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Denilson Cardoso de Araújo
Brasília
2008
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Copyright© 2008 por Denilson Cardoso de Araújo
Usina de Letras
SCS Quadra 01 Bloco E – Ed. Ceará sala 809 – Brasília – DF
CEP: 70303-900
www.usinadeletras.com.br
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Para Mariana, porque amanhecerá.
3
4
Agradeço a Deus, que me concedeu sábios pais.
A meus pais que, nas pedras, mostraram caminhos.
Aos caminhos, cujas pedras acharam Chardeli.
Agradeço à minha amada, que me empresta sua luz.
A essa luz, meu obrigado, porque me retorna a Deus.
5
6
Há caminho que parece direito ao homem,
mas o seu fim são os caminhos da morte.
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SUMÁRIO
PREFÁCIO 11
APERTANDO A POLÊMICA, MAS SEM ACENDER AGORA.
15
Uma introdução
ENTRE O BANDIDO SÓBRIO E O MACONHEIRO
BANDIDO, O MACONHEIRO INOCENTE É MARISCO. 21
Nova postura legal no trato com a questão do consumo de drogas
BRASIL 2008 – MARIA JOANA EM DESFILE
37
E LIMINARES EM MARCHA
TODA MARCHA É GRITO, TODO GRITO PROPAGA,
45
TODA PROPAGANDA INCITA
CHEGOU A HORA DA “MACONHABRÁS”?
53
A Marcha da Maconha no contexto brasileiro
SANTA CANNABIS: MAIS FORTES SÃO
65
OS MILAGRES DO CRISTO MACONHEIRO!
PAPO DOIDÃO: MACONHA “FREE” QUANDO SE BUSCA
91
REDUZIR O CONSUMO DE ÁLCOOL E TABACO
O “BARATO” QUE SAI CARO
111
Maconha liberada para uns, grana mais curta para todos
SE É BOM PARA HOLANDA É BOM PARA O BRASIL?
117
A experiência de outros países
DO BICHO-GRILO AO BICHO GRILADO.
139
Maconha nos anos 60 e hoje: diferenças
MACONHA LIBERADA REDUZ O TRÁFICO
DE ENTORPECENTES E A CRIMINALIDADE? 181
É ruim, hem!
DIREITO DE EXPRESSÃO E MANIFESTAÇÃO:
193
Tem regras nesse jogo!
BASEADO EM TUDO O QUE FOI DITO, CONCLUSÃO
233
E APELO: NÃO AO BASEADO!
BIBLIOGRAFIA 241
9
10
PREFÁCIO
11
e nos que militam na esfera jurídica. Atuando como Magis-
trada na área da Infância e da Juventude há mais de trinta anos,
adotamos, necessariamente, o entendimento aqui defendido
por seu autor. Vivenciamos de perto o atoleiro emocional de
crianças e adolescentes que, para matar a dor, deixam-se sedu-
zir pelo álcool, pelo tabaco e, principalmente, pela maconha.
Em audiências, somos atingida pela visão das fisionomias de
pais, impotentes e perplexos, conseguindo enxergar suas lágri-
mas, às vezes não derramadas. A opção de liberar a venda de
drogas para minorar o seu tráfico, decididamente, não nos
convence. Embora conhecendo os perigos de os traficantes
continuarem dominando nossas comunidades carentes, não
podemos correr o risco de corrigir um erro – como diz o autor
– cometendo outro erro!
Necessário um parêntese em nosso prefácio. Impossí-
vel apresentar um livro sem admirar seu autor. Denilson Car-
doso de Araújo é um auxiliar importante na Vara da Infância,
da Juventude e do Idoso da Comarca de Teresópolis. Nesse
mundo de poucas léguas, em que muitos se dedicam à tenta-
tiva de resgate de adolescentes infratores e em risco social, é
um Serventuário de Justiça especial. Vem realizando, nas esco-
las, um programa de palestras para estudantes, professores e
pais, semeando lucidez em seus caminhos e realizando verda-
deiras cirurgias morais em suas relações. Sem distintivo acadê-
mico e sem a proteção de qualquer título notável, passa pela
vida de seus educandos como um caminhante comum. Traba-
lhando com determinação, foge ao estereótipo de um mero
servidor da Justiça, o que reduziria sua dimensão humana. Ta-
refeiro do bem, ao invés de tornar-se simples máquina de ativi-
dades cartorárias, alcançou um nível de sensibilidade que lhe
permite perceber o vácuo espiritual que existe na história dos
jovens orientados pela Vara da Infância e da Juventude. Apren-
deu a cultivar a arte de observar o trabalho ali desenvolvido,
criticando-o construtivamente e colaborando em sua organiza-
ção. É autodidata e possui a ousadia do líder. É sensível, gene-
12
roso, altruísta, disciplinado, solidário e bom companheiro de
trabalho. Possui valores espirituais e um passado de militância
política. Sua visão de futuro não é pequena, suas metas não
são limitadas e sua auto-estima é sólida. Quando realiza pes-
quisas, busca atingir a excelência, demonstrando criatividade e
coragem na defesa de suas idéias. Nem sempre consegue sor-
ver, com naturalidade, o cálice da indignação frente aos desa-
justes dos jovens que, levados à infração, muitas vezes são víti-
mas da moldura social em que nasceram.
Para escrever este livro, o autor informa ter sido impul-
sionado por experiência familiar, fazendo a utilização inteli-
gente de sua dor e preocupando-se com o crescente discurso
em prol da liberação de entorpecentes. Em sua ampla pes-
quisa, disserta sobre os vários aspectos que a matéria encerra.
Não se posiciona timidamente. Posiciona-se contra os que de-
fendem a liberação das drogas, trazendo ao leitor informações
enraizadas, fundamentadas nos registros de experiências em
outros países e, acima de tudo, focalizando o complexo tema à
luz do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Que a leitura de seu trabalho seja fonte de insônia para
os que ainda dormem o sono da inconsciência e da ingenui-
dade. O autor, sem dúvida, merecerá um sono sereno, constru-
ído com o conforto moral dos que têm interesse em contribuir
para o bem estar da sociedade.
13
14
APERTANDO A POLÊMICA,
MAS SEM ACENDER AGORA
Uma introdução
15
proibir, sim. Aos que ficarem incomodados com tanta asserti-
vidade logo ao começo, peço caridosa paciência para os argu-
mentos que seguirão.
Essa versão tupiniquim da canabiseira caminhada adere
a um esforço internacional articulado e significativo. A Marcha
2008 ocorreria em 265 cidades espalhadas pelo mundo. E o
pessoal, embora suas fileiras contem com tais “espécies”, não
é bobo, ou doidão varrido, não. São muitos e fortes os argu-
mentos que levam os organizadores à suposição da falência
das estratégias de repressão, proibição e “tolerância zero” no
trato com a questão do consumo de entorpecentes. Tudo in-
dica que a própria ONU, pelo seu Escritório Contra as Drogas e o
Crime (UNODC), deverá rever tópicos da diretriz, na Assem-
bléia prevista para março de 2009. Os participantes do movi-
mento, em geral, além de reforçar a necessidade do trato dife-
renciado entre o usuário e o traficante, reivindicam que a
droga pode ser usada, para fins recreativos, sem maiores da-
nos, desde que haja uma política educativa. Defendem, ainda,
o valor terapêutico, e para alguns casos até indispensável, de al-
gumas substâncias presentes na maconha. Acusam que a proi-
bição do consumo de maconha atenderia a interesses políticos
e de corporações internacionais, principalmente da indústria
de cigarros, afora, mais remotamente, das indústrias de tecela-
gem.2 Aduzem que a proibição apenas alimenta a criminali-
dade e produz corrupção, o que é parcialmente verdade. Não
deixam de tratar o tema também sob a ótica da saúde pública,
eis que a proibição e a obtenção da droga apenas junto a trafi-
cantes, levariam à queda da qualidade do produto, dadas as no-
civas misturas efetivadas para obtenção de maior rendimento.
Disso tudo resultaria a necessidade de liberar-se o uso da ma-
conha, em gradativas concessões, a começar pela descriminali-
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zação do consumo, pela autorização para uso medicinal e plan-
tio para uso próprio.
Neste ano, provocado pelo Ministério Público, o Poder
Judiciário pronunciou-se liminarmente pelo impedimento à re-
alização da Marcha em diversas capitais. Mesmo assim, algumas
caminhadas se realizaram, havendo casos de sua transforma-
ção em “marchas pela liberdade de expressão”. Aliás, por este viés
avançaram todas as críticas à proibição do evento. O Presi-
dente da Seccional-Rio da Ordem dos Advogados do Brasil,
Wadih Damous, capitaneou manifestação na sede da entidade.
Na ocasião, o Procurador da República e professor universitá-
rio, Daniel Sarmento, apresentou sugestão, prontamente aco-
lhida pelo Deputado Federal Chico Alencar, do PSOL, de in-
gresso de ação no Supremo Tribunal Federal, visando a
declarar a inconstitucionalidade das interpretações dos juízes
que consideraram a Marcha da Maconha apologia criminosa. Es-
tiveram presentes ao ato da OAB, a União Nacional dos Estu-
dantes, a Associação Brasileira de Imprensa e a Associação
Nacional de Jornais.3
Nas passeatas que foram tentadas, ocorreram inciden-
tes em alguns locais, inclusive com prisões, seja pela exacerba-
ção dos ânimos de alguns manifestantes, seja pela agressivi-
dade, aqui e ali, da força policial. Pretendo apresentar, da
forma mais breve possível, várias informações e dados sobre o
tema, um pouco da conjuntura do debate e ao final, refletir so-
bre os valores constitucionais que foram reivindicados pelas
posições em conflito.
Alguns entenderam que, no concernente à manifesta-
ção, deveria prevalecer o direito de liberdade de expressão,
conforme prevista no Artigo 5º, IV, da Constituição Federal.
Somaram a esta defesa, os direitos de reunião em locais públi-
cos (XVI) e de associação para fins lícitos (XVII do mesmo ar-
tigo). Quanto ao consumo de maconha propriamente dito, o
17
raciocínio caminhava pelo direito da inviolabilidade da pessoa,
à sua intimidade e vida privada (inciso X). Foi freqüente o ar-
gumento do “direito ao uso do próprio corpo”, sendo, portanto, as
substâncias ingeridas pelo cidadão, assunto exclusivo da esfera
privada. Em síntese, o raciocínio todo seria assim: o corpo é
meu, faço dele o que eu quero, o cérebro é meu, penso o que
der na telha, expresso meus pensamentos a quem quiser, reu-
nindo-me com quem quiser, em qualquer lugar, pra dizer o
que quiser, e ninguém tem nada com isso.
Do lado contrário, postaram-se aqueles que, à luz do
artigo 5º, XLIII, da Carta Magna, entendendo como crime he-
diondo o tráfico de entorpecentes e drogas afins, fazem a lei-
tura da manifestação sob a ótica do art. 33 §2º da Lei nº.
11.343/06, que prevê pena de detenção de 01 (um) a 03 (três)
anos para todo aquele que “induzir, instigar ou auxiliar alguém ao
uso indevido de droga”. Por tal razão, se curvaria o direito de livre
manifestação, frente ao valor que mais alto se ergue, o bem pú-
blico maior, de preservação da saúde pública. Ainda que se
possa fazer o que quiser com o próprio corpo e pensar sem
amarras, não se pode promover reunião em qualquer lugar,
nem dizer o que quiser a qualquer público.
Fiquei um bom tempo dando tratos à bola. Não é as-
sunto fácil.
Quem sou eu para pretender palavra final sobre qual-
quer coisa. Mas, mesmo que eu quisesse, descobri não haver
algo assim como a “palavra final sobre a maconha”. Aliás, me
incomodam muito os trabalhos que são publicados por aí com
suposta neutralidade científica, ou com reportagens que assu-
mem posições parciais, mas que se intitulam “a verdade” sobre a
maconha. Não há “a” verdade sobre a maconha. Existem ver-
dades. Existem mentiras. Existem dúvidas. Existem estratégias
pedagógicas, política criminal e precauções necessárias. E exis-
tem (ah, como existem!) interesses, alguns não confessados.
Existem adjetivações enganosas, como o usual tratamento de
“hipócritas” ou “estúpidos” com que os partidários da liberação
18
de drogas carimbam os que deles discordam, provocando o re-
bate de agressões verbais aos maconheiros “doidões”. Mas,
acima de tudo, existe uma circunstância histórica, geográfica e
social. Parafraseando Ortega y Gasset, “a maconha é a maconha e
sua circunstância”.
Na medida do possível, tentando ser pouco chato, me
esforcei para oferecer a cooperação mais densa que pude ao
debate, buscando ser fiel às argumentações de ambos os lados
e produzindo algumas próprias, para melhor definir minha po-
sição. E rejeitando qualquer pecha, dispensando os xingamen-
tos, repito: embora concordando com o fim da pena prisional
para o usuário, sou contra a liberação da maconha e contra a
possibilidade de realização da Marcha. Explicarei tudo melhor.
Leia mais se tiver paciência, amigo.
Este trabalho possivelmente desagradará tanto aos que
são contra quanto aos que são a favor, o que não deixa de ser
uma qualidade, convenhamos. Todo mundo poderá, democra-
ticamente, meter-lhe o malho, queimá-lo, ou ignorá-lo. Aos
que querem ciência, incomodará porque científico não é. Aos
que pretendem reportagem, esta trará lacunas e barrigas. Aos
que imaginam libelos, oferecerei dúvidas. Não sou um acadê-
mico, nem um jornalista e muito menos um fanático. Mas tam-
bém não sou um ingênuo. Apenas uma pessoa precariamente
formada, que passou seus sustos com a questão das drogas,
viu famílias sofrendo seus sustos, algumas se destruindo, e per-
cebeu o crescimento da nefasta ocorrência em volume e em
velocidade, nos últimos tempos. Esforço-me para compreen-
der melhor o mundo. Se você pertence a essa irmandade, seja
bem vindo ao portal das perguntas.
Mas mesmo aos cientistas, repórteres, acadêmicos e xi-
ítas (que, de ambos os lados, os há), que derem o azar de terem
este trabalho em suas mãos, peço a tolerância de que daqui res-
gatem, ao menos, a pesquisa apresentada. Para os mais afeitos
ao tema, será primária, sem novidades. Para muitos, se despi-
rem preconceitos, proveitosa será. Afinal, é um trabalho
19
“multi-indisciplinar”, porque bebe, fragmentariamente, em várias
fontes, sem exaurir-se em nenhuma. Por isso, certa confusão
metodológica. Notei, mas deixei assim mesmo. Quem olha da
montanha só vê mesmo o panorama geral. Acho que torna a
leitura mais interessante e não linear. Mas juro que não fumo
maconha.
Um esclarecimento. No texto que você lerá, por vezes
me refiro à descriminalização e por vezes à liberação de dro-
gas. São propostas diferentes, mas para a maioria dos que de-
fendem maior tolerância às drogas a primeira é passo tático
para a segunda. Na verdade, aqui combato as duas propostas,
por isso, as referências podem se misturar, não estranhe.
Por fim, digo que não sei fazer textos sem preces. Afi-
nal, Deus é Logos. E esta é minha prece: Que dEle sejam as pa-
lavras que lhe sirvam, caro leitor. Que sejam úteis. E que o se-
jam a jovens, pais, educadores, quem sabe, a juízes, e a
maconheiros também.
20
ENTRE O BANDIDO SÓBRIO
E O MACONHEIRO BANDIDO,
O MACONHEIRO
INOCENTE É MARISCO
Nova postura legal no trato com
a questão do consumo de drogas
4. ALVES, Rubem. Entre o ruim e o horrendo Os males da liberalização das drogas são
menores que os da sua proibição. Jornal Folha de São Paulo. 28/11/1999. Em. http://www.ge-
ocities.com/sociedadecultura/drogasrubemalves.html
5. VENTURA, Zuenir. O confuso planeta maconha. Jornal O Globo. 28/7/ 2001.
21
drogas, não será a liberação que fará mais fraterno o mundo.
Vejamos.
A proibição internacional da maconha tem sua gênese
remota nas Conferências do Ópio. A primeira realizou-se em
Xangai, em 1909. A pauta visava inibir a indecente ação in-
glesa, remanescente das Guerras do Ópio, que seguia ven-
dendo aos chineses a droga produzida na Índia. Era uma com-
modity importante na formação da riqueza britânica. Apoiando
a China, os Estados Unidos puseram-se à frente do com-
bate. A ausência inglesa em Xangai não impediu a aprovação
de um documento de recomendação. A Inglaterra ficou ex-
posta mundialmente, pelo lucro obtido de forma considerada
desumana.
Na Conferência seguinte (Haia, 1911), por razões polí-
ticase econômicas, e para não posar de vilã solitária na histó-
ria,a Inglaterra condicionou sua adesão. Queria aproibição
tambémda morfina e da cocaína, grandes produtos de exporta-
ção daeterna adversária, a Alemanha. Disso surgiu a Primeira
Convenção do Ópio, no ano seguinte. Em 1925, novo encon-
tro internacional, patrocinado pela Liga das Nações, provocou
a inclusão da maconha na lista de substâncias combatidas, a
pedido do Egito e com apoio decisivo do Brasil, vejam só. O
delegado brasileiro, Pernambuco Filho, é muito criticado hoje
em dia pelos defensores da liberação, por supostamente ter
agido de forma inconseqüente, desprovido de fundamentos e
contra o que teria sido seu próprio entendimento, já que teria
antes se manifestado pela irrelevância da maconha.6
No Brasil, a maconha chegara cedo, trazida nas franjas
do que havia de roupa entre os negros. Em texto sobre a histó-
22
ria da maconha, Carlini cita estudo de A. Dias, onde consta o
seguinte:
23
própria ao seu culto, e a maconha seria a favorita de Exu, nos
rituais do candomblé.10
Gilberto Freyre a menciona, em nota ao seu monu-
mental “Casa Grande & Senzala”,11 assumindo inclusive ter
consumido a erva, descrevendo-lhe os efeitos como “um voltar
para casa cansado do baile, mas ainda com a música nos ouvidos”. Cita
as virtudes atribuídas pelo povo à “macumba”, como a erva
era chamada na Bahia: desde supostas qualidades afrodisíacas a
poderes místicos.
O fato é que a droga disseminou-se dos negros aos ín-
dios, passando a predominar, naqueles começos, entre popula-
ções carentes brasileiras. Isso não afasta seu consumo es-
porádico em classes altas. Supõe-se que a encrenqueira e
ninfomaníaca Rainha Carlota Joaquina regava suas conspira-
ções e romances a chazinhos de maconha.12 Sobre este trecho,
um maconheiro me disse: “Tá vendo, só muita erva na idéia pra
güentar esse país!”.
9.
um grama. Há também o maricas, que no Maranhão chamam boi, cachimbo feito com uma
garrafa, um cabaço – lagenaria – ou feito de barro cozido, como tenho visto, com recipiente
para água, lavando a fumaça, como o narguilé turco. Estimulante, dando a impressão de eu-
foria, deixa forte impressão, a lombra, que só desaparece com super-alimentação, a planta
tem seus segredos e técnicas até na colheita. Há os pés machos e fêmeas. Os machos de
nada servem. “Colhê-las, assoviando, ou na presença de mulher menstruada, troca o sexo da
planta, a planta fêmea macheia e perde as virtudes” – Garcia Moreno, “Aspectos do maco-
nhismo em Sergipe”, dez, Aracaju, Sergipe, 1949. A maconha é estimulante, fumada pela ma-
landragem para criar coragem e dar leveza ao corpo. Não há conhecimento de ter a maco-
nha algum cerimonial secreto para ser inalada. Como sucede no México, onde a dizem
marihuana, grifa, somadora, oliukqui entre cantos de louvor. Nos catimbós usam rara e sem-
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pre ocultamente, o óleo da liamba nos trabalhos difíceis. Nos xangôs e candomblés não há
prova do seu uso. É mais de predileção de gatunos e vagabundos. Bibliografia essencial:
José Lucena, “Os fumadores de Maconha em Pernambuco”, e “Alguns Novos Dados Sobre
os Fumadores de Maconha”, Arquivo da Assistência a Psicopatas de Pernambuco, ano IV, I,
53, 1934, e 1-2, 197, 1935, Recife; Rodrigues Dória, “Os fumadores de maconha”, Bahia,
1916, Garcia Moreno, acima citado; Jarbas Pernambucano, “A Maconha em Pernambuco,
Novos Estudos Afro-brasileiros”, 187, Rio de Janeiro, 1937; R. Cordeiro de Farias, “Campa-
nha Contra o Uso da Maconha no Nordeste do Brasil”, Rio de Janeiro, 1942, etc. Mário Ypi-
ranga Monteiro, “Folclore da Maconha”, Revista Brasileira de Folclore. No. 16, Rio de Janeiro,
1966” – in “Dicionário do Folclore Brasileiro”, Editora Itatiaia, Belo Horizonte, 1984.
10. Conforme o artigo “Em defesa da Erva (Marijuana, Maconha, Cannabis, Ganja e etc)”,
assinado por “CONTRANET”, em “http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2008/04/
417347.shtml’.
11. 41ª edição, Record, 2000 – nota 73, pp. 446.
12. Cfe. CARLINI, texto citado.
24
A história também é vasta e pitoresca em outros países.
Conforme o texto avançar, iremos comentando. Mas, com es-
tória ou sem história, a ONU recomenda a proibição da canna-
bis sativa desde 1960, pelo que foi incluída na lista de vedações
da Convenção Única de Narcóticos, em 1961. Mas, já em
1948, dando conseqüência aos tratados anteriores à 2ª Guerra,
sua Carta de Princípios classificara a droga como inimigo a ser
combatido e recomendava a proibição do seu consumo nos
países que integravam a Organização.13 Como veremos mais à
frente, a posição americana sempre foi determinante em todo
o processo. Campanhas especialmente virulentas foram reali-
zadas nos Estados Unidos que, queixam-se os defensores da li-
beração, acabaram exportando seu modelo repressivo.
No Brasil, a maconha começou a ser proibida em
1938,14 embora haja o registro de que a primeira lei antimaco-
nha brasileira seja de 1830, quando a Câmara Municipal do Rio
de Janeiro tornou ilegal a venda e o uso da droga na cidade,
prevendo penas de multa e prisão. Aos negros, a cana dura, aos
brancos, as multas brandas, nada muda, meu Deus!15
Mas, depois de décadas aprisionando usuários, a nova
lei brasileira de entorpecentes (Lei nº. 11.343, de 23/08/2006),
veio iniciar a aplicação ao Brasil dos esforços internacionais
que se têm feito para cobrir dois universos de preocupação.
No primeiro deles se busca melhor qualidade de vida para os
vitimados pela tragédia do vício desagregador. No outro, reco-
nhece-se a existência – minoritária, mas ainda assim, existência
– de pessoas que consomem produtos e substâncias ilícitas,
sem que isso comprometa sua qualidade de vida, seus relacio-
namentos ou suas capacidades civis.
25
Uma das diretrizes desses esforços é deixar de tratar o
problema do consumo de drogas na esfera penal (o que a nova
lei não fez, eliminando tão somente a pena de prisão para o
portador-usuário). É que o Direito Penal é a última fronteira
de proteção da sociedade e do Estado constituído. Em tese, é
acionado quando as outras esferas de contenção e coerção,
menos gravosas, falharam. A coisa é como em residências:
cerca-viva, cachorro, cerca elétrica. O problema é que se per-
dia a noção de gravidade da conduta. Gastava-se o cartucho
maior com um pombo, uma pulga. Prisão é para o bandido
efetivo, até para o bandido-maconheiro, mas não para o maco-
nheiro que, em geral, só por isso, bandido não é. O entendi-
mento majoritário, hoje, é de que o problema do consumo in-
devido de drogas envolve basicamente prevenção e pedagogia
proativa. Ele passa, então, a ser de responsabilidade da socie-
dade civil. Não perde relevância pública, mas o Estado se
ocupa dele mais como linha auxiliar da própria sociedade, em
campanhas educativas e estabelecimento de programas de re-
cuperação. Cabe ao poder estatal, entretanto, numa das fór-
mulas propostas, centrar fogo contra a fabricação e o trá-
fico ilícitos. O que já se tenta, aliás, mas como demonstrou
Tropa de Elite, tá lá o consumidor, esperando o produto... Daí...
A situação fica, mais ou menos, como se se descriminalizasse a
receptação de produto furtado. Mesmo criminalizado o roubo
e o furto, seria difícil sua repressão, porque ainda e sempre,
haveria mercado para o produto do ilícito.
Por isso, uma das correntes importantes nesse novo
contexto defende a liberação total das drogas. Neste caso, o
poder público exerceria funções de fiscalização e regulamenta-
ção da fabricação e do comércio. Ali estão, juntos, numa estra-
nha salada, conservadores de renome, em nome do liberalismo
econômico, e progressistas de escol, em luta pelo que enten-
dem ser radicalização democrática. Defendem esta tese, desde
usuários, preocupados com a qualidade do produto que conso-
mem, até estudiosos das políticas de segurança pública, que
26
imaginam que o problema do tráfico e seu entorno, assim, se-
ria minorado, passando pelos economistas, que percebem a
possibilidade de melhor equilíbrio financeiro das contas do
Estado, que economizaria em repressão e “faturaria” em im-
postos. Comparece também uma parcela dos profissionais de
saúde, que entendem haver sub-notificação de casos de abuso
de drogas e dificuldade de assistência ao dependente, no atual
marco legal.
De todo modo, seja para melhorar a vida do viciado,
seja para admitir aquele consumo recreativo e sem danos, o
primeiro passo, defendem, é a descriminalização do consumo,
passando o Estado a exercer, em tais situações, funções não
mais repressivas e sim, pedagógicas. No Brasil, a nova legisla-
ção não adotou o reconhecimento pleno da possibilidade do
consumo sem danos, seja terapêutico ou recreativo. Entre-
tanto, como a lei veio do mesmo berço, é natural que seus de-
fensores tratem como questão de tempo, a extensão da licença
legal. Onde passa um boi, passa a boiada, né?
Essa nova postura é, também, uma rendição à dureza
da realidade implacável. Drogas existem e são consumidas
desde sempre, repetem, quase em ladainha, em mantra. A atu-
ação repressiva não deu conta de impedir ambas as situações e,
por isso, caberia ao poder público buscar o mal menor. Ten-
tando conjugar a necessidade de redução de gastos públicos
nas áreas de saúde e de segurança, e de trato humanitário ao
usuário, foram instituídos, então, os chamados programas de re-
dução de danos.
Esses programas têm ascendência em similares aplica-
dos em alguns países do primeiro mundo, nos quais a repres-
são pura e simples não alcançou redução do consumo. Essa si-
tuação foi reconhecida numa carta aberta de dezenas de
personalidades ao então Presidente da ONU, Kofy Annan, pu-
blicada em junho de 1998, em página inteira do New York Ti-
mes. A organização Drugs Police Alliance, obteve assinaturas de
diversas lideranças internacionais, dentre as quais, o ex-presi-
27
dente da OEA, Xavier Perez de Cuellar, o hoje Presidente Luís
Inácio Lula da Silva, o Nobel da Paz Adolfo Perez Esquivel, o
Bispo Dom Pedro Casaldáliga, e muitos políticos, escritores,
cientistas, etc. O documento dizia, dentre outras coisas:
28
sica.17 Recente pesquisa divulgada pela Revista O Globo entre
usuários de drogas, freqüentadores da noite carioca, fez o psi-
cólogo Luiz Paulo Guanabara realçar exatamente esse lado
produtivo do segmento de usuários que consegue trabalhar,
formar-se em faculdades, pagar impostos e “contribuir para a so-
ciedade”.18 Claro que é polêmica a questão colocada pelo psicó-
logo, de que “nem sempre o usuário é doente, doente é o viciado”, pois
ninguém tem bola de cristal para adivinhar onde o vício criará
suas raízes. Mas, desse tipo de reconhecimento, para as redes
de solidariedade e ativismo na Internet, foi um pulo.
A redução de danos, como política de saúde pública
ganhou impulso com a epidemia de AIDS. Programas de troca
de seringas começaram a ser utilizados, como forma de evitar
a proliferação do HIV entre dependentes de drogas injetáveis.
O mesmo se deu com a oferta de camisinhas em locais, como
escolas; em períodos, como o Carnaval; e em eventos, como as
Paradas do Orgulho GLBT. Numa das edições do evento, mais
conhecido como Parada Gay, em São Paulo, foram distribuídos
panfletos orientando, por exemplo, melhores e mais seguros
métodos para cheirar cocaína. Foi um susto não muito bem di-
gerido pela sociedade, dada a radicalidade da proposta e a con-
sideração de que, por pitoresco e contraditório que pareça,
com tantos interesses econômicos envolvidos, e certa postura
tolerante da mídia, a “parada” virou evento festivo, carnava-
lesco e familiar. Entretanto, já se praticava a abordagem de re-
dução de danos. A organização Psicotropicus mantém em seu sí-
tio na rede de computadores (psicotropicus.org), diversos textos e
valiosas informações que historiam o tema.
17. Relato de Sebastian Scheerer no ensaio “Reflexões acerca de algumas tendências re-
centes no discurso sobre as drogas na Alemanha”, constante da obra organizada por Fran-
cisco Inácio Bastos e Odair Dias Gonçalves, “Drogas: é legal? Um debate autorizado” (Imago,
1993, pp. 146).
18. Pesquisa da Retrato Consultoria e Marketing, que baseia reportagem de ALBUQUER-
QUE, Carlos. Perfil do Consumidor. Revista O Globo. Ano 5, nº 223. p. 28.
29
podia ser necessária para os dependentes conseguirem levar uma vida pro-
dutiva. Desde essa época, em Merseyside, um centro de referência em polí-
tica de redução de danos situado na área portuária de Liverpool, opiáceos
injetáveis são prescritos para dependentes. Nos Estados Unidos, existem
programas de prescrição de metadona em funcionamento desde os anos 60.
Mas foi em 1984 que surgiu o primeiro programa de troca de seringas, ad-
ministrado pela Junky Union, uma reconhecida organização holandesa de
usuários de drogas. A partir de então, diversos projetos de redução de da-
nos vêm sendo desenvolvidos em vários países do mundo, sendo que muitos
deles adotaram esse modelo como política pública de drogas, como a Ho-
landa, Dinamarca, Espanha, Suíça, Austrália, Nova Zelândia, Ca-
nadá.19
30
• O usuário de drogas é um cidadão pleno, com direitos e deveres.
• A dependência de drogas expressa um sofrimento com dificuldades
físicas, psicológicas e sociais.
• A dependência de drogas, mesmo a mais prolongada, deve ser sempre
considerada uma situação provisória.
• A legislação trabalhista deve considerar os usuários de drogas em
tratamento em situação de doença, nas mesmas condições previstas
para as demais doenças.
• Usuários de drogas devem ter acesso a tratamentos adaptados que
respeitem sua dignidade e lhes permitam reinserção social.
• A finalidade dos tratamentos deve ser a de promover uma vida livre
e responsável.(...)
• Condenamos a política de prevenção de “guerra às drogas” que, de
fato, contribui para a discriminação dos próprios usuários de drogas.
(...)
• Nenhum usuário ou dependente de drogas deve ser preso por simples
uso. (...)
• É necessário estabelecer políticas de prevenção, de tratamento e rein-
serção com base na proposta de redução de danos, articulando os di-
ferentes campos da saúde, educação, juventude, família, previdência
social, justiça, emprego, nacional e localmente, integrando as ativida-
des públicas e privadas.
• É preciso que sejam estabelecidas leis que garantam o respeito aos
direitos dos usuários de drogas e que proíbam tratamentos humi-
lhantes ou que explorem o trabalho dos dependentes de drogas. (...)
• Os governos devem assumir responsabilidades, sem exploração polí-
tica ou ideológica, garantindo o acesso à prevenção e tratamento de
qualidade, e o respeito aos direitos e liberdades individuais.
• As intervenções na área de drogas não podem ficar na dependência
da boa vontade, do bom senso ou da experiência pessoal. As pessoas
que atuam na área devem adquirir competência técnica específica,
através de uma formação diversificada baseada em dados de pes-
quisa médica e das ciências humanas, numa abordagem interdisci-
plinar e política dos fenômenos da dependência de drogas.
• A troca de experiências favorecerá maior comunicação e colabo-
ração.
31
• Conclamamos as Organizações Não-Governamentais e Governa-
mentais a incluir usuários de drogas em seus conselhos, gerências e
direções.”21
21. Tanto a Lei de autoria do Deputado Carlos Minc, quanto a Declaração supra constam
do sítio da “Psicotropicus.org”.
22. http://dtr2001.saude.gov.br/sas/PORTARIAS/Port2005/GM/GM-1028.htm.
32
VI – o reconhecimento do “não-uso”, do “retardamento do uso” e da re-
dução de riscos como resultados desejáveis das atividades de natureza pre-
ventiva, quando da definição dos objetivos a serem alcançados;(...) (grifei)
33
próprio (caso Ronaldo Lopes – “O Estado de S. Paulo” de 23/5/08,
p. A1).
34
sociais” (grifei). Sofre o usuário dependente, como sofre, por
exemplo, o portador de câncer. O sofrimento, em si, não auto-
riza qualquer cerceamento de direitos. O próprio estado de
saúde é que poderá fazê-lo, eventualmente acamando o en-
fermo e impedindo-lhe a locomoção e o voto, por exemplo.
Mas, enquanto isso, o usuário é, como o paciente de câncer,
“cidadão pleno, com direitos e deveres”, para o qual se deve buscar,
nos tratamentos, a “reinserção” e uma “vida livre e responsável”.
Esta humanização do trato com esse segmento da sociedade
fica bem clara no seguinte artigo da Lei de 2006:
35
XI – a implantação de projetos pedagógicos de prevenção do uso indevido
de drogas, nas instituições de ensino público e privado, alinhados às Dire-
trizes Curriculares Nacionais e aos conhecimentos relacionados a drogas;
(...)”
36
BRASIL 2008 – MARIA JOANA
EM DESFILE E LIMINARES
EM MARCHA
37
A partir daí, embora aquele movimento seja a favor da
legalização “de todas as drogas”, seus militantes inseriram-se no
calendário dos eventos internacionais da “Marcha da Maconha”.
Em 2004 e 2005, em São Paulo, a manifestação foi proibida
pela Justiça. Já no Rio de Janeiro, em 2005, conforme o sítio
do movimento, “centenas” de pessoas caminharam do Arpoa-
dor ao Posto 9. Em 2006, após a exibição de dois filmes sobre
o tema (“Grass” – de que voltarei a falar – e “Narcotráfico – En-
tre a mentira e o espanto”) no Instituto de Filosofia e Ciências So-
ciais da UFRJ, cerca de 100 pessoas caminharam, em marcha,
do Largo de São Francisco até a Cinelândia.
A “Marcha” ocorreu também em 2007, entre o Arpoa-
dor e Ipanema. O hoje Ministro do Meio Ambiente, Carlos
Minc, participou. Cerca de 200 manifestantes caminharam,
sendo que muitos, receando represálias, utilizaram máscaras de
políticos e artistas conhecidos por já haverem defendido a li-
beração da droga, como Fernando Gabeira, Sérgio Cabral,
Marcelo D2. Desse ano, vem o embrião das proibições em
2008, quando o assunto gerou maior polêmica. É que a Mar-
cha 2007 foi denunciada ao Ministério Público como apologia
ao crime, por representantes da Igreja Católica.
Em 2008, “a iniciativa surgiu de vários grupos que decidiram
se unificar a partir de uma bandeira legal”, explica Marco Sayão, um
dos participantes da Marcha da Maconha em São Paulo. “A
bandeira atual do movimento é a liberação para fins medicinais, fim das
prisões relacionadas às drogas e a regulamentação do uso.” Renato
Cinco, sociólogo preso enquanto entregava panfletos sobre a
Marcha no Rio de Janeiro, afirma que não defende nem esti-
mula o uso de entorpecentes: “o que propomos é que a sociedade dis-
cuta os efeitos da proibição e outras maneiras do Estado lidar com as dro-
gas”, diz.
Em São Paulo, em 2008, inicialmente liberada pelo Ju-
ízo de primeiro grau, foi vetada na véspera, em recurso do MP
à segunda instância. A proibição ocorreu, também, nos Esta-
dos do Rio de Janeiro, Paraná, Mato Grosso, Paraíba e Bahia,
38
dentre outros. Ao final, a marcha, inicialmente prevista para 13
cidades, só não foi proibida em Florianópolis, Porto Alegre,
Recife e Vitória.
O Juiz Pedro Sanson Corat, da Vara de Inquéritos Poli-
ciais de Curitiba, em decisão liminar, suspendeu a manifesta-
ção, que estava marcada para acontecer no dia 04.05.2008. Me-
recem citação trechos da sua decisão, onde reconhece que o
livre direito de reunião é garantido, desde que se vise à obten-
ção de fins lícitos:
39
zendo que a droga não faz mal, que vamos tratar a questão”. Sua peti-
ção foi indeferida pela Vara de Tóxicos do Fórum Lafayette.
Entretanto, a Promotora de Justiça Vanessa Fusco ob-
teve, na segunda instância no Tribunal de Minas Gerais, limi-
nar em mandado de segurança, proibindo a Marcha, sob o ar-
gumento de que o evento era uma forma de incentivar o uso
da substância. O Judiciário daquele estado oficiou ao comando
da Polícia Militar orientando a proibição do evento, sob pena
de prisão.
Em Fortaleza, o Ministério Público também obteve a
proibição na 1ª Vara de Delitos de Tráfico, que seria realizada
em um dos principais pontos turísticos da cidade, a Ponte dos
Ingleses.25
Em São Paulo, o Desembargador Ricardo Cardozo de
Mello Tucunduva também proibiu a manifestação dizendo que
a mesma “redundaria em ato ilícito”, já que “o simples uso da maco-
nha é ato ilegal”, determinando providências à Secretaria de Se-
gurança do Estado, pelo que os organizadores optaram pelo
cancelamento.26
Em Brasília, a Juíza substituta da 3ª Vara de Entorpe-
centes, Dra. Rejane Zenir Teixeira Borin seguiu o exemplo de
seus colegas, proibindo a manifestação, sob o argumento de
que “esse tipo de evento instiga o uso de entorpecentes, além de instigar a
prática de crimes, o porte e uso da droga”. Afirmou ainda que o local
e hora (domingo, às 14:00 horas, com saída da catedral de Bra-
sília) eram inapropriados, dada a presença de famílias, com cri-
anças e adolescentes. Também, no texto da liminar, ela deixa
claro o seu entendimento de que o direito de reunião pode ser
limitado diante de outros valores constitucionais, como a pro-
teção de interesses públicos.27
25. Informações sobre Curitiba, Belo Horizonte e Fortaleza, conforme noticias coletadas
no Portal Terra http://noticias.terra.com.br/brasil/interna/0,,OI2863109-EI306,00.html.
26. http://ultimainstancia.uol.com.br/noticia/50530.shtml
27. No sítio do jornal O Globo – On Line, em http://oglobo.globo.com/pais/mat/2008/05/02/
justica_proibe_marcha_da_maconha_prevista_para_comecar_na_catedral_de_brasilia-
427176037.asp.
40
Nos locais onde a Marcha ocorreu, alguns fatos mere-
cem registro. Em Porto Alegre, a Juíza Laura de Borba Maciel
Fleck, às 20h05, do sábado (3/5) concedeu habeas-corpus aos
manifestantes que assim, no dia seguinte, portando salvo-con-
duto, manifestaram-se sem incômodos policiais.28
Em Brasília, apesar do veto judicial, em frente ao Mi-
nistério do Trabalho, manifestantes deram-se as mãos, canta-
ram parte do Hino Nacional e deitaram-se no chão, figurando
com os corpos o formato da folha da maconha. Em seguida,
leram trecho do artigo 5º da Constituição Federal que fala so-
bre a liberdade de reunião.29
Em Recife, cerca de 100 pessoas se manifestaram, dis-
tribuindo panfletos defendendo a descriminalização da maco-
nha. Embora ninguém tenha fumado a droga, um grupo de
pessoas “brincou” com cigarros falsos.
No Rio de Janeiro, a Marcha, vetada pelo Tribunal de
Justiça, transformou-se em “Caminhada pela liberdade de expres-
são”, como ocorreu em outros lugares. Na capital fluminense
foi preso o advogado Gustavo Castro Alves, de 26 anos, que
foi ao local de onde partiria a caminhada (praia do Arpoador),
conduzindo sua cadela (pobrezinha!) que carregava um cartaz
no pescoço onde constavam as frases: “A estupidez é essência do
preconceito. Legalize a cannabis”. Na Paraíba, segundo a PM, fo-
ram oito os detidos, mesmo saldo da Polícia em Salvador.30
Paralelamente à tentativa de realização da Marcha na ca-
pital fluminense, 200 pessoas participaram da manifestação “O
Rio em defesa da família”, na orla de Copacabana. A passeata foi
organizada pela Comissão Municipal de Prevenção às Drogas
da Câmara do Rio de Janeiro, para se contrapor à Marcha da
Maconha, ou seja, uma contramarcha. Conforme matéria no
28. Processo: HC 91.080.118.354, cfe a Revista Consultor Jurídico, citada em: http://direi-
toedemocracia.blogspot.com/2008/05/marcha-da-maconha-e-democracia.html.
29. Cfe. reportagem de Renata Mariz para o Correio Braziliense, disponível em: http://
w w w. c o r r e i o b r a z i l i e n s e . c o m . b r / h t m l / s e s s a o _ 1 3 / 2 0 0 8 / 0 5 / 0 4 /
noticia_interna,id_sessao=13&id_noticia=4152/noticia_interna.shtml .
30. Matéria e sítio na internet já citados.
41
“Observatório do Direito à Comunicação”,31 as palavras de ordem
eram em favor da família, dos bons costumes e da moral. Par-
ticiparam da manifestação crianças de um projeto social, esco-
teiros, atletas de um clube de futebol, integrantes do movi-
mento integralista e políticos, entre eles, a vereadora Silvia
Pontes (DEM) que explicou que o protesto não era apenas
contra a maconha, mas contra todos os tipos de entorpecen-
tes. A mesma vereadora, entretanto, teria dito: “Não sou favorá-
vel à legalização, mas não sou contra a marcha (da maconha). É um di-
reito deles. A gente deve brigar por aquilo que acredita”.
