o professor. Ao formar uma equipe
pedocr ática (de poder sobre a criança) de tal tipo, muitos profissionais
tentam compartir o tempo que se con verteu no fator mais limitante da
aplicação de novas necessidades. Para o adulto, não é no colégio, mas no local
de trabalho que se concentram os pacotes de serviços. O chefe de pessoal,
o técnico em formação profissional, o instrutor de plantão, o planificador de
seguros, o animador de responsabilidades, conside ram proveitoso
compartilhar o tempo do operário que competir por ele. Um cidadão sem
necessidades seria suspeitoso. Diz-se às pessoas que se precisa de seu
trabalho não tanto pelo dinheiro que ganham como pela prestação de
serviç os que obtêm . As coisas comuns se extinguiram e foram substituídas
por uma nova matriz, feita de condutos que fornecem serviços profissionais. A
vida se acha paralisada num permanente cuidado intensivo.
3
COMO PASSAR UMA RASTEIRA NAS NECESSIDADES

A inabilitação de cidadãos mediante a cominação profissional se completa


por meio do poder da ilusão. A religião é deslocada, em última instância, não
pelo Estado, mas pelas esperanças postas nos profissio nais. Eles
proclamam um conhecimento especial para definir os assuntos públicos em
termos de problemas. A aceitação desse clamor legitima o reconhecimento
dócil por parte do leigo das carências impostas, seu mundo se transforma em
uma caixa de ressonância de necessidades. Esta. dominação se reflete no perfil
da cidade. Os edificios profissionais olham para as multidões que formigam
entre eles, em peregrinação contínua, rumo às novas catedrais da saúde, da
educação e do bem-estar. Os lugares sãos se transformam em departamentos
higiênicos onde ninguém pode nascer, adoecer ou morrer decentemente. Não
só os vizinhos serviçais, mas também os médicos liberais, que visitavam as
casas, são es pécies em extinção. Os locais de trabalho adequados para a
aprendizagem se con vertem agora em opacos labirintos de corredores que
permitem o acesso somente a funcionários equipados com «cartões de
identificação». Os ambientes profissionais são o último refúgio dos dependentes
de medicamentos.

A adição prevalecente às necessidades imputá veis por parte dos ricos e


a fascinação paralisadora frente às necessidades por parte do pobre seriam
completamente irreversíveis se as pessoas e o cálculo de nec essidades
fossem eq uip aráveis. Mas não é assim. Além de certo nível, a medicina
engendra desamparo e enfermidade; a educação se converte no maior
gerador de uma divisão inabilitante do traba lho; os sistemas de transporte
veloz transformam as pessoas em passageiros dur ante 17% de suas horas
úteis e, por uma quantid ade ig ual de tem po, em membros das
quadrilhas de trabalhadores de estradas que trabalham para pagar o Ford, a
Esso e o Departamen to de Est radas. O nív el no qual a med ic ina, a
educação ou o transporte se conver tem em instru mentos
contraprodutivos foi alcançado em todos os países do mundo que têm
uma renda per cap it a comparável, pelo menos, à de Cub a. Em todos os
países examinados, e contrariamente às ilusões propagadas pelas ortodoxias do
Leste ou do Ocidente, esta contraprodutividade específica não tem relação
com o tipo de escola, de transporte ou de organização da sa úde que se
estej a utilizando. Produz -se quando a intensidade de capital no processo de
produção ultrapassa um umbral crítico.

Nossas instituições mais importantes adquiriram o poder misterioso de


subverter e inverter os próprios propósitos para os quais foram
originalmente cons truídas e financiadas. Sob o controle de nossos
profissionais mais prestigiados, nossas ferramentas institucionais têm como
produto principal a contraprodutividade paradoxal — a inabilitação sistemática
da cidadania. Uma cidade construída em função das rodas torna-se
inapropriada para os pés, e nenhum aumento do número de rodas pode
superar a imobilidade fabricada desses aleija dos. A ação autônoma se
paralisa pelo excesso de mercadorias e tratamentos. Mas isto não representa
simplesmente uma perda líquida de satisfações , coisa qu e não se enqu adra
com a Idade Industrial; a impotência de produzir valores de uso torna, em
última an álise, cont rapropositiva as pr óprias mercadorias criadas para
substituí-las. O uso do automóvel, do médico, da escola ou do administrador é
mercadoria que produz incomodidades inevitáveis a seu consumidor, e que
retém seu valor líquido só para o prestador de serviços.

Por que ninguém se rebela contra esta tendência e sistema de


distribuição de serviços, tão inabilitante? A explicação chave deve ser
buscada no poder de gerar ilusões que estes mesmos sistemas possuem. O
profissionalismo, além de operar coisas técnicas no corpo e na mente, é
um ritual poderoso e g era confiança nas coisas que faz. Além de ensinar
a ler, as escolas ensinam que é melhor aprender dos professores. Além de
prover locomoção, prestígio, licença sexual e sentido de poder, tudo isto
junto, o automóvel deixa sem chão o caminhante. Além de proporcionar ajuda
para evitar impostos, os advogados também comunicam a noção de que as
leis resolvem o proble ma. Uma parte cada vez maior de nossas principais
instituições funciona no cultivo e manutenção de quatro conjuntos de ilusões
que convertem o cidadão num cliente que deve ser salvo pelos técnicos.

a) Confusão entre congestão e paralisia


A primeira ilusão escravizante é a idéia de que o indivíduo nasceu para ser
consumidor e que pode conseguir qualquer meta comprando bens e serviços.
Esta ilusão se deve a que nos educaram numa ceguei ra face à importância
dos valores de uso na economia total. Em nenhum dos modelos econômicos
que ser vem de guias nacionais existe uma variável que dê conta dos
valores de uso não mercantilizáveis, do mesmo modo que não há
variáv el para a peren e contribuição da natureza. Entretanto, não existe
economia que não sucumbisse imediatamente se a produção de valores e
uso se contraís se além de certo ponto, como poderia ser, por exemplo,
fazer o trabalho de casa por um salário, ou ter relações sexuais so men te
por um preç o. O que a gente faz ou cria, mas que não quer ou não pode
colocar à venda, é tão incomensurável e inavaliável para a economia como o é
o oxigênio que respiramos.

A ilusão de que os modelos econômicos podem ignorar os valores de uso


surge da presunção de que essas atividades que designamos por meio de
verbos intransitivos podem ser substituídas indefinidamente por artigos de
consumo, definidos institucionalmente e aos quais nos referimos por meio
de substantivos. A educação substitui o «eu aprendo»; a saúde o «eu me
curo»; o transporte o «eu me movo»; a TV o «eu me divirto».

A confusão entre os valores pessoais e os valores padronizados estend eu -


se ao longo da maioria dos campos. Sob a liderança profissional, dissolvem-
se os valores de uso, fazem-se antiquados e finalmente são privados de sua
natureza distinta. Dez anos de manejo de uma propriedade rural podem ser
lançados num liquidificador pedagógico e equivaler a um alto grau de
escolarid ade. As cois as recolh id as ao acaso e incubadas na liberdade da
rua se incorporam como «experiência educacional» às coisas injetadas na
cabeça dos alunos. Os contabilistas do conhecimento não parecem
preocupados com o fato de que est as duas atividades só se misturem —
tal como o azeite e a ág ua — na med ida em que são «ilh ad as» pela
pesquisa educacional. Os bandos de cruzados, caçadores-de-necessidades, não
poderiam continuar oprimindo-nos, nem poderiam gastar mais impostos em
seus levantamentos, gr áficos e outras panacéias se não fosse por
estarmos e permanecermos paralisados por nossas crendices glutonas.

A utilidade dos artigos de consumo ou das mercadorias empacotadas se


encontra bloqueada intrinsecamente por dois limites que não devemos
confundir. Prim eir o, as fil as de esp er a que ced o ou tarde a operação de
qualquer sistema que produza necessida de com maior rapidez que sua
mercadoria corresponden te; e, segundo, a dep endência dos artigos que
cedo ou tarde determinará de tal forma, as necessidades, que a produção
autônoma de seu funcionamento análogo será paralisada.. Congestão e
paralisação são ambas resultados da escalada mercantil em qualquer setor
da produção, embora seus resultados sejam bem diferentes. A congestão,
que é uma medida do grau em que as mercadorias se emperram
mutuamente, explica a razão por que o transporte de massa por meio de
automóveis particulares seria inútil em Manhattan, mas não explica por que a
gente trabalha duro para comprar e ass egurar automóvei s que lá n ão
podem ter um uso aproveitável. A congest ão não pode explicar ainda
menos por si só por que as pessoas se fazem tão dependentes de veículos
que se acham paralisados e simplesmente não voltam a utilizar os próprios
pés.

As pessoas se fazem prisioneiras da aceleração consumidora de tempo, da


educação estupefaciente, da medicina iatrógena, porque além de certo
umbral de intensidade a dependência de um conjunto de bens industriais ou
profissionais destrói o potencial huma no, agindo por setores e de maneira
específica. As mercadorias podem substituir só até certo pont o o que a
pessoa faz ou cria por si mesma. Os valores de troca podem substituir
satisfatoriamente, só dentro de certos limites, os valores de uso. Passado
este ponto, uma maior produção somente serve aos interesses do produtor
profissional — que impõe a necessidade ao consumidor e o deixa ofuscado e
aturdido embora mais rico. Para que uma necessidade se satisfaça e não
meramente se preencha, ela tem que ser determinada, em boa medida, pela
lembrança do prazer derivado da atividade que satisfez previamente. Há
um brais além dos quais as mercadorias não se podem multiplicar sem inabilitar
seus consumidores para a auto-afirmação da ação.

Os bens empacotados frustram o consumidor, inevitavelmente, porque o


paralisa no momento de consumi-los. Deste modo, a medida do bem-estar
de uma so ciedad e não se en cerra nunca como uma equação em que se
pudessem somar as duas maneiras de produção; é semp re como um
equilíbrio qu e se produz quando os valores de uso e as mercadorias se
combinam numa sinergia proveitosa. A produção heterônoma de um artigo de
consumo pode apoiar e complemen tar, mas só até certo pont o, uma ação
homóloga que seja autônoma e pessoal. Mas até este pont o, a sinergia entr e
dois modos de produção, o dos valores de uso e o dos artigos de
consumo, se realiza paradoxalmente contrária ao propósito que ambos
tinham. Muitas vezes não se vê com clareza este ponto, porque a atual
recuperação da ecologia pelo sistema industrial tende a obscurecê-lo. Os
reatores de energia atômica, por exemplo, foram amplamente criticados porque
sua radiação constitui uma ameaça ou porque favorecem o controle
tecnocrático. Até aqui, somente uns poucos se atrevem a criticá-los porque
acumulam ainda mais o excesso de energia. Ainda não se aceitou como
argumento para reduzir a demanda de energia a paralisação sobre a ação
humana produzida por «quanta» de energia socialmente hipercríticos.
Igualmente não se levam em consideração os limites inexoráveis do
crescimento, integrados na estrutura de qualquer instituição de serviços. E,
entretanto, deveria ser evidente que a medicalização do cuidado da saúde
tende a converter as pessoas em marionetas ou que a educação pela vida
fomenta uma cultura para gente programada. A ecologia provocará linhas-guias
para um estilo de modernidade viável somente quando se reconheça que o
meio ambiente des en hado para as mercadorias reduz a vitalidade
pes so al a tal ponto que as própria s mer cadoria s perdem seu valor
como meios de satisfação pessoal. Sem levar em conta este último
critério, a ecologia poderia levar à criação de uma tecnologia industrial
mais limpa e simultaneamente mais eficaz para aumentar o enriquecimento
inabilitante.

