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O RIO E OS HOMENS

A COMUNIDADE RIBEIRINHA DE MÉRTOLA

Este trabalho foi feito no âmbito de uma dissertação de mestrado de Culturas Regionais Portuguesas,
apresentado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa no ano de
2000. As revisões efectuadas foram sobretudo no aspecto gráfico, mantendo-se o texto com alterações mí-
nimas. Desde essa data houve mudanças com algum impacto e novos estudos que não puderam ser tidos
em conta.
FICHA TÉCNICA:

TÍTULO | O RIO E OS HOMENS


A COMUNIDADE RIBEIRINHA DE MÉRTOLA
EDIÇÃO | Câmara Municipal de Mértola
AUTOR | João Francisco Baeta Rebocho Simas
COORDENAÇÃO GERAL | João Miguel Palma Serrão Martins
COORDENAÇÃO | Manuel José Dias Marques
Manuel Passinhas
FOTOGRAFIA | João Francisco Baeta Rebocho Simas - (JS)
Luis Pavão - (LP)
Jorge Branco - (JB)
António Mendes Sequeira - (AS)
Autor desconhecido - (AD)
DESIGN GRÁFICO | Milideias - Comunicação Visual, Lda.
IMPRESSÃO | SOCTIP, S.A.
TIRAGEM | 1 000
ISBN |
DEPÓSITO LEGAL | 256232/07

AGRADECIMENTOS:

Quero agradecer a todos os que apoiaram nos trabalhos inerentes a esta investigação, em particular ao
Professor Doutor Moisés Espírito Santo que me orientou e incentivou ao longo deste estudo.
Também a todos os professores que participaram neste mestrado e em especial ao Professor Doutor João
Nazaré pelo estímulo que me deu desde o início.
A todos os que vivem e viveram no rio e que se prestaram a relatar as suas experiências e conhecimentos.
Saliento aqui informantes que foram fundamentais como João Luciano da Encarnação Confeiteiro, Pedro
da Costa Rita, Sebastião dos Reis Soeiro, Pedro Simão, Ilda da Encarnação Simões Santana Alho, Fer-
nando da Palma Vargas, Maria Luísa da Encarnação Simões, Maria Januária Simões, Pulquéria Simões,
Vivaldo da Palma Vargas, Eugénio da Encarnação Simões e Manuel Santana Alho, Manuel Eugénio da
Encarnação.
Ao capitão de porto de Vila Real de S. António e aos funcionários da capitania, pela amabilidade com que
me trataram e pela facilidade no acesso à documentação.
À minha mulher e aos meus filhos que me acompanharam mesmo nas horas mais difíceis. Aos meus pais
que sempre me motivaram nos estudos e me permitiram a liberdade de escolha, e ao meu pai em particu-
lar que me ensinou a respeitar os outros, letrados ou não.

À Câmara Municipal de Mértola, um agradecimento especial pela publicação deste trabalho.


ÍNDICE GERAL

5 Prefácio
7 Introdução
7 O Problema
8 Metodologia
11 I. O rio Guadiana no Concelho de Mértola
13 1.1.Um rio Peninsular
15 1.2. A Precipitação e as Cheias
17 1.3. As Marés
18 1.4. Rio Novo, Rio Velho: A erosão
18 1.5. A Poluição: velho e novo problema
21 II. Mértola e o Guadiana
23 2.1. Entre o Passado e o Presente
24 2.2. A Toponímia
25 2.3. Do Presente para o Passado: A demografia. Instrução e Actividades Económicas
29 2.4. Uma Sociedade Rural?
31 III. O Guadiana como via de comunicação
33 3.1. Os limites do Guadiana no Concelho de Mértola
36 3.2. Do Concelho de Mértola até à Foz
38 3.3. Os Portos
40 3.4. As Margens do Rio
43 3.5. Dificuldades estruturais
45 3.6. O transporte de pessoas e mercadorias
50 3.7. O Guadiana e a fronteira
50 3.7.1. Uma Fronteira nem sempre Fechada
52 3.7.2. Estrangeiros Presentes em 1890
53 3.7.2. O Contrabando
55 IV. A Pesca no Guadiana
57 4.1. A Pesca: Uma actividade ancestral
58 4.2. As Técnicas
58 4.2.1. Os Barcos
61 4.2.2. O Tresmalho
61 4.2.3. O Caneiro
62 4.2.4. Tarrafa
62 4.2.5. O Conto
62 4.2.6. A Pesca à Colher
62 4.2.7. Outras Técnicas
63 4.3. Arquitectura de produção e a habitação
64 4.4. A Aprendizagem pelo trabalho
71 V. A comunidade Ribeirinha
73 5.1. Os Marítimos de Mértola
75 5.2. Nomes, Apelidos e Alcunhas
75 5.2.1. Nomes e Apelidos
81 5.2.2. Alcunhas
82 5.3. Parentesco
90 5.3.1 Uma Família Alargada
93 VI. A Religião dos Marítimos
95 6.1. Religião Institucional e Religião Popular. Um conflito Multissecular
97 6.2. Santos, Senhor e Senhoras
97 6.2.1. S. António
98 6.2.2. Senhor dos Passos
99 6.2.3. Outras Manifestações Públicas de Religiosidade em Mértola
100 6.2.4. Nós e os Outros face aos Rituais Colectivos
101 6.2.5. Senhora das Neves, Senhora dos Mártires
101 6.2.6. Outros Santos
103 6.3. Práticas religiosas - o que nos dizem os etnotextos
109 Conclusão
114 Anexos
124 Fontes e Bibliografia
126 Índices
126 Gráficos e Diagramas
126 Mapas
126 Imagens
129 Imagens
5

PREFÁCIO

Estranhamente pouco ou nada se tem escrito sobre o Guadiana, o Grande Rio do


Sul, e, principalmente, sobre os Homens do Rio.
O meu amigo e colega de faculdade, João Simas - como eu, filho adoptivo e apaixo-
nado de Mértola -, certamente tocado pelas histórias românticas e romanceadas so-
bre as aventuras e desventuras vividas no rio ao longo de décadas, contadas à mesa
dos petiscos por familiares e amigos, quis conhecer melhor e registar para os vindou-
ros a vida das gentes das comunidades piscatórias ribeirinhas.
Em boa hora o fez porque com o inevitável desaparecimento das figuras mais caris-
máticas e conhecedoras da História do Rio, perder-se-iam para sempre as informa-
ções mais preciosas e “pitorescas” que permitem imaginar e, sobretudo, sentir o fer-
vilhar deste mundo quando o curso de água ainda era o seu centro.
Mértola, através da sua Câmara Municipal, ao publicar em livro, esta tese de mestra-
do, mais não faz do que prestar um testemunho de gratidão ao seu autor pelas lon-
gas horas de trabalho e dedicação apaixonada ao estudo e investigação das raízes do
passado mas sempre com os olhos postos num futuro mais promissor para o nosso
Concelho.
Não poderia terminar este breve texto sem deixar ao João Simas, porque sei que ele
tem a sensibilidade e a capacidade para responder positivamente, o desafio para que
ele, com base na documentação recolhida, se abalance a escrever um romance sobre
este Grande Rio do Sul.
Parabéns e obrigado João!
6
7 INTRODUÇÃO

INTRODUÇÃO

O PROBLEMA

O que pretendemos estudar é a relação do rio com os homens, de que maneira este
os influencia e de que modo estes se apropriam dele.
Problema demasiado vasto e sujeito a diferentes abordagens e a inúmeras investiga-
ções, que interessa aqui delimitar, e dependente de condicionalismos inerentes ao
investigador: as questões que ele inicialmente se propôs, “a espantosa realidade das
coisas” que o levaram a pôr problemas, a sua formação teórica que lhe permite ou
não interrogar, observar e descrever essa realidade e a propor explicações, o tempo
disponível, útil e necessário para a consecução dessa investigação, a empatia conjuga-
da com a necessária distanciação, e aparentemente contraditória com esta, o conhe-
cimento prévio de parte dessa realidade.
Comecemos pelo rio. Escolhemos o rio Guadiana e a sua população porque os co-
nhecíamos melhor e porque nos interessava mais. No início há mais uma motivação
do que uma razão, um desejo de explicar aspectos de uma cultura de que até certo
ponto fazemos parte. Existirá também aqui alguma contradição entre as motivações
psicológicas e o racionalismo científico. Mas “a humanidade só levanta os proble-
1
Karl Marx, Contribuição para a mas que é capaz de resolver”1. Diria o mesmo em relação aos estudos que podere-
Crítica da Economia Política, Lis- mos efectuar.
boa, Editorial Estampa, 1975, p.29 De imediato põe-se aqui a questão de ultrapassar o senso comum, os dados imedia-
2
Louis Althusser, Marxismo, Ciên- tos do sensível pois “uma ciência, longe de reflectir os dados imediatos da experiên-
cia e Ideologia, S. Paulo, Ed. Sinal, cia quotidiana, só se constitui com a condição de pô-los em questão e de romper com
1967, pp. 23 e 24 eles, a tal ponto que os seus resultados, uma vez adquiridos, parecem mais o contrá-
rio das evidências da prática quotidiana que o seu reflexo”2.
Entremos em Mértola pela estrada que vem de Beja. A primeira sensação que temos
é que a vila está “virada ao contrário”, que não obedece à forma de povoamento da
maioria das vilas alentejanas. Mas, se subirmos o Guadiana a partir da foz começa-
mos a perceber alguma coisa, a descobrir uma relação antiga e especial com o rio: ru-
as, casas, armazéns, ruínas debruçadas para o Guadiana, construídas por pessoas que
viviam com e do rio.
Das primeiras evidências passámos às interrogações: quem vive no rio como e por-
quê, quem são e por que continuam ou não aqui, quais são as suas formas de pensar
e agir, em que medida o facto de se relacionarem com o rio os faz parecer diferentes
e ao mesmo tempo iguais aos outros que vivem no mesmo concelho?
Como delimitar o espaço utilizado por estas pessoas que vivem essencialmente num
meio aquático, fluvial? Bastaria cingirmo-nos aos limites administrativos ou procurar
um espaço mais vasto imposto pelo rio, pela economia, pela administração, pela cul-
tura? Como estudar esta população sem lembrar que o rio enquanto navegável nos
leva e nos traz até à foz, permite as trocas entre um interior rural e um litoral mais ur-
banizado, que se tornou uma fronteira mais ou menos fechada por vontade de quem
manda? E o rio em si, com as suas cheias e correntes, influências de montante e ju-
sante, forças historicamente pouco controladas pelo homem, que trazem consigo as
espécies de que vivem estes homens, não os obrigariam a um olhar constante e a um
ritmo de vida próprio?
O que os fez continuar: a família, o estado, a religião, os negócios? Até que ponto
houve continuidade ou mudança, resistência cultural ou ruptura. Mudou apenas a ci-
vilização ou a cultura?
Perante esta panóplia de questões tentámos materializá-las incidindo essencialmen-
te em alguns pontos. Começámos pelo primeiro sujeito, o Guadiana, delimitado ao
Baixo Guadiana e ao concelho de Mértola, mas sem esquecer que este funciona co-
mo um sistema, com interdependências a jusante e a montante. Delimitámos tam-
bém esta população ao concelho de Mértola, especialmente a vila de Mértola, em-
bora esta comunidade tenha mantido relações com outras populações que viviam do
rio, nomeadamente no transporte de pessoas e mercadorias. Chamámos-lhes maríti-
mos, embora vivam do rio, porque assim eles se assumem e são assim considerados
pelas autoridades administrativas, apesar de não utilizarem o mar e terem um modo
INTRODUÇÃO 8

de vida diferente das populações marítimas do litoral. Actualmente, no concelho de


Mértola vivem apenas cerca de vinte pescadores e a maioria já só exerce esta profis-
são esporadicamente.
Estudámos esta área do Guadiana como via de comunicação, o transporte de pessoas
e mercadorias, relacionando-as com a fronteira entre Portugal e Espanha.
Interessou-nos as pessoas pelo que faziam: o seu trabalho, as técnicas, a vida quoti- 3
Émile Durkheim, Os Grupos Pro-
diana, mas também o modo como aprenderam a trabalhar e o que os fez ou não con- fissionais, Lisboa, Editorial Inqué-
tinuar nesses trabalhos. Ao pretender saber quem eles eram ou são, preocupámo-nos rito, 1940, p. 39
em estudar os nomes e apelidos e as relações de parentesco. Até porque “A família é 4
Émile Durkheim, op. cit., p. 12
uma espécie de sociedade completa cuja acção se estende tanto sobre a nossa activi- 5
Henri Mendras, Princípios de So-
dade económica, como sobre a nossa actividade religiosa, política, científica, etc.”3. ciologia, uma iniciação à Análise
Terminámos com a religião, porque o estudo desta permite-nos perceber melhor a es- Sociológica, Zahar Editores, Rio
pecificidade da sua cultura: “a religião, facto eminentemente colectivo, é a fonte de de Janeiro,1975 p.10
onde derivam todos os conceitos que constituem as categorias do entendimento, tais 6
Como escreveu Robin Fox “For
como as noções de espaço, tempo, género, causa, força, personalidade, etc., e por ela me, and I hope for the reader,
e com ela se faz a ciência”4. part of the sheer enjoyment of
this analysis lies in the reconci-
ling of anthropological and histo-
METODOLOGIA rical materials and methods, in a
way that illustrates their mutually
supportive roles”, in Robin Fox,
Partimos do princípio que “na sua perspectiva teórica e metodológica a Ciência So- The Tory Islanders, a People of the
cial é uma só”5 Neste sentido procurámos uma abordagem interdisciplinar e sobretu- Celtic Fringe, London, Universi-
do transdisciplinar. Assim, não nos interessaram questões como a delimitação de de- ty of Notre Dame Press, 1994, pa-
terminada ciência social e muito menos a questão do imperialismo de certa ciência, o ge. Xxiii
que por vezes se torna mais um problema ideológico do que espistemológico. No fun- 7
A. R. Radcliff-Brown e Daryll
do perspectivámos as contribuições dessas ciências de acordo com as questões que Forde, Sistemas Políticos Africa-
pretendíamos tratar, o que significa que utilizámos conceitos e metodologias nomea- nos de Parentesco e Casamento,
damente da Sociologia, Antropologia Cultural, História e Geografia Humana. Lisboa, Fundação Calouste Gul-
O mesmo poderemos dizer em relação aos autores que utilizámos. Não nos interes- benkian, 1982, 2ª ed, p.14
sou a sua ideologia ou filosofia da História, mas a operacionalização dos conceitos e 8
«On prend comme point de
o seu método”6. départ une période, caractéri-
Pretendemos partir do presente para um passado próximo que, pensamos, se expli- sée par un événement ou une sé-
carão mutuamente. Uma análise puramente sincrónica poderia dar-nos uma imagem rie d’événements historiques
da realidade actual, mas dificultaria a explicação dessa mesma situação. Como com- connus, dont les effets peuvent
preender os pescadores de hoje sem estudar o seu percurso de aprendizagem? Como être suivis jusqu’au moment de
compreender a existência destes “marítimos do rio”, que continuam contra tantas ad- l’enquête. » Ce concept prend
versidades a viver do rio, o que os faz parecer um pouco diferentes da restante popu- alors un sens précis par rapport
lação do concelho de Mértola? à l’aboutissement des recher-
Pareceu-nos que seria importante recuar um pouco no tempo. Mas em que tempo, ches ainsi que par rapport à la
se todas as sociedades têm história, não apenas as elites, mas também os outros que multiplicité des étapes parcou-
anonimamente construíam essa história? “Para tanto temos primeiro de conhecer tu- rues, [...] »Paul Mercier, citado
do quanto pudermos sobre como funcionava o sistema antes das mudanças que são por João Nazaré, Prolégomenes a
objecto da nossa investigação”7. L’Ethnosociologie de La Musique,
Tentámos definir uma linha de base: os finais do século passado. Linha de base se- Paris, Fondation Calouste Gul-
gundo a definição de Paul Mércier: “Tomamos como ponto de partida um período, benkian, 1984, pág 195 .
caracterizado por um acontecimento ou uma série de acontecimentos históricos co- 9
«“Le concept d’accident histo-
nhecidos, a partir dos quais os efeitos podem ser conhecidos desde o início da investi- rique”, issu de l’interaction qui
gação”8. Por um lado, porque a memória de alguns informantes ainda é capaz de nos s’établit entre la “tendance cul-
dar referências sobre pessoas que viveram nessa época, por outro lado encontrámos turelle” et la multiplicité de fac-
registos dos marítimos a partir de 1893. Procurámos também encontrar momentos de teurs extérieurs à une culture qui
mudança e empregámos aqui o conceito de acidente histórico: “as inovações bruscas la conditionnent, désigne “ [...] les
que aparecem numa cultura ou em consequência do contacto entre os povos”9. innovations brusques apparaissant
No entanto pensamos que é preciso distinguir mudanças que são superficiais, em ge- dans une culture ou résultant du
ral alterações produzidas pela introdução de novas técnicas, essencialmente civili- contact des peuples” in João Na-
zacionais, de mudanças culturais que, no fundo, raramente ocorrem. “Aceitamos na zaré », op. cit.,pág. 202
prática o que diz a teoria: a cultura (modo de pensar e agir) é imutável, as mudanças 10
Moisés Espírito Santo, Origens
constatadas são de ordem civilizacional ou não afectam o fundamental. As inovações Orientais da Religião Popular Por-
são o velho tornado novo; o novo só é aceite na condição de perpetuar o antigo”10. tuguesa, Lisboa, Assírio e Alvim,
Efectuámos trabalho de terreno e com espírito terra a terra. A observação participan- 1988, pág. XIV
9 INTRODUÇÃO

te foi essencial. Começámos do presente para o passado, com entrevistas a informan-


tes que viveram no rio, como marítimos ou pescadores, com as dificuldades inerentes
à erosão da memória. Tentámos chegar à memória social, entendida como exterior
ao indivíduo. Mas a memória põe-nos problemas de objectividade. Como escreveu
Maurice Halbwachs: “o que nós vemos hoje toma lugar no quadro das nossas anti-
gas recordações, inversamente estas recordações adaptam-se ao conjunto das nossas
11
Maurice Halbwachs, La Mémoire percepções actuais”11. Também inquirimos outras pessoas que não estando já direc-
Collective, Paris, P.U.F., 1968 tamente ligadas ao rio, passaram ali parte da sua vida, desde a infância até à aquisi-
12
“En effet je continue à subir ção de uma profissão e que pertencem a famílias com uma ligação ancestral com es-
l’influence d’une société, alors mê- te meio. Estas pessoas ainda se apoiam na memória do grupo e continuam a sentir e
me que je m’en suis éloigné », op. a viver sob a influência de uma sociedade de que já se afastaram12. Instrumentos bá-
cit., p. 118 sicos foram o gravador, a máquina fotográfica, o caderno de apontamentos, o diário
13
Lévi-Strauss, Tristes Trópicos, Lis- de campo.
boa, Edições 70, 1981 p. 296 e 297 Concomitantemente também utilizámos a informação escrita. Mas aqui confronta-
14
“si l’écriture nous est apparue il mo-nos com outras dificuldades. A maioria dos protagonistas eram analfabetos ou
y a un instant comme une condi- quase não utilizavam a escrita e nem estariam motivados para tal e, por isso, quase
tion du progrès, nous devons pren- não deixaram registos escritos. Adivinha-se aqui o conflito entre uma memória e uma
dre garde que certains progrès es- cultura orais, mais autênticas, e uma memória escrita a que o Estado, que se vai cons-
sentiels, et peut-être les progrès es- truindo, obriga e tem por objectivo principal controlar. Também consultámos a im-
sentiels que l’humanité ait jamais prensa periódica local. Mas esta também refere um ponto de vista: a dos notáveis da
accompli, l’ont été sans son inter- terra e, se tivermos a em conta o número ínfimo de leitores, no fundo escrevem uns
vention», Lévi-Strauss in Georges para os outros, mais opiniões que factos, embora se encontrem também informações
Charbonnier, Entretiens avec Lé- de manifesto interesse. Utilizámos informações de arquivos nomeadamente do Ar-
vi-Strauss, Paris, Presses Pocket, quivo da Capitania de Vila Real, todas as matrículas de marítimos de Mértola que aí
1991 p 31 constam, e Arquivo Distrital de Beja (alguns registos de baptismo e casamentos), Bi-
blioteca Pública de Évora e Biblioteca Nacional de Lisboa. Também não menospre-
zámos os pequenos “arquivos” pessoais, onde por vezes se encontra uma carta, uma
fotografia, um bilhete. Mas nem sempre os registos orais e escritos coincidem ou fun-
cionam segundo os mesmos propósitos. Segundo Lévi- Strauss:
“(...) a escrita tem servido também para perpetuar “verdades” ou mistificações atra-
vés dos séculos, por aqueles que detêm o poder. E os povos ou os indivíduos que an-
tes não a conheciam “ao aceder ao saber acumulado nas bibliotecas tornam-se vul-
neráveis às mentiras que os documentos impressos propagam em proporção ainda
maior” .
Contrariamente à propalada ideia da igualdade perante a lei que os liberais quiseram
estabelecer, o autor afirma que “a luta contra o analfabetismo confunde-se com o re-
forço do controle dos cidadãos pelo Poder. Pois é necessário que todos saibam ler pa-
ra que este último possa dizer: ninguém pode ignorar a lei”13. É preciso também notar
que a escrita não era uma condição essencial para o dia a dia destas pessoas14.
Por isso torna-se difícil encontrar registos sobre as actividades dos pescadores e ou-
tros marítimos feitos por eles próprios. Ainda hoje será difícil encontrar registos es-
critos de contabilidade e os que eventualmente o possam fazer, omitem dados. Ne-
nhum pescador está interessado em escrever oficialmente que pesca com algumas
artes ilegais, que também vende eirozinhas (angulas) ou que trabalha, enquanto re-
cebe subsídio de desemprego ou está reformado. Possivelmente para conseguir ob-
ter dados mais exactos sobre a situação económica dos actuais teríamos que possuir
uma intimidade e confiança inexcedíveis e com a condição de nunca divulgar esses
dados, o que punha um grave problema ao investigador em termos éticos, nomeada-
mente a questão da violação da privacidade, numa comunidade em que o interconhe-
cimento ainda existe e onde um sinal de “quebra de confiança” pode fechar portas a
uma continuidade da investigação. Não escolhemos esse caminho, nem pagámos a al-
guém para obter informações, embora ouvíssemos falar de alguns casos recentemen-
te ocorridos em Mértola (contados, felizmente ainda, com alguma admiração pelos
informantes).
Optámos por efectuar um estudo mais qualitativo que quantitativo, mas quando tive-
mos acesso a dados e séries tentámos quantificá-los e exprimi-los graficamente.
Deparámo-nos também com alguma memória oral reconstruída, isto é em que os in-
formantes já contam o que esperam que o investigador goste, construindo respostas
a questões já esperadas “le discours de parade, fait à l’étranger”. É um risco que po-
de ser obviado, “que pode ser reduzido com a duração da investigação, o seu carácter
INTRODUÇÃO 10

não directivo, a intimidade adquirida, a confrontação eventual da mesma informa-


ção entre vários informantes, o nosso conhecimento, a nossa “impregnação” global
no terreno e sobretudo, a longo prazo, a qualidade dos nossos informantes15”. A me- 15
Jean-Claude Bouvier (dir. de),
mória oral, no Alentejo em particular, também está influenciada por alguns discursos Tradition Orale et Identité Cultu-
do poder local ou regional, especialmente pelo “mito da desgraça” e “heroicidade da relle, Problèmes et Méthodes, Paris,
vítima” o qual verificamos que tem uma base bem real. C.N.R.S., 1980, p. 57
As imagens foram também fundamentais. Socorremo-nos de algumas fotografias an-
tigas e tirámos outras centenas. Aqui, a dificuldade foi escolher e inserir apenas aqui-
lo que fosse pertinente e não meramente ilustrativo.
O essencial da recolha foi efectuada entre 1997 e 2000. No entanto, como já conhe-
cíamos a área desde 1978, aproveitámos também informações, entretanto recolhidas
com finalidades diferentes.
Conhecemos o rio desde Mérida até à foz, incluindo alguns afluentes. Percorremos
em diferentes barcos o Guadiana desde próximo do Pulo do Lobo até Vila Real de S.
António. Em Espanha visitámos várias localidades da margem esquerda (Castellejos,
San Lúcar, Ayamonte, etc.).
Na redacção do texto pretendemos respeitar a linguagem dos informantes que fre-
quentemente não pronunciam as palavras segundo as regras do português padrão,
porque se perderiam informações ao adaptar essa linguagem tão explícita e rica de
significados.
O recurso à informática revelou-se imprescindível, tanto durante a recolha de infor-
mações como durante o seu tratamento e redacção final, nomeadamente os progra-
mas Word e Excel da Microsoft, Claris Works (base de dados), Adobe Photoshop e
Family Tree Maker para tratamento da genealogia.
A nossa meta era contribuir para a antropologia de um rio e compreender a cultura
daqueles que não puderam escrever a História. Procurámos dar um pequeno passo.

