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UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA

MAURO JORGE DE ALBUQUERQUE BARRETO

OS SENTIDOS DA CIÊNCIA E DA TECNOLOGIA


NO DISCURSO DA ANIMAÇÃO E DAS
HISTÓRIAS EM QUADRINHOS JAPONESAS

Palhoça
2008
MAURO JORGE DE ALBUQUERQUE BARRETO

OS SENTIDOS DA CIÊNCIA E DA TECNOLOGIA


NO DISCURSO DA ANIMAÇÃO E DAS
HISTÓRIAS EM QUADRINHOS JAPONESAS

Monografia apresentada ao Curso de


graduação em Comunicação Social –
Habilitação em Jornalismo da
Universidade do Sul de Santa Catarina,
como requisito parcial para a obtenção do
título de Bacharel.

Orientadora: Profª. Marci Fileti Martins

Palhoça
2008
MAURO JORGE DE ALBUQUERQUE BARRETO

OS SENTIDOS DA CIÊNCIA E DA TECNOLOGIA


NO DISCURSO DA ANIMAÇÃO E DAS
HISTÓRIAS EM QUADRINHOS JAPONESAS

Esta monografia foi julgada adequada à


obtenção do título de Bacharel em
Jornalismo e aprovada em sua forma final
pelo Curso de Comunicação Social, da
Universidade do Sul de Santa Catarina.

_______, ____ de ___________ de 20_____.

_________________________________________________________
Profª. e orientadora Marci Fileti Martins
Universidade do Sul de Santa Catarina

_________________________________________________________
Prof. Dagoberto Bordin
Universidade do Sul de Santa Catarina

_________________________________________________________
Profª. Helena Iracy Cerquiz Santos Neto
Universidade do Sul de Santa Catarina
Dedico este trabalho a minha avó - Creuza
Albuquerque da Silva - e à Mel.
AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a meus pais, que financiaram meus estudos


durante toda minha vida e me mostraram o valor do trabalho honesto e da
dedicação.
Em seguida, não posso deixar de agradecer à minha orientadora, Profª.
Marci Fileti Martins, por todo o empenho durante este trabalho, lutando comigo para
que se concretizasse.
Por fim, agradeço aos amigos e companheiros de vida: Luís Gustavo
Viegas, Phillipe Smith, Israel Barros, Thiago Bridy, Paula Maeda e Ursula Lucas.
“You're wondering who I am -
machine or mannequin.
With parts made in Japan,
I am the modern man.”
(Dennis De Young – “Mr. Roboto”; 1982).
RESUMO

Este trabalho analisa obras de histórias em quadrinhos (mangás) e animação


(animês) produzidas no Japão entre a segunda metade do século XX e o início do
século XXI, com o objetivo de observar as relações de significação que essas obras
apresentam no que diz respeito à ciência e à tecnologia. Esta análise se mostra
importante se observarmos que o Japão possui forte papel histórico no
desenvolvimento e também no consumo de ciência e tecnologia durante o período
em questão, assim como desenvolveu nos mangás e animês uma representação
cultural marcante, que cativa enorme público no país. A partir das teorias da Análise
do Discurso, buscaremos compreender as relações que ocorrem entre o discurso
dessas obras de ficção e o da ciência e da tecnologia.

Palavras-chave: Mangá, animê, histórias em quadrinhos, animação, ciência,


tecnologia.
ABSTRACT

This work analyzes the text of some comic books (manga) and animation films
(anime) developed in Japan between the second half of the 20th and the beginning
of the 21st century, with the objective of observing the relations of meanings that
these works show when related to science and technology. This analysis becomes
important if we consider that Japan is a strong icon as a developer and also as a
consumer of science and technology during that role period, at the same time
developing manga and anime as a strong cultural representation, which captivates a
huge public in the country. Using the theories of the discourse analysis, we will look
forward to understand the relationships that take place between the discourse of that
science fiction works and the discourse of science and technology.

Key-words: Manga, anime, comic books, animation films, science, technology.


SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO........................................................................................ 11
2. OBJETIVOS............................................................................................ 14
2.1. OBJETIVO GERAL.............................................................................. 14
2.2. OBJETIVOS ESPECÍFICOS................................................................ 14
3. TEORIA E MÉTODO.............................................................................. 15
4. CORPUS................................................................................................. 17
5. POSIÇÃO HISTÓRICO-SOCIAL DAS HQs E ANIMAÇÃO................... 18
5.1 BRASIL E ESTADOS UNIDOS..............................................................19
5.2. JAPÃO................................................................................................. 27
6. CONTEXTO HISTÓRICO DO SURGIMENTO DO MANGÁ.................. 36
7. O DISCURSO CIENTÍFICO.................................................................... 38
7.1. O QUARTETO FANTÁSTICO.............................................................. 42
7.2. O INCRÍVEL HULK.............................................................................. 43
7.3. HOMEM-DE-FERRO............................................................................45
8. A CIÊNCIA E A FICÇÃO........................................................................ 46
9. INTRODUÇÃO ÀS ANÁLISES............................................................... 49
10. O PODEROSO ÁTOMO....................................................................... 49
11. SIMPATIA PELOS ROBÔS.................................................................. 57
12. PERCEPÇÕES DE UM NOVO SÉCULO............................................. 62
13. AKIRA................................................................................................... 63
13.1. AKIRA (PERSONAGEM)................................................................... 64
13.2. TETSUO............................................................................................ 65
13.3. KANEDA............................................................................................ 66
13.4. ESPERS............................................................................................. 67
13.5. DOUTOR ONISHI.............................................................................. 68
13.6. CORONEL SHIKISHIMA.................................................................... 69
14. COMPLEXO DE DESTRUIÇÃO........................................................... 70
16. GHOST IN THE SHELL....................................................................... 72
16.1. MAJOR MOTOKO KUSANAGI.......................................................... 75
16.2 BATOU............................................................................................... 76
16.3. TOGUSA............................................................................................ 77
16.4. TACHIKOMAS................................................................................... 78
16.5. ANTAGONISTAS............................................................................... 79
17. OS REFLEXOS DA FICÇÃO NA PRODUÇÃO CIENTÍFICA............. 80
18. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................ 81
REFERÊNCIAS ......................................................................................... 87
ANEXOS..................................................................................................... 91
ANEXO A – ASTRO BOY VOLUME 1 (AMOSTRA)................................... 92
ANEXO B - GHOST IN THE SHELL 1 (AMOSTRA) ……………..…….... 104
11

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa compreender, na sociedade japonesa, a relação


que se estabelece entre a ciência e tecnologia e as formas de expressão artísticas:
as histórias em quadrinhos (mangás) e desenhos animados (animês).
Na sociedade contemporânea, segundo Lyotard (1979), mais que em
outro momento da história, observa-se que as transformações de ordem cultural
devem-se, em primeira instância, aos avanços tecnológicos, sendo que a produção
de conhecimento científico-tecnológico, numa sociedade como a nossa, se faz
presente na própria construção da linguagem:

O saber científico é uma espécie de discurso. Ora, pode-se dizer que


há quarenta anos as ciências e as técnicas ditas de vanguarda
versam sobre a linguagem: a fonologia e as teorias lingüísticas, os
problemas de comunicação e a cibernética, as matemáticas
modernas e a informática, os computadores e suas linguagens, os
problemas de tradução das linguagens e a busca de
compatibilidades entre linguagens-máquinas, os problemas de
memorização e os bancos de dados, a telemática e a instalação de
terminais “inteligentes”, a paradoxologia: eis aí algumas provas
evidentes, e a lista é exaustiva.

Partindo daí, dessa relação entre ciência e linguagem, Tucherman (2004)


propõe que o estilo que caracteriza a nossa sociedade teria sua inspiração nas
narrativas e nos filmes que convencionamos classificar como sendo ficção-científica.
Segundo ela, na atualidade, estaríamos irremediavelmente próximos dos temas que,
“desde o Frankenstein de Mary Shelley de 1815, considerado como o primeiro
romance de ficção-científica, até os filmes como a trilogia Matrix dos irmãos
Wachowski ou as realizações de David Cronenberg, fazem a definição desta mesma
expressão: ficção-científica”.
Essa relação entre sociedade, ciência e revistas em quadrinhos é
abordada por Gonçalves (2008), que diz:

A ciência e o seu desenvolvimento tecnológico têm papel preponderante


numa sociedade como a nossa e a sua influência pode ser sentida nas
mais variadas esferas sociais: política, educacional, midiática, dentre outras.
(...) Nas histórias em quadrinhos a ciência vai aparecer como um dos
elementos, possivelmente, constitutivos desta forma de expressão artística.
Segundo Vergueiro (2004), em sua relação com a ciência, as HQ retratam,
12

por um lado, como um ideal de perfeição a ser atingido, e, por outro, como
uma ameaça sempre presente, da qual não se pode fugir.

As HQ, assim, enquanto expressão artística, têm uma relação com a


ciência e a tecnologia, elementos determinantes da conjuntura contemporânea.
A escolha pelo trabalho de pesquisa que engloba tanto a análise dos
mangás quanto dos animês se justifica pelo caráter integrado dessas duas formas
de expressão artística na cultura japonesa. Um importante ponto a ser observado é
a maneira como contemporaneamente, se reproduz uma mesma obra em diferentes
mídias.
Nos Estados Unidos, ainda na primeira metade do século XX, quadrinhos
de sucesso eram adaptados para séries de rádio e TV, incluindo desenhos
animados. A obra original é adaptada por diferentes autores para ser retransmitida,
sofrendo geralmente alterações no desenvolvimento de sua história, podendo ou
não se prolongar além do original. Tomando o personagem Superman como
exemplo, basta considerar suas inúmeras séries televisivas e os diferentes
personagens que surgem em cada uma delas, assim como as diferentes histórias
concebidas para estes personagens a cada adaptação da obra. Na indústria de
quadrinhos japonesa essas adaptações também existem, mas são poucas as obras
que chegam a sofrer grandes alterações quando convertidas para o formato de
animê como destaca Lima de Faria (2007):

Uma característica marcante das séries de animês, bem diferente da


maioria das animações ocidentais, é a serialização. Ou seja, a história
continua de um capítulo para outro e tem fim, sendo muitas vezes exibidas
em temporadas como as sitcom ocidentais. Além de serializadas, nas
histórias dos animês e mangás o tempo não pára. Diferentemente dos
desenhos e quadrinhos americanos, nos quais os heróis têm sempre a
mesma idade e as histórias podem não se alterar com o tempo sendo até
intermináveis, nas produções japonesas as histórias acabam. Não só isso,
os personagens sofrem os efeitos do tempo, como em Dragon Ball, em que
o personagem Goku começa criança, cresce casa, tem filhos, envelhece e
morre.

Em seu livro “Mangá – Como o Japão Reinventou os Quadrinhos”,


Gravett (2004) comenta que tal aspecto dos mangás e animês pode ser fruto de um
maior controle do autor sobre sua obra, pois, enquanto na indústria americana os
direitos sobre um personagem passam a pertencer majoritariamente à editora –
sendo que histórias de um mesmo personagem são escritas e desenhadas por um
número infindável de artistas no decorrer dos anos -, na indústria japonesa o
13

mangaká (autor de mangás) costuma roteirizar e desenhar sua série do início ao


final (mesmo que conte com uma equipe de assistentes e editores).
Com isso podemos observar a integração, mencionada anteriormente,
entre os mangás e animês, aspecto esse que fica ainda mais perceptível se
considerarmos a estética e a narrativa cinematográfica dos mangás, em que muitos
elementos parecem ser importados do cinema para transmitir a idéia de
dinamicidade, movimento.
Gostaríamos de destacar que tanto as HQs quanto a ciência e a
tecnologia vão ser considerados neste trabalho como discursos, ou seja, como
“espaços históricos e ideológicas de onde emergem as significações através de sua
materialidade que é a linguagem” (MARTINS, 2004). Dessa perspectiva, os sentidos
formulados por estes discursos não são transparentes nem naturais, ou seja, são
determinados por uma conjuntura histórica, política, econômica da sociedade
japonesa que, à sua maneira, produz conhecimento científico e o ressignifica nos
mangás e nos animês. De tal modo, traremos para essa discussão a Teoria da
Análise do Discurso de linha francesa, pensada por Michel Pêcheux (1969, 1975) e
desenvolvida no Brasil por Eni Orlandi (1988, 1992, 1999).
14

2. OBJETIVOS

2.1. OBJETIVO GERAL:

Compreender o modo como se dá formulação do conhecimento


científico na sociedade japonesa quando da sua relação com as formas de
expressão artística: os mangás e os animês.

2.2. OBJETIVOS ESPECÍFICOS:

- Compreender a conjuntura histórica e política do Japão a partir do


final da segunda guerra mundial e a produção científica e tecnológica que surge a
partir dessa época;

- Analisar as condições de produção dos discursos dos quadrinhos


brasileiros e norte-americanos e dos mangás e dos animês;

- Analisar a relação da cultura japonesa e com as histórias em


quadrinhos;

- Através da análise de mangás e animês de grande repercussão,


compreender como se dão as significações da ciência e da tecnologia nesse espaço
da expressão artística;

- Observar o fenômeno da influência do discurso dos mangás e animês


na própria produção da ciência e da tecnologia, e suas significações sociais.
15

3. TEORIA E MÉTODO

Este trabalho utiliza a Análise do Discurso de linha francesa proposta por


Michel Pêcheux (1969, 1975) como teoria e método de estudo. A Análise do
Discurso (AD) propõe como objeto de “discurso” que, segundo Pêcheux (1975), é
“um efeito de sentido entre interlocutores”, pois o autor entende que o significado de
qualquer material de linguagem é determinado por suas condições materiais de
existência, as quais são dinâmicas e relativas à história, às relações de poder da
sociedade.
A AD teve origem a partir da década de 1960, através de duas diferentes
escolas de pensamento. Uma delas foi desenvolvida pelo norte-americano Zalling
Harris (1969), atribuindo a sua metodologia de análise um caráter exclusivamente
lingüístico, ignorando os fatores históricos e sociais. Em contrapartida, a outra
escola de pensamento era defendida pelos franceses Jean Dubois e Michel Pêcheux,
compartilhando de argumentos baseados pela política para desenvolverem seu
método de Análise do Discurso.
Pêcheux introduziu sua proposta de análise do discurso com a
publicação de sua tese “Analyse Automatique du Discours”, no ano de 1969. Sua
proposta era a de confrontar diferentes campos das ciências, principalmente a
história, a psicanálise e a lingüística. A partir dessa junção de diferentes linhas
científicas ao analisar determinado contexto social vinculado a um objeto de estudo,
estaria constituída a Análise do Discurso. Sobre isso Fernandes (2007) afirma:

Desta feita, a episteme da Análise do Discurso origina-se, prioritariamente,


do entrecruzamento das três áreas do conhecimento científico supracitadas
(materialismo histórico, lingüística e teoria do discurso). Como atesta ainda,
Gregolin (2003), esses campos disciplinares articulados para a constituição
teórica da AD são atravessados por uma teoria subjetiva de ordem
psicanalítica, que traz o inconsciente para o interior de suas reflexões. O
lugar da Psicanálise é notório no que concerne às noções de sujeito
discursivo e de discurso.

A teoria proposta por Pêcheux é contemporânea à de outro francês:


Michel Foucault, que também propõe a terminologia “discurso”. Ambas as linhas
teóricas propõem romper com a exclusividade do foco da análise nos aspectos
lingüísticos estruturalistas, como fora proposto por Saussure (1914), no início do
16

século XX. Para este autor, a linguagem verbal podia ser entendida como dois
princípios distintos que ele denominou de “fala” e de “língua”. Para Saussure:

A língua é o produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de


convenções necessárias, adotadas pelo corpo social, para permitir o
exercício dessa faculdade nos indivíduos. Trata-se de um tesouro
depositado pela prática da fala em todos os indivíduos pertencentes à
mesma comunidade, um sistema gramatical que existe virtualmente em
cada cérebro ou, mais exatamente, nos cérebros dum conjunto de
indivíduos, pois a língua não está completa em nenhum, e só na massa ela
existe.

Já a língua, para o autor, “é a maneira individual e particular que cada ser


faz do uso da língua predominante em uma sociedade” (ARRUDA, 2004),
representando um elemento que pode ser isolado, como sendo de caráter
totalmente individual. Com essa divisão, sua proposta toma como objeto de estudos
da lingüística a “língua” pela Lingüística, enquanto a “fala” poderia ser analisada pela
Psicologia ou Antropologia, devido a sua característica de heterogeneidade.
A segunda área do conhecimento utilizada pela Análise do Discurso, o
Materialismo Histórico, considera que fatores econômicos e eventos dotados de
materialidade, como a produção industrial e desdobramentos históricos, é que
devem ser considerados relevantes para a observação da sociedade
contemporânea. Esta abordagem foi desenvolvida inicialmente por Karl Marx e
Friederich Engels, em meados do século XIX, no entanto tendo como seu principal
expoente o francês Louis Althusser, já no século XX. Este autor defende que a
ideologia deve ser observada como um conjunto de práticas de fundo material, e não
como algo exclusivo do abstrato campo de idéias.
Como último elemento desta tríade de áreas do conhecimento que
compõem a Análise do Discurso, temos a Psicanálise, fundada por Sigmund Freud,
na década de 1890. Porém, para a AD, considera-se como maior representante
desta área Jacques Lacan, que, já no século XX, associara os conceitos iniciados
por Freud a outros conceitos advindos da Lingüística. Assim, podemos dizer que
Freud utilizou conhecimentos da física e a biologia nos seus trabalhos e Lacan
utilizou a lingüística, a lógica matemática e a topologia. Lacan defendia que o
inconsciente se estrutura como a linguagem.
Ao utilizar-se destas diferentes correntes de pensamento em sua técnica
de análise, propondo o rompimento com a teoria sugerida por Saussure, Pêcheux
17

passa a considerar em seu método de análise os fatores subjetivos associados às


práticas sociais, à memória histórica e às ideologias, constituindo assim os
elementos que deveriam ser considerados para a compreensão de um discurso.
Segundo Pêcheux, sendo o discurso concebido como um sistema de
relações de sentido, o conceito de interdiscurso destaca-se no processo de
dessubjectivação da linguagem: o sentido de um texto geralmente não está
explicitado pelo seu autor, mas é antes o resultado das relações complexas dos
usos da linguagem com as formações discursivas. A distinção mais imediata dos
dois conceitos propostos por Pêcheux leva-nos a definir o interdiscurso como o
“discurso de um sujeito” e do intradiscurso como a matéria lingüística, ideológica,
literária, simbólica, etc. pré-existente, uma espécie de imagem já conhecida de uma
realização lingüística que qualquer sujeito pode reconhecer.
Esta imagem previamente estabelecida é definida como pré-construído -
traço identificado em qualquer formação discursiva e semelhante a ou funcionando
como um preconceito histórico que é do conhecimento geral, e a articulação, aquilo
que permite a um sujeito constituir-se como tal em relação àquilo com que se o
próprio discurso se constrói. Seguindo esses preceitos da Análise do Discurso se
desenvolvem as análises apresentadas neste trabalho.