A razão fundamental por que a intensidade de mercado conduz à


contraprodutividade deve ser buscada na relação entre o monopólio das
mercadorias e as necessidades humanas. Este monopólio se estende muito
mais longe do que seu próprio nome reconhece. Um monopólio comercial
condiciona o mercado somente no que se refere a uma marca de uísque ou
de automóvel. Um cartel industrial total pode restringir a liberdade ainda
mais: pode encurralar todos os transportes de massa em benefício dos
automóveis particulares, como fez a General Motors ao comprar e arruinar
todos os troleibus de São Francisco. Podemos escapar do primeiro
monopólio aficionando-nos ao rum, e do segundo , compr ando uma
bicicleeta. Uso agora o termo «monopólio radical» para designar a
substituição das atividades úteis em que a gente se comprometeria ou
gostaria de fazê-lo, por um produto industrial ou um serviço profissional. Um
monopólio radical paralisa a ação autônoma e favorece a distribuição
profissional. Enquanto os veículos deslocam cada vez mais pessoas, mais
administradores de trânsito serão necessários cada vez mais e as pessoas
serão cada vez mais impotent es pa ra caminh ar até sua casa. Este
monopólio radical se daria junto com o tráfego de alta velocidade mesmo que
os motores es tiv es se m movidos por força so la r e os veí culo s fossem feitos
de ar. Quanto mais tempo está alguém sujeito à educação, menos tempo terá
para bisbilhotar e surpreender-se. Em qualquer domínio, existe um ponto
em que a quantidade de bens entregues degradam de tal forma o
ambiente pr opício para a ação pessoal, que a sinergia possível entre valores
de uso e mercadorias se torna negativa. Então se produz, paradoxalmente, a
contraprodutividade específica. Usarei este termo sempre que a impotência
resultante da sustentação de um valor de uso por uma mercadoria prive a
própria mercadoria de seu valor.
b) Cegueira ante as ferramentas convivenciais
O homem deixa de ser reconhecív el como tal quando já não pode dar
forma a suas próprias necessidades usando as ferramentas, mais ou menos
competentes, que sua cultura lhe proporciona. Ao longo da História, a maior
parte dos utensílios eram meios in ten si vos de tr abalh o que sa tis fazia m a
quem os usava, sobretudo na produção doméstica. Só ocasionalmente se
utilizavam para produzir pirâmides para o faraó, excedentes para o
intercâmbio de presentes e ainda mais escas samente para a compra e a
venda. As oportunidades para extrair o sobreproduto eram limitadas. A maior
parte do esforço se realizava para criar as próprias condições de subsistência do
homem trabalhador. Mas o progresso tecnológico se aplicou sistematicamente
no desenvolvimento de um tipo diferente de ferramentas: impulsionando, em
primeiro lugar, a fabricação de ferramentas somente para a produção de
artigos mercantilizáveis. A ferramenta dos inícios da revolução industrial
unicamente reduziu o trabalhador ao papel que Charlie Chaplin dese mpenhou
em Tem pos Modernos. Ao sa ir , mis er ável, da fábrica, ainda encontrava
avenidas por onde caminhar. Hoje, se não tem licença de motorista, ou pelo
menos dinheiro para pagar um carro, não pode voltar para casa.

As mulheres e os homens que chegaram a depender quase


exclusivamente da distribuição do s frag mentos padronizados, produzidos
por ferramentas operadas por outros seres anônimos, deixam de encontrar a
mesma satisfação direta no uso das ferramentas que, uma vez, estimularam
a evolução do homem e de suas culturas. Mesmo quando suas
necessidades e se u consumo se multip licam através de múltiplos pedidos
de encomenda, a satisfação produzida pelo manejo das ferramentas se faz
escassa e deixam de viv er uma vid a par a a qual se u organism o se foi
formando. No melhor dos casos, sobrevivem apenas, embora o façam rodeados
de desperdícios. Suas vidas chegam a ser uma cadeia de necessidades que se
foram encontrando em vista de um esforço de satisfação ulterior. O
homem -consumidor-passivo perde, em última instância, a habil idad e pa ra
discriminar entre a vida e a sobrevivência. O jogo dos seguros e a
espectação regozijada das rações e terapias tomam o lugar da alegria. Ao
atender cada vez mais necessidades, afogam a satisfação e o gozo. Esquecem-
se, convertidos em receptores, que o homem, cada vez mais
acorrentado, se apaga como criador. A red e metálica qu e esta
sociedade que pr etende saciá -lo tece em seu redor só lhe serve de
proteção até certo grau, só até cer to grau pode aumen tar se u poder .
Fica fácil esquecer que a satisfação e o gozo podem ocorrer somente na
medida em que vitalidade pessoal e provisões mecanizadas se mantenham
em equilíbrio na busca de uma meta.

A ilu sã o de que as fer ram en tas a ser viço de instituições orientadas


para o mercado podem destruir impu nemente as condições convivenciais e
que devem administrar-se por e para as pessoas permite a extinção da
«vitalidade», porque conceitualiza o progresso tecnológico como uma espécie
de produto de engenharia que permite uma dominação profissional maior. Esta
ilusão nos diz que, com a finalidade de que as ferramentas sejam mais
eficientes na busca de um propósito específico, temos de fazê-las cada vez
mais complexas e inescrutáveis. Exigem necessariamente, portanto, operadores
especiais, altamente treinados e que são os únicos em quem se pode
confiar. Na realid ad e, parece mai s raz oáv el o opost o. A medida que as
técnicas se multiplicam e se fazem mais específicas, seu uso requer um
julgamento me nos complexo. Já não é necessária esta confiança por parte do
cliente na qual se fundamentava a autonomia do profissional liberal e até
mesmo a do artesão. A invenção do fósforo acabou com o sacerdócio
encarregado de conservar a chama. Com cada nova forma de fósforo,
extingue-se um tipo de sacerdócio. De um ponto de vista social, deveríamos
reservar a designa-cão de «progresso técnico» à medida que novas
ferramen tas ex pandem a capacid ade e ef ic ácia de um número mais
amplo de pessoas; especialmente quando as novas fer ramentas per mitem
uma prod ução mais autônoma de valores de uso.

Não há nada inevitável quanto ao monopólio profissional que se expande


sobre a nova tecnologia. As grandes invenções dos últimos séculos, como os
no vos metais, os rolamentos de esferas, alguns materi ais de construção,
os circuitos integrados, alguns testes e medicamentos podem aumentar o
poder não somente da maneira heterônoma de produzir, como tam bém da
autônoma. Simplesm ente não existe o chamado «imperativo tecnológico».
E uma farsa pretender que, uma vez inventados, tenham os rolamentos de
esfera que ser necessariamente utilizados em veículos motorizados mais do
que em bicicletas, ou que os circuitos integrados tenham que ser
introduzidos inevitavelmente no cérebro. As instituições que moldam
socialmente o tráfego acelerado e a gestão da saúde mental não são, de
maneira alguma, resultados necessários de sua existência. Suas funções estão
determinadas pelas necessidades que pretendem satisfazer a quantos
manejam estas instituições. Não exis te nenhuma necessidade que não tenha
sido criada socialmente, para que existam pilotos e psiquiatras num mundo
posterior aos irmãos Wright ou a Freud. Este é um ponto crucial que as
minorias encobrem dentro de cada uma das grandes profissões, ao
oferecer generosamente seus serviços para conseguir que o transporte seja
mais eqüitativo ou que o enfermo, a quem se oferece um eletrochoque, tenham
uma participação maior. Entretanto, a maior parte da nova tecnologia não foi,
de fato, incorporada à equipe convivencial, mas sim aos pacotes e aos
complexos institucionais. Os profissionais usam consistentemente a produção
industrial para estabelecer um monopólio radical por meio da comprovada
efetividade da tecnologia. Devido à paralisação da produção de valores de uso,
a contraprodutividade é emu lada por esta noção de progresso tecnológico.

A própria idéia de progresso conceitualiza o trato engenheiral como uma


contribuição à eficiência institucional. Financia-se substancialmente a pesquisa
científica, mas só se pode aplicá-la ao ramo militar ou a um domínio
profissional futuro. As ligas que produ zem bicicletas mais fortes e leves são
subprodutos da pesquisa realizada para conseguir jatos mais rápidos e armas
mais mortíferas. Os resultados da maioria das pesquisas servem somente para
a produção de ferramentas industriais, tornando desta maneira cada vez
mais complexas e inexcrutáveis as já descomunais maquinarias. Devido a este
rasgo de visão de cientis tas e engenheiros, reforça-se uma tendência
predominant e: excluem -se as necessidades baseadas numa ação
autônoma e se mult iplicam as que tendem à aquisição de mercadorias.
As ferramentas convivenci ais que facilitam o desfruto dos valores de uso
da pessoa — sem supervisão ou com uma supervisão mín im a de
polic iai s, méd icos e in sp et ores — se concentram em dois extremos: os
operários asiáticos pobres e os estudantes e professores ricos são os dois tipos
de pessoas que andam de bicicleta. Talvez, sem ser conscientes de sua boa
sort e, ambos gozam do estar livres desta segunda ilusão.

Alguns grupos de profissionais, de entidades governamentais e de


organizações internacionais começaram recentemente a fazer aflorar, a
desenvolver e a recomendar uma tecnologia intermédia, de meia escala.
Poder-se-ia interpretar estes esforços como uma tentativa de evitar as
vulgaridades mais óbvias de um imperativo tecnológico. Mas uma grande parte
da tecnologia desenhada para uma auto-ajuda no cuidado da saúde, na
educação ou na construção do lar é só um modo alternativo de forte
dependência das mercadorias. Por exemplo, pede -se aos técnicos que
dese nhem novos armários de remédios que permitam às pessoas se
medicarem por telefone. Ensina-se às mulheres que examinem os seios para
ter que pagar logo ao cirurgião. Dá -se aos cubanos dias livres pagos para
que trabalhem na montagem de suas casas pré-fabricadas. O prestígio
estimulante dos produtos profissionais, ao fazer em -se mais baratos, acaba
por tornar os pobres e os ricos mais parecidos uns com os outros. Tanto
os bolivianos como os suecos se sentem igualmente desprezados,
desamparados, explorados, até o ponto em que aprendem sem a
supervisão de pr ofessores diplomados, mant êm -se sãos sem o controle
de um médico e se movem sem muletas motorizadas. Uma ilusão não é
menos ilusão pelo fato de vir envolvida numa solução científica e não em
dogmas religiosos.

c) A confusão entre liberdades e direitos


A terceir a ilusão inabilitante diz respeito aos técnicos em controle de
natalidade. A populações inteiras que foram socializadas para que necessitem
do que lh es disse ram que devem nec ess it ar , se dir á agora o que não
necessitam. Os mesmos agentes multinacionais que impuseram, ao longo de
uma geração, uma medida internacional de contabilidade, desodorantes, e
consumo de energia, a pobres e a ricos por ig ual, patrocin am agora o
Clu be de Roma. A Un esco se coloca obedientemente em movimento e
treina técnicos para regionalizar as necessidades imputadas. Por seu próprio
bem, também imputado, programam-se deste modo os ricos, para que
paguem um domínio profissional mais custoso para si e para que
proporcionem aos pobres necessidades arroladas num nível mais barato e
mais limitado. Os profissionais mais brilhantes vêem já claramente que a
escas sez crescente eleva o controle das necessidades cada vez mais alto. A
planificação central de outputs ótimos de descentralização converteu -se
no trabalho mais prestigiado de 1977. Mas o que ainda não se reconhece é
que esta mais nova salvação ilusória, por meio de limites decretados
profissionalmente, confunde liberdades e direitos.

Em cada uma das sete reg iões def in id as pela ONU, treina-se um novo
clero de educadores para que predique o estilo apropriado de austeridade
esboçado pelos novos desenhadores de necessidades. Os conscientizadores
vagam pelas comunidades locais incitando as pessoas a encontrarem as
metas de produ ção descentralizadas que lhes foram reservadas. Or denhar
a cabra familiar foi uma liberdade, até que planejamentos mais estritos
converteram isso num dever, para contribuir para o crescimento do PNB.

A sinergia entre a produção autônoma e a heterônoma reflete-se no


equilíbrio entre liberdades e direi tos de uma so ciedade determinada. As
liberdades protegem os valores de uso do mesmo modo que os direitos
protegem o acesso às mercadorias. Assim como as mercadorias podem
distinguir a possibilidade de produzir valores de uso, e produzir uma riqueza
empobrecedora, a definição profissional dos direitos pode extinguir as
liberdades e estabelecer uma tirania que enfoque a pessoa sob seus direitos.

Esta confusão revela -se com espec ial clarez a quando observamos os
técnicos da saúde. A saúde abarca dois aspectos: liberdades e direitos. Designa
o setor da economia no qual cada pessoa exerce controle sobre seus estados
biológicos, e sobre as condições de seu meio ambiente imediato. Definida
simplesmen te, a saúd e é idêntica ao grau de liberdade vivida. Portanto,
aqueles que têm que ver com o bem público deveriam esforçar-se por garantir
a distribuição eqüitativa da saúde e da liberdade, que dependem, por sua vez,
das condições ambientais que só os esforços políticos organizados podem
alcançar. Além de um certo nível de intensidade, a atenção profissional à
saúde, mesmo quando se acha distribuída eqüitativamente, sufocará a saúde-
como-liberdade. Neste sentido fundamental, o cuidado da saúde é um assunto
de liberdade bem p rotegida. Como é evidente, uma no ção de saúde deste
tipo implica uma posição de princípios sobr e liberdades inalienáveis. Para
entender isto, deve-se distinguir claramente entre liberdade civil e direitos
civis. A liberdade de que o governo dispõe paca atuar sem restrições tem um
campo mais amplo que o dos direitos civis que esse mesmo estado possa
decretar para garantir que as pessoas tenham igual possibilidade de obter
certos bens e serviços.