Os adeptos da “Marcha da Maconha” reagiram. Ainda no
Rio ocorreu, na semana seguinte, no mesmo local para onde
antes programada a Marcha, e onde realizada a “Caminhada”, o
“Dia da luta pela liberdade de expressão”, na praia de Ipanema.
Renato Cinco, já citado como um dos organizadores do
evento em todo país, repetiu: “não estamos defendendo o uso de
qualquer droga, mas a mudança da legislação”. Revoltou-se ainda
com as acusações de financiamento ilícito, divulgando os nú-
meros referentes à coleta de fundos, que eram provenientes
basicamente da venda de camisetas.
O professor de Antropologia Edward Macrae, presi-
dente do Grupo Interdisciplinar de Estudo do Uso de Substâncias Psi-
coativas afirmou que ocorrera, com as proibições, “uma absurda
interferência no direito de livre expressão do cidadão que está pedindo
para fazer uma mudança na lei”.32
“A necessidade de um amplo debate acerca dos efeitos da proibi-
ção do comércio destas substâncias psicoativas acaba sufocada pelo reduci-
onismo moral”, disse Orlando Zaccone, delegado de Polícia Civil
do Rio de Janeiro e doutorando em Ciências Políticas na Uni-
versidade Federal Fluminense. “Retornamos aos velhos argumentos
proibicionistas que vinculam drogas ilícitas à expressão do mal, principal-
mente no tocante à destruição dos “elevados” valores morais da família e
da sociedade brasileira”, garantiu. “Nos Estados democráticos e de di-
31. Idem.
32. Conforme consta em http://oglobo.globo.com/pais/mat/2008/05/0...a-427190900.asp.
42
reito, o campo das ações jurídicas não deveria ser confundido com o das
questões morais”.33
Bom, será que se trata só de cerceamento de liberda-
des, discurso retrógrado, “reducionismo moral”? Certamente que
não. Continue seguindo o fio tortuoso (admito), do meu racio-
cínio, caro leitor.
43
44
TODA MARCHA É GRITO,
TODO GRITO PROPAGA,
TODA PROPAGANDA INCITA
34. Idem.
45
e negros fizeram de sua marcha sobre Washington um grito
pela liberdade e espalharam ao mundo os valores dos seus ide-
ais. Há denúncia, há defesa e louva-se virtudes sempre, por-
tanto. Adeptos sempre são arregimentados.
Outro termo que nos ajuda na compreensão aqui ne-
cessária, é a palavra ‘passeata’, que traz como uma das defini-
ções, conforme o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portu-
guesa (Positivo, 2004): “marcha coletiva realizada em sinal de
regozijo, reivindicação ou protestos cívicos, ou de uma classe”. (grifei)
Logo, a “Marcha da Maconha” talvez melhor seja enten-
dida como uma passeata onde se estaria demonstrando ‘rego-
zijo’ pelos benefícios trazidos por aquela droga aos seus usuá-
rios. Neste sentido, poderíamos compará-la à “Marcha para
Jesus” onde, a cada ano, milhares de pessoas manifestam seu
‘regozijo’ religioso, com evidentes intenções proselitistas, tanto
no Rio de Janeiro quanto em São Paulo.
Mas, conforme o dicionário, a ‘Marcha’ poderia estar
promovendo ‘reivindicação de caráter cívico’. A comparação, aqui,
se faria melhor com a “Marcha a Brasília”, promovida periodi-
camente sob coordenação da Confederação Brasileira dos Mu-
nicípios, para apresentação das reivindicações daqueles entes
federativos. Logo, seria um ato de civismo a defesa da libera-
ção do consumo da droga? Parece que não. Sob essa ótica,
quando muito, poderíamos entender que a ‘marcha’ supunha
como cívica, a defesa do livre arbítrio na questão do con-
sumo da droga, sem interferência estatal. O tal ‘direito ao uso do
próprio corpo’.
Quanto ao aspecto de ‘reivindicação de classe’ – no que se
compararia com a “Marcha dos Sem-Terra”, também levada a
Brasília periodicamente, sob direção do MST – teríamos que,
aqui, abandonar os conceitos tradicionais, usados em econo-
mia ou política, de ‘classe’ no sentido de divisão do trabalho, de
camada social ou categoria de trabalhadores. A ‘classe’, aqui, é a
dos ‘usuários de maconha’ ou, eventualmente, até a classe dos ‘de-
fensores do livre arbítrio’.
46
De todo modo, seja lá por qual aspecto se veja o caso,
‘marchas’, historicamente, são utilizadas como veículos de ma-
nifestação política. Os partidos de esquerda radical sempre ti-
veram seus comitês de “agit-prop”, agitação e propaganda. Uma
das atividades mais comuns, além de afixação de cartazes, ma-
nifestações, comícios-relâmpago, panfletagens, é exatamente a
marcha ou passeata.
Na Marcha dos Direitos Civis, capitaneada 45 anos atrás
pelo Pastor Martin Luther King, ele pronunciou, em Washing-
ton, seu célebre discurso “Eu tenho um sonho”. Foi um marco na
luta pelos direitos civis dos negros americanos. Serviu para a
exposição do drama da segregação racial e para a propaganda
dos princípios defendidos pela militância dos direitos dos ne-
gros. O mundo agora assistiu, na eleição de Barack Obama
para a presidência dos Estados Unidos, os frutos do que se
propagou naquela Marcha.
Foi Mao Tsé Tung quem, na China, liderou “A Grande
Marcha”, que serviu para a divulgação das idéias dos revolucio-
nários chineses, no caminho até a vitória da Revolução Comu-
nista. Em seu texto “Sobre a Tática na Luta contra o Imperialismo
Japonês”, escrito em dezembro de 1935, o líder chinês disse:
“Mas pode perguntar-se: que significado tem a Grande Marcha? Nós
responderemos que, foi o de ter sido a primeira do seu gênero registrada na
História, um manifesto, um destacamento de propaganda e uma
máquina semeadora.”35 (grifei). A Marcha de Mao lançou as ba-
ses do que viria a ser a potência chinesa que hoje assombra o
mundo com seu poderio.
Às vésperas da invasão do Iraque pelas forças america-
nas, em 2003, movimentos civis americanos e grupos de artis-
tas – dentre os quais se destacou como liderança, o ator Martin
Sheen (que na época vivia o presidente americano no seriado
de TV “The West Wing”) – coerentes com os novos tempos,
promoveram a “Marcha Virtual em Washington”. Todos os meios
de comunicação (e-mails, faxes, telefonemas, etc.) foram mobili-
35. Em http://www.defesanet.com.br/zz/hist_great_march_1.htm
47
zados por milhares de manifestantes que demonstravam seu
inconformismo com a decisão prestes a ser tomada pelo presi-
dente Bush. Se esta Marcha não obteve êxito imediato, clara-
mente propagandeou a indignação que, mais tarde, contribui-
ria para a eleição de Obama.
Como se vê, ninguém realiza ‘marcha’ ou ‘passeata’, se
não pretende defender alguma proposta. Para que a defesa
tenha eficácia, necessariamente devem ser divulgados os bene-
fícios da proposta. Logo, realiza-se sua propaganda. Propa-
ganda, conforme o ‘Aurélio’, dentre outras acepções, é “pro-
pagação de princípios, idéias, conhecimentos ou teorias, sendo também di-
fusão de mensagens, geralmente de caráter informativo e persuasivo, como
o que se faz no mercado publicitário”. Apologia, também conforme
o dicionário, é “discurso para justificar, defender ou louvar, ou encômio,
louvor, elogio”.
No verbete elaborado para o Dicionário de Política orga-
nizado por Norberto Bobbio e outros, Giácomo Sani define a
‘propaganda’ como “difusão deliberada e sistemática de mensagens desti-
nadas a um determinado auditório, visando a criar uma imagem positiva
ou negativa de determinados fenômenos (pessoas, movimentos, aconteci-
mentos, instituições, etc) e a estimular determinados comporta-
mentos.”36 (grifei) Acresce que “em suas acepções mais correntes, a
Propaganda difere de outras formas de persuasão, enquanto realça ele-
mentos puramente emotivos, recorre a estereótipos, põe em relevo só certos
aspectos da questão, revela um caráter sectário, etc. (...)”.
Portanto, um movimento que se intitula ‘Marcha da Ma-
conha’, cujo sítio na internet adota como marca a folha da can-
nabis, não tem, obviamente, outra função que não defender o
uso da maconha, através da remoção do obstáculo legal hoje
existente. E há uma questão de lógica. Se a sociedade estatuiu
algo como crime, através de uma lei, o combate a essa lei, ne-
cessariamente resultará em incentivo ao crime que se preten-
deu coibir. Ainda que a Marcha defenda, implicitamente, a li-
berdade de escolha, no que poderia ser entendida como ato
48
cívico, propaga, necessariamente, os benefícios do consumo
da maconha ou, quando menos, tenta desmistificar seus male-
fícios, inclusive ‘realçando aspectos emotivos’ e ‘pondo em relevo só cer-
tos aspectos da questão’.
Logo, para mim, a ‘Marcha da Maconha’ faz propaganda
e, por conseqüência, apologia, de uma droga ilícita.
No passo em que estamos, não seria inconveniente que
tais debates fossem travados, por exemplo, como sugeriu o
promotor mineiro, no ambiente acadêmico, em discussões so-
bre a segurança pública ou, ainda, em comissões próprias do
Congresso Nacional. Neste particular cabe, para ser honesto
com as fontes, registrar que membros do Coletivo Marcha da
Maconha, teriam sido presos ao tentar realizar o Seminário
“Maconha na Roda”, no Rio de Janeiro, o que, se se tomaram as
cautelas referentes à não presença de menores, de que tratare-
mos no capítulo final, é absolutamente incorreto. O mesmo se
dera com estudantes da Universidade Federal de Minas Gerais,
impedidos de exibir dentro da Universidade o filme “Grass”,
documentário que debate as origens da proibição.37
Mas a ressalva feita nos é útil. Se no próprio ambiente
acadêmico, que defendemos como palco possível aos debates
pretendidos, há restrições, veja-se que as lideranças dos movi-
mentos pela liberação parecem esquecer que, até para modi-
ficá-lo, devem estar sensíveis e afinadas com o contexto histó-
rico em que atuam, respeitando seus ritmos. Se não há
consenso na academia, muito menos haverá nas ruas. A ‘Mar-
cha da Maconha’ violenta o senso comum, por mais críticas que
se tenha à forma como este se elabora. Mas o senso comum é
também o repositório profundo de costumes ancestrais, que
não se modificam do dia pra noite. Não existe acúmulo de re-
flexão sobre o tema, na sociedade, para que se pretenda, possa
o poder público permitir a realização de ato que defende,
ainda que por via indireta, uma ilicitude.
49
Alguém poderá pretender, como o fazem os defenso-
res da Marcha, que combater a escravidão, por exemplo, ou a
monarquia, eram também, em seu tempo, ilegalidades, ou,
quando menos, combates à legalidade. Os que principiaram tal
luta se colocaram no papel de vanguardas, à frente do seu
tempo. Mas há vanguardas que vão tão à frente que, conside-
rando um sistema de autódromo, chegam a estar em reta-
guarda, por vezes. Um velho sábio militante comunista (Hum-
berto Campbell, ex-presidente do Sindicato dos Bancários do
Rio, que sofreu as agruras do golpe militar), uma vez me ad-
vertiu: “O perigo de extremar-se à esquerda é que a luta política é um
círculo. Pode-se acabar na direita”. Lênin, estudando o “esquer-
dismo”, qualificou-o como a “doença infantil do comunismo”. Em cer-
tos aspectos, a luta pela liberação da maconha é uma enfermi-
dade pueril do “progressismo”.
Vanguardas, por vezes, caminham sem povo. Isoladas,
às vezes até obtêm aparente sucesso, mas provocam artificiali-
smos ou conchavos elitistas, como por exemplo, o artefato de
dominação monárquica que se tornou a República brasileira
dos primórdios, vencedora contra o Império do tão estimado e
republicano Pedro II, ou a vanguarda bolchevique, que acaba
abrindo as portas ao stalinismo.
Quem trabalha desafinado com a sua própria realidade,
desprezando o seu contexto, querendo “tudo ao mesmo tempo,
agora”, pretende o papel de vanguarda. E não é raro, entre
vanguardistas, existirem candidatos a mártires e heróis. Os
que foram presos nas marchas realizadas neste ano, são trata-
dos como heróis pelos militantes do movimento. E sua cora-
gem talvez mereça mesmo realce, em tempos de tantas covar-
dias. Mas...
Aqui surge uma grave questão. Supondo a disposição
ao martírio como aquela atitude extremada do que se propõe,
no limite, a arriscar sua segurança e sua vida por uma causa,
devemo-nos perguntar sobre a nobreza da causa. Morre-se por
liberdade política. Morre-se pelo direito de voto. Morre-se
50
pelo fim do preconceito racial. Morre-se na luta pela reforma
agrária. Agora, num país como o Brasil, supondo que as coisas
fossem assim extremas, vale a pena morrer pelo direito de fu-
mar maconha?! Cada um sabe aonde empenha sua alma, mas é
de gerar perplexidade. Não que causas menores não possam
embutir grandes princípios. Afinal, rebeliões nascem e trans-
portam grandes mudanças, por conta de aumento no preço do
pão ou do transporte, por exemplo. Mas martírios programa-
dos – sim, porque estes, da Marcha, o são – devem ser úteis,
sacrifícios buscados deveriam ser fundantes e oportunos. No
Brasil de hoje, esta parece uma luta, não só inoportuna, como,
ainda, indevida. Seja mártir, mas não seja idiota, diria o velho
Campbell.
Porém, como não uso os sapatos de ninguém, respeito
os calos de todos. Por isso a dor de cada um e, portanto, a
causa de cada um é urgente. Mas a luta exacerbada pelo que se
considera um progresso pontual pode gerar a reação de um re-
trocesso sistêmico. Apressar o rio com cascatas extemporâ-
neas pode derrubar barrancos e atrapalhar a irrigação que ma-
taria muitas fomes. Brecht, certa vez advertiu que as pequenas
mudanças eram inimigas das grandes mudanças.
51
52
CHEGOU A HORA DA
“MACONHABRÁS”?
A Marcha da Maconha
no contexto brasileiro
53
por particulares em planos de saúde já é maior do que o inves-
timento estatal na área.38
Quadro similar encontramos no sistema educacional.
As famílias de classe média investem no ensino particular,
dado o quadro de abandono das escolas públicas. O pior é que
o sistema se afunila no terceiro grau, de forma a privilegiar, em
universidades públicas, o egresso da escola particular. A tenta-
tiva de reparar tal injustiça sistêmica surgiu apenas recente-
mente com a política de cotas nas faculdades públicas e de in-
centivo fiscal às particulares, visando ao ingresso de estudantes
carentes (PROUNI).
Mas o problema educacional é ainda maior no ensino
fundamental, onde temos recorde de matrículas, a partir de
programas como o Bolsa-Família, mas ao mesmo tempo, re-
corde de evasão e, pior, de analfabetismo funcional.
A situação econômica do país também não ajuda.
Mesmo aqueles que conseguem um grau de escolaridade avan-
çado, não conseguem colocação no mercado. Os empregos es-
casseiam e aumenta o emprego precário ou o subemprego. É
comum a existência de filas para concursos de garis, por exem-
plo (como ocorreu no Rio de Janeiro), onde buscam colocação
trabalhadores com diplomas universitários.
Outro fator de grande importância é a influência da
mídia sobre a população em geral e sobre a população infanto-
juvenil em particular. Até há pouco, havia descontrole total so-
bre conteúdos exibidos. As mazelas do período da ditadura,
com a censura implacável, deixaram produtores, artistas e exi-
bidores extremamente sensíveis e reativos a qualquer tentativa
de controle de programação e produtos audiovisuais. Essa
lacuna permitiu absurdos, que só agora começam a ser ti-
midamente corrigidos com a adoção da classificação indica-
tiva e com a tentativa de proibição da publicidade direcionada
54
a crianças. Mas a mídia eletrônica segue injetando valores ma-
terialistas, consumistas e deseducando a fraternidade.
Juntando-se os vários componentes do quadro – e há
muitos outros! – é possível montar um pano de fundo que in-
duz a juventude à desesperança. Contribui para isso a falência
das utopias e dos projetos políticos de construção solidária. O
jovem sabe que a escolaridade não é mais garantia de emprego.
Quando tem emprego, sabe que pode perdê-lo a qualquer mo-
mento. Preocupa-se intimamente com a questão da saúde,
muitas vezes vendo sua família passar dificuldades nessa área.
A reação de grande parte da juventude tem sido, na
falta de horizontes, mergulhar na “zoação”, buscar prazeres fu-
gazes, já que a felicidade efetiva parece distante. O ser humano
nasceu pra buscar sobrevivência, conforto e realização pessoal,
nesta ordem. Disponível só a demanda primária, as carências
se refletem nos elevados índices de alcoolismo e drogadição
precoces, no aumento da gravidez adolescente e na explosão
da violência infanto-juvenil.
Não se pode tratar a questão das drogas fora desse
contexto.
Talvez por isso, notórios defensores da liberação da
maconha, como o Deputado Federal Fernando Gabeira39 e o
Ministro do Meio Ambiente Carlos Minc, estejam revendo ou
mitigando suas posições. Claro que o mais provável é que o
atual comprometimento institucional desses políticos – um foi
candidato à Prefeitura do Rio e o outro assumiu o importante
cargo federal – os tenha levado a adaptações de discurso vi-
sando a não afugentar o público mais conservador.
Seja porque razão for, o fato é que eles, hoje, defendem
a liberação mais timidamente, condicionando-a a fatores
que antes não incorporavam à tese que sempre sustentaram,
como a reestruturação do aparato policial e a reeducação dos
agentes públicos.
55
Em entrevista recente a um jornal, Fernando Gabeira
afirmou que
40. http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20080827/not_imp231436,0.php.
41. http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2007/05/06/materia.2007-05-06.7579248418/
view
56
“A roleta-russa da dependência” é exatamente o nome de
um quadro-resenha da Revista Veja, em matéria sobre a questão
(“A volta por cima – Novos métodos de tratamento ajudam um número
crescente de viciados a vencer o horror das drogas”)42. Ali se divulga
obra lançada pela Editora Casa Amarela, “O Revólver que Sempre
Dispara”, de autoria de Emanuel Ferraz Vespucci e Ricardo
Vespucci. Emanuel é médico, atuante no tratamento de depen-
dentes químicos. “O livro traz uma estatística aterradora: entre 12%
e 15% das pessoas teriam predisposição orgânica ao desenvolvimento da
dependência. Para elas, a primeira dose seria como um jogo de roleta-
russa, cujo final seria sempre a tragédia.” O artigo da Veja revela
ainda que a maioria dos viciados internados em clínicas de re-
cuperação de dependentes químicos, usam mais de uma droga.
As mais usadas são: álcool 80%, cocaína 60%, maconha 40%,
remédios 25%, crack 25%. Na matéria, essa presença impor-
tante da maconha no contexto da dependência, é realçada pelo
depoimento de Leila Marcelino, de 39 anos. De classe média,
casada, dona de casa, mãe de dois filhos, Leila durante cinco
anos afundou-se na cocaína e no crack. Quando o marido per-
cebeu, ela já cheirava cocaína todas as tardes e o seu círculo de
amizades se resumia a traficantes e bandidos. Internada, recu-
perou-se, mas não esquece que tudo começou quando provou
maconha aos 30 anos, por causa de “um vazio inexplicável”.
O caso de Leila aponta outro fator que deve ser trazido
à discussão em terras brasileiras: o recorte social em que se en-
quadram os usuários de drogas. Pesquisa divulgada pela Funda-
ção Getúlio Vargas, no estudo “O estado da juventude: drogas, prisões
e acidentes”, trouxe dados reveladores, baseados na pesquisa de
orçamento familiar do IBGE, em que foram entrevistadas
182.000 pessoas em todo o país, no ano de 2003. O levanta-
mento indica, primeiro, que o consumidor de drogas no Bra-
sil é jovem. Enquanto a juventude brasileira (entre 10 e 29
anos) conta 39% da população geral, o número de jovens al-
cança 86% do total de usuários. O consumidor de drogas tí-
42. http://veja.abril.com.br/idade/educacao/pesquise/drogas/1625.html.
57
pico é também do sexo masculino. Enquanto os homens na
população brasileira são 49,82% do total, avolumam-se a 99%
dos usuários. Também – e aqui, o dado mais intrigante – pre-
domina o usuário pertencente à classe ‘A’. Para 5,8% de abasta-
dos na população brasileira, temos uma relação de 62% de
pertencentes a essa classe, dentre os usuários.
O coordenador da pesquisa da FGV, o economista
Marcelo Néri, fez questão de realçar a hipótese de eventual
desvio no resultado, por conta de possível falseamento nas res-
postas, no que concerne à classe dos usuários. A percepção de
impunidade pode dar aos mais ricos menos receio de se expor
do que os mais pobres.43
De todo modo, o Diretor-Executivo do Escritório das
Nações Unidas contra Drogas e Crimes (UNODC), Antonio
Maria Costa, na divulgação do “Relatório Mundial das Drogas/
2006”, alertou, ao anunciar que “o problema mundial das drogas
está sendo contido”, que era necessário passar da contenção do
problema para a redução. E qual o maior obstáculo para isso?
Giovanni Quaglia, representante do UNODC para o Brasil e
Cone Sul, alertou que “um dos problemas é que há muitos profissio-
nais, pessoas com alto nível de educação e renda, que usam drogas no
mundo todo”.44 Ou seja, o consumo de drogas pelos mais abas-
tados é que impede a redução do problema.
Renato Cinco pensa exatamente o contrário. No blog45
que mantém no ar, supõe que a repressão às drogas traz um
cunho de discriminação social. “Basta de guerra aos pobres!”,
brada, como título da página. Esta é igualmente a visão do
“Movimento Nacional pela Legalização das Drogas”, que também
mantém um blog na internet. Em um dos manifestos, chegam a
afirmar que, “a perseguição aos comunistas, ao ‘perigo vermelho’, foi
substituída pela repressão aos pobres, em nome da ilegalidade do comércio
das drogas”.
58
Um dos argumentos utilizados é o da perseguição ra-
cial e religiosa embutida na “guerra às drogas”, particular-
mente no tocante à maconha. Esta seria usada em rituais de re-
ligiões afro e orientais. Os hindus a utilizariam em devoção a
Shiva. O candomblé, para Exu. E os rastafaris, para Jah. Como
todas são religiões que escapariam ao padrão branco e euro-
cêntrico, a repressão à maconha seria sucedânea da repressão
àqueles cultos.46
Admito que há manipulação política da “guerra” pelos
governos americanos. O Plano Colômbia está aí, metendo
uma bota ianque nos costados da América do Sul. Mas dicoto-
mizar assim a discussão, entendendo toda tentativa de conten-
ção do uso de drogas como “guerra aos pobres” não parece
correto. A não ser que os mais ricos tenham se arvorado o pa-
pel de defensores dos direitos dos humildes, mas em benefício
próprio. Afinal, recente pesquisa revelou que a aprovação da
proposta de liberação das drogas encontra maior amparo nas
classes mais favorecidas, com esmagadora rejeição nas classes
mais pobres.
Três quartos dos brasileiros – ou exatos 76% – dizem querer que o con-
sumo de maconha siga proibido por lei, segundo pesquisa Datafolha.
Os que defendem que o uso não seja tratado como crime somam 20%.
Houve uma pequena oscilação em relação à última pesquisa sobre esse
tema, realizada em agosto de 2006. À época, 18% defendiam a des-
criminalização, enquanto 79% queriam que a maconha continuasse a ser
um caso de polícia. A defesa de mudanças na legislação é maior entre os
que têm escolaridade mais elevada. Entre os que possuem curso superior,
29% afirmam querer que o uso de maconha deixe de ser considerado
crime. A maior taxa de apoio à descriminalização da maconha foi encon-
trada no topo da pirâmide econômica: é de 33% entre aqueles com renda
de mais de dez salários mínimos. O maior apoio ao tratamento criminal
da maconha ocorre entre os que têm 60 anos ou mais (83%), entre os
##########
59
que ganham até dois salários mínimos e entre as mulheres (82% nas duas
categorias).47
60
Da mesma forma se posiciona o insuspeitíssimo rapper
MV Bill, do sucesso “Soldado do Morro” 50 e autor, com Celso
Athayde, do documentário “Falcão, os Meninos do Tráfico”, exi-
bido pelo Fantástico. O documentário chocou o país, revelando
a vida cruel dos pequenos soldados do crime em várias perife-
rias brasileiras. Perguntado, em ocasiões diferentes, sobre a li-
beração de drogas como solução para o problema do tráfico e
do vício, Bill não desconversa. É direto e incisivo, como na le-
tra de seus raps:
50. “Aquele que pede voto também jámatou/ Me colocou no lado podre da sociedade/
Com muita droga muita arma muita maldade/ Vida do crime é suicídio lento”
51. Indagado por Zezé Preto, na matéria “MV Bill fala sobre violência e divulga CD”, em:
http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=335045
52. No Progama Roda Viva, da TV Cultura, indagado por Jorge Antônio Barros. Em: http:/
/www.rodaviva.fapesp.br/materia/318/entrevistados/mv_bill_2005.htm.
61
Para mim, isso é papo de maconheiro. O tráfico não é o único problema da
comunidade, mas uma conseqüência da falta de eduação, saúde e oportuni-
dade. Nenhum jovem com quem conversamos foi para o crime para susten-
tar o vício. Ficavam viciados depois. A criação da Maconhabrás
não vai resolver o problema do tráfico, da violência e
nem da vida desses meninos.53 (grifei)
62
A declaração de Gog, a que Ferréz se reporta, foi
reproduzida em diversos sítios e fóruns ligados ao rap brasi-
leiro, recebendo apoios generalizados da tribo. No sítio “Rádio-
Rap – A voz do movimento HipHop”, o simples post da frase gerou
uma enxurrada de 107 comentários, todos favoráveis à posição
do rapper.55
Outro ponto interessante na conexão movimento-
classe social, é que, na Marcha da Maconha de 2007, cerca de
250 manifestantes caminharam, justamente... pela orla de Ipa-
nema, um dos metros quadrados mais caros do país. Claro que
podem ter escolhido o local não por sua referência classista,
mas tão somente pela possibilidade da repercussão. Mas, de
qualquer forma, não parece que existe, em todo movimento
contra a liberação das drogas uma “guerra aos pobres”, no sen-
tido amplo, pretendido por Renato Cinco e pelo Movimento de
Liberação das Drogas.
É indispensável notar outro aspecto quanto aos locais
escolhidos para as manifestações: bairros de classe alta, pontos
turísticos, praias da moda, parques. São, necessariamente, pon-
tos de grande afluxo de público, o que inclui crianças e adoles-
centes. Uma das coisas mais graves no Brasil de hoje é a não
percepção pela população, das conexões entre as próprias ati-
tudes dos adultos, da mídia, das empresas (e de manifestantes,
por que não?), e o reflexo na psique de crianças e adolescentes,
com conseqüências que movem a crise que vivemos no trato
da questão infanto-juvenil.
E aí, vamos a uma ocorrência, que deixa clara não só a
apologia nefasta, como ainda, em geografia indevida. Foi na
praia de Vinícius, à luz do dia, sob olhos de famílias e crianças,
que orgulhosamente, cantaram-se slogans como: “Eu sou maco-
nheiro com muito orgulho, com muito amor” e “tem que liberar a maco-
nha pra fumar”. Se for certo que nas passeatas de 2008 não
63
houve consumo, na de 2007, no Rio, os jornais chegaram a no-
ticiar, em manchete: “‘Maresia’ (como é chamada a fumaça de
odor característico que se espalha quando se consome maco-
nha) toma conta da orla – passeata pela descriminalização da maconha
tem consumo não reprimido da droga”. E as crianças lá, amigo!
Veja-se que, neste ano, o site da Organização “Marcha
da Maconha” exibiu uma inscrição de alerta, com as seguintes
advertências: “É proibido o uso de maconha na marcha. Proibido para
menores de 18 anos”. Aqui, um dos maiores contra-sensos. Como
falei antes, a Marcha se realizaria em pleno domingo, em regi-
ões de grande afluxo de famílias, com suas crianças e adoles-
centes. Como é que o pessoal queria “proibir” para menores de
18 anos um evento organizado praticamente dentro do
playground? Ora, eventos que não devem ser acessados por me-
nores de 18 anos, não se fazem em praças ou praias, mas em
recintos fechados. Falaremos disso mais à frente.
Por ora, constatemos que os próprios organizadores da
“Marcha”, portanto, entenderam inadequado que crianças ou
adolescentes saíssem pelas ruas cantando slogans ou gritando
palavras de ordem sobre o “orgulho de ser maconheiro” ou sobre
os benefícios da cannabis, ou presenciando essas manifestações.
Logo, deveriam compreender a absoluta inadequação de reali-
zarem sua manifestação nos locais e horários escolhidos.
Talvez por isso pesquisas, como a efetuada pelo Insti-
tuto Paraná demonstrou que oito entre dez curitibanos são
contrários à legalização da maconha, sendo que 77% dos parti-
cipantes da consulta apoiaram as decisões judiciais que proibi-
ram a realização da Marcha.
64
SANTA CANNABIS:
MAIS FORTES SÃO OS MILAGRES
DO CRISTO MACONHEIRO!
56. www.maconha.com
57. http://noticias.terra.com.br/ciencia/interna/0,5153,OI79346-EI298,00.html
65
Como o quiseram amante (ou esposo, conforme o modismo
da hora) de Maria Madalena. Fizeram-no de olhos azuis numa
época, negro na outra, mediterrâneo agora. O de Pasolini (do
filme “O Evangelho Segundo S. Mateus”) era meio careca. O dos
hippies, meio palhaço (no filme “Godspel”). Os afeitos a orienta-
lismos “descobriram” que Jesus aprendeu tudo o que sabia em
secretas viagens à Índia. Portanto, a levar a sério tantos desejos
divergentes, teríamos um Jesus Frankenstein, na verdade. A
um só tempo, por exemplo: negro, mas de olhos azuis, com
um terceiro olho na testa, mas praticando o kama-sutra, bisse-
xual, com peruca do Bozo e agora, maconheiro. Tô fora! A
mensagem de Cristo é universal não porque Ele tenha uma
aparência física determinada, ou porque pertença ou tenha
praticado, aprovado ou tolerado todas as possibilidades de
culturas e hábitos exteriores da existência humana. Jesus é uni-
versal porque há dores na alma que são comuns a hindus, bu-
distas, homossexuais, nórdicos, nigerianos, palhaços e maco-
nheiros. Mas isso é outra conversa.
Mas o fato demonstra bem o que se pretende da maco-
nha, a mitologia que a cerca. Assisti ao documentário de Ale-
jandro Landes, “Cocalero” (produção conjunta Argentina/Bolí-
via), na TVE-Brasil, em 25/10/2008, sobre os bolivianos
agricultores da planta de onde se extrai cocaína. Como se sabe,
há centenas de anos os indígenas habitantes do sudoeste da-
quele país mascam folhas de coca, tanto como ato religioso,
quanto como estimulante. No filme se esclarece como a ques-
tão do narcotráfico chega depois, com o homem branco apro-
veitando-se daquele traço cultural, para explorar os indígenas,
aprender-lhes os segredos do cultivo, e extrair das plantas a co-
caína. Sabe-se que a folha mascada, ou seu chá, oferece menos
danos ao organismo do que o pó resultante do seu refino.
Hoje, o movimento cocalero luta contra essa contradição. Por-
que, em dada altura da história, muitos se deixaram arrastar
aos negócios com o narcotráfico, quando a repressão chegou,
chegou de forma indistinta. Isso gerou rebeliões, protestos,
66
greves e um movimento social de tal importância que, recente-
mente, levou ao governo daquele país o cocalero Evo Morales.
Eles querem manter seus cultivos, e aí sim, porque é da tradi-
ção, os distingue como povo, faz parte da sua noção de identi-
dade e pertencimento.
Esta menção à cocaína serve para afastar qualquer pos-
sibilidade de a maconha possuir igual característica cultural. A
cannabis não é traço de identidade coletiva em populações do
Brasil, por exemplo. Os nativos da Bolívia chamam a coca de
“Inal Mama”, algo como “Mamãe Coca”. A ela oferecem tribu-
tos e oferendas, em rituais religiosos. A ela atribuem os suces-
sos e as vitórias da sua difícil vida. Suas folhas servem aos xa-
mãs dos povoados, para a leitura de presságios. As moças
enfeitam os cabelos com folhas de coca. E, em dada altura
do documentário uma índia entrada em anos afirma que o
mundo está nessa situação de guerra, porque “não respeita a
coca”. Isso em tom de recomendação da coca como chave para
a paz mundial!
Aliás, diga-se de passagem que, em Jerusalém, existe
um partido político chamado “Folha Verde” (Ale-Yarok) que re-
aliza “Pic-nics com Maconha”, como forma de congraçamento
entre árabes e israelenses. Os ativistas acham fundamental a
maconha como fórmula para o alcance da paz na região, por-
que torna as pessoas menos agressivas.58 Que os aviões bom-
bardeiem o Oriente Médio com cannabis, então! Oras...
Tenha-se claro que, no caso dos cocaleros, tratamos de
uma triste escolha entre cultivo da coca ou miséria completa,
entre a destruição de um traço de identidade e pertencimento
e a manutenção de uma prática sujeita aos perigos já vistos e
de difícil solvência, da exploração pelo narcotráfico. Escolhas
de Sofia. Tudo muito diferente da maconha. A não ser que os
bolivianos do documentário entendem, como também o fa-
67
zem muitos defensores da maconha, que na coca está nada
menos que a salvação do mundo!
59. http://www1.folha.uol.com.br/folha/reuters/ult112u3208.shtml
60. FONTANA, José Domingos. As variadas facetas da maconha. Em: http://blog.tudoso-
breplantas.com.br/2006/07/page/2/. Acesso: 15/11/08.
68
gano. Em 2007, Werner foi condenado à pena de multa e sete
meses de prisão, com execução condicionalmente suspensa.61
Já em 2002, a empresa farmacêutica britânica GW di-
vulgou estudo confirmando o sucesso da função terapêutica
da maconha.62 Segundo a notícia, os medicamentos à base de
cannabis “mostraram ser muito úteis para reduzir a dor em pacientes que
sofrem de esclerose múltipla”. Empresa dando airosas notícias do
seu produto... sei...
Dois exemplos de fármacos desenvolvidos com base
em canabinóides são o Marinol (Dronabinol) e o Cesamet (Nabi-
lone) elaborados pelos laboratórios americanos Roxane e Eli Li-
lly, respectivamente. Comercializados para o controle de náu-
seas em quimioterapias e como estimulantes do apetite,
durante processos de anorexia. Entretanto, os efeitos “psicotró-
picos” impossibilitam o uso terapêutico de vários compostos. 63
Pois é, parece que em toda questão envolvendo a ma-
conha, sempre há um porém. Para cada pró surgem sempre
muitos contras. E novos prós. E assim por diante. Marchas,
contra-marchas e marchas à ré, eu não disse? Disso, até hoje,
pelo menos, resulta uma soma zero. Ficamos no mesmo lugar.
E isso vem de longe. Com a história oscilando entre ascenso e
descenso da maconha como elixir miraculoso.
No “Pen Ts'oo Ching”, milenar texto medicinal chinês, a
maconha era indicada para asma, cólicas menstruais e inflama-
ções da pele. Tudo indica que fazia parte do herbário do impe-
rador Nung, da China, há quase 5.000 anos. Outro tratado chi-
nês de 2.000 anos indicava seu uso como anestésico em
cirurgias. Já na medicina Ayurvédica da Índia, a maconha era re-
comendada como hipnótico, analgésico e espasmolítico.
No Brasil, antes da proibição, de 1830, costumava ser
vendida em farmácias, sob o nome de “cigarros índios” (por ser
planta originária da Índia) ou “cigarros da paz”, indicados para
61. MAIEROVITCH, Walter Fanganiello. Doutor Maconha condenado na Suíça. Em: http://
www.ibgf.org.br/index.php?data[id_secao]=4&data[id_materia]=1280. Acesso: 15/11/08.
62. http://www.parana-online.com.br/editoria/mundo/news/32022/
63. http://www.zegs.com.br/2008/10/9/Pagina2223.htm
69
curar sintomas da asma e para tratamento da insônia. Mas seus
primeiros registros “medicamentosos” formais são do século
XX. “Os que propunham o uso médico da maconha não apresentam ne-
nhuma novidade pois, na primeira edição da Farmacopéia Brasileira, de
1929, a sua monografia incluía, junto com o extrato fluido (solução), o pó
e a tintura (solução alcoólica) de cânhamo indiano (cannabis)”. Entre-
tanto, “Já na segunda edição, editada em 1959, ela foi retirada porque
os especialistas da época julgaram-na sem nenhum valor terapêutico”
afirma o Dr. José Elias Murad, em seu livro “Maconha: A Toxi-
cidade Silenciosa” (O Lutador, 1996). 64
Ou seja, a maconha servia, depois não servia mais. Mas
a guerra de “certezas científicas” não acaba. Tem sido muito
difundida nos últimos tempos a defesa dos supostos benefí-
cios do consumo da maconha. Para mim, uma das inconfessa-
das razões, certamente, é que anunciar teorias da conspiração
por trás da proibição da maconha dá ibope certo. Quase tanto
quanto descobrir que o santo na história era Judas, ou que a
deusa, no evangelho, em verdade, era Maria Madalena. Só a re-
vista “Superinteressante” efetuou a publicação de duas edições
especiais em que revelava, conforme o nada modesto título da
matéria: “A verdade sobre a maconha”.65
A reportagem divulga um histórico dos acontecimen-
tos que levaram à proibição da maconha, nos Estados Unidos.
Menciona que a erva era utilizada em larga escala por minorias,
como árabes, chineses, mexicanos e negros. Também no meio
artístico, músicos a consumiam, com entusiasmo. A lei seca
dos anos 1920, teria provocado grande incremento no con-
sumo, como alternativa ao álcool, surgindo, inclusive, bares es-
pecializados.
64. Cfe. José Antonio Mariano da ABRAFAM – Associação Brasileira de Apoio a Famílias
de Drogadependentes, no artigo “Maconha, naturalmente devastadora”, baseado no livro
"Maconha: A Toxicidade Silenciosa", de José Elias Murad (Editora O Lutador, 1996), disponí-
vel em: http://www.impacto.org/drogas/art1.htm.
65. Editora Abril, agosto de 2002, matéria de capa. Depois foi republicada como encarte,
em edição posterior.
70
Denis Russo Burgierman, o autor da matéria, afirma
que a proibição decorreria de uma conjugação de mora-
lismo puritano, interesses das indústrias de papel e tecela-
gem (que pretendiam se livrar da concorrência dos derivados
do cânhamo) e criação de ferramentas de controle sócio-polí-
tico das elites brancas americanas sobre minorias internas e
países periféricos. Embora se relate que a Declaração da Indepen-
dência Americana se teria firmado sobre um papel feito de fibra
de cânhamo,66 isto não obstou a repressão crescente que se
verificou.
É destacado o papel exercido por Harry Anslinger,
funcionário do governo americano que dedicou-se à tarefa de
combater a produção, o comércio e o consumo da maconha,
através do Birô Federal de Narcóticos, criado em 1930. Denuncia-
se que Anslinger teria, além de interesses carreiristas, outros
não confessados.
71
lliam Randolph Hearst, dono de uma imensa rede de jornais. Hearst era
a pessoa mais influente dos Estados Unidos. 67
67. Em artigo de autoria não creditada, “Por que é proibido? Parte 1 – Sede de Poder” em
http://us.geocities.com/plantadeuses/Pqproibido.htm.
68. O autor da reportagem menciona matéria publicada em 1937 na revista “American Ma-
gazine” que mencionava um falso homicídio praticado por um usuário de maconha.
72
Importante dissecar o passado para conhecer-lhe as raízes.
Mas como o tempo não volta, precisamos agir corretamente
agora. E se dispensamos mau-caratismo, também não de-
vemos ser vitimados por ingenuidades. Pessoas boas, até de
excelente caráter, podem ser muito danosas, se são ingênuas.
Assim é que Von Braun serviu primeiro a Hitler e depois à
NASA, tendo contribuído com seus estudos para o desenvol-
vimento da bomba atômica e de armamentos de destruição
em massa de longo alcance; o “inofensivo” Truman ordenou a
desnecessária tragédia de Hiroshima e Nagasaki; e militantes
políticos presos na Ilha Grande educaram presos comuns em
técnicas e estratégias que resultaram na organização do “Co-
mando Vermelho”.
Já mencionei antes o documentário “Maconha” (Grass),
do diretor canadense Ron Mann, cujo DVD foi vendido nas
bancas de jornal.69 O filme segue a mesma linha de argumen-
tação da reportagem da Revista Superinteressante. Após mostrar
os interesses envolvidos na campanha de descriminalização, e
também o pitoresco ou, até hilário de algumas das peças publi-
citárias utilizadas (com maconheiros histéricos e muito ativos),
tenta desmistificar a questão da dependência e das conseqüên-
cias, de uma forma que pode ser resumida na (absurda!) frase:
“o consumo moderado de maconha não provoca nenhum dano sério à
saúde”, estampada na embalagem e no livreto que acompanha
o disco.