4. CORPUS

Como material de análise, apresento três obras produzidas no Japão em


épocas distintas, a partir do final da Segunda Guerra. Todas foram publicadas tanto
na forma de mangás (histórias em quadrinhos em formato impresso) quanto na
forma de animês (desenhos animados, sejam filmes de longa-metragem ou seriados
de TV). É preciso destacar as diferentes formulações de sentidos determinadas
pelos diferentes meios de circulação das obras, ou seja, as diferentes mídias, por
exemplo, apresentam-se através de linguagens distintas e específicas para cada
formato e alcançam públicos diferenciados.
Além disso, apresentados através de uma linguagem imagética de forte
apelo, estes materiais constituem uma indústria extremamente popular em seu país
18

de origem, e desde as últimas décadas vêm alcançando também um enorme público


em outros países. Os mangás e animês abordam os mais variados temas, que vão
desde histórias com temáticas infantis até aquelas envolvendo, sexo, política e
ficção científica, temática esta que será discutida nessa pesquisa. Os mangás e
animês de ficção científica se utilizam do discurso da ciência para criar universos
lúdicos e polissêmicos criando assim uma relação de sentidos que se caracteriza
pela ressignificação do discurso da ciência nessa relação interdiscursiva.
Orlandi (1999) define o processo de construção do corpus como já sendo
resultado da interpretação do analista do discurso. Em outras palavras, o ato de
delimitar os elementos componentes do corpus já desencadeia a etapa inicial das
interpretações do discurso em questão. Considerando isto, este trabalho aborda o
discurso dos mangás e animês a partir de sua posição como objetos culturais de
uma forma de arte representativamente popular na sociedade em que estão
inseridos, atuando no processo de construção de um imaginário em torno de seus
temas, a partir das condições de produção e contexto histórico- social que lhe é
atribuído.
As obras que iremos analisar são os mangás e animês Astro Boy (Tezuka,
1952), Akira (Otomo, 1988) e Ghost in the Shell (Shirow e Oshii, 1989 a 2006). A
primeira destas obras era direcionada mais ao público infantil, enquanto as duas
últimas foram produzidas com enfoque em um público mais maduro sendo que suas
significações da ciência e da tecnologia serão aqui analisadas e discutidas.

5. POSIÇÃO HISTÓRICO-SOCIAL DAS HQs E ANIMAÇÃO

Segundo Orlandi (1999), podemos chamar de “condições de produção” os


diversos fatores que norteiam ou balizam a constituição de determinado discurso,
que definimos como o conjunto de aspectos históricos e sociais referentes à
produção deste discurso – seja ele uma obra artística, uma campanha publicitária,
ou qualquer material que se apresente enquanto linguagem.
Por esta definição, podemos considerar que os elementos envolvidos no
processo de formação do discurso estabelecem uma “relação de sentidos” com as
19

condições de produção. Cada ação ou reflexo de determinado fator social, político


ou econômico desencadeia um sentido que irá interferir, diretamente ou não, na
forma como o discurso será compreendido pelo sujeito leitor. Logo, essa relação de
sentidos, estabelecida pelas diferentes influências entrelaçadas, determina as
condições de sentido de um discurso. Ou seja, o discurso é algo cujo sentido é de
natureza complexa e heterogênea provocando diferentes interpretações em seus
leitores e é determinado por suas condições de produção.
O sujeito do discurso, tanto os autores e leitores dos mangás e animês
envolvidos no processo formulação de sentidos, da perspectiva discursiva não deve
ser considerado como “passivo”. Em outras palavras, considera-se que, ao contrário
do que é assumido por algumas teorias da Comunicação Social, não existe a figura
pré-estabelecida do “receptor” do discurso como alguém que somente recebe algo
pré-concebido e de sentidos homogêneos e solidificados. Do contrário, devemos
considerar que este integrante do processo de comunicação, outrora identificado
como simplesmente “receptor”, também é um agente no processo, com suas
percepções e indagações passando a atuarem como determinantes na concepção
do discurso, estabelecendo também parte da relação de sentidos a qual já
descrevemos.
A seguir, iremos analisar as condições de produção do discurso das HQ
em diferentes cenários: Brasil, Estados Unidos e Japão, a fim de compreendermos
como seu discurso materializa as diferentes culturas com seus aspectos históricos,
ideológicos e políticos distintos.

5.1 BRASIL E ESTADOS UNIDOS

Em um país como o Brasil, onde a indústria do entretenimento não


representa um elemento tão forte dentro de sua estrutura econômico-social.
Podemos constatar isso a partir de uma breve análise da força mercadológica que o
quadrinho nacional apresenta na atualidade, não sendo muito significativa se
compararmos a outros países. No Brasil, os quadrinhos mais populares se
desenvolveram no formato de tiras, publicadas primeiramente em jornais, quase
sempre com argumento social e político. Além dessa restrição, é bastante difundida
20

na sociedade brasileira a concepção de que as histórias em quadrinhos e animações


representam algo genuinamente – e até exclusivamente – voltado para o público
infantil. São poucas as produções nacionais dessa indústria que realmente
adquiriram status de ícone popular, estando presente no imaginário coletivo da
população. Considerando fatores como popularidade, vendagem e presença no
imaginário coletivo, o exemplo mais forte que podemos citar são as criações do
artista Mauricio de Souza: a Turma da Mônica (cujas histórias também foram
lançadas inicialmente em 1959 no formato de tiras) e publicações associadas ao
mesmo universo fictício. Reafirmando a constatação feita acima, estes quadrinhos
são voltados para o público infantil, e dificilmente podemos identificar outra produção
nacional que tenha alcançado o mesmo patamar de reconhecimento do público.

1
Figura 1 – Turma da Mônica. Fonte: Maurício de Souza Produções (2008).

Exemplificando este cenário através de dados, podemos citar a pesquisa


realizada em 1967 (MELO apud RAMOS, 2008): naquele ano, 70% das obras
vendidas nas bancas brasileiras tinham material estrangeiro. Esse número, hoje, é
maior, de acordo com pesquisa realizada em 2007 (RAMOS, 2008). 84,1% das
revistas de banca têm conteúdo importado de outros países, principalmente Estados
Unidos e Japão. Das 15,9% revistas com histórias nacionais, todas são infantis.
No entanto, não podemos dizer que as histórias em quadrinhos atuam
como uma autêntica representação da herança cultural tipicamente brasileira. Se

1
O “universo” Turma da Mônica representa a marca de quadrinhos mais popular e longeva do Brasil,
sendo publicada desde o final da década 1950, adaptando-se às mudanças do imaginário infantil.
21

formos considerar este aspecto de quais nações teriam atuado como vanguardas
para o desenvolvimento dessa forma de arte, é obrigatório citar os Estados Unidos,
onde a estética e a linguagem dos quadrinhos foi adquirindo forma.
De acordo com Jones (2006), durante a virada do século XIX para o XX,
com a chegada de imigrantes europeus à região de Nova York, diversos novos
negócios começaram a surgir, muitas vezes interligados ao funcionamento de uma
complexa máquina de dinheiro, que envolvia mafiosos, empresários e políticos.
Dentre esses negócios que conseguiram se impulsionar a partir da movimentação
elevada de capital que se desenvolvia na região, estavam algumas das primeiras
editoras que viriam a se tornar as gigantes da publicação de quadrinhos.
Até a primeira metade do século XX, essa indústria já havia se
desenvolvido vertiginosamente, e seus produtos – fossem quadrinhos de super-
heróis, aventura, humor, horror ou outros gêneros – já haviam apresentado ao
público personagens que logo foram adotados como legítimos representantes da
cultura daquele país. Super-Homem, Homem-Aranha, Flash Gordon, Capitão
América, Mickey Mouse... a lista de criações que se tornaram conhecidas e
reconhecidas mundo afora é extensa.
Poderíamos imaginar que, devido a essa boa aceitação do público norte-
americano com relação às histórias em quadrinhos e animações, estas produções
teriam se tornado mais bem aceitas e inseridas socialmente, a ponto de serem tão
difundidas quanto o cinema e a literatura. De fato, essa condição é bem mais
favorável se comparada a países onde essa indústria não apresentou o mesmo
desenvolvimento, como é caso do Brasil. Porém, uma série de acontecimentos na
década de 1950 veio interromper o processo de crescimento desse setor cultural nos
Estados Unidos, que estava, até então, em explosiva ascensão.
Durante a Segunda Guerra, os quadrinhos (e até mesmo desenhos
animados de Walt Disney) foram utilizados como ferramenta de propaganda
ideológica nacionalista norte-americana. Os personagens que já eram tidos como
ícones culturais foram então colocados em tramas em que enfrentavam o vilão
nazista, que era bastante caricato. Esse vínculo feito com o orgulho patriótico norte-
americano impulsionou ainda mais as vendas e a popularidade dos quadrinhos.
22

2
Figura 2 – Demolidor Combate Hitler. Fonte: Marvel Comics (2008).

As editoras de histórias em quadrinhos, respaldadas pela aprovação


popular, passaram então a produzir publicações com uma carga maior de violência e
temas cada vez mais adultos e sinistros. Pode-se observar essa mudança gradual
como um processo de evolução que naturalmente ocorreria, tal qual foi com o
cinema. Surgiam histórias em quadrinhos que pareciam claramente destinadas a um
público mais maduro, que não poderia mais ser enquadrado na definição de “infantil”.
Eram histórias com uma carga maior de influências da realidade social daquela
época, apresentando crimes e violência de forma menos caricata do que nas
publicações que vinham sendo produzidas. No entanto, o imaginário fantástico não
havia sido deixado de lado, e também era explorado em publicações voltadas para o
horror, como Monstro do Pântano e Contos da Cripta, que mesclavam elementos
fantasiosos ao grotesco e macabro.

2
Capa da primeira edição da HQ “Daredevil Comics” (1941), apresentando a história “Demolidor combate
Hitler”, na qual super-heróis e soldados combatem o ditador nazista.
23

3
Figura 3 – Crime Does Not Pay. Fonte: Lev Gleason (2008)

Essa crescente liberdade editorial acabou incomodando uma parte mais


conservadora da população do país. Começaram a se desenvolver debates a
respeito do conteúdo dos quadrinhos. Foi então que surgiu a figura do psiquiatra
Fredric Wertham, importante agente no que viria a ser a censura à qual os
quadrinhos seriam submetidos. De acordo com Jones (2006):

A voz mais alta e convincente tinha sotaque alemão. A edição de março


de 1948 da Collier’s trazia uma entrevista intitulada “Horror no Berçário”
com um psiquiatra chamado Fredric Wertham. Ele tinha credenciais
excelentes, tanto como pesquisador como clínico, e na época estava
terminando seu terceiro livro, The Show of Violence, sobre os fatores
ambientais que levavam as crianças ao crime violento. Na entrevista,
Wertham declarou que os gibis eram a maior e mais perniciosa influência
sobre os jovens americanos. O argumento não era novo, mas Wertham
possuía o que faltava aos outros críticos indignados: dados e teoria. Ele
tinha uma clínica psiquiátrica no Harlem e declarou que via uma
correlação assustadora entre aquela leitura e a delinqüência juvenil. Podia
citar casos específicos de crimes por imitação, nos quais crianças e

3
Capa de “Crime Does Not Pay” (O crime não compensa), publicada a partir de 1942. A violência
explícita era o ponto alto da publicação, que supostamente contava histórias baseadas em casos
reais.
24

adolescentes haviam cometido roubos, assaltos e até mesmo


assassinatos exatamente da forma como haviam visto em gibis populares.

Nos dias de hoje, Fredric Wertham é considerado por muitos como um


sensacionalista cujo maior objetivo seria tirar proveito do choque da opinião pública
para vender seus livros, apresentando constatações alarmistas que seriam
supostamente baseadas em pesquisas científicas realizadas por ele mesmo.
Wertham publicou então o livro “A sedução do inocente”, abordando a influência
negativa que as histórias em quadrinhos exerciam nos jovens. Como a sociedade se
encontrava em um estágio em que tentava compreender o rápido crescimento da
popularidade daquela nova mídia, a chegada de um dito especialista denunciando
graves perigos decorrentes das HQs encontrou um cenário propício para que a
dúvida e a paranóia fizessem efeito. Para compreendermos melhor essa realidade,
podemos observar o que ocorre atualmente com outra mídia também nova e em
impressionante popularização: os videogames, também condenados como
causadores de influências negativas por muitos críticos.
As conseqüências da publicação em larga escala deste livro
popularizaram ainda mais a figura de Wertham, que passou a freqüentar programas
de entrevistas pregando seus pontos de vista contrários à publicação das HQs. Suas
análises, apresentadas em seus pronunciamentos e em seu livro, constatavam
diversas características nas HQs que, conforme defendia, deturpavam a formação
moral dos jovens leitores.

Em 1954, quando Sedução do Inocente, do Dr. Fredric Wertham, foi


publicado, iniciou-se uma reação social. Pela primeira vez uma série de
ilustrações típicas de revistinhas de histórias de crimes despertou a
atenção dos pais, cientistas e de outros adultos. Muitas pessoas, pela
primeira vez, passaram a ter conhecimento do que contém as “revistinhas”.
Foi, também, mostrada a prova clínica e científica dos efeitos resultantes
da leitura das histórias de crimes das revistinhas. Uma mudança ocorreu.
Diminuiu o assassinato nas revistas, bem como o número de editores. É
verdade que títulos de crimes (não histórias) diminuíram e não eram
expostos na capa. As histórias de assassinatos realistas, em ambientes
urbanos, tornaram-se menos freqüentes. O crime e a violência ainda
reinam supremos, embora freqüentemente disfarçados. A partir dessa
controvérsia, foi estabelecido o Código de ética das HQ (ABBADE, 2008).

Devido à enorme pressão pública, as editoras se reuniram então para


criar o Comics Code Authority (ou Comic Book Code), acima mencionado no texto
do jornalista Mário Abbade. No mesmo ano da publicação do livro A Sedução do
25

Inocente (1954), o código foi estabelecido, definindo diversas restrições às temáticas


das HQs. Abaixo seguem trechos do Comics Code Authority (1954):

• Crimes nunca devem ser apresentados de maneira que estimulem


simpatia pelos criminosos, desconfiança nas forças da lei e da justiça, ou
que inspirem nos leitores o desejo de imitar os criminosos.
• Se o crime for retratado, ele deve estar como uma atividade sórdida e
desagradável.
• Criminosos nunca devem ser apresentados de forma glamorosa ou
ocupando uma posição que provoque desejo de emulação.
• Em todas as situações, o bem deve triunfar sobre o mal e os
criminosos devem ser punidos por seus crimes.
• Cenas de violência excessiva devem ser proibidas. Cenas de tortura
brutal, excessiva e desnecessário manuseio de armas de fogo e facas,
agonia física e crimes sangrentos devem ser eliminados.
• Nenhuma publicação de quadrinhos deve usar as palavras “horror” e
“terror” em seus títulos.
• Todas as cenas de horror, sangue excessivo, crimes sangrentos,
depravação, luxúria, sadismo e masoquismo não devem ser permitidas.
• A inclusão de histórias lidando com o mal devem ser usadas ou
publicadas somente quando a intenção for ilustrar uma lição moral e em
nenhum momento o mal deve ser representado de forma cativante, nem de
forma que possa agredir a sensibilidade do leitor.
• Cenas lidando com, ou instrumentos associados a mortos-vivos,
tortura, vampiros e vampirismo, fantasmas, canibalismo e lobisomens estão
proibidos.
• Profanação, obscenidade, pornografia, vulgaridade, ou palavras e
símbolos que tenham adquirido sentidos desagradáveis estão proibidos.
• Nudez de qualquer forma está proibida, assim como exposições
excessivas e indecentes.
• Ilustrações ou posturas sugestivas e lascivas são inaceitáveis.
• Mulheres devem ser desenhadas realisticamente sem exageros em
quaisquer qualidades físicas.
• Relações sexuais ilícitas não devem ser sugeridas e nem retratadas.
Cenas violentas de relacionamentos amorosos, assim como anomalias
sexuais, são inaceitáveis.
• Sedução e estupro nunca devem ser mostrados ou sugeridos.
• Perversão sexual ou qualquer inferência semelhante estão
estritamente proibidas.
• Nudez com propósitos imorais e posturas lascivas não devem ser
permitidas nos anúncios de produto algum, figuras vestidas nunca devem
ser apresentadas de forma que sejam ofensivas ou contrárias à moral e
aos bons costumes.