As liberdades civis, de ordinário, não obrigam a que outros atuem de


acordo com meus desejos. Tenho liberdade de escrever e publicar minha
opinião, mas nenhum jornal em particular está obrigado a imprimi-la, nem se
obriga os outros cidadãos a lê-la. Sou livre de pintar a beleza tal qual a vejo,
mas nenhum museu está obrigado a comprar meus qu adros. Ao mesmo
tempo, porém, como garante a liberdade, o Estado pode promulgar, e o faz,
leis que protegem direitos igualitários sem os quais seus membros não
poderiam gozar das liberdades. Tais direitos dão sentido e realidade à
igualdade, enquanto as liberdades dão possibilidades e forma à atuação
dos indiví duos. Durante o século XIX e o princípio do nosso, a doutrina jurídica
do equilíbrio entre liberdades e direitos se desenvolveu principalmente, se não
exclusivamente, no setor dos direitos civis. A proteção das liberdades de
estudar, de mover -se pelos próprios pés, de mobiliar a própria casa, não
parecia ameaçada senão pela falta de sapatos ou mobília; chegou o
momento, agora, de insistir nas liberdades produti vas, que são anál ogas
em tudo às civis . Um modo seguro de acabar com a liberdade de palavra, de
apr endizagem, ou de cura, é converter os direitos civ is em dever es
cív ic os. O caráter prec is o des ta terceira ilusão é crer que a conquista dos
direitos, patrocinada publicamente, conduz inevitavelmente à proteção das
liberdades. Na verdade, à medida que a sociedade outorga legitimidade aos
profissionais para que definam os direitos, vão-se evaporando as liberdades
do cidadão.

d) A eqüidade no desemprego criador


Qualquer necessidade nova que se diploma profissionalmente na
atualidade, traduz -se, cedo ou tar de, num direito. A pressão política para
conseguir a promulgação de todos direito em lei gera novos empregos e
mercadorias. Cada mercadoria nova degrada uma atividade que, até então,
permitia à pessoa cuidar de si pelos seus próprios meios; cada novo emprego
subtrai legitimidade ao trabalho feito até aqui pelo desempregado. O poder
que as profissões têm para fixar as medidas do que há de ser bom,
correto e realizado destorce o desejo, a vontade e a habilidade do homem
«comum» para viv er den tro de su a própria medida.

Logo que se diplomam os estudantes de direito inscritos atualmente nas


escolas norte-americanas, o número de advogados aumentará ali em 50%. 0
atendimento judicial completará o atendimento médico, na medida que o
seguro legal vá se convertendo no mesmo tip o de neces sid ade que hoje
em dia é o seguro médico. Qu ando já se tiver estabelec ido o direito do
cidadão a ter um advogado, será considera do pouco culto ou mesmo anti-
social o fim das brigas na taverna, da mesma maneira como se consideram
hoje os partos em casa. Já acontec e assim com o dir eit o que todo
cid adão de Det roit tem de viv er numa casa cuja instalação elétrica foi feita
por um profissional, que converteu num transgressor da lei o eletricista caseiro
que instala suas próprias tomadas e conexões elétricas. A perda, uma
depois da outra, das liberdad es de ser útil for a do empreg o e do
controle profissional é a experiência não mencionada, mas também a que mais
se ressente, de todas as que surgem com a pobreza modernizada. A estas
alturas, o privilégio mais significativo de uma condição social elevada pode ser
talvez um resto de liberdade para o desemprego criador, coisa cada vez
mais negada à grande maioria. A insistência no direito a ser tratado e
abastecido se converteu quase no direito das indústrias e profissões para
conquistar clientes, para pro vê-los com seus produt os e para apagar,
com suas entregas, as condições de um ambiente que torna úteis as atividades
realizadas no ócio. Desta maneira, paralisou-se de forma efetiva, por ora, a luta
por uma distribuição eqüitativa do tempo e do poder para ser útil a si
mesmo e aos outros, fora do emprego ou da conscrição. Menospreza -se o
trabalho realizado fora de empregos remunerados, se é que não se ignora de
todo. A atividade autônoma é uma ameaça para os níveis de emprego,
gera desvios e diminui o PNB. Portanto, é impróprio chamá -la «trabalho». O
traba lho já não significa esforço, labor, mas esse misterioso complemento
das inversões produtivas que constituem o cap ital. O trabalh o não
significa mais a criação de um valor recebido pelo trabalhador, mas
meramente um emprego que é só uma relação social. O ócio significa hoje
mais uma vagabundagem penosa que estar livre para fazer coisas úteis para
si mesmo e para o vizinho. Uma mulher ativa que mantém uma casa, educa
crianças e cuida das crianças de outras mulheres é bem diferente de uma
mulher que traba lha, não importa quão inútil ou daninho possa ser o produto
desse trabalho. A atividade, o esforço, a realização, o serviço feito fora de
uma relação hierárquica, não avaliável pelos padrões profissionais, são uma
ameaça para qualquer sociedade de mercado intensi vo. A geração de
valores de uso que escapam à medição efetiva limita não somente a
necessidade de mais mercadorias como também os empregos que as criam e
os envelopes de pagamento necessários para comprá-las.

O que conta numa sociedade de mercado intensivo não é o esforço por


agradar ou o prazer que brota desse esforço, mas o acoplamento da força
de traba lh o com o capit al. O que cont a não é conseguir a satisfação que
brota da ação mas o status da relação social que a produção exige, isto é: o
emprego, a situação, o posto ou a designação. Na Idade Média não havia
salvação fora da Igreja e aos teólogos se tornava difícil explicar o que
Deus fazia com os pa gãos que tivessem sido provadamente virtuosos ou
santos. Na sociedade contemporânea, similarmente, o esforço não é
produtivo a menos que seja realizado sob o comando de um chefe, e aos
economistas custa explicar a utilidade óbvia da atividade da gente quando se
acha fora do controle institucional de uma corporação, de uma agência para
voluntários ou de um campo de trabalho. O trabalho é produtivo,
respeitável, digno de um cidadão somente quando está planificado, dirigido e
controlado por um agente profissional que assegure que esse trabalho
responde a uma necessidade diplomada em forma padronizada. Numa
sociedade industrial avançada torna-se quase impossível procurar ou
imaginar o ócio como condição para um trab alho útil, au tônomo. A in fra -
es trutura da so ciedade es tá acomodada de tal forma qu e só os
empregos proporcionam aces so às ferramentas de produção e, à medida
que o estado vai tomando conta do processo, este monopólio da produção
de mercadorias sobre a geração de valores de uso vai-se tornando cada
vez mais rigoroso. Alguém pode ensinar as crian ças se tem licen ça para
isso, só se pode encanar um osso indo a uma clínica. O trabalho em
casa, a atividade artesanal, a agricultura de subsis tência, a tecnologia
radical, o intercâmbio de conhecimentos e seus similares, degradam-se ao ser
atividades para o folgazão, para o improdutivo, que é muito pobre ou muit o
ric o. Uma so ciedade que fomen ta uma gr ande dependência das
mercado rias conv erte assim seus desempregados em pobres ou
dependentes. Em 1945, nos Estados Unidos ainda havia, por beneficiário do
seguro social, 35 trabalhadores empregados. Em 1977, 3.2 trabalhadores que
percebem um salário têm que manter um aposentado que depende, por sua
vez, de uma quantidade de serviços muito maior do que a que o seu avô
aposentado poderia ter imaginado.

Conseqüentemente, a qualidade de uma sociedade e de sua cultura


dependerão da condição de seus desempregados: serão eles os cidadãos
produtivos mais representativos, ou serão dependentes? A opção ou crise
parece novamente evidente: a sociedade industrial avançada pode degenerar
numa guerra de trincheiras para restaurar o sonho dos anos sessenta; num
sistema bem planejado que distribua gota a gota as mercadorias e
empregos decrescentes, e que capacite os seus cidadãos para um consumo
mais padronizado e um trabalho mais impotente. Esta é a orientação
refletida nas políticas propostas pela maioria dos gover nos atuais, des de a
Alem anha até a Chin a, apesar de uma diferença fundamental de graus:
quanto mais rico é o país, mais urgente parece a tarefa de racionalizar o
acesso aos empregos e de obstaculizar o ócio útil que ameaçaria o volume do
mercado de trabalh o. Claro que também é poss ív el o opost o: numa
sociedade em que os trabalhadores frustrados se organizem para proteger
a liberdade e autonomia da pessoa para ser útil à margem das atividades
encaminhadas à produção de mercadorias. Porém aqui, novamente, esta
alt ernativa social depende de um novo tipo de competiç ão, racional e
cín ic a, qu e o homem comum tem de confrontar com as necessidades que
profissionais lhe imputam.
4
FLANQUEANDO O NOVO PROFISSIONAL

O poder profissional se acha hoje claramente ameaçado pela evidência


crescente da contraprodutividade dos bens e serviços por ele produzidos.
As pessoas começam a ver qu e uma hegemonia deste tipo as priva de seu
direito à participação política. O poder simbólico dos técnicos que, ao definir as
necessidades, arrebatam a competição da pessoa, vê -se agora mais
perigoso que sua capacitação técnica, confinada a servir as nec essidades
que eles mesmos criaram. Ao mesmo tem po, ouve -se um contín uo
clamor para a promulgação de uma legislação que possa levar-nos além
desta Era dominada pelo etos profissional: o clamor para que se substitua o
diploma profissional e burocrático pela investidura de cida dãos eleitos, em
vez de que seja alterada simplesmen te pela inclusão de uma representação
dos consumi dores nos órgãos que concedem as licenças; a exigência para
que se af rouxe o sistema de prescrição que rege as farmácias, nos currículos
e em outro tipo de supermercados pretensiosos; a demanda por um direito a
exercer a profissão sem diploma; a demanda por liberdades produtivas e não
meramente civis que facilitem ao cliente a avaliação de todos os
praticantes que trabalham por dinheiro.

Em resposta a estas ameaças os estabelecimen tos profissionais mais


importantes lançam mão, cada um a sua maneira, de três estratégias
fundamentais para assinalar a erosão de sua legimitidade e poder.

a) O traficante
A primeira dessas estratégias autodefensivas do profissionalismo está
representada pelo Clube de Roma. Com o fim de reforçar o sistema
industrial, a Fiat, a Volksw agen e a Ford pagam ec onomistas, ecólogos e
técnicos em controle social para identificar os produtos que as indústrias já
não deveriam produ zir. Também os doutores do Clube de Cos recomen dam
agora que se abandone a cirurgia, a radiação e a quimioterapia no tratamento
da maioria dos cânceres, visto que estes tratamentos tã o-só prolongam, se
é que não intensificam, o sofrimento sem prolongar a vida da pessoa
tratada. Os advogados e os dentistas prometem cont rolar, como nunca
antes, a competi ção, a decência e as tabelas de seus colegas profissionais.

Uma variante desta estratégia pode ser vista em alguns indivíduos e em


suas organizações. São os chamados profissionais radicais que lutam para que
todos os membros da profissão sejam assalariados e se proíba a prática
privada, perseguindo o mercado negro no serviço médico; fazem-se
defensores e líderes dos pac ie ntes que procuram obter mai s tip os
dif er en tes de ser viços da clínic a ou do seguro, e cheg am tão longe
que den unciam publicam ente a inutilidade de uma grande parte dos
serviços oferecidos e insistem em que. eliminando estes, os médicos poderiam
satisfazer as necessidades básicas com mai or eficácia. Por exemplo: um
grupo de doutores de uma provín cia do Can ad á ocid en tal prep ar ou um
in forme sobre umas duas dezen as de tratamentos médicos para os quais
o legislativo estava considerando um aumento de orçamento. Estes médicos
comprovaram que todos estes procedimentos eram dolorosos e perigosos, e de
nenhum deles existiam provas científicas de que fossem eficazes. Apesar desta
evidência, os legisladores, em busca de votos por meio de sua prodigalidade,
aprovaram os aumentos. Sem dúvida, a recusa dos legisladores em atuar
apoiando -se sobre este conselho médico aumentou para uma minoria o
prestígio das profissões ao ser comparada com o dos políticos. Mas a
abertura de avaliações deste tipo ao público, embora resultem
prejudiciais para o indivíd uo que rec eita, tendem a ref orçar a crença na
necessidade do juízo profissional. Pelo menos do médico que nos protege de
seus colegas.