FOTO - (LP)
11 O RIO GUADIANA NO CONCELHO DE MÉRTOLA
O RIO GUADIANA NO CONCELHO DE MÉRTOLA 12

I
O RIO GUADIANA NO CONCELHO DE MÉRTOLA
13 O RIO GUADIANA NO CONCELHO DE MÉRTOLA

1.1. UM RIO PENINSULAR

MAPA 1
Bacias hidrográficas da P. Ibérica.
Segundo Amorim Girão.1

O Guadiana é um dos grandes rios da Península Ibérica, a par do Tejo, Minho, Dou-
1
A. de Amorim Girão, Geografia de ro, Ebro ou Guadalquivir, embora de menores dimensões que os três primeiros. Tal
Portugal, Porto, Portucalense Edi- como os três primeiros é um rio comum aos dois países ibéricos, o que pode unir ou
tora, 1949-1951, 2ª ed, p.137 separar como veremos.
2
Jorge Gaspar, Portugal em Mapas Estende-se por uma bacia imensa: 41 857 Km2, dos quais 11 511km2 em Portugal2
e Números, Lisboa, Livros Horizon- com um escoamento anual médio de 5,2 (1000 milhões m3) com um máximo de 13,9
te, 1978, p.40 (1 000 milhões m3) e um mínimo 0,3 (1 000 milhões m3).3
3
Orlando Ribeiro et al., II, 1988, Ao contrário de outros rios, não nasce nem atravessa grandes montanhas (Gráfico1):
p.502 “Nos olhos do Guadiana, onde alguns autores colocam as nascentes deste rio, tem es-
4
A. de Amorim Girão, Geografia te apenas 810 m de altitude, e em Badajoz, que atravessa quase ao chegar à fronteira
de Portugal, op. cit.p.144 portuguesa, não fica a mais de 150m sobre o nível do mar”.4
Sobre a sua origem subsistem divergências. Acresce que a elevada procura de água
em Espanha tem alterado o curso das linhas de água superficiais e subterrâneas. Diz
Amorim Girão:
O RIO GUADIANA NO CONCELHO DE MÉRTOLA 14

Logo na origem nos surgem dúvidas, pois nasce em an- GRÁFICO1


tiga região lacustre, de sedimentação terciária e qua- Perfil longitudinal do Rio Gua-
ternária, que apresenta uma topografia muito indeci- diana.
sa; basta dizer-se que, para desviar o curso do rio, nada (extraído de Amorim Girão5)
mais é preciso em certas regiões do que atravessar al-
guns troncos de árvores no seu leito, como fazem com
frequência os povos ribeirinhos.
Toma-se geralmente como curso principal superior o
Alto Guadiana, que nasce na Mancha, nas Lagoas de
Ruidera; mas tanto o Alto como o Baixo Guadiana, que
correm perto de Ciudad Real, não merecem propria-
mente o nome de rios, pois, atravessando uma região
lacustre muito semelhante à dos chotts argelinos e de
pronunciados caracteres kársticos, não têm um curso
de águas determinado e constante. Parece, entretanto,
que o Zâncara, afluente do Guadiana oriundo da ser-
rania de Cuenca, onde se aproxima do Jucar, é que de-
veria ser considerado como o segmento inicial, por nos
apresentar mais acentuado desnivelamento do que os
outros.6 5
Cf. A. de Amorim Girão, Geogra-
fia de Portugal, op. cit.p.
Garcia acrescenta: 6
A. de Amorim Girão, op. cit. pp.
144, 145
A Mancha é para o estudo do Guadiana a mais com- 7
João Carlos Garcia, A navegação
plexa área, a morfologia tem aí um papel primordial: as no Baixo Guadiana durante o ci-
águas do rio infiltram-se e ressurgem, formando lagoas, clo do minério (1857-1917), Porto,
charcos e pântanos. Será só na Extremadura espanhola Univ. Porto, 1996, p. 46
que o Guadiana cria um corpo. 8
Mariano Feio, 1947, p.p. 8 e 33,
Ao longo do seu percurso Norte-Sul, uma característi- cit. por João Carlos GARCIA
ca que em traços largos se mantém: a impermeabilida- op. cit.
de das rochas7.

Mariano Feio propõe para o Guadiana em Portugal três subsecções:

Desde a confluência com o Caia, ao chegar à fronteira


portuguesa, até à foz do Terges (2,5Km a montante do
Pulo do Lobo). Tem 164 Km. Perfil quase regularizado.
Desde a foz do Terges até à azenha dos Canais, 17 Km.
É a zona de rápidos do Pulo do Lobo. Da azenha dos
Canais até à foz. É a secção vestibular, influenciada pe-
las marés, 79 quilómetros8.

Na Extremadura espanhola chega a ter uma largura considerável como o atesta a


ponte romana da antiga capital da Lusitânia, Mérida, com 64 arcos. Mesmo assim é
um rio de largura muito variável:

O rio, não é um rio largo. Em Alcoutim (...) Silva Lo-


pes diz que o Guadiana tem “250 varas de largo (p. 395).
Daqui ao Pomarão, o leito estreita-se progressivamen-
te: a média rondará os 100-150 metros. Para jusante de
Alcoutim, a largura do leito aumenta lentamente, atin-
15 O RIO GUADIANA NO CONCELHO DE MÉRTOLA

gindo os 400metros, frente a Ayamonte embora apre-


sente três locais em que os valores se reduzem a 30-40
metros. (...) frente a Vila Real de Santo António, (...) a
9
João Carlos Garcia, A navega- largura do rio ronda os 600 metros (Fig. 18)9.
ção no Baixo Guadiana durante o
ciclo do minério (1857-1917) op. A jusante do Pulo do Lobo durante a corredoura de cerca de 9 km o rio tem apenas
cit., p. 38 cerca de 3 metros de largura (Fig. 1 e 3). As profundidades também são variáveis:
10
A. Rodrigues da Costa, 1980,
p. 666 e 679, cit. por João Carlos Os valores rondam os 5 metros de profundidade a uma
GARCIA op. cit., p. 39 distância entre os 50 e os 100 metros das margens. Nos
11
“Catadupa ou despenhadeiro de “tornos”, em especial no da Pinta, os valores são nor-
um rio…”, segundo Sousa Viterbo malmente mais elevados, como consequência da acção
in Elucidário…, Lisboa, 1798, que da corrente contra as margens e no fundo do leito, atin-
aliás cita parte desta passagem. gindo os 20 metros.10
12
Duarte Nunez de Leão, Descrip-
ção do Reino de Portugal, Lisboa, Confirmámos estas profundidades durante as viagens no Vendaval (Fig. 30), que pos-
1610, f. 33 sui uma sonda. Sobretudo do Pomarão para Mértola as diferenças de profundidade
13
(Pardé, 1949), p. 575, cit. por podem variar quase subitamente, passando por vezes de 18 metros para 5 metros ou
João Carlos Garcia, A navegação menos, mesmo com a maré cheia.
no Baixo Guadiana durante o ciclo Sobre a riqueza da ribeira (margens) do Guadiana, os moinhos que nele são constru-
do minério (1857-1917), op. cit. ídos, o assonjo11, a impetuosidade da corrente no Pulo do Lobo e as esculturas natu-
14
João Carlos Garcia, A navega- rais feitas pelas águas escreve quase emocionado Duarte Nunez de Leão nos inícios
ção no Baixo Guadiana durante o do século XVII:
ciclo do minério (1857-1917), op.
cit., p. 7 Este rio dá de si muitos proueitos aa terra per onde pas-
sa: porque alem dos moinhos que nelle há que todo o
anno moem naquellas seccas terras de alem Tejo, on-
de não há copia de outras moendas de rios perennaes,
nem moinhos de vento, dà grande e louvado pasto aos
gados em sua ribeira (…)

E daqui cae a agoa, e se despenha em um altíssimo pe-


go, que está em baxo, que terà de largo cem passos, e de
altura oitenta braças. Alli onde se despenha se chama
o assonjo por o grande roido e estrondo que a agoa faz,
caindo de lugar tam estreito e tam alto que dahi ao pe-
go são dezasseis braços, sendo as pedras donde cae alti-
simas de hũa parte e outra. Na borda deste pego há mui
fragosa penedia em que caindo a agoa com a força qũe
leva lhe acrescenta o roído, e laura por tempo nas mes-
mas pedras muitas figuras de diuersas cousas, de que
algũas parecem feitas aa maão de official, e nam per ca-
so. Deste pego sae a agoa ainda per duas rochas de pe-
dra viua, onde também se estreita tanto que em partes
não tem mais que doze passos de largo e em partes se
estreita mais, que nam tem mais que três. E per entre
este rochedo corre espaço de três legoas pouco mais ou
menos até dar em Mértola.12

1.2. A PRECIPITAÇÃO E AS CHEIAS

O Guadiana “é provavelmente dos grandes rios europeus possuidores de grandes ba-


cias, o pior alimentado”13. O elemento climático preponderante é a precipitação que
cai abundantemente, de Novembro a Março, mas repartido por pequeno número de
dias. Corresponde-lhe uma estação de águas altas (Dezembro-Abril) bem marcada.
A estação seca é sempre mais prolongada e a estiagem (Agosto- Setembro) atinge va-
lores mínimos (0,58 m3/s em Setembro de 1927, em Ponte de Palmas -Badajoz14.
A irregularidade interanual é bem marcada. A anos de intensa pluviosidade podem su-
O RIO GUADIANA NO CONCELHO DE MÉRTOLA 16

ceder-se anos de seca prolongada. No Verão o rio quase deixa de correr e a água es-
tagna em pegos. “Tomando em conta os coeficientes mensais do caudal, relação entre
o caudal médio mensal e o anual, as variações (...) são (...) no Guadiana, já na parte
terminal, talvez cerca de 3 em Fevereiro, menos de 0,1 em Agosto”15. Atravessa-se a
vau (Fig. 8) alguns lugares no Verão que, no entanto, são perigosos no Inverno quando 15
Carlos Alberto Medeiros, Geo-
chove. A construção de numerosas albufeiras em Espanha e algumas em Portugal, tem grafia de Portugal Ambiente Na-
contribuído para a retenção de águas, o que, apesar de algumas desvantagens, contri- tural e Ocupação Humana, uma
bui também para a diminuição do nível das cheias. Estas, apesar disso, ainda surgem Introdução, Lisboa, Estampa,
de uma forma repentina como foi o caso da cheia de 1998 que destruiu casas e os no- 1991, 2ª ed.
vos cais de recreio que recentemente tinham sido construídos no Pomarão e Alcoutim. 16
O Mertolense, 15 Dez 1907
Desapareceram também vários barcos e as pequenas hortas foram levadas pela enxur- 17
Bivar Weinholtz, Rio Guadiana,
rada à semelhança de numerosas árvores, animais e objectos vários. Contou-nos um Elementos para o estudo da evolu-
pescador do Pomarão que a sua casa foi invadida durante a noite pela água, e que tudo ção da sua embocadura, Direcção
o que tinham em casa foi levado pelas águas, inclusive uma mesa da largura da porta, Geral de Portos, 1964
que era da antiga escola primária, desapareceu sem deixar rasto. Essa cheia atingiu os
arcos de sustentação do edifício do tribunal em Mértola (Fig. 10).
No entanto, a maior cheia conhecida foi a de 1876, que em Mértola inundou a pra-
ça, a mais de 25 m do nível médio do rio, onde subsiste uma lápide no actual tribunal
(antigo edifício dos Paços do Concelho) e que reza assim: “Aqui mesmo chegou/a en-
chente diluvial/do Guadiana/na terrível noite de/sete de Dezembro de 1876.” Em De-
zembro de 1907 o Mertolense, semanário progressista recorda ainda esta cheia:

O tempo estava bom, não obstante nos dias anteriores


ter chovido alguma coisa, mas pouco.
(...)
Pelas 8 horas da noite o rio chegava apenas ao quartel
que os soldados da guarda fiscal teem edificado ao pé
do porto de desembarque (...) d’ahi a poucas horas ha-
via galgado a grande muralha que cerca a villa, fazen-
do da rua D. Pedro V um canal e da praça Luiz de Ca-
mões um lago!
Na margem esquerda as casas cahiam pelos alicerces,
e, ás vezes – suprema força da natureza – as paredes
arrancadas inteiras redemoinhavam e afastavam-se
boiando na corrente como se fossem simples bocados
de cortiça (...)
Horrivel, tenebrosa, inolvidavel noite.16

Também em Alcoutim há uma placa a assinalar a mesma cheia que inundou a par-
te baixa da vila. O mesmo em San Lúcar (Espanha). Essa “enchente” diluvial permi-
tiu pôr a descoberto numerosos vestígios arqueológicos em Mértola, sobretudo ro-
manos, que Estácio da Veiga explorou, numa breve, mas bem sucedida campanha em
termos de inventariação. Já o mesmo não se pode dizer de alguns materiais que en-
viou para Lisboa e que desapareceram ou foram destruídos inutilmente. O efeito des-
sa cheia fez-se sentir em todo o curso baixo do Guadiana.

No Inverno desse ano houve uma terrível cheia, a maior


de que há memória (...) no Pomarão elevou-se a 50 m
acima da cota da baixa-mar. Essa grande cheia entrou
no mar rompendo a direito e esfrangalhou o banco de
O’Bril abrindo através uma “golada” uma nova barra
orientada a SW.17

Escreve Baldaque da Silva: “As intensas correntes das águas das cheias que sáem o
Guadiana, atingindo bastantes vezes 8 a 10 milhas de velocidade por hora, e tem su-
bido em uma cheia extraordinaria a 13 milhas”. Às águas que vêm de montante jun-
tam-se as enxurradas ou ribeiradas dos afluentes do Baixo Guadiana: ribeira de Ter-
ges e Cobres, Oeiras, Vascão, Foupana, Odeleite e Beliche na margem direita e um,
da margem esquerda, o Chança, que apesar de estar contido numa albufeira espa-
nhola (água que serve a zona de Huelva) por vezes tem que efectuar descargas.
As cheias não provocam apenas prejuízos materiais; por vezes, mesmo pescadores ex-
17 O RIO GUADIANA NO CONCELHO DE MÉRTOLA

perimentados podem sucumbir perante a violência das águas como aconteceu com
dois irmãos, José e Marcelino, cujo barco voltou-se numa cheia tendo desaparecido
os dois. As cheias são quase sempre notícia, hoje e ontem, apesar de serem frequen-
tes em anos invernosos. Os jornais locais vão-nos informando dessa situação, como é
o caso de O Mertolense, em 1907:

O rio Guadiana encheu no dia 29 do mez passado, con-


servando-se tão grosso, que o vapor que faz a carrei-
ra entre esta villa e Villa Real de Santo Antonio se viu
obrigado a não sahir nesse dia, o que só poude conse-
guir no dia 3.
(...) Os individuos que moram no porto do rio viram-se
obrigados a retirarem-se das suas casas.
As ribeiras que deságuam no Guadiana também trou-
xeram cheias, sendo a de Chanças, que tem a sua foz no
Pomarão, a que mais volume d’água trouxe.
(...) No dia 28 a ribeira de Carreiras impediu o transito,
motivo porque não chegou a esta villa o correio de S.
Sebastião dos Carros.
A impectuosidade da corrente do rio arrastou muita le-
nha, tendo-se também visto passar, à tona d’água, um
chibato e alguns porcos.
(...)18
18
O Mertolense, 08/12/1907
19
S. Daveau, in O Ribeiro et al., II,
1988, p.516, citado por João Gar- 1.3. AS MARÉS
cia, op. cit., p. 261
20
R. Da Costa, 1980, p. 665), citado
por João Garcia, op. cit., p. 39 A partir de 7 km a montante de Mértola (...) o fluxo
21
Pedro da Costa Rita e refluxo alternados da maré circulam poderosamen-
te no vale sinuoso, transformando bruscamente um rio
de caudal irregular e muitas vezes insignificante, num
comprido e profundo estuário, apertado entre coli-
nas escalvadas, que lhe compõem um cenário agreste,
de fisionomia puramente continental. As águas salga-
das penetram mais ou menos para o interior, segundo
a afluência do rio, chegando até cerca de 20 km da foz
durante as habituais águas baixas, mas até menos de 10
km quando das cheias, mesmo moderada.19

Produzem-se correntes que tanto permitem o movimento das espécies como a nave-
gação: Segundo Rodrigues da Costa: “na vazante, as velocidades da corrente são da
ordem dos 3,5 a 4 nós em marés vivas e da ordem dos 2 nós ou menos em marés mor-
tas, na enchente, estes valores são ligeiramente inferiores”20.
Em anos de seca prolongada as águas salgadas sobem cada vez mais e nestas alturas
chegam a aparecer em Mértola espécies piscícolas características de águas salgadas
como a corvinata. As marés são essenciais para a afluência de determinadas espécies.

As marés têm uma influência, mas uma influência em for-


te. A água aqui vaza sete horas e enche 5 horas, eu não sei
como é que eles fizeram isso - era para ser a mesma coi-
sa, não era? A lua nova, a lua cheia, o quarto crescente,
o quarto minguante, isso tudo tem influência com o peixe.
Três dias antes da lua ser nova, o peixe dá logo pancada. A
gente sinte “olha o peixe já deu pancada (já está a apare-
cer mais peixe) Três dias antes das águas serem vivas o pei-
xe também dava logo pancada.(...) Mesmo o peixe quando
tem a ova também é três dias antes e três dias depois, com
a lua cheia, com a lua nova dá sempre pancada, e quando
não tem ova também dá, mas quando tem ova dá mais.21
O RIO GUADIANA NO CONCELHO DE MÉRTOLA 18

1.4. RIO NOVO, RIO VELHO: A EROSÃO

Cremos que poderiam aplicar-se estas palavras de Orlando Ribeiro que aqui têm
uma intensidade particular.
“O Mediterrâneo, pelo contrário, é o país da pedra. A juventude tectónica, o vigor
da erosão por ela desencadeado, a concentração das chuvas que favorece o descar-
nar das rochas, o longo passado agrário e pastoril que degradou os arvoredos, fa-
zem-na aparecer por toda a parte, quer como pano de fundo montanhoso, quer co-
mo elemento do solo que as culturas e a vegetação, esparsa e aberta, não chegam a
ocultar”.22 22
Orlando Ribeiro, Mediterrâneo
Como já dissemos anteriormente, o rio, apesar da sua calma aparente, sobretudo no Ambiente e Tradição, Lisboa, Fun-
Verão, está sujeito a movimentos fortíssimos das águas. O próprio vale foi modifica- dação Calouste Gulbenkian, 1987,
do. Como diz Mariano Feio: 2ª ed.
23
M. Feio, 1947, p. 9-10, in João
A partir da confluência do Terges (2,5 Km a montante Carlos Garcia, op. cit. p. 36
do Pulo do Lobo) faz-se sentir intensamente o apelo da 24
Joaquim Ferreira Boiça, e Maria
queda do Pulo do Lobo. O rio aumenta de velocidade, de Fátima Rombouts Barros, As
revigora de poder erosivo e começa a cavar novo vale Terras, As Serras, Os Rios, Memó-
no fundo do primitivo leito. Esta acção acentua-se até rias Paroquiais de 1758 do Con-
ao sítio denominado Pulo do Lobo (...) onde brusca- celho de Mértola, Mértola, Cam-
mente o rio se precipita de uma altura de 13,5 metros, po Arqueológico de Mértola,
abandonando o primitivo leito, para correr num canhão 1995, p. 73
de paredes verticais, com cerca de 20m de altura e pou-
co mais de largura (...) Para jusante do Pulo do Lobo, o
vale primitivo, que o rio abandonou, continua, a princí-
pio perfeitamente conservado, depois representado por
uma rechã pouco nítida que se rebaixa a pouco e pou-
co mas pode seguir-se até 29 Km da foz (Guerreiros do
Rio), onde se submerge.23

E acrescenta ainda a propósito da corredoura que se segue ao Pulo do Lobo (Fig. 3


e 4):

O canhão que o vale inferior forma logo à saída do Pu-


lo do Lobo mantém-se com toda a perfeição, apertado
e com as paredes abruptas, quase verticais, onde aqui
e além se vêem restos de marmitas, até pouco antes do
Porto Largo (...) O rio tem, então um vale em V mui-
to jovem. (Quanto mais caminhamos para jusante, mais
“velho” é o vale inferior, isto é, está há mais tempo ex-
posto à acção da erosão, formou-se há mais tempo(...)
Não nos parece ousado supor que se trate de um abai-
xamento relativo do nível do mar que desprendeu uma
vaga de erosão regressiva, isto é, um novo ciclo de ero-
são.