Daí seguem, o documentário e seu encarte, alinhando
percentuais irrisórios de dependência, danos cerebrais que se-
riam muito pequenos na comparação com a mesma ordem dos
73
distúrbios provocados pelo consumo de álcool, dizendo não
haver prova científica de danos à fertilidade, ao sistema imuno-
lógico e à sanidade mental. Entretanto, concorda que sua ação
sobre o sistema imunológico “pode ser um risco para doentes de
AIDS”, que “a memória de curto prazo funciona mal sob o efeito de
maconha e, sem ela, as memórias de longo prazo não são fixadas”, que
“a droga deve ser evitada por quem sofre do coração”, “que usuário fre-
qüente tem o número de espermatozóides reduzido”, “que a droga pode
precipitar crises em quem já tem doenças psiquiátricas” e que “é melhor
evitar qualquer droga psicoativa durante a gestação”.
Concorda, ainda, quando responde à pergunta direta,
“Maconha faz bem?”, que “no geral, não”. Mas, admite que “o fato é
que, para quem é dependente, maconha faz muito mal. Isso é especial-
mente verdade para crianças e adolescentes. O maior risco para adolescen-
tes que fumam maconha é a síndrome amotivacional, nome que se dá a
completa perda de interesse que a droga causa em algumas pessoas.”
Disserta, também, sobre os efeitos terapêuticos da ma-
conha, que aliviaria as náuseas de pacientes em tratamento
quimioterápico de câncer, os sintomas dos portadores de
esclerose múltipla, a pressão intra-ocular, noticiados tam-
bém efeitos benéficos no tratamento da ansiedade e no uso
como analgésico. Funcionaria bem como linha auxiliar no tra-
tamento da dependência de drogas mais danosas, como o crack
e a cocaína.
Talvez com uma ou duas lacunas, estão aí, resumidas,
as linhas mestras dos argumentos dos que defendem a libera-
ção da maconha.
74
centes e famílias, para tratar da questão da dependência quí-
mica. É membro da equipe técnica da “Associação Parceria Con-
tra Drogas” e do “Board of Directors of International Association of
Group Psychotherapy”.
Um de seus livros de maior sucesso é “Juventude & Dro-
gas: Anjos Caídos”, destinado a pais e educadores.70 Já na intro-
dução, o mestre afirma que: “Muitos jovens curiosos, problemáticos
ou aventureiros são assolados pela propaganda enganosa e acabam mergu-
lhando nas drogas. A partir daí, a droga atinge os mais preservados re-
cônditos bioquímicos dos neurotransmissores e seus receptores e pode tra-
zer sensações de prazer. Então, antes mesmo de nosso jovem perceber que
não consegue mais se livrar dela, a relação entre droga e usuário começa a
ficar mais séria, pois foi instalado um novo vínculo – o vício”.71 E ao fi-
nal da introdução, conclama pais, filhos, professores, alunos,
parentes, amigos e colegas a aceitarem o desafio de enfrentar
as drogas “corajosamente, mesmo nadando contra a correnteza”.
Há um capítulo dedicado à maconha, no qual o autor
descreve o processo de sedução que leva ao consumo da
droga. O jovem, em geral, passou a sua infância e começo da
adolescência ouvindo alertas contra as drogas, na escola e na
família. Ao contrário do álcool e do tabaco, maconha não é
anunciada na TV ou, em tese, em qualquer mídia. Isso torna
eficazes, por um período, as advertências familiares. Ocorre
que adquire maior independência em relação à família, justa-
mente no período em que é redefinido o seu “sistema de recom-
pensas”. Este é o processo pelo qual o nosso cérebro processa
as informações neurais, identificando aquelas situações, práti-
cas ou estímulos que podem provocar sensações agradáveis.
As que proporcionam maior liberação dos neurotransmissores
do prazer tendem, obviamente, a ser repetidas.
O jovem, então, passa a freqüentar círculos em que,
não só, tudo o que foi aprendido antes sobre as drogas é con-
testado, como, ainda, consumidores de certas drogas podem
75
ser vistos como lideranças positivas naquele contexto, ou
como membros de realce na tribo. O companheirismo, nestes
casos, praticamente “exige” a experiência do consumo. O jo-
vem, então, vencida esta primeira barreira, pode tornar-se usu-
ário. Daí, é possível a evolução para a dependência química.
Essa pequena “novela” hoje acontece em ambiente só-
cio-econômico muito mais desfavorável à possibilidade da re-
sistência à adicção. As famílias em crise vêem aumentar o nú-
mero de filhos de casais separados, e mitigar-se a autoridade
parental. Sobre isso, veja o que dispõe a Secretaria Nacional
Antidrogas, sobre os fatores familiares que contribuem para o
risco do consumo de drogas por adolescentes:
72. http://www.obid.senad.gov.br/portais/OBID/index.php.
76
Dentro desse tema, torna-se extremamente pertinente
a descrição que faz o professor Içami Tiba no seguinte trecho:
73. pp. 37
74. pp 43
75. pp. 46
77
americanos National Institute on Drug Abuse (NIDA) e pelo Nati-
onal Institute of Health (NIH) a cartilha “Maconha – Informações
para os Adolescentes”. A capa é ilustrada, sintomaticamente, por
um trabalho de uma criança de 09 anos de idade, vencedora de
um Concurso Nacional de Cartazes promovido em 1999 pela
própria SENAD. Uma frase se destaca no desenho do menino
Kelvin Gmack: “Dê um salto para a vida”, seguida de uma inscri-
ção diminuta onde é possível ler “Não use drogas – é o código da
vida”. Todas as páginas do livreto trazem ao pé a expressão
“Diga sim à vida”. Os dizeres mencionados não poderiam ser
interpretados como divulgação dos benefícios do entorpe-
cente. Logo, a contrariu sensu, a opção pela maconha não é uma
opção pela vida.
A cartilha, inicialmente, busca desmistificar algumas
preocupações, afirmando, por exemplo: “A maioria dos jovens
não fuma maconha e, possivelmente, nunca a usará. Menos de um de cada
cinco estudantes no último ano da escola fuma maconha”; “A maioria das
pessoas que usam maconha não passam a usar outras drogas ilegais”.
Entretanto, há na cartilha governamental também posi-
cionamentos claros sobre os efeitos negativos da maconha,
que seguem resumidos. Em todas as modalidades, a maconha
altera a função normal do cérebro, provocando problemas de
memória e aprendizagem; alteração nas percepções visual, au-
ditiva, de tato, e do sentido de tempo; dificuldades de raciocí-
nio; menor coordenação física, ansiedade, ataques de pânico e
aceleração cardíaca. Conseqüências que se agravam quando há
mistura da maconha com outras substâncias. O desempenho
escolar, claro, é prejudicado.
A cartilha também adverte para a forte relação entre
uso de drogas e as práticas sexuais de risco, que podem levar à
AIDS. O consumo regular de maconha contribui para alguns
tipos de câncer e doenças dos sistemas respiratório, imunoló-
gico e reprodutivo. A maconha é perigosa para a segurança do
trânsito, porque tanto o motorista quanto o pedestre rea-
gem com maior lentidão aos estímulos visuais e auditivos im-
78
portantes. Alguns estudos indicam que os bebês de mães que
fumam maconha nascem com menor peso, altura e cérebros
menores. O usuário de maconha pode se tornar dependente,
desenvolvendo também tolerância que provoca exacerbação
do consumo.
79
Conforme Tripicchio, em 1990, foram descobertos os
receptores canabinóides específicos no cérebro. Os estudos le-
varam a concluir que o THC – tetraidrocanabinol, uma das
substâncias psicotrópicas encontradas na maconha – seria ca-
paz de interferir nos receptores da anandamida nos neurônios.
O cérebro utilizaria anandamida para modificar a sensibilidade
à dor. Disso resultaria que, a partir do THC, poderiam ser de-
senvolvidos remédios que aliviassem dores não resolvidas por
tratamentos à base de ópio e morfina.
As pesquisas indicaram, entretanto, que a maconha
também causaria efeitos graves como: diminuição das funções
cognitivas, comprometimento da memória, da atenção, da crí-
tica e do julgamento. Em consumidores abusivos poderia
ocorrer um sofrimento neuronal irreversível, levando à ne-
crose de tecidos. A inibição do córtex e do sistema lím-
bico causadas pela maconha poderia levar a surtos psicóticos.
Também poderia ocorrer diminuição da atividade cerebelar,
com alteração da coordenação motora, da sensibilidade aos es-
tímulos orgânicos e na capacidade de aprendizagem. Uso con-
tínuo também provocaria perda das noções de tempo, veloci-
dade e distância.
Tripicchio afirma que a maconha seria grande causa-
dora de boa parte dos acidentes fatais com motocicletas e au-
tomóveis entre adolescentes, e que “Experimentos com pilotos de
aviação mostraram que a maconha é mais perigosa que o álcool e, claro, o
perigo é maior ainda com a mistura de ambos”. O THC seria 4.000
vezes mais potente que o álcool nas doses equivalentes para di-
minuir o desempenho do motorista.
Ainda conforme o pesquisador, a maconha teria meno-
res possibilidades de causar câncer do que o tabaco. Entre-
tanto, outras substâncias presentes na erva seriam mais dano-
sas ao sistema traqueobronquial. A proporção de malefícios
ofereceria uma taxa de equivalência de 03 baseados/dia provo-
cando os mesmos danos que 20 cigarros/dia. A maconha tam-
bém pode, ainda, baixar a imunidade do indivíduo. No caso de
80
grávidas que consomem maconha, pode induzir aborto espon-
tâneo ou parto prematuro e atrasos no desenvolvimento inte-
lectual, baixo peso corpóreo e pequena estatura do feto.
Pesquisa do Departamento de Saúde do Canadá detec-
tou, na fumaça da maconha, toxidade maior do que a geral-
mente admitida. Na comparação com cigarros de nicotina, a
fumaça da maconha traz 20 vezes mais amônia, um elemento
químico ligado à ocorrência de câncer. Há também cinco vezes
mais cianeto de hidrogênio e óxido de nitrogênio, ligados a da-
nos causados no coração e pulmões, respectivamente. A pes-
quisa foi publicada na revista especializada New Scientist. Frente
aos resultados, Richard Russel, especialista na Clínica de Tórax
Windsor declarou que
78. In “Fumaça de maconha é mais tóxica que de cigarro, diz estudo” – disponível em :
http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/12/071219_maconhafumacafn.shtml
79. MAIEROVICH, Walter Fanganiello. MACONHA: risco aos tios da meia-idade.
Em: http://www.ibgf.org.br/index.php?data[id_secao]=4&data[id_materia]=770. Acesso em
15/11/08.
81
vos de maconha. Mas eles ocorrem. Em setembro de 2007,
foi divulgado um caso de doping do respeitado velejador
suíço Simon Daubney, da equipe do veleiro campeão Allighi.
Ele participava da Copa América de Vela, e acabou sendo
desligado da equipe. Como o atleta, muito considerado por to-
dos, e conhecido de seus colegas como avesso ao consumo
de qualquer droga, a suspeita é de que tenha havido, con-
forme disse o líder do seu time, “contaminação ambiental”, ou
seja, fumo passivo.80
Malefícios ao fumante passivo de maconha foram reve-
lados em pesquisa divulgada na Inglaterra. Metade dos cães
encaminhados a clínicas veterinárias com sintomas como ata-
ques de vômitos, dificuldade de movimentos, aumento de bati-
mento cardíaco e tonturas, tinham sido intoxicados por maco-
nha consumida pelos donos. As ocorrências foram observadas
também em papagaios e gatos. Em entrevista, o veterinário
Scott Miller recomendou que não se utilizasse drogas próximo
a crianças e animais domésticos.81
Mas tem mais, e convém avisar deste ponto aos adoles-
centes que querem sair por aí “beijando muuuuito”. Pesquisa pu-
blicada na Nova Zelândia, na revista Journal of American Medi-
cal Association, revelou que usuários freqüentes da maconha
têm quatro vezes mais chances de danificar gengivas, além de
duas vezes maior risco de perder os dentes. Cuidado, maco-
nheiro apaixonado!
Já que passamos pela Oceania, vamos dar uma pousa-
dinha. Conforme a Revista VEJA, ali se realizou aquele que é
tido como o maior estudo já feito sobre a cannabis, sua relação
com a juventude e os seus efeitos. Foi trabalho do médico e
professor Dan Fergusson, da Universidade de Otago. Entre
82
1991 e 2002, ele acompanhou um grupo de 1.265 pessoas nas-
cidas em 1977. Logo, elas tinham 14 anos, no início do traba-
lho. O resultado mostrou que, aos 25 anos, mais de 70% delas
já haviam pelo menos experimentado a droga, embora apenas
9% tenham se tornado severamente dependentes. Embora
isso pudesse indicar que a maconha seria uma droga inofen-
siva, esta não é a conclusão de Fergusson.
(A) maconha está longe de ser inofensiva. Entre seus usuários é maior a
incidência de baixo rendimento intelectual e de evasão escolar. Além disso,
seu consumo continuado aumenta o risco de surgimento de distúrbios psi-
quiátricos, principalmente depressão. E, finalmente, o uso de maconha esti-
mula o consumo de outras drogas. (...). E isso ocorre de duas maneiras –
que são bem diferentes e possuem implicações diversas. A primeira mostra
que o uso da maconha produz mudanças no cérebro, tornando o indivíduo
mais propenso à dependência química. Isso o estimula a procurar outras
drogas, mais pesadas. É um efeito físico sobre o cérebro ainda não suficien-
temente estudado e entendido, mas perfeitamente perceptível em suas conse-
qüências. A outra maneira pela qual a maconha leva a outras drogas é so-
cial. Como seu consumo é ilegal, as pessoas têm de se misturar aos
traficantes de drogas para consegui-la. Ao entrarem em contato com eles,es-
tariam expostas a outras drogas mais pesadas. Então a natureza ilegal da
Cannabis seria a causa do efeito porta de entrada. 82
83
• A cannabis afeta sua concentração, portanto não fume na escola, no
trabalho ou quando for dirigir;
• Quando a maconha é queimada, algumas substâncias prejudiciais à
saúde são liberadas (alcatrão e monóxido de carbono);
• A experiência faz com que o fumante saiba quando já fumou o sufici-
ente. Ele sabe a hora de parar. Se você não tem – ou tem pouca – ex-
periência, você não sabe a hora de parar.;
• Não é aconselhável combinar o fumo (da maconha) com bebidas
alcoólicas;
• Quando você come bolo de cannabis, é difícil saber a quantidade que
está comendo e leva de 45 minutos a uma hora para você começar a
sentir alguma coisa. Espere um pouco e não coma mais porque você
pode descobrir de repente que comeu demais e não ficar bem.;
• Se você está tomando algum medicamento, consulte um médico antes de
fumar cannabis. Como ocorre com o cigarro, não é aconselhável fumar
durante a gravidez.;
• As vezes ocorre de o efeito da cannabis ser ruim. Ela pode fazer você se
sentir mal ou provocar medo.;
• Você pode fumar cannabis de vez em quando por diversão ou pode
fumá-la tanto a ponto de perder o contato com a realidade.”
84
O Conselho de Saúde Mental da Austrália concluiu,
em 2006, o estudo “Where There´s Smoke: Cannabis and Mental
Health”. A constatação foi de relação entre consumo de maco-
nha e maior probabilidade de doenças mentais na juventude,
além de maior tendência à depressão em adultos.84
Outro fator de preocupação para a questão dos efeitos
da maconha na saúde do usuário é: de que maconha falamos?
Voltaremos a tratar do tema, mas já registremos. Não param as
pesquisas, concursos e experimentos para a obtenção de canna-
bis sempre de maior potência. É um mercado que cresce em
diversos países que possuem altos índices de consumo da
droga. Várias reportagens confirmam a preocupação do Escri-
tório das Nações Unidas contra Drogas e Crime (UNODC) que, em
seu relatório divulgado em junho de 2008, informa que “O ní-
vel médio da substância psicoactiva (THC) da droga quase duplicou no
mercado dos Estados Unidos entre 1999 e 2006, de 4,6% para
8,8%”.85 E o problema continua se agravando. O Potency Moni-
toring Project, da Universidade do Mississippi, indicou, em rela-
tório de 2008, que esse último percentual já subira para 9,6%,
em 2007.86 Por conta disto, aumentou a busca nos setores de
emergência dos hospitais americanos, de pessoas queixando-se
de efeitos graves e inesperados após o consumo dessa versão
mais potencializada da droga, a chamada “sinsemilla”. Evidente
que este novo quadro tende a confirmar, não só que o usuário
freqüente, desenvolvendo tolerância, passará a buscar versões
mais potentes da droga, como ainda, o consumo de tais ver-
sões ocasionará ainda maiores danos à saúde.87
Por fim, um argumento interessante de Fergusson, na
entrevista citada, é o de que a discussão sobre o que provoca
85
mais danos à saúde (se o cigarro ou a maconha, por exemplo)
turva o foco do debate. Ao invés de favorecer a maconha, o
discurso, na verdade indica que, supostamente mais danoso, o
cigarro é que deveria, então, ser proibido! Claro que isso não é
fácil, pois o tabaco, infelizmente, tornou-se uma instalação cul-
tural secular. A receita tem sido o cerceamento intenso ao ci-
garro, como veremos. Mas o que se pretende, exatamente, é
impedir que outras substâncias nocivas atinjam o mesmo de-
sairoso status. Na maconha, há outros pontos a considerar,
não somente a questão da saúde. Para ilustrar a complexidade
da questão, o médico afirma:
86
tro grupo de cientistas americanos comprovara a existência da
síndrome de abstinência por cannabis.90
De todo modo, a maioria dos argumentadores de am-
bos os lados, concorda que o índices de dependência de canna-
bis são menores se comparada, por exemplo, com a provocada
pelo consumo de cocaína. Os números variam conforme as
pesquisas. Entre 8 a 10% dos usuários de cannabis se tornariam
dependentes, contra cerca de 50% dos usuários de cocaína.
Isso não significa estragos menores. Um segmento de reporta-
gem especial da Revista Época (edição 183 – 11/2001), intitula-
se “Lições do abismo – Os casos extremos de dependência provocados
pelo uso de maconha existem. E são barra-pesada”. É descrita a expe-
riência do ator Robert Downey Jr, a quem o próprio pai ini-
ciou no consumo da erva, aos 08 anos de idade! A derrocada
foi veloz, numa seqüência de mergulhos em álcool, cocaína,
heroína, prisões, internações e fugas de clínicas de recupera-
ção. Histórias semelhantes, colhidas em clínicas brasileiras, são
mencionadas.
E a reportagem de Patrícia Cerqueira, Solange Azevedo
e Clóvis Saint-Clair, após referir que sequer são conhecidos
todos os princípios ativos presentes na maconha, disserta,
com clareza:
90. O trabalho de Alan J. Budney John R. Hughes Brent A. Moore Ryan Vandrey, “Existe
ou não existe uma síndrome de abstinência por cannabis?”, embora faça ressalvas metodoló-
gicas, é claro na comprovação da síndrome da abstinência. Em http://aed.one2one.com.br/
novosite/atualizacoes/as_205.htm
87
cada que se inicia cada vez mais cedo, portanto, é bom colocar o assunto em
seu lugar devido. Maconha, como uísque, é droga cujos efeitos se conhecem
no mesmo dia. Mas às vezes eles podem aparecer anos depois – e de forma
devastadora. 91 (grifei)
91. http://epoca.globo.com/edic/20011119/especial1c.htm.
92. No sítio já mencionado, da Fundação Albert Einstein, ver “Trajetória do uso de álcool e
maconha: da adolescência até o início da vida adulta”, de George C. Patton e outros. Publi-
cado em 31/07/2008. Em: http://aed.one2one.com.br/novosite/atualizacoes/as_267.htm
88
a maconha como uma droga ‘livre de problemas’ e procuraram por outras
drogas que fornecem novas sensações e que geram mais riscos93
93. Fundação Albert Einstein, sítio já mencionado. Ver: “Da primeira droga ao Crack: A
seqüência de drogas consumidas por um grupo de usuários na cidade de São Paulo”, de 05/
07/2007. Em: http://aed.one2one.com.br/novosite/atualizacoes/as_271.htm.
94. Idem. Ver “Panorama atual do uso de cannabis, procura por tratamento e perfil dos
usuários”, da European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction's. Handbook for sur-
veys on drug use among the general population – Annual report, 2004. De, 09/09/2005, em:
http://aed.one2one.com.br/novosite/atualizacoes/as_241.htm
95. Retrato Consultoria e Marketing. ALBUQUERQUE, Carlos. Perfil do Consumidor. Re-
vista O Globo. Ano 5, nº 223. p. 27.
96. “Fala sério”, reportagem da Folha de São Paulo, de 20/02/2006, disponível em http://
www1.folha.uol.com.br/folha/dimenstein/colunas/gd200206.htm
89
gravaram as conversas com os adolescentes assistidos no pro-
grama de desintoxicação. Eram todos usuários pesados de ma-
conha. Ninguém precisava pedir, eles já chegavam ao consul-
tório sob efeito da droga. Um dia as gravações das sessões
terapêuticas foram executadas para os jovens. A experiência
foi reveladora. Ao ouvirem a si próprios, os jovens se mostra-
ram “incomodados com as longas pausas entre as palavras, as frases sem
nexo, as hesitações, gagueiras e um tom de voz que lhes pareceu irritante.
Imaginaram-se ridículos falando em público”. Resultado: muitos per-
ceberam as alterações provocadas pela droga e passaram a
aceitar o tratamento com menor resistência. Com a medida, o
programa obteve o aumento dos períodos de abstinência.
Portanto, caro leitor, não se iluda. Exceções são exce-
ções. Maconha danifica o cérebro, causa dependência quí-
mica, dá câncer, estraga a boca, é porta para outras drogas, e
deixa o usuário parecendo um paspalho alegre e faminto. Só é
droga “da paz” porque causa inércia. Anestesia também é. Paz
por paz, há também a dos cemitérios. Não desejo nenhuma
dessas a você.
Logo, pesados todos os duvidosos prós e os muitos
contras, dá pra admitir uma Marcha que saia por aí, em frente
aos seus filhos, praticamente no playground da praça, incenti-
vando a galera a praticar roleta russa?
90
PAPO DOIDÃO: MACONHA “FREE”
QUANDO SE BUSCA REDUZIR
O CONSUMO DE ÁLCOOL E TABACO
97. Em “Tabaco & Tabagismo – Um panorama histórico, científico e cultural de um dos há-
bitos mais difundidos do planeta”, já citado.
91
Turquia, por exemplo. Em 1638, o imperador chinês também
determina pena de morte para os fumantes. Entretanto, o há-
bito do fumo prevaleceu. Hoje, conhecendo seu poderoso
efeito viciante, compreendemos melhor o erro. Os governos
passaram, então, a disciplinar o tabagismo através de mecanis-
mos fiscais. 98 No século XIX surgirão os charutos e cigarros,
em substituição ou complemento aos cachimbos e às caixinhas
de rapé. Daí emergirá uma indústria poderosa, que passará a
investir maciçamente em publicidade do produto.
Explode o consumo por todos os continentes e as in-
dústrias do setor tornam-se grandes fontes de receita para os
cofres estatais. Domingos Bernardo de Sá avalia serem as se-
guintes, as etapas que estabelecem uma droga em sociedade:
“a) descoberta; b) difusão; c) reação); d) compreensão; e) revolta; f) supe-
ração e g) controle social, apoiado, subsidiária e supletivamente, pela ad-
ministração pública.”99 O autor supõe que estaríamos na fase de
“compreensão” da realidade das drogas hoje ilícitas e que, natu-
ralmente, o processo evoluirá, da mesma forma que ocorreu
com o tabaco. Entretanto, parece não ser simples assim. A
“compreensão” que um dia permitiu a tolerância pode se alterar a
partir de novos dados, impondo revisão da liberalidade. É o
que vem ocorrendo com o tabaco.
A indústria tabagista especializou-se em mentir sobre a
relação tabaco x doença. Os governos faziam vista grossa, de
olho na receita de impostos. Enquanto isso, a indústria fomen-
tava o consumo através de publicidade agressiva. Os cartazes
do início do século XX apelavam para a inocência, mostrando
crianças – isso mesmo, crianças! Essa coisa também vem de
longe! – em cenas bucólicas, fumando seus cigarretes!100 Ho-
98. Dados em Caballero, citado por Domingos Bernardo de Sá, em “Capacidade Civil: um
direito penal?”, ensaio constante de “Drogas: é legal? Um debate autorizado”, de Francisco
Inácio Bastos e outro (Imago, 1993). Sobre a China e história do tabaco, ver “Tabaco & Taba-
gismo Um panorama histórico, científico e cultural de um dos hábitos mais difundidos do pla-
neta”, no sítio Álcool e drogas sem distorção da Fundação Albert Einstein – Sociedade Bene-
ficente Israelita, em: http://aed.one2one.com.br/alcooledrogas/atualizacoes/as_104.htm
99. Domingos Bernardo de Sá, idem.
100. Idem, inclusive com reproduções dos cartazes.
92
llywood se encarregou de criar uma aura de glamour para o con-
sumo. Quem resistiria a uma fenomenal baforada de Lauren
Bacall? Lá por detrás da tela do cinema, obscuras mortes. Os
atores Wayne McLaren e David McLean, que representaram
Marlboro Man, o cowboy da terra de Marlboro, em um famoso co-
mercial, caíram dos cavalos, abatidos por cânceres impiedosos
como vilões de faroeste. Já no fim do século XX, mesmo de-
pois de evidências escandalosas dos malefícios do cigarro, já
com algumas derrotas para portadores de câncer nos tribunais,
o engodo continua, e ainda mais cara-de-pau. Gerald H. Long,
Presidente da RJR Tobacco Company declarou ao Washington Ti-
mes de 19 de maio de 1986:
101. Idem.
93
pagar 246 bilhões de dólares para que os estados americanos
desistissem de levá-las aos tribunais.102 Os governos ficaram
mais atentos. Começaram as campanhas antitabagismo. Insti-
tuiu-se, a partir de 1987, o 31 de maio como Dia Mundial de
Combate ao Fumo. Sob sintomático patrocínio do Instituto Nacio-
nal de Câncer (INCA), o Brasil participa do esforço desde 1989.
O Ministério da Saúde criou em 1986 o Dia Nacional de Combate
ao Fumo (29 de agosto).103 Em 1992, a Assembléia da Organiza-
ção Mundial de Saúde (OMS), adota Resolução visando à adoção
da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco pelos 191 países
integrantes.
Em relativamente pouco tempo, proibiu-se o fumo em
coletivos, em aviões, em auditórios e locais fechados. Empre-
sas começaram a impedir o fumo em seus ambientes. Num
primeiro passo foram improvisados “fumódromos” internos.
Depois, estes não foram mais admitidos, e os fumantes passam
a utilizar áreas externas aos prédios. O recado era claro: o ci-
garro ou o emprego. Diminuiu drasticamente o consumo em
ambientes de trabalho. O fumante passivo descobriu que não
era mais possível consentir com o vício alheio, porque não
prejudicava somente ao usuário. Fumantes passivos também
morrem de câncer! Em alguns países da Europa já se estuda,
não apenas a proibição do fumo em lugares públicos fechados,
mas também nos abertos, como praças públicas, ruas de pe-
destres, etc.
Os orçamentos de saúde pública foram altamente im-
pactados pelas verbas direcionadas ao atendimento das vítimas
de doenças originadas pelo consumo de tabaco. Além das re-
parações judiciais, muitos governos buscaram readequar orça-
mentos, privilegiando campanhas de prevenção. O circuito de
Fórmula 1 já conta com Grandes Prêmios em que algumas tradici-
onais patrocinadoras de escuderias não podem exibir sua pu-
94
blicidade nos macacões dos pilotos e nos carros, porque são
fabricantes de cigarros. Desde 1971, é proibida a publicidade
de tabaco nos canais de televisão dos Estados Unidos.104 No
Brasil, para cumprir mandamento constitucional (art. 220, §§
2º e 3º), só em 1996 foi editada a Lei 9.294, que estabelece di-
versas restrições à publicidade não só de tabaco, mas também
de álcool e outros produtos capazes de causar danos à saúde
da população. Os maços de cigarro passaram a trazer ilustra-
ções de pessoas e, mesmo de fetos, com prejuízos físicos, de-
formações e seqüelas, causadas pelo cigarro. Dentre outras
restrições, não é mais possível sugerir que tais produtos provo-
quem bem-estar, que sejam calmantes ou estimulantes, nem
associá-los a idéias de êxito sexual, ou de sucesso desportivo.
As empresas de cigarro reagiram, nem sempre da
forma mais ética. Quando a Prefeitura de São Paulo, em 1995,
baixou decreto proibindo o fumo em restaurantes e bares, fa-
bricantes de cigarros como a Philip Morris e a Souza Cruz usa-
ram uma associação de bares e restaurantes (Associação Brasi-
leira de Gastronomia, Hospedagem e Turismo) para atacar o decreto.
A ABRESI veiculou anúncios em jornais, contra o decreto do
prefeito Paulo Maluf, bancados pela indústria do cigarro.
“Tanto a Philip Morris quanto a BAT (Souza Cruz) não podem apare-
cer aos olhos da opinião pública para contestar a campanha (...) veiculada
pela prefeitura”, dizia o documento, intitulado “Estratégia”,
descoberto recentemente pela pesquisadora Sabrina Presman
em arquivos mantidos pela Universidade da Califórnia, em São
Francisco.105
Também no caso do álcool, o cerco se fecha. A publici-
dade tem sido seriamente regulada para impedir abusos, como
o da evidente fixação do seu destinatário preferencial, o pú-
blico infanto-juvenil. Horários são prescritos. Em vários muni-
cípios do país foi estabelecida uma espécie de mix de “lei seca”
com “toque de recolher”, com o fechamento dos bares aos finais
104. Idem.
105. Em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2209200801.htm.
95
de semana às 22 ou 23 horas, conforme a região. Com isto, di-
minuíram de maneira substancial os índices de acidentes de
trânsito e de criminalidade. As fabricantes de alcoólicos (pro-
dutos e pessoas!) também reagiram. Logo na edição da Lei
9.294/96, seu poderosíssimo lobby conseguiu fazer constar da
norma exceção absurda em favor da cerveja, já que foram al-
cançadas pela Lei somente as bebidas com teor alcoólico supe-
rior a treze graus Gay-Lussac. Contra isso se movimentam hoje
as autoridades da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sani-
tária) para buscar alterações, pretendendo-se, em nome da
saúde pública, que passe a ser considerada para abrangência da
lei, o percentual de 0,5º Gay-Lussac.
O índice pretendido pela ANVISA, aliás, foi o apli-
cado na Lei 11.705/08, chamada “Lei Seca”, que instituiu, no
Brasil, uma política de “tolerância zero” para consumo de álcool
por motoristas. Assim, qualquer ingestão de bebida alcoólica
pode ensejar a apreensão do veículo, a detenção do condutor e
a suspensão da carteira de habilitação. Após a medida, o país
inteiro acompanhou, com alívio e aprovação, 106 a divulga-
ção dos índices de drástica redução nos acidentes de trânsito.
Foram divulgadas também boas novas na contenção da violên-
cia urbana107.
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, modifi-
cando sua jurisprudência, fechou ainda mais o cerco, quando a
sua Terceira Turma decidiu que a seguradora não precisa co-
brir o seguro de vida de motorista embriagado. O entendi-
mento é de que o segurado, ao dirigir em estado etílico, não
106. Conforme o Detran do Mato Grosso, 64,7% dos consultados no sítio da autarquia, na
internet, aprovaram a lei e entendem rigorosa, mas necessária, devendo ser mantida como
está. Conforme “www.antidrogas.com.br/mostranoticia/php?c=4127&msg=pesquisa do site
do detran aponta aprovação da”.
107. O atendimento em hospitais caiu 43,5% na região metropolitana de São Paulo, após a
Lei Seca, conforme levantamento da Secretaria de Estado da Saúde. A Policia Rodoviária Fe-
deral identificou redução de 12% no número de mortes nas estradas federais nos primeiros 30
dias após a medida, na comparação com 2007. O IML de São Paulo apontou a redução de
63% em mortes nos finais de semana. Dados da Folha de São Paulo, conforme consta em
“www.antidrogas.com.br/mostranoticia/php?c=4142&msg=atendimento em hospitais cai
43,5% após a lei seca”.
96
cumpre com seu dever de lealdade, pressuposto básico de
qualquer relação contratual. 108
Essas ações de cerceamento ao direito dos usuários de
álcool e tabaco foram efetuadas a partir de cálculos que verifi-
caram o custo social de permitir-se a tais minorias o consumo,
sem qualquer restrição, dos referidos produtos. Não pode, a
maioria, pagar o custo em impostos e vitimização, da “regalia”
de alguns. Se “regalia” não mais for, se doença já é, que cuidem
de se tratar, é a mensagem.
O aparente sucesso da norma que tenta inibir a fatal
combinação entre álcool e direção já vem inspirando estu-
dos que viabilizem vedar outras situações potencialmente peri-
gosas. O Ministro das Cidades, Márcio Fortes, já teria enca-
minhado proposta ao Departamento Nacional de Trânsito –
DENATRAN, para estudos de normas que submetessem à
“lei seca” também os usuários de remédios controlados, passí-
veis de obstar a direção segura de automotores.109 Por sinal,
também a maconha está sujeita à aplicação da Lei Seca, con-
forme entendimento da Secretaria Nacional de Políticas sobre Dro-
gas – SENAD.110
A pretendida liberação da maconha a esta altura pa-
rece, portanto, um contra-senso. Diga-se, ainda, que no com-
bate ao consumo de drogas, já é visto como um fator danoso a
tolerância com que a sociedade encara o uso das chamadas
drogas lícitas, como cigarro e bebidas alcoólicas. O Delegado
Luiz Carlos Freitas Magno, do DENARC (Departamento de
Investigações sobre Narcóticos) de São Paulo, em palestra na
Universidade Metropolitana de Santos, afirmou que a preocu-
pação não só é procedente, como é “o grande problema contempo-
râneo” nessa área, pois a tolerância social com a bebida e o ci-
97
garro aumenta as chances de que o jovem se envolva com
maconha e cocaína.111
O pior é que, confirmando a comparação detectada
por Içami Tiba, do ruim com o péssimo, este é também um
dos itens mais apontados pelos defensores da liberação das
drogas ilícitas. A comparação da proibição da maconha, por
exemplo, com a licença ao tabaco, denunciaria a tal “hipocrisia”,
que acusam no sistema atual. O “cigarro mata mais que a maco-
nha” e o “álcool gera a violência que faz matar”, repetem. Por isso,
uma das linhas de reivindicação dos movimentos de liberação
é a unificação da política estatal de drogas, sejam ou não lícitas.
O argumento de fundo é que não deveria haver qualquer proi-
bição de substâncias em si, mas sim de usos inadequados. Ex-
plicando melhor: o que se pretenderia evitar não seria o uso do
álcool, mas o abuso. Não há como proibir solventes, porque
servem à produção, mas o uso indevido dos mesmos não pode
ser permitido. E a atitude estatal seria basicamente educativa.
Neste ponto, cabe trazer à luz um argumento de Dráu-
zio Varela sobre a decisão entre coerção versus educação, na
busca de comportamentos desejáveis ao bem comum. Em en-
trevista à Folha de São Paulo, provocado a comentar se não seria
por demais severa a proibição de consumo de tabaco em locais
fechados, que por isso deveria ser preterida, em favor da cons-
cientização quanto aos danos da nicotina, o médico assim se
pronunciou:
98
Ora, a atitude dos que pretendem a unificação da polí-
tica de drogas pode parecer lógica como meio de racionaliza-
ção, mas nunca como ferramenta de equalização de problemas
desiguais. E o que me preocupa é que a defesa da tese é feita
basicamente pelos mesmos que defendem a liberação de dro-
gas. Seria difícil, em política totalmente unificada, tratar ao
mesmo tempo com equilíbrio e necessária diferenciação o ilí-
cito e o lícito. A indevida benevolência com o lícito (álcool e
tabaco) pode contaminar o ilícito (maconha, cocaína e cia), fa-
vorecendo o discurso de liberação geral. Se médicos já apon-
tam tolerância indevida e excessiva com o álcool e o tabaco e
desta decorre impulso à experiência com outras substâncias
passíveis de causar danos ao usuário e prejuízos à sociedade
a eventual licitude de todas as drogas fatalmente induzirá a
maiores abusos. Política educativa alguma daria conta de tama-
nho estrago.
Perguntem, como fiz em Teresópolis, aos meninos que
cumprem programas de recuperação de dependência química,
sobre como foram seus passos iniciais na direção das drogas.
A resposta será: álcool e tabaco, porque são lícitos e social-
mente tolerados, seguidos pela “aventura” da maconha que,
embora não lícita, recebe a tolerância social crescente do dis-
curso pró-legalização. Se a maconha vier ao rol das licitudes,
formais ou informais, a primeira resposta passará a ser ál-
cool, tabaco e maconha. Na seqüência, provavelmente, surgirá
a cocaína, sucessora provável em “aventura”, “charme” e
proselitismo.
Sobre essa aceitação da coerção, percebida por Drauzio
Varela, pode-se criticá-la, entendê-la como autoritarismo pa-
ternalista, ou o que for. Mas é certo que funciona. Temos que
perceber onde moramos, meu caro. O Brasil, país adoles-
cente, criado em centralismo governamental, paternalismo
estatal e federalismo de mentirinha, ainda não se liberou des-
sas condicionantes. Ainda cabe ao Estado, por isso, sem per-
der o intento – essencial ao fortalecimento democrático – da
99
construção de autonomia e poder decisório da sociedade, um
papel reitor.
Inclusive, deve-se notar que os próprios consumidores
de álcool e tabaco, embora tenham protestado veladamente
aqui e ali, demonstraram conformidade com as restrições. Pro-
testaram, de maneira veemente mesmo, os fabricantes e os co-
merciantes dos produtos em questão. Aliás, seria, a esta altura
do desenvolvimento da consciência social sobre o tema, ridí-
culo, imaginar uma passeata de alcoolistas ou fumantes, cami-
nhando pelas ruas, em afronta ao consenso estabelecido pela
nação. Não me parece que seria bem acolhida uma “Marcha do
Tabaco” ou uma “Caminhada da Cachaça”, por exemplo. Aliás,
estas, na absurda hipótese de que se realizassem, significariam
publicidade, ainda que não comercial (apenas no sentido de
não divulgarem esta ou aquela marca específica). Mas di-
vulgariam um produto, cuja publicidade tem restrições. Logo,
aquelas ‘marchas’ não poderiam se fazer sem o cumprimento
da ordem de alerta para os malefícios do tabaco e do álcool,
conforme as prescrições legais. Soa estranho, assim, pretender
que uma passeata de “maconheiros” (como se intitularam,
em cantos de guerra, os próprios usuários participantes
da Marcha de 2006), ainda que marchando sob bandeiras de
“defesa da liberdade de expressão e de direito ao uso do próprio corpo”,
deva ser melhor acatada. E ainda mais, contando apenas parte
da história, fazendo supor que a maconha “não causa tantos da-
nos assim”.
Um fato notável revelado pela Revista Superinteressante,
na matéria mencionada várias vezes neste trabalho, é a Souza
Cruz ter registrado em 1997, no Instituto Nacional de Propriedade
Industrial, a marca “Marley”. É impossível não concluir que a
poderosa empresa, vendo aumentar o cerco contra o tabaco,
em paralelo aos reclamos pela liberação da maconha, já esteja
se preparando para lançar o produto para o novo mercado. Re-
duzidos os seus lucros com cigarros, serão compensados pelos
que possivelmente surgiriam com a maconha. Sabe-se que
100
muitos dos próprios defensores da liberação, a princípio, não
imaginam que esta se dê de forma ampla e irrestrita, com pu-
blicidade, inclusive. É provável que as propostas não admitam
a venda nos mesmos moldes em que se efetua o comércio de
cigarros. Entretanto, o lance dado pela Souza Cruz nesse jogo,
indica que a empresa quer estar preparada para a ocupação
massiva do mercado. Grandes empresas capitalistas não se
mobilizam e, logicamente, não registram marcas sem algum
lastro. Como vimos, atiram pra todo lado. Trabalham para en-
ganar a população sobre os reais efeitos dos produtos, mani-
pulam campanhas pelos “direitos dos usuários”, mas já se prepa-
r a m p a r a i nva d i r o n ovo m e r c a d o q u e a m a c o n h a
proporcionaria. Esse pessoal não joga jogo da velha, joga xa-
drez. Ou pôquer. Como não dão ponto sem nó, nesse angu
tem caroço.
Não só as grandes empresas estão à toda nessa área.
Um dos produtos de maior sucesso no Brasil e no mundo é a
chamada “Leda”, nome do pífio disfarce para “seda”, o papelzi-
nho especial para enrolar tabaco e que é utilizado por usuários
de maconha. A Leda segue a trilha já aberta pela britânica Impe-
rial Tobacco, que contabiliza lucros elevadíssimos com a venda
das caixinhas com folhas de papel gomado. O negócio de ta-
baco picado cai constantemente, mas os lucros com o comér-
cio da “seda” só engordam. Não por acaso, a alusão à maco-
nha passou a ser a constante. Há marcas com nomes que
dizem bem a que vieram, como “Pure Hemp” ou “E-z-wider”
(brincadeira com Easy Rider, o cult-movie de muitos maconhei-
ros, com Peter Fonda e Dennis Hopper “queimando tudo”).