O controle autocrítico de políticos profissionais é útil principalmente para


descobrir o incompetente grosseiro — o açougueiro — ou o charlatão completo.
Porém, como se viu uma ou outra vez, só protege o inepto e afirma a
dependência do público aos seus serviços. O médico «crítico», o
advogado «radical» ou o arquiteto «dedicado» só tiram clientes dos seus
colegas menos atentos que eles às excentricidades da moda e às prioridades da
política dos políticos. No primeiro instante, as profissões liberais venderam ao
público a necessidade de um serviço desta espécie ao prometer velar pelo leigo
que tem uma certa escolaridade, uma ética ou uma prepar ação mais
pobre dentro desse campo, muito mais pobre. Num segundo instante, as
profissões já tirânicas insistem em seu dever leg al de guiar e par ali sar
cada vez mais o pú blico e se organizam em clu bes que fazem alarde
de um alto g rau de consciência e impõem restrições ec ológicas,
ec onômicas e sociais. Esta ação enfraque ce a expansão posterior do
setor profissional, mas fortale ce a depen dência do público den tro
des se se tor. A idéia d e que as profissões têm o direito de servir ao
público é, ass im , de orig em muit o rec ente. A luta para estabelecer e
legitimar este direito chegou a ser uma das ameaças sociais mais opressivas.

b) A aliança dos benfeitores públicos


A segunda estratégia proc ura organizar e coordenar a resposta
profissional de uma maneira que seja mais prim ordialm ente ad equada ao
car át er multif ac e tário dos assim chamados problemas humanos. Esta
res post a procura também utiliz ar id éi as tomadas das análises de
sistemas e das investigações operacionais, com o objetivo de dar
soluções de um car át er mais nacio nal e mais univ er sa l. Um ex em plo
do que ist o significa na prática pode ser tomado ao Canadá. Há quatro anos,
o Min istér io da Saúde la nçou uma cam panha para conven cer o públi co
d e que gast ar mais dinheiro com méd icos não mudaria os p adrões
da enfermid ad e e d a mort e. Assinalava q ue a p erd a prem at ura da
vida se dev ia de forma esm ag ad ora a tr ês fatores: acidentes,
so br etudo em veículo s motorizados, doen ças do coração e câncer do
pulm ão, fatores sob re os q uais os méd icos eram imp ot ent es;
também su ic íd io s e ass assinatos, fen ômen os fora do controle médico. O
Ministério pediu novas formas de abor dag em da sa úde e de lim itação da
medic ina. A tarefa de proteger, restaurar ou consolar os que adoeceram por
um tipo d e vida d estrut ivo e pelo meio ambient e do Canadá atual,
foi assu m ida por um a grande variedade de profis sõ es novas e
antig as. Os arquit et os descobriram que tin ham a missã o de melhorar
a saúde dos canad enses; descobriu-se que o controle do s cães vad ios
er a um proble ma interdepartamental que exigia novos especialistas; que era
necessár io subm eter todas as c rianças c anaden ses a um a sér ie de
exames preventivos, realizados por mais de uma dezena de especialistas.
Uma nova biocracia corporativ a intensi fic ou o cont role para organiz ar os
canade nses com uma de dicação qu e a ant iga iatrocracia dificilmente
poderia ter imaginado. O refrão «É melhor gast ar dinh eiro para continuar
são, do qu e em médicos quando ficar do ente» pode ser ap ontado ho je
como a caçad a de novos trapac eiros qu e qu er iam qu e se gastasse o
dinheiro com eles.

A prát ic a da med ic in a nos Est ad os Unid os mostra um dinâmica


similar. Ali, uma forma coordenada de ap rox im ar-se d o prob lema d a
saúde dos n ort e-amer ic anos resu lt ou trem en damen te cust osa se m ter
sido especialmente efetiva. Em 1950, o assalariado típico entr egava
menos de duas semanas de seu salá rio anual ao s cuid ad os dos
profissio nais da saú de. Em 1976, a pr oporção do salário gasto com
saúd e elevo u-se até cinco a sete semanas por ano. Ao comprar um Ford
novo, está-se pagando mais pel a higiene do op erário do que pelo
metal que o carro contém. Entretanto, apes ar de todos es tes gast os
e esf orços, a ex pectativa de vida da população masculina adulta nãomudou
se nsi vel men te nos últ im os cem anos. É mais baix a do que a ex is ten te
em muit os país es pobres , e vem decli nan do, len tamente, mas com
fir meza, nos últimos vinte anos.

Nos lugares em que os padrões de enfermidade mudaram para melhorar,


este fato se deve principalmente aos estilos de vida mais saudável,
especialmente no que se refere a dietas. As inoculações e a administração
rotineira de receitas tão simples como antibióticos, contraceptivos ou as
seringas de sucção de Carman para os abortos, contribuem para a
diminuição de certas enfermidades. Mas estes tratamento s não ex igem
serviços profissionais. As pessoas não vão ficar mais sadias por se
sentirem mais solidamente casadas com a profissão médica. Entretanto,
muitos médicos «radicais» exigem uma biocracia desse tipo, mais
abrangedora. Parece não terem consciência de que um enfoque mais racional,
«solucionador de problemas», é simplesmente outra versão, talvez mais
refinada, da promoção do pobre.

c) A profissionalização do cliente
A terceira estratégia para conseguir a sobrevivência das profissões
dominantes converteu-se na moda radical deste ano. Assim como os profetas
dos anos sessenta babavam sobre o desenvolvimento, na ante-sala das
portas da abundância, os atuais fabricantes de mitos fazem barulho sobre a
auto-ajuda de clientes profissionalizados.

Vi anúncios de armários de banheiro, para remédios, que só abrem suas


portas para indivíduos que se automedicam devidamente autorizados. Apenas
nos Estados Unidos apareceram 2 700 livros, desde 1965, que nos ensinam a
ser nossos próprios pacientes, de maneira que so men te nec essitamos ver
o méd ico quando a ele valha a pena. Alguns livros recomendam que só se
permita aos diplomados de um treinamento apropriado, e depois de ter
passado em exame, comprarem e darem aspirina aos filhos. Outros suge rem
que os pacientes profissionalizados gozem de tarifas preferenciais nos hospitais
e desfrutem dos benefícios dos prêmios de seguro mais baixos. Somente as
mulh eres que tenham licença para praticar o próprio parto em casa
poderiam ter os filhos fora de u m hospit al, já que outras mãe s
profissionalizadas, se é necessário, podem ser processadas pelo mal
exercício praticado em si mesmas.

Vi uma proposta pseudo -radical que indica que esta licença se obtenha
sob os auspícios feministas e não médicos.

O sonho profissional de dar a cada hierarquia de necessidades uma raiz


popular escuda-se atrás dos estandartes da auto-ajuda. Presentemente, quem
o promove é uma nova tribo de técnicos da auto-ajuda, que substituiu os
técnicos do desenvolvimento dos anos sessenta. Sua meta é a
profissionalização uni versal dos clientes.

Servem de exemplo desta nova cruzada os técnicos norte-americanos em


construção que invadiram o México na última temporada. Faz alguns anos, um
professor de arquitetura de Boston veio ao México em férias. Um mexicano
amigo meu o levou atrás do aeroporto, onde, ao longo de doze anos, cresceu
uma nova cidade. De umas poucas cabanas passou a ser uma metrópole.
Meu amigo, também arquiteto, queria mostrar-lhe os múltiplos exemplos do
engenho camponês no uso de padrões, estruturas e refugo s qu e não
estavam nos livros de texto e que, portanto, não provinham deles. Não tinha
por que ficar surpreendido ao ver o colega bater centenas de rolos de
fotografias destas brilhantes invenções de amateur que faziam funcionar
estes bairros de dois milhões de habi tantes. Analisaram-se as fotos em
Cambridge e em fins deste ano especialistas norte-americanos de nova fornada
em arquitetura de comunidades se encontravam muito ocupados ensinando
à gente da Cidade Netzahualcóyotl quais eram seus problemas, necessidades e
soluções.
5
O ETHOS POS-PROFISSIONAL

A subsistência moderna é o inverso da necessidade e pobreza


profissionalmente atestadas. A expressão «economia de subsistência» se aplica,
em etnologia, à forma de sobrevivência de um grupo, marginalizado em si da
dependência diante do mercado, e no qual a pessoa fabrica o que utiliza por
meio de ferramentas tradicionais, no seio de uma organização social amiúde
herdada tal qual está. Entretanto, na linguagem corrente, a «economia de
subsistência» evoca uma cultura que organiza a impotência, engendra ilusões e
favorece a elite. Sahlins (Marshal SAHLINS, Stone Age Economics. New York,
Aldine-Atherton, 1972) demonstrou muito bem que a única sociedade em que o
espaço, o tempo e a autonomia se esgotam na luta pela sobrevivência é a
sociedade industrial. Não obstante, eu proponho, não sem vacilações, utilizar o
termo para falar agora de «subsistência moderna». Chamemos subsistência
moderna ao estilo de vida prevalecente numa economia pós-industrial na qual o
indivíduo conseguiu reduzir sua dependência do mercado e o fez
protegendo — med iante a utilização de meios políticos — uma in fra -
estrutura so cial na qual se usam técnicas e ferramentas principalmente
para gerar valores de uso que não são medidos nem medíveis pelos
fabricantes profissionais de necessidades. Em outro lugar desenvolvi uma
teoria sobre tais ferra mentas (La convivencialidad, Barral Editores,
Barcelona, 1975; Ed. Posada, México, 1978) e propus a expressão técnica
«ferrament a convivencial» para todo artefato fabricado engenheiralmente,
que estivesse orientado para a criação de valores de uso. Demons trei que o
inverso da progressiva pobreza moderniza da é a austeridade convivencial
que, gerada politicamente, protege o âmbito igualitário para a liberdade no
uso de tais ferramentas.

Uma reinstrumentação da sociedade contemporânea com o uso de


ferramentas convivenciais melhor que industriais, implica, entretanto, uma
mudança no enfoque de nossa luta pela justiça social; implica um novo tipo de
subordinação da justiça distributiva à justiça de participação. Na sociedade
industrial treinam-se os indivíduos em especializações extremas. Tornamo-los
impotentes para moldar ou satisfazer suas próprias necessidades.
Dependem das mercadorias para eles indicadas pelo administrador. O direito
de diagnosticar uma nec essidade, a rec eita de um remédio e, em geral, a
distribuição dos bens são a ocupação predominante da ética, da política e da
lei. Est a ênfase nos direito s a neces sidades imputadas convert e as
liberdades para aprender, curar ou mover-se por si mesmo em luxos
frágeis. Entr etanto, numa sociedade convivencial o oposto seria o verdadeiro.
A proteção da eqüidade no exercício das liberdades pessoais é a preocupação
dominante de uma sociedade qu e está baseada numa tecnologia radical:
da ciência e da técnica a serviço de uma geração de valores de uso mais
efetiva. Obviamente, uma liberdade distribuída tão eqüitativamente não teria
significação se não estivesse fundada no direito ao acesso igua l às
matér ia s de base , fer ramen tas e ben s. A comida, o combustível, o ar
puro ou o espaço vital não podem distribuir-se melhor que os alicates ou os
empregos, a menos que não se racionem sem impor tar as necessidades
imputadas, isto é, em máximas quantidades iguais para o jovem e o velho,
para o inválido e o Presidente. Uma sociedade baseada no uso moderno e
efetivo das liberdades produtivas não pode chegar a existir a menos que o
exercício desta liberdade não esteja limitado para todo s de forma igual.
APÊNDICE

Conferência pronunciada no Colégio ao


México em 26 de junho de 1978,
a convite do Instituto Goethe.

A presen ça de Freimut Duve no México me oferece a oportunidade,


como historiador e filósofo, de acrescentar algo a um tema tabu: «o direito
igual de todos à atividade útil, principalmente no caso em que não se tenha
emprego». É importante falar disto no México, onde já de forma sistemática se
enfoca o tema do desemprego através de políticas que tentam aumentar o
volume de empregos sem levar em conta que isto, paradoxalmente, tem o
efeito de ameaçar precisamente o direito ao desemprego útil. Por exem plo, o
esforço em aumentar o volume habitacional por meio da construção
institucional mina a extraordinária habilidade edílica para a autoconstrução que
ainda existe no México.1 A medicalização da saúde impede a modernização
científica da higiene popu lar.2 O diploma escolar e, ainda mais, o
profissional e a contínua degradam cada ano mais a situação do autodidata 3.
Em termos mais gerais, a expansão do emprego formal vai acompanhada de
uma desvalori zação de múltiplas atividades que se exercem fora de toda a
função assalariada.4

Esta contraprodutividade paradoxal é um tema importante no


desenvolvimento da força de trabalho, que emergiu na literatura mundial dos
5
últimos cinco anos: na Alemanha, Weizsaecker fala do direito ao Eigenarbeit
e convocou para fins de 1978 na cidade de Kass el um congres so so bre o
mes mo ass unto. Também na França alguns ideólogos socialistas começam a
preocupar-se com o direito «au chômage créateur». 6 Como resposta ao
recente referendo que se realizou no Estado da Califórnia, no qual se votou
2 a 1 a favor de uma redução dos impostos para o financiamento do setor de
serviços, publicou-se, sob os auspícios do governo de Jerry Brown, um relatório
intitulado «Trabalho e tecnologia apropriada: um modo de vida adequado»
(Right Livelyhood, Work and Appropriate Technology 7). Por outro lado, na
India se reconheceu publicamente, talvez com maior radicalismo, a necessidade
de inverter as políticas para o desenvolvimento da força de trabalho. 8 Faz
três anos que o Indian Social Science Council estabeleceu um programa
interdisciplinar para explorar a modernização da produção social,
precisamente enquanto ela se distingue da produtividade econômica.

Em países como o México, onde a força de trabalho está sendo


encaminhada predominantemente para a criação de novos empregos, existe um
silêncio sobre o direito a um «des-emprego criador» pleno de atividades úteis e
eficazes, que poderia apresentar outr a alter nat iva para a solução desse
problema. Há uma série de obstáculos específicos que impedem sua
discussão e aos quais vou me referir no final desta palestra. Como
intr odução contarei a forma como Freim ut Duve e eu nos vim os
em brulh ados nes te tema.