A implantação do código resultou na infantilização de praticamente todas


as HQs que continuaram a ser publicadas, e no cancelamento de muitas outras, cuja
temática era impossível de ser abrandada para se adequar ao novo código. Isto
resultou em um esforço tremendo das editoras para reconquistar a simpatia do
público, e para isso investiram maciçamente na proposta de empregar nos roteiros
das HQs temáticas leves, de tom familiar e sempre evitando discursos mais
polêmicos ou maduros. As publicações norte-americanas estavam fadadas então a
uma roupagem simplista, dicotômica, com personagens ainda mais superficiais e
26

caricatos, distanciando-se bastante da liberdade criativa que a literatura e o cinema


possuíam. Passaram então a se tornar um produto consumido predominantemente
pelo público infantil, o que voltou a indústria de produtos relacionados também para
este nicho.
A liberdade editorial nas histórias em quadrinhos norte-americanas só
veio a ser reconquistada cerca de três décadas depois. Com o estrago já feito nas
narrativas de suas publicações, grandes editoras como a Marvel e a DC Comics aos
poucos iam reconstruindo seus universos fictícios. Surgiam novos escritores e
artistas, responsáveis por incorporar elementos mais adultos, sombrios e/ou realistas
nas histórias e na estética das obras. A partir dessa reestruturação, as histórias em
quadrinhos passaram novamente a atuar como uma representação artística de fácil
identificação pelos jovens da época, sendo adotadas como parte de seu colóquio
psicocultural.
Entretanto, por mais que a indústria dos quadrinhos – e
conseqüentemente, da animação – norte-americana tenha recuperado seu fôlego no
mercado e na sociedade, nunca mais ela alcançaria o status de aceitação entre
intelectuais, críticos e pessoas “não-iniciadas” na leitura desse tipo de obra que
poderia ter alcançado caso o desenvolvimento de sua arte não houvesse sido
interrompido por décadas. As HQs e animações com temáticas mais adultas
passaram a ser produtos consumidos por nichos específicos, ainda que
relativamente numerosos (85 milhões de cópias vendidas por mês em 2007, de
acordo com o site Comichron), tornando-se um produto ignorado por muitos.
Poderíamos dizer que essa indústria somente ganhou um novo impulso, ajudando a
popularizar um pouco mais suas obras, durante a primeira década de 2000, com o
sucesso de adaptações cinematográficas de HQs como Homem-Aranha e X-Men.
27

5.2. JAPÃO

Para entendermos a importância dos quadrinhos e dos desenhos


animados na sociedade japonesa, é primordial destacarmos nas suas condições de
produção dois fatores que são enfatizados freqüentemente por críticos e estudiosos
da área: a ausência de uma censura ou forte regulamentação da produção de
quadrinhos no país e o possível caráter “pictórico” da linguagem asiática, que
auxiliaria na formulação do estilo atribuído aos mangás.
Segundo Gravett (2004), traçando uma linha do tempo em que possamos
analisar o desenvolvimento da forma dos mangás e animês, devemos mencionar o
surgimento de gravuras populares ainda no século XVII. Assim como na Inglaterra
surgiam as tiras políticas, no Japão e na China surgiam essas ilustrações que já
apresentavam uma arte caricata, retratando seres humanos e a realidade de forma
humorística, possuindo também, em muitos casos, representações narrativas,
contando pequenas histórias.
No entanto, sobre este tipo de arte, quando desenvolvida no Japão, muito
é mencionado sobre a forte relação de simbiose entre os caracteres de seu idioma e
as ilustrações em si. Diferentemente do alfabeto ocidental, utilizado nos quadrinhos
brasileiros, norte-americanos e europeus, os ideogramas japoneses são literalmente
desenhos que tentam representar idéias ou figuras, e não fonemas. Seria então
esperado que representações gráficas de desenhos estejam desde sempre
presentes no cotidiano do japonês. Essa constatação nos permite fazer a relação
entre o aspecto extremamente visual dos caracteres do idioma e a própria arte dos
mangás, resultando em uma relação mais simbiótica entre imagem e texto, na qual
interagem como sendo algo mais do que complemento um do outro, mas sim como
objetos cuja leitura é realizada de forma semelhante. A flexibilidade visual dos
caracteres japoneses tenderia a permitir uma percepção específica do leitor que
possui a linguagem japonesa como seu padrão, diferentemente da dicotomia texto-
imagem que ocorre na leitura ocidental, visto que o texto japonês, em termos crus,
pode ser considerado imagem (no sentido de representar idéias graficamente).
28

4
Figura 4 – Street Fighter Alpha. Fonte: Capcom (2008)

Esses materiais produzidos a partir do século XVII são considerados por


muitos como “ancestrais” dos mangás, ou seja, teriam exercido forte influência na
linguagem e estética dos mesmos. No entanto, alguns estudiosos propõem que essa
herança da linguagem nipônica podem ter vindo de muito antes, como Napier (2005)
comenta:

A maioria dos especialistas em mangá diz que as origens do formato


viriam pelo menos do período Edo (1600-1868), e alguns vêem estas
origens ainda antes disso, nas ilustrações Zen do período medieval e
retratações cômicas de animais no século X. Certamente, trabalhos do
período Edo têm imagens que aparentam ter ligações diretas com o
mangá e com o animê, particularmente com o kibyoshi, livros ilustrados de
conteúdo humorístico e/ou erótico, e as pinturas em blocos de madeira
conhecidas como ukiyo-e, que retratavam não somente atores e cortesãs,
mas também, com o passar do tempo, elementos grotescos e imaginativos
como demônios, fantasmas em uma espécie de pornografia extremamente
criativa.

Um dos artistas mais reconhecidos como forte influência para os mangás


modernos do século XX foi Katsushika Hokusai, nascido em 1760. Especialista na
arte da pintura chinesa, Hokusai desenvolveu um estilo próprio marcante. Muitas de
4
Páginas do mangá Street Fighter Alpha, onde caracteres do idioma japonês são utilizados como
elementos gráficos que complementam a idéia de dinâmica dos desenhos de cenário e personagens.
29

suas gravuras apresentavam narrativa, contando eventos de forma linear. Muitos


dos elementos gráficos lançados por ele podem ser encontrados imersos na estética
dos mangás atuais, o que demonstra a forte herança cultural e histórica que os
quadrinhos japoneses apresentam. Tal influência aparenta estar presente nas obras
dos autores contemporâneos, visto que em muitas escolas de mangá no país a arte
de pintores como Hokusai é aplicada em sala de aula como exercício para o
desenvolvimento da técnica do mangaká.

Figura 5 – Ilustração de Hokusai. Fonte: The Tokyo Metropolitan Art Museum (2008).

Figura 6 – La Blue Girl. Fonte: Daiei Co. (2008)


5
Figura 7 – Heroes For Hire. Fonte: Marvel Comics (2008)

5
No topo, ilustração de Hokusai, feita durante a primeira metade do século XIX. À esquerda, capa de
um animê erótico (hentai) do gênero “tentacle”, muito comum no Japão. À direita, ilustração de uma
HQ norte-americana da editora Marvel Comics influenciada pelo estilo japonês.
30

Para compreendermos melhor o estágio inicial da história dos mangás,


citemos o texto de Gravett (2004), abordando a criação do termo “mangá" por
Hokusai:

Então o que a palavra mangá pode ter significado para o artista


Katsushika Hokusai em 1814, quando ele inventou o termo? Significava
rascunhos mais livres, inconscientes, nos quais ele podia brincar com o
exagero, a essência da caricatura. Hokusai nunca incluiu a narrativa em
seus rascunhos, mas, se estivesse vivo hoje, poderia reconhecer no
mangá moderno um pouco do gosto pelas expressões grotescas, pela
comédia física e pelo desenho sem inibições.
O mangá, da forma como o conhecemos hoje, evoluiu dos esforços de
uma série de pioneiros que adaptaram as influências ocidentais recém-
importadas durante a modernizadora era Meiji e períodos subseqüentes.

Com a chegada dos visitantes ocidentais na era Meiji, chegavam também


os primeiros materiais de quadrinhos no país, justamente através das tiras de sátira
político-social. Estes materiais passaram a circular de mão em mão no país e, vistos
como uma agradável novidade por muitos, devido ao seu aspecto lúdico,
começaram a surgir as primeiras produções japonesas que tentavam copiar o
formato de histórias em quadrinhos, com balões de fala e a divisão de cenas por
quadros.
No entanto, o mangá moderno surgiria durante a crise japonesa depois da
Segunda Guerra, especificamente através da obra de Osamu Tezuka. Apesar de as
chamadas “técnicas cinematográficas” – referentes a ângulos de imagem, sugestões
de movimento e outros recursos cujo objetivo é tornar a trama algo dinâmico – já
serem empregadas nas HQs ocidentais, Tezuka, por ser um grande cinéfilo, aplicou
tais técnicas em níveis mais detalhados. Mesclando elementos de desenhos de Walt
Disney e outros artistas ocidentais de desenhos animados e HQs com a arte
japonesa, que vinha se desenvolvendo até então, Tezuka definiu a estética dos
mangás que influenciaria os autores contemporâneos seus e das gerações
seguintes.
Nos quesitos narrativa e conteúdo, a obra de Tezuka também foi
fundamental para o impulso da indústria do mangá. Fortemente inspirado por
clássicos da literatura e pelo cinema ocidental, o autor abordou uma diversidade
enorme de temas, sempre colocando seus personagens, que eram desenhados em
aspecto caricato e infantil (já apresentando os característicos “olhos grandes” do
31

estilo), em situações de dilemas morais e bastante dramáticas – o que já ia


totalmente de encontro à idéia de que os quadrinhos fossem algo exclusivamente
destinado ao público infantil.

6
Figura 8 – A Nova Ilha do Tesouro. Fonte: Osamu Tezuka (2008)

6
Layout original de páginas do mangá “A Nova Ilha do Tesouro” (Shin-Takarajima, 1947), de Osamu Tezuka.
Diferentes ângulos de cinema são empregados como técnica narrativa.
32

As publicações assinadas por Osamu Tezuka logo conquistaram o público


japonês. Outros autores do país foram influenciados pelo novo estilo e, motivados
pelo clima de depressão pós-Segunda Guerra, os editores se viram entusiasmados
a promover essa nova indústria que mostrava ganhar a simpatia do público. Os
japoneses precisavam de uma válvula de escape, e foi através do mundo de fantasia
dos mangás e dos discursos de progresso e recuperação do governo que esses
leitores buscaram motivação para lidar com a realidade daquele difícil momento.
Dentro de poucos anos, surgiram mangás dos mais diversos gêneros,
voltados tanto ao público infanto-juvenil quanto ao público adulto. Nas palavras de
Luyten (2000):

Os mangás do pós-guerra não exploraram o tema bélico, como foi feito em


outros países, por uma única razão: o Japão hoje é a única grande nação
do mundo a ter uma cláusula em sua Constituição renunciando à guerra
para sempre e proibindo a manutenção de forças de combate aéreas,
navais ou terrestres.
Houve uma explosão de novos temas, e a canalização para a
agressividade foi dirigida para as histórias que focalizavam certos esportes,
como o boxe e a luta livre, mais afeitos à descarga de hostilidade.

A “cláusula de renunciação à guerra” a que Luyten se refere foi parte das


diversas mudanças realizadas durante o período em que o Japão esteve sob
orientação norte-americana, através da ocupação militar no país logo após o
resultado da Guerra. De fato, apesar de ter sido um período turbulento, muitos
historiadores consideram que as mudanças sofridas pelo Japão nesta época foram
responsáveis por uma maior aproximação do país à realidade ocidental. Foi durante
este período que se iniciou o “intercâmbio” de técnicas de produção entre Estados
Unidos e Japão, resultando no aprimoramento tecnológico do segundo, assim como
a entrada de seus produtos no mercado ocidental.
Uma destas novas técnicas que chegou ao “país do sol nascente” foi a
técnica de produção de desenhos animados. Sendo assim, o mangá Astro Boy
(Tetsuwan Atom, publicado de 1952 a 1968), de autoria de Osamu Tezuka, foi
adaptado para uma série animada em 1963, tornando-se o primeiro animê a ser
produzido. A série foi um sucesso e novamente uma criação de Tezuka impulsionou
o crescimento de um novo nicho de arte popular no país – que desta vez era a
animação. O artista seria apelidado nos anos seguintes de “Walt Disney japonês”,
33

tamanho foi seu vanguardismo nessa indústria, além das semelhanças do universo
lúdico que ambos criaram.

7
Figura 9 – Astro Boy. Fonte: Osamu Tezuka (2008)

É nesse ponto da história que podemos melhor observar o porquê de a


indústria de quadrinhos e animação ter se desenvolvido de forma diferente no Japão
quando comparada aos Estados Unidos. No Japão dos anos 60, Astro Boy
conquistava as telas domésticas japonesas, com sua trama que abusava de
elementos sérios e dramáticos causando reflexões no público com relação às
contraditórias possibilidades da ciência. Na mesma época, os Estados Unidos
passavam pela censura de suas revistas em quadrinhos e de seus desenhos
animados que eram, em sua maioria, comédias voltadas ao público infantil.
Enquanto a indústria norte-americana crescia dentro dos limites impostos
por seus códigos de conduta, o público japonês demonstrou enorme simpatia pelos
quadrinhos e animações. É importante lembrar que desde seu início até os dias de
hoje, os mangás são publicados em papel jornal, em preto e branco ou utilizando

7
O “menino-robô” Astro Boy – o Pinóquio tecnológico criado por Osamu Tezuka é um dos
personagens mais adorados até os dias de hoje pelo público japonês.
34

algumas poucas páginas coloridas por edição, o que barateia os custos e permite
uma enorme produção para atender ao público. Já a indústria de animação japonesa
se desenvolveu tão intensamente no decorrer da segunda metade do século XX,
que se tornou comum a prática de terceirizar a produção de séries e longas
ocidentais para estúdios asiáticos, devido ao nível de técnica que estes adquiriram.
No caso específico do Japão, muitos consideram que a indústria de
animês representa para este país o mesmo que a indústria de filmes de Hollywood
representa para os Estados Unidos na atualidade. Para exemplificar esta
comparação, podemos citar o fato de que no ano de 2008, o filme “Batman – O
Cavaleiro das Trevas”, após uma extensiva campanha de marketing que durou mais
de um ano, bateu recordes de bilheteria em sua estréia por diversos países
ocidentais, incluindo Estados Unidos e Brasil. No entanto, em sua estréia no Japão,
foi derrotado nas bilheterias pelo longa animado “Gake no Ue no Ponyo” (dirigido por
Hayao Miyazaki, vencedor do Oscar de animação pelo filme “A Viagem de Chihiro”,
em 2002). Vinte dias após a estréia simultânea dos dois filmes no país, o longa de
Batman arrecadou 8,7 milhões de dólares, enquanto o animê arrecadou 93,2
milhões de dólares (MELLO, 2008) – uma diferença expressiva que mostra o quanto
essas produções são bem aceitas pelo público japonês.
Outro fator que podemos citar para justificar o amadurecimento das obras
de mangá e animê seria o modo como são produzidas estas obras. Novamente
traçando um paralelo com a produção norte-americana, neste país geralmente os
personagens e títulos passam a pertencer a uma editora, como é o caso da Marvel e
da DC Comics que publicam histórias de personagens como Homem-Aranha,
Batman e Superman desde sua criação. As publicações de personagens como estes
passam pelas mãos de diversos roteiristas e artistas gráficos no decorrer dos anos,
sendo que diferentes histórias do mesmo personagem chegam a ser publicadas
simultaneamente produzidas por autores diferentes. Isto enfatiza o status destas
obras como produtos, submetendo-as a diversas descaracterizações e à falta de
continuidade, pois não há “início-meio-fim” determinado.
Na indústria japonesa, uma obra costuma ser assinada por seu criador
que conta a história seguindo uma linha de continuidade única – que um dia acaba
chegando ao final, seja a série de curta ou longa duração. Com relação ao desenho,
o traço do autor define o estilo único a ser adotado durante toda a obra, e seus
assistentes devem desenhar seguindo o mesmo estilo. Considerando estes
35

aspectos da construção da identidade de uma obra, podemos observar que os


mangás se aproximam mais da literatura neste sentido do que dos comics norte-
americanos, o que resulta em produções de caráter mais autoral – algo que somente
é visto na indústria americana nas chamadas graphic novels, consideradas
popularmente como os “quadrinhos para adultos”, o que novamente reforça a
resistência com relação às HQs na sociedade ocidental, oposto à maior penetração
social que essas obras (assim como as animações) exercem no Japão.
A partir do exposto, observamos que o contexto histórico em que se
desenvolveram no Japão as artes dos quadrinhos e da animação proporcionou
condições diferenciadas para sua penetração no imaginário coletivo da população,
representando um elemento cultural de forte assimilação no cotidiano das pessoas.
As condições sociais, históricas e econômicas determinam construção do discurso
dessas obras. Poderíamos então considerar que tal discurso está intrinsecamente
relacionado com as condições sociais dos sujeitos produtores e leitores, constituindo
uma relação que pode ser descrita como um ciclo de influências interdiscursivas.
Em outras palavras, o leitor dessas obras, de acordo com as teorias de
Análise do Discurso, não se encontra em papel passivo. Seus questionamentos,
anseios e cotidiano se refletem direta ou indiretamente no conteúdo e na linguagem
das obras, principalmente considerando que seus autores também são sujeitos
desse discurso, compartilhando o mesmo imaginário. Assim sendo, retornando ao
tema de nosso trabalho, podemos propor que o discurso da ciência e da tecnologia -
por ser algo que também compõe o imaginário coletivo dessa sociedade - é
interpretado pelos autores ao ser utilizado no contexto de suas obras, misturando as
impressões da ciência presente na realidade a divagações que as fantasias da
ficção permitem criar. O resultado desta construção artística e literária provoca nos
leitores uma série de novos sentidos a respeito da ciência e da tecnologia – sentidos
estes que, combinados à sua compreensão do discurso científico, irão propor novas
interpretações relacionadas às suas temáticas
36

6. CONTEXTO HISTÓRICO DO SURGIMENTO DO MANGÁ

Durante todo o século XX, o incentivo ao desenvolvimento técnico e


industrial foi adotado como uma diretriz pela nação japonesa. O contato com povos
estrangeiros teve papel fundamental nesse aperfeiçoamento, pois o país até então
permanecia em uma espécie de “reclusão” no que diz respeito à sua comunicação
com outros povos, como constata Gravett (2004):

A primeira nação “de fora” a forçar sua entrada foram os EUA, cujos navios
adentraram a baía de Edo em 1853. Não restaram muitas escolhas ao
xogunato que governava o Japão além de assinar os tratados de comércio
dos visitantes. Outros países ocidentais logo seguiram no rastro dos
americanos. O colapso do xogunato foi um processo bastante tumultuado.
Quando o imperador foi reconduzido ao trono, em 1868, defendeu “a busca
de conhecimento em todo o mundo para fortalecer o país”. Dessa forma, já
que os japoneses não podiam mais evitá-lo, o contato com o mundo
exterior seria ao menos feito em seus próprios termos, como parte de seu
dever patriótico para tornar a nação mais forte.