1.5. A POLUIÇÃO: VELHO E NOVO PROBLEMA

A excelência das águas de Mértola era realçada nas Memórias Paroquiais de 1758:

11°. Se tem alguma virtude particular as suas agoas?


De experiência própria sey que a agoa deste rio tem
a virtude dos banhos das Alcarias de Lixboa, cura os
affectos hipocondriacos, humedece muito as entranhas.
E athe os gados que della bebem, posto que sam raros
os que se veem muito gordos, todos em suas carnes sam
mais gostozos que os outros.24
19 O RIO GUADIANA NO CONCELHO DE MÉRTOLA

A poluição é um problema antigo em Mértola que existe, de formas diferentes, desde


o século XIX. O problema principal era o despejo das águas da Mina de S. Domin-
gos. Esta empresa, que se comportou, desde o início, como se estivesse numa colónia,
fazia frequentes despejos, sobretudo no Inverno, quando havia cheias, como se pode
ler nesta notícia de um periódico local.

OS PESCADORES DE MÉRTOLA

Uma reclamação justa

No pretérito domingo foi o Sr. administrador deste con-


celho procurado por uma grande quantidade de pesca-
dores desta villa, que lhe foram pedir a sua interferen-
cia num assunto verdadeiramente importante para o
que pedem prontas e imediatas providencias.
Disseram os reclamantes que a Empreza da Mina de S.
Domingos, ao contrario do que está combinado man-
dou despejar as aguas da Mina, já por trez vezes, duran-
te a melhor época das pescarias, que é a presente, tendo
este despejo sido feito - o primeiro em fins de Feverei-
ro, e os dois ultimos em Março; mas o que mais prejui-
zo causou foi o que fez em 26 de março. Disseram mais
que estava combinado, que as aguas da Mina podiam
ser vasadas em outubro, novembro e dezembro, época
que não faria mal algum ao peixe, quando estes trez me-
zes fossem invernosos, pois que, quando eles forem se-
cos não convém que esses despejos se façam alem de 15
de novembro. Os despejos das águas feitos fora da épo-
ca apontada trazem grande prejuizo à sua classe, que
foi o que agora sucedeu, pois ficaram sem peixe e com
as redes completamente queimadas. Por todas estas ra-
zões pedem ao Sr. Administrador a sua valiosa interfe-
rencia no assunto, porque a Empreza da Mina de S. Do-
mingos tem alegado que a agua que mata o peixe não é
25
O Futuro de Mértola, n.º 17, 3 de daquela mina, mas sim a que vem do Malagão (...)25
Abril de 1917,
Desde os finais da década de 70 que se vem sentindo o problema da poluição. Já não
se trata da poluição química das Minas (embora possa eventualmente haver proble-
mas com as Minas de Neves Corvo, na ribeira de Oeiras) mas a poluição bacteriológi-
ca. As cianobactérias estão presentes no Guadiana, produto da poluição, cuja origem
tem fontes diversificadas, como seja as inúmeras explorações porcinas, em Portugal
e em Espanha (Almendralejo, por exemplo) e os esgotos urbanos com deficiente tra-
tamento (Mérida, Badajoz e até Mértola). A agricultura intensiva, sobretudo a que
se relaciona com o plano de rega da Extremadura tem contribuído profundamente
também para a eutrofização das águas, que se apresentam, sobretudo na estação seca
com um aspecto esverdeado, tendo até havido pragas como a azola, que transformou
o rio num manto verde. Devido às marés estas águas poluídas demoram a escoar-se
no mar e o rio apenas se limpa quando vêm novas cheias. Os dados oficiais confir-
mam a poluição do Guadiana (quadro 1).
Esta situação tem provocado o desaparecimento de espécies piscícolas, como o so-
lho, e a rarefacção de outras como o sável. Continua o muge que é o mais resistente,
mas a sua pesca é frequentemente proibida, o que tem dado origem a alguma confli-
tualidade entre os pescadores (quase sempre apoiados pela Câmara Municipal) e as
autoridades sanitárias (ver anexo 1) acusadas de falta de compreensão pela situação
social. Uma das consequências é a pesca ilegal, por parte de alguns pescadores e ou-
tra é a permanência de vários meses do ano no desemprego. Esta situação é “resolvi-
da” com subsídios de desemprego ou com o recurso aos POC (programas de ocupa-
ção temporária). Em anos de seca os pescadores já têm sido levados para albufeiras
da região, para extraírem o excesso de peixes destas, dado a elevada carga de matéria
O RIO GUADIANA NO CONCELHO DE MÉRTOLA 20

orgânica. Outros pescadores ainda, procuram outra profissão, como pedreiro, ou a emigração temporária (Suíça,
sobretudo). A situação social só não é mais agravada, porque a média das idades é já bastante alta, estando alguns
destes pescadores em situação de reforma, não tendo, por isso, os filhos a seu cargo.
A poluição nota-se também através de outras espécies animais. Em 1999 foram encontradas mortas, várias dezenas
de cegonhas em Mértola e no Pomarão, junto ao rio.

O quadro 1 mostra os níveis de poluição atingidos.

Parâmetro
OXIDA- TEM- CONDU- AZOTO OXIGÉNIO CLAS-
FOSFA- NITRA- COLIFOR. COLIFOR.
BILI- PERA- SST pH TIVIDA- AMO- DISSOLVI- CBO5 CQO SIFICA-
Estação TOS TOS TOTAIS FECAIS
DADE TURA DE NIACAL DO ÇÃO

Ardila 11.9 28 44.0 9.0 422 0.19 4.05 0.16 68 13.4 56.3 702900 844 D
Caia 1.8 24 7.7 8.4 173 0.18 4.09 0.32 26 5.9 24.0 14200 194 C
Pulo do Lobo 6.0 27 35.8 8.8 549 0.20 8.65 0.17 84 4.8 21.1 76600 522 C
Rocha da Nora 5.6 28 52.4 8.5 520 0.21 8.82 0.28 74 5.0 20.4 71700 589 D

QUADRO 1
A SEM POLUIÇÃO Critério Qualitativo de classifica-
B FRACAMENTE POLUÍDO
ção da água (1998)
C POLUÍDO
Retirado (e simplificado) da página
D MUITO POLUÍDO da Direcção Regional do Ambiente
E EXTREMAMENTE POLUÍDO25 na Internet.

Classe Nível de Qualidade


A - Sem poluição Águas consideradas como isentas de poluição, aptas a satisfazer potencialmente as utilizações mais exigentes em termos de qualidade
B - Fracamente poluído Águas com qualidade ligeiramente inferior à classe A, mas podendo também satisfazer potencialmente todas as utilizações

Águas com qualidade “aceitável”, suficiente para irrigação, para usos industriais e produção de água potável após tratamento ri-
C - Poluído goroso. Permite a existência de vida piscícola (espécies menos exigentes) mas com reprodução aleatória; apta para recreio sem
contacto directo

Águas com qualidade “medíocre”, apenas potencialmente aptas para irrigação, arrefecimento e navegação. A vida piscícola pode
D - Muito poluído
subsistir, mas de forma aleatória

Águas ultrapassando o valor máximo da classe D para um ou mais parâmetros. São consideradas como inadequadas para a maio-
E - Extremamente poluído
ria dos usos e podem ser uma ameaça para a saúde pública e ambiental

FOTO - (LP)
21 MÉRTOLA E O GUADIANA
MÉRTOLA E O GUADIANA 22

II
MÉRTOLA E O GUADIANA
23 MÉRTOLA E O GUADIANA

2.1. ENTRE O PASSADO E O PRESENTE

Os Rios de Espanha Choram de Tristeza

Os rios de Espanha choram de tristeza em fluido pranto


pela sede de sangue que não foi saciada.

Chorou sua pena o Guadalaviar


com lágrimas correntes incessantes.

Guadalquivir seu irmão chorou por não poder saciar


a sede das sanguessugas que grasnaram.

O Jucar esteve a ponto de secar quando se encolerizou


pelo dano que os ruivos causavam por toda a parte.

Gemeu o Guadiana em seu Ocidente cheio o saco lacrimal


de copioso pranto.

Os dois rios da Fronteira Superior, o Tejo e o Ebro,


queixavam-se ambos e a própria fronteira se queixava de sede

encadeada de tristeza
embora tivesse a água dos rios entre a boca e as fauces.

1
Abú Aláçane Hazime ibne Mo- ALCARTAJANI1
hamede Alcartajani. Nascido em
Cartagena, pertence à geração dos
exilados. Morre em Tunes em 23 A historicidade está presente na paisagem e em particular no urbanismo2. Sem pre-
de Novembro de 1285. Citado por tendermos fazer uma resenha histórica, convém referir que Mértola é uma povoação
António Borges Coelho (org. de), que tem origens pré-romanas, ainda mal conhecidas e certamente relacionada com o
Portugal na Espanha Árabe, vol. IV, transporte de mercadorias, assumindo relevante importância os produtos resultantes
Lisboa, Seara Nova, 1975, p. 393 da mineração da área ou região considerada hoje como o Baixo Alentejo; a mina de
2
A investigação científica dirigi- S. Domingos foi efectivamente explorada, pelo menos na época romana.
da pela equipa de Cláudio Torres É reconhecida, durante o império romano como cidade e até cunha moeda. Os vestí-
desde a segunda metade da década gios materiais da época romana mantêm-se aqui e noutros lugares, afora aqueles que
de setenta foi fundamental para as se perderam em tempos mais recentes ou mais antigos. Uns porque as civilizações, ou
ideias aqui expostas. melhor as culturas, tudo fizeram para que eles desaparecessem, outros porque a incú-
ria, uma atitude que se insere também numa cultura, apagou evidências do passado,
mesmo em épocas mais recentes. Do cripto-pórtico inserido na zona palatina às está-
tuas, lucernas e moedas romanas são inúmeros os testemunhos do período romano.
A época paleo-cristã, a que alguns chamam visigótica está patente na basílica a que
sucederia a igreja de Nossa Senhora do Carmo e os respectivos enterramentos com
as suas estelas, umas em latim, outras até em grego, o que mostra a continuidade de
uma civilização mediterrânea que já vem de épocas pré-romanas. Também a influên-
cia mediterrânea no séc.VI se fez sentir como demonstram os mosaicos encontrados
na zona palatina. O cristianismo teria também assumido formas heterodoxas expri-
mindo-se no rito monofisita.
A civilização mediterrânea continua sob a forma islâmica, reocupando os mesmos es-
paços, por vezes sobrepondo-se, como se pode ver através das habitações islâmicas
sobrepostas à zona palatina romana, casas com um pátio central, intimistas, corres-
pondentes a uma família extensa, mas em todo o caso urbanas, como o demonstram
as fossas e as canalizações das águas. A muralha da antiga cidade é, no essencial islâ-
mica, com uma couraça que a protege do inimigo, que pode vir do rio e que lhe per-
mite acesso à água, mas que uma certa memória escrita e oral ainda continua a cha-
mar “pontes romanas”, como se essa civilização fosse a única matriz (Fig. 12).
A actual igreja matriz provém de uma antiga mesquita (Fig. 44), cuja planta se man-
tém, assim como o mirhab e algumas colunas (aliás reaproveitadas). Da época islâ-
mica há também uma literatura poética, política e religiosa em língua árabe e inúme-
MÉRTOLA E O GUADIANA 24

ros objectos, principalmente de cerâmica que revelam antigas vias de circulação para
a Andaluzia, o Magrebe ou até para Meca. Continuando a tradição mediterrânea, os
centros civilizacionais para Mértola são Córdova, Sevilha e Badajoz, uma ligação es-
pecial com o Norte de África, particularmente visível nas invasões dos almorávidas e
dos almóadas, além de Meca (esta sob o ponto de vista essencialmente religioso). É
nesta época (1144) que estala em Mértola uma revolta, liderada por Ibn Caci, que se
proclama mahadi e chefia a seita sufi dos muridines, e que alastra a Évora, Silves e a
Niebla e por grande parte do Andaluz. No período almóada Mértola é amuralhada
de novo e grande parte da cerâmica islâmica encontrada é também desta época.
A Reconquista cristã (1238) terá tido um efeito devastador em termos civilizacionais,
aliado a um choque cultural, embora com episódios em que se fazem alianças entre
cristãos e muçulmanos. O castelo (Fig. 44), reconstruído pela ordem de Santiago, do-
mina e são arrasadas construções próximas. Os 18 esqueletos de guerreiros, provavel-
mente de origem berbere encontrados no cripto-pórtico são um exemplo dessa des-
truição. Impõe-se uma nova religião e reprime-se a antiga, à qual estava associada
uma moral e uma lei, mesmo que não fosse a mais ortodoxa, e até os cristãos moçára-
bes se vêem obrigados a respeitar os princípios católicos romanos. Ainda hoje o bra-
são de Mértola mostra um Santiago triunfante, a cavalo e brandindo uma espada.
O corte com a civilização islâmica, nomeadamente com o Norte de África terá leva-
do à diminuição das ligações com o exterior, o estabelecimento de uma fronteira com
Castela terá ainda acentuado essa decadência. Regride o cosmopolitismo.
Há dúvidas sobre o impacto dos descobrimentos, por falta de estudos suficientes. É
provável que as relações comerciais se tenham animado. Duarte D’Armas, no sécu-
lo XVI, quando desenha as fortificações de Mértola, mostra caravelas no Guadiana
(Fig. 21).
Daqui até aos finais do século XIX ainda há um grande hiato a ser preenchido pe-
la investigação, embora já tenham sido efectuados alguns estudos que demonstram a
importância de Mértola no que respeita sobretudo ao transporte de cereais e às su-
as crises cíclicas.3 3
Cf Rui Santos, O Socorro aos La-
vradores de Mértola em 1792, Mér-
tola, Câmara Municipal de Mér-
2.2. A TOPONÍMIA tola, 1987 Albert SILBERT, Le
Portugal Méditerranéen à la fin de
l’Ancien Régime, Lisboa, I.N.I.C.,
Também a toponímia nos revela aspectos de uma cultura. Tudo é nomeado e geral- 1978, 3 vols
mente de uma forma concreta: 4
Maurice Halbwachs, La Mémoire
Collective, Paris, P.U.F., 1968 p.163
(...) cada aspecto, cada pormenor desse lugar tem ele
próprio um sentido que não é entendido senão pelos
membros do grupo, porque todos as partes do espaço
que ele ocupa correspondem tanto a aspectos diferen-
tes da estrutura e da vida da sua sociedade, como ao
que nela há de mais estável.4

A maioria dos topónimos são antigos e torna-se difícil explicar o significado de alguns,
pois o significante atribuído pode derivar de uma língua que deixou de se utilizar. Re-
corde-se que aqui viveram povos com línguas diferentes, como fenícios ou cartagine-
ses, árabes e berberes, romanos etc. As línguas sobrepõem-se e por vezes fica apenas
o significante, eventualmente “deturpado”, que assim adquire outro significado. Por
exemplo, o local conhecido por rio Tamuje é hoje atribuído à existência de uma planta,
a tamugeira, mas poderia ter origem num antigo deus oriental que se relaciona com as
águas (ver capítulo sobre a religião).
Há topónimos que se repetem num dos seus termos, referenciados um a outro mas
em contradição. Existe o Pulo do Lobo (que mete respeito e tem uma conotação
agressiva e masculina) e há o Pulo da Zorra (raposa, símbolo da manha); assim como
há o Barranco do Azeite e mais a Sul o Barranco do Vinagre.
25 MÉRTOLA E O GUADIANA

Ao longo do rio as pedras ou penhascos têm nomes também muito concretos: a Mesa
do Rei (Fig. 4), por ser grande (há outra da Rainha), a Rocha da Galé (Fig. 7), que de
longe parece um barco, a Rocha dos Grifos (abutre), a Biblioteca (Fig. 15). Os açudes
chamam-se Brava, cujo local é um pouco inóspito (Fig. 5), Canais, onde há peque-
nas “ilhas” de cascalho que canalizam a água (Fig. 6). Uma pequena praia fluvial cha-
ma-se Areia Gorda. Os vaus a sul de Mértola são o Vau da Pedra, o Vau da Vaqueira
(permitia a passagem de animais na maré vazia) e o da Bombeira (o significado per-
deu-se mas existe uma quinta com o mesmo nome). As curvas do rio podem ter o no-
me de Torno: o Torno da Pinta. Alguns cerros são chamados de castelo ou castelos ou
outra palavra com o mesmo significado: Alcaçarim (de alcácer, castelo na língua ára-
be); também podem chamar-se Penha.
Há inúmeros lugares nomeados de porto ou portela, frequentemente em barrancos:
seriam lugares por onde passava o gado.
Há topónimos com nomes de animais: Barranco do Bufo (mocho grande) e outros
de plantas: duas povoações chamadas Álamo, Laranjeiras, Amendoeira, Zambujal,
Azinhal.
A toponímia assinala intensamente a presença islâmica (provavelmente com raízes
mediterrâneas mais antigas) em todo o Vale do Baixo Guadiana: Porto de Alcácer
(castelo) e Alfavacas, na ribeira de Oeiras, perto de Mértola, Alcaria (há várias, sig-
nifica aldeia) Almoinha Velha (horta velha), Mesquita (uma povoação), Alcoutim, Al-
5
Cf. Carolina Michaëlis de Vascon- caçarim, Odeleite, Almada (a mina) de Ouro. O próprio Guadiana, que já foi Odiana,
cellos, Lições de Filologia Portugue- também em parte tem essa etimologia (Anas seria o nome pré-romano)5.
sa, Coimbra, 1911/1913 Os nomes de alguns lugares sugerem-nos também a existência de famílias extensas
6
Quase todas as vilas tinham uma em épocas mais remotas: no concelho de Mértola, na margem esquerda há aldeias
Rua Direita, em geral a rua princi- com os seguintes nomes: Fernandes, Picoitos, Salgueiros, Costa, Alvares, Morenos,
pal. O mesmo se passava no Brasil, Giraldos; na margem direita: Lombardos, Vicentes, Javazes, Besteiros, Crespos, Se-
por exemplo, em Ouro Preto, Mi- das. Outros ainda um pouco mais afastados do rio como Brites Gomes, Sapos, Cor-
nas Gerais. vos, etc. No concelho de Alcoutim há uma povoação ribeirinha, Guerreiros do Rio,
7
Esta nobilitação do espaço é mui- apelido bastante comum no Algarve (sobretudo no Sudeste).
to comum no país. Em Alcoutim a Em Mértola os nomes dos espaços têm sido alterados, sobretudo a partir da segun-
actual Casa da Cultura, chama-se da metade do século XIX, reflectindo o espírito positivista dos que quiseram romper
Casa do Conde, porque a vila per- com a tradição. Antigamente havia a rua do Forno, porque lá existia um forno, a Rua
tenceu a um dos maiores potenta- Direita, porque era directa à Praça6 e que hoje tem o nome de um antigo professor,
dos do país até ao século XVII, o mas que toda a gente conhece por Rua do Relógio. Há ruas nobilitadas como a de D.
Marquês de Vila Real. Provavel- Sancho II, em homenagem à conquista de Mértola aos mouros e, portanto, à humi-
mente poucos saberão que os mar- lhação dos vencidos de quem a população tanto (hoje) se orgulha7.
queses raramente visitaram a ter- Os espaços onde viviam os pescadores eram tratados um pouco depreciativamente
ra e que o último Marquês de Vila pelos notáveis locais. À parte baixa da vila, onde eles viviam (vivem) chamavam-lhe
Real optou por ser leal à monar- o “Bairro Favela”. Pior ainda à parte de Além-Rio, menos urbanizada e com menos
quia espanhola, tendo por isso D. pergaminhos: era tratada por alguns como a “Aldeia dos Macacos”.
João IV confiscado os seus bens, Actualmente devido ao prestígio que a História já tem em Mértola os mertolenses co-
por considerá-lo traidor. meçaram a apreciar mais a sua vila desde que esta começou a ser notícia. Até a desig-
8
Fichas de Caracterização Conce- nação Bairro Favela deixou de ser usada; hoje é o Centro Histórico da Vila Museu.
lhia, INE, 1999. Os restantes grá-
ficos foram efectuados por nós de
acordo com os dados dos Censos 2.3. DO PRESENTE PARA O PASSADO: A DEMOGRAFIA,
do I.N.E.
INSTRUÇÃO E ACTIVIDADES ECONÓMICAS

Actualmente, a população o concelho de Mértola tem uma população residente de


8 880 habitantes (dados de 1997), com uma densidade populacional de 6,9 hab./km2,
uma das mais baixas do país (país 108,3; Alentejo 19,1)8.
É uma população envelhecida com um índice de envelhecimento de 234,8 % (país
88,5, Alentejo 147,2), uma taxa de crescimento demográfico total de –13,3 %, uma
taxa bruta de natalidade também inferior ao país e região: 5,9 %0 (país 11,4; Alen-
tejo 9,0).
MÉRTOLA E O GUADIANA 26

A população residente segundo a idade é a seguinte:

65+ anos 2630

25-64 anos 3950

15-24 anos 1180

0-14 anos 1120


GRÁFICO 2
População residente segundo a ida-
0 1000 2000 3000 4000 5000 de (Mértola 1997).