Conheci Duve em 1972, como editor da coleção RoRoRo Aktuell. Esta série
é lançada a um ritmo de dois li vros por mês; é uma ed iç ão barata que
se ven de em liv raria s e ban cas de jornais com uma tiragem que oscila
entre 10 000 e 15 000 exemplares. E uma coleção composta por ensaios,
documentos, reportagens e estudos políticos de orientação esquerdista que
atualmente constitui uma enciclopédia de 180 volumes nos quais se reflete a
vida pública alemã desta década. Naquele tempo, RoRoRo Aktuell publicou
meu ensaio Energia e Eqüidade 9, originalmente escrito em francês para
Le Monde, e Duve me ajudou a adaptá -lo à mentalidade alemã. Neste
ensaio, to mando exemplos do setor de transportes, desenvolvi uma tese
baseada em algumas observações feitas por André Gorz. 10

Segundo Gorz, o desenvolvimento meramente técnico de alguns processos


de produção geram tal especialização de funções dentro da sociedade, que
os inconvenientes derivados desta especialização da força de trabalho
superam qualquer benefício que o processo de produção possa exigir. Em meu
ensaio procurei especificar dois destes inconvenientes que aparecem em toda
sociedade na qual um número dinamicamente crescente das necessidades
básicas, seja de bens ou de serviços, se definem em termos de produtos
gerados industrialmente; procurei estabele cer que qualquer sistema de
transporte que concentre mais de uma quantidade crítica de energia num
passageiro provoca inevitavelmente não só novos tipos de estratificação social
vinculados a um tipo de consumo hierárquico, como também novas formas de
importân cia radical de mover-se a pé.

Concretamente, demonstro empiricamente como em certos grandes


técnicos existem rectores de concentração de energia sobre uma unidade de
produto, nos quais aparecem umbrais críticos. Quando se concentra mais de
uma quantidade crítica de energia na produção de uma unidade do produto,
a utilização desta tecnologia funciona inevitavelmente como um meio de
concentrar privilégios numa minoria, negan do e paralisando ao mesmo
tempo a capacidade das maiorias de criar valores de uso homólogos a ditos
privilégios. 11 Por exemplo: as pessoas da cidade Netzahualcóyotl, com os
impostos que pagam, não só contribuem para fin anciar nossas viagen s
desde o aeroporto como, além do mais, elas mesmas têm que dar uma
volta diária a este aeroporto para a qual os pés já não lhes servem. Um
ambiente criado para conveniência dos motorizados destrói precisamente
aquelas condições ambientais nas quais se funda o valor de uso dos pés.

Foi pois a partir desta discussão que Duve e eu nos tornamos amigos.
Posteriormente, em 1974, e sob a direção de Duve, fundamos uma nova
revista, cujo conselho editorial integramos, entre outros: André Go rz, Joachim
Isr ael, Joachim Steffer 12. Nó s a chamamos Tecnologia e Política 13
,
aparece trimestral mente e neste momento se está preparando o 12º volume.
A revista em si está balizada por dois marcos, um empírico e o outro ético.

O primeiro marco, o empírico, fundamenta-se em que as opções técnicas


dentro do sistema industrial implicam sempre um compromisso político. Fato
14
demonstrado tanto na medicina como na educação, na construção como no
transporte. Exemplo: a opção de tornar obrig atória até os 15 anos a
assistên cia ao sistema escolar não só aumenta a percentagem de mexicanos
que se sentem culpados de não ter cumprido esta obrigação como também
aumenta os tipos de emprego nos quais se discrimina as pessoas que
care cem de um depósito suficiente de capital educacional. Exemplo: cada novo
remédio que se permite ser comercializado com uma etiqueta que diz
«tomar s omente sob pr escrição médica» não apenas cria um novo elo de
dependência com o médico, como tam bém é um medicament o qu e se
vende sem que seu modo de usar e seus riscos estejam escritos de forma
acessível ao leigo, ou seja, traduzido para o mexicano por alguém como Rius.15

Os editores da nova revista estão convencidos que, pelos efeitos


políticos que as decisões técnicas têm, para participar na política se exige do
cidadão atual um esforço contínuo para compreender, discutir e submeter a
juízo as implicações políticas derivadas das opções técnicas — se se trata
de opções que o governo mesmo decida tomar ou tolere que se tomem
dentro do setor privado, se este existe. Nossa revista quer instrumentar
este tipo de análise cuja aplicação na política constitui um novo tipo de
atividade cívica.

O segundo marco para a seleção de contribuição a nosso Magazin é Uma


postura de ordem ético-política: tomamos francamente uma posição
valorativa. Segundo nosso parecer, uma nova técnica representa progresso
quando e só quando através dela é possível estabelecer um maior equilíbrio
entre dois tipos de justiça que se complementam: por um lado, a igualdade
no acesso aos produtos e aos recursos da sociedade (just iç a distrib utiv a
nos ben s esc ass os) ; e por outro, exatamente com a mesma hierarquia,
um âmbito de au tonomia ig ual para todos na criação de valores de uso
(justiça participativa). Consideremos os avanços técnicos como uma ameaça
de regressão polític a quando es tes im põem a concen tração do poder
numa das duas dimensões que a justiça protege, quer dizer, quando as
exigências de uma técnica tornam impossível ou a igual distribuição da
riqueza ou a igualdade no exercício das liberdades. A liberdade para criar
seus valores de uso daqueles que têm menos riqueza sempre tem —
segundo pensamos — prioridade sobre a criação e a distribuição de novos
níveis de riqueza.16

Tendo fixado este marco, estabelecemos algo que se tornou imprescindível


na década dos setenta: um foro par a a avaliação polít ica de um númer o
de correntes analíticas conve rgentes. Refiro-me a quantos en focam o
im pacto que a téc nic a desempenha sobre o meio amb iente e que se
esgarçam num espectro que vai desde o romanticismo verde até o
ecofascismo.17 Refiro-me e quantos enfocam principalmente por cima dos
quais a dimensão in stitucional geral desutilidades marginalmente conscientes
e, como conseqüência, efeitos simbólicos mais que técnicos. 18 Dentro deste
contexto, refiro-me às correntes que analisam diretamente a diferença entre
dois tipos de progresso técnico: aquele que permite maior eficiên cia na
produção de riq uezas quan to a bens de serviços, e aquele outro
progresso técnico orientado essencialmente para uma maior eficácia na criação
de valores de uso não destinados a intercâmbio. Refiro-me c om tud o ist o à
modern iz açã o da sub si stên ci a . 1 9

Estes dois marcos permitem a politização destas correntes, às quais as


ideologias tradicionais tendem a negar legitimidade política, e os economistas
operacionalidade técnica. Mas ao falar da modernização da subsistência, ou
seja, da desescolarização da competição, da desprofissionalização da medicina,
da descentralização da produção, da redução radical do uso da energia, da
modernização da autoconstrução, tropeçamos inevitavelmente numa série de
objeções. Dentro destas objeções existe uma que põe fim a toda discussão: a
acusação de que qualquer destas políticas fomen taria a desocupação. Meu
objetiv o é explicar porque tal conseqüência não dever ia espantar -nos
sempre e quando este desemprego pudesse distribuir -se com igualdade
dentro de uma sociedade que reconhecesse o igual direito de todos à
ocupação eficaz do desempregado.

Tanto o professor Reyna, do Colégio do México, como o Dr. Turtur da


Goethe Gesellschaft, ao convidar-me, me aconselharam a mudar o título desta
conferência. Porque quem toca neste tabu provoca sobretudo que todos os
profissionais e os sindicalistas que viv em dest a id en tif icação a def en dam.
A so mbra deste tabu mantém-se isenta de controvérsias a identificação do
trabalho com o emprego assalariado, o que envilece a mais pessoas do que
enobrece. Assim como a expansão da escolaridade degrada o autodidata,
assim como circuitos interiores marginalizam da urbe o peão, assim o
favorit ismo do bic o, o qual passou já um nível crítica, degrada a um sem-
número de ocupações das quais no M éxico ainda vive uma grande
maioria. Esta forma de valorizar uma ocupa ção pelo salário que ela retribui
deprecia todas aquelas atividades que Sahlins 20 chamaria parte da
economia doméstica, que a escola de Chayanov21 chamaria economia
camponesa, que Polaniy22 chamaria intercâmbio não-mercantil, que Penty 23
chamaria o estilo da produção pós-indu strial, termo com um sentido
oposto ao que empregou Daniel Bell, que Boeke teria chamado necessidades
sociais opondo-as às necessidades econômicas24 . O tabu encobre que o
desempre go serve para monopolizar a proteção das leis, a respeitabilidade
política e o financiamento público, a favor das infra-estruturas que servem
somente aos tipos de trabalho feito por assalariado s. Este tabu garante
que somente aquelas atividades que se deixem administrar sejam
dignificadas como trabalho.

A enfermeira que dá ao bebê uma mamadeira Nestlé, trabalha; a mãe que


dá à luz e amamenta o filho, não . E tão profund o o prejuízo em favor do
valor econômico do emprego, qu e se torna difíc il pr omover um tip o de
des en volv im en to no qual o emprego diminua, e no qual o progresso técnico
sirva até onde for possível, para aumentar a eficácia das atividades que não se
desejam contabilizar. Há muito pouco tempo era difícil ser ouvido ao defender
esta alternativa de desenvolvimento. Imediatamente replicava-se que não há
forma de inverter um processo evolutivo sem cair no Luddismo, ou no
romanticismo, ou na expansão da empresa privada, ou suspeitavam que se
pudesse estar a favor das idéias de Milton Friedman25 ou de algum de seus
alunos como Gary Becker26, ou de seus propagandistas vulgares como Le
Page27 Ideólogos e economistas de direita e de esquerda estavam
absolutamente de acordo em que o nex o indissolúvel entre o progresso
científico e a expansão de produtos mensuráveis em termos econômicos,
como também sobre a necessidade de que exista um crescimento
indef inido na produção de bens e serviços como condição indispensável para
a realização da justiça. Ambos concordaram ingenuamente que a justiça se
derivaria do crescimento econômico futuro. Este antigo paradigma está -se
que brando, embora isto não se reconheça publicamente devido ao medo de se
enfrentar uma das conseqüências mais óbvias: a frustração inevitável das
políticas que implementam o direito ao trabalho, é claro, como emprego.

A mim me parece que o tabu que envolve toda a discussão sobre o


desemprego é o resultado de um nó de ambigüidades. Talvez possamos dissipar
esse tabu identificando quatro delas:

1. A primeira ambigüidade deriva do fato de que «desocupação» designa


tanto uma situação que a sociedade imputa a alguns de seus membros como
uma experiência muito pessoal. A mesma etiqueta de «desocupado» poderia
ser aplicada amanhã a um executivo assim como a um pedreiro, ainda que a
conotação emocional que tem, segundo o curriculum vitae que estigmatizou a
personalidade do desocupado, seja muito diferente. Para o executivo a
dispensa significa a oportunidade de decidir -se finalmente a terminar seu
grande livro, e possivelmente conseguir algumas consultorias bem
remuneradas. Para o pedreiro, a perda de trabalho não somente o priva
de seus ga nhos mas também dos prazos mensais para pagar a casa, com os
quais já se comprometeu. Mas existe uma terceira forma que afeta o
desocupado possuidor dos diplomas menos apreciados: não somente o priva de
recursos e contatos, como também o priva de uma parte muito importante de
sua dignidade. Segundo os estudos que temos, informa-se que muitos dos
desocupados com título acadêmico conseguem esconder sua situação
inclusive frente à mulher e os filhos. O direito do desempregado em obter uma
compensação estabelece uma realidade financeira, política e técnica que é de
uma ordem distinta ao sentido de frustração e de vergonha que faz o
desocupado levá-lo à simulação.

Atrevo-me, não sem pouca vacilação, a falar da desocupação, pois me sinto


imune à vergonha do despedido. Uma vez que se alcançou um título
suficientemente elevado na ciência, no sindicato, no parti do ou na
administração, sem dúvida se pode perder os lu cros, mas nun ca se
sentir á a im potên cia e a deg radação de quantos começ aram contig o a
su a carreira e tiveram de abandoná -la. O que significa para eles a perda
da «sorte» será para ti sempre uma experiência que poderá ser substituída. Eis
aqui uma fonte importante de ambigüidade, já que toda a literatura sobre a
desocupação está escrita por gente que conta como nós com uma grande
inversão de educa ção em si mesmos. Até nas pesquisas com que se
mede a desocupação se incorporam as experiências especializadas e muitas
vezes alienantes de uma elite de capitalistas do saber.