Você vê a “Leda” sendo vendida em bancas de jornais na Zona
Sul do Rio, em Itaipava, na Avenida Paulista, às claras, com pú-
blico alvo óbvio e definido. A novidade brasileira chegou a re-
ceber um prêmio na Copa Cannabis de 2006. Donos da marca,
os jovens empresários paulistas Fernando Amaral, de 37 anos,
e Renato Volonghi, de 27, já comemoram exportações para
quase toda a Europa, além de países como Estados Unidos,
101
Austrália, Japão, Nova Zelândia e Rússia. Conforme a Revista
Piauí, montam estandes da Leda em festivais de música euro-
peus e, em 2007, organizaram a primeira convenção interna-
cional da empresa, em Amsterdã, durante a “19ª Cannabis
Cup”.113
E já que falamos no empresariado do “planeta maco-
nha”, veja como é curioso esse negócio. Podem se encontrar,
na mesma passeata, os velhos hippies contestadores de ontem,
com os capitalistas contestados de sempre. Ah, a fraternidade
humana. Deve ser por isso que o pessoal chama o negócio de
“cachimbo da paz”, sei lá. Fato é que há registros de interesses os
mais disparatados na questão da liberação das drogas. Não
apenas viúvas de Woodstock, ou ex-militantes revolucionários,
nem mesmo defensores de direitos humanos, cerram fileiras
nessa ‘caminhada’ estranha. No trabalho “Drogas, Imperialismo e
Luta de Classe”, o professor paulista Ney Jansen114 traz impor-
tante e, a meu ver, decisiva contribuição ao debate, principal-
mente neste momento, em que partidos de esquerda se entusi-
asmam na defesa da liberação das drogas.115 Jansen revela, por
exemplo, que Milton Friedman, economista ícone do imperia-
lismo americano, encabeça um abaixo-assinado, junto com ou-
tros 500 economistas estadunidenses pela legalização da maco-
nha. O fizeram apoiados nos estudos da ONG Marijuana Policy
Project, que concluiu o argumento repetido ad nauseam pelos de-
fensores da maconha: “o governo deixaria de gastar bilhões em polici-
amento e arrecadaria bilhões de impostos”. Só que muitos esquecem,
revela o artigo, que o mesmo estudo afirma que a legalização
beneficiaria basicamente os latifundiários do agronegócio e
empresas de bebidas alcoólicas. Não haveria, como imaginam
os “marchadores” de hoje – “não compre, plante!” , é uma das pala-
vras de ordem – nenhum boom de plantadores domésticos (fa-
laremos disso novamente).
113. http://www.revistapiaui.com.br/artigo.aspx?id=212&anteriores=1&anterior=22007
114. Na Revista Eletrônica Urutágua: http://www.urutagua.uem.br/012/12jansen.htm.
115. Militantes do PSTU e do PSOL estiveram nas mobilizações para a Marcha da Maco-
nha, em diversos estados. Gabeira é do PV. Minc, fundador do PV, hoje no PT.
102
Talvez por isso, como cita o prof. Jansen, também
“marche” na mesma direção, o mega-especulador George So-
ros, que criou a ONG Lindesmith Center... pela legalização das
drogas! Os interesses econômicos embutidos são enormes. No
Canadá, por exemplo, a maconha já rende três vezes mais do
que o trigo, girando cerca de US$ 8,5 bilhões (cerca de 2.400
toneladas). Nos Estados Unidos, a maconha já seria o princi-
pal produto agrícola, à frente do milho, com cerca de US$ 32
bilhões.116 Na Califórnia, maior região produtora de maconha
do mundo, o plantio é comandado pelos latifundiários da
droga. O mesmo vale para os latifundiários de maconha no
nordeste brasileiro, onde existe o “Polígono da Maconha”.117
Com base em tais informações, o artigo do professor paulista
é taxativo:
O que está em jogo para esses capitalistas é botar as mãos nesse rentável
negócio que destrói a força de trabalho. (...) Ao se defender a legalização
das drogas, na prática, trata-se de defender os interesses de vários setores
da burguesia que querem lucrar com esse novo negócio. É a defesa de uma
política reacionária.
103
dos, como, por exemplo, das empresas que vendem papel de seda para en-
rolar cigarros em bancas de jornais e revistas.”118
104
uso medicinal do cânhamo surge no Ocidente no séc. XVIII,
para tratamento de asma, tosse e doenças nervosas. À Rainha
Vitória a erva teria sido receitada pelo médico da Corte britâ-
nica, como tratamento para cólicas menstruais.122
Como vimos, no Brasil, em 1830, ocorre a proibição da
maconha. A partir de 1930, começando pelos Estados Unidos,
a proibição alcançará todos os países do Ocidente. O movi-
mento restritivo apenas sofrerá alterações em 1976, quando a
Holanda libera o consumo em seus coffee shops. Em alguns esta-
dos americanos o consumo medicinal é liberado, da mesma
forma que no Canadá, este a partir de 2003. É uma longa his-
tória, com idas e vindas. Vê-se, também, que predominou, nos
momentos de maior liberalidade, a intenção terapêutica. Por
isso, parece um simplismo supor que uma grande conspiração
de interesses econômicos internacionais é que esteja por trás
da proibição da venda e consumo do entorpecente. Claro que
há registro de casos, hoje em dia, em que a maconha substitui
com vantagem, ou mesmo se torna o único tratamento possí-
vel, para pacientes de doenças graves, nas quais a morfina ou o
ópio não alcançam o alívio para dores severas.
De qualquer forma, à parte os aspectos medicinais, do
que já tratamos, os danos provocados pela maconha não são
totalmente conhecidos. A visão que predomina é que, fora do
viés terapêutico, ainda não suficientemente estudado, a maco-
nha deve ser evitada.
Em texto disponível na Internet123, o Dr. Silvio Sai-
demberg, psiquiatra, psicoterapeuta e professor de psiquiatria
da FCM – PUCCAMP afirma:
122. Cfe. publicado em matéria na Edição 223 – fev/2006 – da Revista Super Interessante.
123. “A liberação da maconha”, no endereço: http://www.geocities.com/ssaidemb/
marijuana.html .
105
distúrbios sensoperceptuais, as dificuldades geradas em tarefas de precisão
quanto a relações de tempo e de espaço, as possibilidades reais de ser mais
uma causa importante de acidentes no trabalho, também na operação de
veículos terrestres ou aéreos, os achados sugestivos de degeneração neuronal
em animais de laboratório, sendo ainda: fator desencadeante de distúrbios
psicóticos, causa de síndromes amotivacionais e de agravamento de proble-
mas de aprendizagem; todos esses fatos tornam a utilização do produto de-
saconselhável.
106
Por sinal, essa freqüente comparação entre a aceitação
social do tabaco, do álcool e a “injusta” proibição da maconha,
coitadinha, foi objeto de um memorável julgamento na Corte
Constitucional Alemã. O julgado (“BVERFGE 90, 145 – Can-
nabis – Controle Concreto/Reclamação Constitucional contra decisão ju-
dicial 09/03/1994”) foi divulgado no interessantíssimo blog
“direitosfundamentais.net”, mantido pelo Juiz Federal George
Marmelstein Lima.125 Tribunais inferiores argüiram, dentre
outras coisas, que estaria ferido o princípio da igualdade por
haver pena de prisão ao portador de maconha, sem que subs-
tâncias “mais danosas”, como o álcool e a nicotina recebessem
igual reprovação. Assim reivindicavam o fim da pena mais re-
pressiva à maconha.
O Tribunal alemão entendeu que não havia quebra do
princípio da igualdade porque pode o legislador, sem infringir
a Constituição,
125. Na matéria “Ainda o “direito fundamental de ficar doidão”: a decisão da Corte Constitu-
cional alemã”, baseada na obra de Jürgem Schwabe publicada no Uruguai pela Funda-
ção Konrad Adenauer “50 anos de jurisprudência da Corte Constitucional alemã”. Artigo dis-
ponível em: http://direitosfundamentais.net/2008/05/28/ainda-o-direito-fundamental-de-ficar-
doidao-a-decisao-da-corte-constitucional-alema/
107
de elemento de consumo massivo, culturalmente justificado.
Não caberia, então, liberá-la, em desfavor do bem público de
direito à saúde. Aliás, o Tribunal definiu que o risco à saúde
não é o único parâmetro a ser observado em análises do tipo.
Há que considerar-se também os outros usos que se podem
dar a uma droga.
108
Este entende que tratamos com fragilidades tão grandes em
tais campos que, se alguma coisa tiver razoável possibilidade –
mesmo que não provada – de causar danos em tais esferas,
esta coisa não deve ser permitida. É melhor errar em favor da
segurança. É disso que tratamos.
109
110
O “BARATO” QUE SAI CARO
Maconha liberada para uns,
grana mais curta para todos
127. “Por incrível que pareça, nem o Ministério da Saúde nem o Ministério da Justiça, duas
pastas diretamente afetadas pela questão, possuem qualquer estudo sobre o impacto das
drogas no seu orçamento, o que mostra como o Brasil ainda está longe de compreender a di-
nâmica e o tamanho do problema” – Revista Superinteressante – Tarso Araújo – Outubro de
2007 – Edição 244. Em: http://super.abril.com.br/superarquivo/2007/conteudo_540744.shtml.
111
vivência e proteção da prole ser subjugado pelo seu prazer (ou
alívio) imediato. Um país não pode agir dessa maneira. Se a de-
pendência química é uma doença, não há sentido em – ainda
que se proteste, achando ínfimos, o que não são, os percentu-
ais de dependência em relação ao total de consumidores – per-
mitir que pessoas adoeçam às custas do erário.
Os especialistas entendem que o Brasil não estaria ca-
pacitado aos investimentos em saúde pública que seriam ne-
cessários, em caso de liberação das drogas. Jorge Jabes, diretor
da Associação de Psiquiatria do Rio de Janeiro e membro da Asso-
ciação Americana de Psiquiatria afirmou: “Não existem hoje, no Rio
de Janeiro, sequer cem leitos para atender dependentes químicos menores
de idade. Não temos também nenhuma clinica, particular com leitos espe-
cíficos para menores de idade”.128
Não é gratuita, a preocupação com os menores de
idade. Eles já são o principal alvo da publicidade de drogas líci-
tas, como o álcool e o tabaco. Ao adulto, não é necessário
mais conquistar. Tornar a maconha lícita aumentará seu con-
sumo em geral, mas particularmente, entre menores de idade.
A cantora Nana Caymmi, é uma das que pensam assim: “Sou
contra. As pessoas perdem o senso. Até as crianças vão experimentar! E
se, entre elas, houver uma com perfil de dependente?”.129 Assim preo-
cupar-se deve ser uma das obrigações de todos que ingressam
nesse debate.
Em pergunta dirigida ao Professor Sebastian Scheerer,
em colóquio sobre o tema,130 Luciano Bezerra teceu interes-
sante argumentação. Após concordar sobre os direitos das mi-
norias, pediu ao palestrante que tecesse considerações sobre as
obrigações das mesmas minorias. Entendeu, no questiona-
112
mento, a necessidade de que “para que não se perpetuassem as rela-
ções paternalistas” o direito da reivindicação por melhores condi-
ções de vida dos usuários de entor pecentes, viesse
acompanhado do desenvolvimento de suas obrigações. O pa-
lestrante respondeu, afirmando que a criminalização do con-
sumo é que impedia o cumprimento das “obrigações sociais” do
usuário, posto que preso, não poderia exercê-las.
Vou discordar do Professor, com todas as vênias. Na
verdade, não se trata de saber se a pessoa é capaz de ir ao tra-
balho, gerar renda e pagar impostos. Trata-se de verificar qual
é o custo que uma opção minoritária acarreta ao conjunto da
população e aos menores de 18 anos, em particular. Os porta-
dores de determinadas doenças crônicas e graves provocam,
certamente, a elevação das despesas estatais com saúde pú-
blica. As restrições ao consumo de tabaco e álcool se fizeram
exatamente porque o conjunto da sociedade passou a compre-
ender que não podia financiar a doença perseguida pelo usuá-
rio. A doença acidental, fortuita, é melhor acatada pelo senso
de solidariedade humana. A doença auto provocada, obvia-
mente, não recebe a mesma compreensão.
Vê-se que a reação do Estado no expressar esse con-
senso não foi apenas a de realizar campanhas educativas. Foi
de repressão mesmo, ainda que não criminal. Até porque os
hospitais psiquiátricos apresentam um grande número de in-
ternações (em alguns casos, a maioria) que têm como origem o
consumo de álcool ou entorpecentes.131
Portanto, a pergunta que devemos fazer é: Estamos em
condições de empregar nossa solidariedade social para finan-
ciar a elevação das despesas de saúde pública provocada pela
eventual liberação do consumo de maconha? Alguns argumen-
tarão que o financiamento se daria com a redução das despesas
com segurança pública. Entretanto, também isso não parece
131. O Hospital Psiquiátrico Nina Rodrigues, por exemplo, recebe, em cada 08 pacientes,
04 cuja internação foi motivada por distúrbios decorrentes do consumo de álcool e drogas.
Conforme o jornal Estado do Maranhão, citado na matéria no sítio www.antidrogas.com.br/
mostranoticia/php?c=4136.
113
ser verdade, como veremos. A liberação da maconha não re-
duz o tráfico, veremos. Logo, teremos despesas concorrentes.
A Revista Cláudia publicou matéria sobre a questão da
descriminalização da maconha, tentando analisar prós e con-
tras.132 Após afirmar a ausência de dados sobre o real impacto
da descriminalização e da legalização das drogas nos custos
públicos, reproduziu quadro que busca suprir essa lacuna. O
estudo, com projeções baseadas em leis de mercado, foi prepa-
rado pelo economista Gary Becker, da Universidade de Chicago,
nos Estados Unidos. Ele usou sinais aritméticos para indicar o
impacto das opções de descriminalização ou liberação, nos
segmentos indicados, conforme os reduzam (-) aumentem (+)
ou não alterem (=).
Descriminalização Legalização
Oferta de droga = +
Risco de acidentes + +
Desempenho no trabalho - -
Força das organizações criminosas = -
Corrupção - -
Gastos com saúde pública + +
Gasto com segurança e prisões = -
114
nal, opção agravada pela perspectiva de aumento do consumo,
deduzida da maior oferta da droga.
Em seu sítio, o jornalista Gilberto Dimenstein repro-
duz reportagem da Revista Exame, de julho de 2001, “Flagelo
Corporativo”.133 Ali são relatadas as preocupações das empresas
no Brasil e no mundo, quanto à elevação da dependência quí-
mica entre empregados. Menciona estimativas da Secretaria de
Saúde do Estado de São Paulo, que indicam que o uso abusivo de
drogas como álcool, maconha, anfetaminas, calmantes e coca-
ína, custa ao Brasil 7,9% do PIB em tratamento médico, perda
de produtividade e acidentes – 48 bilhões de dólares, em di-
nheiro de hoje.
Claro que valores assim deixam empresários atentos. A
poderosa Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP)
organizou um simpósio internacional sobre Prevenção e Controle
do Uso de Drogas no Ambiente de Trabalho. Dentre as medidas
defendidas no encontro, está a testagem obrigatória da urina
dos empregados, para verificação de traços de consumo de
entorpecentes. Isso, obviamente, vai levantar debates sobre
legalidade e constitucionalidade. Mas, nos Estados Unidos,
cerca de 80.000 empresas já são legalmente obrigadas a sub-
meter os empregados a exames de detecção do consumo de
entorpecentes. É que lá a conta da dependência química,
de acordo com o Departamento de Saúde, custa 276 bilhões de
dólares por ano em tratamentos de saúde, queda de produtivi-
dade e acidentes.
Por isso é que, à margem do entendimento legal, não
falta quem defina – como é o entendimento doutrinário pre-
dominante no Brasil – o porte, o consumo e a apologia do
uso de entorpecentes como “crime contra a Saúde Pública”.134
133. http://www1.folha.uol.com.br/folha/dimenstein/imprescindivel/semana/gd080701a1507
01.htm#1.
134. Assim consta da ementa de vários julgados de diversos tribunais, quando tratam da
questão da posse de entorpecentes (R.T. 619/329/PR; RE 114.339-8-SP, etc). Foi este um
dos argumentos do Ministério Público da Bahia, na petição assinada pelo Promotor de Jus-
tiça, Paulo Gomes Júnior, visando ao impedimento da “Marcha da Maconha 2008”, em Salva-
#############
115
Cada real gasto na questão das drogas é desviado de outras
emergências sociais, o que é grave, num país onde escolas apo-
drecem e hospitais caem aos pedaços. Nem se diga que o gasto
com a repressão decorrente da proibição é maior, porque, vi-
mos, não é. À parte a questão da corrupção do aparelho esta-
tal, todo usuário é, portanto, responsável por uma vacina não
aplicada, por um pré-natal não realizado, por uma ambulância
encostada sem gasolina, por uma criança analfabeta. O neoze-
landês Don Fergusson questionado sobre o direito de a pessoa
fazer o que quiser com o seu próprio corpo, foi muito claro:
Essa é uma visão interessante, mas omite que o indivíduo não paga a
conta das conseqüências adversas de suas opções pessoais. Essa não é uma
questão meramente existencial, tem conseqüências econômicas e sociais.
Quem paga a conta é o governo – ou seja, é toda a sociedade –, que tem de
fazer frente ao aumento da demanda na área de saúde, por exemplo. Sub-
meter o corpo do indivíduo a sua exclusiva responsabilidade, somente faz
sentido se ele também se responsabilizar pelos custos totais de suas esco-
lhas. Mas o que ocorre é que os indivíduos exigem que a sociedade banque
o custo de suas experiências pessoais e não admitem que ela tenha o direito
de regular sua conduta. É uma visão muito unilateral. 135
135.
dor: “não se quer aqui cogitar proibição à liberdade de expressão, vez que vivemos em um
Estado Democrático de Direito, no entanto, imaginar que se possa induzir e instigar crime
contra a saúde pública como forma de liberdade de expressão significa decretar a anarquia
no país e usurpar a ordem jurídica e os interesses sociais da nação”, disponível em: http://
www.mp.ba.gov.br/noticias/2008/abr_28_marcha.asp. Assim se posiciona também Lucas
Junqueira Bruzadelli Macedo, Promotor Substituto em Cerro Azul-Pr, no artigo “Portar um ci-
garro de maconha é crime?”, de 11/09/2007, no sítio da Associação Paranaense do Ministério
Público, em: http://www.apmppr.org.br/site/images/stories/noticia/portar%20um%20cigarro%
20de%20maconha%20%C9%20crime.doc.
135. Entrevista à VEJA, citada.
116
SE É BOM PARA HOLANDA
É BOM PARA O BRASIL?
A experiência de outros países
Como as leis civis dependem das leis políticas, pois são feitas para uma so-
ciedade, seria conveniente que, quando se quisesse transportar uma lei civil
de uma nação para outra, se examinasse antes se ambas têm as mesmas
instituições e o mesmo direito político. 136
136. Nova Cultural, 2000. Capítulo XIII do Livro 29º. Pp. 277
117
conforto material e a consagração de serviços públicos de
qualidade e liberdades consolidadas é que pode ter levado à li-
beração da maconha. Outras questões prioritárias resolveram-
se antes. A Holanda, país abaixo do nível do mar, pantanoso,
sem condições produtivas, antes cuidou dos seus diques, fa-
zendo o primeiro, já no século XIII. O Brasil ainda tem pânta-
nos a resolver.
Suponho que ninguém imagine uma “Marcha da Maco-
nha” em Serra Leoa ou no Haiti, por exemplo. Um país deve
cuidar primeiro das coisas primeiras, ou seja, das mais impor-
tantes para sua sobrevivência e desenvolvimento. O Brasil
ainda não é, socialmente falando, uma Holanda. Pode não ser
mais, ou nunca ter sido, um Haiti, em que pese a afirmação
contrária da canção de Gil e Caetano (“O Haiti é aqui”). Mas
temos nossas senzalas vivas, ainda abertas e sangrando.
Outro aspecto importante é que nos países que libera-
ram entorpecentes, as conseqüências não foram, exatamente,
positivas.
Diques são tratos humanos artificiais para segurar a ín-
dole da natureza furiosa. A índole do mar é invadir. João Salda-
nha sempre falava que temia o dia em que o oceano viria reto-
mar o espaço que lhe fora roubado pelos aterros cariocas. Pois
é. Belas holandesas passeiam seus tamancos à sombra de moi-
nhos de vento, em gramados que um dia poderão ser chão de
oceano. Quem sabe, a sensação de país espremido contra o
mar é que induza no espírito holandês essa ânsia por espaço e
amplitudes. Talvez por isso, no campo da moral e dos costu-
mes as coisas lá “avancem” tanto, sem contenções, sem quais-
quer diques, como uma vaga de tsunami que parece não findar.
Mas toda inundação, um dia encontra sua parede. Daí, desbar-
ranca ou derruba. O excesso de liberalidades pode um dia co-
brar seu preço e afogar uma cultura dentro de seus diques,
como um mar interno que avance, sorrateiro. Não sei se já não
seriam indícios dessa exaustão as denúncias de abusos na apli-
cação da eutanásia através de homicídios perpetrados por mé-
118
dicos, o turismo da morte, o narcoturismo, a consolidação de
portos holandeses como parada de tumbeiros de mulheres
para prostituição, o avanço pedófilo, e mesmo a tragicômica si-
tuação legal de medidas conflitantes e estapafúrdias, típicas de
quem acaba perdendo o senso.
Embora já tenha tratado da questão ‘maconha liberada
x tabaco cerceado’, por tão peculiar, devo começar citando a
contradição quase cômica, configurada no acompanhamento,
pela Holanda, das medidas anti-tabagistas européias. Na maté-
ria “Restrições ao fumacê: maconha sim, tabaco não”, o Juiz Walter
Fanganiello Maierovitch noticiou o aviso do Primeiro-Ministro
Jan Peter Balkemende que, em entrevista à televisão pública
holandesa, alertara que a partir do 1º de julho de 2008, estaria
proibido acender cigarros de tabaco nos bares, restaurantes e
cafés da Holanda, porque “a nicotina da fumaça faz mal à saúde dos
freqüentadores”.137
O ridículo da situação é que, em tese, na Holanda, a
maconha só pode ser fumada no interior dos cafés. Na rua, é
crime, embora em geral a polícia faça vista grossa. Já o tabaco,
será proibido dentro dos cafés e permitido na rua. Fosse no
Brasil, estava aí, o “samba do crioulo doido”. O Ministério da
Saúde holandês emitiu, ainda, o seguinte alerta: “É proibido, nos
cafés, misturar tabaco com maconha, para burlar a proibição”. Eviden-
temente, os donos de cafés estão protestando, com veemência.
A ofensiva antitabaco na Holanda cumpre orientação da União
Européia, cujo Comissário de Saúde, Marcos Kyprianou, por
sinal, já expressou seu desejo de ver a proibição total ao
fumo em locais públicos, inclusive, em toda Europa, daqui a
poucos anos.138
Sobre este ponto (neste livro, por preguiça ou por argú-
cia, os temas se interpenetram), vale lembrar de novo, a pos-
119
tura cada vez mais agressiva de órgãos públicos no cerco ao
consumo de tabaco. O Conselho Municipal de Liverpool, que go-
verna a cidade do noroeste da Grã-Bretanha, tenciona, con-
forme notícia recentemente divulgada, impor, por lei local,
uma censura a menores de 18 anos, nos filmes que contenham
cenas de personagens fumantes. Podemos achar muito drás-
tico, mas Liverpool detêm o título nada honroso de “capital in-
glesa do câncer de pulmão”. Em paralelo, a organização “Now
Smoke Free Liverpool”, que apóia a movimentação do Conselho
Municipal, afirma que as evidências demonstram que “metade dos
adolescentes americanos que fumam, adquiriu o hábito sob influência, en-
tre outros fatores, do que é mostrado nas telas”.139
Mas holandeses são muito criativos não é? São toleran-
tes, religiosamente falando, não é? E muita gente não acha que
a maconha é santa? Pois bem, se não existe uma religião de ta-
bagistas e maconheiros... que surja então um novo messias e
uma nova crença! Foi justamente o que anunciou em 2008,
após o início da vigência da proibição, o Sr. Cor Bush, proprie-
tário do cofee shopp Le Tilleul (A Tília), em Alkmaar, no norte
de Amsterdam. Estava criando a Igreja Única e Universal dos Fu-
madores de Deus! Em nome da constituição holandesa, passaria
a defender a liberdade de cultuar a santa trindade composta
pelo “fumo, o fogo e a cinza”! Claro que outros proprietários de
café e freqüentadores, já se converteram à nova religião.140
Não duvidemos, em breve ocorrerão milagres...
Retornando às contradições holandesas, é esclarece-
dora a reportagem “Mudanças na vitrine – Farta de ser tolerante,
Amsterdã troca bordéis em bairro degradado por lojas e ateliês de artes”
de Thomaz Favaro.141 O repórter menciona a condição da
Holanda, de “um dos países mais liberais da Europa”. Entretanto,
relata que, desde que a prostituição foi legalizada, sete anos
atrás, tudo mudou. Todo mundo já deve ter ouvido falar, visto
139. Em http//g1.globo.com/noticias/ciência/0,,/mul352608-5603,00.html.
140. LUSA/SOL. Café contorna proibição do fumo invocando ‘Igreja dos Fumadores de
Deus’. Em: http://sol.sapo.pt/PaginaInicial/Vida/Interior.aspx?content_id=101769
141. Em http://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/cidade/conteudo_272408.shtml.
120
em filmes ou lido, (quem sabe, visitado) os bairros da luz ver-
melha. O mais famoso, é o De Wallen, em Amsterdã. Ali, entre
sex-shops, tem-se aquele quadro algo bizarro e humilhante, de
mulheres expostas em vitrinas, para escolha do freguês. Era
um lugar relativamente tranqüilo, despertando curiosidades, e
mantendo nas suas proximidades restaurantes elegantes e co-
mércio luxuoso. Entretanto, após a legalização da prostituição,
a região afundou em degradação e criminalidade. O governo
municipal resolveu dar um basta.
Foram revogadas licenças de alguns dos bordéis mais
famosos da cidade. Coffee Shops foram proibidos de vender be-
bidas alcoólicas e cogumelos alucinógenos. Tramita, no parla-
mento, uma lei que pretende que não possam funcionar a me-
nos de 200 metros das escolas. O governo comprou os prédios
onde funcionavam 18 prostíbulos, reformando-os para que
passassem a acolher galerias de arte e ateliês de designers.
A tradição liberal de tolerância, na Holanda, é histórica,
remonta ao período das navegações. Ali se abrigaram desde fi-
lósofos e sábios, a perseguidos religiosos. Neste século, conso-
lidou-se a postura de liberalidade extremada. Se os impostos
são pagos, pouco se proíbe. Os impostos permitem controle,
policiamento, etc. Isso não impediu, entretanto, que nos tem-
pos atuais aquela região fosse invadida por criminosos oriun-
dos de diversas regiões – notadamente, do leste europeu – para
a prática de lavagem de dinheiro e tráfico de mulheres. O ingê-
nuo objetivo da legalização, era alcançar melhor condição de
vida para as prostitutas. Embora sempre haja os que entendam
que o objetivo foi atendido, explodiu o número de bordéis e
aumentou a necessidade de “mão de obra”. Passaram a trazer
prostitutas clandestinamente e, muitas vezes, de maneira for-
çosa, em tráfico humano, das regiões mais carentes do planeta.
Também na questão da liberação de entorpecentes, a
ingenuidade setentista, do flower-power, trouxe danos à nação
holandesa. O “turismo de entorpecentes” tornou-se uma prática.
Acorreram para a Holanda consumidores de todas as partes
121
do mundo. E, raramente, interessados somente na cannabis.
Esta apenas funcionava como chamariz. Quando da legaliza-
ção da maconha, ela foi adstrita a determinados bares, que po-
diam adquirir legalmente até 500 gramas do produto. A re-
venda só poderia se fazer ao consumidor até o limite de 05
gramas por comprador. Como numa carta de vinhos, o sujeito
entra e escolhe a sua variedade de maconha, sempre acudido
por um prestativo conhecedor. Cada pessoa poderia, também,
portar até 30 gramas. Entretanto, paradoxalmente, o plantio e
o comércio internacional continuaram proibidos!
Daí, duas conseqüências ruins. Primeiro, o narcotráfico
foi indiretamente “autorizado”, oras. É como já disse: descri-
minalizar a receptação estimula a ação dos “amigos do alheio”.
E com todo o subjacente incremento da violência e do cresci-
mento dos subterrâneos da criminalidade. Reportagem da Re-
vista Veja (edição 1.710/2001), afirma que
142. http://veja.abril.com.br/250701/p_075.html
122
em 625 toneladas de maconha por ano, significando um lucro
de 2 milhões de euros. E, claro, esses produtores passaram
também a exportar, realimentando o narcotráfico a partir dos
diques holandeses.143
Outro elemento que parece indicar o fracasso da polí-
tica holandesa é que a liberação da maconha pretendeu, tam-
bém, conter o usuário no universo das chamadas “drogas leves”.
Não deu resultado. Primeiro, porque os consumidores esta-
riam ingressando no mundo da droga cada vez mais jovens.
Por conta disso, conforme a Agência de notícias EFE divul-
gou recentemente, o Parlamento holandês está reavaliando a
atual política de tolerância às drogas leves.144 Segundo, porque
como já dissemos, o consumidor regular de maconha acaba
desenvolvendo tolerância, o que o faz demandar uso cada vez
maior da mesma droga, ou a experiência com entorpecentes
mais pesados. Essa mesma peculiaridade provocou o desen-
volvimento de espécimes da cannabis de maior potência, como
o skunk e, novidade recente, o super-skunk.
Essas avaliações sobre erros holandeses, claro, não são
pacíficas. Há quem entenda necessário radicalizar ainda mais
as liberalidades. É provável que os internautas freqüentadores
do site Growroom tenham se extasiado com a notícia de que “O
prefeito da cidade de Maastricht, no sul da Holanda, Gerd Leers, e o
grupo holandês de música punk Heideroosjes vão gravar juntos uma can-
ção que reivindica a legalização da produção e do fornecimento de drogas
leves, em especial da maconha. Será uma canção de protesto chamada
“Canção da maconha”, que contestará a política nacional sobre entorpe-
centes, que só permite a compra e a posse de drogas leves, informou a agên-
cia de notícias holandesa ANP”.145 (grifei) Lembremos que o ho-
landês pode comprar e fumar, mas não pode produzir, a não
ser em uns vasinhos caseiros.
143. Agência EFE. “Cultivo ilegal de maconha na Holanda rende milhões de euros ao ano.”
O Globo. Em: http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL803974-5602,00-CULTIVO+ILEGAL
+DE+MACONHA+NA+HOLANDA+RENDE+MILHOES+DE+EUROS+AO+ANO.html
144. Idem.
145. http://www.growroom.net/blog/2006/prefeito-e-punks-fazem-musica-pela-maconha/
123
Essa militância “festiva” leva a experiências como as
“Copas de Cannabis”. A Holanda, claro, lidera o ranking, com
mais de 20 Copas realizadas. Mas existem feiras e competições
do tipo, também em Barcelona, Madri e outras cidades euro-
péias. Em julho de 2001, estudantes da Universidade Católica de
Brasília realizaram a primeira Copa de Cannabis brasileira. Nas
Copas, há sempre muita música e fumacê o tempo todo (dez
horas por dia, durante 05 dias, na copa holandesa), com o con-
sumo de maconha liberadíssimo, baseados comuns, baseados
gigantes, origamis de maconha, maconha em inaladores, em
narguilés, em tortas, bolos, bombons, chás refrigerantes, lico-
res.... maconha de toda forma e jeito. Nas canções, versos
como os da banda Homegrown, que se apresentou na Copa
de 2004, em Amsterdã: “Fume dois baseados antes de fumar dois ba-
seados e depois fume mais dois baseados”. Espécies da maconha
disputam troféus em várias categorias. Qualidade, potência,
apresentação, acessórios. A “Amnésia”, cujo nome já diz a que
veio, é uma das espécies mais populares, vencedora numa das
recentes edições. Baseados gigantes são enrolados. Na Copa
brasileira, uma delegação baiana apresentou um baseado de
sete palmos, que precisava de 04 mãos solidárias para ser con-
sumido.146 Em novembro de 2006, na Copa holandesa tam-
bém programaram enrolar um megabaseado de 1,5 metro,
com meio quilo de maconha!147 O exercício, que daria um
Guiness garantido, foi impedido à última hora, por dúvidas
sobre a legalidade, mesmo na Holanda, desse verdadeiro ‘ba-
seado de Itu’!
Ainda em Amsterdã, funciona o “Hash Marijuana Hemp
Museum”, centro cultural dedicado à maconha. Ali se exibem
pés da erva e trabalhos artísticos sobre o tema, inclusive uma
146. Ver. “Uma careta na Copa da Maconha” escrito por Adriana Maximiliano para o sítio
“ N o M í n i m o ” , d i s p o n í v e l e m h t t p : / / w w w. g a b e i r a . c o m . b r / e - l e g a l i z e / a r t i g o s /
mostra_art.asp?id=49 e também: “Queimando tudo”, de Jan Theophilo para o sítio
“No.com.br“, em: http://www.gabeira.com.br/elegalize/artigos/mostra_art.asp?id=26
147. Cfe. “Holandeses tentam acender maior cigarro de maconha do mundo”, disponível
em http://g1.globo.com/Noticias/PlanetaBizarro/0,,AA1359547-6091,00.html.
124
pintura do século 17 onde um jovem aperta lá seu “fini-
nho”.148 Parece que os freqüentadores saem sem lembrar bem
o que viram, mas saem rindo muito, como claques de humorís-
ticos de TV, e com fome de búfalos no cio...
Certamente, não rirão mais, a se confirmar a reporta-
gem da Folha Online que, em 06/12/05149, noticiava que fora
tomada pelo governo holandês a decisão de fechar “em breve”
os coffee-shops, conforme informava o diretor-executivo do Es-
critório das Nações Unidas Contra as Drogas e o Crime (UNODC),
Antônio Maria Costa. Na seqüência, a atenção governamental
se voltaria para as chamadas smart shops, lojas de alimentos na-
turais. Conforme aquela autoridade, ali ocorreria “violação de
convenções internacionais”, além de obtenção de mercadoria por
meios ilegais. Essas medidas viriam no rastro do, cada vez
maior, desprestígio dos coffee shops holandeses que teriam caído
de um total de 1700 nos tempos do auge, para cerca de 700 na
época da reportagem. Também a quantidade de maconha que
era permitida para venda nos estabelecimentos, poderia cair de
05 para 03 gramas. Com tais medidas e o aumento do despres-
tígio, os proprietários dos estabelecimentos estariam afir-
mando que o negócio não era mais tão lucrativo, com os usuá-
rios recorrendo, cada vez mais, ao mercado ilegal.
E este cerco sobre os coffee shops e as práticas de libera-
lismo excessivo, devem aumentar. Em outubro de 2008, a Rá-
dio Neederland noticiou que os prefeitos das cidades holandesas
de Bergen op Zoom e Roosendall estavam determinando o fecha-
mento de oito coffee shops, por causa dos distúrbios causados
por cerca de 25.000 narcoturistas que vinham das regiões de
fronteira, causando tremendos tumultos e aumento dos com-
portamentos anti-sociais e criminosos. Enfrentando proble-
mas semelhantes, o prefeito de Maastricht pediu ao Ministério
da Justiça holandês a convocação de uma reunião com 20 pre-
148. http://www1.folha.uol.com.br/folha/turismo/noticias/ult338u2499.shtml
149. Conforme consta do sítio http://www.growroom.net/board/index.php?showtopic=
21663&pid=301530&mode=threaded&start=
125
feituras, para discutir como lidar com os problemas decorren-
tes do narcoturismo, que leva ao país cerca de 1,3 milhões de
visitantes.150
Essas marchas à ré, entretanto, não são apenas prová-
veis, são também necessárias. É que o liberalismo excessivo
transborda os diques. A situação pode se agravar em outras
áreas. Em 2006, a Agência Reuters noticiou que pedófilos ho-
landeses lançaram o partido político Caridade, Liberdade e Diver-
sidade (NVD, na sigla em holandês).151 Seu programa prevê di-
minuição na idade do consentimento (aquela em que é legal a
manutenção de relações sexuais), de dezesseis para doze anos.
Também querem a legalização da pornografia infantil e do
sexo com animais. O partido não descartava buscar a derru-
bada de qualquer limite etário para relações sexuais, o que im-
plica na permissão legal à pedofilia. “A proibição serve apenas para
deixar as crianças curiosas”, disse Ad van den Berg, um dos fun-
dadores do partido, ao jornal Algemeen Dagblad (AD). “Queremos
transformar a pedofilia no objeto de nossa discussão”, afirmou, “la-
mentando” que o assunto fosse um tabu. “Fomos silenciados. A
única maneira (de falar sobre isso) é no Parlamento”. Conforme a Wi-
kipédia, a fundação anti-pedofilia Soelaas teria feito um pedido
aos tribunais para banir o partido, mas a decisão teria sido a fa-
vor do NVD, em nome das “liberdades de expressão, de reunião e de
associação, bases das regras legais democráticas às quais o NVD também
teria direito”.
Essa capacidade de organização dos pedófilos surpre-
ende aqueles que a imaginam uma prática só clandestina, fur-
tiva, em sítios obscuros da Internet. Na verdade, iniciativas as-
sim já estão disseminadas em todo o mundo. Por isso, o
argumento de ser o usuário de drogas um cara produtivo, inte-
grado, “normal”, não é, em si, suficiente para nada. Pedófilos
126
também são produtivos, integrados, “normais”. Atenção! Não
estou dizendo que maconheiro é pedófilo, por favor! Apenas
que o argumento é de pouca valia. Mas esse “à vontade” dos
pedófilos, naturalmente, sucede a ações liberalizantes tomadas
em outras esferas, como a liberação de drogas. Nos Estados
Unidos, a cidade de São Francisco, pólo propagador de idéias
liberalizantes, funciona a “The North American Man/Boy Love
Association”. Sob o argumento do respeito à dignidade dos que
detêm “opções sexuais diferenciadas”, pretende acabar com a
“opressão” sobre o relacionamento entre homens e meninos
que “livremente” queiram se relacionar sexualmente. Mas com
o fim de defender os direitos das “pessoas que têm habilidade para
se apaixonar por crianças”, existem outras organizações seme-
lhantes na própria Holanda (MARTIJN, JON), na Austrália
(Australian Man Boy Love Association), na Alemanha (AG-PA-
EDO), no Canadá (Coalition Pédophile Quebecois), na Dinamarca
(DPA – Danish Paedophile Association), dentre outras.152
No programa do partido holandês também se preten-
dia a autorização para a nudez em público. Neste particular,
parece que a proposta da legenda já obteve uma vitória. Divul-
gou-se em março de 2008153 a permissão de prática de sexo
em parques públicos, em determinadas regiões da Holanda.
Conforme o jornal The Telegraf, a medida fora solicitada pela
polícia do Centro Nacional de Especialização da Diversidade
(LECD), como forma de proteção aos gays. As condições para
a prática eram, basicamente: preservativos sempre descartados
longe do local de uso, evitar a vizinhança de parques infantis e
promoverem as relações sexuais depois do anoitecer. Mas,
conforme a matéria, vejam vocês, o memorando do projeto
previa a manutenção de multas para os proprietários de cães
que correrem sem coleira, pois podem causar incômodo para
152. Dados retirados do excelente estudo “Um olhar crítico sobre o ativismo pedófilo”, de
Suheyla Fonseca Misirli Verhoeven, na Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VIII,
Nº 10 – Junho de 2007, disponível em http://www.fdc.br/Arquivos/Mestrado/Revistas/
Revista10/Discente/SuheylaFonseca.pdf.
153. http://www.estadao.com.br/internacional/not_int137814,0.htm
127
quem quer tomar sol ou usa bicicleta no parque! Parece es-
quisito. E é.
Feito o – para mim, repito, assustador – registro das
opiniões e posturas discordantes quanto aos possíveis recuos
ou revisões holandesas, vamos a Zurique, na Suíça, onde ocor-
reu processo similar ao holandês. A área da estação ferroviária
de Platzspitz fora transformada em território livre para usuá-
rios de drogas injetáveis. O governo imaginou que, confinando
os viciados a um espaço delimitado, a cidade ficaria livre da vi-
são de viciados espalhados por vários locais. O efeito foi exa-
tamente o inverso. Zurique se tornou ponto de encontro de
drogados de toda a Europa, e o consumo de heroína aumen-
tou. O governo pôs fim à experiência. Após um período de to-
lerância, com drogas e prostituição, foi necessário dar marcha
à ré, em 1992, apenas 06 anos depois da tentativa. O crime or-
ganizado passara a controlar territórios onde havia a tolerância
com os bordéis e com o uso de drogas. A prefeitura, a exem-
plo da de Amsterdã, adquiriu os imóveis onde funcionavam os
prostíbulos transformando-os em condomínios. A população
ficou escaldada com a “permissão de drogas em Zurique (...) que ter-
minou com cenas chocantes de dependen-tes de heroína espalhados em
praça pública”.154
Entretanto, demonstrando que esses debates nunca são
simples, ainda na Suíça, terra do Doutor Maconha, estava progra-
mado, para o dia 30 de novembro de 2008, um mundialmente
inédito referendo popular, convocado por conta de mobiliza-
ção que reuniu 106 mil assinaturas, para decidir especifica-
mente sobre a descriminalização da maconha.155 De qualquer
forma, as expectativas eram de que fosse mantida a posição
mais conservadora.
Também a Dinamarca viveu suas marchas e marchas à
ré. Em Copenhague, a venda de maconha era feita em feiras li-
154. Na polêmica Edição Especial da Revista Época sobre a maconha, disponível em:
http://epoca.globo.com/edic/20011119/especial1b.htm.
155. ALBUQUERQUE, Carlos. Perfil do Consumidor. Revista O Globo. Ano 5, nº 223. p. 29
128
vres e tolerada por moradores e autoridades. Há um bairro,
que surgiu como comunidade alternativa no período do movi-
mento hippie, em 1971, chamado Christiania, parada certa no
“Caminho de Santiago” do “turismo doidão”. Por conta do au-
mento da criminalidade, foi inevitável a repressão ao tráfico de
drogas no local.