Acostumados a aprender e aperfeiçoar o uso de técnicas e ferramentas


de outras culturas –como fizeram com o alfabeto de ideogramas chineses que
deram origem aos kanjis -, os japoneses, que anteriormente não haviam tido contato
com povos além da região asiática, foram apresentados aos frutos da
industrialização. Era o contato com um novo mundo, de onde surgiram homens com
tonalidades de pele e cabelo diferentes, vestindo roupas e sapatos confeccionados
por máquinas, e trazendo apetrechos diversos, incluindo armas de fogo - que
poderíamos tomar como uma representação icônica do conflito que viria a acontecer
com o país das artesanais katanas.
Os norte-americanos deram impulso à entrada dos japoneses no mundo
moderno. Um povo que antes vivia em sistema feudal, literalmente ilhado dos
avanços tecnológicos que entusiasmavam a sociedade ocidental, agora se via em
meio a um choque cultural. Teve início a Era Meiji, em que, após este conflito inicial,
o Japão foi submetido a uma reestruturação que o impulsionaria economicamente
no século seguinte. “Morria” a bucólica capital Edo, e nascia Tóquio – que
ironicamente viria a se tornar uma das maiores metrópoles mundiais.
Assim como ocorreu anteriormente, com a absorção de elementos da
cultura de outros países asiáticos, o Japão iniciou, a partir do contato com o ocidente,
domínio da técnica industrial. Porém, um evento seria decisivo para provocar uma
37

ruptura neste processo de crescimento: a Segunda Guerra Mundial, da qual o Japão


saiu destruído, social e economicamente.
Após a Guerra, o país foi ocupado por militares norte-americanos, que
auxiliaram no programa de reconstrução japonês. Motivados por um espírito de
cooperação coletiva que era incentivado pelo governo, os japoneses se
empenharam na tarefa de reestruturar seu país, e a saída encontrada foi o
investimento em ciência, tecnologia e educação, para impulsionar sua economia no
cenário mundial, como enfatiza Luyten (2000):

Houve uma série de possibilidades para que jovens ambiciosos e capazes


(como Matsushita, Monta e Honda) implantassem suas indústrias. Com
longas horas de trabalho e baixos salários, a indústria japonesa procurou
reorganizar-se. (...) Os anos 60 também foram uma década de fome de
estudo. Ao mesmo tempo em que o número de estudantes inscritos nos
colégios e nas universidades aumentou muito, partiam delegações em
direção a todas as partes do mundo em busca de novas informações, para
depois serem dissecadas e reaproveitadas nos moldes nipônicos.

Na mesma época, enquanto os cientistas e industriais japoneses se


debruçavam sobre planilhas e projetos estrangeiros para aplicar na tecnologia
nacional, os artistas passariam por uma fase de transição semelhante.
Na primeira metade do século XX, as histórias em quadrinhos japonesas,
por exemplo, já tomavam forma, modelando as características do que se tornaria
conhecido mundialmente como mangá. Também elementos trazidos pelos visitantes
ocidentais, os quadrinhos provocaram um impacto nos primeiros leitores japoneses
que puderam ter contato com aquele material. Eram livros com ilustrações dinâmicas,
personagens das mais diversas formas, geralmente contando histórias de humor ou
de super-heróis. Os comic books norte-americanos também foram aos poucos sendo
absorvidos e transformados de acordo com a realidade nipônica.
Estudiosos da cultura e história do Japão propõem que os japoneses são
um povo com uma cultura mais visual do que as culturas ocidentais. Um exemplo
disso, segundo Sonia Bibe Luyten, é o próprio idioma do país: seus milhares de
caracteres icônicos formam palavras diferentemente das representações fonéticas
dos alfabetos ocidentais. Assim, a própria grafia do idioma japonês caracteriza o
modo como a linguagem de sua cultura está mais para o campo imagético, dando
ênfase às representações visuais.
38

A partir dessa característica, os quadrinhos produzidos no Japão tendem


a adotar uma narrativa descrita por críticos como “cinematográfica” – segundo
autores como Luyten e Gravett - enfatizando o movimento e detalhes que compõem
a cena, e seus personagens tendem a ser mais expressivos no que diz respeito à
demonstração das emoções, ficando o texto em segundo plano. Um exemplo disso
são os olhos grandes dos personagens de muitos mangás, que acabaram se
tornando uma marca destas produções. Essa é uma descrição resumida do estilo
adotado pelos mangás desde o contato dos japoneses com o quadrinho ocidental.
Revendo o que foi exposto neste capítulo, observa-se que as histórias em
quadrinhos e a animação estão significadas socialmente de forma diferenciada
dentro do contexto ocidental e do contexto especificamente japonês. Enquanto no
primeiro estas produções artísticas passaram a adquirir certo status de “cultura
alternativa”, no Japão são tidas como uma das principais vertentes da produção
cultural popular contemporânea, movimentando um enorme mercado que está
presente em diversas camadas da sociedade.

7. O DISCURSO CIENTÍFICO

O discurso científico se constrói através de uma complexa rede de


relações de poder que interliga diferentes esferas da sociedade. Exemplificando,
observemos que a esfera política, a esfera educacional, a imprensa e até mesmo as
artes, cada uma estabelece diferentes relações com a ciência, produzindo diferentes
sentidos.
Nas sociedades pós-revolução industrial, a ciência apresenta papel
fundamental como desenvolvedora de novas tecnologias que a cada ano passaram
a ser aplicadas na vida cotidiana. A partir do momento em que os produtos desta
ciência passam a ser incorporados ao dia-a-dia das pessoas, estas passam a
desenvolver uma relação de sentidos que não produziam em outro momento
histórico e social.
De fato, o sujeito consumidor da tecnologia hoje irá estabelecer uma
relação diferente com o discurso científico do que aquele sujeito da idade média, por
39

exemplo. Além disso, o sujeito não-cientista também “vê” a ciência de forma


diferenciada do cientista e isso se deve por se encontrar em outra posição discursiva,
em que não lida diretamente com a ciência. O sujeito não-cientista não se constitui
pelo pré-construído que envolve produção científica enquanto processo, ele “não
sabe” da história da pesquisa, dos acertos e erros que envolveram a experiência
científica.
Em virtude desta relação de distanciamento, acaba ocorrendo uma outra
interpretação da ciência que, de certa forma, simplifica ou estereotipa os sentidos da
ciência. Essa interpretação tende a estabelecer a idéia de que a ciência é algo de
resultados imediatos. Ou seja, é criado o imaginário de que o produto da pesquisa
científica é algo concluído em um curto espaço de tempo, e que este produto (seja
uma técnica desenvolvida ou algo palpável a ser utilizado em aplicações quaisquer)
deve surgir já no que poderia ser popularmente chamado de “estado de perfeição”.
Ora, porém, sabe-se que a natureza da pesquisa científica é justamente
caracterizada por ser o oposto deste imaginário que envolve resultados imediatos, é
sim um processo em que o pesquisador passa por várias etapas de acertos e erros
até chegar a um resultado. O imaginário de ciência enquanto produto em “estado de
perfeição” se deve a certo pré-construído do discurso científico que o liga a sentidos
de um discurso racionalista/positivista em que o método científico opera dentro de
uma suposta metodologia infalível, constituindo resultados dotados de neutralidade,
com o objetivo de produzir certezas, conforme verificamos na definição clássica do
pensamento científico, citada por Ribeiro Jr. (2000):

A Ciência, por sua vez, é um conjunto de conhecimentos acerca do


universo reunidos de forma sistemática e objetiva, de acordo com uma
certa quantidade de regras que formam o "método científico":
— observação (com o uso de instrumentos adequados);
— hipótese (explicação provisória);
— experimentação (teste da hipótese);
— generalização (extensão das conclusões a outros fenômenos).

Por outro lado, cabe ainda citar a definição de Zamboni (2001) a respeito
da comunidade científica:

Numa visão sociopolítica mais alargada, as comunidades de cientistas


formam-se no interior de instituições de pesquisa, nas universidades, nos
centros de pesquisa privados, nos laboratório, com finalidades e
motivações de variada ordem, numa “profusão inesperada de atividades
40

tão diferentes que põem em dúvida a utilidade de termos tão amplos


quanto ‘ciência’ e ‘cientista’.

Nesse caso, a autora destaca a heterogeneidade do discurso da ciência –


dotada de toda a complexidade que cerca seus processos. Outro sentido que surge
para a ciência na contemporaneidade é aquele em que ela não produz certezas,
mas sim indagações que levem a resultados que nunca devem ser considerados
finalizados, do contrário, sempre devem servir de objeto de estudo para novas
pesquisas, aplicando diferentes técnicas e hipóteses na busca por novos sentidos a
serem alcançados. Esta característica de eterna continuidade da ciência é
comentada por Morin (2002), destacando a dificuldade presente no ato de simplificar
ou planificar as percepções dos sentidos da mesma:

A ciência é uma aventura, pois não podemos prever o futuro, por isso esta
concepção é verdadeira. Nós não podemos unificar o mundo da ciência.
Hoje, por exemplo, a ciência não é somente a experiência, não é somente
a verificação. A ciência necessita, ao mesmo tempo, de imaginação
criadora, de verificação, de rigor e de atividade crítica. Se não há atividade
crítica, não há ciência. É preciso diversidade de opiniões. Mas a ciência
também necessita ter a regra do jogo, ou seja, certas teorias podem ser
abandonadas quando percebemos que são insuficientes. Então, a ciência
é uma realidade complexa e podemos dizer que é muito difícil definir as
fronteiras da ciência.

Esta gama de sentidos atrelados à ciência está intrinsecamente vinculada


aos produtos tecnológicos frutos do trabalho científico que se tornam presentes na
realidade. Podemos observar essa memória do discurso da ciência - que por um
lado se constitui por sentidos absolutos e deterministas e por outro propõe a
“aventura” e a diversificação – ressignificada no discurso dos materiais artísticos, as
HQs aqui analisadas.
Assim, citamos as HQs como um lugar sócio-histórico-ideologico em que
a ciência passa por esse processo de ressignificação desencadeado, em parte, pela
licença poética de seus autores, que criam situações imaginárias a partir do discurso
científico. Assim como já ocorrera na literatura anteriormente, esse encontro com a
ciência resultou no que se observa ressignificado nas obras de escritores
considerados inovadores e importantes para a definição do gênero de ficção
científica, como Julio Verne, Aldous Huxley e George Orwell. Esta relação foi
também estabelecida com as histórias em quadrinhos assim que estas começaram a
41

se tornar populares, o que podemos justificar a partir da seguinte consideração de


Tucherman (2004, apud GONÇALVES, 2008) a respeito da ficção científica:

A ficção científica nasceu provocada pelas mudanças produzidas pela


Revolução Industrial que alteraram não apenas a vida concreta e cotidiana,
mas também, e de maneira mais insidiosa, o imaginário das sociedades
modernas. Sua tarefa foi, portanto, e desde o seu nascimento, pensar e
mesmo antecipar as conseqüências sociais, políticas e psicológicas
provocadas por este novo desenvolvimento técnico-científico.

Associando a idéia defendida pelo enunciado acima à presença da


ciência no discurso das histórias em quadrinhos, podemos citar as palavras de
Danton (2007), invocando Isaac Asimov, também um escritor muito importante para
o gênero da ficção científica:

A história da ciência nos quadrinhos está intimamente relacionada à


história da ficção-científica nos quadrinhos. O que não espanta, se
lembrarmos a definição de Isaac Asimov: "A ficção científica é o ramo da
literatura que trata das respostas do homem às mudanças ocorridas ao
nível da ciências e da tecnologia". (ASIMOV, 1984)

Como ficção científica nas HQs, podemos citar já no século XX as obras


de autores como o norte-americano Stan Lee, cujos personagens, criados para a
editora Marvel Comics (que se transformou em uma das gigantes do ramo) se
tornaram mundialmente famosos e reconhecidos pelo público como ícones dos
quadrinhos até os dias de hoje. Suas criações lidavam com o desconhecimento e o
maravilhamento que o público sentia a respeito da ciência personificados em
personagens que extraíam seus poderes – e também alguns problemas - de
experimentos científicos. É o caso de personagens como o Incrível Hulk, o Homem-
de-Ferro e o Quarteto Fantástico – todos criações suas. Façamos uma breve
descrição destas obras para compreender como o discurso científico veio se
apresentando através das histórias em quadrinhos ocidentais na chamada “era de
ouro das HQs”.
42

7.1. O QUARTETO FANTÁSTICO

Figura 10 – Quarteto Fantástico. Fonte: Marvel Comics (2008)

A primeira edição do Quarteto Fantástico foi publicada em 1961, contando


a história de um grupo de quatro tripulantes de uma nave que, ao sair da órbita da
Terra em uma viagem experimental, são bombardeados por “raios cósmicos” e
assim adquirem características diversificadas: O mais jovem da equipe, Johnny
Storm, possui a capacidade de colocar o próprio corpo em chamas e, neste estado
físico, lançar rajadas de fogo e ainda voar. Sua irmã Susan adquire o poder de se
tornar invisível e gerar campos de energia. A equipe é liderada pelo marido de
Susan, Reed Richards, que adquire poderes de alterar a consistência de seu corpo,
esticando-o como borracha.
Tanto Susan quanto Reed são cientistas, no entanto este último é uma
representação mais típica da figura estereotipada do cientista: obcecado com suas
experiências e seus potenciais resultados, sempre recluso em seu laboratório,
produzindo sempre aparatos tecnológicos e experimentos científicos que solucionam
situações em uma velocidade bem distante do que seria esperado de pesquisas
43

científicas na realidade. Os eficientes e rápidos resultados das pesquisas de Reed


são justificados, no contexto das histórias, por sua “mente privilegiada”, que estaria
no nível de grandes gênios da humanidade. O que nos remete a sentidos do
discurso da ciência envolvendo “gênios e “superdotados”.
O último integrante do quarteto representa o contraponto que é quase
sempre apresentado nesta visão de ciência das HQs: a imperfeição, o medo de
resultados mal-sucedidos. O piloto de testes Ben Grimm acaba por se transformar
permanentemente em uma criatura cujo corpo é composto por pedras – o que,
obviamente prejudica seu bem-estar emocional e seu convívio social. No entanto, “O
Coisa”, como é chamado, adquire força física muito além do comum – habilidade
que é utilizada em suas aventuras contra os supervilões. Os prós e contras dos
poderes deste personagem sugerem um questionamento do autor referente à visão
contraditória que o público daquela época apresentava com relação à ciência:
admirando os resultados “maravilhosos” proporcionados por ela, e, ao mesmo tempo,
temendo as conseqüências dessas possibilidades.