2. Uma segunda ambigüidade sobre a desocupa ção deriva da novidade


do termo e do conceito, unemployed, no sentido de «sem emprego». O Oxford
English Dictionary diz que a expressão foi utilizada pela primeira vez por
Ruskin, em seu livro Unto his Last, publicado em 1860. Raymond Williams28
menciona este assunto em seu brilhante livrinho, sobre as palavras-chaves.
Nele cita um conhecedor supremo dos arquivos vitorianos, G. M. Young 29 ,
o qual nos diz: «o desemprego ia além de qualquer conceito de que os
primeiros reformadores da era vitoriana dispunham devido em grande parte a
que não tinham nenhuma palavra para ele». Alguns radicais sem dúvida a
usaram em torno de 1830, mas segundo o OED, «unemployment» não foi
usado comumente antes de 1895. A palavra ganhou importância mais tarde
quan do Beveridge, em 1909, a pôs no título de seu primeiro livro. 30 Sobre o
termo castelhano, Rosenblat diz: «os idiomas indo-europeus ou o latim não
nos deram nenhuma expressão para designar ao sem-trabalho». Havia pois
que criá -la. Na Espanha predominou a idéia do aposentado e do chamado
parado. Mas na América parado é aquele que está sem andar. Houve que
recorrer a outra imagem, e se diz desocupado, qu e não so a muito bem
em es panhol, porque é as sociada a outras de seu gênero.» No Estado de
Mo relos (México), desocupado designa principalmente a uma pessoa que não
faz nada, enquanto que o desempregado é aquele que não tem um bico.31 Nem
Francisco Santamarla, nem Martín Alonso o mencio nam. Suponho que
desemprego seja um anglicismo útil e imprescindível numa sociedade,
onde muitíssimos empregados não estão ocupados, e onde a gran de parte
do trabalho é realizado por gente sem emprego. Este termo tão recente
nos obriga a refletir. Até poucos anos antes da primeira guerra mundial, a
desocupação significou, nos idiomas europeus, uma condição, uma atitude
pessoal: o ócio, o descanso, a preguiça. Só quando ela se concretizou como
a realidade de um grupo de pessoa s, es te ter mo veio a designar uma
situação social: isto é, tanto a categoria econômica dos não assalariados que
procuram emprego como também os da categoria aos quais se atribuem
empregos, segundo uma nova moral, o dever de procurá-lo.

Para evitar confusões, suponho que seria impor tante distinguir três
grandes passos pelos quais as atividades assalariadas adquiriram aquele
significado com o qual hoje se define o desempregado dentro de uma
categoria social. Primeiramente, alguns dos grandes human istas dos fin s do
Ren ascim en to, como Giordano Bruno e Campanella, afirmaram claramente
a superioridade da vida ativa em oposição ao contem plar passivo. O passo
segu inte 32 ocorreu, segundo Hanna Arendt, quando «o trabalho se
transformou, da atividade mais humilde à atividade mais apreciada, no
momento em que Locke afirmou que o trabalho é a fonte de toda riqueza».
Não se deve esquecer que mesmo para Adam Smith a terra e o capital também
contaram como fonte de valor. Somente com Ricardo o trabalho
institucionalizado se converteu na fonte determinante de todo valor. Daí
chegamos a Marx, o qual define o homem como animal laborans.
Schele r 33 desc rev eu por su a vez como a passa gem do trabalho de
«sofrimento» para «direito» do homem ao trabalho reflete uma
transformação sem precedentes na visão social do que o ho mem é. Daí
em diant e, falt ará ao homem a poss ib ilid ade de rea lizar su a
humanidade se não tem a possibilidade de produzir bens ou serviços.
Agora o homem está feito para o emprego. Aque le que não tem emprego
carece da condição básica para ser fonte de valor. Pela primeira vez na
história, o trabalho é digno e confere dignidade. O desemprego converteu-se
num mal, no Ocidente é causa de um desajuste da sociedade e é uma forma
de exploração ao se rviç o da es tabilidade dos preç os, nos países
socialistas é uma falta moral ou psicológica do indivíduo. A transformação de
uma forma de «sofrimento» com a qual o homem tem que se envolver em
ativida de de suprema e fundamental dignidade, numa atividade
assalariada, é fonte de uma contínua ambigüidade quando se discute o
desemprego. A história das lutas ideológicas e esforços literários no sentido de
realizar esta transformação de valores constitui um campo de estudos
importante. 34

3. Uma terceira fonte de ambigüidade é a forma oposta na qual no México a


desocupação afeta a dois setores da maioria: por um lado aqueles que foram
ou poderiam ser despedidos, e por outro aqueles que nunca foram
contratados de forma mais ou menos regular. Aos primeiros, a dispensa
os ameaça nos seus ganhos e em sua dignidade, como já vimos; aos últimos
também, mas por motivos muito distintos dos que afetam os «diplomados
pela vida», os quais têm uma espécie de imunidade. Qu em sempre viveu
à margem do salário mínimo e marginado do mercado, sobrevive por que sabe
arranjar as coisas. Para ele, a desocupação não é nem o cavaleiro apocalíptico
que espanta o recém-saído da escola, nem tampouco a enfermidade endêmica
e cíclica que o economista diagnostica e submete a suas terapias.

Paradoxalmente, cada programa orientado para a criação de empregos


numa si tuação como a nossa, tem como efeito não -intencional piorar o
modo de viver daqueles para os quais não alcança o volume das praças
criadas. Até agora, a construção de novas unidades habitacionais populares
criou inevitavelmente novos impedimentos para a autoconstrução. Uma grande
parte das pessoas continua vivendo em casas autoconstruídas pela mão-de-
obra disponível na famí lia ou no bairro. Mas a ex pan são da construção
in stitucional muda o status da autoconstrução, ou seja, transforma a casa
em choça insalubre. Os regulamentos exigem agora qu e um arquiteto
aprove o plano, exigência absurda para quem a única forma de construir é a
autoconstrução. Os regulamentos de construção que são garan tia para
que exist a um mínimo de qualidade nas casas feitas pelo INFONA VIT não
deveriam ser aplicadas às casas autocons truídas. Cada dia que passa, a
luta contra a desocupação e a favor dos salários condena os não
assalaria dos a novas frustrações.35 Degrada seus esforços, precisamente
quando o valor de uso em que acreditam es tá competindo com um bem
que a nação decidiu que todo cidadão deveria possuir. Esta paralisia da
produtividade social, substancial e autônoma deriva do impacto que o
monopólio dos produtos tem sobr e a definição das necessidades, assim
como o impacto que o emprego tem sobre a definição do trabalho.

4. A quarta fonte de ambigüidade sobre o futuro do desemprego der iva


das visões opostas sobre o vetor no qual se desenvolve a composição da
força de trabalho. Segundo uma destas visões, não há nem processo
econômico nem progresso político, sem a redução deste vetor terciário. A
irreversibilidade da direção deste vetor era um dogma que nos anos
ses senta unia os economistas capitalistas e socialistas aos
rep resen tantes dos povos ric os e pobres, aos sociólogos e aos
politólogos. Os protagonistas deste dogma são hoje em dia os decanos de
nossas facul dades. A unanimidade ideológica que compartilharam nos anos
sessenta, leva-os hoje em dia a unir-se numa fren te comum e os conver te
em in im ig os de uma visão alternativa segundo a qual este vetor está em
processo de inversão — o setor de serviços já ultrapassou sua assíndota.36 A
nova visão da evolução da forma de trabalho se impõe rapidamente como
resultante de uma meia dúzia de «descobertas» recentes. Todas são
descobertas do óbvio e todas são argumentos para prever a inversão na
dinâmica da força trabalhadora 37: a escassez dos recursos natu rais, a
limitada tolerância da biosfera38, as deseconomias implícitas em muitos tipos
de crescimento institucio nal39 , a contraprodutividade provocada pela própria
finalidade deste crescimento. 40 Prever alternativas pa ra a educação41, a
medicina42 e em nível de expansão crítica dos setores de serviço social 43, a
inversão na evolução da especialização do trabalho 44 e a contratação do
setor terciário já são idéias unicamente de românticos chinófilos Marco Pólo da
Califórnia, sem a expectação racional comum de correntes de análises
convergentes.

Desse modo, a contração do setor terciário e a maior intensidade


laboral na agricultura e na manufatura podem ter para mim, como filósofo, dois
significados opostos, dependendo de qual seja a idéia fundamental que
fazemos da economia. Se por economia entendemos a ciência que se
especializa em medir e ordenar a produção da riqueza e se reduzimos as
necessidades básicas a carências que se podem eliminar por meio do
fornecim ento de bens e serviços, então sim, continuaremos considerando
trabalho so mente as atividades padronizadas e administráveis que podem
produzir resultados operacionalmente verificáveis. Neste sentido, a involução da
estrutura do emprego poderia levar o conceito de trabalho a uma evolução
ulterior na linha traçada desde Ricado até Daniel Bell. Esta evolução
consistiria numa expansão do controle social além do emprego formal,
assim como sua extensão sobre as atividades pessoais realizadas quando a
pes so a não se en cont ra dentro de uma função assalariada, como
caminhar para o trabalho, fazer exercício para evitar transformar -se numa
carga social, tomar um remédio sem necessidade de consulta, ler para
aumentar a própria produtividade. Seriam todas as atividades que, nesta
hipótese, se transformariam em contribuições medíveis do produto
centralmente governado. Pela expansão da ética do trabalho às atividades de
consumo, o valor e a dignidade até agora reservados ao trabalhador podem
ser conferidos ao consumidor. O consumo disciplinado por prescrição seria
assim a nova e suprema forma de ser úteis à sociedade. O estudante, o
paciente ou o comprador em qualquer supermercado se veriam en tão a si
mesmos, precisamente em suas atividades de consumo, como contribuintes do
volume total de bens e se rviç os que a sociedade produz e admin ist ra.
Através desta expansão da economia política à totalidad e da vid a, não
so men te todo ato de produção como também todo ato de consumo ou uso
seriam desempenhados como se fossem parte do emprego. Não há que
esquecer que essa identificação de toda ação humana como contribuição à
economia pode ser prescrita através de dois caminhos escandalosamente
distintos: o chinezinho agachado pelo dogma maoísta que procria segundo as
necessidades da economia revolucionária dando legitimidade a sua
atividade sexual e transformando-a em «trabalho», com a mesma ló gic a
que permit e a Ga ry Becker 45 e a outros «Chicago boys» formalizar o
mercado sexual.

Em oposição a est a rad icalização do an imal laborans, na qual até a


obtenção do orgasmo é uma forma de trabalho sacralizado por meio da
contabilidade econômica, existe uma visão alternativa. Segundo esta, o
campo da economia abarca o ordenamento das circunstâncias nas quais,
com a maior eqüidade, cada um — mas antes de tudo os mais fracos e
indigentes — podem satisfazer com sua própria atividade e colaboração
primária suas necessidades que dentro deste processo satisfatório tomam
forma concreta. Ne st a visã o alt er nativ a, a le i proteg e e asse gura, antes
de tudo, as condições que elevam o nível de subsistência que se encontram
articuladas à margem da contabilidade. Deve ser uma tarefa da luta política
impulsionar o desenvolvimento daquelas tecnologias que permitam uma
devolução progressiva do emprego ao campo da atividade pessoal. Nesta
visão da realidade, tanto a justa distribuição de bens como a igual distribuição
das condições para tais atividades autônomas depende do decresc imento da
produç ão de bens e ser viç os e da lim it ação deles — se mpre e quando
for possível — a aqueles produtos que não só se podem produzir para todos
como também fomentam o desemprego criativo. Lançando mão de um a
idéia de Habermas 46 : se não queremos negar valor a toda atividade que não
seja trabalho do empregado, estamos obrigados a desenvolver uma teoria
filosófica da ação social humana, e dentro deste marco encontraremos um
rincão para uma nova teoria do traba lho.

Para terminar, a desvinculação das atividades produtivas da área do


emp rego amea ça a todos os feudos fechados cuja existência está
fundamentada na per cep ção da mais-vali a. Quer o dizer a todo mundo
que controle os meios de produção, em nosso nív el de desen volv im en to,
antes de mais nada, a todos os «capitalistas do saber», ou seja, aos que
pertencem aos feudos profissionais. Me parece que é por esta razão que
qualquer discussão sobre este tema é sumamente difícil em países como o
México, onde o nível e o tipo de desenvolvimento ignoram por um lado a
existência de enormes grupos excluídos do «mercado do emprego», enquanto
que por outro lado induzem a um otimismo ingênuo que nos países ricos já é
coisa do passado.

Para romper este isolamento dos países que não são nem pobres nem ricos
de uma importante discussão mundial, para dar finalmente dignidade de
disciplina coerente ao estudo de um novo paradigma no uso do progresso
técnico, tem-se de fazer o esforço de familiarizar-se com um novo tipo de
literatura ausente de nossas bibliotecas. É uma literatura muito recente —
nem eu mesm o me havia dado conta da ordem de magnitude e de
seriedade crít ica que já existe neste campo emergente. Minha atitude
mudou somente quando há algumas semanas Valentina Borremans me
entregou o manuscrito de um livro que está preparando: um guia
destinado a bibliotecários, uma lista de bibliografias, revistas, e manuais para
o estudo de técnicas modernas criadas para aumentar a capacid ade pesso al
na criação de valores de uso . Abrange mais de 800 títulos em quase sua
totalidade ausentes de qualquer biblioteca mexicana47. Recomendo-lhes o
estudo deste novo campo se não por convicção pelo menos por
oportunismo — porque para lá caminha o futuro.
NOTAS

Durante a discussão provocada por minha conferência no Colégio do


México, foi-me pedido, em três ocasiões diferentes, um guia da literatura
na qual se apóiam meus argumentos. Prometi aos participantes que
acrescentaria a meu texto as leituras que teria recomendado num
seminário, cujo programa tivesse sido traçado por minha conferência.