Observe-se que o pioneirismo holandês – descriminali-
zação do consumo de maconha em 1976 e legalização da pros-
tituição em 2000 – cobra seu preço. E não cobra barato. Ams-
terdã tem 14 prostitutas para cada 1000 habitantes, número
quatro vezes maior que o observado em Paris. O tráfico de
mulheres aumentou 260% entre 2000 e 2003. Mas, e aqui o in-
teressante, as prisões por posse ou comércio de cocaína, hero-
ína e ecstasy (drogas proibidas na Holanda) cresceram 21% en-
tre 2002 e 2006. Resultado: 67% da população de Amsterdã é a
favor de medidas restritivas da prostituição.156 Ou seja, se é
que dá pra dizer assim, existe um “sistema-maconha” e um “sis-
tema-prostituição”. Ambos pensados para melhorar as coisas,
melhorar a vida das mulheres da ancestral profissão e dar dig-
nidade aos usuários de cannabis. A maconha liberada trouxe o
tráfico e o narcoturismo, a prostituição legalizada trouxe a es-
cravidão branca, e ambos se alimentando mutuamente, trouxe-
ram as drogas pesadas e mais tráfico, dependência química e
criminalidade.
A experiência holandesa foi analisada pelo pesquisa-
dor Ib Teixeira, que trabalhou na Fundação Getúlio Vargas e
na ONU, em artigo denominado “A maconha é nossa”, publi-
cado no Jornal do Brasil, em 25/11/01.157 Ele afirma que o
modelo que, à época, completava 25 anos, pretendia reduzir a
criminalidade, prevenir a dependência química e tornar a soci-
edade mais segura. Mas os anuários das Nações Unidas teriam
revelado que houve crescimento da criminalidade, inclusive
com a Holanda constando “em primeiríssimo lugar” no número
156. Dados até aqui, da reportagem anteriormente citada, do sítio “Planeta Sustentável”.
157. Conforme consta em http://www.geocities.com/athens/acropolis/6634/maconha.htm.
129
de homicídios dolosos, entre as nações mais desenvolvidas (15
por 100.000, contra taxas de 1,0 no Japão; 1,6 na Espanha; 1,9
no Canadá; 2,1 na Noruega; 3,1 na Bélgica; 3,6 na Austrália;
4,7 na França; 4,9 na Dinamarca; 4,9 na Itália; e 10 nos Esta-
dos Unidos).
Segundo o documento da ONU, nenhum dos objetivos
pretendidos teria sido alcançado. Cerca de 15% da sua popula-
ção de 12 anos ou mais estaria “escravizada” ao vício, não só da
maconha, mas também de outros entorpecentes. A pesquisa
também confirmaria que, além do aumento do “narcoturismo”,
Roterdã teria se incluído como campo estratégico nas rotas do
tráfico internacional.
Por conta de tais resultados, teria ocorrido pressão da
opinião pública e da Comunidade Européia visando a reduzir a
permissividade da legislação. “As 30 gramas de maconha anterior-
mente permitidas foram reduzidas a cinco”. Conforme Ib Teixeira, a
ONU disse em informe: “os coffee-shops não têm sido suficientemente
controlados. Não cumprem a lei. Vendem drogas duras ou uma quanti-
dade demasiada de drogas leves. E ainda exportam drogas aos países vi-
zinhos”. Com tais argumentos, ao final o articulista clama: “lem-
brai-vos da Holanda!”.
Esse artigo, na ocasião, por fazer menção à ex-apresen-
tadora de TV, recentemente candidata pelo PSB à prefeitura de
São Paulo, Soninha Francine, que defendeu a descriminaliza-
ção do consumo da maconha, gerou polêmica. A apresenta-
dora respondeu questionando os dados e a ausência da citação
das fontes pelo articulista. Cabe registrar que Soninha foi de-
mitida da TV Cultura depois de um rumoroso episódio em que
foi capa de uma edição especial da Revista Época, onde ela e ou-
tras personalidades públicas assumiam-se consumidoras de
maconha.158 Na reportagem, Soninha declarou: “Várias vezes,
130
depois de fumar, pensei: ‘Puxa, é tão bom e causa tanto medo e desgraça’
(...) Não consigo concordar que consumir maconha seja um mal para a so-
ciedade”. A TV Cultura condenou a exposição, pelo fato de a
apresentadora, ex-VJ da MTV, cuidar de um programa voltado
para adolescentes. Embora “todo mundo” tenha protestado con-
tra a Cultura, eu, pelo menos, acho que seria mesmo, obvia-
mente, imprópria a conexão.
Ainda sobre a Holanda, dados fornecidos por Adal-
berto Tripicchio se mostram mais conservadores.159 Os nú-
meros mostrados no seu artigo indicam que hoje a Holanda
teria cerca de 300.000 usuários de maconha, cerca de 2 a 3%
da população. Esse índice seria equivalente ao de outros países
da Europa e menor do que o dos Estados Unidos que, mesmo
com a maconha ilegal, teria 5,3% da população consumindo
habitualmente a erva. Em Amsterdã, um em cada 03 habitan-
tes maiores de 12 anos já teria experimentado a droga. O Cen-
tro de Pesquisas de Drogas da Universidade de Amsterdã teria dados
que informariam o não crescimento do número de usuários
após a descriminalização.
Aqui devo abrir um parêntese. Essas contradições en-
tre os dados não nos devem impactar. É normal. A Holanda
virou uma espécie de posto avançado, cabeça de ponte, territó-
rio simbólico de todas as disputas nessa área. Como Cuba um
dia cumpriu o papel de signo de “outro mundo possível” para es-
querdistas do mundo inteiro, a Holanda é uma espécie de
“Cuba” do “socialismo maconheiro”. Adversários demonizavam a
ilha de Fidel, partidários diziam: que paraíso na terra! Nem
uma coisa, nem outra. Havia interesses, na verdade, de obstar
um modelo, ou de importá-lo. Nem sempre pelas melhores ra-
zões. Houve um tempo em que “todo mundo” queria subir
sua Sierra Maestra, lembram? Hoje “todo mundo” quer a ma-
resia de um florido café holandês. Nem uma coisa nem outra
podem dar certo, fora do contexto original. Da mesma ma-
neira que havia um turismo ideológico a Cuba, há o turismo
131
narcótico à Holanda. E isso se tornou um interesse à parte,
com toda uma indústria envolvida, não só a que diretamente
atua no fornecimento de drogas, mas também o entorno re-
presentado pela indústria turística e hoteleira. Fora os interes-
ses clandestinos e ilícitos, que sempre favorecem alguém, nas
conexões submundo e aparelho estatal, como os cultivos ile-
gais existentes, que movimentam 2 milhões de euros/ano.160
E onde há prata luzindo ou papel moeda exalando valores... a
discussão fica turva mesmo.
Seguindo na exposição de outras realidades, temos os
Estados Unidos, onde apenas 08 dos membros da União per-
mitem uso medicinal da maconha.161 Todos vedam o con-
sumo “recreativo”. Aqui ou ali se faz vista grossa.162 Também
no Canadá o uso medicinal é permitido desde 2001, embora
contra a opinião da Associação Médica Canadense, que vê como
inconclusivos os estudos sobre os efeitos colaterais.163 Estaria
descriminalizado o uso em outros países como Alemanha,
Portugal, Bélgica, Espanha e Finlândia, praticando-se tolerân-
cia (vista-grossa) em outros.
Já a Suécia, caminhou em sentido inverso, condenando
criminalmente tanto vendedores quanto consumidores. Com
160. Agência EFE. “Cultivo ilegal de maconha na Holanda rende milhões de euros ao ano.”
O Globo. Já citado.
161. 11 estados chegaram a contar com a permissão, mas uma decisão da Suprema Corte,
em consulta efetuada pela União, entendeu que a competência legislativa para o tema era
das unidades federadas. Mas alertou que leis estaduais autorizando o consumo de cannabis
afrontariam as leis federais. À frente da resposta contraditória, alguns estados reverteram a
autorização concedida, outros desafiaram a orientação, mantendo a faculdade. Com os ple-
biscitos recentes, haverá nova modificação neste número.
162. Nas eleições americanas de novembro de 2008, os eleitores de 10 estados america-
nos votaram em questões relativas à maconha. A maioria dos resultados caminhou na dire-
ção da lei brasileira, atenuando penalidades. Em outros autorizou-se o uso medicinal. No
Alasca, foi rejeitada a descriminalização e em Massachusetts, aprovada. A Califórnia ampliou
as liberalidades que já praticava, com perigosa redução da pena para traficantes e ampliação
da área de fornecimento medicinal. Os dados constam do blog Sobredrogas, do jornal O
GLOBO. Informações chegadas já na revisão do livro, me pareceu que não alteravam signifi-
cativamente a linha de raciocínio já traçada. Por isso, aqui como nota. Cfe. MIGUEL, Antônio
Carlos. Em: http://oglobo.globo.com/blogs/sobredrogas/post.asp?cod_post=138242 e LA-
GES, Christine, Em: http://oglobo.globo.com/blogs/sobredrogas/post.asp?cod_post=137487
###################################################
163. Cfe. matéria “Vício liberado”, Revista VEJA, Edição 1.710 (25/07/2001), em: http://
veja.abril.com.br/250701/p_075.html.
132
isso, teria um percentual de drogadição, hoje, um terço menor
do que no restante da Europa. Neste ponto dos debates, sem-
pre os defensores da liberação demonstram, com razão, que
não há fórmulas infalíveis, porque os Estados Unidos, com sua
linha dura, não conseguiram resultado positivo. Lá o número
de viciados cresce a cada ano.164 De qualquer forma, ninguém
garante que com a liberação da maconha o consumo não ex-
plodiria ainda mais. É o que teme, por exemplo, o economista
Peter Reuter, da Universidade de Maryland.165 E contenção da
aceleração de consumo não deixa de ser resultado positivo.
Mas o que interessa, aqui é que – desmistificando o discurso
de que toda restrição é mal vinda – a Suécia exercita “linha
dura” e obtém resultados. Ponto.
Na Polônia, recentemente, o governo conservador en-
caminhou um projeto de Lei que, além de outras formas de re-
pressão à propagação do consumo de drogas, pretende insti-
tuir exame periódico dos trabalhadores, para detecção de
consumo. Outra medida polêmica seria a proibição do uso de
vestimentas ilustradas com símbolos de drogas ilícitas, como a
folha da cannabis. 166
Já Portugal, foi outro que descriminalizou o consumo
de drogas em 2001 (Lei nº 30/2000). Mas também não foi sem
polêmica e insatisfação, marchas e contra-marchas. E também
marcha à ré: o governo da Ilha da Madeira, em abril de 2008,
fez aprovar na Assembléia local, uma lei voltando a crimi-
nalizar o consumo. Naturalmente, há uma discussão em
torno da competência legislativa para o tema. Mas os madei-
renses afirmam, como o fazem também os cidadãos de Aço-
164. Conforme consta na reportagem de Nelito Fernandes, Rafael Pereira e Martha Men-
donça, “A elite e os traficantes” disponível em: http://revistaepoca.globo.com/revista/epoca/
0,,edg79778-6014-493,00-a+elite+e+os+traficantes.html. “11% dos americanos admitem con-
sumir maconha e haxixe – e o número cresce 2% ao ano. O total de presos por porte de dro-
gas cresceu dez vezes em 30 anos.”
165. Cfe. matéria “Vício liberado”, Revista VEJA, citada acima.
166. MAIEROVICH, Walter Fanganiello. DROGA. Proibidas camisetas com estampa de fo-
lha de maconha, etc. Em: http://www.ibgf.org.br/index.php?data[id_secao]=4&data[id_ mate-
ria]=1248. Acesso em 15/11/08.
133
res, que a liberalidade legal fez aumentar o consumo “a níveis
alarmantes” e também a criminalidade decorrente do uso de en-
torpecentes. 167
No sítio da Associação Para Um Portugal Livre De Drogas
(APLD) na Internet, vê-se que aumentou o número de consu-
midores de haxixe em 46%, entre 1999 e 2004. A Associação
também avalia que houve um aumento de 9% nos últimos
anos, na criminalidade ligada a drogas. Manuel Pinto Coelho,
presidente da APLD, entende que em Portugal fez-se um “des-
pudorado convite para o abismo”, e que “a mensagem que a descrimina-
lização das drogas leves transporta é que se o seu uso é benevolente, então
é porque não faz mal!”. Conforme o médico, grande parte das
pessoas pensam: “Se fossem assim tão más elas não seriam descrimi-
nalizadas”. Avalia ainda que será cada vez mais difícil reduzir o
número de dependentes químicos. A ausência de obstáculos
proporcionada pela descriminalização fará tardar cada vez
mais a tomada de consciência quanto à existência de um pro-
blema de abuso. A tendência é o usuário achar que tudo está
bem se seu consumo situar-se no limite fixado em Lei.168 É
que a lei portuguesa permite ao usuário portar a droga neces-
sária ao seu consumo previsto para 10 dias, o que arbitrou-se
em 10 doses. Claro que, conforme apontam vários organis-
mos portugueses de combate à drogadição, isso facilitou em
muito o tráfico, apenas intensificando o varejo.
Quanto à Grã-Bretanha, convém registrar que, após a
maconha ser classificada como “droga leve”, em 2004 (classe “C”,
grupo em que constam tranqüilizantes, valium e esteróides anabolizantes),
com a eliminação da pena de prisão para consumidores, fortes
pressões fizeram a classificação ser reavaliada. A maconha pas-
sou a droga intermediária (“classe B”, onde constam as anfetaminas.
Na “classe A”, constam heroína, a cocaína, o ecstasy e o LSD), e o go-
verno anunciou severas punições a partir de 2009. Uma das ra-
134
zões da marcha à ré é o já mencionado surgimento de uma va-
riedade mais forte da droga, chamada de super-skunk.169 O
skunk, ele próprio, mais forte que a maconha “regular”, domi-
nava 30% do mercado britânico em 2002, número que alcan-
çou, hoje, 81%.170 Claro que a medida sofre críticas dos defen-
sores da liberação, que acusam o “retrocesso”, atribuindo-o à
mudança política do governo para um perfil mais conservador,
que estaria tentando agradar à mídia. Afirma-se que O Conselho
Assessor sobre o Mau Uso de Drogas não vê “base científica” para a
alteração.171 Bom, o fato é que, proposta e aprovada pelo Par-
lamento, a medida vigora, efetuada dentro das mesmas bases
da democracia convencional com que antes se fizera o suposto
“progresso”.
O caso britânico abre, necessariamente, um outro foco
de discussão, já que o país protagonizou as Guerras do Ópio,
contra a China, no século XIX. Como sabemos, a Inglaterra
produzia ópio na Índia e tinha na China seu principal mercado.
Quando as autoridades e os nacionalistas chineses verificaram
a proliferação das casas de ópio e as mazelas sociais que tra-
ziam, inclusive ajudando na submissão do povo ao domínio
estrangeiro, rebelaram-se contra os mercadores de ópio. O que
fez, então, o Império Britânico? Simplesmente começou uma
guerra de domínio para garantir o mercado da droga, grande
fonte de receita para manutenção do modo de vida dos súditos
do trono inglês.172 Claro que a guerra tinha intenções de ga-
rantir portos abertos e mercados dóceis para outros produtos.
Mas é emblemático que o ópio tenha sido a ferramenta de do-
135
minação, essencial aos interesses imperialistas. Tornava o povo
inerte e incapacitado para a resistência contra o invasor.
Esse episódio histórico traz uma lição para alertar to-
dos aqueles que imaginam ser progressista toda luta pela libe-
ração das drogas. Deve-se, inclusive, perceber o quanto de im-
por tação de idéias alienígenas existe na proposta da
descriminalização, como se ideológicas esquadras aportassem
com suas canhoneiras em nossa cultura. O fato de alguns paí-
ses haverem liberado drogas, não torna automática a exigência
de que, de forma descontextualizada, o Brasil caminhe a
mesma trilha. Cada país deve respeitar as limitações da sua cir-
cunstância e revolucionários maoístas, maconhistas ou socia-
listas, por mais que sua missão seja apressá-la, devem aprender
a respeitar os ritmos da história. Fazer o contrário pode impli-
car em retrocesso a situação pior que a atual. Veja-se a história.
Assista-se Ensaio de Orquestra, de Fellini (onde o autoritário ma-
estro “deposto” pelos músicos da orquestra volta depois, dada
a ausência de projeto alternativo, com muito maiores poderes).
Por outro lado, a vista parcial de uma realidade sempre
induz a equívocos. Há países que há séculos têm o haxixe, por
exemplo, tolerado ou liberado. É o caso de diversas nações
muçulmanas. Cita-se muito a questão religiosa, cultural, de po-
vos ancestrais, tradições asiáticas. Pois bem, qual é o contexto
desses países? As drogas, ali, podem constituir elemento cultu-
ral, traço de identidade, tecido numa teia que junta religiosi-
dade, crenças místicas, um determinado habitat, uma determi-
nada forma de enxergar os papéis de gênero e geração,
constituição familiar, regimes políticos, etc. Ou seja, a droga é
um dos elementos de uma cultura. Importar apenas este fator,
pode não reproduzir os elementos positivos que eventual-
mente tais culturas possuam e, pior, pode trazer inúmeras das
suas desvantagens relativas. Afinal, Marrocos, Afeganistão, Ín-
dia, Paquistão, a região cocalera da Bolívia, ainda que contem,
aqui e ali, com aspectos virtuosos, não parecem ser exatamente
136
o exemplo de civilização que a maioria do povo brasileiro al-
meja construir.
Alguém argumentará: mas e a Holanda e outros países
do “andar de cima”? Como é que eles chegaram a este estágio
“superior”, de segurança institucional e de construção democrá-
tica? Afinal, estamos falando de parlamentarismo, ombudsmans,
saúde pública de qualidade, educação de excelência, baixo nível
de desigualdades, etc. Lá chegaram porque liberaram drogas
ou, porque lá chegaram, se deram ao luxo arriscado de permi-
tirem drogas? A droga é um elemento constitutivo da naciona-
lidade, do traço cultural, das referências básicas da nação?
Não! Os sensatos, os prudentes, só vão à recreação (seja ela
qual for), depois de resolvidas as questões básicas da sobrevi-
vência. O feijão vem antes da maconha.
E falando em “países do andar de cima”, e de suas re-
galias, lembremo-nos de que alguém sempre paga por elas.
Quando alguém do primeiro mundo vai à praia nas Ilhas Gre-
gas, não se engane, em algum lugar, em troca de um prato de
comida, alguém ficou lavando o chão dos seus banheiros. Para
que alguém desfrute lagostas, alguém estará mastigando pe-
dras, se dentes houver. Disso não escapa nem mesmo a Ho-
landa, cuja biografia tem um período de triste prosperidade
decorrente do tráfico de africanos, e que hoje tem um elevado
índice de populações marginalizadas, muitas em trabalho es-
cravo ou prostituição, oriundas de diversos países do Leste
Europeu, da Península Ibérica, e de outros. Isso foi estimulado
há algumas décadas, porque a tendência dos países desenvolvi-
dos é a estabilização ou decréscimo do crescimento populacio-
nal. Em algum momento, passa a faltar mão de obra. Daí, a
imigração, que, com o tempo, se torna uma bomba-relógio. E
hoje, as tradições de holandesa tolerância vão sendo postas à
prova por essa população que começa a ser discriminada e per-
seguida. Ou seja, os holandeses, quem diria, estão pensando
em criar regras... E claro que regras excludentes da população
marginal. É estrangeiro? Não sendo branco, consumidor e
narcoturista, não interessa.
137
De qualquer forma, para se entender melhor o isola-
mento holandês, deve-se conhecer a pesquisa realizada pelo
Instituto Eurobarômetro, em 2006. Ouvidos cidadãos dos 25
países integrantes da União Européia, viu-se que 74% dos eu-
ropeus são contrários à legalização do consumo “recreativo”
da maconha. A exceção, claro, foi a Holanda, onde o percen-
tual de contrários desce para “apenas” 51%. Uma surpresa na
revelação dos resultados da pesquisa foi o percentual de 57%
dos jovens consultados, entre 15 e 24 anos de idade, que são
contrários à legalização da maconha. Na Suécia e a Finlândia,
que têm obtido bons resultados com sua linha dura na questão
das drogas, o percentual de contrariedade alcança 92% dos fin-
landeses e 93% dos suecos. Ou seja, nem a Europa quer a pro-
pagação da experiência holandesa!173
Nós é que vamos, então querer? O Brasil não é muçul-
mano, oriental ou holandês. Não possui sistema de castas ou
regimes tribais e também não resolveu suas questões básicas
de desenvolvimento. Não será a liberação da droga que nos
permitirá os avanços necessários. Não queremos que a desi-
gualdade social prossiga, para que nossos escravos internos fi-
nanciem as regalias dos abastados. Por sinal, o ponto nevrál-
gico da decadência de muitos impérios, a literatura o registra,
sempre foi a liberação de costumes excessiva, a moral permis-
siva. Egito, Macedônia e Roma, assim ruíram. No próximo ca-
pítulo falaremos um pouco sobre a situação da sociedade
atual, dos sinais da sua decadência, no momento em que se
torna excludente, hedonista e imediatista. Por ora, fiquemos
com esta conclusão: sem que tenhamos importado progressos,
não cabe importar decadência. É como se algum país, que-
rendo copiar o futebol brasileiro, não podendo contar com
Pelé, nos levasse uns gandulas. Se os europeus não desejam os
gandulas holandeses, por que nós deveríamos querê-los?
138
DO BICHO-GRILO
AO BICHO GRILADO
Maconha nos anos 60 e hoje: diferenças
139
Na Paris de 1845, intelectuais se organizaram numa es-
pécie de sociedade secreta, para meditação e experiências oní-
ricas movidas a ópio e haxixe. Lá estiveram Balzac, Delacroix e
Alexandre Dumas. Teóphile Gautier descreveu em “O Clube
dos Fumadores de Haxixe” como ali, num quarto de hotel parisi-
ense, se consumia a droga, naquela forma de pasta esverdeada
dissolvida em café preto, provocando transes coletivos. Todos
deliravam em divãs, entregues às visões e sonhos, com música
ao fundo. Isso não lembra as festas ripongas dos psicodélicos
anos 70?
Daquele clube seleto participava Charles Baudelaire.
Desde jovem, o poeta era intensivo usuário do ópio, que ame-
nizava dores causadas pela sífilis que o mataria. Ele descreveu
a experiência em diversas obras, como “Paraísos Artificiais”, “O
Ópio” e o “Poema do Haxixe”. Neste, Baudelaire descreve a em-
briaguez da droga, a confusão de sentidos, as experiências sen-
soriais, os delírios: “você tem mãos de manteiga e em todo o seu ser, um
estupor embaraçante; seus olhos estão lançados num êxtase implacável,
seu rosto se inunda de palidez (...)o haxixe invoca magnificências de luz,
esplendores gloriosos, cascatas de ouro líquido (...) em seguida, surgem os
equívocos (...) os sons se revestem de cores e as cores contêm uma música”.
Em “Um Comedor de Ópio”, o poeta se debruça num longo e
analítico estudo sobre o clássico de Thomas de Quincey, “Con-
fessions of an English Opium Eater”, onde o crítico inglês relatara
experiências de “expansão da mente” através de alucinógenos —
que ele ingeria para suportar freqüentes nevralgias, e a forma
como o ópio o conduzia inevitavelmente tanto para o prazer
quanto para a dor: “entre duas agonias, uma proveniente do uso conti-
nuado, e outra de sua interrupção, o autor preferiu aquela que implicava
numa chance de libertação”. Ou seja, buscou sobriedade. Em “Pa-
raísos Artificiais”, há um ensaio sobre o vinho, em que Baude-
laire, embora diga que “um homem que só bebe água tem um segredo
a esconder de seus semelhantes”, explica que “o vinho é como o homem e
concordo que seus crimes são iguais às suas virtudes.”
140
Conforme Marcelo Xavier175 “o poeta tenta esboçar os mo-
tivos que levam os homens à compulsão pela droga, em busca do paraíso,
de um éden de boticário, daquilo que ele mesmo chama de “ideal artifi-
cial” (cabe ressaltar que, em seu tempo, não existia a repressão policial e
tanto o ópio quanto o haxixe eram tão baratos e fáceis de se achar quanto
desconhecidas eram as conseqüências do uso contínuo e da dependência de
entorpecentes desse tipo, por exemplo).” Citando o historiador Vol-
taire Schilling, a reportagem afirma que “a hipótese de que o desen-
cantamento com a religião revelada, iniciada pela crítica do Iluminismo no
século 18, não removeu do íntimo do psiquismo humano a necessidade da
crença num mundo sensorialmente idílico, encontrado anteriormente em to-
das as expressões religiosas conhecidas. A gratificação psicológica que a
religião provoca estaria sendo substituída pelos efeitos deletérios das dro-
gas”. Lembram, como “mais fortes são os poderes do Cristo maco-
nheiro!”, em capítulo anterior? Entretanto, como vimos, “Baude-
laire também tinha consciência do limite de deixar-se escravizar pelo
haxixe e perder a sua integridade intelectual por conta disso. E sabia que
estava nadando numa piscina de tubarões:
Aquele que recorre a um veneno para pensar em breve não poderá pensar
sem veneno. Dá para imaginar o destino horrível de um homem cuja ima-
ginação paralisada não funciona mais sem o haxixe ou o ópio?
175. Idem.
176. Termo atribuído tradicionalmente a Gertrude Stein. Popularizado por Hemingway em
seu livro O Sol Também se Levanta. Faziam parte do “grupo” assim identificado, Scott Fitzge-
rald, Pound, John Dos Passos, T. S. Eliot e James Joyce.
177. Nos anos 50, estiveram à frente dessa “revolução” artística e comportamental expoen-
tes como Lawrence Ferlinghetti, Allen Ginsberg, William Borroughs, Jack Kerouak, dentre ou
#############
141
saíam “On the road”,178 os músicos de jazz que freqüentavam a
Paris do pós-guerra, bem como os roqueiros e hippies que fa-
ziam a estrada “Sem destino”179. Todos vivenciaram experiên-
cias criativas a partir do consumo de entorpecentes. Uma das
“bíblias” dos usuários, que muito influenciou a “geração beat”, foi
a obra em que Aldous Huxley mencionava suas experiências
com mescalina, “As Portas da Percepção”. O nome do livro teria
batizado o grupo de rock “The Doors”. O produto era um ácido
extraído de um cacto chamado peiote, que mais tarde seria mi-
nistrado a Carlos Castañeda por um bruxo mexicano, resul-
tando na obra “A Erva do Diabo”, outro clássico dos alternati-
vos psicodélicos.
O perfil desses ídolos populares, muitas vezes em dis-
senso com o status quo, atraíram seguidores entre as multi-
dões de adolescentes de todos os tempos. No Brasil não foi
diferente.
Neste particular, é importante o depoimento dos que
vivenciaram o período da contracultura sessentista e hoje fa-
zem retrospectiva da experiência, contextualizando-a critica-
mente. Vejamos o que disse a cientista social e doutora em psi-
cologia social, Beatriz Carlini-Marlatt:
tros. O grupo influenciou cinema, artes em geral, o meio universitário e sedimentou propostas
que vicejariam em modos alternativos de viver, nos anos 60 e 70.
165. Obra ícone do movimento beat, de Jack Kerouak.
179. Filme de 1969, símbolo da geração ‘flower power’, em que dois motoqueiros vividos
por Peter Fonda e Dennis Hopper, saem pelas estradas, sem rumo, em busca da felicidade.
Jack Nicholson, que também atuou no filme, contou que na "cena do mato" (em que os atores
consumiram maconha) ele fumou cerca de 100 baseados.
142
Nós chegamos ao poder. E conosco permanece um certo incô-
modo histórico de discutir o uso de substâncias químicas
entre os jovens do nosso país. Este texto é um apelo para
que superemos esse incômodo.180 (grifei)
180. No ensaio “Jovens e drogas: saúde, política neoliberal e identidade jovem”, constante
de “RETRATOS DA JUVENTUDE BRASILEIRA – Análises de uma pesquisa nacional”, Edi-
tora Fundação Perseu Abramo, 2005, pp. 303/304. O livro expõe resultados e analisa pes-
quisa de opinião realizada entre os jovens brasileiros, em 2003.
181. In “Não confie em ninguém com mais de 30, a menos que você seja um deles!”, em:
http://www.nao-til.com.br/nao-66/naoconfi.htm.
182. “Como mãe, vou ficar devendo”, “fui mal escalada para esse papel”, disse a atriz à Re-
vista Marie-Claire, disponível em http://revistamarieclaire.globo.com/Marieclaire/0,6993,
EML1168870-1731-1,00.html
143
das drogas está adquirindo aspecto de guerra civil. Alguns artistas impor-
tantes que usam drogas acham que a solução seria a liberação do uso.
Acho que seria um passo muito temeroso.” Embora o CD lançado
em 2002 numa parceria de Mautner e Caetano Veloso tenha se
chamado “Eu não peço desculpa”, a letra da canção “Coisa assas-
sina”, com melodia de Gilberto Gil, é clara: “Maldita seja essa
coisa assassina / Que se vende em quase toda esquina / E que passa por
crença, ideologia, cultura, esporte / E no entanto é só doença, monotonia
da loucura, e morte”.183 O cantor reiterou seus temores em outra
oportunidade:
183. “Drogas: apertando o usuário”, de Liana Melo e Ricardo Miranda, na Revista Isto É de
28/04/2004, disponível em: http://www.terra.com.br/istoe/1803/brasil/1803_capa_droga_
01.htm
184. “Tudo o que você sempre quis saber sobre a maconha e tinha medo de perguntar” de
Márcia Cezimbra, em O Globo de 5/10/2003, disponível em http://br.geocities.com/baseado
emfatos/p1/20031005_tudo_o_que_voce_sempre_quis_saber_sobre_a_maconha_e_
tinha_medo_de_perguntar.htm.
185. Idem.
144
ata reuniu mais de 16.000 jovens no Hyde Park, em Londres. A
reivindicação foi aceita pelo governo. Dez anos depois, em
2007, em editorial de primeira página, o mesmo jornal reco-
nhecia: “Perdoem, mas erramos!” E passava a justificar a mu-
dança de posição pela constatação do assustador crescimento
da adicção entre jovens. De 1.600 ingleses em tratamento de
dependência química da maconha ou haxixe em 1997, o nú-
mero subira para 25.000, em 2007. Como já dissemos, o teor
de THC nos produtos subira, com o surgimento do skunk, e se
tornara 25 vezes mais potente. A coragem do jornal em rever
sua posição é notável. Devia servir de exemplo para outras
forças que se pretendem progressistas.186
Entretanto, muitos dos que viveram os anos 60, não só
não fazem autocrítica ou revêm comportamentos, como ainda,
agravam o próprio vício. Conforme a agência antidrogas do
Departamento de Saúde dos Estados Unidos (SAMHSA, na sigla em
inglês), embora o consumo de cocaína, anfetaminas e ma-
conha tenha caído entre os jovens americanos em 2007, dupli-
cou entre os “baby-boomers”, a geração de 55 a 59 anos. Disse a
SAMHSA:
145
rendo avaliar “o que deu errado”, Eva Katchadourian desabafa,
em cartas ao ex-marido. A sua perplexidade é comovente. Em
um dos trechos mais significativos, ela afirma nunca ter tido a
certeza sobre se Kevin era ou não consumidor de drogas. É in-
teressante notar que, além de diversas posturas condescenden-
tes e permissivas que vai descrevendo, em dado momento ela
reflete sobre as experiências com o consumo de entorpecentes
que o casal de genitores tivera na juventude. “Não havia remorso,
mas saudades”. Inclusive, o pai teria dito ao filho, sobre maco-
nha, algo como: “tudo bem se quiser usar, apenas não seja pego”. E a
mãe confessa ter avaliado que um pouco de ecstasy não faria
mal ao seu filho, sempre tão hermético e incompreensível.189
Parece a típica postura do transporte leviano e indevido
de experiências datadas, para contextos perigosos, como os
dias de hoje. Mas Eva não está só. A pesquisa recente da Re-
trato Consultoria informou que, dos jovens freqüentadores das
baladas da noite carioca, 35% faziam uso de drogas e, destes,
43,3% o faziam com o “conhecimento” dos pais. Claro que
aqui, conhecimento é consentimento. Na reportagem, Luiz
Paulo Guanabara, da Psicotropicus, comenta que essa tolerância,
embora “não seja o melhor cenário”, refletiria proteção aos filhos,
preservando-os da bandidagem com ou sem farda.
Estranha essa “proteção”... suicide-se em casa, meu que-
rido. Similar à, cada vez mais comum, entrega das chaves da
casa ao filho ou filha adolescente, para que possa se reunir
com os amigos, sem qualquer presença ou acompanhamento
adulto! Bom, eu não acho nem normal, nem correto. Certos
conservadorismos salvam vidas. Até porque, com regras assim
tão elásticas ou ausência de regras, onde se gastará toda aquela
energia que o adolescente necessariamente precisa despender
para criar musculatura moral, exatamente se confrontando
com essas regras? Regras precisam existir, justamente para que
haja refregas. Se os jovens não precisam de torniquetes ou es-
magamentos, e não precisam mesmo, demandam controles
189. Pp.376.
146
que lhes permitam horizontes. Planaltos sem fim não ajudam.
Adolescente precisa escalar montanhas. Se não, começa a cavar
buracos. E por vezes, neles se enterra. Adolescência é uma
contracultura. Pais são uma cultura matriz. Se esta já for con-
tracultura, em si, de adultos de adolescência tardia, pode ocor-
rer de a antítese dos filhos ser extremada a ponto de arrebentar
o elástico e alguém se perder. A suposta “harmonia” que você,
pai ou mãe, hoje cultiva com seu filho adolescente, pode ser
ilusória, mascarando os vulcões de amanhã.
Mas entendo que seja difícil combater padrões que vie-
ram de tantas “glórias” dos anos 60, e que se mantém propa-
gados na mídia. Essa aura de contracultura em torno da maco-
nha persiste, alimentada por produções culturais de grande
apelo popular. No mundo das sitcons americanas e européias é
freqüente a referência airosa à maconha. Desenhos animados,
como “South Park”, brincam com o tema. Em certo episódio,
Springfield, a cidade dos “Simpsons”, teve a maconha liberada
medicinalmente. Hommer Simpson entrou em cômicos delírios
fumando a erva receitada.190 Faz muito sucesso no mundo
todo, o seriado da TV americana, “Weeds” (“erva”, em portu-
guês), em que uma dona de casa (representada pela atriz Mary
Louise-Parker), em situação difícil após enviuvar, passa a ven-
der maconha plantada no quintal de casa à vizinhança. Surpre-
ende-se com a demanda. Embora produtores e fãs digam que
a série não faz apologia, mas crítica social, é fato que a aura ro-
mântica da cannabis se fortalece. “Esse (a maconha) era o último
dos temas considerados intocáveis”, disse Roberto Benabib, produ-
tor-executivo do seriado. Na divulgação da segunda temporada
da série foi veiculado um anúncio na revista Rolling Stone, tra-
zendo uma tira perfumada com aroma de maconha.191
Antes, história similar à de “Weeds” fora explorada no
filme “O Barato de Grace”, com Brenda Blethyn.192 Na TV es-
147
panhola, episódio da série “Aquí no hay quien viva”, mostrou
uma septuagenária plantadora de cannabis residencial que assim
ganhava seus trocados a mais.193 Em 2005, foi produzida a co-
média musical adolescente “A Loucura de Mary Jane”, satiri-
zando filmes dos anos 30 que buscavam aterrorizar os especta-
dores, de maneira grotesca, quanto aos efeitos danosos da
maconha, mostrando jovens que enlouqueciam de forma risí-
vel e chegavam a cometer assassinatos.194 O cômico é que a
maconha, embora possa alucinar, em geral dá inércia. Mas
como dá também uma fome cavalar, é possível que os maco-
nheiros da história fossem devoradores de gente, em ataques
de “larica”, como é chamado esse apetite. Vai saber...
A coisa, no meio artístico e cultural, é tão séria, a mili-
tância tão atenta, e o assunto rende tanto que, além de copas,
revistas, livros, páginas na internet, feiras, existem festivais de
cinema específicos. Conforme o sítio “Growroom Blog”, em
2007 organizou-se no Chile, “HOLLYWEED, o primeiro Festi-
val Internacional de Cinema Psicoactivo”. Os organizadores e apoia-
dores diziam bem a que vinham, a partir dos nomes que osten-
tavam: “Revista Cáñamo”, “Sensi Seeds Bank”, “Hipersemillas.com”
e “Growshop Germinia”.
No Brasil, o assunto também mobiliza o meio artístico.
Desde o registro de “Cidade de Deus” à denúncia de “Tropa de
Elite”, passando pela irreverência de “Muito Gelo e Dois Dedos
D’Água", no qual uma avó repressora é seqüestrada por duas
netas maconheiras. O Canal Brasil, da TV por assinatura, tem
um programa culinário chamado “Larica Total”. O cartunista
Angeli, lembremos, tem entre seus personagens favoritos a du-
pla cujo nome brinca com o festival de rock mais emblemático
de todos, os hippies perdidos no tempo, Wood & Stock, que
148
adoram fumar seu “orégano”! Com esse chiste que abusa o
tempero em disfarce da maconha, a tira virou, ainda, revista de
sucesso e longa-metragem de animação.
Episódio importante nessa história é a novela de Glória
Perez, “O Clone”, exibida em 2002, pela Rede Globo de Televi-
são. A obra apresentava uma dependente química em estado
deplorável, vivida por Débora Falabela. Havia também Osmar
Prado, no papel de um alcoólatra. As fortes cenas de descon-
trole, síndrome de abstinência, desvios comportamentais e mi-
séria física e emocional mobilizaram a opinião pública. Tudo
reforçado pela inserção, bem à moda da novelista, de trechos
de depoimentos de dependentes químicos reais. Famílias se
apavoraram e aumentou o número de internações em clínicas
de tratamento e a busca por orientação profissional. Alguns
especialistas em dependência química e defensores da libera-
ção das drogas criticaram o folhetim, entendendo que as situa-
ções eram irreais, exageradas, e podiam contribuir para aumen-
tar o preconceito contra os usuários.195
À época vieram à tona revelações sobre a vida de mui-
tos artistas que haviam passado pela dramática experiência do
vício efetivo ou do consumo imoderado, como Cissa Gui-
marães, o próprio Osmar Prado, o DJ Thunderbird, Vera Fis-
cher, Felipe Camargo. Uma reportagem da Revista Época fez
uma análise daquele novo momento, de “caída na real”, com-
parando-o com os tempos em que as drogas eram uma ilusão
romântica:
Trinta anos atrás a droga tinha seu charme e seu uso chiquíssimo – mais
indispensável que terno da Daslu em armário de Mauricinho. No Rio de
Janeiro, quem sabia das coisas freqüentava o ponto da praia onde o con-
sumo de maconha era aparentemente tolerado: as Dunas do Barato, ou
Dunas da Gal – assim mesmo, numa referência à cantora, assídua na-
195. Assim pronunciou-se, por exemplo, o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, 46 anos, di-
retor do Proad (Programa de Orientação e Assistência a Dependentes), da USP, em entre-
vista à Revista IstoÉ Gente, disponível em : http://www.terra.com.br/istoegente/140/entrevista/
index.htm.
149
quelas ondas, com seus cabelos e seu sotaque baiano. ‘Freqüentei o Píer de
Ipanema e, com 14 anos, fumava maconha e tomava lisérgicos para ver o
pôr-do-sol’, conta a atriz Cissa Guimarães, a Clarice de O Clone. ‘Usava
cocaína nos ensaios das peças porque achava que me deixava mais inteli-
gente. Mas no dia seguinte ninguém se lembrava de nada.’ Era um tempo
em que os artistas usavam drogas, e não omitiam – apesar do ambiente re-
pressivo. Numa excursão do grupo Os Doces Bárbaros, que seria inter-
rompida com a prisão de Gilberto Gil em Florianópolis, por consumo de
maconha, em 1976, um repórter perguntou a Caetano Veloso: ‘O que
você acha do LSD?’ A resposta do cantor: ‘É uma bela droga’.196
150
Lobão, Lulu Santos, Gabriel o Pensador, Fernanda Abreu, Ci-
dade Negra e Marcelo D2 – fundador do explícito e proseli-
tista Planet Hemp – são alguns dos muitos nomes da música
brasileira que, em algum momento, foram flagrados portando,
consumindo, mas acima de tudo, cantando canções que, de
forma velada ou explícita, faziam apologia da droga. Marcelo
D2, inclusive, declarou com todas as letras que chegou a pres-
tar pequenos serviços ao tráfico, em seus tempos de menino
morador no Morro do Andaraí.198 Nenhuma ilação aqui a liga-
ções de D2 com criminalidade, por favor! Apenas descrevo a
circunstância, comum no “Planeta Maconha”, como comum é a
indução ao consumo, dada essa perigosa proximidade.
Na carona de lista divulgada pela britânica Revista
Mojo, o Portal UOL Música chegou a elaborar um ranking das
“10 melhores músicas brasileiras sobre drogas”.199 Lá estão, pela or-
dem, e com curiosas observações, no chamado “TOP 10 NA-
CIONAL DO VÍCIO”:
198. “Consumidor assumido de maconha, D2 não se lembra da primeira vez que usou a
droga. O contato com o tráfico, no entanto, começou cedo. Morador do Morro do Andaraí, na
zona norte carioca, dos seis aos 14 anos, o cantor aprendeu a dividir o espaço com os trafi-
cantes. “Me lembro de estar jogando bola no campinho do morro e aqueles caras ali do lado
fazendo uma parada que eu não sabia o que era”, conta. “Fui crescendo e numa hora tava no
canto com aquele pessoal.” A convivência com o tráfico, para o qual chegou a fazer pequenos
serviços embalando as drogas, durou até a mudança do morro para o Centro do Rio, aos 14
anos.” Conforme a matéria “O roqueiro, a maconha e o juiz”, de Luís Edmundo Araújo para a
Revista Isto É, em http://www.terra.com.br/istoegente/104/reportagem/marcelo_d2.htm
199. Conforme: http://whiplash.net/materias/news_952/013350-jeffersonairplane.html.
151
cadeiras eróticas quase inocentes e versos quase barrocos: “vem cá, neném,
só sossego com beijinho, vê se me dá o prazer de ter prazer contigo” – 3º
“O Mal é o que Sai da Boca do Homem” com Pepeu Gomes
(Galvão/Baby Consuelo/Pepeu Gomes) – O casal mais cuca fresca do
Brasil escandalizou o país ao apresentar em 80, no festival de músicas da
Rede Globo, esta pérola sacrílega da apologia ao uso da maconha, com tí-
tulo extraído do Evangelho de São Mateus. A música rendeu a Baby e a
Pepeu um processo (do qual foram absolvidos em 81) – 4º “Como
Vovó Já Dizia” com De Falla (Raul Seixas) – Apesar de não fazer
referência explícita a nenhuma droga, o refrão da música dispensa esclare-
cimentos: “quem não tem colírio, usa óculos escuro” – 5º “Malandra-
gem Dá um Tempo” com Bezerra da Silva (Bezerra da Silva) –
Este pagode é uma espécie de guia de boas maneiras e comedimento para os
maconheiros mais afoitos e ensina: “se segura, malandro, pra fazer a ca-
beça tem hora” – 6º “Veneno da Lata” com Fernanda Abreu (Fer-
nanda Abreu/Will Mowat) – Esta música remete ao episódio ocorrido
em 1987, quando milhares de latas de maconha foram dar no litoral bra-
sileiro entre o Espírito Santo e Santa Catarina. A carga era levada pelo
navio “Solana Star”, e foi despejada no mar depois que os tripulantes da
embarcação foram “avisados” de que a polícia costeira iria interceptá-los.
