Desde sempre a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro lida com
carências financeiras que limitam seu serviço, tanto em aspectos administrativos, quanto em aspectos operacionais. No dia-a-dia proliferam expressões como “assim não dá” ou “vai parar”, sem que uma solução definitiva seja encontrada.
No entanto, a solução imediata é traduzida por outra expressão, esta
menos razoável e instantaneamente agressiva, “se vira”. É assim que há anos vem conduzindo a Polícia Militar: faltam recursos mínimos, sobram reclamações, e o serviço não para.
Procurando observar a questão analiticamente, chega-se ao ponto em
que se faz o que é impossível fazer. Pouco ou nenhum recurso deveria resultar em pouco ou nenhum resultado. Mas não é o que se vê. De algum modo, o serviço policial continua a ser prestado: policiais vão para as ruas, viaturas continuam a rodar, a tropa continua a comer. É o jeitinho brasileiro. 2
O jeitinho brasileiro, neste caso, traduz-se na imposição aos policiais
que consertem as viaturas, quando em algum momento, mesmo que sem culpa direta por algum dano, o mesmo ocorra. Nestes casos, pode-se depreender que as peças colocadas não serão as melhores, ou os consertos adequados, mais o importante é que as viaturas não parem. O jeitinho brasileiro também é percebido, quando os gestores das unidades operacionais, sem recursos repassados pelo Estado, continuam mantendo suas frotas em uso. Como será que isto acontece? Qual é o mistério? Nestes casos, o que acorre é a realização de compras nos comércios que aceitem receber o pagamento em data futura (quando a verba entrar), essa data futura, pode ser um mês, ou até nove meses, dependendo da época.
Na realidade, o que parece ser uma ação eficiente do gestor, é uma
ilegalidade administrativa que, se descoberta é punida. Mas, que todos sabem que existe. Todavia, nenhuma medida é adotada para coibir. Pelo contrário, se os índices de viaturas inoperantes aumentarem e conseqüentemente alguns indicadores de criminalidade subirem, o Comandante da unidade é deposto por ineficiência. Então, pode-se depreender que, o bom gestor na PMERJ, não é o que planeja e se prepara para o futuro, mas, o que consegue cumprir a missão não importando os meios.
Inicialmente analisaremos este mito sob a perspectiva da ética na
concepção de Immanuel Kant (1724-1804). Para Kant, a ação ética é aquela que é realizada estritamente por dever. Esta forma de fundamentação baseia-se na universalidade da Razão que nos constitui como seres humanos, independente de qualquer contexto histórico-cultural. A lei fundamental da Razão Pura Prática é a seguinte: “Age de tal modo que a máxima de tua 3
vontade possa valer-se sempre como princípio de uma legislação
universal”.
Nossa natureza nos impele a agir por interesse, segundo nossas
inclinações espontâneas. Somente a Razão nos oferece a liberdade absoluta de agir por dever, em conformidade com a Lei da Razão Pura Prática. Tal forma de orientação da conduta jamais é hipotética, mostrando-se sempre categórica, incondicional: o dever assume a forma de um imperativo categórico. Segundo Kant existem três modos de agir: “por dever”, “conforme o dever” e “contrariamente ao dever”. Por dever, a forma como os gestores tratam os óbices financeiros da organização, está completamente em desalinho com a ética segundo Kant. Os problemas financeiros deveriam ser enfrentados de forma profissional, de forma que as autoridades do Estado buscassem uma solução na qual os recursos financeiros atendessem as demandas organizacionais, proporcionando assim que os gestores atendessem aos princípios constitucionais da eficiência administrativa. Na visão kantiana, o valor moral da ação se faz por adequação à forma da lei, de modo absoluto, independente de quaisquer possíveis conseqüências da ação. Neste sentido, os gestores seriam éticos, não buscando subterfúgios para sanar um óbice administrativo, mesmo que isso custasse o seu cargo. Sendo assim, ação de manter a corporação funcionando, por meio de ações que burlem a norma vigente, na visão de Kant seria aético.
Tratando o mito em questão na perspectiva hegeliana, deveríamos
considerar as questões históricos e culturais que envolvem o problema. Segundo Hegel, Kant não considerou adequadamente a formação da consciência do sujeito moral, que se faz sempre historicamente. Para Hegel, a nossa existência individual só pode ser compreendida por referência a um 4
momento histórico da humanidade, que cria instituições e práticas norteadoras
da conduta. Para Hegel, uma conduta justificadamente ética é aquela que se encontra em sintonia com os valores e práticas determinados culturalmente em um dado momento da história.
Neste sentido, na perspectiva de Hegel, as ações dos gestores das
unidades operacionais estariam eticamente corretas, pois historicamente tem sido feito desta forma, e é culturalmente aceita no âmbito da corporação. Pois a um fechar de olhos para estas práticas.
Contudo, o argumento que solidificaria a ação dos gestores neste caso,
encontra-se no utilitarismo. Elaborada por Jeremy Bentham (1748- 1832) e John Stuart Mill (1806-1873), o utilitarismo tem no “princípio da utilidade” o critério de avaliação ética dos atos humanos. De acordo com tal princípio, a ação dotada de “maior valor ético” é aquela que maximiza a felicidade e minimiza a dor, o sofrimento, ou seja, a ação que beneficia um maior número de pessoas. Sendo assim, o jeitinho brasileiro dos gestores das unidades operacionais se justificaria. Pois, a demora no repasse dos recursos geraria uma crise, na qual a resposta as demandas criminais seria reduzida, ocasionando um mal maior para a sociedade carioca. Tendo em vista, que os serviços deixariam de ser prestados adequadamente. Com isso o que teria maior valor ético? O respeito às normas financeiras vigentes, ou a manutenção dos serviços a sociedade carioca? Desta forma, a maximização da felicidade da sociedade carioca sobrepujaria a ação por dever kantiana.
Logo a ação dos gestores seria considerada aética na visão kantiana,
encontraria um respaldo no olhar hegeliano, em virtude das questões históricas e culturais, mas, se fundamentaria na perspectiva utilitarista de Bentham e Mill, no que tange a maximização da felicidade e minimização da dor. 5