1. O México, tal como Cuba ou o Brasil, optou pela habitação


construída «para o indivíduo» que tem emprego, embora seus
sistemas políticos sejam tão diferentes. A alternativa de modernizar
a construção habitacianal «pelo próprio indivíduo», privilegiando a
autoconstrução, foi descartada. Nos países acima mencionados, a
autoconstrução tem sido considerada sempre não somente um
obstáculo público e antieconômico como também um conflito com as
políticas do governo. LESUR, Luis, y GONZALEZ de LEON, Teodoro.
Investigación de la vivienda en 11 ciudades del país. México: Instituto
Mexicano del Seguro Social, 1967 e ss., é um guia enciclopédico,
principalmente quantitativo que arrola os níveis de autoconstrução
urbana há 25 anos em 11 cid ades do Méx ic o. TURNE R, John F. C.
Housing by People: Towards Autonomy in Building Environments.
Preface by Colyn Ward. London: Marion Boyars, 1976; New York:
Pantheon, 1977. Trad. francesa, Paris: Le Seuil, 1978, analisa
claramente a distinção entre construção «para» e construção «pelo»
habitante. Lewis Mumford e Jane Jacobs evidentemente contribuíram
para a perspectiva pela qual Turner analisa o processo de construção
da casa em vários países. RUDOFSKY, Bernard. Architecture
Without Architects: A Short Introduction to Non -Pedigree
Architecture. New York: Doubleday, 1964. Paperback. O fato de
contemplar as fotografias deste volume contribuiu para muitas
pessoas superarem o preconceito de que o desenvolvimento técnico
tenha que depender necessariamente da habitação criada por
profissionais. Para um intercâmbio de inf ormações úteis para a
defesa e expansão do direito à autoconstrução, 3 são as redes de
informação internacional: a) A Housing Network Exchange in London
(NEL) c/o J. F. C. Turner, Development Planning Unit, 9 -11
Endsleigh Gardens, London, WC IH OED. Inglat erra. b) TRANET,
Transnational Network for Appropriate/Alternative Technology, c/o
William Ellis, P.O. Box 567, Rangeley, Maine 04980. USA. c) The
Planners Network, c/o Chester Hartman, 360 Elisabeth Street, San
Francisco, CA 94114. USA.
2. Esta idéia marcou fundamentalmente as políticas da Organização
Mundial da Saúde desde que Halfdan MALHER a dirige, há três
anos. NE WELL, Kennet h W., ed . Hea lt h by the People, Genebra,
OMS, 1975, ilustra o tema. Este argumento se desenvolveu no
simpósio da Dag Hammarskjöld Foundation de Uppsala, na Suécia, e
foi publicado em 1978 sob o título «Another Development in
Health». Recomendo particularmente as contribuições de D.
BANERJI e «The Inverse of Managed Health» por Valentina
BORREMANS em Development Dialogue, n° I, 1978.

3. Durante o período de maior intensidade no crescimento dos


sistemas sociais, faz já mais de meia geração, uns quantos autores
concentraram sua atenção principalmente na degradação das
oportunidades que para obter trabalho uma maioria dos cidadãos
sofria, a qual erá resultado direto da expansão da assistência escolar
obrigatória e gratuita, e. g.: GOODMAN, Paul. Compulsory
Miseducation and the Community of Scholars. New York: Horizon
Press, 1964; YOUNG, Michael. The Rise of the Meritocracy. London:
Thames and Hudson, 1958; BOURDIEU, Pierre, et PASSERON, Jean
Claude. Les héritiers: les etudes et la culture. Paris: Les editions de
Minuit, 1964. Ao analisar os efeitos secundários que a escolaridade
produz no autodidata, verificou-se que esfa o exclui não só do
mercado de trabalho como também tende a tirar-lhe o direito à ação
autônoma tradicional. Hoje este tema faz parte já da sociologia
educacional. Para um resumo da bibliografia, ver SACHS, Wolfgang.
Schulzwang and Soziale Kontrolle: Argumen te fuer ein e
Entschulu ng des Lernens. Frankfurt am Main: Verlag Moritz
Diesterweg, 1976. Na atividade já é necessário também reconhecer
os efeitos análogos que resultam de algumas novas formas de
educação, tal como a educação permanente, e a educação de
adultos. Contribuições sobre o tema em: DAUBER, Heinrich, et
VERNE, Etienne. L'école a perpétuité. Paris: Seuil, 1977. Para manter-
se em dia sobre as publicações, litígios e reivindicações cujo principal
objeto seja a defesa do adulto contra a degradação implícita de sua
competição pela preferência em competidores que consumiram
educação de adultos, ver: Second Thoughts, Basic Choices Inc., 1121
University Avenue, Madison WI 53715, USA.

4. TERRAZAS, Edu ardo. Códic e so lidarid ad para la paz y el


desarrollo. Publicação realizada para a Reunião Especial do Clube de
Roma celebrada em Guanajuato, México, em julho de 1975. Ver as
lâminas «Consecuencias del modo industrial de producción» e
«Características de Ias herramientas de producción para la
participación de las mayorías». Nuevas Alternativas, Córdoba 23A,
México, 7, D.F.
5. BIERTER, Willy, and WEIZSAECKER, Ernst v. «Strategien zur
Ueberwindung der Arbeitslosigkeit der Gesellschaft ste hen
tiefgreifende Wandlungen bevor». Technologie and Politik, Vol. 8,
agosto 1977, pp. 57-74.

6. Ver a introdução a uma seção especial de Pierre ROSANVALLON em


Le Nouvel Observateur, nº 670, 12/18 setembro 1977.

7. YUDELSON, Jerry, and NELSON, Lynn. Right Livelyhood, Work, and


Appropriate Technology. Report to the California Office of
Appropriate Technology, 1978, constitui, por suas 150 citações de
estudos recentes, um importante repertório sobre a eficácia da
intensidade de trabalho na produção.

8. INDIAN SOCIAL SCIENCE RESEARCH COUNCIL. «Commission


on Alternative Development». Para informação. escrever a J. P.
NAIK, 1. I. P. A. Hostel Building, Indraprastha Estate, Ring Road,
New Delhi I. Índia.

9. Estes ensaios estão por aparecer no México: ILLICH, Ivan. El


desempleo criador e Energia y equidad. México: Editorial Posada,
1978.

10. GORZ. André. «Technique, techniciens et lutte de classes». In


Critique de la division du travail. Ed. by A. Gorz. Paris: Editions du
Seuil, 1973.

11. DUPUY, J. P. e ROBERT, J., elaboraram La trahison de l'opulence,


Paris: PUF, 1976, utilizando sempre o transporte como ex emplo
ilustrativo. Jean ROBERT (Apartado 698, Cuernavaca) está
atualmente preparando um volume com observações posteriores
assim como uma biblioteca mundial sobre o tema, volume que
aparecerá sob o título Les chronophages em 1979, nas Editions du
Seuil, Paris.

12. É um intelectual importante e um jornalista socialista


contemporâneo alemão, desconhecido na América. Ver por exemplo
seu artigo sobre pleno emprego e liberdade em: Technologie and
Politik, nº 8, sept. 1977. pp. 9-15.
13. Technologie and Politik: Das Magazin zur Wachstumskrise,
publicado por Freimut DUVE. Rowohlt Verlag, D-20 57 REINBEK,
Hambu rger Strasse 17 , Rep. Federal da Alemanha.

14. Para entender o processo histórico por meio do qual a profissão


médica estabeleceu seu domínio sobre as funções orgâni cas, ver v.
g.: FREIDSON, Eliot. Profession of Medicine: A Study of the
Sociology of Applied Knowledge. New York: Dodd and Mead, 1971;
BLEDSTAIN, Burton. The Culture of Professionalism: The Middle
Class and the Development of Higher Education in Amer ica. New
York: Norton, 1976. Para a história cultural da medicalização dos
órgãos de reprodução feminino, ver: BARKER-BENFIELD, G. J. The
Horrors of the Half-Known Life. New York: Harper Colophone, 1977.
Para conhecer os movimentos sobre a desmedicalização, ver:
GARTNER, Alan, and RIESSMAN, Frank, eds. Self-Help and Health. A
Report. New York: New Human Services Institute, Queens College,
CUNY, set. 1976. LEVIN, Lowell; KATZ, Alfred H.; and HOLST. Self-
Care; Law Initiatives in Health. New York: Prodist (15 6 Fifth Ave.,
New York 10010); 1976. Também: Belita COWAN. Woman's Health
Care: Resources, Writings, Bibliographies. Ann Arbor: Publishing,
1977. (556 Second Street, Ann Arbor, MI 48103).

15. Como por exemplos La panza es primero! e sua continuação ¡Non


consulte a su médico!. México: Editorial Posada, 1973 e 1976.

16. BOSQUET, Michel (André Gorz). Ecologic et liberté. Paris: Editions


Galilée, 1977, defende a tese de que a política ecológica encarna a
reconstrução da sociedade civil contra as tendências «pan-
estadistas» em favor das quais as próprias evidências sobre os
limites da industrialização se utilizam tanto pela direita como pela
esquerda.

17. Entre as revistas importantes que tratam com um realismo


equilibrado a problemática ecológica em termos políticos
encontram-se: Ecologist e New Ecologist, 73 Molesworth St.,
Wadebridge, Cornwall; U. K.; Environment, 4000 Albemarle St., N. W.,
Washington, DC 20016; Co -Evolution Quarterly, Box 428, Sausalito,
CA 94965. USA.; Ecodevelopment News, CIRED, 54 Bvd. Raspail,
Paris 6. França.

18. Para uma introdução ao estudo deste tema, podia-se recomendar


um curso composto das leituras seguintes: EWEN, Stuart. Captains
of Consciousness: Advertising and the Social Roots of the Consumer
Culture, New York: MacGraw, 1976, contém uma análise explicita
dos métodos conscientemente aplicados desde 1920 para substituir
mercadorias que re-substItuem competições pessoais; SCITOVSKY,
Tibor. The Joyless Economy. New York: Oxford University Press,
1976, contribui para a análise das razões pelas quais esta
substituição se baseia numa preferência marginal, embora, como
resultado desta preferência, diminua o sentido da satisfação. É um
fenômeno que não se explica dentro do paradigma económico
prevalecente; BAUDRILLARD, Jean. Pour une critique de l'économie
politique du signe. Paris: Gallimard, 1972, introduz a distinção entre
a produção de utilidades e a produção de meros signos ou
símbolos; HIRSCH, Fred. Social Limits to Growth. Cambridge: Harvard
University Press, 1976, examina os custos sociais para a crescente
competição destes produtos simbólicos, que ele chama «bens
posicionais»; DUPUY, Jean Pierre, e KARSENTY, Serge. L'invasion
pharmaceutique. Paris: Seuil, 1975, ilustram por meio de uma análise
econômica do uso de medicamentos na França a predominância das
funções simbólicas sobre as técnicas; LEISS, William. The Limits to
Satisfaction: An Essay on the Problem of Needs and Commodities.
London: Marion Boyars, 1978, explica a demanda crescente para o
consumo simbólico como conseqüência psicológica de uma
orientação da sociedade que tem como fim o domínio da natureza.

19. HARPER, Peter, e a revista Undercurrents (275 Finchley Rd.,


London, NW3. U.K.) criaram o termo «Tecnologia Radical» para
designar a luta política contra as técnicas que inevitavelmente
impõem características de exploração social onde quer que se aplicam,
e da luta em favor daquelas outras técnicas modernas que permitem
altos níveis de eqüidade. Um excelente guia para o estudo do tema é:
HARPER, Peter. «Directory-Bibliography» in Radical Technology, ed. by
Godfrey, BOYLE, and Peter, HARPER. New York: Pantheon, 1977.
pp. 267-286. Sobre fontes descentralizadas de energia e seu uso
autônomo, ver os excelentes artigos técnicos em Alternative Sources
of Energy, revista mensal: Route 2, Box 90A, Milaca, MN, 56353. USA;
sobre novas formas de independência para habitantes urbanos através
de tecnologias alternativas, ver Self-Reliance, revista bimensal,
publicada pelo Institute for Local Self-Reliance, 1717 - 18th Street,
N. W., Washington, DC 20009. USA; para resumos bimestrais da
literatura sobre técnicas que modernizam a auto-suficiência de
grupos primários, ver Workbook, Southest Research and Information
Center, P.C. Box 4524, Albuquerque, NM 87106. USA; para análise da
inversão no processo de desenvolvimento em países pobres através
da descentralização técnica, ver Resurgence, revista mensal, Pentre
Ifan, Celindra, Crymych, Dyfed, Wales, U.K. Provavelmente a forma mais
simples de estar em dia com as publicações em todo o campo é ler a
revista mensal bibliográfica Rain, 2270 N.W. Irving, Portland, OR
97210. USA. Uma seleção de suas informações bibliográficas mais
importante dos primeiros anos de sua existência se encontra na
bibliografia retrospectiva: deMOLL, Dane; BENDER, Tom;
JOHNSON, Steve; et al., eds. Rainbook: Resources for Appropriate
Technology. New York: Schocken Books, 1977. 251 p.