Depois de “dispensar” as latas, a tripulação abandonou o barco, literal-
mente. Quando a polícia o interceptou, apenas o cozinheiro estava a bordo.
O episódio deu origem à expressão “da lata”, utilizada para designar ma-
conha (ou, por extensão, qualquer outra coisa) de boa qualidade. 7º
“Moda da Pinga” com Inezita Barroso (Ochelsis Laureano/Raul
Torres) – Enquanto as músicas americanas e inglesas sobre drogas têm em
sua maioria um tom mais dramático e sombrio, as canções brasileiras so-
bre o tema preferem o escracho. Também conhecida como “Marvada
Pinga”, esta música é um clássico do conformismo alcoólico – 8º
“Lama” com Maria Bethânia (Paulo Marques/Aylce Chavez) – Inter-
pretação definitiva desse hino da dor-de-cotovelo e do deboche que menos-
preza a opinião alheia e afirma: “se eu quiser fumar, eu fumo, se eu quiser
beber, eu bebo, não me interessa mais ninguém” – 9º “Eu Bebo Sim”
com Elizeth Cardoso (Luiz Antonio/Luiz Vieira) – Incursão da “Di-
vina” Elizeth no gênero do samba-rock com uma divertida interpretação
da música, entre conformada e apologética, que diz “eu bebo sim, estou vi-
vendo, tem gente que não bebe está morrendo” – 10º “Puro Êxtase”
com Barão Vermelho (Guto Goffi/Maurício Barros) – Esta música do
disco “Puro Êxtase”, de 98, representou uma tentativa do grupo carioca
152
de aderir à onda clubber, com sua referência explícita à droga das baladas,
o ecstasy, no refrão “ela é puro êxtase”.
“Eu canto assim porque eu fumo maconha (...) Quer me prender só por-
que eu fumo cannabis sativa / Na cabeça ativa, na cabeça ativa / E isso
te incomoda? / Eu falo, penso, grito e isso pra você é foda / A mente agu-
çada mermão / Eu sei que isso te espanta / Mas eu continuo queimando
tudo até a última ponta”
153
Apaga a fumaça do revólver, da pistola / Manda a fumaça do cachimbo
pra cachola / Acende, puxa, prende, passa / Índio quer cachimbo, índio
quer fazer fumaça / Maresia, sente a maresia maresia, uuu...
Acho que as pessoas deveriam ter o direito de fumar porque é uma coisa
muito comum, muita gente fuma. Acho que poderia ser testada a legaliza-
ção. Mas tenho medo de acabar incentivando o uso de outras drogas. Sou
totalmente contra cocaína, crack e outras drogas mais pesadas. Eu nunca
experimentei.
200. http://www.terra.com.br/istoegente/24/reportagens/entrev_gabriel.htm.
154
WS – Não posso negar que, também, tem essa conotação. Vapor é uma
gíria para maconha e barato é o que você consegue com o uso da planta.
Além desse sentido, foi a bordo de um vapor que, pela primeira vez, vi o
mar de Salvador. (...)201
201. http://www2.uol.com.br/JC/_1999/1803/cc1803a.htm.
202. “Uns escribas e fariseus perguntaram a Jesus porque os seus apóstolos comiam sem
lavar as mãos, transgredindo a doutrina dos anciãos. Respondeu-lhes o Mestre: O que conta-
mina o homem não é o que entra na boca, mas o que sai da boca, isso é o que contamina o
homem. O que sai da boca procede do coração; porque do coração procede os maus pensa-
mentos, mortes, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos e blasfêmias. Mas comer
sem lavar as mãos não contamina o homem.” Evangelho de Mateus, captulo 15.
155
rido ou fumado, desde que o consumidor “não fosse possuído”,
ou seja, mantivesse o controle.
Mais ou menos como Marcelo D2 disse em outra can-
ção, brincando com o significado do próprio nome: “D2, mas
mantenha o respeito”, no sentido de “dar dois” “tapas” ou “tragos”
no baseado, mantendo a compostura. Pepeu disse, com todas
as letras “Você pode fumar baseado, baseado em que você pode fazer
quase tudo”. A sacada da elaboração textual era oferecer aos
censores, como foi feito à época, a construção “Você pode fu-
mar, (com a vírgula aqui) baseado em que você pode fazer quase tudo”.
Na versão que foi para o papel, com uma simples vírgula e a
não repetição da palavra “baseado”, uma das denominações do
cigarro de maconha, induzia-se a que a música visava a susten-
tar a mera possibilidade de “fumar”. Ou seja, não havia objeto
direto na oração. Como “fumar” é identificado com “fumar ci-
garros de tabaco”, hábito social aceito, o truque daria certo. E
graças aos interesses comerciais da Globo, deu. Nas execu-
ções, entretanto, o pequeno truque foi abandonado para a de-
claração apologista desde o início pretendida: “Você pode fumar
baseado”. Claro que é incitação ao consumo de droga ilícita,
claro que é apologia! Isso, cantado para uma multidão de ado-
lescentes, hormonal e cerebralmente ávidos por emoções e
contrariedade aos pais e ao status quo, vira mais que palavra de
ordem, vira “ordem”.
Com toda a aura de aventureiros românticos de que
desfrutam os artistas populares, seus usos, costumes, dizeres e
obras passam a influenciar comportamentos. Artistas verda-
deiros costumam estar à frente do seu tempo. Por isso, fre-
qüentemente, poderão desentender-se com o status quo. Artis-
tas foram presos, torturados e mortos porque ousavam
defender o que, em dado momento, parecia indefensável.
Abolicionistas lutaram contra a escravidão, democratas e soci-
alistas lutaram contra ditaduras e sistemas injustos de poder.
Por isso, é completamente necessário que se impeça a censura
da criação artística. Entretanto, nem sempre é possível, a uma
156
sociedade que não pretende ver a própria destruição, permitir
que toda criação artística ou intelectual seja divulgada a todos,
de qualquer forma, sem cautelas, principalmente quando trata-
mos de crianças e adolescentes. Uma das virtudes da democra-
cia é tratar desigualmente os desiguais.
Aliás, já que a canção de Pepeu, Galvão e Baby utilizou
a Bíblia, não custa lembrar que a liberdade frente à lei judaica
não autorizava o cristão dos primórdios a dela valer-se para es-
cândalo ou tropeço dos que tinham compreensão diferente.203
É considerado um ato de caridade cristã. Logo, transportando
o raciocínio, se alguém acha que “pode fumar baseado” sem “ser
possuído”, deveria guardar pra si a liberalidade, não propagan-
deá-la. Seria hipocrisia? Não. Seria prudência generosa, para
evitar desencaminhar o “mais fraco” – justamente este que pode
“ser possuído” – em “tropeço” ou “escândalo”. “Todas as coisas me são
lícitas, mas nem todas convém”, disse o apóstolo Paulo.
Exemplo dessa atitude prudente é o episódio em que o
Ministério Público Estadual do Rio Grande do Sul e a empresa
“Ame o Rock”, que representava os interesses da banda gaúcha
“Bidê ou Balde”, firmaram acordo para que a música “E por que
não?”, acusada de fazer apologia da pedofilia, não fosse mais
reeditada, gravada ou apresentada em qualquer forma de mídia
ou em shows.204 O acordo foi provocado por uma denúncia
feita em julho de 2006 por 13 entidades de defesa dos direitos
de crianças e adolescentes, muito justamente inconformadas
com a absurda letra que dizia: “Eu estou amando / a minha menina
/ E como eu adoro / suas pernas fininhas (...) Eu estou adorando ver a
minha menina / com algumas colegas, dela da escolinha / Eu estou apai-
xonado pela minha menina”.205 Ou seja, a sociedade vigilante fez
entender os interesses mais altos, constitucionalmente protegi-
dos, da população infanto-juvenil. A maturidade e o diálogo
encontraram a saída. Caso assim não fosse, deveria ser encami-
157
nhada representação à Justiça, para que a banda e seus produ-
tores fossem processados e, certamente, condenados às penas
de lei. Se a banda produziu a canção, certamente entendia que
era “lícita”, mas por fim, descobriu, ao menos, que “não con-
vinha”. E em geral, em questões de infância e juventude, o que
não convém, é ilícito.
Assim sempre deve ser. O hoje Desembargador Siro
Darlan, quando ainda Juiz da Infância e da Juventude no Rio
de Janeiro criou grande polêmica ao vedar a participação de
menores de 18 anos nas apresentações do grupo Planet Hemp.
Todo mundo lembra das confusões, das prisões de integrantes
do grupo que, por sinal, era musicalmente excelente, com hip-
hop de primeiro nível, mas que, infelizmente, centrou sua cria-
ção na apologia da droga.
158
cado de produtos voltados para jovens, o movimento “beat-
nik”, o movimento “hippie”, os festivais de rock, como
“Woodstock”, o surgimento de comunidades alternativas, as lu-
tas por direitos civis dos negros e de outras minorias, a libera-
ção feminina, onde se destaca a massificação do uso da pílula
anticoncepcional, a explosão das contestações de 1968 e as
guerrilhas de esquerda, tanto nas guerras de descolonização,
na África e na Ásia, quanto em movimentos libertários, na
América Latina.
Todos esses movimentos, em sua maior parte, foram
acompanhados do consumo de entorpecentes das mais diver-
sas espécies. Nos anos 60, Thimoty Leary, o guru do psicode-
lismo, pontificava no comando de experiências com LSD. Os
livros de Carlos Castañeda faziam sucesso, exatamente porque
propagavam experiências de abertura de consciência, e su-
posto crescimento espiritual, proporcionados pelo consumo
de drogas. Manifestantes em passeatas consumiam maconha.
A “maresia” conferia aos ambientes juvenis de então, a mesma
aura romântica com que a neblina do tabaco revestira os bares
e cabarés da chamada “geração perdida” dos anos 20, quando
também se verificou um surto parecido de busca pelo prazer,
pela contestação e por modos alternativos de vida.
Logo, nos anos 60, fumar maconha, inegavelmente,
podia ser parte de uma atitude política. O consumo de ou-
tros entorpecentes contava com a mesma aprovação tácita da
juventude. O lado meio underground da erva, inclusive, a tor-
nava mais atraente para uma geração em que vigorou um lema
como o “seja marginal, seja herói”, do artista tropicalista Hélio
Oiticica.206
206. O artista plástico Hélio Oiticica participou do movimento Tropicalista, capitaneado por
Gilberto Gil, Tom Zé, Caetano Veloso, Mutantes, dentre outros, nos anos 60. Oiticica estam-
pou o pretenso heroísmo da marginalidade em uma bandeira utilizada como cenário de um
show do grupo. O lema era coerente com a vanguarda que pretendia afrontar o status quo,
com discursos como o “É Proibido Proibir”, a famosa canção de Caetano baseada nos lemas
das barricadas francesas de maio de 68. A canção é uma das campeãs de vaias dos Festi-
vais, num tempo de divisão entre a militância “bicho-grilo” e a luta política.
159
As coisas se complicaram quando começaram os óbi-
tos de ícones que enveredaram pelo caminho sem volta do ví-
cio sem controle. Jim Morrison, Janis Joplin, Jimi Hendrix,
dentre outros, partiram cedo. Transformaram-se em símbolos
maiores de um dos bordões da época: “viver intensamente e morrer
jovem”. De certa forma, ser adulto era um pecado mortal para
aquela geração: “não confie em ninguém com mais de 30 anos”, era a
palavra de ordem. O lema virou canção de sucesso de Marcos
Valle, e depois, refrão do Titãs. Estes, além de tudo, como “Je-
sus não tem dentes no país dos banguelas”, recomendavam ainda não
se confiar em ninguém com mais de 32 dentes.207
A história provou o romantismo ingênuo e perigoso
daquela geração corajosa e bem intencionada. Muitas das “lu-
tas” de então, foram fatais. Muitos não retornaram de suas trips
alucinógenas. Os movimentos de liberação sexual, se por um
lado ofereceram modificações comportamentais positivas, por
outro lado, permitiram o caldo de cultura em que se viu o au-
mento das DST’s e a epidemia de AIDS. Os produtos culturais
alternativos de então (o artesanato, o colorido das roupas, a
música, a expansão da criatividade, etc.) foram incorporados
pela indústria cultural. A verdade é que o sistema os enqua-
drou. Isso fez com que muitos dos sonhos de então morres-
sem na praia. “O sonho acabou”, decretou John Lennon, lem-
bram? Os organizadores de Woodstock transformaram-se em
importantes empresários. Os Rolling Stones, por exemplo, vira-
ram uma empresa multinacional, interessada mais em engordar
as contas bancárias do que em alterar comportamentos. Em
dezembro de 2003, seu vocalista foi condecorado com o título
de “Cavaleiro do Império Britânico”. “Sir” Mick Jagger. Nada mais
ajustado ao sistema. São também “Cavaleiros da Rainha”, Sir El-
ton John, Sir Paul McCartney, Bob Geldof e Bono Vox.208
207. “Jesus não tem dentes no país dos banguelas” álbum de 1987. Canção “32 dentes”,
do álbum “Acústico MTV”, de 1997.
208. Os dois últimos, como não são ingleses, receberam títulos honorários, por isso não
podem ser tratados por “Sir”.
160
Uma das mais nefastas conseqüências, entretanto, que
todo esse movimento deixou, foi exatamente essa aura de que
droga e juventude estão necessariamente conectadas. O tráfico
de drogas, a partir daquele período, organizou-se internacio-
nalmente, em poderosos cartéis, que movimentam bilhões de
dólares. O traficante romântico, leitor de Castañeda, parceiro
de roqueiros, deixou de existir. Pessoas inescrupulosas, fomen-
tadoras de massacres e chacinas, passaram a tomar conta dos
negócios.
Aquela geração dos anos 60, hoje, é uma geração de
avós, ou mesmo, bisavós. Alguns, como dissemos, fizeram al-
guma forma de mea culpa. Outros, entretanto, seguiram na prá-
tica de um discurso que se pretende libertário, mas que hoje
oferece algemas, na verdade. Assim como a luta política, a am-
pliação de direitos efetivos tornou-se mais difícil e menos ro-
mântica, após a queda do Muro de Berlim. Sobrou em muitos,
apenas a defesa da liberação das drogas que então era causa se-
cundária. O secundário, na falta do principal (sociedade mais
justa e solidária), virou protagonista.
Embora o discurso hoje imagine motivar-se por causas
atuais, como o combate ao tráfico – que foi maximizado exata-
mente pelas práticas dos anos 60 – na verdade, tenta renovar,
em contexto muito diferente, o romantismo ingênuo, e por ve-
zes inconseqüente, da juventude de então.
Os anos 80 assistiram ao fenômeno do movimento yup-
pie. Ou seja, os filhos daqueles jovens dos 60, como em qual-
quer movimento natural de uma geração que combate o com-
portamento da geração anterior, voltou-se para valores
materialistas, para a criação de empresas, para investimentos
no mercado financeiro, para o mister do enriquecimento.
As alterações no quadro econômico mundial, a emer-
gência da globalização, do neoliberalismo e da informatização
em larga escala, fizeram ruir o que restava dos sentimentos de
solidariedade humana. Até esta foi incorporada como valor de
mercado. O sistema cooptou os bons sentimentos dos anos 60
161
como insumo de produção. Por isso, empresas, num tempo de
individualismo, ‘estimulam’ o voluntariado de seus funcioná-
rios. Balanços sociais foram criados. Empresas apóiam proje-
tos culturais e sociais. De solidariedade, em fato, há pouco. Os
benefícios se traduzem em ações publicitárias, com reforço da
boa imagem institucional e, na maioria dos casos, em benefí-
cios fiscais.
Então, vejamos: as drogas eram utilizadas nos anos 60
como parte de um suposto ritual de construção coletiva de
uma nova era, de paz e solidariedade. Os revolucionários, nas
barricadas de 68, queriam o Éden comunista, os hippies, nos
acampamentos de tribos roqueiras, a “era de Aquarius”. A soli-
dariedade se foi, o Muro caiu, Hendrix morreu, e a paz não
veio. Restaram as drogas e as reivindicações dos usuários cap-
turados na época, refugiando-se nos paraísos químicos. E fi-
cou esse medo dos revolucionários de ontem, de retroceder no
discurso das drogas, sem perceberem que isso não significa
descalçar seus princípios.
Um arguto analista dos tempos atuais é Zygmunt Bau-
manm, o sociólogo de origem polonesa. Em sua obra “Identi-
dade” (Zahar, 2005), ele menciona como, a partir dos anos 80,
as antigas aspirações coletivas, a luta classista, os ressentimen-
tos sociais, foram erodidos pelo individualismo, esfarelando-se
em “reivindicações discrepantes e confusas”, de grupos de identida-
des que se comportam “como se estivessem sozinhas em campanha,
tratando as concorrentes como falsas aspirantes (...), todas cegas a reivin-
dicações concorrentes”. Descreve os comportamentos dos intelec-
tuais ligados a essas causas, como “obstinadamente egocêntricos e
auto-referentes”. E conclui: “A guerra por justiça social foi, portanto,
reduzida a um excesso de batalhas por reconhecimento”.209
Vivemos esse momento, em que, de forma com-
partimentada, mulheres, homossexuais, usuários de drogas, pe-
dófilos (sim, pedófilos, pois têm também suas associações e
#######
162
militâncias, como vimos)210, religiões minoritárias, negros, de-
ficientes, idosos, crianças e adolescentes, jovens, índios, mi-
grantes, empresários, e tantos outros, disputam à sociedade es-
tabelecida suas fatias de reconhecimento. Há novas
ferramentas de militância. Ao invés das reuniões longas e can-
sativas em sindicatos, associações ou pequenos “apartamentos-
aparelho”, as comunidades na Internet. Este fator faz com que
setores minoritários numa cidade ou país, conheçam seus
iguais em outros pontos do planeta. Por isso, não faltam, tam-
bém, comunidades bizarras e perigosas, como as de pedófilos,
as de nazistas, as de suicidas potenciais e as de canibais (lem-
bram como a rede permitiu um encontro entre o canibal e sua
vítima?)211. No mundo virtual, se encontram, se confortam, se
organizam, desta forma não-presencial e asséptica, facultada
pela rede de computadores. Daí chega-se ao encorajamento
para uma ação concreta e eventual. Não é raro que o muito
que se verbaliza virtualmente não se viabilize em ação real.
Mas a militância não desanima. Até porque a maior parte das
ações é virtual mesmo. Blogs, e-mails, cartas aos veículos de co-
municação, protestos eletrônicos, e, no limite, assaltos de ha-
ckers a sítios institucionais.
Levam a melhor aqueles segmentos mais favorecidos
economicamente. Assim, os interesses de gays e de idosos, por
exemplo, apenas passaram a ser mais bem considerados
quando se viu o seu potencial de consumo. Empresários, evi-
dentemente, se seus empreendimentos não forem muito pe-
quenos, quase sempre emplacam o que lhes interessa. A maio-
ria dessas lutas é importante? Sem dúvida. Mas, como
163
esclarece Bauman, podem ser concorrentes, podem ser confli-
tantes, e até excludentes, exatamente porque pecam pela visão
parcial do panorama. A sociedade mais justa que se busca,
hoje, é a sociedade mais justa ‘para mim’, para o indivíduo, não
importa se se atropelam outros interesses, também fundamen-
tais. Assim, tantas vezes, muito se muda, mas tão pouco se
transforma.
Basta ver que outro fator decorrente das alterações na
correlação de forças do mercado e da informatização é a pre-
carização da mão de obra. Como Zygmunt Bauman tem afir-
mado em suas teses sobre um mundo que se liquefaz, existe
hoje um contingente absurdo de “lixo humano”. Gente sem
condições de incluir-se num sistema que, ao contrário da visão
marxista tradicional, não mais pretende a exploração, mas sim,
a exclusão. Cidadania, hoje, é sinônimo de capacidade de con-
sumo. O que ocorre entre as pessoas, ocorre entre os países.
Por isso, massacres sem providências internacionais, em países
africanos. No fundo, ao sistema é benéfico que se matem. É
gente que está sobrando. Nos anos 60, ainda que fumando ma-
conha, creio que jovens sairiam às ruas protestando contra os
massacres de Ruanda, por exemplo. Hoje, apenas saem, de
forma individualista, buscando o direito de usarem muletas
químico-sensoriais que lhes proporcionem o conforto de, in-
clusive, suportarem ou esquecerem as Ruandas do mundo. É
uma espécie de rendição.
A escritora Viviane Forrester, em “O Horror Econômico”
(UNESP, 1997) detalha com palavras candentes, em tom de li-
belo, essa construção programada da infelicidade juvenil, a
partir da falta de perspectiva. O sistema de ensino ainda per-
manece tentando preparar os jovens para o não mais factível
mundo do emprego. Essa geração “fora do jogo” do capitalismo
surge com “Destinos anulados, juventude deteriorada. Futuro abolido”,
“em posição de fraqueza absoluta, isolados”; “Vítimas, por essa razão,
de uma dor subterrânea, efervescente, que provoca raiva e abatimento ao
########
164
mesmo tempo”.212 É o pano de fundo para que o próprio sistema
empurre os jovens à drogadição, que acaba, sob certos aspec-
tos, sendo uma forma de controle. Talvez por isso, próceres
capitalistas hoje defendam tanto a descriminalização e a libera-
ção das drogas.
Os adolescentes são sentenciados à exclusão, à margem
do sistema. Vêem o mundo da produção, do consumo e das
grifes passar à sua volta, como um trem dourado em que
nunca embarcarão. Como naqueles filmes em que a escravaria
ou os servos passeiam pelos cenários presenciando intimida-
des dos donos ou patrões, sem piscar, em silêncio, como se
não existissem, invisíveis que são, porque despossuídos. Têm a
sensação de não pertencerem a nada, já que nada lhes per-
tence. A professora Sandra Scivoleto, chefe do Ambulatório de
Adolescentes e Drogas do Instituto de Psiquiatria da USP, está con-
vencida de que existe uma relação direta entre “invisibilidade” e
dependência de drogas. “O adolescente que não consegue se destacar
nos esportes, nos estudos, nos relacionamentos sociais, pode buscar nas
drogas a sua identificação. A sensação inicial do não-pertencimento é re-
solvida: o jovem passa a pertencer ao mundo das drogas, onde adquire
uma função.”213 Maconheiros formam uma tribo e, hoje, com
todo o discurso pró-liberação, uma tribo com charme e mili-
tâncias, inclusive. O problema é que, em muitos casos, essa
tribo é uma tribo de fugitivos, onde se inicia a descida à auto-
destruição.
Essa situação é recorrente. Há, na literatura, diversos
relatos sobre o choque enfrentado pelos índios, frente à inva-
são colonizadora branca nas Américas. Isso foi particular-
mente grave na separação promovida entre as famílias, apro-
veitando-se as crianças nas escolas religiosas para a formação
da “nova sociedade” do Novo Mundo. Quem não lembra da
bela, mas bizarra cena do indiozinho de bronze, cantando com
voz de rouxinol, educada, lírica e européia, na missa reprodu-
165
zida em “A Missão”, o belo filme de Rolland Joffé sobre as mis-
sões jesuítas sul-americanas? Em todos os lugares das Améri-
cas, as crianças, separadas de seus pais, obrigadas a abandonar
costumes tribais, sofreram a crise da ausência de raízes. Num
dos relatos mais tocantes, vê-se que buscaram fuga na inalação
de combustíveis e solventes. Cheiravam o gás de laboratórios.
Quando estes veículos de fuga da realidade lhes foram veda-
dos, “passaram, em grupos, a apertar toalhas ao redor do pescoço, até
desmaiarem.”214 Daí ao suicídio efetivo, curto revelou-se o ca-
minho. Ainda hoje, nas comunidades indígenas aculturadas
esta triste contabilidade é imensa.
Suicídio, aliás, é uma das soluções escapistas que mais
vêm aumentando, no mundo todo, frente às opressivas maze-
las da sociedade materialista e excludente. Segundo relatório da
Organização Mundial da Saúde divulgado em 2006, no Dia Mun-
dial de Prevenção ao Suicídio, o ato extremo subira 60% nos últi-
mos 50 anos. 3.000 pessoas praticavam suicídio diariamente no
mundo, a uma média de uma pessoa se matando a cada 30
segundos! Isso sem falar que, para cada suicídio com óbito, re-
gistravam-se 20 tentativas frustradas. Na ocasião, a OMS e a
Associação Internacional para a Prevenção do Suicídio (AIPS) ressal-
taram a importância de reforçar programas de prevenção do
comportamento suicida. Lutam para que o problema “não con-
tinue sendo visto como um fenômeno-tabu, ou um resultado aceitável de
crises pessoais ou sociais”, mas como “uma condição de saúde influenci-
ada por um ambiente psicológico-social e cultural de alto risco”.215
Crianças de rua são seres assim, destribalizados como
os pequenos indígenas e praticando comportamentos de altís-
simo risco, como suicidas homeopáticos. Ausentes da família,
estão na cidade, mas a ela não pertencem, invisíveis que são, a
214. Schottstaedt, M.F e outro, em “Inhalant abuse in an indian boarding school”, citado em
“Uso ilícito de drogas lícitas pela nossa juventude. É um problema solúvel?”, de Elisaldo A.
Carlini, constante de “Drogas: é legal? Um debate autorizado” (Imago,1993), organizado por
Francisco Inácio Bastos e outro.
215. Matéria “OMS: 3.000 pessoas por dia cometem suicídio no mundo”, em http://cienciae-
saude.uol.com.br/ultnot/efe/2007/09/10/ult4429u1004.jhtm
166
maior parte do tempo. Completamente à margem, assistem à
cidade passar em seus rumos de lazeres e labores. Não raro,
socorrem-se em drogas, principal e inicialmente, inalantes. Um
estudo realizado com crianças de rua paulistanas verificou
que, quando receberam uma ocupação produtiva, preparando
artefatos para comércio próprio, reduziu-se entre elas o uso
diário de solventes de 37,4% para apenas 4,8%.216 Vê-se que a
solução só se deu pela inclusão produtiva, espaço pequeno
como uma cabeça de alfinete, hoje em dia.
Assim cresce a nossa juventude, à margem, excluída e
sabendo que os caminhos ofertados não darão futuro. Seguem
perplexos, sem perspectivas, a não ser a da competição desen-
freada, para os poucos que ainda podem aspirar a competir,
porque tiveram acesso a escolas de qualidade. A esmagadora
maioria vive nas periferias das grandes cidades, esmagada pela
falta de esperança. Neste ano de 2008 – em que podemos lem-
brar das barricadas de Paris, em 1968 – devemos estar atentos
para o fato de que as barricadas resultantes da revoltas de
2005/2006 nos subúrbios franceses (os chamados Banlieues)
não possuem filósofos que as inspirem, não traduzem palavras
de ordem ou reivindicação. São manifestações de revolta, pura
e simplesmente. Em muitos casos, são atos criminosos, em
verdade. De qualquer forma, descobre-se uma juventude em
guerra com um estado de coisas que não consegue compreen-
der e que gera convulsões internas e neuroses típicas de com-
batentes, que não sabem se viverão amanhã. Se um dia retor-
nam da guerra, não mais se encaixam.
Os soldados do exército de Hitler operavam, com o de-
senrolar da guerra, em composições cada vez mais juvenis, e
cada vez mais movidas a consumo de drogas. Eram adminis-
tradas aos recrutas anfetaminas e cocaína, na busca de desem-
penhos sobre- humanos. O Pervitin217 era o “pão de cada dia” de
167
soldados crescentemente oprimidos pelo desespero e pela an-
gústia do front. Os que sobreviveram, terminaram inapelavel-
mente dependentes químicos.218 O mesmo ocorreu na Guerra
do Vietnã, verificando-se inclusive o surgimento de linhas de
tráfico de heroína operadas a partir da Ásia. O mesmo ocorre
no Afeganistão, o mesmo ocorre em todas as guerras.
Este momento da história da humanidade, de guerra
permanente e velada, invisível, em que vivemos um clima de
embrutecimento das relações humanas, de fortalecimento do
individualismo hedonista, de competição desenfreada, relações
fugazes, incerteza e liquidez, favorece a busca por compensa-
dores químicos para a angústia humana. Além das drogas de
que temos tratado aqui, alcança recordes o consumo de remé-
dios de toda ordem, ansiolíticos, estimulantes e outros. Aqui
também se brada: se estão liberados, porque não a maconha?
Vamos democratizar os venenos do alívio! Não por acaso, al-
guém já deu aos indivíduos da contemporaneidade o nome de
“Geração Prozac” (como o filme de Erik Skjoldbjaerg, em que
Cristina Ricci faz uma jornalista que consome drogas para su-
portar o trabalho e os problemas familiares, até que, por pres-
crição médica, passa a consumir o antidepressivo que dá
nome à obra).
Isso repete outros momentos de angústia que o mundo
enfrentou e onde o consumo de “muletas químicas” atingiu pata-
mares antes inalcançados. É conhecido o drama terrível do al-
coolismo entre indígenas colonizados. Gilberto Freyre menci-
ona em Casa Grande & Senzala que uma das formas de reação
dos negros escravos à agonia da servidão era o consumo ex-
cessivo de álcool e maconha, além da masturbação compul-
218.
desejava ou precisava passar noites em claro, dormir pouco ou reduzir o apetite. Foi retirado
do mercado por seus graves efeitos colaterais: dependência física, alucinações, irritabilidade,
taquicardia, ansiedade, forte diminuição dos reflexos.” Conforme o “ABC das Drogas”, dispo-
nível em http://www.cruzazul.org.br/drogas/P.htm.
218, Sobre isso, ver matéria de Andréas Ulrich para o Der Spiegel, disponível em http://
www.geografiaparatodos.com.br/index.php?pag=sl124.
168
siva.219 A conjunção de modos de escape não é casual. Praze-
res rápidos e fugazes, fugas urgentes e precárias, sempre
repetidas, porque nunca efetivas.
Tivemos o absinto, que regava as boemias e vanguardas
do fin de siécle parisiense, o álcool que alimentava os delírios da
“geração perdida” do entre-guerras, até a explosão do consumo
de entorpecentes a partir da geração pós-Hiroshima e Guerra
Fria. Isso pode nos levar à reflexão sobre o que chega pri-
meiro. O mundo em derrocada promove maior drogadição ou
o consumo de químicos aumentado ajuda à derrocada do
mundo? As coisas estão ligadas, inexoravelmente. Entretanto,
o relevante é determinar que avolumam-se os problemas resi-
duais. Cada vez mais, um número maior de pessoas se torna
dependente química e imprestável à vida social e familiar.
A tese dos reflexos da opressão externa sobre a ten-
dência do indivíduo à drogadição se confirma também no caso
das mulheres afegãs sob o regime do Taleban. Dados levanta-
dos pelo professor de sociologia italiano Pino Arlacchi,220 que
em 1998 assumiu a direção do Programa de Controle das Nações
Unidas sobre Drogas, demonstram que o inédito e brutal despo-
tismo sobre as mulheres as empurrou aos braços das drogas.
As mulheres viciadas gastavam 40% de seus mirrados salários
de aproximadamente 70 reais, para comprar ópio. A situação,
obviamente, piorou quando do ataque americano na caça a
Osama Bin Laden.
Essa intervenção armada dos Estados Unidos no Afe-
ganistão se fez após a crise do teatro do 11 de setembro, em
que Bin Laden encenou seu terrível e simbólico espetáculo.
Dali surge outro exemplo das seqüelas que provocam crises
maiúsculas, dessas que abrem o chão aos nossos pés. Após ve-
rem o esfarelamento das torres gêmeas, um dos ícones do sis-
219. “sem achar gosto na vida normal – entregando-se a excessos, abusando da aguar-
dente, da maconha, masturbando-se”. (Record, 2000),pp.514.
220. Conforme Wálter Maierovitch, fundador do Instituto Brasileiro Giovani Falcone na ma-
téria “O ópio americano”, de Florência Costa para a Revista IstoÉ – nº 1674. Em: http://
www.midiaindependente.org/pt/blue/2001/10/9552.shtml
169
tema, aumentou o consumo de drogas entre os nova-iorqui-
nos, conforme pesquisa da Academia de Medicina de Nova Iorque
e estudo do National Institute on Drug Abuse norte-americano
(NIDA). É que situações assim, como disse o psicólogo portu-
guês Nuno Torres, provocam também um “11 de setembro in-
terno”.221 Daí, drogas.
Sobre isso tudo, é importante a tese de antropólogos
da Universidade da Califórnia, com base em experiências con-
duzidas no fim dos anos 1970, pelo pesquisador Bruce Ale-
xander, de que o uso de substâncias psicoativas seria uma ten-
dência ancestral do homem para suportar a vida em situação
de hostilidade, tédio e solidão. O pesquisador colocou um
grupo de ratos numa jaula ampla, cheia de brinquedos colori-
dos, “uma espécie de Disneylândia dos ratos”. Outro grupo de co-
baias foi colocado em jaulas individuais, isolados dos demais,
em ambiente escuro e apertado. Para ambos os grupos foram
disponibilizados água e um coquetel adocicado, à base de mor-
fina. Ao final da experiência, constatou-se que os ratos isola-
dos e trancafiados no ambiente hostil entupiram-se de mor-
fina, numa proporção dez vezes superior ao consumo
verificado entre os animais do ambiente mais confortável e co-
lorido, que preferiram água.222
Logo, cumpriria transformar a realidade em que vive-
mos, antes de pensar em fornecer químicas e paliativos que
atenuem a convivência com o injusto e o opressivo. Pensar di-
ferente é como aceitar que se dope os escravos para que sin-
tam menos o peso dos grilhões, para que escapem da depres-
221. “Cerca de 25% dos mil entrevistados afirmaram que estão bebendo mais desde então.
Uma em cada dez pessoas questionadas na pesquisa disse que está fumando mais e 3,2%
relataram que aumentaram o consumo de maconha. (...)David Vlahov, um dos pesquisado-
res,disse à BBC que o consumo de álcool, cigarro e drogas aumentou mais entre os morado-
res de áreas próximas ao local onde ficavam as torres do World Trade Center.” cfe. “Nova-ior-
qui- nos usam mais drogas desde 11 de setembro”, em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/
ciencia/020528_drogasml.shtml. Nuno Torres, escreveu artigo sobre o tema, em http://
www.prof 2000.pt/users/nypereira/toxicodependencia.htm.
222. Revista VEJA, edição 2009 – ano 40 – nº 20 – 23/05/07. Editora Abril. Reportagem
“Para desligar o circuito do vício”, de Anna Paula Buchalla, pp 84.
170
são, do banzo da senzala infecta. Relatório recente da Fundação
Joseph Rowntree, afirmou que
223. Citado por Bauman, em “Vidas Desperdiçadas” (Zahar, 2005) pp. 17.
224. Op. Citada.
225. Em “Drogas”, artigo para o Jornal Debate. Em Jornal debate – http://www2.uol.com.br/
debate/1117/colunas/colunas03.htm
171
humanidade precisa para sobreviver ao status quo hedonista e
excludente, e construir uma sociedade mais fraterna.
Aliás, uma das possíveis conseqüências da liberação de
drogas poderia ser exatamente o uso das mesmas pelo sistema
vigente, pelas contratadoras de mão de obra, para aumentar a
cota de mais-valia em atividades produtivas. Claro que como
insumo de produção a maconha não serviria tão bem, dado
que provoca apatia. Seria útil, entretanto, para exercer a anes-
tesia de insatisfações, mantendo sob controle o lumpemproletari-
ado e o formigueiro de desespero em que se transformou o
exército de reserva.226 Mas, considerando que muitos vêem a
cannabis apenas como primeiro passo para a descriminalização
ou liberação de outras drogas, atente-se para o que alerta, por
exemplo, a socióloga Beatriz Carlini-Marlatt, citada em matéria
da Revista Superinteressante de maio/2005:
172
tamente através do consumo de uma droga. No filme, há in-
clusive alguém que, depois de conhecer a verdade desagradável
do mundo em farrapos, de comida insípida e parca, prefere a
mentira do mundo irreal, mas luminoso e de manjares falsos,
mas manjares. O mesmo mecanismo ocorre na ficção cinema-
tográfica “Equilibrium”, 228 com Christian Bale, onde um su-
plemento (Prozium) ingerido com obrigatoriedade pela popula-
ção, inibe quaisquer emoções. Em entrevista a Dráuzio Varela,
o Dr. Elisaldo Carlini, do CEBRID (Centro Brasileiro de Informa-
ção sobre Drogas), comentando a relação entre uso de maconha e
violência, a descarta, levantando a hipótese de que os senhores
de engenho teriam permitido a maconha aos escravos exata-
mente como instrumento de controle da paz nas senzalas.229
Terrível visão do futuro: Maconha, a apaziguadora de escra-
vos! gritariam os comércios de um mundo partido, em que
uma minoria de proprietários abastados temeria sempre o tur-
bilhão de esmagados.
Tanto na ficção quanto na realidade, o modus vivendi da
triste sociedade construída pelo homo sapiens empurra seus inte-
grantes ao consumo de substâncias químicas compensatórias.
Não se trata de “recreação”, mas de alienação. “Pão e circo” ins-
tantâneos, ao alcance de uma “bala”, uma tragada, um “pico”
ou uma “cheirada”. Pois bem, neste contexto é que, os que me
parecem mais românticos que sensatos, pretendem a liberação
da maconha, uma “droga de charme” (como definiu em 2001, a
reportagem histórica da Revista Época, já mencionada).
173
sulta numa capacidade de geração de dependência química
muito maior. Drauzio Varella publicou no seu sítio na internet,
o artigo “Maconheiro Velho”, relatando a experiência de queixa
de usuários antigos e contumazes, reclamando da “má quali-
dade” da maconha atual, que seria apenas “uma palha sem graça”.
O renomado cancerologista explica o contra-senso, a partir da
tolerância desenvolvida pelos usuários, já que, na verdade, a
maconha atual é mais potente.230
Como já dissemos, têm sido pesquisadas formas e tec-
nologias para promover a reengenharia da cannabis, de que re-
sultaram fórmulas como o skunk e o super-skunk. A cannabis sin-
semilla – que contém botões e as flores da planta fêmea – é
mais potente e tem sido cultivada para aprimorar essa quali-
dade pelos países que são considerados vanguarda na produ-
ção da espécie: Estados Unidos, Canadá e Holanda. Essa
maior potência, inclusive, foi tida pelo Escritório das Nações Uni-
das contra Drogas e Crime – UNODC, como uma das questões
que motivariam a necessidade de repensar a política mundial
sobre a maconha e o haxixe, conforme o relatório já mencio-
nado, de 2006.
Por outro lado, se no passado o consumo de maconha
não se tornava necessariamente porta de entrada para entorpe-
centes mais graves, hoje essa possibilidade é cada vez mais
concreta, dissemos antes. Primeiro, porque o impulso que fo-
menta o primeiro passo ao vício, a desesperança, é cada vez
maior. Depois, porque, como o vício surge mais rápido e a to-
lerância logo se instala, é comum a partida para aventuras mais
ousadas, que provoquem maior satisfação. Também não se ig-
nora que a maconha é vendida pelos mesmos que traficam co-
caína, tanto que nas “bocas”, sutilmente chamadas de “bocas de
fumo”, há sempre o “gerente do branco” e o “gerente do preto”, con-
forme a “linha de produção” ofereça cocaína ou maconha.231
230. http://drauziovarella.ig.com.br/artigos/maconheirovelho.asp
231. O livro de Caco Barcelos, Abusado, descreve bem este contexto.
174
Sobre essa toxidade maior da cannabis, descobri uma
curiosa polêmica, na “maior comunidade canábica em língua portu-
guesa” à qual se chega pelo sítio “Growroom.blog”, que se orgulha
de trazer “notícias canábicas regadas diariamente”, como afirma o
subtítulo da página principal. O internauta “Bafo”, postou uma
notícia extraída do Diário do Nordeste, em que a repórter Ira-
cema Sales afirmava que a “Maconha está sendo mesclada com
crack”.232 Após tecer considerações sobre as adequações da ra-
pidez do crack ao mundo contemporâneo do prazer imediato,
vem “a bomba”.
E mais:
O crack é uma droga que tem a cara da sociedade atual. Promete prazer
fugaz e influencia na auto-estima dos seus usuários. Os jovens da periferia
são as principais presas. Só que aqueles que optam por este caminho ter-
minam mortos ou na prisão. Na verdade, a entrada da droga na comuni-
dade ‘é um segredo, porque a gente nunca sabe como entra. Só que tem
crack, maconha e cocaína’, comentou o coordenador nacional do MH2O,
Rogério Chaves. Agora, querem conhecer o mesclado que é a mistura de
crack com a maconha. ‘É mais forte e mais caro do que a maconha pura’.