E distribui-se pelas seguintes freguesias:

GRÁFICO 3
População residente por freguesias
(concelho de Mértola 1991).

A taxa de analfabetismo ainda é grande:


29,6% (país 11%, Alentejo 21,8%). A maioria das pessoas apenas tem o ensino bási-
co como se vê pelo seguinte gráfico:

GRÁFICO 4
População residente segundo o ní-
vel de instrução em1997 (%).
27 MÉRTOLA E O GUADIANA

A iliteracia ainda será superior (não sabemos a percentagem de analfabetos funcio-


nais), no século passado era uma sociedade predominantemente oral, onde raros ti-
nham acesso à escrita, como se vê pelo gráfico seguinte:

GRÁFICO 5
Analfabetismo (Mértola 1890).

Tal como no resto do país a tendência, no que respeita aos sectores de actividade é
para o aumento do terciário. Segundo o censo de 1991 a população activa estava as-
sim distribuída:

GRÁFICO 6
Sectores de actividade
(Mértola 1991).

Cerca de cem anos a estrutura era completamente diferente:

GRÁFICO 7
Sectores de Actividade (1890).

No entanto, a simples observação da população activa pode levar a alguns equívocos,


nomeadamente devido à diferença de critérios dos diferentes censos (a noção de in-
dústria não é a mesma) e pelo facto de a actividade mineira e a pesca estarem inclu-
ídas no sector primário, o que no caso do concelho de Mértola tem uma importância
9
Conceito elaborado por Vitorino fundamental. Haverá também ainda um “terciário de Antigo Regime,”9 em 1890, que
Magalhães Godinho, Cf. Vitorino inclui a “criadagem”. Por isso, apresentamos também “as grandes divisões profissio-
Magalhães Godinho, Estrutura da nais” segundo o citado censo:
Antiga Sociedade Portuguesa.
MÉRTOLA E O GUADIANA 28

improdutivos 842
trab. doméstico 692
vivendo dos seus rendimentos 92
prof. liberais 126
administração pública 91
força pública 679
comércio 587
transportes 675
indústria 3935
extracção de materiais minerais 2777 GRÁFICO 8
pesca e caça 51 População de facto ou presente se-
gundo as grandes divisões profis-
0 500 1000 1500 2000 2500 3000 3500 4000 4500 sionais (1890).

De salientar o peso da população relacionada com a extracção de materiais mine-


rais, excepcional no distrito e a indústria que certamente estarão relacionadas com
a Mina de São Domingos. De relevar também o número de indivíduos relacionados
com pesca e caça, apenas suplantados no distrito pelo concelho de Odemira (onde se
efectuavam actividades semelhantes no rio Mira). O sector dos transportes parece ter
também alguma importância, o qual incluiria não apenas o transporte pelo rio, mas
também por terra (carreteiros, almocreves).
Verificámos a evolução demográfica no concelho a partir dos dados dos censos des-
de 1878 e construímos o Gráfico 9. De salientar que há um crescimento contínuo até
à década de quarenta, com alguma quebra na década entre 1911 e 1921. Mas nos
anos cinquenta e sessenta a descida é vertiginosa, à semelhança da tendência do inte-
rior do país e particularmente do Alentejo, o que se relaciona com a mecanização da
agricultura que assim liberta mão de obra para a indústria em crescimento na Gran-
de Lisboa. Mas aqui a queda ainda é mais acentuada pela decadência e encerramen-
to da Mina de S. Domingos, o fim dos transportes fluviais que alteram a posição de
Mértola no sistema viário. Acrescente-se ainda a exaustão das terras após a célebre
Campanha do Trigo dos anos 30, que quase desertificou em termos ambientais este
concelho de terras delgadas. Repare-se que a população actual do concelho de Mér-
tola é menos de um terço do que era na década de 40 e cerca de metade da existen-
te no século passado.
Sintomático deste êxodo é a quantidade de pessoas que vivem na Margem Sul do Te-
jo, mas também na Margem Norte, como Sacavém. Continuam a defender a sua cul-
tura, desde o Coral da Mina de S. Domingos na Margem Sul, à Casa do Alentejo em
Lisboa, ou até mesmo, na Casa do Alentejo em Toronto.

35000

30000

25000

20000

15000

10000

5000

0 GRÁFICO 9
Evolução da população residente
1878 1890 1900 1911 1920 1930 1940 1950 1960 1970 1981 1991 1997 (concelho de Mértola).
29 MÉRTOLA E O GUADIANA

2.4. UMA SOCIEDADE RURAL?

Ao contrário das outras vilas e cidades do Alentejo não encontramos quase a presen-
ça de habitações de grandes agricultores, com portões para entrada de cavalos ou ou-
tras bestas, celeiros e habitações de trabalhadores rurais. Nem sequer a ostentação
de pequenos palácios ou palacetes, encimados com brasões. Os maiores edifícios ci-
vis eram habitações de comerciantes.
Embora tradicionalmente a maior parte da população do concelho de Mértola, com ex-
cepção da Mina de S. Domingos e povoações periféricas desta, vivesse da agricultura
(Gráfico 7 e 8), os detentores da terra e os assalariados agrícolas não viviam em Mérto-
la, mas nos “montes”, que aqui correspondem ao que normalmente se chama aldeia10.
10
No Alentejo em geral monte sig- Alguns dos grandes proprietários viviam mesmo fora do concelho. Esta tendência acen-
nifica casa de habitação e depen- tuou-se e hoje em dia há grandes propriedades que pertencem a grandes industriais e
dências, situadas no campo, rela- banqueiros (por exemplo a herdade dos Belos de Champalimaud), proprietários de ca-
cionadas com uma unidade de pro- sinos (Stanley Ho) e outros que as utilizam sobretudo para lazer, nomeadamente a ca-
dução agro-pecuária. Aqui tem ça. Os poucos agricultores que viviam em Mértola eram normalmente seareiros que as-
também o significado de peque- sociavam a agricultura ao comércio e ao transporte por terra ou pelo rio.
na aldeia. A vila era essencialmente um local onde se prestavam serviços e se fazia comércio,
11
Processo semelhante é também função que perdurou e se acentuou na actualidade. A par das actividades terciárias
descrito por Cutileiro em relação existia a actividade piscatória, hoje em franca decadência.
a Monsaraz. Cf. Cutileiro, Ricos e Não existe, portanto, uma tradição camponesa na vila nem no seu termo, embora es-
Pobres no Alentejo, Lisboa, Sá da tivesse inserida num mundo rural, num concelho, de que ela é centro administrativo
Costa, 1977 e económico. Mesmo essa ruralidade dificilmente se poderá adequar a uma defini-
12
Hélder Fonseca, O Alentejo no ção de sociedade camponesa, num meio em que a propriedade tem estado na posse
Século XIX, Economia e Atitudes de poucos. Aqui o latifúndio impera11, como na maior parte do Alentejo, a estrutu-
Económicas, Lisboa, Imprensa Na- ra sócio-económica assemelhava-se mais ao modelo aplicado também na América do
cional Casa da Moeda, 1996, p.437 Sul (por exemplo no Nordeste do Brasil) do que no Norte do país ou na maior parte
13
A H. De Oliveira Marques, His- do Mediterrâneo e Europa, embora a Andaluzia e a Extremadura espanholas este-
tória da Primeira República Portu- jam em situações idênticas. O que não significa que na região (Alentejo) não houves-
guesa, Lisboa, Iniciativas Editoriais, se mudanças ao longo do século XIX e até algum dinamismo sobretudo até à crise de
1978, pág. 78 1890, após a qual se acentua a tendência proteccionista. Segundo Hélder Fonseca:

Contrariando o paradigma da crónica falta de iniciativa


e dinamismo, a elite económica alentejana, em fase de
renovação sociológica, não se colocou à margem deste
processo. Para o efeito, usou os recursos domésticos, a
constituição de capitais familiares e exclusivamente re-
gionais e a participação em outras ao lado de investi-
dores nacionais. Tornou-se, deste modo, uma parte ac-
tiva na concorrência, na disputa e partilha das mesmas
oportunidades e negócios.12

Apesar do latifúndio ter sido sempre uma realidade, a tendência para a concentra-
ção da propriedade aumenta a partir dos meados do século XVIII, com a privatiza-
ção das terras comunais (vide Albert Silbert) e sobretudo já no século XX: A chama-
da Serra de Mértola ou de Cambas tinha ainda no início do século como compartes
do baldio os habitantes das paróquias de Mértola, Corte do Pinto e Santana de Cam-
bas. A sua dimensão era de 9661,15 hectares, o maior baldio entre aqueles que foram
divididos no país entre 1925 e 193313. Estas terras foram divididas em sortes pela po-
pulação que habitava na margem esquerda do rio e a responsável pela sua divisão foi
a Câmara Municipal de Mértola nos termos do Alvará de 27 de Novembro de 1804,
leis e decisões complementares. A sua divisão era vista por alguns como panaceia pa-
ra a resolução da crónica falta de produtos alimentares, sobretudo hortaliças e frutas,
que tinham que vir de fora, isto é, do Algarve. O Futuro de Mértola faz-se eco destas
aspirações em vários artigos de opinião, como este em Junho de 1913:

Cidadãos habitantes da parte de Cambas, vejam que es-


tamos em plena República, é tempo de acabarmos com
todas as velharias da monarquia:
– A terra deve deixar de ser o que até hoje tem sido, isto
MÉRTOLA E O GUADIANA 30

para bem de nós todos (...) A serra sendo dividida por


quem a ela tiver direito é uma grande fonte de riquesa,
isso não resta duvida nenhuma, visto que sabendo cada
um qual o bocado que lhe coube na divisão, já cultiva e
amanha as terras com gosto (...) Deixará também de fa-
zer a grande massada de todos os anos: - Casas de fami-
lia a encomodarem-se na tradicional manhã de S. João
para obterem um bocado de terra que muitas vezes não
chega para um ou dois alqueires de serviço. (...) A serra
possue riquissimos terrenos que podem ser explorados
com todas as culturas, visto que tudo produzira e com
abundancia. (...) Deixemos de ilusões: a serra da forma
em que ainda hoje a temos só pode interessar a meia
dúzia de pessoas, ou seja os proprietários de gados, por-
tanto nada de demoras e a divisão que se faça.14 14
O Futuro de Mértola, Junho de
1913
Até ao seu parcelamento, a serra era sobretudo aproveitada para pastagens. Ainda 15
Contíguo a este baldio havia tam-
nos anos 20 do século XX, se assiste à sua partilha e à posterior anexação destas par- bém o baldio da Serra de Serpa
celas pelas grandes propriedades. A pobreza do solo e a falta de capitais por parte com cerca de 30000ha que foi di-
da população abrangida levou a que a maioria vendesse essas sortes. Ainda hoje, em vidido, num processo semelhan-
Mértola, se fala de formas pouco lícitas de compra dessas sortes.15 te durante a primeira década do
Utilizamos aqui o conceito de camponês no sentido que lhe deu Henri Mendras: século XX.
Por contraste com o selvagem e com o agricultor, o tipo ideal de sociedade campone- 16
Henri Mendras, Sociedades
sa se define pelos cinco traços seguintes: Camponesas, Rio de Janeiro,
Zahar,1978, pp15
1. A autonomia relativa das colectividades campone- 17
Moisés Espírito Santo, Comuni-
sas frente a uma sociedade envolvente que as domi- dade Rural ao Norte do Tejo segui-
na mas tolera as suas originalidades. do de Vinte Anos Depois, Lisboa,
2. A importância estrutural do grupo doméstico na or- Universidade Nova de Lisboa,
ganização da vida económica e da vida social da co- 1999 p 39
lectividade.
3. Um sistema económico de autarcia relativa, que não
distingue consumo e produção e que tem relações
com a economia envolvente.
4. Uma colectividade local caracterizada por relações
internas de interconhecimento e de relações débeis
com as colectividades circunvizinhas.
5. A função decisiva do papel de mediação dos notá-
veis entre as colectividades camponesas e a socieda-
de envolvente.16

À primeira vista, “paradoxalmente”, este conceito aplica-se também, aqui em Mérto-


la, mas à comunidade dos marítimos, ou comunidade ribeirinha, isto é o conjunto de
pessoas ou famílias que vivem do rio como principal recurso, seja através da pesca ou
do transporte. Exceptuando o facto de viverem essencialmente do rio e não da terra
todos os traços caracterizados se aplicam.
Se referimos que a maioria da população vivia de serviços e do comércio, não pode-
mos esquecer que esses serviços e comércio estavam relacionados com o rio como
principal via de comunicação numa sociedade essencialmente rural. Também:

Nem só os trabalhadores da terra são camponeses; to-


dos os membros da sociedade restrita (aldeia, fregue-
sia rural), artesãos, comerciantes, são-no igualmente
ao mesmo título que os que vivem exclusivamente da
terra, desde que vivam no interior dessa colectividade
e dependentes dela. Acrescente-se ainda que os cam-
poneses não têm necessariamente todos o mesmo nível
económico. [...] Segundo o mesmo critério, há grandes
proprietários rurais que continuam a guiar-se pelo tipo
camponês, do mesmo modo que existem pequenos pro-
prietários que não são camponeses mas agricultores.17
31 O GUADIANA COMO VIA DE COMUNICAÇÃO
O GUADIANA COMO VIA DE COMUNICAÇÃO 32

III
O GUADIANA COMO VIA DE COMUNICAÇÃO
33 O GUADIANA COMO VIA DE COMUNICAÇÃO

3.1. OS LIMITES DO GUADIANA NO CONCELHO

DE MÉRTOLA.

Rio Guadiana

MAPA 2
Concelho de Mértola.
O GUADIANA COMO VIA DE COMUNICAÇÃO 34

Os limites do Guadiana no concelho de Mértola são a Norte e na margem direita a


foz da ribeira de Terges e Cobres que limita com o concelho de Beja. A margem es-
querda inclui-se no concelho de Serpa até ao barranco da Furada. E desde aí e até à
confluência com o rio Chança que faz fronteira com Espanha, ambas as margens per-
tencem ao concelho de Mértola. A sul parte com o Concelho de Alcoutim na ribeira
do Vascão que é o limite administrativo no rio na margem direita, visto que a margem
esquerda desde a foz do Chança e até ao Oceano Atlântico é espanhola.
Poderemos dividir esta extensão do rio essencialmente em duas áreas, de acordo com
o tipo de navegação e a influência das marés, o que condiciona o modo de apropria-
ção do rio. O limite dessas duas áreas situa-se no açude das azenhas de Mértola: a
primeira para montante até ao Pulo do Lobo, e a segunda desde as ditas azenhas até
à foz do Vascão.Estes limites que aqui considerámos não correspondem exactamen-
te aos de Mariano Feio embora se aproximem, visto que este se referia aos limites da
geografia física e nós aqui incidimos sobre a apropriação social do rio.
Os limites jurisdicionais das águas marítimas situam-se precisamente nas azenhas de
Mértola (Fig. 9), embora, sobretudo quando há marés vivas, elas cheguem até outro
açude mais a montante, os Canais (Fig. 6). O açude destas azenhas impede também
a navegação de barcos de médio calado, embora com marés vivas seja possível ultra-
passá-lo com um barco pequeno. Para montante das azenhas de Mértola há que ter
uma atenção permanente ao fundo do rio. Por exemplo, no sítio do Carvoeiro (Fig. 8)
o barco pode facilmente roçar o fundo constituído por cascalho.
Também desse limite para Norte a navegação só é possível com pequenos botes e com
algum cuidado e experiência de terreno. As margens do rio começam mesmo a tor-
nar-se cada vez mais alcantiladas, nomeadamente a partir da Rocha da Galé (Fig. 7),
que tem uma lapa que tanto serve de abrigo como de refúgio a quem anda foragido
(um pouco antes do açude e azenhas dos Canais).
Nos Canais encontramos um outro açude com uma azenha. Neste lugar encontrava-
se até há poucos anos um caneiro, já destruído. Para ultrapassar este açude já é ne-
cessário carregar o bote. No entanto, é uma zona procurada sobretudo para a pesca
da lampreia, da enguia e também de outras espécies que vão desovar.
Entre os Canais e a Brava o rio continua com um curso apenas navegável com barcos
de fundo chato. A Brava é outro açude com azenhas e que também tinha dois canei-
ros (Fig. 5). Estes moinhos são abobadados e resistem de tal maneira às enchentes do
Guadiana que os submergem, que, apesar de não serem utilizados nem reparados há
dezenas de anos continuam aparentemente quase incólumes. Os seus açudes, cons-
truídos em pedra sossa, isto é, sem qualquer cimento ou cal, continuam a resistir às
enormes pressões da água no Inverno, embora já com evidentes falhas1. Também é 1
Cf. Rui Guita, Engenhos Hidráu-
necessário transportar o barco para ultrapassar esse açude. O próprio topónimo indi- licos Tradicionais, Mértola, Par-
ca que a terra é cada vez mais inóspita, deserta. que Natural do Vale do Guadia-
Daí até ao Pulo do Lobo o rio estreita cada vez mais, só se vê água e rochas altas e na, 1999
uma pequeníssima praia de areia. No Verão o rio chega a ser um veio de água (por
vezes profundo) escavado na rocha dura (xistos), onde surgem no seu curso escultu-
ras naturais a quem a população atribui nomes (Fig. 4, por exemplo). Das margens
secas surgem pequenas fontes de água férrea. Com as cheias de Inverno tudo é ala-
gado.
A navegação em pequenos barcos só é possível ser feita por alguém que conheça bem
o rio, nomeadamente devido às rochas imersas, e mais dificilmente no Inverno, devi-
do à forte corrente. Raramente se vê alguém nas margens e os campos em redor ape-
nas são utilizados para pastagens ou para caça. Até aos anos setenta, havia pequenos
grupos de caçadores e pescadores não profissionais que vinham aqui trazendo ape-
nas sal e temperos (coentros, oregãos etc.), pão e vinho, e alimentavam-se com o que
pescavam (barbos, eiróses etc.) e caçavam (patos, lebres, coelhos e perdizes). Por ve-
zes, como alguns dos barrancos eram cultivados colhiam-se tomates e faziam-se to-
matadas com ovos dos pombos que faziam ninhos entre as rochas. Hoje em dia a po-
luição do rio e das terras, quase não permitem esse tipo de saídas, além do facto de a
maioria delas serem coutadas.
Cite-se a propósito do Pulo do Lobo, estes textos do Conde de Ficalho e de Bulhão
Pato:
35 O GUADIANA COMO VIA DE COMUNICAÇÃO

Para os que tiverem visto a catadupa do Niagara – escre-


ve numa página célebre Bulhão Pato – o Pulo do Lobo
deve ser uma coisa insignificante. A nós produziu-nos
viva Impressão. O rio chega a um ponto que se precipi-
ta de grande altura, some-se fumegando por uma gar-
ganta de rochedos, e sai depois arredondando-se num
lago, que parece estagnado, lá em baixo, entre as pe-
nedias. O estrondo em que se precipita o enorme es-
toque de água e a serenidade sombria do lago adorme-
cido fazem um contraste notável. Para se formar ideia
mais clara da queda do rio, imagine-se um arco aberto
no centro; a essa abertura do arco, relativamente gran-
2
Guia de Portugal, Estremadura, de, é que se dá o nome de Pulo do Lobo.2
Alentejo e Algarve, Lisboa, Bibliote-
ca Nacional de Lisboa, 1927, vol. II Certamente estaremos longe do Niagara ou de Iguaçu mas, sobretudo no Inverno é
3
idem, ibidem. impressionante. Facilmente uma pessoa que se aproxime ficará molhada devido às
gotículas que formam uma espécie de nevoeiro. É de notar também a tenacidade dos
peixes que tentam ultrapassar essa “catarata” o que nem todos conseguem, apesar
das numerosas tentativas.