7.2. O INCRÍVEL HULK

Figura 11 – O Incrível Hulk. Fonte: Marvel Comics (2008)


44

Originalmente publicada em 1962, esta HQ conta a história do cientista


Bruce Banner, que, ao realizar experimentos com uma bomba radioativa, sofre uma
mutação genética irreversível, transformando-se em um monstro de caráter
psicológico selvagem em momentos de descontrole emocional.
O autor Stan Lee declarou em entrevistas que, ao criar o personagem,
sua intenção era combinar os elementos principais das obras da literatura
Frankenstein e O Médico e o Monstro. Ambas as obras, escritas respectivamente
por Mary Shelley e Robert Louis Stevenson durante o século XIX, contam histórias
fantasiosas de cientistas reclusos e excêntricos que, através de audaciosos
experimentos científicos, criam alterações monstruosas do ser humano. Estas
criaturas acabam por assumir simultaneamente o papel de protagonistas e
antagonistas de suas obras, o que aparentemente é uma retratação da dualidade da
própria condição humana por seus autores.
Esta mesma temática foi transportada para as páginas do Incrível Hulk.
Enquanto Bruce Banner é retratado na maioria do tempo como um personagem
inteligente, porém emocional e fisicamente fraco, vitimado por seu próprio
experimento científico; o monstro Hulk personifica os impulsos animais e primitivos
(logicamente que dentro dos limites impostos pelo Código de Ética dos Quadrinhos,
vigente na época) que supostamente permaneceriam ocultos na psique de um ser
humano normal.
Pode-se traçar um óbvio paralelo com o temor público a respeito de
bombas e armas atômicas na época, em virtude do clima social causado pelo
conflito da Guerra Fria. As influências dessas incertezas com relação às
interpretações dos sentidos da ciência resultaram, nesta obra, na criação de um
personagem ambíguo, que, dentro do denominado “Universo Marvel”, vezes age
como herói, vezes como vilão.
45

7.3. HOMEM-DE-FERRO

Figura 12 – Homem-de-Ferro. Fonte: Marvel Comics (2008)

A história original deste personagem, publicada em 1963, é direcionada


diretamente ao tema da Guerra Fria, atrelando a ciência e os exageros da tecnologia
fictícia dos quadrinhos a conflitos geopolíticos mundiais – especificamente a
rivalidade entre os Estados Unidos e a União Soviética.
A HQ tem como personagem principal o industrial e também genial
cientista e inventor, como já se tornara praxe, Anthony “Tony” Stark. Ao contrário de
outros cientistas criados por Stan Lee e por outros autores da ficção, este
personagem possui uma personalidade mais extrovertida, podendo ser descrito
como o típico “playboy” ou “bon vivant”.
De fato, aqui já vemos uma desmistificação do conceito estereotipado do
cientista, como o homem alienado do mundo preso no seu laboratório. No entanto a
ciência e o processo científico continuam a ser retratadas como produtores de
resultados imediatos e capazes de feitos inimagináveis, assim como o cientista que
é aquele ser genial capaz de feitos espetaculares somente pelo valor da sua mente.
46

Podemos observar a materialização desses sentidos envolvendo o pré-


construído da guerra-fria, da genialidade do sujeito cientista e da ciência enquanto
resultado, quando na história, Tony, norte-americano herdeiro de uma indústria de
armas, é raptado por um grupo militar soviético e então forçado a construir uma
arma de destruição em massa para ser utilizada pela causa comunista. No entanto,
no cativeiro, o cientista desenvolve uma armadura dotada de incrível potencial bélico
e derrota todos seus raptores, conseguindo fugir do local. A partir de então, na
continuidade das histórias do personagem, este se torna um super-herói (tal qual o
Capitão América, cujos poderes também são derivados de uma ciência de
resultados imediatos e precisos, utilizada para fins bélicos).
Apesar deste imaginário da ciência como um produto imediatista, é
interessante analisar que há outros sentidos sobre ciência que se materializam
nessa HQ. Por exemplo, o aspecto da continuidade constante da pesquisa científica
surge no fato de que Tony está freqüentemente desenvolvendo novas armaduras,
com tecnologia mais avançada, nunca satisfeito com o produto tecnológico da
ciência. Outro ponto a ser observado é a reflexão a respeito da ciência como uma
“arma” cujo potencial pode ser utilizado tanto para causas boas, quanto para causas
maléficas, dentro do discurso dicotômico presente em obras de cunho
ideologicamente político, como esta HQ na época da Guerra Fria.

8. A CIÊNCIA E A FICÇÃO

As obras descritas acima apenas exemplificam um pouco do que


representou preponderantemente o discurso das HQs (e conseqüentemente dos
desenhos animados) sobre a ciência desde a popularização dessa forma de arte nos
Estados Unidos. E a ficção científica nos quadrinhos que teve início na década de
1920, sendo Buck Rodgers uma das séries mais famosas do período, também
apresentou diversas “previsões científicas” que viriam se tornar realidade, como o
televisor. Assim como a literatura de ficção científica, as HQs exerceram, e
continuam a exercer, o papel de sugerir aos leitores devaneios científicos e
47

tecnológicos. Sobre esse sentido da ciência, os jornalistas Oliveira e Gusman (1993)


dissertam em reportagem da revista “Super Interessante”:

Há um universo em que a ciência faz milagre. Nele, os pesquisadores


nunca realizam testes e nem sequer perdem tempo com estatísticas.
Mesmo assim, jamais erram. E, embora não apareçam em congressos,
muito menos se interessem em lecionar, podem se dar ao luxo de
dispensar a corrida atrás de bolsas e patrocínios. Ao que se nota, em seus
laboratórios a falta de dinheiro deixa de ser problema. Não se sabe de
onde vêm os recursos, mas inventos mirabolantes e fenômenos
surpreendentes surgem dia após dia, ou melhor, página depois de página.
Tudo é possível nas histórias em quadrinhos. No mundo dos super-heróis,
a ciência está mais próxima da mágica, analisa o psicólogo paulista João
Paulo Branco Martins, que se especializou no assunto. A falta dos
empecilhos comuns a todos os cientistas ajuda a criar o clima fantástico.

Podemos concordar com a idéia geral do raciocínio acima, pois de fato


existe essa simplificação do que é ciência em sua ressignificação nas histórias em
quadrinhos. Porém, conforme já analisamos ao descrever as obras de Stan Lee,
podemos observar que é também retratada certa “incerteza” com relação à ciência,
o que interessantemente se opõe ao discurso de neutralidade que os cientistas
buscam, muitas vezes, apresentar. Já o distanciamento entre o sujeito do discurso
científico e aquele sujeito não pesquisador que somente recebe a ciência na forma
de produtos e técnicas já formuladas, em que é apenas um observador distante de
uma prática “oculta”, pode ser explicado pela especificidade que caracteriza o
discurso da ciência, assim como pela maneira como age a comunidade científica a
respeito de suas atividades e produções, conforme comenta Zamboni (2001):

Produzido por uma comunidade investida de competência científica


(Bourdieu, 1983), vale dizer, dotada da “capacidade de falar e de agir
legitimamente (isto é, com autoridade), que é socialmente outorgada a um
agente determinado”, o discurso científico é direcionado a essa mesma
comunidade, de tal modo a “fazer coincidir o público de seus produtores
com o de seus consumidores: escreve-se apenas para seus pares que
pertencem a comunidades restritas e de funcionamento rigoroso”
(Maingueneau, 1989). Destinado (ou pré-destinado, melhor dizendo), a um
público específico, o discurso científico tem sua circulação restrita a um
domínio sociocultural que se circunscreve a instituições previamente
autorizadas a “se apropriar simbolicamente da obra científica e de avaliar
seus méritos” (Bourdieu, 1983).
48

Este distanciamento entre o discurso científico e o discurso dos não-


cientistas desencadeia as relações de sentidos responsáveis pelas interpretações
desses diferentes sujeitos. As diferentes interpretações da ciência na nossa
sociedade se devem, às diferentes posições sociais dos sujeitos ao formularem
sentidos sobre ciência, assim, não se considera “equivocado” o sentido de ciência
produzido tanto pelo público leitor dessas obras de ficção quanto pelos seus autores.
A ciência e tecnologia recebida e interpretada pelas pessoas ocorre de
forma gradativa, através de um processo de transferência que se desenvolve ao
longo dos anos semelhante ao que ocorre entre países produtores e países
consumidores de produtos da ciência. Tomemos o exemplo da transferência da
técnica industrial dos norte-americanos e ingleses para os japoneses no início da
Era Meiji e a transferência de novos conhecimentos tecno-científicos de laboratórios
ocidentais para a indústria japonesa em ascensão. Agora consideremos o caminho
oposto como exemplo: a transferência da tecnologia produzida no Japão décadas
depois de seu “milagre econômico” para os países ocidentais. Trata-se de um ciclo
tecno-informacional que ocorre na esfera internacional, mas podemos associar essa
idéia a um ciclo semelhante observado internamente em um país produtor de ciência
e tecnologia. No caso do Japão, poderíamos dizer que essa transferência interna de
tecnologia ocorre com os produtos da ciência passando da esfera dos produtores
para a sociedade. Esse processo é descrito por Low, Nakayama e Yoshioka (1999):

A transferência internacional de tecnologia geralmente acontece em duas


etapas. A primeira é a transferência de países avançados ao setor público
de países em desenvolvimento, e a segunda é do setor público para o setor
privado nessas economias. (...) Tessa Morris-Suzuki (1994) se aprofunda
neste assunto pela ‘abordagem da rede social’, que começa no lado oposto
ao Estado, especificamente nas extremidades externas da sociedade:
governos locais, associações de comércio e entidades semelhantes.

O processo de transferência de tecnologia para a sociedade acima


descrito pode ser associado à própria essência do processo científico, que ocorre de
maneira gradativa, e não imediata, pois necessita da aplicação de método para que
as pesquisas sejam desenvolvidas e para que se chegue a uma conclusão. As
conclusões são então reutilizadas por novas pesquisas para se chegar a novos
resultados. Este mecanismo leva tempo, e, durante este tempo a sociedade vai
recebendo as novas tecnologias em forma de produtos e serviços e estabelecendo
suas percepções e interpretações com relação a elas.
49

Estamos interessados em observar tal relação de sentidos nas HQ


japonesas que apresenta suas peculiaridades. Iremos observá-las a partir da análise
de algumas obras a seguir.

9. INTRODUÇÃO ÀS ANÁLISES

Pretendemos, a partir das questões já pontuadas que envolvem a


discussão das condições de produção históricas, políticas e sociais que determinam
os sentidos dos discursos da HQ tanto no Japão quanto nos EUA e no Brasil,
analisar os mangás e animês Astro Boy, Akira e Ghost in the Shell buscando
compreender como se dão as significações da ciência e da tecnologia nesse espaço
da expressão artística. E, inversamente, buscar uma possível influência do discurso
dos mangás e animês na própria produção científica e tecnológica da sociedade
japonesa, ou seja, estamos interessados em compreender se a ciência
ressignificada nas HQs retorna em forma de pré-construído na formulação de
sentidos do discurso da ciência e da tecnologia.

10. O PODEROSO ÁTOMO

Com o fim da ocupação americana no Japão, em 1952, os mangás


ganharam novo impulso. Nesta época, surgiram diversas histórias que
representavam o sentimento misto de derrota e desejo de superação do povo
japonês. Como um tratado com os EUA havia proibido o Japão de guerrear
novamente, as temáticas envolvendo a guerra ficaram de certa forma censuradas.
Foi através de mangás de esportes e samurais, dentre outros gêneros, que os
mangakás (artistas responsáveis pela produção dos mangás, geralmente fazendo
tanto o desenho quanto o roteiro de suas obras) deram escape às questões de seu
público, fazendo uso da imagem do herói tipicamente japonês, que - ao contrário dos
uniformizados heróis norte-americanos que defendem a pátria – lutam por ideais em
50

que prevalecem a honra e o engradecimento pessoal através da superação de


dificuldades (algo muito semelhante ao bushidô, o código de conduta dos samurais).
Foi nesta época que surgiu um mangaká que viria a ser de primordial
importância para a definição do estilo do mangá e influenciar as gerações seguintes
de artistas. Tratava-se de Osamu Tezuka, reverenciado até hoje como uma das
figuras mais importantes da cultura contemporânea japonesa. Osamu Tezuka lançou
o mangá Tetsuwan Atomu (“Poderoso Átomo”), conhecido no ocidente como Astro
Boy, no mesmo ano da desocupação americana do Japão – época em que o
desenvolvimento tecno-científico do país começava a dar pistas de que seria a
próxima potência no cenário político-econômico mundial.
Na trama, situada em um mundo futurístico, o ministro da Ciência perde
seu filho em um acidente e cria um garoto-robô (Astro) com a intenção de substituí-
lo. Porém, as diferenças entre Astro e seu filho falecido acabam por frustrar as
expectativas do cientista, principalmente devido à ausência de certas características
humanas no andróide por ele criado. Uma das situações do mangá mostra Astro
sentindo simpatia por cubos ao invés de flores, ao contrário do que esperava seu
criador. Como um experimento científico frustrado, Astro é então vendido a um circo,
onde é maltratado.
Posteriormente, Astro é adotado por outro cientista que, por sua vez, é o
novo ministro da Ciência. Este cientista representa o contraponto com relação à
postura do criador de Astro, sendo compreensivo com relação à condição do
andróide como uma forma de vida artificial – o que pode ser interpretado como um
reflexo dos sentidos paradoxais da ciência formulados nas HQ norte-americanas:
enquanto ela falha em um aspecto, pode ser útil em outro.
Retornando à história, o cientista descobre ainda que Astro possui uma
série de poderes e habilidades especiais derivadas do conhecimento e do domínio
da mesma tecnologia que deu origem à bomba atômica (daí o nome Poderoso
Átomo), o que remete a um pré-construído da Guerra Fria e à própria conjuntura
histórica e política do Japão com relação aos conhecimentos atômicos. Estes
conhecimentos científicos que produziram a bomba atômica representavam a ruína
do Estado e do povo japonês. A partir de então, os dois passam a se deparar com
diversas situações envolvendo o conflito entre homens e máquinas, como um
constante questionamento com relação aos prós e contras que a tecnologia poderia
oferecer no futuro ou mesmo à definição do que pode ou não ser considerado “vida”
51

a partir da criação de seres inteligentes pela ciência. Outros temas relacionados à


ciência e tecnologia também eram abordados pelo mangá, como viagens a outros
planetas e o uso de equipamentos eletrônicos no cotidiano que até então só existiam
na ficção.
É interessante observar que a ciência e a tecnologia são retratadas de
forma a levantar reflexões sobre as possibilidades positivas ou negativas que podem
ocasionar na sociedade humana. Ao co-existirem com máquinas dotadas de
inteligência artificial e aparência humanóide, quais serão os limites entre estas e os
homens? Esta parece ser a pergunta que o autor lança a seus leitores, a partir da
trama que se desenvolve no mundo de Astro Boy. Neste universo fictício, o
personagem principal freqüenta a escola ao lado de colegas humanos, em que há
robôs que se revoltam por sofrerem preconceitos formando grupos rebeldes e
humanos utilizando robôs para fins politicamente incorretos. Estas e outras questões
são desenvolvidas na trama, escrita em uma época em que a inteligência artificial
ainda era somente um conceito embrionário, que iria se desenvolver somente após o
advento dos computadores, duas décadas depois.

Figura 13 – Capa do mangá Astro Boy. Fonte: Osamu Tezuka (2008)

Nesses termos, com relação ao misto de encantamento e questionamento


com as possibilidades que a ciência e a tecnologia poderiam proporcionar,
poderíamos comparar os sentidos sobre ciência formulados em Astro Boy à obra do
52

influente escritor norte-americano Isaac Asimov, contemporâneo de Osamu Tezuka,


e tido como referência na literatura de ficção científica mundial. A diferença é que,
no caso de Astro Boy, estas temáticas estavam presentes em uma série em
quadrinhos direcionada ao público infanto-juvenil. Talvez devido a ter este público-
alvo na elaboração de sua obra, além de ter sido declaradamente influenciado pelos
personagens de Walt Disney, Tezuka desenvolveu o personagem Astro Boy de
forma que este se tornou uma dos pioneiros em representar uma personificação
positiva de um humanóide com inteligência artificial.
Hornyak (2006), em entrevista sobre seu livro “Loving the Machine: The
Art and Science of Japanese Robotics” (Amando a máquina: a arte e a ciência da
robótica japonesa), comenta que esta representação positiva da robótica por Astro
Boy e por subseqüentes obras de ficção japonesas, contrasta com a visão ocidental
que tende a ser mais pessimista neste sentido. O autor cita ainda o clássico da
literatura “Frankenstein”, de Mary Shelley, como uma exemplificação perfeita desta
significação ocidental para seres criados artificialmente que acabam adquirindo
sentimentos humanos.
Enquanto o livro em questão teria sido uma forte influência nas obras de
ficção ocidentais que abordam esta temática, Hornyak (assim como outros autores)
sugere que a enorme popularidade de Astro Boy no Japão tenha sido uma das
influências para que a sociedade do país, ao se relacionar com máquinas, anseie
para que estas tenham caracterização antropomórfica mais do que as sociedades
ocidentais. Autômatos produzidos por cientistas e criadores ocidentais, por exemplo,
tendem a ter seu design mais direcionado para a funcionalidade que devem atingir,
enquanto cientistas japoneses direcionam diversas pesquisas para a reprodução de
movimentos e características humanas pelas máquinas.
53

8
Figura 13 – Astro Boy toma consciência. Fonte: Osamu Tezuka (2008)

Astro Boy é mais um exemplo de como a produção cultural pode retratar


as questões sociais presentes no imaginário dos sujeitos a ela contemporâneos. Ou
seja, mesclam-se a memória do medo e do fascínio pelo desenvolvimento científico
e tecnológico que, ao mesmo tempo, produziu a bomba atômica e as esperanças de
um novo desenvolvimento econômico em um país destruído pela guerra. De fato,
não somente os japoneses se questionavam com relação aos encantamentos
surgidos com as novas tecnologias como também os norte-americanos já sonhavam
com viagens espaciais e os produtos eletrônicos que começavam a ser importados
do Japão despertavam ares de uma surpresa e desconfiada admiração.
Nas HQs observamos a formulação de sentidos contraditórios para a
ciência e a tecnologia. Enquanto Osamu Tezuka “brincava” criando um universo
lúdico com a própria tecnologia do átomo que arrasou cidades em seu país, os