O baseado puro custa R$ 1,00 enquanto o mesclado sai por R$ 5,00. ‘É
química. Quanto mais fuma, mais vontade tem de usar’. (grifei)
232. http://www.growroom.net/board/index.php?showtopic=26652&st=0
175
Eu mesmo ja vi muito essa maconha mesclada com crack, aqui na região
nordeste o crack tomou o lugar da maconha nas favelas, comprar maconha
é cada vez mais dificil crack eles entregam em casa 24h... ja vi um tablete
de prensado com uns 3% ou menos de crack mas ainda assim o gosto é ine-
gável... voce vicia seu organismo sem saber dai quando fuma so quer fumar
mais e mais... fui a um show de Marcelo D2 em Recife e digo a voces, a
maioria dos baseados tinha mais crack que maconha é um negocio depri-
mente! (sic) (grifei)
Parece mesmo. Tipo uns babacas querendo demonizar ainda mais o negó-
cio. “você acha que maconha não faz mal, mas até crack tem no meio”.
Mas uma coisa não é lenda não, tem de tudo no meio dos prensados, não
gosto nem de pensar no tipo de coisa que eu já fumei. Ainda bem que é
passado. (sic) (grifei)
eu acredito sim! há muito venho falando aos colegas que consomem pren-
sado que esta vindo com crack. Já faz uns 6 anos que não sei o que é com-
prar. Mas de vez em quando queimo um prensado com os camaradas.
pude perceber que ali tem alguma coisa muito diferente. Tenho certeza que
a maconha esta vindo batizada com crack. A maconha pode muito bem
tomar um banho com crack na hora em que for ser prensado. Cuidado!
Plante não compre. (sic) (grifei)
176
BEM QUE AQUI NAONDE EU MORO PODIA ACONTE-
CER UMA MARAVILHA DESSA!! (sic) (em maiúsculas no
original)
Já fumei muito mesclado, e digo que realmente é uma delícia. Mas não
compensa, o dinheiro vai embora, a saúde vai embora, as boas amizades
vão embora, os bons costumes vão embora... o futebol de quarta-feira entra
em extinção... enfim, você deixa de viver. Hoje graças a um esforço único e
exclusivamente meu, consegui sair das drogas químicas, não uso mais
crack/coca a muito tempo, mas infelizmente ainda tenho amigos nessa
vida, digo, peso na consciência deles, mas não adianta, eles sabem que não
vira, sabem que se fodem, dizem que querem parar, que não aguentam
mais a vida que levam, mas mudam completamente quando bate a nóia ou
quando sentem o cheiro, o discurso até muda... quando tá longe da quí-
mica o cara diz que quer parar, mudar, mas quando pega em 10 reais a
primeira coisa que vem a mente é a pedra, ai ele vê a pedra, ele quer fu-
mar, quer noiar, e nem se lembra mais do discurso de “eu vou mudar, eu
vou parar”. É foda, as vezes eu penso comigo, é inútil o esforço que eu faço,
tenho uma amiga minha que sofre com o crack a anos, já cansei de perder
noites com ela pesando na mente dela, já cansei de puxar ela pra outros ro-
lês, já cansei de pedir pra ela parar, já cansei de mostrar a ela o que ela já
perdeu e está perdendo por causa do crack, ela concorda com tudo que eu
digo, diz que quer parar, que vai parar, que “esse é o último”, mas o úl-
timo nunca chega... o discurso, a mente, tudo no usuário de crack muda
quando ele está na vontade, quando ele está perto da droga. Eu to é pra
deixar de mão, ligar o “foda-se” e ver no que dá, cansei. (sic)
177
Em dada altura do debate, “clickloco”, o moderador,
simplesmente encerra o assunto, lembrando uma das regras do
Fórum, que proibia
discussão sobre quaisquer outras substâncias psicoativas que não sejam re-
lacionadas à planta “Cannabis”. Poderá ser meramente tolerada, a dis-
cussão sobre outras substâncias naturais, desde que não sejam sintetizadas
ou artificialmente alteradas, reservando-nos o direito de excluí-las, sem
qualquer aviso prévio.
178
cidadão ‘médio’, o que não quer dizer adesão à mediocridade,
quer dizer respeito. E o cidadão ‘médio’ brasileiro rejeita a libe-
ração das drogas. O cidadão médio brasileiro não é o “bicho-
grilo” de ontem, nem o militante de elevada compreensão,
como até existem alguns nas fileiras da Marcha. É o “bicho gri-
lado”, tanto no sentido daquele que está preocupado, com a
pulga atrás da orelha, vendo o chão se mexer sob seus pés,
como o “grilado” no sentido de ter sido invadido, furtivamente
ocupado por valores escusos, mídia irresponsável e um sistema
grileiro de cérebros, alma e felicidades.
179
180
MACONHA LIBERADA REDUZ
O TRÁFICO DE ENTORPECENTES
E A CRIMINALIDADE?
É ruim, hem!
233. Filme de Mauro Lima, com Selton Mello e Cléo Pires, baseado no livro homônimo de
Guilherme Fiúza.
234. Na reportagem “A elite e os traficantes”, da Revista Época, já mencionada.
181
ção da criminalidade. Como vimos, junto com a liberação da
maconha aumentou o tráfico ilegal de outros entorpecentes. O
próprio tráfico de maconha foi incrementado, já que nem sem-
pre os usuários estavam satisfeitos com as quantidades dispo-
nibilizadas pelo regulamento estatal, ou com a qualidade da
droga fornecida, eis que variedades mais fortes sempre surgem
no mercado.
É como se aquilo que antes era ilícito se transformasse
num inevitável centro de gravidade a atrair para perto de si a
transgressão que lhe é aparentada. Assim, por exemplo, cassi-
nos atraem prostituição. Prostituição estimula o tráfico. A
droga mais leve estimula a mais pesada.
Como afirmou João Guilherme Estrella, as empresas
que hoje traficam, apenas mudarão de produtos ou de nicho
de mercado. Isso já ocorre sempre que há repressão acirrada
ao tráfico. O livro de Caco Barcellos, “Abusado”, em que é rela-
tada a história do traficante Marcinho VP, demonstra bem essa
realidade. Quando o tráfico entrava em declínio, traficantes
migravam para o assalto a bancos, a carros-fortes e para os
seqüestros.
Talvez outro exemplo de que nem sempre a liberação
de determinadas condutas as retire completamente da esfera
de ilicitude onde antes trafegavam seja, com os necessários
descontos em relação à diferença de contextos, a criação das
loterias como tentativa de oficializar, com benefício social, o
ímpeto popular para prática de jogos de azar. Embora as lote-
rias tenham crescido e se consolidado, oferecendo hoje um le-
que farto de opções (Loteria Esportiva, Mega-Sena, Timemania,
etc), o jogo do bicho permanece constante na preferência da
população. E, pior, mantendo-se como foco de fomento à vio-
lência e criminalidade. Chegaram a ocorrer fugazes tentativas
de legalização do jogo do bicho, sem que a violência a ele li-
gada tivesse diminuição importante. “Pontos” continuam a ser
disputados à bala. Isso sem falar nos cassinos clandestinos, nas
rinhas de brigas de galo, etc.
182
Assim também com os bingos. As tentativas de lega-
lização conseqüente esbarraram nos problemas de sempre. La-
vagem de dinheiro, fachada para negócios criminosos, afora o
vício que passou a vitimar milhares de anciãos freqüentadores
por todo o Brasil.
Essa maior probabilidade de não redução da violência
está descrita em matéria da jornalista Barbara Axt, para a Re-
vista Superinteressante (mar/2005), intitulada “E se... as drogas fos-
sem legalizadas?”. A legalização poderia diminuir os números de
homicídios e roubos relacionados ao tráfico, mas haveria ou-
tros tipos de violência ligados às drogas, afirma a reportagem,
com citações importantes, como a do diretor da Unidade de Pes-
quisa em Álcool e Drogas da Unifesp, Ronaldo Laranjeira.
183
olência urbana deveria sua alta conta à repressão ao
narcotráfico. Pois bem, na seqüência, vem o internauta que se
assina “João” e se confessa usuário, para avaliar a questão da
criminalidade. Diz, naquele linguajar apressado, com incorre-
ções formais típicas de internauta:
184
e gestores, apelos éticos não têm alcançado sucesso em inibir a
pirataria e os articuladores de tais campanhas pensam em alte-
rar estratégias.
Evidente que, se a maconha vier a mercado com taxa-
ções e preços superiores aos que o usuário se acostumou a pa-
gar, o tráfico continuará existindo para atender a essa demanda
pelo produto mais barato. Só que aí, com muito mais prejuí-
zos, em meu modesto entendimento, porque a licitude do pro-
duto ‘oficial’ fará aumentar o consumo do produto ‘pirata’, ou
‘não autorizado’.
Mas, suponhamos que a “pirataria” da droga, em mer-
cado paralelo e ilícito, não ocorra. Suponhamos que só se dê a
venda lícita. Como vimos, propõe o Deputado Gabeira, (à la
Stuart Mill, como veremos), que haja taxação altíssima, encare-
cendo o consumo. Ora, por esta via se teria, então a compro-
vação de que a liberação ou legalização da maconha seria uma
reivindicação de segmentos sociais mais favorecidos. A não ser
que se institua uma absurda “Bolsa-Maconha”!!!
237. http://www.gabeira.com.br/e-legalize/artigos/mostra_art.asp?id=75
185
los, tortas e confeitos cuja matéria prima é a maconha. À
época do artigo, a Junta de Supervisores de São Francisco impôs
uma moratória de seis meses na autorização de novos dispen-
sários (chamados popularmente de “clubes da maconha”), pois as
autoridades de saúde contaram pelo menos 43 instalações ile-
gais, incluindo uma, em um prédio onde antes... pasmem, mo-
radores de rua recebiam orientação sobre abusos de drogas e
álcool. Mas mesmo com a moratória, novos clubes continua-
ram sendo abertos.
Rick Bruce, o capitão de polícia de São Francisco, disse
que havia mais maconha nas ruas do que em qualquer mo-
mento em seus 30 anos no departamento. Ele disse que, apesar
da existência de muitas pessoas doentes que legitimamente
buscam a droga para tratamento, inúmeros traficantes têm
usado os dispensários como cobertura para vendas ilegais.
Este é um enorme golpe. Nós vemos pessoas saindo destes lugares e a única
descrição em que posso pensar é que parece um filme de Cheech e
Chong238. Eles são o que você poderia chamar de maconheiros tradicio-
nais; se eles têm alguma condição médica além desta, está sujeito a debate.
238. Wikipédia: “Cheech and Chong eram uma dupla humorística que encontrou uma larga
audiência nos anos 70 e 80 para seus shows de comédia stand-up, que eram baseados na
era dos hippies, "paz e amor" e especialmente a cultura das drogas.”
186
Aprende-se ainda que existe uma “carteira de identidade
medicinal” para os necessitados da terapêutica com a maconha.
Entretanto, muitos traficantes falseiam tais identidades para,
quando apreendidos, se livrarem de detenções. Além disso, as
autoridades admitem a impossibilidade do controle real sobre
a quantidade concretamente adquirida pelos usuários.
O experiente jornalista Gilberto Dimenstein revela, em
artigo no seu sítio, intitulado “Traficantes de maconha perdem lugar
para as farmácias”,239 experiência vivida no trato com o sistema
de uso medicinal da maconha, conforme estabelecido na Cali-
fórnia. O relato denuncia as flagrantes fragilidades da pro-
posta. Após esclarecer as diversas enfermidades para as quais
seria adequado o tratamento à base de maconha (câncer, Aids,
artrite, esclerose múltipla), denuncia que não só pacientes gra-
ves podem obter sua receita médica. Clínicas e médicos anun-
ciam seus “serviços” na internet e em jornais. Dimenstein rece-
beu a sua receita médica após pagar US$ 100,00 e preencher
um questionário. Conforme as regras, ali deveria indicar a “do-
ença grave” que autorizaria o consumo de maconha. Nada
tendo a dizer neste particular, lascou que sofria de “ansie-
dade”. O médico fez um exame superficial, medindo a pressão
do repórter e perguntando superficialmente sobre a ansiedade
descrita. Indagou sobre possíveis ataques de pânico, e mesmo
frente à negativa de tal ocorrência, consignou-a em suas notas
como existente! O jornalista recebeu, então, a sua receita mé-
dica para consumo de maconha “medicinal”! Válida por um
ano! Simples assim. O maconheiro quer sua maconha, o mé-
dico quer ganhar um troco! Furtivamente, o tráfico passa a ser
de um papel com um CRM embaixo! Muda-se a poeira de lu-
gar. Ah, mas tudo bem, médico não usa AR-15, é verdade.
Na farmácia, Dimenstein nota os nomes exóticos das
inúmeras variedades da cannabis (“Sonho Azul”, “Devastação do
Super Trem”, “Travesseiro Púrpura”, etc). Descobre que estão
sendo disponibilizadas máquinas de autoatendimento para os
239. http://www1.folha.uol.com.br/folha/dimenstein/cbn/capital_170608.shtml.
187
usuários que necessitarem do produto em horário não comer-
cial. E, pior, percebe que a receita não traz prescrição de quan-
tidade ou dosagem, que será, então, decidida livremente pelo
“farmacêutico”!
Dimenstein conclui:
240. http://www.bbc.co.uk/portuguese/ciencia/story/2003/09/030917_maconhalmp.shtml
188
net... e uma visão equivocada, de trato da doença e não do do-
ente, são alguns dos fatores que não autorizam a suposição. O
mundo dos remédios e das farmácias nos socorre em muitas
angústias do corpo, alívios sem os quais não sobreviveríamos,
mas muito freqüentemente nos arrasta a angústias da alma, ou
nos deixa lá, chafurdados em causas não resolvidas. Custa crer
que esse modelo seja parâmetro de progresso. E mantenho o
pensamento, mesmo que se considere que a erva é “natural”.
Afinal, a urtiga também é. Se virar cultivo industrializado, re-
ceberá os mesmos insumos industriais e sintéticos que qual-
quer produto.
Se a questão é de saúde, pensemos então em alternati-
vas. O Deputado Fernando Gabeira, na recente campanha em
que foi derrotado na disputa para Prefeito do Rio de Janeiro,
disse que não mais fumava maconha, pois obtinha os mesmos
efeitos relaxantes, consumindo oxigênio, através de técnicas de
meditação e relaxamento. Ora, ainda não há tráfico de oxigê-
nio, embora do jeito que as coisas vão, talvez não tarde! Mas
oxigênio não vicia nem tem efeitos colaterais ou psicoterápi-
cos. Olha que boa solução! Não estou “zoando”, não, amigo.
Falo sério. Há tempos noticiou-se também que o rapper ameri-
cano Snoopy Dog estava em terapia alternativa para se livrar da
maconha, praticando yoga, acupuntura e meditação. Em diver-
sos estados brasileiros existem hoje programas de saúde que
aplicam uma técnica de “Terapia Comunitária”. Surgida no Ce-
ará, a bem sucedida experiência – onde homens, mulheres,
idosos, a comunidade, enfim, se reúne para dinâmicas de
grupo, partilhas, técnicas de relaxamento, exercícios de respira-
ção e brincadeiras – foi adotada pelo Ministério da Saúde
como ferramenta do Programa de Saúde da Família. Os dados
indicam que reduziram-se bruscamente os índices de terapias
medicamentosas entre os participantes.241
Se a alternativa não é a liberação para venda, se tam-
bém não é a medicina, alguém diria, então seria a agricultura?
Como dizem os caminhantes das marchas maconheiras: “Não
189
compre, plante!”. E aí imaginam aquele paraíso de vasos na va-
randa, cheios de cannabis, a ser colhida, seca, prensada e prepa-
rada pelo próprio usuário natureba. Como quem colhe alfaces
no quintal. Só que aí esbarramos no seguinte óbice, caro leitor.
Você tem quintal? Você cultiva alfaces no seu quintal? Ou,
como a esmagadora maioria, você não tem tempo, não sabe fa-
zer, ou não quer fazer e prefere o conforto das feiras e bancas
de supermercado? Assim seria com a maconha. Por preguiça,
comodismo, insucesso agrícola, logo teríamos, então, plantios
especializados em casas ou apartamentos especialmente aluga-
dos para isso, com florestas de cannabis para fornecimento à vi-
zinhança nem tão natureba assim. O problema é que isso pa-
rece esbarrar numa limitação constitucional. Se o art. 243 da
Carta Magna determina a expropriação para fins de reforma
agrária, das propriedades onde existir cultivo de plantas psico-
trópicas, como se poderia autorizar plantio em residências?
Claro que alguém poderá lembrar da liberação de plan-
tio na Holanda, onde se permite o cultivo de até cinco pés de
maconha por usuário maior de idade. Seis, já não pode. Dá ca-
deia. Mas, em primeiro lugar, ninguém está livre dos comparti-
mentos secretos de casas e apartamentos, estufas de armário
surgiriam em toda parte... Uma família de usuários acabará
misturando as contas, os vasos e as plantas. E as mudinhas,
contarão? E, pior, plantar maconha caseira não é lá muito eco-
lógico. Aumenta o consumo de energia. Pior ainda, provoca ili-
citudes para burlar a conta no fim do mês. Assim informa Wal-
ter Fanganiello Maierovitch:
190
...o cultivo artificial de maconha no interior das casas, a exigir iluminação
com lâmpadas especiais ligadas ininterruptamente, está aumentando o con-
sumo de energia elétrica (na Holanda).
Como a energia está cara, apareceram as “gambiarras” e os inêndios: por
ano, as empresas de eletricidade perdem 200 milhões de euros e as segurado-
ras pagam prêmios de 60 milhões de euros.242
242. “As 3 Feiras da Maconha”: matéria para a Revista CartaCapital, disponível em http://
www.ibgf.org.br/index.php?data%5Bid_secao%5D=13&data%5Bid_materia%5D=393.
191
192
DIREITO DE EXPRESSÃO
E MANIFESTAÇÃO:
Tem regras nesse jogo!
193
da “atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, indepen-
dentemente de censura ou licença”. O inciso X garante a inviolabili-
dade da intimidade e da vida privada das pessoas, sendo, conforme o
inciso XI, inviolável a residência do indivíduo. São livres os direitos de
reunião (inciso XVI) e de associação para fins lícitos (inciso XVII).
Pois é... Parece então, que os defensores da Marcha da
Maconha teriam razão. Afinal, seria possível cercear suas ativi-
dades? Pior que sim, leitor. Ou, melhor que sim. Possível e ne-
cessário. Acompanhe.
O ordenamento jurídico (todas as leis de um país) é um
complexo que deve manter sua coerência e lógica. Seja Kelsen,
o “faraó” que estabeleceu o ordenamento como uma pirâmide,
ou seja Bobbio, o “pescador” que o viu como uma rede, as leis
estão interligadas. Interpenetram-se, se complementam, sejam
tijolos, cimento e areia, sejam linhas, nós e trançados. Não dá
pra pinçar uma lei ou direito, e pensar que ele existe isolado.
Por vezes, como diz Pontes de Miranda, as normas jurídicas
concorrem entre si, disputam primazia, num processo de “sele-
ção natural no mundo das leis”, à semelhança do sistema evolutivo
biológico.243 Mas tem uma base para todos os sistemas de
compreensão do ordenamento. Um terreno sólido, que baseia
a evolução das leis. É a Constituição. Por isso, no caso de con-
fronto ou dúvida, há que resolver-se a questão pela consulta ao
que manda a Lei Maior. E até ali há enredamentos piramidais,
o que obriga a uma interpretação sistêmica. Também na Cons-
tituição, não dá pra recortar um pedacinho do texto e andar
com ele no bolso, como se só ele valesse. O ordenamento não
é uma feira onde eu compro só as bananas e alfaces que quiser.
Lamento, tem que levar também o jiló e os caquis.
Por isso, tem coisa que não pode e pronto. Mesmo
com todas as liberdades citadas acima, não seria possível uma
manifestação, por exemplo, pela retirada do direito de voto da popu-
lação negra brasileira. Isto, porque o artigo 5º da Carta Maior, em
seu inciso XLII, institui a prática do racismo como crime inafian-
194
çável e imprescritível. E uma manifestação assim seria racista. E o
artigo 1º, em seu inciso III, determina como fundamento da
República Federativa do Brasil “a dignidade da pessoa humana”. E
o objetivo fundamental, conforme o art. 3º, é a construção de
uma “sociedade livre, justa e solidária” (inciso I) e a promoção do
bem comum, sem qualquer preconceito ou discriminação, inclu-
sive racial (inciso IV). Também na cabeça do artigo 5º se ga-
rante a igualdade de todos os brasileiros, sem qualquer distin-
ção. Logo, a monstruosidade que seria uma manifestação
como aquela, não poderia ser autorizada. Afinal, dissemos, é li-
vre a associação e manifestação, desde que para fins lícitos.
O mesmo raciocínio valeria para movimentos similares
contra, por exemplo, adventistas, ou ateus, ou umbandistas. A
liberdade de crença, reunião, culto e proselitismo é garantida, a
não ser que do seu exercício ocorra violação de qualquer outro
ditame ou princípio constitucional como, por exemplo, em
eventual culto envolvendo sacrifícios de vidas humanas ou ba-
canais com virgens impúberes, coisas de que há terríveis regis-
tros recentes.
Essa necessária ponderação entre direitos se faz, não
só para o que já está claro e expresso no texto constitucional, e
nem mesmo para o que já consta de leis. O parágrafo 2º do in-
ciso LXXVIII determina que os direitos e garantias expressos
na Carta Maior não excluem outros decorrentes do regime e
dos princípios por ela adotados. Daí os tribunais terem tanto
trabalho, sempre há uma duvidazinha, um porém...
Mas, o que interessa é que a Lei que pune os crimes de
racismo (Lei nº 7.787/89) acaba por limitar a liberdade de ex-
pressão. Porque racismo é chute fora das quatro linhas, não dá
no gol pretendido, do bem comum. Aliás, dá em expulsão. E
mais. Além da criminalização de condutas explícitas de ra-
cismo – como a recusa de emprego, o não atendimento, o im-
pedimento ao transporte, xingamentos e outras – a Lei torna
ilícitas também as condutas de “fabricar, comercializar, distribuir
ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda
195
que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do na-
zismo” (§ 1º do art. 20). A cabeça do artigo trata da prática, in-
dução ou incitação à “discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia,
religião ou procedência nacional”.
Percebeu como o raciocínio é indireto? Para impedir a
discriminação e o preconceito racial, proíbe-se – em afronta
necessária ao direito de livre expressão, mas em harmonia com
os fundamentos da República e do Estado Democrático de
Direito – a difusão do nazismo, ainda que tão somente por
seus símbolos! E olha que esse é um dos mercados que infeliz-
mente mais atraem adeptos, inclusive jovens, fascinados pela
“mística” e pelo “mistério” da suástica. Até para afrontar in-
conseqüentemente o status quo, é comum que parcelas da ju-
ventude cultivem esse interesse, mórbido, para quem traz na
memória o holocausto e a carnificina da II Guerra Mundial.
Em palestra no 5º Congresso Brasileiro de Jornais, orga- ni-
zado pela ANJ (Associação Nacional de Jornais), o Ministro
Nelson Jobim, sobre a posição do Supremo Tribunal Federal,
foi taxativo: “É preciso limitações à liberdade de expressão”.244 Citou
decisão do Supremo que, por 9 a 2, julgou que o editor gaúcho
Siegfried Ellwanger não tinha o direito de publicar livros que
exaltavam o nazismo. Logo, concluiu, “O Supremo considerou que
a liberdade de expressão não é absoluta, é relativa”.
Esse raciocínio indireto – proibir uma coisa (propa-
ganda nazista) para coibir outra (racismo) é muito comum.
Para impedir a oferta de maconha, já que eu pretendo inibir o
consumo e o tráfico, eu proíbo o plantio da cannabis. Limitação
do direito de livre empresa. Para impedir a ampliação do con-
sumo da droga, eu proíbo sua propaganda. Limitação do di-
reito de expressão. Regras, regras.
No caso do racismo e da discriminação, no mesmo ar-
tigo 20 da Lei, em seu parágrafo 2º, há agravante, se “qualquer
dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de co-
244. Cfe. Liberdade de expressão não é direito absoluto. Agência Estado. Em: http://
www.folhadaregiao.com.br/. Acesso em 12/11/08.
196
municação social ou publicação de qualquer natureza”. Por quê?
Quanto mais amplificado o ilícito, maior a lesão ao direito. Em
tese, xingar alguém no pé do ouvido é menos pior que xingar
no megafone. E ao microfone de um trio elétrico, pode logica-
mente ser mais grave que ao megafone. Beliscão, palmada,
tapa... tudo tem gradações. Uma eventual Marcha Nazista, en-
tão, nem pensar, correto?
Há coerência nisso. Diga o que quiser, conforme der
na telha. Mas não em qualquer lugar, nem a qualquer um. É li-
vre a manifestação de pensamento e a expressão artística. Mas
da propagação dos mesmos em rádio ou TV se exige, con-
forme o Art. 221, IV, da Constituição, que garanta o “respeito
aos valores éticos e sociais da pessoa e da família”. A restrição é essen-
cial. O art. 226 dá proteção especial à família. O art. 227 insti-
tui o princípio da proteção integral à criança e ao adolescente.
Estes devem ser postos a salvo de qualquer forma de negligên-
cia, exploração ou opressão. Logo, torna-se necessário vedar a
propagação de idéias em TV e ambientes abertos, que possam
atacar aqueles direitos. Numa escala de valores harmonizada
com os objetivos da República, sobre a livre expressão, a pro-
teção integral dos menores de 18 anos tem primazia.
Essa proteção aos menores de idade se vê, também, no
art. 40, VI, da Lei 11.343, que prescreve que a pena do art. 33
(indução, instigação ou auxílio ao uso indevido da droga) é
aumentada de um sexto a dois terços, se “sua prática envolver
ou visar a atingir criança ou adolescente ou a quem tenha, por qual-
quer motivo, diminuída ou suprimida a capacidade de entendimento e
determinação”.
Você já sabe que eu entendo que a Marcha da Maconha
é propaganda da droga, ainda que indireta. O pessoal marcha
para capturar atenções e adesões à proposta de ampliação do
debate sobre o tema da descriminalização ou liberação da ma-
conha. Mas para isso, necessariamente os supostos benefícios
da droga são propagandeados: “não faz tanto mal assim!”, “pode-
mos plantar!”, “deixa de hipocrisia, por que o tabaco, que mata tanto é
197
liberado e a maconha, que não mata ou mata pouco, não?”. Quando
menos, são minimizados os efeitos do consumo, de forma me-
nos grave do que os que a realidade tantas vezes demonstra.
Propaganda, necessariamente, é indução e instigação.
Manifestação que propagandeia substância ilícita, reali-
zada em local público, em horário e pontos turísticos onde ne-
cessariamente estarão famílias com suas crianças, acaba por, se
não efetivamente “visar”, no mínimo, “envolver” criança ou
adolescente. Com todas as licenças a todos, tão mais prepara-
dos que eu, que vão divergir deste pensamento, tamanha inge-
nuidade não se pode admitir. É como esquecer a arma de fogo
encima da estante da sala. Aí a criança vai lá, sobe numa ca-
deira, bota uma caixa encima da cadeira e pega a arma. Daí, a
tragédia. A arma não estava lá para ela, é certo. “Botei no alto”, o
descuidado dirá, sob as lágrimas da dor. Mas crimes culposos
são crimes também. Guardadas as proporções, o mesmo pode
ocorrer na Marcha. A criança pega uma “cadeira” de argu-
mento e orgulho maconheiro que vê dando sopa na rua, e
vence o obstáculo da palavra paterna pra chegar no experi-
mento da droga. Daí... tantas vezes, a tragédia, também.
Então, vamos lá. Todo jogo tem regras. Livre expressão
não é direito absoluto. Há primazia aos direitos das crianças e
dos adolescentes. E na questão das drogas, elas recebem prote-
ção especial. A Marcha da Maconha é proselitismo da droga.
Não poderia ser feita na TV, porque esta deve respeitar os va-
lores da família. Famílias não querem que seus filhos usem
drogas. Mas a Marcha é feita na rua. Não é a TV, mas ali tem
crianças e adolescentes. Logo, a regra do jogo informa que a
Marcha não pode ser feita em local público. Combinamos as-
sim? Prossigamos.
198
plique e ninguém que não entenda...”, na verdade o assunto não é
pacífico. Millôr Fernandes já ensinou, ferinamente, que a “liber-
dade começa quando a gente aprende que ela não existe”. Vamos ver.
George Orwell, o autor de fantásticos libelos contra o
totalitarismo soviético, afirmou: “Se a liberdade significa alguma
coisa, será sobretudo o direito de dizer às outras pessoas o que elas não
querem ouvir.” Essa liberdade de expressão já era defendida por
Voltaire: “Não concordo com o que dizes, mas defenderei até a morte o
teu direito de o dizeres.” Agora, será que esse direito pode ser
exercido em qualquer circunstância, a qualquer público, sem
qualquer restrição? Defendo que não, você percebeu.
Mas não estou desacompanhado, que eu não sou louco.
Muitos são os que construiram uma visão necessariamente re-
lativista. “A liberdade é o direito de fazer tudo quanto não prejudique a
liberdade dos outros” afirmou, no século 18, o economista fran-
cês Turgot. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, dos
revolucionários franceses de 1789, consignou: “Art. 4.º A liber-
dade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo: assim, o
exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão
aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mes-
mos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei; Art.
5.º A lei não proíbe senão as ações nocivas à sociedade. Tudo que não é
vedado pela lei não pode ser obstado e ninguém pode ser constrangido a fa-
zer o que ela não ordene.”.245
Não fazer o que prejudica o próximo, como limitação
da liberdade, é um princípio religioso. Na verdade, é a “Regra
Áurea” do Cristianismo e de muitas outras confissões religio-
sas, como o judaísmo, confucionismo, hinduísmo, budismo,
etc. Alexis de Tocqueville, é um autor francês que teorizou os
primórdios da democracia americana, que tantos frutos rendeu
aos debates sobre o conceito de liberdade. Ele menciona em
seus escritos, que entendia o moralismo puritano dos primei-
ros estadunidenses como um freio importante para o bom
exercício da liberdade. Esta seria limitada pelo próprio desejo
245. http://www.eselx.ipl.pt/ciencias-sociais/tratados/1789homem.htm.
199
de igualdade – a outra face da moeda do sistema proposto pelo
chamados “Founding Fathers”, as grandes personalidades que
deram origem à democracia americana – que implicaria em re-
núncia a desejos pessoais. Por isso, a liberdade imaginada por
Tocqueville era relativizada, como afirmou: “Acredito que a liber-
dade seja menos necessária nas grandes do que nas pequenas coisas, pois é
nos pequenos desejos que é perigoso desservir o homem.”246 Se você me
der licença eu vou dizer de forma meio estapafúrdia: ao anseio
“míudo”, a liberdade plena, ao desejo “graúdo”, o comedi-
mento e a regra. Só que essa liberdade plena do “miúdo”, para
Tocqueville, seria regulada pelo freio moral interior de cada ci-
dadão. E quando este freio não existe? Ou quando foi relativi-
zado, já que nem todo mundo é “puritano”? Assim como vol-
tarei a Voltaire, voltarei a isso.
No direito “miúdo” ao uso do próprio corpo, temos um
caso em que, a priori, não deveria haver invasão do desejo par-
ticular. “Tira a mão de mim!” é a frase clássica, o brado primário,
de garantia do direito ao próprio corpo. A princípio, as pessoas
são donas dos seus corpos. Pessoas, por isso, são livres para
doação de órgãos, realização de cirurgias estéticas, mudança de
sexo, como também lhes são garantidos tanto o direito à inte-
gridade física quanto ao seu contrário, a auto-mutilação.247
Esse direito, entretanto, também não é absoluto. Na
doutrina jurídica nacional, Caio Mário da Silva Pereira me-
lhor resumiu a posição dominante no Brasil, ao dizer: “O di-
reito ao próprio corpo é um complemento do poder sobre si mesmo, mas
só pode ser exercido no limite da manutenção da sua integridade. Todo
246. http://pt.wikiquote.org/wiki/Liberdade.
247. “quanto à problemática da autolesão (mutilação voluntária), o ingresso no campo jurí-
dico perfaz-se apenas quando em conexão com objetivo não permitido pelo ordenamento (as-
sim, a realizada com intuito de fraudar terceiros, pessoa ou instituição, com que se vincule o
interessado: isenção de serviço obrigatório, recebimento de seguro ou de prêmio), sujeitando
o agente às sanções aplicáveis à espécie. Inexiste delito no ato em si, eis que, em nosso re-
gime, o crime de lesões caracteriza-se pelo dano a outra pessoa” Carlos Alberto Bittar, citado
por Roxana Cardoso Brasileiro Borges em “Direito à integridade pessoal”, disponível em http:/
/www.facs.br/revistajuridica/edicao_novembro2004/docente/doc03.doc.
200
ato que implique atentado contra esta integridade é repelido por
injurídico”.248
Em trabalho sobre o tema, a professora Roxana Car-
doso Brasileiro Borges, citando Maria Helena Diniz, disserta
sobre os temperamentos da indisponibilidade dos direitos da
personalidade, quando se referem ao próprio corpo. Entre-
tanto, destaca que o direito ao uso do corpo “não pode ultrapas-
sar o que é permitido pela Constituição Federal, pelas leis, pela moral, or-
dem pública e bons costumes, além de se observar a dignidade humana
como valor fundamental de todos os atos jurídicos”.249 A professora
menciona as restrições dispostas por Carlos Alberto Bittar (li-
mitações morais),250 e por Perlingieri (direito à saúde como
um “parâmetro da licitude ou da ilicitude dos comportamentos”). Ou
seja, muita regra, amigo.
Porque foi na direção contrária, causou celeuma re-
cente decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que conside-
rou não haver crime no porte de droga para uso próprio. Re-
sumo: o corpo é do cara, ele cheira ou se injeta o que quiser! Relatou o
acórdão o juiz José Henrique Rodrigues Torres, da Vara do
Júri de Campinas, Secretário da Associação dos Juízes para a De-
mocracia. Foi convocado pelo Tribunal como Desembargador
e, por sinal, conforme texto de Damázio de Jesus que mencio-
narei a seguir, defende também a legalização do aborto. Dentre
várias outras considerações, o relator considerou que no caso,
qualquer “intenção estatal punitiva” estaria a ferir o direito do in-
divíduo à sua própria intimidade, além do princípio da ofensi-
vidade. Em sua visão, não haveria lesão a terceiros, mas autole-
são impunível. Ou seja, se não há prejuízo a outros, não tem
crime, disse o relator.
248. Pereira CM. “Instituições de direito civil”. São Paulo: Forense, 1995: 27-9.
249. Trabalho citado na nota anterior.
250. “tem a pessoa o direito de dispor de seu próprio corpo, para as diferentes finalidades
da vida social normal, inclusive para satisfação da lascívia alheia, desde que em circunstân-
cias que não choquem a moral pública, quando então poderá ingressar na esfera penal, na
qual são descritas ações havidas como crime (crimes contra os costumes: Código Penal, arts.
213 e segs.), em que se realça a repulsa à exploração por outrem. Daí porque não é delito a
prostituição, mas sim a facilitação ou o aproveitamento por terceiro”. Idem.
201
Há uma discussão nesses casos, sobre a vítima da lesão.
O entendimento predominante é de que se trata de crime con-
tra a saúde pública. Mas em seu voto, disponível na internet,251
o relator cita Maria Lúcia Karan (que, em síntese, afirma que a
aquisição ou posse de drogas para uso pessoal – não importa
em que quantidade – não ofende à saúde pública, pois a desti-
nação pessoal não se compatibiliza com o perigo para interes-
ses jurídicos alheios) e Alexandre Morais da Rosa (“o bem jurí-
dico tutelado pela Lei (de entorpecentes) é a integridade física e não a
incolumidade pública”). Ao final, criticando a possível tutela mo-
ral sob opções individuais, conclui: “como a criminalização primá-
ria do porte de entorpecente para uso próprio é inconstitucional, a conduta
do recorrente, que portava cocaína para uso próprio, é atípica.”
O minoritário julgamento foi, obviamente, saudado
com vivas pelos defensores da descriminalização e da liberação
de entorpecentes. Mas a inovação parece não convencer anti-
gos juristas. Sabe por quê? É que o crime de tráfico significa,
sim, lesão a um bem geral e maior, a saúde pública. Damásio
de Jesus, o conhecido doutrinador, examinando o caso, con-
testa o julgado, quando assim disserta:
251. http://www.ajd.org.br/ler_noticiade.php?idNoticia=20.
202
pode-se construir uma teoria adequada à solução do tema. Essa lesão já
conduz à existência do crime, dispensando a demonstração de ter causado
perigo concreto ou dano efetivo a interesses jurídicos individuais, se houve
invasão da sua esfera pessoal ou se o fato causou ou não perigo concreto a
terceiros.252
203
nós. Logo, mesmo que o indivíduo esteja danificando direta-
mente tão somente a si próprio, estará indiretamente preju-
dicando a todos. Entretanto, aqui, a coisa entraria em outra
esfera, não criminal. Como acontece com o cigarro. As restri-
ções, sanções e controles, como vimos, são todas administrati-
vas e fiscais.
A figura do “porte para uso próprio” visa apenas à di-
ferenciação entre consumidor e traficante. Mas sabe-se que há
formas de burla às prescrições legais, que se configuram exata-
mente no amiudamento da quantidade portada, buscando o
traficante efetivo passar-se por mero usuário. Como vimos,
nos casos em que a droga é liberada para fins medicinais, na
Califórnia, comumente os traficantes trazem à mão seus com-
provantes médicos (os próprios atestados, sendo um mercado
à parte), provando que são “necessitados” da “terapia”, coita-
dinhos. Por isso, inclusive, a lei não fixa um parâmetro sobre a
quantidade de droga que caracteriza a fronteira entre o uso e o
tráfico, deixando a definição à discricionariedade do juiz que
atender ao caso concreto. Quem definiu quantidades, parece
que se deu mal. Lembram de Portugal, onde o pessoal do trá-
fico deita e rola com as tais 10 doses definidas pela lei?
Então, o que temos, ao final dessas contas? A abstração
efetiva e secundarização concreta do “direito ao uso do próprio
corpo”. Trata-se de relativização absolutamente necessária à ga-
rantia do bem público. É como se alguém que portasse uma
faca em local público com o fim de suicidar-se fosse abordado
pela força policial, que retém a faca. Quem garante que a in-
tenção do suicida seria efetivada? Quem garante que aquela
faca reluzindo ali, ainda não utilizada, não poderia sê-lo em de-
trimento da integridade física de terceiros? Logo, caso o suicí-
dio fosse tido não só como ato impunível, mas também como
um direito subjetivo, este, na configuração legal atual, não se
realizaria, pois caberia o impedimento do porte do recurso (a
faca) que viabilizaria aquele “direito”.
Portanto, qual seria a solução? Permitir o suicídio legal-
mente ordenado, em local administrado pelo Estado, visando a
204
garantir a segurança dos demais cidadãos! Seria garantir que o
suicida se matasse, e matasse tão somente a si próprio. Sem es-
quecer que essa polêmica discussão já é corrente em deter-
minados países e foros, no próprio campo do suicídio (sob a
figura do suicídio assistido),253 é o que, de certa forma, preten-
dem os defensores da legalização das drogas! Para garantir os
“direitos” dos usuários que não se viciam, ou que fazem uso
“controlado” de drogas, querem garantir o direito dos tantos
que, sem controle, irão suicidar-se aos poucos. E isso não é ra-
zoável. Se a premissa da existência da Fórmula 1 fosse a possi-
bilidade de qualquer um pilotar uma Ferrari a 300 km por
hora, não se deveriam liberar Ferraris. Se não, teríamos uma
enxurrada de suicídios velozes. É que nem todo mundo é
Schumacher. Da mesma forma, nem todo mundo consegue vi-
ver a experiência das drogas sem dependência. Como de ante-
mão, não sabemos quem é Schumacher ou quem é isento da
dependência, para salvar vidas, não se liberam Ferraris, nem
drogas. Nem roleta russa.
Por óbvias razões práticas, não se criminaliza o suicídio
e, visando a não ampliar o sofrimento daquele que, na verdade,
demanda atenção terapêutica, não se pune também a tentativa.
Mas veja que é punido o auxílio, o induzimento e sua facilita-
ção (art. 122 do Código Penal). E não só. O suicídio deve ser
evitado por quem puder. A base de todos os direitos é o di-
reito à vida, que deve ser defendido pelo Estado e pela so-
ciedade, conforme o ditame constitucional. Por isso é que, ve-
rificando a força policial, ou qualquer cidadão, a possibilidade
da ocorrência do suicídio, deve tentar impedi-lo. Os jornais
noticiam esforços policiais, ou de corporações de bombei-
ros, heróis, quando impedem suicídios. E não raro, quando as
palavras não resolvem, valem-se da força, para desarmar ou
conter fisicamente aquele que intenta dar cabo da própria vida.
253. Há debates sobre definições de eutanásia e suicídio assistido. Uns entendem que tra-
tam da mesma coisa, outros afirmam que aquela exige agente externo e o último é só facilita-
ção de meios, sendo agente o próprio paciente. Há tolerância para o suicídio assistido, con-
forme as condições, na Holanda (de novo!), na Bélgica e no Estado de Oregon, nos EUA.
205
Ou seja, o suicídio não é punido, mas definitivamente não é
desejado. É impedido, quando possível, limitando-se, assim, o
que seria o mais extremado direito ao uso do próprio corpo. Não
é à toa que a Organização Mundial da Saúde tem diretrizes de
ação e existem organizações internacionais para prevenção
do suicídio.