Uma manhã veio ele, dando volta pelos matos dos Rus-
sins, até dar vistas ao Guadiana, por cima da pedra dos
Grifos. O dia estava claro; e na luz ampla e forte o va-
le parecia mais desolado e triste. O Guadiana ia baixo,
deixando quase a descoberto o seu vasto leito de pedra,
rasgado, roído, lavado pelas águas. Nas margens nem
uma árvore nem uma nesga de várzea relvada – a cor-
rente levara tudo, terra e areia, ficando só a rocha nua,
e as manchas cinzentas dos calhaus dos quartzos rola-
dos, entre as quais passava a fita azulada e brilhante do
rio. Pelas moitas pobres de loendro escuro e tamugem
ruiva, os palhiços secos, travados, marcavam o nível da
última cheia.
Uma solidão absoluta.
Apenas agora, as cabras vermelhas do José Bento vi-
nham aparecendo, uma a uma entre o mato da encos-
ta, com as orelhas fitas e as cabecinhas finas de animais
quase selvagens. Em cima, no azul pálido, dois grifos
pretos descreviam num voo sereno as suas órbitas in-
termináveis.
As cabras vieram descendo, em filas, pelos carreirinhos,
e o José Bento desceu com elas. Ao dobrar um cabeço
descobriu o Pulo do Lobo: todo o rio se encerrava no
canal estreito, tomando uma velocidade louca, as águas
que se apertavam, atropelando-se em veios sobrepos-
tos; depois a fenda na rocha, tragando tudo; e, por de-
trás, a água, pulverizada na queda elevando-se num ne-
voeiro branco, que o sol irisava nos bordos, dando-lhe
tons de opala.3

A paisagem é quase a mesma, mas os grifos já são raros. Uma das explicações que a
população dá para o quase desaparecimento destes abutres é o facto de antigamen-
te as pessoas deixarem no campo animais mortos, nomeadamente mulas e burros de
que eles se alimentavam. A sua raridade decerto estará também associada ao uso de
produtos químicos na agricultura e ao envenenamento frequente de animais que al-
guns pensam ser a melhor maneira de acabar com os predadores da caça miúda.
De Mértola para Sul o rio torna-se navegável e vai alargando até à foz (Fig. 18). No
entanto, a navegação padece ainda de algumas dificuldades que se mantiveram des-
O GUADIANA COMO VIA DE COMUNICAÇÃO 36

de sempre. Há zonas baixas, os vaus, que só permitem a navegação durante a maré


cheia. Há três vaus a jusante de Mértola, um muito próximo da vila, o vau da Pedra
depois o vau da Vaqueira e o vau da Bombeira.
Os obstáculos pareciam fáceis de ultrapassar no século XVIII, mas ainda hoje conti-
nuam. Nas memórias paroquiais diz-se o seguinte:

He rio navegável à distancia de onze ou doze legoas


athe à cidade de Aemonte, Reino de Castella, e barra
de Castromarim, Reino do Algarve, donde se encorpo-
ra no mar, e isto de sua mesma natureza. Por elle vem
as caravelas de Setubal, e embarcaçoens similhantes,
carregar trigos e cevadas a esta villa, mas não passam
de sitio da Mesquita que dista tres legoas desta villa por
cauza de algum cascalho de inundaçoens que no rio//
tem feito dous ou tres váos, os quaes athe os barcos,
que para os yates e caravelas levam desta villa a carga,
nam passam sem haver maré chea; podendo remedear-
se este impedimento sem muito custo. O impedimento
porém de roxedos, e caxopos, que o rio tem para a par-
te de sima donde nasce, não tem facil remedio e com
effeito he innavegavel de sua natureza.4 4
Joaquim Ferreira Boiça, Maria de
Fátima Rombouts Barros, As Ter-
Também o cura do Espírito Santo se refere aos limites de navegação e às ligações com ras, As Serras, Os Rios, Memórias
a margem esquerda do rio. Sublinhe-se também as referências às caravelas em ambos Paroquiais de 1758 do Concelho de
os textos o que confirma uma utilização continuada (ver na Fig. 21 - Porto antigo, iní- Mértola, Mértola, Campo Arqueo-
cios do século XVI. Ilustração de Duarte D’Armas): lógico de Mértola, 1995
5
Joaquim Ferreira Boiça, Maria de
Não tem porto de mar e nelle há e tem duas barcas de Fátima Rombouts Barros, As Ter-
passaje, huâ no sitio da Pena de Águia e outra no citio ras, As Serras, Os Rios, Memórias
da Mesquita e ambas passam para Santa Anna de Cam- Paroquiais de 1758 do Concelho de
bas. (...) E só thé à barca da Mesquita se navega com Mértola op. cit.
botes ou caravellas, o mais só pode navegarse thé Mer-
tola com lanxas e outras embarcasois desta qualidade.5

3.2. DO CONCELHO DE MÉRTOLA ATÉ À FOZ

Se os espaços administrativos do Concelho de Mértola e Distrito de Beja ou do Alente-


jo terminam na ribeira do Vascão, isso não significa que tenha sido um limite para a po-
pulação dos marítimos de Mértola. Estes iam frequentemente a Vila Real nas carreiras
que faziam, de transporte de passageiros ou mercadorias ou pelas actividades relacio-
nadas com a pesca. Aliás, como as pescarias mais importantes, são de peixe de entrada,
isto é, de espécies migradoras, isso justifica uma necessidade de ir à procura dessas mes-
mas espécies, desde o momento em que elas começam a subir o curso do Guadiana.
Alcoutim (Fig.16) era um porto de apoio importante para estes marítimos, que aqui
estabeleciam relações com uma população com um modo de vida semelhante.
Na margem esquerda, espanhola, praticamente não encontramos habitações, a não
ser um antigo posto da Guardia Civil espanhola, os famigerados “carabineros”, em
frente ao Pomarão.
Mais abaixo do Pomarão situa-se o porto de La Laja porto mineiro, também relacio-
nado com as minas chamadas popularmente Minas de Isabel e Herrerias, às quais
se encontrava também ligado por uma linha de caminho de ferro. Foi explorado por
uma companhia alemã. Hoje encontra-se desactivado e quase desabitado. Ainda se
vêem habitações e o cais e, neste, as aberturas dos armazéns por onde saíam as man-
gas pelas quais era despejado o minério para dentro dos navios. Segundo as infor-
mações que obtivemos da população de Mértola, era em parte habitado por por-
tugueses. Diz-se ainda que durante a segunda guerra mundial havia informadores
portugueses e espanhóis que alertavam os beligerantes sobre a saída de navios com
minério a partir do Pomarão ou de La Laja. Enquanto os navios alemães eram es-
perados pela aviação inglesa a partir de Gibraltar, os que partiam do Pomarão eram
37 O GUADIANA COMO VIA DE COMUNICAÇÃO

também atacados no alto mar pela aviação alemã, a partir de informações dadas por
informadores portugueses.
Na margem esquerda em frente a Alcoutim, ainda hoje só acessível por barco a par-
tir de Portugal, fica San Lúcar del Guadiana que mantinha relações especiais com as
6
João Carlos Garcia op. cit., p 32 povoações portuguesas sobretudo até aos anos 30.6
7
Maria Luísa Santos, Ayamon- O mesmo não se passava com as outras povoações espanholas que ficam mais no in-
te Geografía e Historia, Ayamonte, terior. De Ayamonte para o interior corria uma estrada muito antiga: era o chama-
1990, p.12 do Camino Viejo de la Escarpada, que ainda existe, e que, passando por Villa-Blan-
ca, San Silvestre de Guzman, Villa Nueva de los Castillejos, seguia até ao interior da
Península7. Ainda hoje é voz corrente em S. Lúcar que parte da população é de ori-
gem portuguesa. Ao contrário do que acontece em muitas povoações espanholas, há
muita gente que sabe expressar-se em português. Hoje em dia, com o fim da fiscaliza-
ção da fronteira, é frequente as pessoas passarem-se de um lado para outro, sobretu-
do durante as festas, mas também no dia a dia, nem que seja só para beber um copo
(depois da hora da sesta espanhola, visto que depois de almoço não se vê ninguém).
A tripulação do Vendaval tem já o hábito de frequentar a taberna do “Julião” junta-
mente com os passageiros, o que pode dar azo a umas cantorias alentejanas e anda-
luzas, enquanto se espera pela subida da maré para regressar até Mértola (não que
seja necessário esperar aí, mas já agora...!)
Daqui até à barra não existem mais povoações do lado espanhol excepto Ayamonte
em frente a Castro Marim. Do lado português vemos as margens cultivadas, com pe-
quenas hortas e aldeias viradas em socalcos para o rio, como Laranjeiras e Guerrei-
ros do Rio (sobretudo esta) ou Foz de Odeleite e Almada de Ouro, já no Concelho de
Castro Marim. São tradicionalmente populações de camponeses que aliavam a práti-
ca da agricultura à pesca no rio e à produção artesanal, e transportavam os seus pro-
dutos em pequenos barcos através do Guadiana.
A margem espanhola é menos cultivada, embora se veja um ou outro pomar de laran-
jeiras ou um campo de milho. Tal como do lado português, a par de casas em ruínas,
aparecem casas reconstruídas ou novas propriedade de emigrantes ou de pessoas do
Norte da Europa que para aqui vieram à procura de um ambiente mais equilibrado.
Castro Marim é a vila mais antiga do curso final do Guadiana. Tal como Mértola foi
também uma comenda de uma ordem militar, a Ordem de Cristo (antes Ordem do
Templo), e ainda hoje conserva imponentes estruturas militares, desde o antigo caste-
lo dos Templários até aos fortes construídos na época da Restauração. Povoação des-
de sempre ligada ao rio e ao mar, foi sendo progressivamente assoreada o que levou
à sua decadência e à necessidade de construir a actual cidade de Vila Real de S. An-
tónio, que assim a substituiu em parte das suas funções.
A entrada em Castro Marim pelo rio não é fácil; faz-se através de um esteiro, nave-
gável na maré cheia por pequenos barcos. Rodeada por sapais, estes, apesar dos de-
pósitos de areias a isolarem progressivamente e permitirem a invasão de mosquitos
que a tornavam mais insalubre, também permitiram a criação de uma das suas rique-
zas, desde sempre explorada: o sal. Este é considerado de muito boa qualidade e era
também aqui que os barcos de Mértola o vinham buscar.
Finalmente Vila Real de S. António. Vila criada por decreto em 1755 e planificada em
Lisboa é um dos melhores exemplos do despotismo iluminado pombalino. As razões da
sua fundação prendem-se com a necessidade do Estado controlar as pescas no Algarve,
especialmente a sardinha e o atum, que estavam nas mãos de companhias espanholas,
andaluzas e sobretudo catalãs, que operavam nas praias de Monte Gordo, onde a po-
pulação era, aliás, na sua maioria espanhola. Necessária seria também para reforçar a
soberania portuguesa, visto que Castro Marim estava profundamente decadente face a
Ayamonte. Este discurso do poder vê-se claramente na Fachada virada para o rio (e por
isso também para Espanha) onde as companhias de pesca tinham a respectiva porta de
entrada, escritórios e mansardas, um conjunto semelhante a um palácio (Fig. 19).
A rigorosa planificação da funcionalidade dos espaços, praça real com obelisco sim-
bólico, as ruas, as casas, tudo contribui de uma forma sistemática para demonstrar o
poder real glorificado e empenhado no desenvolvimento económico dos povos, assu-
mido de uma forma paternalista.
Se a existência de uma cidade não se pode explicar apenas pela sua origem e pe-
la vontade do seu fundador, Vila Real de S. António é, no entanto, um caso espe-
cial que revela uma antevisão do desenvolvimento do país, apesar da sua decadência,
pouco depois da sua fundação e novo progresso económico durante a segunda meta-
O GUADIANA COMO VIA DE COMUNICAÇÃO 38

de do século XIX e século XX, mercê do novo desenvolvimento das pescas e fábri-
cas de conservas, hoje em dia fechadas, e até a desaparecer fisicamente o que resta-
va dos seus edifícios.
Vila Real tornou-se assim, o início e o fim do Guadiana, mais início, dado que tudo
indica que o tráfico de mercadorias e a circulação de pessoas sempre aqui se fez, da
foz para montante, neste caso desde essa mesma foz até Mértola, o limite das marés,
das águas marítimas e dos marítimos ou em termos de actividade piscatória um pou-
co mais acima, até ao Pulo do Lobo, na área de Mértola.

3.3. OS PORTOS

O rio tem vários pequenos portos de Mértola até à foz.


O porto de Mértola situava-se antigamente e até há poucas décadas junto à confluên-
cia com a ribeira de Oeiras (Fig. 21, 24 e 25), que servia também para atracar os bar-
cos e sobretudo para protegê-los quando vinha alguma enchente a partir de cima Se a
“ribeirada” vinha do Oeiras então teriam que ser tomadas providências diferentes.
Ainda hoje essa ribeira é assim utilizada. Os barcos maiores, o gasolina ou as cano-
as ficavam ao largo. Nesta zona portuária situavam-se várias casas de habitação e de
apoio às actividades de pesca e navegação. Havia até vendas onde as pessoas se abas-
teciam e bebiam e conversavam nas horas vagas: A minha avó tinha uma venda que
vendia louça, vendia fruta e copinhos de aguardente e vinho. E a prima Rita do Rio era
a mesma coisa8 . 8
Ilda Simões S. Alho
Quase todos os anos, quando vinha uma cheia os proprietários eram obrigados a des-
pejá-las dado que o rio as submergia com águas e lama. Trabalho incessantemente re-
feito, até que há algumas décadas foram abandonadas, embora ainda hoje existam os
seu alicerces, que por vezes são utilizados para guardar galinhas ou porcos. Em frente
há um rochedo, o penedo, onde por vezes se amarravam os barcos e que era um pri-
meiro desafio para as crianças que aprendiam a nadar.
Na margem esquerda havia uma antiga estrada de acesso às habitações de Além Rio.
Essa estrada, de que ainda hoje é possível ver restos de calçada (Fig. 20), tem origem
remota e liga-se a uma antiga via romana (é o início dela) que segue em direcção ao
monte da Malhadinha e que foi secularmente o acesso principal da margem esquer-
da do rio.
O porto actual tem cais já com grandes dimensões, e nele é possível acostarem barcos
de maior porte. É servido por uma estrada de acesso que sobe em direcção ao actual
cine-teatro (Fig. 46) e estrada para Beja.
Em frente ao cais havia também uma estrada que fazia o acesso à outra margem, don-
de seguia para a Mina de S. Domingos e Serpa. Este acesso já é pouco utilizado, em-
bora a estrada (refeita) ainda continue a ser utilizada, sobretudo a partir da ponte.
A primeira casa que se encontrava (foi transformada em 1998 em restaurante) era a
chamada casa amarela (está pintada desta cor) que era uma mercearia e onde se ven-
dia de quase tudo (Fig. 23). Perto havia ainda uma estalagem e “arramada” (cavalari-
ça onde ficavam as mulas e burros e quase sempre os respectivos donos), também co-
nhecida por albergaria. Nesta, ainda se vêem as manjedouras que davam para dezenas
de animais, o chão calcetado, o tecto em caniço e uma grande chaminé. Também nes-
sa casa se conserva uma antiga salgadeira que servia sobretudo para conservar o peixe
(sardinhas) que vinha do Algarve e depois era transportado em barricas no dorso dos
burros até localidades do interior com Serpa, Moura e Barrancos.
A ligação entre as duas margens era assegurada pela ponte-barca (Fig. 27 e 29) que
existiu até à construção da ponte.
Seguindo o curso do rio encontramos outro pequeno porto apenas acessível a peque-
nos barcos, na margem direita, junto à ribeira de Carreiras, na Quinta da Bombeira,
conhecida desde remotos tempos pela qualidade dos seus produtos agrícolas, sobre-
tudo laranjas e uvas.
Mais a Sul, na mesma margem, há a pequena povoação piscatória de Penha de Águia
(ou Pena Dague como pronunciam as pessoas locais).
Perto da povoação da Mesquita, encontramos ainda outro antigo acesso ao rio, em
frente ao Pomarão e que seria o local referido pelas Memórias Paroquiais. Seria este
39 O GUADIANA COMO VIA DE COMUNICAÇÃO

o limite para as embarcações maiores, que não pudessem esperar pelas marés cheias
ou que pelo seu calado não conseguissem ultrapassar os vaus e atingir Mértola.
Ainda hoje se mantêm edifícios em ruínas de apoio a este antigo porto, sobressaindo
aqui a marca da presença da companhia que explorava a Mina de S. Domingos, atra-
vés de um painel de azulejos, com as imagens dos seus fundadores num antigo pom-
bal utilizado pela companhia para enviar mensagens através de pombos correio. Es-
te pequeno porto tem uma estrada que dá ligação à povoação da Mesquita e a partir
daí a Mértola.
Em frente do porto da Mesquita fica o Pomarão, que era o porto mais importante
do curso do Guadiana, com excepção da barra. Foi construído para servir a Mina de
São Domingos, concessionada à Companhia de Huelva La Sabina e explorada pe-
la companhia inglesa Mason & Barry (Figura 13 e 14). Esta companhia construiu as
infra-estruturas portuárias, armazéns, escritórios, telégrafo etc. Ligando o Pomarão
e a Mina existia uma linha de caminho-de-ferro com a extensão de 18 Km, uma das
primeiras do país, mas que foi desmantelada após o encerramento desta. Ainda ho-
je a maior parte dos edifícios pertencem à companhia concessionária. A exploração
mineira que já tinha existido, pelo menos, na época romana, recomeça na década de
cinquenta do século XIX e prolonga-se até aos anos sessenta do século XX. “Nos fins
da década de 1880 frequentavam o porto 400 navios por ano, entre veleiros e vapo-
res, que carregavam por dia 1500 a 200 toneladas de minério, transportadas por 870
9
Severiano Monteiro (1889), cita- vagons e 26 locomotivas.”9
do por João Carlos Garcia, op. cit., Esta empresa manteve durante o século XX vários navios que não excediam os 4.8
pp.88-89 metros de calado, como o Zé Manel, O Silva Gouveia, o Costeiro e o Costeiro II, entre
10
Joaquim António Martins, A His- outros, conduzidos por pilotos experientes: “...o Bulgesso vinha do Pomarão à noite,
tória da Pilotagem Prática em Por- sem luzes nas margens, sem faróis de ajuda, sem bóias, só com a sua visão nocturna
tugal, p.186 extraordinária que lhe dava para ver o que as pessoas normais não viam!”10
Além destes navios e, dado que a profundidade da barra é baixa, esta empresa man-
tinha permanentemente a draga Mowe retirando areias não apenas da barra mas até
ao Pomarão.
O porto do Pomarão era também essencial para Mértola e consequentemente para
o Baixo Alentejo. Com efeito, dado que os vaus não poderiam ser ultrapassados se-
não na maré cheia, produtos como adubos vinham em navios da CUF ou SAPEC até
aqui e depois eram transbordados para barcos mais pequenos (canoas ou gasolinas)
e descarregados em Mértola.
Com o fim da Mina tudo o que podia ser rentabilizado e transportado foi levado: má-
quinas, carris do caminho-de-ferro foram vendidos para a sucata. Ainda hoje pode-
mos ver o que resta das antigas instalações portuárias e do seu alto cais, e as ruínas de
alguns edifícios. Os estabelecimentos comerciais estão hoje abandonados, um deles
ainda mantinha, até há pouco tempo, o balcão da loja, mas é já uma casa de habita-
ção não permanente, a loja do senhor Vitoriano está destelhada e cresce uma figuei-
ra nas suas paredes. Continua a sociedade recreativa que conserva ainda a memória
do antigo esplendor em alguns desenhos, fotografias e outros objectos e sobretudo a
memória dos antigos tempos, nas conversas de alguns frequentadores. Actualmente
o Pomarão é bastante procurado por turistas, mas há dificuldade na obtenção de es-
paços, dado que a maioria dos edifícios ainda pertencem à companhia.
Também a navegação hoje se torna um pouco mais difícil. Com a construção da barra-
gem do Chança (espanhola), na foz do mesmo rio, acumulam-se detritos resultantes
das descargas necessárias quando a albufeira atinge os limites da sua capacidade.