8
O momento da criação de Astro Boy apresenta similaridades à criação de Frankenstein no romance
de Mary Shelley, no entanto ambos protagonistas apresentam personalidades muito distintas.
54

norte-americanos faziam o mesmo, porém dando poderes a homens que passavam


a exibir músculos avantajados e vestir roupas coladas. Como já comentado
anteriormente, a produção da editora Marvel Comics a partir da década de 1940 é
um catálogo cheio de exemplos dessa prática: Homem-Aranha e Incrível Hulk eram
frutos da radiação, enquanto Homem de Ferro e Capitão América usavam as
impressionantes novas tecnologias a favor dos interesses de sua pátria contra os
vilões que personificavam o comunismo. Esses sentidos contraditórios para a
ciência e a tecnologia nos mangás e nas HQs norte-americanas se devem às
diferentes condições de produção que determinam cada material. Enquanto os EUA
carregam a memória de ciência que lhes concedeu poder, os japoneses lidam com
um pré-construído de subserviência e temor à ciência.
Astro Boy também foi o primeiro mangá a ser transformado em uma série
animada de sucesso. Desde então, com a criação de grandes estúdios de animação
no país, as séries de maior sucesso nos quadrinhos são sempre transformadas em
animês, seja para veiculação na televisão ou direta no mercado de vídeo, podendo
se estender aos cinemas. Porém esse caminho não é uma regra. Há, por exemplo,
histórias originadas nos animês e que são adaptadas nos mangás, e ainda as
surgidas nos videogames que acabam por se transformar em bem-sucedidas e
longevas séries nos mangás e animês, como é o caso de Street Fighter e Pokémon
(o último estando em produção contínua no formato animê há dez anos).
Esse nicho cultural da indústria nipônica sofreu um intenso processo de
desenvolvimento a partir do impulso inicial nos anos 50 para chegar a este cenário
de constante produção. Estamos falando de um mercado que movimentou, no Japão
durante o ano de 2007, 406 bilhões de ienes (equivalente a mais de três bilhões e
setecentos mil dólares) somente com a fatia de publicações impressas (CUBE,
2007). Atualmente, o mangá e o animê chegaram a um ponto em que agem como os
maiores expoentes da cultura pop japonesa no ocidente, influenciando inclusive a
produção de quadrinhos e animação ocidental.
Durante esse mesmo período, o desenvolvimento de ciência e tecnologia
no Japão se tornou outro forte representante da identidade do país no restante do
mundo. Os equipamentos eletro-eletrônicos produzidos por lá adquiriram o status de
sinônimo de qualidade e experiência na produção. Também em diversas áreas de
ciência e tecnologia o Japão alcançou nível de excelência mundial. Este resultado foi
fruto de um longo processo de reestruturação da nação após a Segunda Guerra,
55

como já foi comentado anteriormente. O governo japonês passou a fazer altos


investimentos nas áreas de ciência e tecnologia, como parte do plano para
impulsionar a economia do país, então obstinado a entrar com força no “jogo” do
capitalismo.
Durante o ano de 1998, há uma década, os investimentos em ciência e
tecnologia distribuídos entre todos os ministérios e agências do governo japonês
totalizaram 4.163 bilhões de ienes (equivalente a cerca de 36 bilhões de dólares, na
cotação da época) (MIYAHARA, 1998). Para traçar um comparativo, tomemos por
base o Brasil, cujo governo federal investiu 11 milhões de reais (equivalente a cerca
de 51 milhões de dólares, na cotação da época) em ciência e tecnologia, somando
todos os ministérios, durante o ano de 2006, há somente dois anos (MINISTÉRIO
DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO BRASIL, 2007). Essa gritante diferença nos ajuda
a compreender como o Japão conseguiu alcançar o status de referência em ciência
e tecnologia, pois historicamente o país apresenta uma política de fortes
investimentos nesta área.
Podemos então ter uma noção de como o sujeito japonês da era digital,
mais de 50 anos depois do início do alavancamento tecno-científico de seu país,
vive de maneira fortemente integrada à tecnologia. Mesmo em nossa sociedade
ocidental, em um país com grau bem menor de desenvolvimento nesta área, como o
Brasil, já são sentidos diversos “sintomas” da imersão da tecnologia digital no
cotidiano das pessoas. A presença constante de computadores, telefones celulares,
câmeras digitais, sensores de movimento, Internet e robótica trouxe uma nova
percepção da realidade. Esse da era digital passa ter um contato com a ciência e
tecnologia que o aproxima de uma percepção científica e tecnológica que antes era
somente proposta por obras de ficção – por exemplo, o mangá Astro Boy, lançado
há cerca de 50 anos.
Durante este período de alto desenvolvimento tecno-científico no Japão,
alguns campos de pesquisa se tornaram verdadeiros ícones da tecnologia japonesa.
Um exemplo disto é a própria robótica. Os avançados resultados que os
pesquisadores japoneses prosseguem alcançando nesta área foi transmitido ao
público, que passou a desenvolver estas relações de percepção e interpretação
vinculadas a esse campo da ciência quando seus produtos passaram a penetrar
gradativamente na vida cotidiana. O fascínio pela tecnologia de manipulação do
átomo e pela robótica que aparecia como uma promessa para um futuro ainda
56

distante já mostrava seus reflexos na década de 1950 com o mangá Astro Boy.
Porém, na década de 1970 os avanços na robótica já eram significativos. No ano de
1973 a Universidade de Waseda apresentou seus primeiros estudos com um robô
humanóide, batizado de WABOT (figura abaixo), capaz de reproduzir alguns
movimentos humanos.

Figura 14 –WABOT. Fonte: Waseda University (2008).

Muitos autores defendem a tese de que a popularidade do mangá Astro


Boy poderia ter ajudado a criar a enorme simpatia que a sociedade japonesa
apresenta pelos robôs. Matthews (2004) ressalta que “Astro Boy rapidamente foi
associado a um futuro em que robôs e humanos viveriam juntos, e tecnologia e
ciência seriam abraçadas pela sociedade”. Estava então, estabelecida uma forte
associação entre a indústria de mangás e animês e a produção de ciência e
tecnologia no Japão.
57

11. SIMPATIA PELOS ROBÔS

Com o fascínio que a robótica passou a exercer sobre este público


japonês, foram surgindo mais produções que exploravam a temática em questão. Na
década de 1960, surgiu então um gênero de mangá e animê que se tornaria muito
popular na década seguinte: as histórias de super robots (super robôs). O primeiro
título desta leva foi Tetsujin #28, produzido em 1963 e inclusive sendo exibido no
ocidente sob o nome Gigantor (Robô Gigante, no Brasil). Na década seguinte foram
lançadas séries de sucesso como Mazinger Z e Getter Robot.
Esse gênero era caracterizado por apresentar como personagens robôs
com poderes fantásticos, apresentando um arsenal de armas fictícias e a habilidade
de serem montados com outros robôs. Essas características também foram
repassadas aos seriados de televisão tokusatsu (também chamados de live action;
filmados com atores reais), até hoje ainda produzidos no Japão. A livre exploração
da ficção era característica dessas produções, pois não havia uma preocupação do
autor com o pré-construído de veracidade e objetividade do discurso científico, mas
com a memória das atraentes possibilidades que as novas tecnologias poderiam
proporcionar.
Porém, já prestes a se iniciarem os anos 80 (mais especificamente no ano
de 1979) surge a primeira série do gênero real robot (robô real, ou realista): a obra
Mobile Suit Gundam inaugurou a franquia Gundam, criada por Yoshiyuki Tomino
(que havia trabalhado anteriormente como roteirista do estúdio de Osamu Tezuka).
A série (que até hoje é continuada em diversas versões contando diferentes histórias
nos animês e mangás) apresenta os primeiros mechas (palavra derivada do inglês
“mechanic”), utilizada para designar os robôs pilotados por humanos na ficção
científica japonesa, cujo conceito era baseado teoricamente na ciência “real”.
Esses sentidos de realidade da ciência se materializavam nos desenhos
dos robôs desde seu design (projetado através de concepções reais da mecânica e
da robótica) até a maneira como são contextualizados nas séries exatamente como
ferramentas motorizadas do mundo real: necessitando de manutenção, suas armas
tendo que ser abastecidas com munição e o uso para fins militares ou de construção
e outras tarefas de importância para a manutenção das sociedades fictícias ali
apresentadas.
58

9
Figura 15 – Gundam. Fonte: Bandai (2008)

Um exemplo disso é a seqüência de introdução de Patlabor, um animê


lançado em 1989, com forte influência da série Gundam. Na cena em questão,
enquanto são mostradas imagens de mechas denominados labor na série (palavra
em inglês que significa “trabalho” ou “labuta”) um narrador em terceira pessoa diz o
seguinte texto: “Labor: Um robô especialmente projetado para trabalhos operários.
Labors permitem avanços significativos na construção, mas também no crime. Para
combater esta nova modalidade de crimes, a polícia criou uma unidade especial: a
Patrulha Labor”.

9
Na série Gundam, jovens são recrutados para pilotar robôs em conflitos bélicos, como soldados
pilotando aviões ou tanques de guerra.
59

10
Figura 16 – Patlabor. Fonte: Shogakukan (2008)

A “Patrulha Labor” em questão consiste em um esquadrão policial que faz


uso de robôs (como o demonstrado na figura acima) para combater especificamente
crimes envolvendo os primeiros robôs que teriam sido designados para trabalho
operário. Podemos observar a materialização de sentidos contraditórios para a
ciência e tecnologia que remetem a um pré-construído de medo e fascínio. A ciência
e a tecnologia continuam a ser apresentadas nestas obras de ficção sob um
sentimento misto e compreensivelmente controverso, considerando os possíveis
prós e contras dos resultados.

10
Blueprint de um robô usado para fins policiais na trama do mangá e animê Patlabor: Design
baseado em condições que seriam teoricamente possíveis pela robótica real.
60

11
Figura 17 – Labors. Fonte: Shogakukan (2008)

A empregabilidade de robôs em tarefas diversas de auxílio ao ser humano,


assim como retratado nas obras acima, são especulações reais da sociedade
mundial do início do século XXI, devido à evolução constante e barateamento dos
microprocessadores e demais componentes eletrônicos, e também com a evolução
de softwares aplicados no controle de máquinas. Presenciando a alteração gradativa
desta significação da tecnologia em seu cotidiano, a sociedade segue
desenvolvendo interpretações e maneiras de ressignificar este contexto. Exemplo
disso é um artigo publicado na revista Scientific American, escrito por Bill Gates,
fundador da Microsoft e pioneiro no desenvolvimento do computador do pessoal. No
artigo, o autor traça um paralelo da revolução que o computador pessoal causou no
mundo contemporâneo com uma possível revolução provocada pela robótica, que já
estaria surgindo:

11
Robôs operários apresentados na seqüência de abertura do animê Patlabor.
61

Assim como ocorreu com o setor de computadores pessoais nos anos 70,
é impossível predizer quais aplicações essa nova tecnologia terá. No
entanto, parece bastante provável que os robôs desempenhem importante
papel auxiliando pessoas com limitações físicas e mesmo como
companheiros de idosos. Equipamentos robóticos muito provavelmente
ajudarão portadores de deficiências físicas a se locomover e expandirão a
força e resistência de soldados, operários da construção civil e médicos.
Robôs farão a manutenção de máquinas industriais perigosas, manipularão
material que oferece riscos e se encarregarão do monitoramento de
oleodutos em lugares remotos. Eles permitirão a profissionais da saúde
diagnosticar e tratar pacientes a milhares de quilômetros de distância e se
tornarão componentes fundamentais de sistemas de segurança e de busca
e resgate.
Mesmo que alguns dos robôs do futuro se pareçam com as máquinas
antropomórficas que vemos em Guerra nas Estrelas, a maioria em nada
lembrará a figura humanóide de C-3PO. Na verdade, no momento em que
os equipamentos periféricos móveis começarem a se tornar cada vez mais
comuns, pode ficar difícil dizer exatamente o que é um robô. Dado que
essas novas máquinas são tão especializadas e ubíquas – e tão pouco
parecidas com os humanóides bípedes da ficção científica -, é provável que
nem mesmo as chamemos de robôs. Mas, quando elas forem acessíveis
para o consumidor, seu impacto sobre o modo como trabalhamos, nos
comunicamos, aprendemos e nos divertimos pode ser tão profundo quanto
o do PC nos últimos 30 anos. (GATES, 2008)

As expectativas acerca de uma sociedade onde robôs desenvolvem


papéis importantes, como descrito acima por Gates, são especialmente fortes na
sociedade japonesa, conforme menciona Baker (2008), em seu artigo “Ready for the
Robot Revolution” (Prontos para a Revolução Robótica). A autora destaca que mais
um dos motivos para esse anseio dos japoneses com as máquinas seria a redução
do crescimento demográfico no país, resultando em uma população cada vez menor
e com a expectativa de que um terço seja composto por pessoas acima de 60 anos
de idade, a partir de 2050.
Por motivos como esse, segundo Hornyak (2006), existe o desejo coletivo
de que robôs desenvolvam diversos serviços de auxílio à população o quanto antes
possível. O autor menciona ainda que há um empenho governamental neste sentido,
considerando que existem investimentos milionários feitos na área da robótica por
parte do Ministério Japonês da Economia. Outro fato a ser destacado, demonstrando
a importância que os japoneses atribuem a essa questão, seria a criação de uma
legislação específica no país baseada nas Leis da Robótica12 (criadas pelo escritor

12
As três Leis da Robótica são:
 1ª lei: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra
algum mal.
 2ª lei: Um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em
que tais ordens contrariem a Primeira Lei.
62

russo-americano Isaac Asimov, utilizadas em suas obras de ficção), regulamento o


uso de robôs.
De qualquer modo como observamos, nos mangás analisados
materializam-se sentidos contraditórios sobre a ciência e a tecnologia que refletem o
conflito causado com o advento tecnológico, que pode tanto trazer vantagens e
poderes para o sujeito na sociedade como colocá-lo numa situação de subordinação.
Portanto, é importante observar esses mangás e animês com um pouco
mais de atenção, ultrapassando as barreiras do preconceito com que muitas vezes
são julgados, e que acaba por planificar erroneamente a complexidade que pode ser
encontrada em seu conteúdo, possibilitando, assim, interessantes análises sociais.

12. PERCEPÇÕES DE UM NOVO SÉCULO

As reflexões sobre as contradições da ciência e tecnologia, porém, vão


além do campo da robótica e continuam a se estender das HQ para o discurso de
outras produções de sucesso no final do século XX. Na década de 1980, nos EUA,
surge um movimento literário (que logo foi transferido para o cinema e às demais
mídias) denominado cyberpunk. Este movimento foi inaugurado pelo romance
Neuromancer, escrito por William Gibson em 1984, que explorava a crescente
expectativa com a chegada do século XXI e o início da revolução digital. Os medos e
anseios da sociedade que assistia à criação e à popularização de tecnologias como
o CD, as redes de computadores e avanços nas áreas das ciências biológicas, como
a reprodução humana in vitro, eram expostos em uma trama que lida com as
possíveis conseqüências desta nova realidade que surgia. Sousa Santos (1987)
define bem o sentimento desta época:

E se, em vez de no passado, centrarmos o nosso olhar no futuro, do


mesmo modo duas imagens contraditórias nos ocorrem alternadamente.
Por um lado, as potencialidades da tradução tecnológica dos
conhecimentos acumulados fazem-nos crer no limiar de uma sociedade de
comunicação e interativa libertada das carências e inseguranças que ainda
hoje compõem os dias de muitos de nós: o século XXI a começar antes de
começar. Por outro lado, uma reflexão cada vez mais aprofundada sobre

 3ª lei: Um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a
Primeira e Segunda Lei.
63

os limites do rigor científico combinada com os perigos cada vez mais


verossímeis da catástrofe ecológica ou da guerra nuclear fazem-nos temer
que o século XXI termine antes de começar.

Esta percepção da realidade também era sentida no Japão, por ser uma
sociedade altamente permeada pela ciência e tecnologia (como já mencionado
anteriormente) e que já começava a receber a inserção do advento digital – em
certos aspectos, antes mesmo do restante do planeta, devido ao desenvolvimento
local de muitas tecnologias que seriam decisivas para o processo de “digitalização”
do mundo.

13. AKIRA

Assim, na mesma época surgiu a vertente japonesa do gênero cyberpunk,


encabeçada não por um livro, mas pelo mangá Akira, de Katsuhiro Otomo. Esta obra,
totalmente direcionada ao público adulto, abordava de maneira extrema os perigos
da exploração inconseqüente da ciência, contando a história de personagens jovens
e subversivos, cujas vidas se encontram rodeadas de tecnologia e ciência, porém de
uma maneira nociva: usam drogas acondicionadas em cápsulas, praticam corridas
perigosas pelas ruas com motocicletas de última geração e têm acesso a armas de
fogo com facilidade. Tal descrição se enquadra na conceituação de personagens de
obras cyberpunk. Conforme Amaral (2005):

O conhecimento adquirido nas ruas e o uso das tecnologias encontrado


pelos distintos grupos que habitam as metrópoles em decadência
aparecem com clareza no discurso e nas narrativas cyberpunks, seja pela
linguagem ou pelo estilo. A linguagem que, como afirma Heuser (2003)
causa um choque estilístico por se apropriar dos jargões das subculturas
dos anos 60 e ao mesmo tempo dos diálogos das novelas de detetives
“hard-boileds”. Gibson (1994) afirma que a maior parte da linguagem
utilizada pelas personagens dele em Neuromancer, por exemplo, foram
extraídas das conversas de ruas dos motoqueiros e dos traficantes de
Toronto, a partir de suas experiências na adolescência no final dos anos 60
e início dos 70.