20. SAHLINS, Marshall. Stone Age Economics. Chicago: Aldine, 1972,


explica o termo. Em Culture and Practical Reason. Chicago: Univ. of
Chicago Press, 1976, trata da criação simbólica da utilidade, elaborando e
criticando o conceito de fetichismo da mercadoria de Marx e argumenta que
o modo de produção determina tanto as utilidades como as necessidades.

21. Para quem não lê russo deve consultar CHAYANOV, Ale xandr
Vasiljevich (1888-1930) The Theory of Peasant Economy. Edited by
Daniel THORNER, B. KERBLAY and REF SMITH. Homehood: IL.,
1966. Para localizar A. V. Chayanov dentro de toda uma tradição,
ver: Theodor SHANIN. «The Nature and Logic of the Peasant Economy».
The Journal of Peasant Studies, Vol. I, números 1 e 2. pp. 63-80 e pp. 186-
206. E também: HARRISON, Mark. «Chayanov and the Economics of the
Russian Peasantry». Journal of Peasant Studies, Vol. 2, nº 4, julho 1975. pp.
389-417.

22. POLANYI define a economia como «o processo institucionalizado de


interação entre o indivíduo e seu ambiente que leva à oferta contínua
dos meios materiais para a satisfação de necessidades». Para orientar-se
sobre o lucro nas idéias de POLANYI em França, ver uma meia dúzia de
contribuições distintas no vol. 29, re 6 de Annales; Economies, Sociétés,
Civilisations, Paris: Librairie Armand Colin, nov./dez. 1974. Para uma
rápida orientação sobre seu pensamento, ver: Karl POLANYI. The
Great Transformation. New York: Octagon Books, 1975.
Especialmente o sexto capítulo: «The Self -Regulating Market and the
Fictitious Commodities: Labor, Land and Money».

23. PENTY, Arthur. Old World for New: A Study of the Post -Industrial
State. London: G. Allen and Unwin, 1917. Sem dúvida in fluenciado por
Hilair BELLOC e G. K. CHESTER -TON, pode-se buscar neste autor, quase
esquecido, uma fonte de George ORWELL em sua critica do sistema
industrial.

24. BOEKE, Julius H. Economics and Economic Policy of Dual Societies


as examplified by Indonesia. New York: Institute of Pacific
Relations, 1953, introduz a distinção desde 1910 em sua tese
doutoral. GEERTZ, Clifford. Agricultural Involution: The Process of
Ecological Change in Indonesia. Association of Asian Studies, Monographs
and Papers n? II, Berkeley: Univ. of California Press, 1963, baseia-se em
grande parte em BOECKE. Para uma avaliação dos dois, ver:
WERTHEIM, W. F. East-West Paralells: Sociological Approaches to
Modern Asia. Chicago: Quadrangle Books, 1964. A destruição, para
nosso tipo de sociedade, pode ser analisada lingüisticamente em
BRAYBROKE, David. «Let Needs Diminish that Preferences May
Prosper». In Studies in Moral Philosophy, by RESCHER, N. Oxford:
Basil Blackwell, 1968. pp. 86-107.

25. Nada ilustra melhor a diferença entre uma reavaliação técnica da


atividade individual orientada diretamente para a criação de valores
de uso da qual aqui tratamos, e a remonetarização de Friedman, do
que a carta escrita por economistas mexicanos por ocasião do
Prêmio Nobel de Friedman, publicada no vol. 8 do Magazin:
Technologie and Politik.

26. BECKER, Gary. The Economic Approach to Human Behaviour.


Chicago: University of Chicago Press, 1976.

27. LE PAGE, Henri. Antogestion et capitalisme: réponses a l'anti-


économie. Paris: Masson, 1978. Vulgarizador oportunista e
incompetente de Milton Friedman na Europa, a serviço das relações
públicas de uma associação de empresários. Em contraste, uma
contribuição interessante sobre o futuro dos valores de uso foi feita
por um economista tcheco -eslovaco: KOTIK, Jan. Konsum oder
Verbrauch: Gesellschaftlicher Reichtum, Gebrauchswert,
Nutzungsprozess, Beduerfnisse. Hamburg: Hoffman and Campe
Verlag, 1974.

28. WILLIAMS, Raymond. Keywords: A Vocabulary of Culture and


Society. New York: Oxford University Press, 1976.

29. YOUNG, G. M. Victorian England. cit. por R. Williams.

30. BEVERIDGE, William H. Unemployment: A Problem of Industry.


London: Longmans, 1909. 35 anos mais tarde, publi cou Full
Employment in a Free Society, New York: Norton, 1944, que influiu
na declaração da Carta das Nações Unidas, ao dizer que seus
estados-membros promoveriam o direito ao trabalho (full
employment) — que numa sociedade justa deve ter mais praças que
desocupados.

31. ROSENBLAT, Angel. La lengua y la cultura en hispanoamérica. Jena e


Leipzig, 1933, cit. em Santamaría, Diccionario de Mexicanismos.

32. ARENDT, H. The Human Condition. Chicago: University of Chicago


Press, 1958, p. 75.

33. SCHELER, Max. «Die Wissensformen and die Gesellschaft.» In


Gesammelte Werke. by SCHELER, Max. Vol. 82nd ed . Berna, 1960.
p. 448 segs.

34. A pesquisa semântica e semiológica relacionada com a ativi dade


produtora me parece ser uma contribuição que a polí tica deve
exigir da ciência. Existem duas contribuições, ambas no vol. II de
Europaeische Schluesselwoerter. Miinchen: Max Huebern Verlag,
1964; KRUPP, Meta. Wortfeld ,Arbeit (Ursprung and Entwicklung
deutscher, franzoesischer and englischer Arbeits-Woerter). pp. 258-
286; e GRAACH, Hartmut. Labour and Work. pp. 289-316. Com
duas dúzias de contribuições, o informe do Deutscher
Volkskundekongress 1964; Arbeit and Volksleben. editado por G.
HEILFURTH, Goettingen: Verlag Otto Schartz, 1967, é um excelente
panorama do desenvolvimento da antropologia do trabalho. Há
somente uns primeiros esboços que podem servir de guia para o
estudo da história da desocupação. Em alemão existem quatro te ses
doutorais que tratam do tema, ver: SCHMITT, Franz Anselm. Sotff
and Motivgeschichte der deutschen Literatur. D. Gruyter, 1965, p.
15, n° 46. LECLERC, Jacques. «Vocabulaire social et rep ression
politique: un example indonésien.» Annales, 28, nº 3, mars/avr.
1973, pp. 407-428, trata dos campos semânt icos dos termos qu e
se referem ao conceito de «trabalho» e analisa a manipulação
consciente destes campos na política da Indonesia. Através de
estudos análogos em outros idiomas se poderia chegar a escrever
um capítulo importante da história do imperialismo lingüístico.

35. TERRAZAS, E. «La industria de la desocupación.» Conferência


preparada para a reunião das Nações Unidas sobre os Humanos.
Vancouver, Canadá, 1976.

36. MARIEN, Michael. «The New Path of Progress and the Devolution of
Services: Viewing the Present and Future Without Industrial Era
Bias.» Prepared for the International Conference on the Service
Sector of the Economy. San Juan, Puert o Rico, June 25-July 1st.,
1978. Graduate School of Business. Univ. of Puerto Rico.

37. MERRIL, Richard. Radical Agriculture. New York: Harper Colophon,


1976. É uma enciclopédia dos argumentos ecológicos, econômicos e
políticos a favor de novas formas de autonomia regional para a
produção de alimentos, baseada em novas formas de agricultura
por meio de trabalho intensivo.

38. GEORGESCU-ROEGEN, Nicolas. Agrarian Economics: Production and


Institutions. Montclair, New York: Allenheld, Osmun, 1978, aplica ao
campo da agricultura sua teoria geral proposta em: The Entropy
Law and the Economic Process. Cambridge, MA: Harvard Univ. Press,
1971, p. 19: «Os economistas não parecem entender que, como o
produto do processo econômico é o desperdício, o desperdício é em
si o resultado inevitável deste processo.»

39. ROBERTSON, James. The Sane Alternative: Signposts to a Self-


Fulfilling Future. J. H. Robertson, 7 St., Ann's Villas, London, 1978.
STEIN, Barry A. Size. Efficiency. and Community Enterprise.
Cambridge: Center for Community Economic Development, 1974. Bibliogr.
pp. 117-129.

40. KOHR, Leopold. The Overdeveloped Nations: Diseconomies of Scale.


New York: Schocken Books, 1978. HENDERSON, Hazel. Creating
Alternative Futures: The End of Economics. New York: Berkeley
Windhover Books, 1978.

41. SCHWARTZ, Eugene S. Overskill: The Decline of Technology in Modern


Civilization. Chicago: Quadrangle Books, 1971. Seu argumento é
que a divisão do tr abalho além de certos umbrais cria
necessidades intoleráveis de controle social e educacionais.

42. ILLICH, Ivan. Némesis médica: la expropriación de la salud. México:


Moritz, 1978. No centro do argumento (capítulo 6) está a descrição
da contraprodutividade paradoxal (das internalidades negativas ou
desutilidades diretas inexportáveis) de nosso s sistem as de produção. A
dinâm ica na medicin a contemporânea serve neste livro para ilustrar
esta tese sócio-econômica. (Este livro foi lançado no Brasil com o
título A Expropriação da Saúde. Nêmesis da Medicina. Editora Nova
Fronteira, Rio, 1976.)

43. McKNIGHT, John. «Professionalized Service and Disabling Help.» In


Disabling Professions. London: Marion Boyars, 1977. Como
complemento, ver: GAYLIN, W7, et al. Doing Good: The Limits of
Benevolence. New York: Pantheon, 1978. Para informação periódica,
ver, e. g.: The National Center for Action on Institutions and Alternatives,
R. 1024, Dupont Ciecle Building, 1346, Connecticut Ave. NW., Washington,
DC 20036. USA.

44. SCOTT, Denny. The Energy Dilemma: What It Means to Jobs.


International Woodworkers of America, 1622 N Lombard, Portland, OR
97217. USA, insiste junto com os membros de se u sindic at o par a a
nec es sidade de que se jam os sindicalistas os primeiros a
reconhecer o erro de estabelecer uma relação entre o volume de
empregos ou de salários e a quantidade de energia produzida.
HANNON, Bruce. Energy and Labor Demand in the Conserver
Society. Center for Advanced Computation. University of Illinois, Urbana-
Champaign, IL: 61801, procura quantificar a expansão do mercado de
trabalho na qu al está implicada uma redução de energia
cir cula nte; prova que, para cada «quad» de elet rif ic ação futura,
nos Estados Unidos, destroem-se 75 mil empregos adicionais.
LAITNER, Skip, ed. Decentralized Energy Systems. Based on research
and work completed by Fredrick M. VARNEY. Washington, DC., Critical
Mass., September, 1975. LAITNER, Skip. «The Impact of Solar and
Conservation Technologies Upon Labor Demand.» Paper presented to the
Conference on Energy Efficiency, Washington, DC., May 20-21. 1976.

45. BECKER, Gary S. «A Theory of Marriage.» Journal of Political. 81 e


82, 1973. SKOLKA, Jiri. «The Substitution of Self-Service Activities for
Marketed Services.» Review of Income and Wealth, Ser. 22, n° 4, Dic.,
1976. J. P. DUPUY está preparando uma antologia de críticas que se
ocupam especificamente da refutação de certos conceitos
fundamentais nas formulações de Becker.

46. HABERMAS, Jurgen. Technik and Wissenschaft als «Ideologie».


Frankfurt am Main: Surkamp Verlag, 1970.

47. BORREMANS, Valentina. Guide to Use-Value Oriented Con vivia!


Tools, and their Enemies. Draft as of June 1st, 1978. contém cerca
de 800 referências anotadas, 300 publicações periódicas e 300
endereços de fontes de informações não usuais. Será publicado em
«Tecno-Política» (Aptdo. 479, Guernavaca, México) em novembro de
1978 antes da edição comercial. MUMFORD, Lewis. «Authoritarian
and Democratic Techniques.» Technology and Culture, 5, n° I, Winter
1964. pp. 1-6, em poucas páginas esboçou há IS anos esta distinção
entre dois tipos de progresso técnico. O livro que mais difundiu a
distinção é SCHUMACHER, E. F. Small is Beautiful: Economics as if
People Mattered. New York: Harper Torchbooks, 1973.

Este livro foi impresso em off- set na CI A.


EDI TORA FON - FON E SELETA
Rua Pedro Alves, 60 — Centro
RIO DE JANEIRO — RJ

Tipo Editor Ltda.


Editorial Alhambra
Rua das Marrecas, 36 — 701

Rio de Janeiro — RJ
1979

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