De Pomarão para baixo (...) o Guadiana (que, depois


de nascer em Espanha nas lagoas de Roidera, de ba-
nhar Mérida e Badajoz, de ter separado durante o per-
curso de muitas léguas o Alentejo da Estremadura es-
panhola, e de se ter internado por Portugal dentro, para
banhar os arredores de Serpa e de Moura e os muros
de Mértola, forma aqui pela segunda vez a fronteira na-
tural do país) corre esverdeado entre montes abruptos
e severos, que à medida que o barco navega vão sur-
gindo sempre uns atrás dos outros—à esquerda a Espa-
nha, à direita Portugal—,os nossos mais pacíficos e às
vezes cultivados até o rio, os dos vizinhos austeros, pe-
O GUADIANA COMO VIA DE COMUNICAÇÃO 40

dregosos e bravios - grande uniformidade deserta, on-


de aparece, isolada e perdida no cenário, uma ou ou-
tra casinha colmada. Diante de nós, a água que anima
tudo isto, lisa e unida à proa do vapor, com veios lon-
gínquos mais quietos e riscos que estremecem à super-
fície; e naquela braveza de fragas e vegetação quase ne-
gra das encostas, irrompe de quando em quando uma
amendoeira, que se entreabre no Inverno em milhares
de pequeninas flores, como se toda ela criasse asas. Pa-
ra o longe avistam-se mais serras, serras desta Espanha
que daqui se nos afigura esfarrapada e concentrada. E
o barco segue, e os montes seguem-nos, encerrando o
rio numa série de lagos dormentes, cheios dum encanto
melancólico e selvático. As vezes afigura-se-nos que va-
mos tocar naquela tremenda barreira lá do fundo, mas
o vapor dá uma volta à procura do canal, e entramos
noutro lago rodeado de encostas cortadas quase a pique
sobre as aguas. Outra volta, outro lago, este mais am-
plo, luminoso e azul, cujas margens se entreabrem pa-
ra nos desvendar um cantinho cultivado e rústico - uma
casa, algumas árvores e três palmos de erva muito ver-
de. Desce-se, e o desfile panorâmico, um pouco seve-
ro mas amplo, variado e cheio de luz, vai-se renovando
sempre diante dos nossos olhos. É um cone formidável
que se destaca dos outros montes, é Alcoutim num fun-
do risonho de amendoeiras, com S. Lúcar do Guadia-
na na margem oposta; é sobretudo a vida maravilhosa
das águas, que se embebe de todos os tons do azul e dos
montes, e que estremece, reluz e se modifica a rodos os
momentos, com uma sensibilidade extraordinária11.
11
Guia de Portugal, Estremadura,
Alentejo e Algarve, Lisboa, Biblio-
3.4. AS MARGENS DO RIO teca Nacional de Lisboa, 1927,
vol. II p. 165
12
Joaquim Ferreira Boiça, Maria
As margens do rio no concelho de Mértola raramente são cultivadas, embora haja al- de Fátima Rombouts Barros, As
gumas excepções, como seja o caso da Quinta da Bombeira já referida. Por um lado, Terras, As Serras, Os Rios, Memó-
esta situação deve-se ao tipo de relevo (margens altas), mas também ao facto de a rias Paroquiais de 1758 do Conce-
maioria das propriedades serem latifúndios, tradicionalmente explorados para a pro- lho de Mértola op. cit., p.73
dução pecuária ou cereais (em profunda recessão) e, hoje em dia, utilizados ainda co-
mo pastagens e como reservas de caça.
O regime de propriedade não permitia a existência de camponeses. No entanto, os
pescadores e outros marítimos exploravam por vezes pequenas parcelas ao longo do
rio, sobretudo plantavam árvores de que colhiam os frutos, utilizando para isso os
seus pequenos barcos. Ainda hoje se vêem alguns marmeleiros, que na prática são de
domínio público. Tal como o texto refere, a margem espanhola é ainda mais deserta.
O êxodo rural, tanto aqui como na região da Andaluzia, teria contribuído ainda mais
para esta situação. O contraste é nítido em relação à margem algarvia do rio, onde a
partir de Alcoutim surgem pequenas hortas com culturas variadas.
A mesma descrição é corroborada pelas Memórias Paroquiais:

10°. Se se cultivam as suas margens, e se tem muito ar-


voredo de fruto ou silvestre?
Da parte de sima desta villa e da parte de baixo, athé
distancia de duas legoas, nam tem margens que se pos-
sam cultivar; mas mais abaixo todo se cultiva quazi athe
os sapaes de Aemonte e Crastomarim, com muitas ar-
vores de frutas, de toda a qualidade, vinhas, e ortas de
milho, feijam, meloens, melancias aboboras etc.12

Em 1837, João Baptista da Silva Lopes também se refere às riquezas da margem do


41 O GUADIANA COMO VIA DE COMUNICAÇÃO

Guadiana, no concelho de Alcoutim, embora lastime o abandono dos campos, o que


estará relacionado com a existência ainda de grandes casas senhoriais, que entretan-
to foram desamortizadas. Aponta ainda alguns sítios perigosos na navegação no Gua-
diana, como seja o Forno da Pinta13.
13
O lugar é conhecido por Torno
da Pinta ou Forno do Carvão. É Espalha-se a freguesia pelo campo por espaço de três
possível que o autor tenha mistura- léguas, em que cria gados, caça, e colmeias. He dividida
do as duas designações. por três ribeiras: o Vascão ao N. que a separa do Alêm
14
O autor refere-se a um passado Tejo, Guadiana a E., Foupana ao S., tendo a O. a fre-
recente em que os bens da Casa do guezia do Pereiro. Ao S. da villa, hum pouco acima do
Infantado e os da Casa da Rainha, logarejo das Laranjeiras, forma o Guadiana hum coto-
bem como os das Ordens Religio- velo, a que chamão Forno da Pinta, onde pelas refregas
sas foram vendidos em hasta públi- fortissimas do vento, que sempre alli anda em redemoi-
ca na sequência das leis da autoria nho, se tem perdido alguns barcos: na varzea do Pontal
de Mouzinho da Silveira e Joaquim ha hum excellente olival e boas canas que soffrem mui-
António de Aguiar em 1832-34. A to das enchentes do rio. As varzeas são ferteis e abun-
Casa do Infantado foi criada após dantes de varias e deliciosas fructas; vinhas, oliveiras e
a Restauração com base nos se- boas terras de pão chamadas da Lourinhã ao N.
nhorios confiscados ao Marquês de Quasi todo o terreno desta villa está repartido em her-
Vila Real, o titular mais poderoso dades, que erão da Casa do Infantado14, muitos dos
após o Duque de Bragança. quaes tem excellentes valles com mananciaes de agua;
15
João Baptista da Silva Lopes, Co- estão porém em perfeito abandono, admitindo cultura
rografia ou Memória Económica, de regadio com agua de pé15.
Estatística e Topográfica do reino
do Algarve, Faro, Algarve em Foco, Embora as margens do rio, no concelho de Mértola, sejam pouco aproveitadas em
1988, vol. II, p396 termos agrícolas, existem pequenas hortas cultivadas por pescadores ou por outras
pessoas que vivem perto deste. É o caso de Mértola, em ambas as margens, da povoa-
ção da Penha de Águia e um pouco no Pomarão. São terrenos que pertencem ao do-
mínio público marítimo, o que na prática, significa que não têm proprietário, embo-
ra se respeite a sua utilização continuada. São pequenas parcelas, no leito de cheia,
com algumas dezenas ou centenas de m2, que permitem aos seus utentes a obtenção
de produtos hortícolas para consumo próprio, como tomates, hortaliças ou melões.
Estas parcelas são inundadas pelas águas das cheias, que podem destruir as culturas,
mas que também fertilizam a terra. Dada a sua proximidade das águas quase não pre-
cisam de irrigação e os seus produtos são considerados de boa qualidade.
Fora das povoações deixa de haver agricultura intensiva, o que se pode explicar pelos
solos fracos, o regime de propriedade, o abandono dos campos e o facto do Guadia-
na ter deixado de ser uma via de comunicação.

MAPA 3
Mértola.
Fonte: Serviços Cartográficos
do Exército
Mapa nº 558. Escala: 1/25 000
O GUADIANA COMO VIA DE COMUNICAÇÃO 42

MAPA 4
Pomarão.
Mapa nº 567. Escala: 1/25 000

MAPA 5 - Alcoutim e Sanlúcar.


Fonte: Serviços Cartográficos do
Exército.
Mapa nº 575. Escala: 1/25 000
43 O GUADIANA COMO VIA DE COMUNICAÇÃO

3.5. DIFICULDADES ESTRUTURAIS

Sobre a navegabilidade do Guadiana já se disseram muitas coisas, inclusivamente al-


gumas que a simples observação de obstáculos naturais desmente desde logo:

No anno de 1288 foi celebrada huma convenção entre


Pedro Pires, almoxarife de el-rei em Castro Marim e
Tavira, e outros homens bons de huma parte, e da outra
os de Aiamonte para em nenhuma destas povoações se
impedir, ou levar direitos das barcas e baixeis, que en-
trassem ou sahissem do Guadiana, vindo de quaesquer
portos dos dous reinos, carregados ou descarregados; e
que barcas ou baixeis que carregassem em Serpa, e qui-
sessem hir a qualquer porto dos reinos de Portugal que
16
J. Baptista da Silva Lopes op. cit., aportassem, ahi dessem o direito, etc.16
p.389 que cita documento da Tor-
re do Tombo (Gaveta 15, Maço Este documento serviu para demonstrar a navegabilidade do Guadiana até Serpa.
15, n.º 21) Tratar-se-ia mais provavelmente de mercadorias que, embora provenientes daí, eram
17
Orlando Ribeiro, Introduções Ge- transportadas pelo rio, mas só a partir de Mértola. A este respeito Orlando Ribeiro
ográficas À História de Portugal, Lis- desfaz qualquer confusão:
boa, Imprensa Nacional - Casa da
Moeda, 1977 Cortesão dá Mérida como acessível desde o mar. Erro
18
«Après trois jours de voyage par- crasso. As gargantas selvagens do percurso português -
ticulièrement pénibles, nous avons onde fica o desfiladeiro e a queda de água do Pulo do
finalement atteint la misérable pe- Lobo - apenas permitem que se navegue o trecho a ju-
tite ville de Mértola sur le Guadia- sante de Mértola, donde se fazia uma carreira fluvial
na, fleuve frontière qui sépare le há poucos anos suprimida. Ao porto fluvial do Poma-
Portugal de l’Espagne; les déserts rão chegaram cargueiros pequenos, escoando o miné-
d’Arabie ne peuvent pas être plus rio de São Domingos, hoje esgotado. O troço final do
tristes que les sauvages steppes sa- Guadiana foi aquele onde a navegação e a vida portu-
bleuses que nous avons traversées ária se conservaram até mais tarde, entre todos os rios
en chemin; tous les quatre milles portugueses.17
environs, l’on rencontre une misé-
rable village...» Silbert, Le Portugal Em Outubro de 1802 um viajante anónimo alemão, não isento de preconceitos, re-
Méditerraneen à la fin de l’Ancien fere-se a Mértola como uma miserável aldeia com campos semelhantes aos desertos
Régime, Lisboa, I.N.I.C., 1978, 3 da Arábia.18
vols, p.120 Em 1837, João Baptista da Silva Lopes dá-nos conta, através de uma lista de itinerá-
19
É possível que esses bandos se rios sobre as deslocações no Algarve e desta região para Norte, das dificuldades exis-
relacionassem com as guerrilhas tentes para vencer as barreiras naturais. Embora o título de reino do Algarve fosse
miguelistas, que operavam na serra essencialmente isso mesmo, um título, ele exprimia também alguma dificuldade de
algarvia e no Baixo Alentejo, che- comunicação, pelo menos por terra, com o resto do país, nomeadamente com a pro-
gando mesmo a tomar temporaria- víncia do Alentejo.
mente cidades (Silves) e aldeias, Estradas praticamente não havia, e as que poderiam eventualmente considerar-se co-
como foi o caso da guerrilha do mo tal não passavam de simples veredas, geralmente inacessíveis a um carro e apenas
Remexido. a homens a pé ou fazendo-se transportar em muares ou burros. As pontes eram raras
20
Luís Filipe Rosa Santos, “As vias e frequentemente tinham que passar a vau as ribeiras, o que nem sempre era possí-
de Comunicação”, in Maria da vel no Inverno (ver anexo 3).
Graça Maia Marques, O Algarve, Convinha também prevenir os assaltos de bandos que pululavam pela serra. Ainda
da Antiguidade aos nossos dias, Lis- hoje há memória na povoação de Monte Agudo em relação a bandos que, no século
boa, Colibri, 1999, pp. 385 e 386 passado, assaltavam as aldeias, vendo-se a população obrigada a refugiar-se no mato,
levando consigo uma imagem de Nossa Senhora como única protecção19.
De Faro para o Alentejo ou Lisboa seria normal atravessar a serra algarvia, embora
fosse mais fácil ir por via marítima para a capital (o fácil é relativo, visto que depois
do Cabo de S. Vicente, os ventos predominantes de Norte trazem algumas dificulda-
des acrescidas). No entanto, as carreiras a vapor, mais ou menos regulares, apenas
foram inauguradas em 1853. O vapor “Duque do Porto tocou apenas os portos de
Lagos, Olhão e Vila Real de S. António, transportando tantos tripulantes como pas-
sageiros – 24”20. A viagem até Lisboa demorou 45 horas
Já a partir de Tavira a melhor opção para quem fosse para Mértola ou para outras po-
voações da margem esquerda do Guadiana seria ir pelo rio desde Vila Real até Mér-
O GUADIANA COMO VIA DE COMUNICAÇÃO 44

tola ou pelo menos até à Mesquita. Para Beja também poderia ser uma boa alterna-
tiva que se acentuou com o advento do comboio.
No entanto de Mértola para Beja ainda se tinha que atravessar várias vezes a vau as
ribeiras de Terges e Cobres, o que no Inverno era quase sempre impossível. No reina-
do de D. José foi construída uma estrada para ligar Mértola a Beja, uma calçada com
nove léguas. A intenção seria prolongar esta estrada até Vila Real e reforçar as liga-
ções desta vila com o interior21. De Mértola para Serpa também se teriam que atra- 21
Albert Silbert, op. cit. p.540
vessar as ribeiras de Alfamar e Limas. Todas estas ribeiras são ainda hoje bastante 22
Pedro Muralha, Álbum Alenteja-
caudalosas no Inverno. no, Distrito de Beja, Lisboa, Im-
As pontes demoraram a ser projectadas e, sobretudo, construídas mas quando feitas prensa Beleza, 1931p. 19
provocam a admiração perante o progresso esperado: 23
Ecos do Guadiana, 1 de Setem-
bro de 1933
Entre Boa Vista e Vale de Soure [sic], existe uma obra 24
In Muralha, Pedro, Álbum Alen-
digna de se admirar: é a ponte sobre o rio Terjes e Co- tejano, Distrito de Beja, Lisboa,
bres, uma formidável ponte composta por 3 corpos, tu- Imprensa Beleza, 1931p. 154
do em alvenaria e mármores, construída em 1861.
(...) Mais meia hora em automóvel encontramos o anti-
go local conhecido por Estação da Muda. Era aqui que,
ainda não há muito tempo, eram mudados os muares
que conduziam a diligência de Beja a Mértola.
(...) Saíam os viajantes de Beja às 3 horas da tarde, e só
chegavam a Mértola no dia seguinte bastante tarde. ho-
je pela viação acelerada, esse trajecto faz-se em duas
horas. Abençoado progresso!22

Na década de 30 um notável de Mértola (Dr. Pedro Palma, Conservador do Registo


Civil, republicano e bairrista como se declara no mesmo jornal) contraria esta admi-
ração pelo progresso escrevendo no jornal Ecos do Guadiana:

O concelho de Mértola é um dos maiores do Paiz, qua-


se não tem estradas.
(...)1º Pedimos que se continuasse e levasse a cabo a es-
trada Mina S. Domingos, Mértola, Aljezur que nos li-
garia com Faro.
2º Que se continuasse a estrada de Mértola a Vila Real
(...) esta via de comunicação traria uma grande vida pa-
ra o concêlho e serviria ainda, por os atravessar, os con-
cêlhos de Castro Marim e Alcoutim, este último quase
sem comunicações a não ser a do rio Guadiana.
(...) 5º Caminho de ferro do Carregueiro até Mértola (...)
6º - Desassoreamento dos vaus do Guadiana(...)
A estrada de Beja a Mértola carece de urgente concer-
to, pois é uma das piores do país, com um trânsito mui-
to importante de camionagem e carros.23

O mesmo autor referia-se às “aspirações” de Mértola no Álbum Alentejano:

As suas Aspirações

1º Continuação da construção da estrada n.º 105, Mér-


tola ao Algarve.
Desta estrada estão concluídos apenas uns 4 quilóme-
tros a partir de Mértola. a respectiva ponte também já
está construída, e esta estrada iria beneficiar 6 fregue-
sias importantes do concelho.
2º A construção de uns 6 quilómetros na estrada n.º 106.
3º A construção da estrada n.º 107 de Serpa à Mina de
S. Domingos.
(...) Esta região fica muitas vezes isolada da margem di-
reita devido às cheias do Guadiana.24
45 O GUADIANA COMO VIA DE COMUNICAÇÃO

Esta ligação por estrada para Vila Real era um projecto antigo. Link (1797-1799) re-
25
Voyage..., t. III, p. 294, cit. por A. fere que os trabalhos já tinham começado25, isto no início do século XIX. Esta via foi
Silbert,op. cit., p. 540 finalmente concluída em 1949.
26
Pedro Simão Ainda há algumas décadas atrás era mais fácil e mais rápido transportar pessoas e
27
Cf. Rui Santos, O Socorro aos mercadorias de Mértola para Vila Real do que de Mértola para Beja. Um barco com
Lavradores de Mértola em 1792, motor levaria cerca de quatro horas e meia a percorrer esta distância, enquanto que,
Mértola, Câmara Municipal de para levar mercadorias para Beja em carros puxados por muares, a viagem poderia
Mértola, 1987 demorar cerca de doze horas, embora a distância em km fosse mais pequena. Quan-
28
Silbert, op. cit. pág. 539 do o calor apertava fazia-se ordinariamente a viagem para Beja durante a noite, com
29
Gervásio de Almeida Pais, 1788, algumas paragens nomeadamente na Casa da Muda (onde antigamente se mudavam
cit. por Silbert, op. cit. p. 464 os animais), perto de Vale de Açor.
30
J. Baptista da Silva Lopes, Co- No entanto, uma canoa, ao fazer a viagem para Vila Real, estava também dependente
rografia ou Memória Económica, dos ventos e marés (e da força dos braços). Numa viagem com uma canoa:
Estatística e Topográfica do Reino
do Algarve, Faro, Algarve em Fo- Eram três marés. Uma era daqui até à Lagem. Outra até
co,1988 2º vol., p.396 aos Guerreiros e a outra até Vila Real, quando não hou-
vesse vento. Quando houvesse vento até se podia fazer nu-
ma maré só.26

3.6. O TRANSPORTE DE PESSOAS E MERCADORIAS

O trigo do Baixo Alentejo no século XVIII, nomeadamente o da comarca dos Cam-


pos de Ourique era exportado para Lisboa através de vários portos como Barradi-
nha, Sines, Porto do Rei ou Mértola. Neste último caso seguiria pelo rio Guadiana
para o Algarve. Mas em épocas de crise poderia acontecer o movimento contrário27.
Já na Idade Média, segundo Albert Silbert, em 1468 a cidade de Tavira queixa-se de
não poder comprar cereais a Beja e Évora. O rei decidiu então dar ao Algarve o mes-
mo privilégio que Lisboa tinha desde o tempo de D. João I. Em 1758, o cura de Ser-
pa escreve que, em todos os meses do ano se exportam cereais pelos portos do Sado
e para o Algarve através de Mértola28.Note-se a referência à caravela de Setúbal, pe-
lo cura de Mértola.
O carvão é um dos produtos transportados desde sempre a partir de Mértola, por
vezes para o estrangeiro, mesmo que a sua produção seja considerada um desastre
económico e sobretudo ecológico na segunda metade do séc. XVIII. Refere Albert
Silbert que os carvoeiros de Mértola pegam fogo ao mato para fabricar carvão, que
é vendido aos ingleses de Gibraltar e também em Cádiz. Esta actividade arruina as
Serras de Mértola e de Serpa em prejuízo das 22 malhadas que existem desde tem-
pos imemoriais.29
Na primeira metade do século passado há referências em relação ao transporte em pe-
quenos barcos de frutas e peixe para Mértola, da parte dos marítimos de Alcoutim:

Tem alguns barcos pequenos, ou botes, que se empre-


gão na conducção de fructas para Mertola, Castro Ma-
rim, e Villa Real, trazendo em retorno pescarias das ul-
timas villas.30

Uma viagem do Algarve para Lisboa podia tornar-se particularmente penosa. Cite-
se um caso:

Devia ser aí por 1888: era preciso ir de carruagem até


Vila Real de S. António, passava-se ali a noite numa
estalagem pouco confortável para embarcar no dia se-
guinte num vapor de rodas pertencente ao Sr. Alon-
so Gomes, o qual subia o Guadiana até Mértola, on-
de se repousava em nova estalagem pouco convidativa.
A acidentada viagem continuava de carruagem por dez
léguas de subidas, em desértica estrada primitiva para
Beja, com descanso na chamada Casa da Muda, para aí
O GUADIANA COMO VIA DE COMUNICAÇÃO 46

se mudar de parelha ao carro. Vi então pela primeira


vez cavalos comerem pão molhado em vinho, que lhes
davam por os ver tão cansados. (...) Viam-se vultos de
estranho aspecto, envoltos em mantas, deitados até pe-
lo chão. Noite escura, fumarada das candeias de azeite,
não ousávamos dormir. (...) Por fim partíamos de novo,
indo tomar o comboio em Beja para o Barreiro e Lis-
boa como ainda hoje.31 31
Citado por Luís Filipe Rosa San-
tos, “As vias de Comunicação”, in
Também Pedro Simão nos referiu que na viagem para Beja era usada uma “galera”, Maria da Graça Maia Marques,
puxada por quatro cavalos; tinha quatro rodas e mais duas à frente e levava cerca de O Algarve, da Antiguidade aos
vinte pessoas. nossos dias, Lisboa, Colibri, 1999,
O periódico, O Futuro de Mértola, em 1913, informa regularmente os leitores sobre pág. 386
as viagens no Guadiana, o movimento dos comboio em Beja e,significativamente, de 32
O Futuro de Mértola, Junho de
Vila Real, e o transporte para Beja: 1913
33
Pedro Simão
Meios de transporte entre Mértola e Beja 34
Pedro Muralha, Álbum Alenteja-
no, Distrito de Beja, Lisboa, Im-
Há automoveis de aluguer, custando a carreira dez es- prensa Beleza, p. 154
cudos; e trens de aluguer custando a carreira quatro es- 35
Pedro Simão
cudos e 50 centavos.
Trens ou automoveis teem que ser requisitados a Beja.
(...)
O transporte no carro do correio custa 400 reis por pes-
soa, mas é um pessimo meio de transporte.32

Antes da utilização dos barcos a vapor, a gasóleo ou gasolina utilizavam-se canoas


que continuaram a coexistir com barcos a motor.

Tivemos barcos a motor e a vapor. Mas antes disso tive-


mos barcos à vela, daqui para Vila Real e de Vila Real pa-
ra aqui. Quando não havia vento tinha que se bogar [re-
mar] tinha que se subir bogando33.