Estes personagens de caráter extremamente urbano e contemporâneo


são colocados em um cenário que retrata ainda mais a idéia da ciência como um
“fascinante perigo”: Uma Tóquio reconstruída após ser totalmente destruída por uma
explosão após uma Terceira Guerra Mundial. Os sentidos formulados sobre ciência
nesta obra envolvem novamente a contradição em que está em jogo uma memória
64

de medo e fascínio. Contudo, a ciência e a tecnologia mesmo sendo capazes


construir uma nova Tóquio, funcionando como ferramenta a serviço da sociedade, é
nesse mangá, marcadamente vinculada a interesses de grupos particulares
(geralmente grandes corporações como são retratadas nas obras do gênero
cyberpunk) cujos objetivos são o controle social e o lucro.
Publicado originalmente como manga a partir de 1982 e transportado para
o formato de animê longa-metragem em 1988 (através de um mega-projeto que
reuniu diversos estúdios e empresas de animação para que a obra fosse produzida
em um nível técnico acima da média da época), Akira tem diferentes núcleos de
personagens que representam diferentes esferas sociais. Cada um desses núcleos
irá representar uma diferente significação da ciência, da tecnologia e também da
política, visto que, a partir de seus relacionamentos na trama é que se desenvolvem
os conflitos que dão andamento à complexa história. Observemos os principais
personagens a seguir:

13.1. AKIRA (PERSONAGEM)

Apesar de ser o personagem que dá nome à obra, Akira funciona na


verdade como a base para o desenvolvimento da história dos outros personagens,
pois, no mangá, só aparece depois de alguns volumes, enquanto no animê sua
presença jamais é mostrada (a não ser em uma cena de flashback ao final do filme),
porém é mencionada o tempo todo.
Na trama, Akira é um jovem que desenvolveu poderes psíquicos e foi
utilizado como objeto de estudo de experimentos científicos secretos do governo
japonês. Por algum motivo, as experiências não deram certo e os poderes de Akira
saem de controle, resultando na grande explosão que destruiria Tóquio durante a
Terceira Guerra Mundial.
A partir dos depoimentos de outros personagens durante a história, é
revelado que o poder desconhecido de Akira representa para cada grupo social uma
significação diferenciada, como iremos verificar.
65

13.2. TETSUO

Figura 18 – Tetsuo. Fonte: Kodansha (2008)

Integrante da gangue de jovens motociclistas liderada por Kaneda, Tetsuo


faz parte da juventude marginalizada que perambula pela reconstruída Tóquio, uma
cidade caótica, poluída e com muitos problemas sociais – situação típica das
metrópoles mundiais do início do século XXI.
No início da história, Tetsuo é o integrante menos habilidoso da gangue,
sentindo-se inferiorizado pelos demais e principalmente pelo líder Kaneda. Durante
uma perseguição a uma gangue rival, Tetsuo é ferido ao se deparar com um dos
Espers (personagens descritos mais em frente). A partir de então, passa a
desenvolver os mesmos poderes de Akira e é capturado pelos militares, sendo
submetido a experimentos científicos. A partir do momento que toma consciência de
seu poder, o personagem sofre um descontrole emocional, tornando-se o
antagonista da trama, ameaçando a segurança de toda a cidade.
A partir desse contexto, podemos observar que Tetsuo representa a
ameaça de poder incontrolável oriundo da manipulação irresponsável de elementos
da natureza através da ciência – como ocorre na trama.
66

13.3. KANEDA

Figura 19 – Kaneda. Fonte: Kodansha (2008)

Líder da gangue de motoqueiros e personagem com o maior apelo visual


do elenco, Kaneda tem a função de “herói de ação” da obra. Esta é uma das
características mais elogiadas do mangá e animê Akira – mesclar um forte
planejamento de design de personagens e cenários a elementos de ação bastante
dinâmicos (corridas de motos, batalhas, etc.), com uma trama complexa repleta de
questionamentos sociais. Característica essa típica do gênero cyberpunk, e
compartilhada por outras obras dos mangás e animês, e até mesmo pelo cinema
norte-americano do gênero cyberpunk.
Kaneda representa o que seria o adolescente comum do mundo futurista
fictício proposto pela obra, vivendo em uma sociedade onde a ciência e a tecnologia
alcançaram altos níveis, a ponto de terem se tornado algo banal. Ao mesmo tempo,
esta ciência oferece prazeres e deslumbres que são utilizados inconseqüentemente
por jovens como ele e seus amigos. A exemplo, basta observá-los agindo em
perigosas disputas entre gangues cujas armas são suas altamente tecnológicas
motocicletas e as drogas que consomem em cápsulas clandestinas. Além disso,
parecem estar acostumados a viver em meio ao caos urbano e à poluição excessiva
decorrente de fábricas e demais poluentes oriundos do desenvolvimento tecnológico
67

irresponsável. É a ciência significada como elemento-chave dentro de uma cadeia


de prós e contras sociais em uma sociedade onde a tecnologia cresce em escala
exorbitante.

13.4. ESPERS

Figura 20 – Espers. Fonte: Kodansha (2008)

Os Espers são três crianças que também desenvolveram poderes


psíquicos e assim foram submetidos a experimentos juntamente com Akira. No
entanto, após o incidente em que o descontrole do poder de Akira resultou na
explosão de Tóquio, os cientistas do governo passaram a controlá-los sob pesada
medicação resultando em efeitos colaterais como a aparência envelhecida,
enquanto permanecem com estatura e voz de crianças.
Esses personagens representam um sentido do discurso da ciência, que
é novamente aquele de temor, agora através da possibilidade de as pessoas serem
utilizadas como cobaias para os “inquestionáveis” propósitos científicos que visam
decifrar algo desconhecido, mesmo à custa do sofrimento e privações dessas
pessoas.
68

13.5. DOUTOR ONISHI

Figura 21 – Dr. Onishi. Fonte: Kodansha (2008)

Cientista que trabalha para o governo nos experimentos com os Espers e


Akira (e, posteriormente, Tetsuo), Onishi é apresentado na figura de um cientista
cujo único objetivo é levar seus experimentos científicos até o fim, sem se importar
com as possíveis conseqüências. Sua visão e posicionamento com relação aos fatos
geralmente vão de encontro com as opiniões do Coronel Shikishima, apesar de
terem de trabalhar juntos.
O cientista se mostra maravilhado com os poderes de Akira e apresenta a
hipótese de que ao estudar este fenômeno poderia chegar a resultados mais
eficientes a respeito de grandes mistérios da ciência, como a criação do universo,
pois acredita que tais manifestações paranormais têm relação com o Big Bang. Ao
tomar conhecimento de que Tetsuo possui os mesmos poderes de Akira, Onishi se
demonstra obstinado a realizar experimentos e, em certo ponto crítico da história, se
nega a matar Tetsuo, mesmo que isso coloque a cidade toda em risco, alegando
que “não poderia perder uma excelente cobaia”.
A objetividade e a neutralidade imaginárias do discurso científico
aparecem materializadas na figura do cientista, que é capaz de sacrificar o bem-
estar público para alcançar resultados das pesquisas sobre o tema que o intriga por
ser este algo desconhecido. Justamente a partir dessa posição do personagem no
discurso científico é que a ciência pode ser entendida como desprovida de qualquer
69

neutralidade, pois o que está em jogo aí é uma a tomada de posição por parte do
sujeito cientista que vai se isentar das responsabilidades sociais e éticas, além disso,
há o agravante de as pesquisas de Onishi serem promovidas para fins bélicos
governamentais.
Podemos observar nesse contexto, mais uma vez, uma analogia à
destruição de cidades japonesas durante a Segunda Guerra pelas bombas atômicas,
que eram uma “novidade” científica na época e foram utilizadas inconseqüentemente,
com fins políticos.

13.6. CORONEL SHIKISHIMA

Figura 22 – Coronel Shikishima. Fonte: Kodansha (2008)

Coronel Shikishima é encarregado da segurança da metrópole em que se


passa a história (Neo-Tokyo), e também supervisiona o projeto de pesquisa sobre os
psíquicos (Akira, Espers, Tetsuo). No entanto, o que temos materializado na imagem
deste personagem vai além do estereótipo do militar que somente cumpre suas
ordens, agindo com abuso de poder ao obedecer a ordens de superiores. Ao
contrário, o Coronel é retratado como um militar de alta patente que passa a
questionar os objetivos que lhe são atribuídos, a partir do momento que a situação
se torna crítica, saindo de seu controle.
Este personagem representa um contraponto à figura do cientista Onishi.
As divergências de pontos de vista de ambos são demonstradas em diversos
momentos da trama, no que parece ser um recurso utilizado pelo autor para
demonstrar as relações de poder entre as diferentes esferas que compõem a
70

sociedade. Em determinado momento do longa animado, o Coronel, em resposta a


uma indagação de Onishi sobre qual era sua opinião a respeito das expectativas
com os experimentos feitos em Tetsuo, profere a seguinte frase: “Meu papel não é
acreditar ou não acreditar. É agir ou não agir”.
A partir desta distinção de comportamentos entre os personagens, se
desenvolve uma relação de conflitos. O Coronel, determinado a cumprir com seu
dever de defender a reconstruída cidade da ameaça de Tetsuo, põe em risco um
esquema de corrupção na esfera política, e é retirado de seu cargo. No entanto,
arma um motim para que continue no controle das forças militares enquanto a
situação de risco não fosse solucionada.

14. COMPLEXO DE DESTRUIÇÃO

Akira é uma entre muitas obras da ficção japonesa a abordar a temática


apocalíptica, utilizando-se de idéias referentes à destruição em massa. É importante
observarmos que, no contexto da obra em questão, este elemento de perigo surge
vinculado a um experimento científico que foi mal-sucedido, mesmo tendo sido
trabalhado em processo de continuidade durante décadas (aspecto que fica bem
explicitado na obra). A ciência, assim, é ressignificada em Akira como sendo uma
atividade não-imediata, ao contrário do que seria comum em outras obras, como já
discutido anteriormente. A temática apocalíptica surge com freqüência em muitos
mangás e animês, como explica Napier (2005), que cita os traumas e temores dos
japoneses como motivos:

Destrutivos ou esperançosos, esses animês parecem conseguir uma


resposta do público japonês. De fato, podemos sugerir que a temática
apocalíptica, seja combinada com o elegíaco ou mesmo com o festivo, não
é simplesmente uma importante parte da cultura dos animês, mas também
está fortemente entranhada à identidade nacional japonesa da
contemporaneidade.
Dependendo do ponto de vista, esta afirmação pode parecer algo natural
ou surpreendente. Se o imaginário apocalíptico e seus temas tendem a
aumentar em épocas de mudança social e incerteza coletiva, então o
Japão atual, assombrado pelas memórias da bomba atômica e oprimido
por uma recessão de mais de uma década que encerrou uma era de
explosivo crescimento econômico, aparenta ser um candidato óbvio para
ter visões do fim. Além disso, devido às enormes mudanças que o Japão
experimentou em um século e meio desde a modernização, uma
“identidade apocalíptica” pode ser facilmente compreendida, e quem sabe
até abraçada por seus cidadãos.
71

Figura 23 – Explosão de Tóquio em Akira. Fonte: Kodansha (2008)

Este “mórbido fascínio” com o apocalipse urbano ocasionado por fatores


incontroláveis e desconhecidos surge na ficção japonesa, muitas vezes, sendo
relacionado à ciência. É o caso dos filmes de Godzilla, o enorme monstro vítima de
uma mutação ocasionada de experiências com bombas atômicas. O papel desse
monstro nos filmes é sempre o de uma enorme força incontrolável que provoca o
caos e a destruição de cidades inteiras. Seguindo a mesma tendência, podemos
considerar ainda as séries live action (com atores reais) de super-heróis japoneses
denominadas tokusatsu, em que na maioria das vezes as batalhas terminam com
uma luta entre um robô pilotado pelos heróis e um monstro, ambos gigantes,
também causando destruição urbana em massa.
A imaginária destruição e posterior reconstrução de Tóquio também são
exploradas na trama de um mangá mais recente: Neon Genesis Evangelion, lançado
em 1994 pelo mangaká Yoshiyuki Sadamoto, que aborda ainda aspectos referentes
à complexidade psicológica do que integra as sociedades atuais. Exemplo disso é o
protagonista Shinji Ikari, um adolescente comum que se sente tomado por um
sentimento de isolamento e incompreensão, mesmo vivendo em uma realidade
repleta de novos meios de comunicação e tecnologias que deveriam servir como
ferramentas de integração das pessoas. Esse “sintoma social” é muito comum na
atualidade, e mais enfatizado ainda em uma sociedade como a japonesa, onde
72

valores como o individualismo e a obediência inquestionável às normas sociais são


valorizados.

13
Figura 24 – Shinji Ikari. Fonte: Gainax (2008)

16. GHOST IN THE SHELL

Outro mangá e posteriormente animê também muito influenciado pelo


gênero cyberpunk é a série Ghost in the Shell, que teve origem nos mangás em
1989, é de autoria de Masamune Shirow e foi adaptada como filmes de longa-
metragem de animação em 1991 e 2004, dirigidos por Mamoru Oshii. A trama
acompanha o Setor 9 – uma agência governamental especialmente designada para
investigar crimes relacionados à tecnologia. A protagonista é a agente Motoko
Kusanagi, que é um ciborgue - termo utilizado para designar pessoas com implantes
cibernéticos em seu corpo.
Motoko é como é porque sofreu um acidente grave quando criança que
destruiu seu corpo e a deixou órfã. Assim, ela foi adotada pelo Setor 9, que
transportou seu cérebro para um corpo cibernético externamente idêntico a um
corpo humano:

13
O protagonista Shinj, do anime Evangelion, exemplifica uma parcela da juventude japonesa da era
digital, sofrendo de vazio existencial em meio a uma sociedade consumista e altamente tecnológica.
73

14
Figura 25 – Ghost in the Shell. Fonte: Production I.G. (2008)

Ghost in the Shell apresenta diversos momentos de reflexão da


personagem, que faz questionamentos sobre sua condição intermediária entre
humano e máquina, associando essa dúvida a diversos dramas filosóficos comuns a
qualquer ser humano da contemporaneidade.
Junto a essa questão da inteligência artificial, a série aborda outro ponto
alto da tecnologia na transição do século XX para o XXI: a Internet. Uma rede de
computadores é mostrada como uma característica muito bem estabelecida na
sociedade futurística da trama e questões pertinentes a este ponto são usadas como
pano de fundo de histórias que envolvem programas de computador com inteligência
artificial que se tornam terroristas on-line. E como a simbiose da rede virtual com o
mundo físico é bastante desenvolvida, as atitudes desses terroristas on line
desencadeiam conseqüências desastrosas para a sociedade japonesa.
Um detalhe interessante de Ghost in the Shell é sempre deixar espaço
para diálogos de alta complexidade entre os protagonistas e os antagonistas, em
que estes últimos expõem com clareza seus filosóficos objetivos e pontos de vista.
Esta característica contrasta com a visão dicotômica apresentada por muitos filmes
norte-americanos que adotaram a estética do cyberpunk, apresentando uma
distinção muito bem definida entre heróis e vilões, sem a presença de uma forte
heterogeneidade que permita reflexões sociais mais profundas.

14
A fusão do homem com a máquina é apresentada no enredo de Ghost in the Shell.
74

A obra apresenta como protagonistas uma dupla de investigadores de


crimes envolvendo tecnologia e inteligência artificial. Esta dupla é composta pela
Major Motoko Kusanagi e pelo oficial Batou. Ambos são ciborgues (pessoas que
receberam implantes cibernéticos seja em maior ou menor escala) e materializam
diferentes sentidos sobre os temas que envolvem os limites entre a tecnologia e a
humanidade. A trama que se passa no Japão de um futuro fictício traz elementos
baseados em um possível desenvolvimento real da ciência e tecnologia da
sociedade do final do século XX.
Apesar de ser uma obra com forte apelo gráfico que utiliza cenas de ação
policial como atrativos para seu público, Ghost in the Shell se destaca dentre muitas
obras de diversas mídias contemporâneas por, mesmo adotando um caráter de
produção comercial, apresentar questionamentos filosóficos e sociológicos. Tais
reflexões ocorrem através de diálogos dos personagens ao se interrogar sobre os
acontecimentos da trama, questionamentos relacionados à posição que ocupam na
sociedade fictícia que os rodeia.
Essa combinação de elementos mais maduros imersos em complexas
tramas policiais com o apelo visual de marcantes designs de personagens e
detalhistas ambientações futurísticas aplicadas por uma aprimorada técnica de
animação (além de um atencioso trabalho dedicado à trilha sonora, no caso dos
animês) elevou a série a um status de obra cultuada dentro do vasto catálogo dos
quadrinhos e animações do Japão.
Devido a esse sucesso de mercado e após uma calorosa recepção do
segundo filme por parte da crítica, foi produzida uma série animada para veiculação
na TV japonesa. Intitulada Ghost in the Shell: Stand Alone Complex, a série foi
produzida e veiculada de 2002 a 2005, com duas temporadas totalizando 52
episódios mais um longa-metragem que encerra os eventos da trama.
Nessa série para TV, os demais personagens do elenco são mais
explorados, provavelmente devido ao maior tempo de tela (a história podendo se
estender por diversos episódios, e não somente duas horas de duração no máximo)
que permite esse aprofundamento fora do núcleo de protagonistas. Através do
conjunto das obras nessas diferentes mídias, podemos fazer uma breve descrição e
análise de alguns personagens significativos para compreendermos Ghost in the
Shell e as significações da ciência e tecnologia em seu contexto:
75

16.1. MAJOR MOTOKO KUSANAGI

Figura 26 – Major Motoko. Fonte: Production I.G. (2008)

Personagem principal da série, Motoko se enquadra no perfil da


personagem femme fatalle recriada na literatura cyberpunk, assim como a
personagem Molly do romance norte-americano Neuromancer (GIBSON, William,
1984), pioneiro neste movimento literário. Devido a ter sofrido um grave acidente na
infância, Motoko teve seu corpo natural substituído por um corpo totalmente sintético
criado pela robótica, porém suas memórias e personalidade permaneceram,
transferidas para o cérebro cibernético através de uma tecnologia fictícia chamada
“ghost” (um conceito semelhante, chamado “constructo”, é apresentado em
Neuromancer). Daí o título da obra ser “Ghost in the Shell” (fantasma na concha,
sendo a concha uma analogia para o corpo cibernético).
Devido a se encontrar nesse estado de complexa simbiose entre a
natureza humana e as criações tecnológicas, a personagem instiga os muitos dos
questionamentos filosóficos da série. Através da dificuldade que possui para
compreender sua própria realidade, levanta questões sobre os limites entre a
inteligência humana e a inteligência artificial, assim como a autenticidade de
sentimentos das vidas artificiais ou a perda gradual da condição humana.
76

Esses questionamentos devido à sua condição existencial parecem


conduzir a personagem a adotar um comportamento de isolamento social e um olhar
contemplativo da realidade, principalmente no primeiro filme. No segundo filme, ela
opta por viver inteiramente como uma inteligência artificial integrada ao cyber-
espaço, ausente de um corpo físico, o que pode ser considerada uma analogia com
relação à sociedade da informação, em que passam cada vez mais a expandir suas
vidas para o ambiente virtual da rede de computadores.