Ainda sobre limitação de direitos concernentes ao
“próprio corpo”, perceba-se que dar estímulos eufóricos e en-
torpecentes ao organismo, não é um direito. Vejamos de novo
aquele julgado do Tribunal Constitucional Alemão, sobre a
maconha. Um dos elementos analisados de passagem foi o
“rausch”, o entorpecimento que provoca “sensação de prazer ou
êxtase capaz de mudar a percepção sensorial”. O Juiz Federal George
Marmelstein Lima traduziu a controvérsia alemã no título do
seu artigo, questionando se existiria um direito fundamental de
“ficar doidão”. Do julgado vê-se que aquela corte entendeu que
não. Na comparação feita entre as substâncias, registrou que o
tabaco não produzia “rausch”, enquanto o álcool o produziria,
mas apenas secundariamente, já que a bebida tem outros usos,
sociais e religiosos, que não a busca da embriaguez. Já a maco-
nha, no dizer do Tribunal, necessariamente visava àquele es-
tado de alteração sensorial, o que não favorecia sua liberação.
Ficar chapado não é um direito.
E porque se relativiza ou inibe o direito tão reclamado
pelos usuários de entorpecentes, de “uso ao próprio corpo”? É
que – como antes disse –, como ocorre com os direitos, as li-
berdades que os justificam, absolutas não são.
Rousseau entendia que a liberdade só acontecia no
exercício das leis, posto que estas derivavam da “vontade geral”.
Essa era também a expressão de Kant: “A liberdade jurídica é a
faculdade de só obedecer a leis externas às quais pude dar o meu assenti-
mento”.254 Assim, o cidadão cumpriria a sua própria vontade,
em tese. É que as renúncias individuais em que a existência do
254. In “À Paz perpétua”, citado por Norberto Bobbio em “A Era dos Direitos” (Campus,
1992), pp. 86.
206
Estado necessariamente implica, trazem em troca a segurança
do convívio social benéfico a todos. O benefício de um só não
pode prejudicar a harmonia do conjunto.
Vou repetir: na Declaração Universal dos Direitos do Ho-
mem, oriunda da Revolução Francesa, a liberdade é tratada no
padrão da Regra Áurea. É o direito de “poder fazer tudo que não
prejudique os outros”. Conforme Bobbio, esta definição diverge
da que “vigorou” de Hobbes a Montesquieu, segundo a qual a li-
berdade consiste em fazer tudo o que as leis permitam e difere
também da máxima kantiana, que limitava a liberdade do indi-
víduo ao ponto de compatibilidade com a liberdade alheia.255
Ele não pode ser legalmente compelido a fazer ou reprimir-se porque será
melhor que assim o faça, porque isto o fará mais feliz, porque, na opinião
dos outros, fazer tal coisa seria sábio, ou mesmo correto.257
207
Entretanto, o mesmo autor tem diversos argumentos
que provam que a liberdade que defende não é, de forma al-
guma, absoluta (liberdade absoluta inexiste, repito). A primeira
hipótese é a de que a ação do indivíduo prejudique a terceiros.
Que o único propósito para o qual o poder possa ser legalmente exercido
sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra sua von-
tade, seja evitar dano a outros.258
O que quer que seja permitido fazer também deve ser per-
mitido ser aconselhado a fazer. 259 (grifei)
258. Idem.
259. Pp. 137
208
Seguindo o fio do raciocínio de Mill, veremos que se
defronta com um dilema que bem serve à reflexão sobre a
questão específica da Marcha da Maconha, aqui entendida como
missão apologética. Negociantes de produtos como jogos de
azar, prostituição, estimulantes, etc., defendem a intemperança,
em favor de seus lucros. Essa intemperança, “um mal real”,
atentaria contra o bem público. Poderiam estar totalmente à
vontade para a propagação da intemperança? Mill entende
que não. Daí a necessidade de que, por exemplo, as casas de jo-
gos fossem
209
difere(m) apenas em grau de sua total proibição; e seria justificável apenas
se aquela (a proibição) fosse justificável. Todo aumento de custo é uma
proibição àqueles cujos meios não alcançam o preço alegado261
O princípio da liberdade não pode requerer que tal pessoa deva ser livre
para não ser livre. Não é liberdade ser permitido alienar sua
liberdade.262 (grifei)
261. idem
262. idem
210
tatal opressiva, em vitorianos tempos. Daí vem a importância
da defesa do individualismo pleno e vigoroso. Era uma reação
de sobrevivência, uma disputa de espaço contra o Leviatã. O
discurso de Mill é a defesa do liberalismo burguês, que montou
a máquina da sociedade capitalista que parece hoje iniciar um
declínio pós-apogeu. Logo, o discurso de Mill, trazido para
hoje, é profundamente conservador. A burguesia, um dia revo-
lucionária, é hoje o status quo. O mesmo que tem encaminhado
um mundo despido de solidariedades e pleno de egoísmos ao
aparente beco sem saída (pelo menos para a maioria de humil-
des) da crise do capitalismo, esmagamento das periferias e des-
truição da natureza.
Basta dizer que, há tempos, o tradicional semanário in-
glês The Economist, grande porta voz do sistema vigente, saiu
em defesa da liberação das drogas (edição de 26/07/2001).
Seus argumentos eram liberais, e baseados em quem? Ora, Stu-
art Mill! Posição progressista? Rá, conta outra! Por isso, co-
mentando o caso, o jornalista Alberto Dines foi quase furioso:
211
solução seria Stuart Mill. Ou assinar o Economist – não é barato mas
dá um grande barato.263
212
Dines menciona a vacinação obrigatória como exem-
plo de limitação necessária ao direito do indivíduo sobre si.
Hoje, não se pode viajar pra certos lugares ou entrar em certos
países sem a comprovação de um rol de vacinas. Os genitores
que não apresentarem o cartão de vacinas de seu filho em dia
podem responder por negligência parental, sujeitando-se
mesmo à limitação ou perda do poder familiar.
Essa limitação do “direito ao próprio corpo”, no
mundo inteiro provocou rebeliões contra as propostas e pro-
gramas de vacinação obrigatória. Em 1904, o Rio de Janeiro
vive a Revolta da Vacina, sob o governo de Rodrigues Alves,
quando Oswaldo Cruz inicia sua cruzada pela erradicação da
varíola. A campanha contra a febre amarela já havia desper-
tado polêmica, com os exércitos de mata-mosquitos entrando
em residências, forças da saúde pública removendo enfermos e
os isolando. A lei que determinava a prática sanitária anti-varí-
ola foi considerada “draconiana” pelas elites da época. Rui Bar-
bosa, o baiano genial, discursou no Senado Federal, com o bri-
lhantismo e a veemência que se tornaram lendários:
Até aqui, até à pele que nos reveste, pode chegar a ação do Estado. Sua
polícia poderia lançar-me a mão à gola do casaco, encadear-me os punhos,
lançar-me ferro aos pés. Mas introduzir-me nas veias, em nome da higiene
pública, as drogas da sua medicina, isso não pode, sem se abalançar ao que
os mais antigos despotismos não ousaram. Não o poderia, ainda que elas
fossem indubitavelmente inofensivas. A medicina do meu corpo, como a do
meu espírito, me pertence.264
264. Cfe. citado por Henrique Cukierman em “Yes, nós temos Pasteur – Manguinhos,
Oswaldo Cruz e a história da Ciência do Brasil” (Relume Dumará/FAPERJ, 2007, pp. 292)
213
a falta de conscientização das insatisfeitas e oprimidas massas
populares, a inabilidade autoritária de alguns artigos da lei e a
campanha dos jornais, teceram o cenário explosivo. Logo, bar-
ricadas encheram as ruas, tiroteios entre populares e forças da
ordem ocorreram, bondes foram arrancados dos trilhos, pré-
dios depredados, a casa de Oswaldo Cruz baleada, delegacias
bombardeadas, os postes de iluminação, derrubados. Ao final,
dezenas de mortos, centenas de feridos, muita gente presa e li-
deranças deportadas em navios da Marinha.
Um dos principais focos de luta contra a vacinação, e
de onde emanava grande parte da base teórica da resistência,
eram as organizações positivistas. O debate, àquela altura, era
internacional. A Liga dos positivistas brasileiros correspondia-
se com entidades similares de outros países (Anti-Vaccination
League of America e a National Anti-Vaccination League of England).
Os positivistas entendiam necessário medidas educativas, mu-
dança de ambiência, sem interferência estatal na “gestão” do
corpo dos cidadãos. Estes é que, educados, asseados e esclare-
cidos, obteriam melhor saúde pela incorporação de práticas
mais benéficas de higiene e cuidados, podendo “legislar sobre os
próprios corpos”. Contra isso, levantavam-se os sanitaristas, inspi-
rados pelas idéias e ações de Pasteur, que, com a descoberta
dos contágios por microrganismos, sem desprezar as medidas
de profilaxia ambiental, passaram a ver o corpo humano como
passível de intervenção externa direta, com o fim de erradicar
as doenças.265 Afinal, o corpo era o campo de batalha contra a
doença. Que a medicina até hoje trate assim os pacientes é um
erro, mas naquela altura da história, foi um passo de progresso.
Mas então, se progresso era, por que a Revolta da Va-
cina obteve a revogação da Lei? Os sanitaristas foram derrota-
dos? Não. Primeiro, a reação popular é sábia. Não convém
mesmo, a qualquer nação saudável, a obediência incondicional
265. Parágrafo baseado nas informações de Valéria Trigueiro Adinolfi em “Revolta da Va-
cina e concepções de corpo na ciência da virada do século XIX para o XX”, em http://
www.eca.usp.br/nucleos/njr/voxscientiae/valeria19.html.
214
de seu povo a governos. Segundo, após a medida de emergên-
cia, o governo passou a tratar de esclarecimentos e conscienti-
zação. Mas se estes tivessem vindo primeiro, a campanha
nunca seria bem sucedida. A obrigatoriedade permitiu que, au-
mentando o número de imunizados, a própria população aca-
basse percebendo que sobreviviam os vacinados. A adesão ao
programa de Oswaldo Cruz passou a ser espontânea. Erradi-
cou-se a febre amarela, em 03 anos, como prometido. Tudo
isso desperta polêmicas apaixonadas até hoje. Mas a compul-
soriedade provou seu sucesso com índices maiores de vacina-
ção e conseqüente redução de enfermos e óbitos. Hoje o país
conta com o reconhecido Programa Nacional de Imunizações
(PNI), do Ministério da Saúde, que administra as campanhas e
a as obrigatoriedades.
Vacinas continuam gerando debates e polêmicas. Há
correntes que, à moda dos discursos referentes aos antibióti-
cos, entendem que a intensiva vacinação poderia estar fortale-
cendo os microorganismos, desenvolvendo-lhes cepas mais re-
sistentes. A vacinação, assim, provocaria modalidades mais
graves das doenças que pretendia evitar. Há lógica no raciocí-
nio, e base em casos concretos, mas não se cogita de restringir
a prática da vacinação, até porque o quadro anterior era mais
grave. Quando muito, medidas tópicas são tomadas, como a
substituição, pelo governo americano, da vacina Sabin contra a
poliomielite, pela Salk, criada anteriormente e mais branda. Al-
guns médicos, de forma mais ou menos isolada, desestimulam
a vacinação a determinados clientes.
De todo modo, por todas as vias, foi derrubada a dire-
triz de inviolabilidade do corpo do cidadão, em proveito do
bem público. Ainda que por formas indiretas, constrangendo-
se a pessoa por intermédio de cerceamentos a viagens, obriga-
ção de apresentação da caderneta de vacinas das crianças pelas
famílias, etc. Alguns autores chegam, por conta do atual qua-
dro, a imaginar que não mais seria possível uma revolta “con-
tra” a vacina, como a de 1904, mas sim, “pela” vacina. Aliás,
215
neste ano de 2008, houve clamores populares exatamente por-
que faltava vacina da febre-amarela em alguns postos de saúde,
no surto que ocorreu. Oswaldo Cruz sorriu, no seu túmulo.
Isso não teria sido possível sem a derrubada pontual do “direito
ao uso do próprio corpo”.
216
Não interessa se haverá manobra arriscada ou não, nem se
você costuma andar protegido por uma escolta de anjos parti-
culares que nunca permitirão que barbeiros embriagados coli-
dam traiçoeiramente em seu veículo. Você tem que dirigir com
o cinto. É a ordem legal e é o bom senso. Como disse Miguel
Reale Jr., o Estado definiu que o cidadão não estava apto a de-
cidir o melhor para si próprio, neste caso. O mesmo raciocínio
poderia valer para os equipamentos de segurança em esportes
como o futebol americano, a esgrima e tantos outros.
Alguém poderá mencionar que, nos casos em que in-
tervém, o Estado apenas suprime direitos (impede a viagem,
no caso da vacinação) ou aplica sanções administrativas
(multa, no caso do cinto) sem exercer coerção física efetiva.
Ainda que esta seja efetivamente a regra, não é absoluta. O
próprio STF já admitiu a possibilidade da vacinação compul-
sória – ou seja, simplesmente agarrar o sujeito e enfiar-lhe a
agulha – em casos de epidemias de doenças infecto-contagio-
sas.266 Também conhecidos são os casos em que, através de
decisão judicial, quebra-se a vontade do indivíduo, em preser-
vação do direito basilar à vida e à saúde, quando ocorre recusa
à transfusão de sangue, por conta de crenças religiosas.267
217
Estes casos, envolvendo crenças, são sempre muito po-
lêmicos, mas também aí não poderia ser diferente. É fato que a
liberdade de culto não existirá se for restrita ao âmbito da
consciência individual, como ato íntimo e secreto. O culto,
muitas vezes se compõe de atos exteriores, que devem ser per-
mitidos. Exceto... quando conflitarem com preceitos constitu-
cionais. Afinal, seria monstruoso supor a seita de Jim Jones,268
por exemplo, autorizada pela lei a promover um evento propa-
gador do suicídio em massa, alegando a liberdade de culto. Mi-
norias devem ser respeitadas, mas esse respeito, a princípio,
não pode afrontar os ditames constitucionais que representam
a vontade da maioria, quando democraticamente construída.
Certos princípios são basilares, estruturantes de uma socie-
dade. Daqui a pouco, falarei de John Locke, que alerta sobre os
riscos de derrubar colunas de sustentação da casa comum da
sociedade humana. O direito à vida é uma delas, a mais impor-
tante. Em determinadas situações, sua manutenção exige a su-
peração da vontade de um indivíduo ou grupo de indivíduos,
em nome do bem comum. O direito ao uso do corpo não
pode ir tão longe a ponto de derrubar a casa onde se abrigam
tantos outros corpos.
Como vimos, Stuart Mill colocou a questão da liber-
dade sob uma fórmula que, na verdade, embute um dilema: a
existência de uma liberdade deve autorizar o estímulo do seu
exercício. Se não posso permitir o estímulo, não posso autori-
268.
218
zar o direito. A legislação brasileira veda o estímulo ao con-
sumo de entorpecentes. Natural que este próprio, ainda que
por via indireta (proibição do porte), seja vedado. Consumo li-
berado implicará, necessariamente, em favorecimento ao pro-
selitismo do entorpecente.
219
Conforme Felix O. Oppenheim:
271. Verbete “Liberdade”, no “Dicionário de Política” de Bobbio e outros (UNB, 1986) pp.
710.
272. Dicionário de Política” de Bobbio e outros, pp. 233, verbete “Locke, John”.
220
zendo a ruína. Podem-se perder as “regras” exteriorizadas
como reboco e tinta das paredes da casa, mas não suas sagra-
das colunas de sustentação.
Hoje, o que parece dificultar as coisas, é exatamente
essa ausência de consenso sobre os esteios da sociedade pós-
moderna. Com o declínio da utopia política e da religiosidade,
o individualismo hedonista subverteu as noções de solidarie-
dade social. Isso se reflete na construção das regras. As leis
acabam sendo um entrecuzamento de cunhas, atravessadas no
ordenamento, para defender interesses particulares. Lembra da
“busca de reconhecimento”, citada por Bauman, de que falei capítu-
los atrás? Mas as leis deveriam, na verdade, baseadas no res-
peito às colunas dos valores de sustentação social, tratar sem-
pre do bem comum. É de direito que a sociedade seja
construída de forma a que cada um expresse sua individuali-
dade, desenvolva e realize suas potencialidades, se complete
como ser e construa a própria felicidade. Mas como pessoas
não são ilhas, há limites. Como são definidos?
273. Cfe. “O Espírito das Leis” (II, 3), citado em “Dicionário de Filosofia” (Terramar, Lis-
boa,1994) verbete “Liberdade” pp. 232.
221
mos fazer. “Devem querer” consumir maconha, os cidadãos bra-
sileiros? Certo que não. E porque não devem querer, não se
lhes pode a isso incentivar.
Ainda Montesquieu disserta sobre o direito ao livre
pensar e ao livre discurso. Naquele nos informa o hoje pacifi-
camente aceito: “às leis não cabe punir senão as ações exteriores”. So-
bre o último, alerta que poderá sofrer restrições, como quando
alguém, em praça pública, exorta os súditos à revolta, tor-
nando-se “culpado de lesa-majestade, porque as palavras são ligadas à
ação e dela participam”.274 Claro que devemos entender, nessas
palavras, tão somente a defesa da incolumidade do governo le-
gitimamente constituído, já que o direito de rebelião contra o
poder ilegítimo é também consagrado pelo autor francês e por
tantos que o sucederam.
Mas é certo que, para Montesquieu, a belíssima má-
xima do contemporâneo Voltaire (que em geral, aliás, discor-
dava de Montesquieu e até o execrava): “Posso não concordar com
nenhuma das palavras que dizeis, mas defenderei até a morte o vosso di-
reito de dizê-las”, não significava o direito de “dizer” tais palavras
em qualquer espaço e a qualquer público.
A definição desse “espaço” e desse “público”, obvia-
mente, é objeto de encarniçadas disputas. Problema: todos os
contendores invocam para si próprios o usufruto da liberdade,
como conceito laudatório, abstrato e universal, a partir de seus
próprios interesses. Até mesmo as grandes corporações e as
agências publicitárias têm se batido pela sua “liberdade de ex-
pressão comercial”, contra as leis reguladoras da restrição à
propaganda de bebidas, de produtos voltados a crianças, etc.
Neste caso particular, entretanto, o Art. 220, § 4º, da
Constituição Federal, determina que a “propaganda comercial de
tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará su-
jeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e
conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes
de seu uso.” Para isso, lembremos, editou-se a Lei nº 9.294/
274. “O Espírito das Leis” (Coleção Os Pensadores, Nova Cultural, 2000) pp. 242/243.
222
96, com restrições de horário, de forma e de conteúdo, para a
publicidade dos referidos produtos. Limitou-se a “liberdade
de expressão comercial”, por obviamente necessário ao bem-
estar social.
Sabemos que a liberdade de expressão de opiniões e
crenças tem como sucedânea necessária, a liberdade de im-
prensa. O art. 19 da Declaração Universal dos Direitos Huma-
nos de 1948 afirma:
1. Toda pessoa tem deveres para com a comunidade, em que o livre e pleno
desenvolvimento de sua personalidade é possível.
2. No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará sujeita ape-
nas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de asse-
gurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem
e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-
estar de uma sociedade democrática.
3. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exerci-
dos contrariamente aos propósitos e princípios das Nações Unidas.
223
Como se vê, nesta Carta Magna da humanidade, as li-
berdades não podem ser exercitadas à revelia dos deveres de
cada indivíduo para com a coletividade a que pertence. Por
isso, é legítimo que se estabeleçam restrições. Não fosse assim,
o abuso de uma liberdade poderia levar à destruição de outras.
No caso da liberdade de imprensa, além da proibição
de edição de livros nazistas, que já mencionei, há a disposição
do Código Civil, que preserva o direito da pessoa à sua ima-
gem e dignidade, conforme o Art. 20:
224
Esse é o problema. Todos clamam por suas particula-
res liberdades, estatuídas conforme seu próprio conceito, com
o mesmo vigor. Pedófilos o fazem, não é? E a pedofilia não
implica em, pela exposição ou abuso precoce dos sentidos da
criança a estímulos indevidos, determinação de comportamen-
tos futuros, sexualizados, esquizofrênicos, vitimizados... escra-
vizados, portanto? Por isso, Montesquieu, alerta para a falta de
liberdade embutida na própria maximização da liberdade.
Nos Estados extremamente livres, traem a liberdade por causa da própria
liberdade que, sempre produzindo divisões, cada qual se torna tão escravo
dos preconceitos de sua facção como o seria de um déspota.275
225
é a Constituição Federal, onde estão claros os valores, as flo-
res que devem encher os jardins da democracia: solidariedade,
fraternidade, dignidade, eliminação da desigualdade, da po-
breza, etc.
Por isso, complementando a visão do Supremo Tribu-
nal Federal, o Ministro Eros Grau, afirma que a Constituição
não pode ser analisada “em tiras”, como se escolhêssemos os
trechos que mais se encaixem em nossos interesses particula-
res. Por isso, não existe o direito absoluto à liberdade de ex-
pressão. Ela não se sobrepõe às demais garantias presentes no
texto constitucional.278
226
mídia. Ali se demonstra a relação entre a divulgação noticiosa
da ocorrência de suicídios e o incentivo à sua prática.280
Mas são inúmeros os casos em que nocivos comporta-
mentos divulgados pela mídia são reproduzidos por pessoas
que talvez sequer os cogitassem, não fosse a influência rece-
bida. Nos Estados Unidos, uma criança se enforcou após as-
sistir na TV à execução, por enforcamento, de Saddam Hus-
sein, criminosamente exibida por telejornais. Quando da
Europa veio a notícia do monstro que manteve uma menina
em cativeiro desde a infância, como escrava sexual, logo apare-
ceu no interior do Brasil um caso em que dois irmãos cavaram
um compartimento embaixo da cama, com a mesma finali-
dade. Da tragédia de outubro de 2008, do seqüestro e assassi-
nato da menina Eloá, por um ex-namorado em desespero, re-
sultaram, na mesma semana dois episódios similares. O
massacre americano de Columbine inspirou ações iguais, inclu-
sive a do assassino coreano da Universidade Virginia Tech.
Alguém dirá que isso só ocorre a pessoas já tendentes a
comportamento desregrado, desviante ou psicótico. É possí-
vel. Mas certas zonas de sombra do ser, ainda são desconheci-
das no cérebro humano. A precaução recomenda que não se
exponham pessoas a riscos que possam despertar monstros
adormecidos nas profundidades da psique, especialmente cri-
anças e adolescentes. No Japão, um desenho animado foi proi-
bido certa vez, porque certos impulsos luminosos da transmis-
são, em cenas específicas, causaram ataques epiléticos em
pessoas propensas. Estas eram a maioria? Certamente, não.
Mas o risco recomendou a cautela da proibição. A gente não
vê incêndios a toda hora, mas todo mundo é obrigado a cum-
prir as determinações do Corpo de Bombeiros, quanto à pre-
venção de incêndios, inclusive mantendo-se extintores em lo-
cais determinados.
227
A Marcha da Maconha é como o incêndio que não se vê,
ou o desenho animado que causa danos em minorias, mas da-
nos graves. É, necessariamente, proselitista. Guarda potencial
efeito multiplicador do consumo. A pretexto de discutir revi-
são legal, divulga benefícios da cannabis ou, quando menos, mi-
nimiza seus potenciais danos. É razoável supor que possa esti-
mular pessoas propensas, à experiência com o entorpecente,
num número maior do que o que ocorreria sem a caminhada.
Afinal, lá poderão estar, como já ocorreu, emprestando sua
imagem, artistas, políticos conhecidos, inclusive um que hoje
é Ministro de Estado. Não é incorreto que seja limitada ou
impedida.
228
e prudência. Por isso a Constituição exige dos meios de comu-
nicação respeito aos valores da família.
Mas há mais. Manifestações de rua devem ser comuni-
cadas à autoridade policial, 24 horas antes da sua realização. A
polícia não as autoriza ou desautoriza. Mas pode, evidente-
mente, limitá-las. Isso porque deve garantir a segurança tanto
de manifestantes quanto de circunstantes. Deve impedir coli-
são de direitos, não podendo, a priori, permitir, por exemplo, a
obstrução do tráfego, a depredação de propriedades ou pré-
dios públicos. E não deve, portanto, consentir com o porte ile-
gal de armas, o tráfico de entorpecentes ou a realização de
apologia de substâncias ilícitas.
E nem toda manifestação cabe em via pública. Mani-
festações naturistas, por exemplo. É que o Art. 233 do Código
Penal veda o ato obsceno. Ficar pelado na rua ainda fere o pu-
dor comum. Por isso mesmo, os naturistas se reúnem em espa-
ços demarcados, previamente autorizados e, diga-se, nos quais
estabelecem regras! Seu “código de ética” determina, por exem-
plo, a proibição de assentar-se, o naturista, em área comum,
sem proteção higiênica de assento.281 Mas mesmo se ficar pe-
lado na rua não fosse uma norma, deveria valer o bom senso.
Bom senso é o que recomenda Luiz Flávio Borges
D'Urso, advogado criminalista, presidente da seccional paulista
da OAB, em artigo sobre o direito de livre manifestação:
229
Pois bem, e quando este bom senso não ocorrer? A re-
ferência, no texto, é à questão do tráfego. Mas há outros aspec-
tos que exigem bom senso. A interpretação corrente do Esta-
tuto da Criança e do Adolescente não autoriza aos promotores
de eventos onde haja presença de crianças e adolescentes, a di-
vulgação ou propaganda de produtos e substâncias que pos-
sam causar dependência química. A diretriz é de prevenção.
Diz o ECA em seu Título III Capítulo I:
230
ou freqüência de crianças e adolescentes”. O mesmo, na edição de
Portarias Normativas. O texto destas e dos Alvarás sempre
contém cláusula impeditiva da propaganda, patrocínio e anún-
cio de produtos como tabaco e álcool.
Na mesma linha, as revistas e publicações destinadas à
infância e juventude não podem “conter ilustrações, fotografias, le-
gendas, crônicas ou anúncios de bebidas alcoólicas, tabaco, armas e muni-
ções, e deverão respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família”
(art. 79 do ECA). Além de esta ordem implicar em clara restri-
ção do direito de livre expressão das publicações, que não po-
dem dizer tudo, conforme o público a que se direcionam,
serve de guia para o raciocínio a ser adotado na apreciação da
Marcha da Maconha. Ela dá publicidade à substância, que só não
está no rol do artigo mencionado porque, ilícita que é, se pres-
supõe que não deva ser propagada nem a adultos, sob pena de
enquadramento em crime de apologia. Logo, se crianças e ado-
lescentes não podem ser atingidos por propaganda de tabaco,
porque deveriam sê-lo pela da maconha? E, mais, se uma re-
vista na banca não pode propagar a maconha, porque uma
passeata em via pública poderia? Seria um contra-senso.
Lembremos que os próprios organizadores da Mar-
cha 2008 haviam colocado no site da Organização “Marcha da
Maconha” a inscrição de alerta: “É proibido o uso de maconha
na marcha. Evento proibido para menores de 18 anos”. No
sítio da Marcha 2009, ainda mais cautelosos, colocaram uma
página de acesso com os alertas de que “Este site tem con-
teúdo e discussões destinados somente para maiores de 18
anos.”! Ora, se não é devido o acesso de menores à página da
internet, repito, porque deveria ser liberado o acesso e a propa-
gação do debate em via pública, em locais e horários onde pre-
sentes menores de idade?
Crianças e adolescentes são influenciáveis. Revolução
hormonal, inexperiência, anseio de transgressão, cérebros
em formação, facilitam que sementes de árvores más ali flo-
resçam, nessa terra úmida e ávida. Por isso é que os primeiros
231
“tapinhas” de qualquer usuário de maconha começam na
adolescência.283 Mas, ao contrário da música medíocre, esse
“tapinha”, além de não ser “de amor”, dói muito na psique de
personalidades frágeis e doerá na consciência da sociedade que
receberá, pela inconseqüência de alguns, cérebros derretidos,
vontades inertes e adultos desajustados.
Então, no fim das contas, os manifestantes não pode-
rão exercer seus direitos constitucionais de expressão, reunião
e manifestação? Em via pública, entendo que não. Sábios os
juízes que, embora com outro fundamento, entenderam assim,
em 2008. Os manifestantes poderão reunir-se em recinto fe-
chado, ou de acesso limitado, como auditórios de universida-
des, estádios, Praça da Apoteose, etc. Feito o controle de
acesso, vedando-se a presença de menores, tudo se resolve.
Preservam-se os direitos infanto-juvenis e o princípio da pro-
teção integral, e garante-se o direito de livre manifestação, mas
com as regras necessárias ao jogo. Afinal, já disse, até pelada
em campinho careca e com tênis furado, tem regras.
283. A já mencionada pesquisa publicada pela Revista O Globo indica que, dos usuários de
diversas drogas entrevistados pela Retrato Consultoria e Marketing, 67,7%, tinham entre 13 e
17 anos em sua “primeira vez” que foi, obviamente, com a maconha, para 96,3%.
232
BASEADO EM TUDO
O QUE FOI DITO, CONCLUSÃO
E APELO: NÃO AO BASEADO!
233
A liberação da maconha não resolverá a situação da cri-
minalidade elevada, apenas trocará poeiras de lugar, faxina
porca. A liberação da maconha num país como o Brasil, repre-
sentará autorização, chancela estatal ao consumo. Só de se co-
gitar, por exemplo, a autorização judicial para abortar anencé-
falos, chegaram notícias de médicos aqui e ali, negligenciando
mães que queriam seus filhos, mesmo sem cérebro. – Pra que
parir o que não viverá?, indagaram aqueles homens de branco. O
que se faculta, obrigação não é. Mas não é assim que o Brasil
vê. Com maconha liberada, aumentará o número de consumi-
dores e baixará a idade de acesso.
A liberação da maconha, neste tempo de dificuldades
com crianças e adolescentes perdidos, temerosos e sem limites,
porque seus pais estão atordoados, porque os discursos escola
x mídia x família são conflitantes, dará a sinalização errada às
famílias e à sociedade. Indicará permissividade, num momento
em que precisamos descobrir disciplina e reaprender os limites
do afeto. Não lembro onde li que “não há liberdade total onde há
um afeto”. Exato! Mas o individualismo está matando o afeto.
Por isso, a porteira despenca, se escancarando para selvagens
manadas de dores, furiosos descompassos, tragédias.
A liberação da maconha é um discurso ancião,
mas não sábio: arcaico. Perdeu seu charme fraco. A libera-
ção da maconha é um discurso holandês, não são nossas, essas
raízes. A liberação da maconha apenas acrescerá outro item
aos tristes ritos de iniciação, da embriaguez e do tabagismo
adolescentes.
Atenção. Essa rebeldia leve e maconheira, que dá mer-
cado em canções, declarações de artistas, ela acende pavios.
Até vejo que muitos não percebem o fogo que ateiam. Mas a
pólvora está montada no coração dos pequenos. Pode ser
longo o fio do pavio, mas um dia a chama chega ao coração de
cristal e o explode. Da rebeldia inocente, na ponta do pavio, a
rebeldia suicida, do outro lado. A emissão de uma voz pode ter
na saída uma intenção de brisa, de brasa, mas no destino pode
234
virar vendaval e fornalha, terremoto e vulcão. Queimando a
vida, até a última ponte.
Por isso é que entendo que, além de não ser um direito
fundamental fumar maconha, portá-la ou oferecê-la, também
não é um direito fundamental poder proclamar pelas ruas seus
benefícios, ou seus “tão pequenos” malefícios. Não se anuncia
cordas em casa de enforcados. Não se anuncia venenos, em
tempos de suicidas.
Para mim, por tudo que já foi dito, não deveria sair pe-
las ruas, uma Marcha da Maconha. Como não poderia uma Passe-
ata da Nicotina ou uma Caminhada da Cachaça! Se a lei proíbe nas
bancas de revista, proíbe nos esportes, proíbe nos shows in-
fantis, não pode permitir na rua. Crianças e adolescentes
merecem proteção. E esta é, necessariamente, preventiva. O
capacete não é colocado na cabeça do piloto na hora do aci-
dente. É antes, com o carro parado. Não se espera a criança
pegar o revólver. Impede-se a existência do revólver na casa.
Necessário abortar ameaças. Que não marche, na embriaguez
da prudência, no desfalque da racionalidade, que não marche a
insensatez.
Pense você, caro juiz de direito, prezada mãe de família,
senhor promotor de justiça, sofrido educador, jovem aflito,
maconheiro inquieto. Use o bom senso. Marcha da Maconha não
se faz no playground. Uma insensatez puxa a outra. Sem medo
de parecer retrógrado, digo que há que construir diques não
holandeses para essa liberdade que se pretende sem limites ou
rumos, espraiando-se irresponsavelmente, sem controles.
Guardei para este final algumas das mais graves revela-
ções que descobri na pesquisa empreendida para este trabalho,
que dizem respeito a crianças e adolescentes, meu tema mais
caro. De maneira inconseqüente, o governo russo autorizou o
uso de maconha apreendida para o preparo de forragens para
consumo de gado leiteiro. Isso, mesmo depois de a Suíça ter
dado o exemplo proibindo a mesma medida, depois que ficou
constatado que crianças de colo foram detectadas com resí-
235
duos de THC decorrentes do consumo de leite contaminado
com maconha! 284
Para piorar as coisas, neste filme de terror que avança
insensatamente, a empresa Munchiles distribui nos Estados
Unidos os pirulitos e balas Stoner Pops, com gosto de... maco-
nha, a partir da inserção de óleo de cannabis na fórmula! São
vendidos livremente pela internet e em supermercados. O fa-
bricante tem a cara de pau de afirmar que o produto, além de
não contar com THC (o que é verdade), é consumido mais por
adultos (o que é deslavada mentira) . Crianças o consomem,
incentivando assim, a curiosidade e efetuando uma aproxima-
ção com a droga, pelo caminho mais torpe possível. Glamou-
rizando uma droga perigosa em inocente confeito. Os aromas
da infância, como esquecê-los? Em alguns estados, entretanto,
a proibição aos doces de maconha já se efetuou.285
Esses comportamentos têm seu custo. Hoje, quando
vivemos essa crise de autoridade, com alunos incendiando es-
colas, e se metendo em rotinas de agressões e abusos sexuais,
uma postura de tolerância inconseqüente na questão da maco-
nha pode atirar mais pólvora às chamas. O Jornal Britânico de
Psiquiatria revelou o teor de estudo realizado na Holanda, pelo
Instituto Trimbos, de Utrecht. Após acompanhar o “dia se-
guinte” ao consumo de maconha, num universo de 5.200 ado-
lescentes entre 12 e 16 anos de idade, a conclusão foi que “a
cannabis pode ser associada a comportamentos agressivos e delinqüenciais
(...) que aumentam paralelamente à freqüência do consumo”. Foi en-
contrada estreita conexão “naqueles que tinham consumido a subs-
tância nos dias antecedentes à pesquisa”, enquanto não demonstra-
ram comportamentos delinqüentes os adolescentes que não
fumaram a cannabis no ano anterior ao da pesquisa. Ou seja, cai
284. MAIEROVICH, Walter Fanganiello. MACONHA: liberado pasto para vacas. E o leite?
Em: http://www.ibgf.org.br/index.php?data[id_secao]=4&data[id_materia]=584. Acesso em
15/11/08.
285. MAIEROVICH, Walter Fanganiello. DROGA. Snoopy Doog, rapper condenado. Fim do
comercial, por Snoopy, de balas e pirulitos com sabor maconha. Em: http://www.ibgf.org.br/in-
dex.php?data[id_secao]=4&data[id_materia]=1185. Acesso em 15/11/08.
236
o mito da “droga da paz”. Este efeito só dura enquanto dura a
“anestesia” do “barato”. No fim das contas, mais maconha, é
sinônimo de mais agressividade.286
Certamente por isso, além dos diversos fatores citados
ao longo deste livro, que demonstram a impaciência dos pró-
prios holandeses com o excesso de liberalidades e suas nefas-
tas conseqüências, especificamente as escolas, que têm a dura
missão de descascar o abacaxi da indisciplina e da violência
estudantil, passaram a se preocupar mais. A Câmara Municipal
de Roterdam aprovou lei que passa a vigorar a partir de 2009,
estabelecendo limites de distância para a existência de coffee
shops nas imediações de escolas.287
Que não marche a insensatez.
Lembram da “Cristiane F., 13 anos, drogada e prostituída”, a
pessoa, o filme e o livro?288 Aos 12 anos, começou no álcool.
Da maconha, caiu na heroína, recuperou-se, virou exemplo,
teve filho... Pois é. Recentemente foi achada, em Amsterdã (!),
após “semanas sem tomar banho, ficando apenas na cama, bebendo e
fumando maconha. Abandonado, o filho dela passava o dia inteiro jo-
gando videogame”. De volta ao inferno. Quem disse que a saída
era fácil? Na Alemanha, levaram seu filho para um abrigo. Na
época da notícia (agosto de 2008), ninguém sabia onde andava
Christiane.289
Alguém poderá dizer: mas o caso dela era “barra”, pe-
sado... heroína, nada a ver... Sim, mas a maconha, com sua sua-
vidade bailarina, abriu e fechou a cena. Como é comum. Es-
pero que Christine se recupere, ainda. As estatísticas lhe são
desfavoráveis, infelizmente. Aliás, a mãe na cama, o filho lar-
237
gado, jogando video-game, é um emblema da situação que vive-
mos. Mas isso dá outro livro inteiro, deixa pra lá.
Não acho que “porque todo mundo” faz ou usa algo, ele se
torna certo e adequado. “Todo mundo” compra pirataria. E ela
segue vedada. Inútil a vedação? Talvez, mas ela ainda repre-
senta um freio moral. Sem ela, pior. “Todo mundo” avança o li-
mite de velocidade na estrada. Então retiramos as placas “inú-
teis”, abandonamos as multas? Não, porque aumentariam os
acidentes. Cada um que arque com sua transgressão frente à lei
e à consciência. Os que se acham acima das leis, que assim vi-
vam e se contentem com sua “superioridade”, assumindo os
riscos, as multas e as sanções
Uma Marcha da Maconha, hoje, à minha vista, é um des-
file bizarro, ao som de Bob Marley e Marcelo D2. Intelectuais
e pequenos burgueses que fumam maconha nas horas vagas,
vão à frente, com cartazes pela liberdade de expressão e contra
a “guerra aos pobres”. Nem percebem, mas são seguidos de
perto pelo capitalista inescrupuloso, de olho nos lucros do
novo mercado. A indústria farmacêutica e as de tabaco vão em
carros de fibra de maconha. Logo atrás, caminha o estudioso
de segurança pública, acreditando que assim diminuirá tiro-
teios e mortes. Mas não fica-lhes distante na passada o polí-
tico de esquerda, supondo-se um new-abolicionista. Também
se vê o narcoturista recém chegado dos “progressos” dos cafés
holandeses, nostálgico, pensando “aquilo sim é que é vida”. Não
falta a mãezinha, feliz com a estranha tranqüilidade do bebê
que vai ao colo, com sua mamadeira de leite achocolatado,
cheio de THC. Hippies tardios arrastam lentamente suas san-
dálias de pneu. Passa o artista global que brada contra a hipo-
crisia da sociedade, e que leva o filho pela mão, chupando um
pirulito de cannabis. Um sacerdote da nova Igreja Universal do
Cânhamo de Deus faz suas preces louvosas, repetidas em coro
por maconheiros fiéis, carregando imensos “charutos” de canna-
bis, do tamanho de vassouras. Entre pandeiros rituais, cantam
hare cannabis, maconha hosana, aleluia hemp. Cientistas ávidos por
238
novas pesquisas, como é da sua índole, passam com seus aven-
tais brancos, carregando folhas de cannabis. Ecologistas vão de
camisetas, falando de plantios caseiros, das maravilhas na erva
natural, “que nem faz tanto mal”. Juristas novidadeiros montam a
crista da onda da vez, surfando argumentos, como se o mar
fosse só abstrações jurídicas e debaixo da linha da superfície
não houvesse pobres peixes apavorados. Nas fileiras de trás,
não nos enganemos!, passam os interessados em empurrar
esta cunha mais adentro da fissura já aberta, como os que pre-
tendem maiores liberalidades com outras drogas “recreativas”,
os que pretendem o rebaixamento da idade do consentimento,
os pedófilos “respeitáveis” e pagadores de impostos. O desfile
acontece numa praia bonita, num domingo de sol. O governa-
dor comparece para dar seu apoio. Enquanto isso, em clínicas
de recuperação, deitados na sombra, obscuros viciados vomi-
tam. Em casas humildes, mães são espancadas por filhos de-
pendentes, atrás de dinheiro pro vício. Pequenos delinqüentes
de 11 anos fazem arrastões pra financiar a próxima pedra. E
pais e mães que já viram filhos se irem pelos abismos do in-
ferno, assistem à Marcha calados, com um nó na garganta e o
coração rachado. São acompanhados no pasmo por professo-
res assustados com suas escolas rebeladas. Assistem à Marcha
que avança, insensata, à luz do dia, insensata, avança entre os
playgrounds. Inertes, percebem quando um sacerdote maco-
nhista entrega, como uma hóstia perversa, uma bala em for-
mato da folha de cannabis, ao menino que desce do escorrega
da inocência direto pra dentro da marcha, da marcha insensata.
À beira da rua, muita gente aplaude, como aplaudiriam com o
mesmo inconseqüente aplauso à Parada Gay, ao Cordão do
Bola Preta, ao desfile de algum time campeão ou a qualquer
distração, assim, tão praiana. O pai humilde daquele filho per-
dido observa, engasgado, a Marcha que passa, e não entende.
A lágrima corre. Uma cena assim não me deixa dormir em paz.
Portanto, apelo. Com todo respeito. Sou apenas um po-
bre interiorano que vê as cada vez mais faveladas serras à sua
239
volta devastadas por vício e roídas de desesperança. Que nin-
guém se ofenda, mas o Brasil não mora entre o Arpoador e
Ipanema, e o Brasil holandês não vingou. A maconha é a maco-
nha e sua circunstância, repito a paráfrase. E na circunstância bra-
sileira, vamos às lutas que hoje realmente importam. Não, não
sou eu que vou arbitrá-las, porque elas estão aí mesmo, implo-
rando suas Marchas.
*.*
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