Na década de 30 um dos produtos transportados pelo Guadiana era os adubos:

A riqueza do concelho de Mértola pode avaliar-se pela


importação de adubos feita pelo rio Guadiana.
Essa importação foi em 1931 de cerca de 200 000 sacos
com o peso total de 10 000 toneladas.
Ora a média por cada hectar de terreno são 8 sacos. Por-
tanto 25 000 hectares cultivados com 3 milhões de litros
de sementes dando uma média de 10 sementes, concluí-
mos que a sua produção foi de 30 milhões de quilos.34

Os materiais de construção civil vinham também pelo rio: telhas e ladrilhos de Castro
Marim que compravam ao tio José Rita e outros. Também em Castro Marim se car-
regava o sal que compravam ao senhor Ismael e a João Pena.
O barco que ia carregar o sal era o Rabino, visto que os outros maiores não passavam
pelo esteiro e este conseguia nas “marés grandes: ia-se lá no princípio da maré, íamos
carregando e quando a água já estava cheia íamos embora.35” Francisco Simões tinha
um armazém, em Mértola, ao ar livre “por baixo de uma oliveira” perto do actual cais
(onde é hoje a pensão Beira-Rio) e também perto da sua casa. O sal de Castro Marim,
sal “espelhado”, seguia de Mértola para Beja transportado por quatro carreiros.
De Vila Real vinha o repolho e outras hortaliças, batata, frutas, peixe (carapaus, sar-
dinhas, chocos....). É de notar que na zona de Vila Real havia hortas (e ainda há algu-
mas, apesar da ocupação dos terrenos pela construção civil), cujos terrenos arenosos
produziam hortaliças e frutas de reputada qualidade. O topónimo Hortas correspon-
de a uma povoação em constante expansão que é um arrabalde de Vila Real. Tam-
bém vinham laranjas e melancias das aldeias ao longo do rio, como Laranjeiras e
Guerreiros do Rio.
47 O GUADIANA COMO VIA DE COMUNICAÇÃO

Quando a gente vinha no gasolina vinham aquelas lan-


chinhas de Castro Marim com o peixe já salgado, aqueles
barquinhos à vela, chegavam a vir três e quatro e às vezes
cinco. Vinham dos montes do rio, o tio Manuel Domin-
gos com fruta, o senhor José Branco com fruta, o tio Va-
36
Ilda Simões S. Alho. lentim que vinha da Foz.36
37
Verificou-se pela análise de fos-
sas medievais (islâmicas) que o figo Alguns desses produtos eram desembarcados no Pomarão e seguiam para a Mina de S.
era um dos alimentos mais impor- Domingos onde eram vendidos num mercado famoso, o Pago, todos os meses, dia qua-
tantes no dia a dia. Aliás, os quin- tro. Por exemplo, a senhora Alice das Batatas, vendia batatas nesse mercado ao ar livre.
tais antigos todos tinham figueiras Para o Algarve levava-se trigo e carvão do concelho de Mértola. A importância do
que foram sendo substituídas por carvão explica-se por esta ser uma das poucas fontes de energia utilizadas, sobretu-
espécies exóticas do na cozinha, sendo Vila Real carente neste produto, visto que a maior parte das
38
Eugénio Simões árvores eram de fruto. A importância do carvão aumentou ainda durante a primei-
ra guerra mundial e também durante a segunda, dada a falta de outros combustíveis.
Vendia-se o carvão ao senhor... “Zé do Carvão” e a outros armazenistas. Este era um
negócio antigo e terá sido com esta actividade que Francisco Simões terá começado
no transporte de mercadorias. O seu filho, em pequeno, ficava de guarda aos sacos e
os guardas fiscais tomavam conta do miúdo.
Nas paragens em Alcoutim carregavam-se também produtos que o Algarve exporta-
va tradicionalmente. Figos secos, alfarroba e amêndoas. Saliente-se aqui a alfarroba,
um alimento bastante rico, bastante utilizado na alimentação dos muares e burros. O
figo seco era também um alimento tradicionalmente muito aproveitado na alimenta-
ção do Sul de Portugal, desde tempos remotos37.
A imprensa local informa periodicamente os leitores sobre os horários do barco da
carreira do Guadiana. Em 1913, O Futuro de Mértola, em todos os seus números, dá
indicações, não apenas sobre os horários do vapor Guadiana, da Empreza Portuguesa
de Navegação para o Algarve e Guadiana, mas também sobre a sua sucursal em Mér-
tola e agentes em Pomarão, Alcoutim e Vila Real de S. António.
No Ecos do Guadiana, periódico em que os seus membros se declaram republicanos
e bairristas, noticia-se no seu número 1, em 1 de Agosto de 1933 a vinda de um ou-
tro barco de transporte:

Outro Vapor

Chegou à velha “Myrtilis”, no pretérito dia 13 de Julho,


um esplêndido barco, propriedade dos snrs. Francisco
Simões e António Sequeira. Ele iniciará muito breve-
mente uma carreira oficial, entre Mértola e Vila Real de
S. António, e transportará passageiros e mercadorias.
Auguramos muita vida ao novo vapor, e apresentamos
as nossas felicitações aos seus proprietários.

Este mesmo periódico refere os horários do mesmo barco (anexo 4 - Horários do


“Guadiana”). Como tinham que pernoitar em Vila Real os barcos estavam prepara-
dos com beliches para que os seus tripulantes aí dormissem.
Um dos barcos que transportou durante largos anos pessoas e mercadorias foi o Ra-
bino (Fig. pág. 11), cujo nome oficial era Feliz Destino, mas também conhecido por
Os Quatro Diabos, por no início a tripulação ser constituída por um pai e 3 filhos (fa-
mília Simões). Podia carregar até 40 toneladas e demorava cerca de 6 horas de Mér-
tola a Vila Real.
Outro barco que tinha a mesma função era o Alentejo III (Fig. 36), conhecido tam-
bém por Barco Branco. Demorava cerca de 4 horas até Vila Real. A sua capacidade
de carga era de 60 toneladas e podia transportar 96 passageiros, 40 dos quais na câ-
mara38. A tripulação era constituída por um mestre, um maquinista e dois tripulantes.
Outro tripulante, o único que sabia ler, tinha a função de apontador de carga e cobra-
dor dos bilhetes. Começou a trabalhar com dez anos e por isso não acabou a escola
primária. Manteve-se nesta função durante cerca de seis anos, até este barco ser ven-
dido por 110 contos para os Açores, no início da década de cinquenta. Nos últimos
anos um bilhete de passageiro de Mértola a Vila Real custava 20$00 e uma barcada
de trigo ou adubo 1 200$00.
O GUADIANA COMO VIA DE COMUNICAÇÃO 48

Estes barcos só atracavam no Pomarão e em Alcoutim. Nos outros portos ficava o bar-
co parado, “e os passageiros ou a carga eram levados em pequenos botes. No Pomarão às
vezes ficava ali à volta, tiravam a força ao barco”. Os últimos cais onde atracavam eram
o Cais da Piompa e o Cais da Rainha, em Vila Real de S. António. Neste último eram
desembarcados os passageiros, dado que tinham que passar pela Alfândega.
Como já foi anteriormente assinalado a navegação não se fazia sem problemas:

Quando o “gasolina” ia para baixo e já o rio tinha água,


uma vez vieram, o rio, estava muito cheio, muito cheio
quase que não corta além a “Pontilhós”, o meu pai vi-
nha no leme e o motor ia-se abaixo, não tinha poder pa-
ra a água, (...) quando ele subiu cá acima, mais perto das
pontes, a gente chorou tanto, o barco não queria sair da-
li, conforme vinha aquela enxurrada, em vez de ir para a
frente, ia para traz.

Com a viagem tinha uma duração média de quatro horas e meia os passageiros arran-
javam entretenimentos e conviviam entre si e com a tripulação.

Durante a viagem o que é que se ia fazendo?


– Olhe! Comendo!
Às vezes levavam a sua guitarra, o seu harmónio, havia
bailes, era uma viagem linda!
O meu pai, quando entrava no barco, o Duarte já tinha
os grãos de molho, punham o cozido ao lume e era comer
por aí fora. Quando vinham do Algarve era caldeirada.39 39
Ilda Simões S. Alho
40
Ilda Simões S. Alho
[Embora o barco não tivesse serviço de refeições] toda a gente comia, toda a gente se 41
Pedro Simão
chegava, às vezes nem a gente [tripulantes, familiares] comia. Às vezes, em Vila Real,
das traineiras, davam lavadeiras cheias de peixe, canastras com sardinhas, carapaus, bi-
queirão, quando ele era gordo era tão bom, depois acendiam o fogareiro ao pé da quilha
do barco e então era só assar com os tomates e os pimentos.40
A opção por um barco a vapor ou a gasóleo não passava apenas pela evolução tecno-
lógica. Para além do facto de normalmente serem comprados em segunda mão e de-
pois adaptados, a questão do combustível poderia tornar-se decisiva:

Aparece uma falta de gasóleo, a gente andava já a traba-


lhar com pitrol, que já não havia gasóleo, o que havia era
ruim, era como alcatrão. Cada viagem que se fazia tinha
que se desarmar o motor todo e limpar segmentos, limpar
tudo. Eu e ele, o Augusto, tínhamos um guindastezinho,
puxávamos o motor para cima, limpávamos-o cá fora e
depois arreávamos-o e depois fazíamos a viagem. De ma-
neiras que, depois aparece o senhor Lima a querer com-
prar o barco. Ele depois disse: olhe, eu tenho uma fábrica
ali em Santana, (foi a que mudou para aqui) e se quiser
vender o barco eu compro-lho. E o meu pai vendeu o bar-
co, mas pensando num barquinho a vapor que ele tinha
visto em Setúbal, que era mais chatinho, para passar aqui
os vaus(...) Mas ele disse para o meu pai: olhe, mas tem
que me vender o maquinista, que eu não tenho maquinis-
ta. E então o compadre Augusto foi trabalhar para lá. E
a gente ficámos com uma canoa grande que o meu pai ti-
nha mandado fazer. (...) Essa canoa levava aí uns cem sa-
cos, cento e vinte sacos de cinco arrobas, de farinha ou de
trigo. Essa fábrica estava sempre a trabalhar41.

Os passageiros pagavam bilhete, mas também era frequente haver algumas pessoas a
quem era oferecida a viagem sem mais despesas, apesar de estar bem explícita a fra-
se “não há passageiros de favor” (Fig. 28). Era o caso de familiares, de padrinhos dos
filhos e de funcionários do estado. No Verão era comum irem pessoas para a praia
49 O GUADIANA COMO VIA DE COMUNICAÇÃO

e levaram consigo a bagagem, que incluía até colchões para dormir nas cabanas (de
colmo) alugadas em Monte Gordo.
Para atravessar de uma margem para a outra, como não havia pontes, passava-se de
barco. Em Mértola:

Tínhamos estes barquinhos pequeninos que levavam as


pessoas para aquele lado. Não tinham vela, não tinham
nada. Um deles, para passar burros para aquele lado e
trazer, tinha um pau preso aqui ao meio e levantavam e
baixavam o pranchão: pranchão para as bestas passarem.
Tinham uma rótula para fora o e outra rótula para dentro
do barco. Depois de estarem dentro do barco agarravam
nesse pau que estava ao meio e o pranchão ficava levanta-
do. Chegavam àquele lado arriavam o pranchão que caía
42
Pedro Simão em cima da areia e com o outro que estava cá dentro.42
43
A Voz do Guadiana, 11 de Mar-
ço de 1924 Antes da construção da ponte sobre o Guadiana em Mértola existiu também a ponte-
44
A Voz do Guadiana, 31 de Janei- -barca (Fig. 27 e 28) que passava mercadorias, automóveis, camiões e passageiros de
ro de 1925 um lado para o outro do rio. Era constituída por um batelão e um sistema de roldanas
que a moviam entre uma e outra margem, entre o actual porto e uma estrada situada
na margem esquerda. Pedro Simão obteve a concessão após a sua família ter vendido
os barcos. Embora parecesse de funcionamento simples, era necessário saber conju-
gar as forças em presença, isto é o peso do que era transportado, a sua posição dentro
da embarcação, as correntes e os ventos. Afundou-se durante uma travessia, quando
carregava uma camioneta. O acidente terá sido devido, não só ao excesso de peso, mas
também ao vento que soprava na altura. Ainda hoje permanecem no rio, embora não
sejam visíveis, dada a profundidade e a cor esverdeada que o rio tem actualmente. Já
em 1924 o jornal, A Voz do Guadiana tentava fazer humor com esta passagem do rio e
acusava a empresa mineira de desleixo apesar dos lucros auferidos43:

O esquife do Concelho

A celebre ponte barca que é a nuvem negra da Camara


actual e a galinha dos ovos de ouro da Empreza da Mi-
na de S. Domingos, esteve uns poucos de dias parada,
aquando da ultima cheia do rio.
(...) O publico teve de recorrer aos barcos que cobra-
vam tudo o que queriam e por fim, a Empreza mandou
limpar as serventias que ficaram rasoavelmente cheias
de lama.
Uma das correntes da barca teve de ficar no fundo do
rio, porque não houve meio de tira-la, pois encalhou
em qualquer pedregulho e lá dormirá o sono eterno.

Este mesmo quinzenário refere que a Câmara pôs uma acção em tribunal contra a
Cartoon alusivo à ponte-barca. empresa mineira que foi resolvido de comum acordo.44
(Voz do Guadiana, 08-03-1924) A construção da estrada para Vila Real e da ponte em Mértola determinaram o fim
dos transportes no Guadiana entre Mértola e Vila Real. A família Simões que durante
décadas se manteve nesse ramo não continuou com qualquer actividade relacionada
com o rio. Quem ainda continuou com a carreira durante alguns anos foi o senhor Li-
ma, proprietário da moagem e do Guadiana, conhecido por Mértola, de 60 toneladas,
e que terá terminado as viagens cerca de 1960. Francisco Simões ainda teve uma pro-
posta para continuar no ramo dos transportes, mas agora rodoviário. O último barco
que teve mandou-o levar para Guerreiros do Rio para que não se afundasse à sua vis-
ta. Teria prioridade na concessão do alvará, mas recusou essa hipótese, assim como os
seus filhos. Para além do facto de o dirigente da empresa já ser idoso, parece-nos que
aqui se trata de uma mentalidade ou espírito tradicionalista. Citando Max Weber:

Mas, se olharmos para o espírito que enforma o empre-


sário, tratava-se de uma economia “tradicional”: o mo-
do de vida tradicional, o montante tradicional de lucro,
O GUADIANA COMO VIA DE COMUNICAÇÃO 50

a quantidade tradicional de trabalho, o modo tradicio-


nal do lucro, a quantidade tradicional de condução dos
negócios, as relações com os trabalhadores e com os
círculos de clientes, essencialmente tradicionais, bem
como a obtenção de clientes e de mercados, domina-
vam a actividade empresarial e estavam subjacentes, di-
gamos assim- ao ethos deste tipo de empresários.45 45
Max Weber, A Ética Protestante
e o Espírito do Capitalismo, Lis-
boa, Editorial Presença, 1996, 4º
3.6. O GUADIANA E A FRONTEIRA ed., p.48
46
Mas estava defendida por tropas
de primeira linha, com artilharia
3.6.1. UMA FRONTEIRA NEM SEMPRE FECHADA e possuía um quartel onde hoje
se situa o Centro Cultural (ex-
Apesar de Portugal ser um dos países da Europa com fronteiras estáveis mais anti- -mercado).
gas, elas nem sempre foram um dado adquirido para a eternidade e muito menos no 47
Há que ter em conta que a no-
Alentejo, o que significa sobretudo a bacia do Guadiana. Não seria preciso recuar ao ção de Estado actual não se po-
tempo de D. Afonso Henriques, que ainda tentou conquistar parte da Extremadura de aplicar a esta época. O Reino
espanhola e que foi derrotado por Fernando II de Leão que veio em defesa dos al- era um conjunto de concelhos e
móadas em Badajoz. A fronteira foi estabelecida e pouco se alterou pelo tratado de senhorios eclesiásticos ou nobili-
Alcanizes, em 1297, em que Portugal entregou algumas terras da margem esquer- árquicos entre os quais os do rei,
da do Guadiana como Ayamonte, Aroche e Aracena e em troca recebeu também da que tem preeminência, mas que
mesma margem esquerda Olivença e, perto desta, Campo Maior, para só falarmos se obriga a respeitar as leis e cos-
no Sul de Portugal. Toda a fronteira de Portugal está defendida por fortes castelos e tumes locais e as diferentes juris-
centenas de atalaias, o que denota o medo perante o vizinho inimigo. Veja-se o caso dições, que podem até ter como
de Alcoutim e sobretudo Castro Marim e ainda o exemplo paradigmático de Vila Re- centro uma localidade de ou-
al que, não tendo uma fortaleza visível46, foi construída para fazer face à infiltração tro reino.
espanhola no domínio das pescas. Do lado espanhol temos frente a Alcoutim o apa- 48
Um dos mestres mais famosos
ratoso forte de S. Marcos em S. Lúcar e em Ayamonte uma praça antigamente bem da ordem, D. Paio Peres Correia,
fortificada. Aquando da Reconquista, Mértola foi entregue à Ordem de Santiago e português, tanto fez conquistas
Castro Marim foi também uma comenda da Ordem dos Templários, depois Ordem aos mouros em Portugal como
de Cristo. Essa entrega não terá sido apenas por uma questão de recompensa, mas em Castela.
também uma forma de manter a soberania, dentro de uma certa ambiguidade47. Com 49
“Regimento dos Governadores
efeito ambas as ordens eram instituições internacionais e em particular a Ordem de do Algarve”, 1634 cit. por Lo-
Santiago era comum aos reinos da Península Ibérica48. pes, João Baptista da Silva, Co-
Mas também em algumas épocas houve colaboração e sobretudo durante a dinastia rografia ou Memória Económica,
dos Habsburgos, quando Portugal e Espanha tinham o mesmo rei, embora fossem Estatística e Topográfica do reino
entidades políticas separadas. A ela se refere o Regimento dos Governadores do Al- do Algarve, Faro, Algarve em Fo-
garve em 1634: co,1988, I vol., documento illus-
trativo n.º 17
Capitulo XVII 50
Maria Lúisa SANTOS, op. cit.,
pp. 105 a 125
Communicar-vos-heis em tudo o que virdes que cum-
pre a meu serviço com o Duque de Medina Sidonia, e
principalmente no que tocar aos logares de Africa, e
novas que houverem dos Moiros corsairos ou Turcos
para elle por sua parte possa fazer o que cumprir a meu
serviço; e elle se ha de tambem communicar comvos-
co como tenho ordenado e vos mandará todas as novas
que souber, e quando algumas Galés e quaesquer ou-
tros navios meus forem no Algarve lhe dareis todo o fa-
vor e ajuda necessaria e lhe acudireis por seu dinheiro
como da terra lhes cumprir.49

Mesmo durante as guerras da Restauração houve colaboração entre portugueses e


andaluzes. O Marquês da Ayamonte (família Guzman) foi considerado o principal
instigador de uma conjura que pretendia a independência da Andaluzia sob o ceptro
do Duque de Medina Sidónia, irmão da Rainha de Portugal (D. Luísa de Guzman)50.
Pagou com a vida os apoios que deu a D. João IV e a este projecto. Embora se tratem
de lutas dinásticas estas relações especiais reflectem um intenso intercâmbio entre as
regiões do sul da Península.
51 O GUADIANA COMO VIA DE COMUNICAÇÃO

Mas as prioridades espanholas em termos de vias de comunicação foram essencial-


mente a ligação com Sevilha e Madrid, aliás tão precárias como as portuguesas. As
ligações marítimas, tal como no Algarve, eram secularmente prejudicadas pelos ata-
51
Cf. José Jurado Sánchez, Ca- ques de corsários, sobretudo do Norte de África.51
minos y Pueblos de Andalucia (S. Por ser terra de fronteira, tal como as vilas próximas (com Alcoutim e Castro Ma-
XVIII), Sevilla, 1989 rim) foi também couto, privilégio dado em 1529, em virtude de estar de povoada pe-
52
I.A. N.T.T., Chancelaria de D. las guerras, onde poderiam viver “cinquenta homens, e mais não, que forem homizia-
João III, Livro nº 52, citado por dos de quaisquer erros malefícios que hajam feitos ou que os culpem, que se vierem
Hugo Cavaco, Castro Marim Qui- morar à dita Vila de Mértola que sejam aí coutados e não sejam por isso presos no
nhentista, Castro Marim, 2000. Ain- dito lugar e seu termo, contanto que os ditos erros e malefícios não sejam de aleive
da no Estado Novo eram castiga- e traição...”52
dos com residência fixa algumas Mas é a partir de 1640 que Portugal e Espanha se viram de costas um para o outro.
pessoas perseguidas politicamente,
como foi o caso do Dr. Marinha de (...) as longas guerras da Restauração e da Sucessão de
Campos ex-preso no Tarrafal, que Espanha (1643-1763), que se reacenderam quatro ve-
criou um colégio em Mértola, de zes, com 31 anos de luta em 124, criaram uma inse-
onde saíram vários opositores ao gurança que gerou por força o retraimento; os meios
regime. Também funcionários pú- modernos de comunicação e a cobertura policial e adu-
blicos e membros das forças milita- aneira, reforçados com a Guerra de Espanha logo segui-
rizadas eram castigados com trans- da da Guerra Mundial e um nacionalismo exacerbado
ferência para Mértola. por quase meio século, restringiram progressivamente
53
O. Ribeiro, op. cit., p. 186 a fronteira como faixa de relação.53
54
João Baptista da Silva Lopes, Co-
rografia ou Memória Económica, Os pescadores de Castro Marim e de Alcoutim no século passado deixavam em parte
Estatística e Topográfica do reino do as pescarias do Guadiana para os espanhóis, de Ayamonte.
Algarve, Faro, Algarve em Foco, I
vol., p 384 Dão se pouco a outras pescarias, que não sejam a da
55
Cf. João Baptista da Silva Lopes, sardinha na temporada: deixão que os Hespanhoes
Corografia ou Memória Económica, aproveitem essa tal, ou qual pescaria que no Guadia-
Estatística e Topográfica do reino do na podião fazer, principalmente das corvinas que nel-
Algarve, II vol., p. 391 le entrão com abundancia, e que os pescadores de Aya-
56
Ilda Simões S. Alho monte apanhão com certas redes chamadas corvineiras.
Empregão se nos mezes em que não corre a sardinha,
na pesca das famosas ostras que alli ha perto (...)54

Os de Castro Marim aproveitavam sobretudo a pesca no mar, produto que em parte


vendiam para Espanha. Mas os barcos desta vila, ou pelo menos alguns dos seus habi-
tantes, subiam o Guadiana e percorriam o litoral andaluz até Gibraltar levando pro-
dutos do interior, entre os quais o já referido carvão de Mértola:

(...) tem 16 cahiques e lanchas para a pescaria, que fa-


zem, de pescadas, vezugos, safios, peixe prego, e outros
que vendem em fresco aos Hespanhoes, ou consomem
em terra. Empregão-se em alguns barcos viageiros, nos
quaes exportão os generos do paiz para Mertola, ou Gi-
braltar (...)55

Também a população espanhola, sobretudo de San Lúcar Del Guadiana utilizava o


rio no transporte para Ayamonte, até há poucas décadas, visto que as povoações es-
panholas vizinhas se situam mais no interior e os acessos por terra tornavam-se mais
difíceis.