16.2 BATOU

Figura 27 – Batou. Fonte: Production I.G. (2008)

Batou é o principal combatente do Setor 9, possuindo diversos implantes


cibernéticos em seu corpo, porém não substituindo totalmente seu corpo humano.
Os implantes mais evidentes de Batou são seus olhos (influência também herdada
da personagem Molly, de Neuromancer), que lhe permitem diversas habilidades
sobre-humanas muito úteis no serviço bélico que realiza. Além disso, possui
implantes nos braços e demais partes do corpo que lhe concedem maior força e
agilidade para o manuseio de armas pesadas. Assim como outro personagem
integrante do Setor 9, o atirador Saito (que possui implantes que lhe permitem
operar armas de longo alcance com extrema precisão), a condição cibernética de
Batou funciona como uma representação dos avanços do uso de tecnologia no
campo bélico, e, novamente, a superação das condições naturais humanas.
77

Seu comportamento nas histórias é típico de personagens com o


estereótipo de guerreiros de filmes de ação – o isolado “homem de poucas palavras”,
porém que demonstra brutalidade somente em situações de perigo. Poderíamos
sugerir a herança da figura do samurai, tão folclórica no imaginário japonês, como
uma influência para sua personalidade. Por apresentarem características tanto
opostas quanto semelhantes, Batou e Motoko agem na maior parte do tempo como
uma dupla bem relacionada, com seus sentimentos um pelo outro sendo sempre
sutilmente sugeridos, mas nunca explicitados.
No que diz respeito à sua aceitação com relação à condição “homem-
máquina”, Batou aparenta ser mais tranqüilo do que Motoko. Ele dificilmente levanta
questionamentos existenciais de forma oral. No entanto, é importante observar seu
costume de praticar musculação para os braços – mesmo possuindo braços
robóticos. É levantada a hipótese de que esse seu hábito funcionaria como uma
maneira de relembrar sua condição humana.

16.3. TOGUSA

Figura 28 – Togusa. Fonte: Production I.G. (2008)

Togusa é o único membro do Setor 9 não oriundo do serviço militar. Por


ter sido um exímio investigador policial, foi convidado pela Major Motoko para
ingressar na equipe. Contudo, este não é o único diferencial entre Togusa e seus
companheiros de trabalho: ele é o único que ainda retém seu corpo humano
totalmente intacto (com exceção de alguns implantes cerebrais essenciais para o
78

trabalho no Setor 9). Essa condição o torna um personagem intrigante que


representa o contraponto com relação aos ciborgues que predominam no elenco da
série. Através das características e atitudes dos personagens, são levantadas
possibilidades com relação às vantagens e desvantagens da fusão entre homem e
máquina no contexto da sociedade futurista-realista apresentada na série.
Devido à sua condição física predominantemente humana, Togusa sofre
algumas desvantagens no trabalho de campo. Em situações de conflito físico, ele
chega a sofrer danos graves em certas situações e constantemente aparenta se
sentir menos capaz do que os colegas. Além de sua condição física, o caráter
“natural” de Togusa é representando através de sua preferência por carregar uma
arma antiquada no contexto da série: um revólver de seis balas, enquanto há armas
de maior poder de fogo e tecnologia à sua disposição. Tal fato é visto com
estranhamento por seus colegas, porém, em termos de construção de enredo,
provavelmente representa uma analogia com relação à oposição de determinados
sujeitos frente às mudanças diversas desencadeadas pelo desenvolvimento
acelerado da ciência e tecnologia.
No entanto, o papel de Togusa na série é justamente o de refletir o
questionamento das dualidades entre o natural e o artificial. Ele é o único integrante
do Setor 9 a possuir uma família, aparenta ser mais comunicativo e expressar mais
abertamente seus sentimentos. Além disso, é um dos melhores investigadores da
equipe, geralmente sendo essencial para a elucidação de casos complicados. Essa
característica sua aparentemente representa mais uma vez a questão da possível
“perda da humanidade” decorrente da fusão “homem-máquina”.

16.4. TACHIKOMAS

Figura 29 – Tachikomas. Fonte: Production I.G. (2008)


79

Os Tachikomas (Fuchikomas, no mangá) são veículos de batalha, cujo


design lembra o de uma aranha, que são empregados de inteligência artificial. Nos
animês de Ghost in the Shell, surgem a partir da série Stand Alone Complex. São
utilizados pela equipe do Setor 9 em situações de ameaça física. Com os
Tachikomas, novamente os autores criam situações hipotéticas a parte dos
conceitos e das possibilidades da inteligência artificial. Essas máquinas são
empregadas em grande número e agem de forma coletiva, dividindo, de certa forma,
a mesma “consciência”: mesmo que passem por experiências diferentes durante sua
jornada de trabalho, ao final de cada dia passam por um processo de sincronização,
em que cada Tachikoma do Setor 9 recebe os conhecimentos e informações
presentes na memória dos outros. Esse fato acaba desencadeando, na trama da
obra, um interessante efeito no aspecto “psicológico” dessas inteligências artificiais:
mesmo que todas possuam os mesmos conhecimentos, suas personalidades e
opiniões são distintas.
No decorrer da série, os Tachikomas passam a desenvolver conflitos
ideológicos, cometendo atitudes inesperadas, próximas a de um comportamento
cada vez mais humano. É constatado que essas máquinas estão adquirindo certo
nível de sapiência, ou seja, passam a desenvolver julgamentos próprios para realizar
suas ações. Além disso, desenvolvem relações de afeto com os integrantes do Setor
9 (principalmente, e curiosamente, Batou), o que também não seria esperado.

16.5. ANTAGONISTAS

Como um todo, os Tachikomas representam uma visão filosófica acerca


dos receios de uma sociedade que observa o desenvolvimento da inteligência
artificial. Muito já se falou na ficção científica sobre a possibilidade de máquinas com
inteligência altamente avançada representarem ameaças ao ser humano, e em
Ghost in the Shell esse questionamento também está presente. Seja através de
personagens como os Tachikomas ou principalmente com os antagonistas da série:
geralmente terroristas que utilizam o ciberespaço e a conectividade das pessoas
com as máquinas para causar danos à sociedade.
80

Esses antagonistas geralmente são inteligências artificiais que, adquirindo


sapiência, tiram proveito de sua posição estratégica em que têm acesso a vastas
redes de computadores para conquistarem suas causas – que, geralmente possuem
fundamentação político-social e tendem a deixar o espectador com, no mínimo, certa
compreensão a respeito de sua fundamentação ideológica. Esse papel dentro da
narrativa empregado às inteligências artificiais também é herdado de Neuromancer.
A partir das descrições acima, podemos observar que Ghost in the Shell
apresenta um reflexo da ciência contemporânea, que - ao contrário das definições
clássicas do discurso científico que buscavam propor a neutralidade e a certeza
como suas características – aceita com maior flexibilidade que a incerteza seja parte
integrante da experimentação científica.
No futuro fictício apresentado pela série, muitos elementos presentes na
tecnologia do início do século XXI são representados como parte integrante da
realidade social em que os personagens vivem. Por exemplo, as questões do
ambiente virtual (Internet), a superação das limitações biológicas, o prolongamento
da vida do ser humano, a fusão entre homem e máquina e o desenvolvimento da
inteligência artificial estão aqui significados como fatores já estabelecidos em níveis
mais profundos na sociedade, e, conseqüentemente, seus desdobramentos sociais
também são problematizados com maior complexidade.

17. OS REFLEXOS DA FICÇÃO NA PRODUÇÃO CIENTÍFICA

Este trabalho buscou fundamentar a proposta de que há uma relação


entre o discurso dos mangás e animes e o discurso da ciência e tecnologia, que se
materializa através dos produtos da indústria do mangá e animê e os produtos da
ciência e tecnologia determinados por condições de produção na sociedade nipônica
desde a década de 1950.
A discussão aqui desenvolvida, envolvendo a relação entre ciência e
tecnologia e as expressões artísticas mangá e animê, nos permite propor - trazendo
a obra Astro Boy como referência - que não somente a ciência influencia os mangás
e animês, mas a ciência apresentada nestas obras pode acabar por exercer um
81

efeito reverso que influencia a produção de tecnologia. Exemplo disso são designers
e cientistas que foram influenciados por obras de ficção para realizar seus projetos.
Alguns casos relevantes a serem citados: as Forças de Auto-Defesa do
Japão anunciaram em novembro de 2007 que estavam desenvolvendo um projeto
de equipamento militar baseado em idéias apresentadas na série Mobile Suit
Gundam (KAWAMURA, 2007), assim como o andróide Promet HRP (figura abaixo),
desenvolvido pelas indústrias Kawada (com investimentos do Ministério de
Economia, Comércio e Indústria do Japão), com design claramente inspirado na
série Patlabor.

Figura 30: Andróides Promet HRP. Fonte: Kawada Industries (2008).

Outro exemplo da influência das obras dos mangás e animês na produção


de produtos de ciência e tecnologia podemos ver no caso comentado abaixo,
quando a fabricante de motos Suzuki produziu dois modelos baseados na
motocicleta do personagem Kaneda, da obra Akira:

Alguns dos mais importantes fabricantes japoneses estão desenvolvendo


modelos experimentais com um estilo idêntico ao da moto do Kaneda.
Assim como diversas outras produções dos anos 80 e 90 que abordavam
temas passados no futuro, (Blade Runner de 1986, é um exemplo), muitas
das coisas que vemos ou temos hoje em dia, foram sem querer criadas
pelos seus autores. Não que eles tenham sido os inventores, mas a
indústria acabou se inspirando em diversas situações mostradas em filmes.
82

O caso de Akira é a mesma coisa, ainda mais, tratando-se do Japão, onde


é muito fácil (aparentemente fazem ser), transpor elementos de vários
outros lugares como animê, jogos e outros, para a vida real, e isso tem sido
cada vez mais comum. (NASDARK, 2007)

Figura 31 - Motocicletas Genesis e G-Strider. Fonte: Suzuki (2008).

Diante de exemplos como esses, é possível sugerir que a relação dos


mangás e dos animês com o conhecimento científico e tecnológico se constitui por
ciclo de relações semelhante ao descrito por Low, Nakayama e Yoshioka (1999): um
processo de transmissão de informação em que certo sentido de ciência e de
tecnologia vindo, por exemplo, de setores como laboratórios e instituições de ensino,
é ressignificado por essas obras de ficção ao mesmo tempo em que é reinterpretado
por esses mesmos setores, num ciclo constante de influências, que pode trazer
como resultado certa homogeneidade para o que entendemos como ciência e
tecnologia na sociedade contemporânea.
As percepções dos sentidos da ciência apresentados nas obras de ficção
são dotadas de um forte sentimentalismo pelos leitores japoneses com relação às
infinitas possibilidades tecnológicas apresentadas na ficção. Esta relação tão forte
entre a ficção e a produção real de tecnologia vai além do campo do design. O
enfático envolvimento do povo japonês com as questões referentes à robótica –
aspecto já mencionado anteriormente – é um fator que pode ser curiosamente ligado
à produção científica nesta área da ciência, que é considerada uma das mais
avançadas – senão a mais avançada – em todo o mundo.
83

15
Figura 32 – Asimo. Fonte: Honda (2008)

15
Anúncio da fabricante japonesa Honda divulgando o robô Asimo, utilizando o elemento recorrente na ficção
de robôs convivendo entre humanos - algo muito retratado nos mangás e animês.
84

18. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do contexto histórico e social descrito neste trabalho, pudemos


observar que a relação dos japoneses com técnicas estrangeiras foi, em diversos
momentos distintos, caracterizada por estudos aprofundados que os permitissem
dominar e aperfeiçoar as mesmas. Curiosamente, assim ocorreu com as técnicas de
ciência e tecnologia e com as técnicas de produção das histórias em quadrinhos e
desenhos animados.
O contato com estes elementos oriundos da cultura ocidental ocorreu de
forma especificamente enfatizada a partir do contexto da Segunda Guerra. No
momento histórico do pós-guerra, o Japão arrasado como economia e como nação
direcionou seus esforços para o desenvolvimento da educação e da ciência e
tecnologia, com o objetivo de se reerguer. Ao mesmo tempo, os mangás e, pouco
tempo depois, os animês representaram uma bem-vinda válvula de escape
psicológico para as frustrações do povo, tornando-se representações artísticas
difundidas em praticamente todas as esferas sociais.
O discurso apresentado nos mangás em grande parte foi e continua
sendo influenciado pelo imaginário da sociedade em que são produzidos, utilizando-
se de elementos do cotidiano de seus leitores e autores – que compartilham a
mesma linguagem e as mesmas características de identidade nacional. A partir
dessa idéia, pode-se dizer que os mangás agem como espelhos da sociedade
japonesa.
Dito isto, observemos que o Japão alcançou altos níveis de
desenvolvimento tecno-científico, em parte pelos incentivos governamentais que
estimularam o surgimento e crescimento de grandes empresas produtoras de
tecnologia que vieram a se tornar referência em escala mundial. É notável a
presença de certa forma banalizada da alta tecnologia no cotidiano do japonês
comum, em um nível acima da média dos demais países, até mesmo entre os ditos
países de primeiro mundo.
Seria então inevitável que a ciência e a tecnologia fossem absorvidas e
ressignificadas pelo discurso dos mangás e dos animês, e isto se torna explícito a
partir das análises das obras abordadas neste trabalho. Todas as obras aqui
mencionadas apresentam status de alta notoriedade entre público e crítica japonesa
85

e até mundial, sendo consideradas fortes representantes destes nichos de produção


artística contemporânea.
Esta ressignifcação ocorre tipicamente dentro do discurso da literatura de
ficção científica, seguindo certa tradição do gênero, anteriormente já apresentada
em quadrinhos norte-americanos, utilizando-se de percepções populares a respeito
do discurso científico para produzir narrativas dotadas de elementos fantasiosos,
que acabam por representar verdadeiras alegorias sociais e até mesmo políticas,
variando de acordo com suas especificidades (autor, época, contexto histórico-social,
faixa etária do público-alvo, etc.).
Recapitulando brevemente as exemplificações já feitas durante este
trabalho, podemos citar que, no momento inicial da “explosão” dos mangás no
mercado literário japonês (década de 50), uma obra específica chamou a atenção do
público descrevendo um futuro fictício onde a ciência e a tecnologia
desempenhavam papéis ambíguos na sociedade. Falo a respeito do mangá (e
animê) Astro Boy, que sugere a ciência como estando voltada para o bem-estar
social, mas que, no entanto, poderia ocasionar resultados não planejados. É
apresentada aí a significação de conflito atribuída ao caráter duvidoso da ciência.
Esta relação de sentidos pode ser transposta para a época da virada do
século XIX para o século XX, com as obras Akira e Ghost in the Shell, influenciadas
pelo movimento artístico e literário denominado cyberpunk. No discurso destas obras,
a ciência é novamente mostrada como algo que desperta maravilhamento e ao
mesmo tempo temor e conseqüências drásticas na sociedade. Esta significação
negativista da ciência e da tecnologia está praticamente sempre vinculada ao
possível “mau uso” que o ser humano, dotado de complexidade e conflitos
ideológicos, pode fazer do avanço destas “ferramentas”, cuja missão inicial seria a
mais nobre possível, voltada ao bem-estar público, após ter sido deixada para trás a
mentalidade bélica que o país apresentava na época da Segunda Guerra.

Tecnologias nucleares e aeroespaciais foram partes proeminentes do


desenvolvimento de alta tecnologia durante a Guerra Fria, mas, enquanto
nos aproximamos do novo milênio e nos tornamos mais conscientes a
respeito de assuntos relacionados ao ambiente global, elas se tornaram
aspectos menos importantes da ciência e da tecnologia para muitas
pessoas no Japão. Em contrapartida, nós estamos presenciando uma
mudança de ênfase em campos diretamente relacionados à vida cotidiana
da população. Existe uma clara preferência pela ciência e tecnologia que
melhorem a qualidade de vida. As pessoas têm altas expectativas de que a
ciência médica possa permitir que a vida seja prolongada o máximo
86

possível, ou que pacientes tenham o direito de escolher entre encerrar ou


não suas próprias vidas. (MORRIS; LOW; NAKAYAMA, 1999)

Essa é uma discussão, evidentemente, preliminar que precisa ser


desenvolvida com mais recursos para que sejam alcançados resultados, de fato,
significativos. Para isso, seria desejável realizar leituras de mais obras de referência
sobre o tema, assim como um trabalho de análise mais aprofundado dos mangás e
animês que compõem o corpus dessa.
Além disso, a oportunidade da pesquisa in loco em que o pesquisador
pudesse estar integrado à sociedade japonesa, podendo vivenciar o ambiente
estudado, permitiria que fossem alcançadas determinadas percepções sobre as
questões discutidas, as quais ficam enfraquecidas dado o distanciamento entre o
que denominamos cultura ocidental e oriental. De tal modo, um contato do
pesquisador com a sociedade e cultura japonesas permitiria uma maior
compreensão das questões relacionadas ao modo como a cultura nipônica significa
ciência e tecnologia nos mangás e animês, já que tomamos também como
pressupostos que a ciência não se constrói através de um ideal de neutralidade em
que o cientista/pesquisador pode se ausentar do processo científico, mas se
constitui subjetivamente, sendo este pesquisador sujeito na sociedade e na história.
87

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ANEXOS
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ANEXO A – ASTRO BOY VOLUME 1 (AMOSTRA)


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ANEXO B – GHOST IN THE SHELL VOL. 1 (AMOSTRA)


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