Os espanhóis também iam no barco, os da Lagem, os de


S. Lucas, estes embarcavam em Alcoitim, era tudo trans-
portado de barco. Os espanhóis só tinham veredas. A gen-
te ia no gasolina e víamos os espanhóis nuns burrinhos,
direitos ao rio56.

O intercâmbio entre a população espanhola e portuguesa é sobretudo nítido em Vila


Real de S. António, nomeadamente nas actividades relacionadas com a pesca e acti-
vidades conserveiras, que aliás foram a razão para a fundação deste núcleo urbano e
O GUADIANA COMO VIA DE COMUNICAÇÃO 52

que se mantiveram até há pouco tempo. Refira-se que alguns dos maiores armadores
e industriais, eram ou tinham origem espanhola e mantinham interesses em ambos os
lados, como é o caso dos Tenório, Ramirez, Feu, ou ainda italiana57, no caso de Paro- 57
Cf. Joaquim Manuel Vieira Ro-
di, e até grega. Uma das chaminés que marcava Vila Real desde longe era a da fábri- drigues, in Maria da Graça Maia
ca Parodi, demolida em 1999, perante a impotência de antigos operários e pescadores Marques, O Algarve, da Antigui-
comovidos com a destruição da sua memória. O mesmo aconteceu com a “cottage” dade aos nossos dias, Lisboa, Co-
do engenheiro escocês Falcon. libri, 1999, pp. 412 a 423
A integração de Portugal e Espanha nas Comunidades Europeias tem contribuído 58
Os concelhos de São Brás de Al-
para a abertura das fronteiras. Mas as ligações internacionais têm-se feito lentamen- portel, Sines e Vendas Novas es-
te (ponte em Castro Marim, por exemplo). Entre o Pomarão e a povoação espanho- tavam então integrados respec-
la de Granado distam cerca de 12 km. Esta povoação servia também como ponto de tivamente em Faro, Santiago de
apoio para o contrabando, e ainda hoje é visitada por portugueses à procura do An- Cacém e Montemor-o-Novo.
tónio do Granado, um virtuoso que se crê que cura muitas maleitas,. Bastaria fazer
um troço de estrada de 400 m para alcançar a estrada espanhola que começa na bar-
ragem do Chança mas, apesar de as autarquias portuguesa e espanhola terem feito
todas as diligências, a administração da barragem opõe-se à sua construção, o que
implica que as pessoas tenham que passar a ponte de Castro Marim e “subir” a mar-
gem esquerda, isto é um percurso de uma centena e meia de quilómetros. Também
a esperada ponte de Alcoutim ainda só existe em projecto. Foi mais “fácil” construir
a nova ponte da Ajuda entre Elvas e Olivença também no Guadiana, apesar de uma
espera de quase três séculos e apesar do Estado português ainda não reconhecer a
ocupação deste território.

3.6.2. ESTRANGEIROS PRESENTES EM 1890

A presença de estrangeiros marcou todo o vale do Guadiana. Ao contrário do que


acontece na actualidade, o concelho de Mértola era atractivo para trabalhadores que
provinham de outras áreas do país e do estrangeiro (Gráfico 10) Os estrangeiros
concentram-se essencialmente nas freguesias de Corte Pinto, Santana de Cambas e
Mértola (respectivamente 134, 42 e 18), as primeiras duas directamente relacionadas
com a Mina de S. Domingos. Dos 205 estrangeiros, 172 são espanhóis, 32 ingleses e
um francês. Com excepção dos distritos de Lisboa e Porto, é o concelho do país com
maior presença de ingleses.

205
estrangeiros

1479
de outra naturalidade

815
do mesmo distrito

natural do concelho 16348 GRÁFICO 10


Naturalidade da população em 1890.
0 2000 4000 6000 8000 10000 12000 14000 16000 18000 (fonte: censo de 1890)

Quisemos saber que zonas do Sul do país eram mais atractivas para indivíduos es-
trangeiros para compreender a posição relativa de Mértola e dos concelhos do Va-
le do Guadiana, especialmente do Baixo Guadiana. Construímos assim os seguintes
quadro e gráfico (quadro 2 e Mapa 6).
Para a elaboração do Mapa 8 tivemos em conta a população estrangeira de todos os
concelhos do Alentejo e Algarve58.Calculámos a média (55,3), a moda (13), a media-
na (28,5) e o desvio-padrão (55,3). Os intervalos obtidos basearam-se na média e em
metade do desvio-padrão.
Os concelhos com mais estrangeiros são Elvas, Vila Real de S. António e Mértola.
Têm em comum o facto de serem concelhos da raia e, no caso dos dois primeiros,
concelhos essencialmente urbanos, as principais entradas no Sul do país. Vila Real
de S. António e Mértola são os principais núcleos urbanos directamente relaciona-
dos com o Guadiana que, no caso de Mértola, é a via quase exclusiva para a entrada
de população estrangeira.
53 O GUADIANA COMO VIA DE COMUNICAÇÃO

Verificamos também no mapa que, quanto mais nos aproximamos da fronteira (e do


Guadiana), exceptuando algumas cidades que são centros administrativos (Évora,
mas com uma permilagem menor), maior é a concentração de estrangeiros. Cite-se o
caso especial de Barrancos que, apesar de ser um concelho predominantemente ru-
ral, mas por condicionamentos históricos e geográficos conhecidos, é o que apresen-
ta uma permilagem maior.
Nesta época, o fenómeno do turismo era ainda quase desconhecido no Algarve. E no
caso especial de Mértola e Vila Real de S. António havia um dinamismo económi-
co que permitia a absorção de gente de fora (ao contrário do que acontece hoje em
Mértola). As fronteiras ainda permitiam alguma permeabilidade o que quase deixou
de acontecer durante as ditaduras de Franco e Salazar.

CONCELHO ESTRANGEIROS POP. DE FACTO ‰


Elvas 372 19318 19,3‰
Vila Real S. António 318 8501 37,4‰
Mértola 205 18847 10,9‰
Moura 201 20083 10‰
Évora 185 24.587 7,5‰
QUADRO 2 Estremoz 154 13691 11,2‰
Os 10 concelhos do Alentejo Serpa 129 12654 10,2‰
e Algarve com mais estrangeiros Campo Maior 126 5949 21,2‰
em 1890. Barrancos 104 2973 35‰
(fonte: censo de 1890) Alandroal 100 6513 15,4‰

Nº DE ESTRANGEIROS
1 a 18
18 a 54
55 a 91
92 a 128
129 a 165
166 a 202
+ de 203 Mértola

MAPA 6
Estrangeiros presentes em 1890.
Alentejo e Algarve

3.6.3. O CONTRABANDO

Em 1842, o governador civil de Beja declarava que era impossível impedir o contra-
bando pois os grandes contrabandistas eram os próprios agricultores da região fron-
59
A. Silbert, op. cit. p.127 teiriça.59 Até aos anos 70:

O contrabando era atão pouco, Quem era de mais força


com o contrabando eram os guardas. Fazia-se contraban-
do de café, tabaco, açúcar... De cá para lá era café. De lá
O GUADIANA COMO VIA DE COMUNICAÇÃO 54

para cá era amêndoas, roupas, remédios, botijas de gene-


bra, de louça com uma argolinha, perfumes, lenços de se-
da muito bonitos prá gente pôr na cabeça.60

Ao longo do rio em locais estratégicos, nas povoações ou em locais altos, havia pos-
tos da Guarda Fiscal que se avistavam uns dos outros. Por vezes a distância entre eles
não chegava a um km. Os guardas circulavam junto à margem, por veredas paralelas
ao rio, ainda visíveis, ou pelo rio. Às vezes os guardas embarcavam (...) e iam sempre
de graça, não pagavam.61 60
António Guilherme
Hoje esses postos estão abandonados e alguns até foram vendidos a particulares. Com 61
António Guilherme
excepção do Pomarão ficam todos na margem direita, mesmo na parte do rio em que 62
António Guilherme
as duas margens são portuguesas. Os nomes deles expressam também a visão que a po- 63
Sebastião Soeiro (pescador no
pulação tinha dos lugares do Guadiana. Existem ainda os edifícios ou ruínas de deze- Pomarão) ainda foi interrogado
nas de postos, de jusante para montante, pelo nome conhecido pelos pescadores (ver pela D.G.S. em Beja
anexo 2 - Postos da Guarda Fiscal.). Alguns deles estavam em lugares isolados o que
provocava o receio de quem estava de guarda e sobretudo das respectivas famílias.
Do lado espanhol também havia vários. Num deles, conhecido pelo posto da Cruz es-
tá marcada uma cruz que se relaciona com um assassinato. De um deles diz-se que
os guardas espanhóis eram marinheiros que tinham sido castigados, o que os levava
também a serem mais irascíveis nas suas reacções.
Domingos Baltazar contou que uma vez estava a recolher uma rede perto da mar-
gem espanhola e teve que fugir porque um “carabinero” o ameaçou de lhe dar um ti-
ro sem lhe dar tempo para alguma justificação. Mas as relações pessoais com alguns
agentes também poderiam ser proveitosas: Quantas vezes a gente estava na pesca lá em
baixo, íamos à Espanha, eles davam autorização para ir e trazíamos de lá as coisas.
Esta relação com a população espanhola dava também azo a solidariedades, mesmo
pequenos gestos aparentemente sem importância, mas que eram reprimidos pelas
autoridades, como ilustra este episódio passado durante a Guerra Civil espanhola.

Estávamos a descarregar alfarroba e uma saca rebentou


e passou um barco com cinco ou seis rapazes e raparigas
(espanhóis) e eu atirei umas para dentro do barco: nesse
tempo a miséria era muita. Pareciam milhanos! O cabrão
do guarda (o Canhoto) levou-me para a capitania. Se não
tivesse os documentos não sei o que seria.62

Nesta época os barcos da carreira do Guadiana eram também obrigados a transportar


presos espanhóis os quais eram entregues às autoridades vizinhas e cujo destino era
normalmente serem fuzilados. Contou-nos Pedro Simão que uma vez conseguiu sal-
var um homem (o Serrenho) de ser levado para Espanha, fazendo uma manobra com
o barco em que se aproximou da margem. Apesar de ter as mãos atadas, saltou para a
água e conseguiu fugir. Durante muitos anos andou a monte e vivia do contrabando.
Contrabandeava-se de tudo um pouco. De cá levava-se sobretudo café, de lá trazia-se
enxadas e outros artefactos. Um negócio que parece ter sido rentável foi o contrabando
de animais (mulas, cavalos e burros). Iam buscá-las a Espanha e muitas vezes montavam
as bestas “em pêlo”. Saía-se de Mértola, ou de outras povoações (Corte de Sines ou Pe-
nha de Águia, por exemplo) até às povoações espanholas sobretudo “o Castelejo” (Villa
Nueva de los Castillejos) e Granado. A rota mais usada era através dos campos da fre-
guesia de Santana de Cambas, onde se passa a pé e por ribeiros que, no entanto, podem
encher no Inverno. Havia uma grande ligação com contrabandistas espanhóis, alguns
dos quais andavam fugidos às autoridades desde o tempo da guerra civil espanhola.
Por vezes recorria-se a esquemas ardilosos. Um pescador da Penha de Águia contou-
-nos que nos dias que fazia mais contrabando convidava os guardas fiscais, que esta-
vam num posto em frente à sua casa, “a beber uns copos”. Mais tarde fingia que ia
numa direcção contrária, voltava para trás por outro caminho, atravessava o Guadia-
na e dirigia-se posteriormente para a zona de Santana de Cambas. Contam-se histó-
rias de desaparecidos e abatidos pela Guarda Fiscal ou pelos “carabineros”.
Também, sobretudo nos anos 60 e até ao 25 de Abril, por aqui fugiram algumas pes-
soas: jovens desertores e emigrantes que não conseguiam passaporte e até alguns ac-
tivistas políticos que utilizaram estas redes do contrabando, vigiadas por esses corpos
paramilitares e também pelas polícias políticas.63
55 A PESCA NO GUADIANA
A PESCA NO GUADIANA 56

IV
A PESCA NO GUADIANA
57 A PESCA NO GUADIANA

4.1. A PESCA: UMA ACTIVIDADE ANCESTRAL

Cria solhos, saveis, safios, lampreias, muges, roballos,


sabogas, picoens, barbos, e nam sey que mais; mas de
nenhuma destas especies se conhece excessos de mayor
abundancia, e sim muita de todas em alguns anos, e em
outros pouca.
8°. Se ha nelle pescarias, e que tempo do ano?
Em todo o ano há pescarias: de Janeiro e Fevereiro adian-
te, de lampreas, saveis, safios, robalos, e outros mais; de
Março athé Junho, solhos e de Junho athé Outubro e
Dezembro, muges e outros de qualidade inferior.
9°. Se as pescarias sam livres, ou de algum senhor parti-
cular em todo o rio ou em alguma parte delle?//
Sam publicas e livres as pescarias, e só do peixe, que se
1
Joaquim Ferreira Boiça, e Ma- pesca em rede se paga dizimo.1
ria de Fátima Rombouts Barros, As
Terras, As Serras, Os Rios, Memórias Orlando Ribeiro afirma: “Quanto ao peixe do rio, hoje efectivamente reduzido com
Paroquiais de 1758 do Concelho de as barragens e a poluição (...), creio que ele teve importância mais geral quando a de-
Mértola, Mértola, Campo Arqueo- ficiente organização de caminhos e recovagens fazia dificilmente chegar os peixes do
lógico de Mértola, 1995, p 73 mar às terras sertanejas”.2
2
O. Ribeiro, Introduções Geográ- Desde sempre houve pescadores no rio Guadiana em Mértola e, ao que parece, foi
ficas à História de Portugal, Lisboa, sempre o núcleo mais estável de pescadores de rio no Baixo Guadiana. Já o foral de
Imprensa Nacional - Casa da Moe- 1251, dado pela Ordem de Santiago se refere várias vezes a eles, dando a Mértola “o
da, 1977, p73 foro e costume do mar e do rio o foro e costume de lisboa e taal assy per mar como
3
Cf. Sebastião P.M. Estácio da Vei- pello rio (...)”3 Embora houvesse pescadores noutros concelhos parece que se dedi-
ga, Memórias das Antiguidades de cavam mais a actividades no mar do que no rio. Na primeira metade do século XIX,
Mértola, Lisboa, Imprensa Nacio- segundo João Baptista Lopes em Castro Marim:
nal, 1880
4
João Baptista da Silva Lopes, Co- (...) os marítimos matriculados são 229: os pescadores
rografia ou Memória Económica, usão da linha e gorazeiras; pouco se afastão da costa; (...)
Estatística e Topográfica do reino do pouco ou nada se entretem nas pescarias do Guadiana.4
Algarve, op. cit. II vol., p. 391
5
João Baptista da Silva Lopes, Co- Refere também o mesmo autor em relação a Alcoutim:
rografia ou Memória Económica,
Estatística e Topográfica do reino do No verão vão estes maritimos fazer alguma pescaria ao
Algarve op. cit, II vol., p. 396 candeio, dando-se pouco ou nada às do Guadiana, que
lhes poderia fornecer sufficiente peixe, principalmen-
te na temporada das corvinas; ou ainda mesmo subin-
do de Mertola, onde se encontrão, nos caneiros, solhos,
lampreias, sabogas, e saveis. Os Hespanhoes são mais
cuidadosos, e pode-se dizer que a fazem quasi exclu-
sivamente. Neste rio, afóra os peixes mencionados vi-
vem sempre os barbos, bogas, muges, muxamas, roba-
los, e eirozes, que se apanhão com os covãos, tarrafa,
e linha; as corvinas com o cedal e corvineira, com que
atravessão o rio. Deixarei de fallar na pesca do solho,
lampreia, e savel, porque de ordinario se faz já no Alêm
Tejo, e pelos pescadores de Mertola.5

As espécies pescadas são essencialmente o muge (tainha), barbo, eiró (enguia), lam-
preia, saboga, sável, saltor, picão e solho. O solho é uma espécie que já não aparece
há décadas no Guadiana, provavelmente devido à poluição.

O solho, a gente... eu estava desejando... eu sabia onde


é que eles estavam, fugia sempre de lá. Era tudo aos ca-
sais, é um peixe que pode ter 75 ou 76 Kg, um disparate!
(...)esse solho, só da ova encheu,uma canastra, veja lá o
que havia ali. A ova é assim como aquele chumbo mais
grado, número 1.
A PESCA NO GUADIANA 58

O solho, onde ele descansava era lá nos Canais. Há lá um


buraco que a gente lhe chama o ouvido, um buraco as-
sim grande
As redes...despedaçavam tudo
No Inverno(...) hoje já se pesca mais: é à eiró, dantes ha-
via tanta eiró!
A eiró é criadeira, vem lá de baixo do Mar dos Sargaços...
e depois fica cá sempre. A lampreia, fica aí dois, três me-
ses. Entra o sável, a saboga, o muge também entra, mas
fica cá todo o ano. Agora o sável, a lampreia, esses peixes,
abalam, vão-se embora. Mas a lampreia não vai, só vem
para cá depois de ter sete anos. Mas quando vem para cá,
para criar, já não se vai embora, morre cá. Conforme de-
sovou, começou a estar magra, cada vez mais magra, ce-
ga, põe-se aquela névoa na vista. E então vai para a terra,
a gente encontra-a aí nos buracos das pedras. Eu além en-
contrei seis dentro de um buraco, seis!
Os bichinhos encostam à margem naqueles cascalhos,
nessas pedras. A lampreia, quando o rio tem uma pingui-
nha de água, segue sempre para cima. A lampreia é um
dos únicos peixes que consegue passar uma corrente de
água mais forte do que qualquer outro peixe. No Pulo do
Lobo, ali já é mais mau, a rocha é já lisa. Mas onde há
assim paredes, onde há rochas assim velhas, a gaja joga a
ventosa, não há corrente nenhuma que a tire dali; a gaja
levanta o rabo por aí a fora, começa a andar á busca, até
que encontra uma greta, mete lá o rabo, tira daqui a ven-
tosa, abala outra vez, a chupar ali e é assim que ela conse-
gue subir uma certa distância da altura da água.
Há ideia nela, não é?
Havia aqui grandes entradas de sável, eu cheguei a apa-
nhar cento e tal quilos, cento e quarenta quilos foi o dia
maior, eu e os outros camaradas, mas apanhava-se peixe 6
Pedro da Costa Rita
com quatro quilos6.

Entre Março e Junho pescava-se também a saboga, frequentemente mais a jusante.


Domingos Baltazar chegava a estar toda esta temporada na zona de Almada de Ou-
ro. O muge começava-se a pescar pelo S. João. Em Alcoutim chegavam a juntar-se
dezoito barcos de Mértola nesta época do ano.

4.2. AS TÉCNICAS

4.2.1. OS BARCOS

Os barcos em geral são pequenos e podem ser denominados de várias maneiras: lancha,
bote, pateira, saveiro... A lancha é maior que o bote e a pateira tem um fundo mais cha-
to. Mas o tipo de pateira que se usava a montante de Mértola era um barco ainda mais
pequeno e mais chato, próprio para andar em águas com uma profundidade mínima.
Os barcos de madeira têm a ré cortada, são largos e arqueados. Há pescadores que
usam barcos de fibra que têm menos trabalho de manutenção. Também há alguns que
usam barcos de ferro que teriam também, em princípio, maior durabilidade. No en-
tanto, ainda há quem prefira os barcos de madeira, que apesar dos problemas ineren-
tes à corrupção desta têm as suas vantagens.

Nunca se trabalha tão bem como com um barco de ma-


deira: é um barco cheio, não há vento que lhe chegue, a
água não lhe pega, é mais pesado. Mesmo para remar é
melhor. São melhores quando há vendavais.
59 A PESCA NO GUADIANA

Os barcos de fibra podem ser mais rápidos, mas para alguns isso não interessa. Se
quiseres chegar cedo abala cedo. Se for preciso abala-se uma hora mais cedo. Os barcos
7
João Luciano de madeira têm maior manutenção, mas como a gente trabalha para a gente7, isso não
constitui grande problema.
O motor é usado essencialmente para se deslocarem para os pesqueiros ou então
para o regresso. Por isso não necessitam de motores com muita velocidade (6,8 ca-
valos). Durante a pesca a locomoção é feita com os remos: um homem não trabalha
com o motor. As deslocações actualmente também não ultrapassam alguns quilóme-
tros (normalmente dez, doze quilómetros). Além disso a maioria dos pescadores ha-
bituou-se durante largos anos a andar apenas a remos, a bogar.
A primeira peça que se monta é a quilha. Depois começa-se com a caverna mestra.
Utilizam-se uns moldes para desenhar as peças e depois serra-se à mão ou com ser-
ra eléctrica. Actualmente recorre-se também às oficinas da Câmara. O barco é cala-
fetado com estopa
Um barco leva aí dois meses a trabalhar todos os dias. Tem que se pôr a madeira de mo-
lho, ajeitar as peças etc. Usa-se madeira seca ou verde, esta trabalha-se melhor, mas
não dura tanto. A matéria prima é essencialmente pinho. Antigamente usava-se um
outro tipo de pinho, a casquinha ou pinho da Flandres que tinha maior durabilidade.
Hoje boa parte do pinho vem do litoral alentejano.
Torna-se difícil estabelecer um custo para um barco tradicional feito de novo, dado
que são os próprios a construí-los, e hoje em dia quase não fazem, por um lado, vis-
to que é uma actividade a que os jovens não aderem e, por outro, porque não são li-
cenciados mais barcos para a pesca profissional. Por isso, um barco que tenha licença
pode ter valores altos, mesmo que fisicamente esteja em más condições. Cálculos por
alto, do próprio pescador, um barco de madeira, feito de novo, poderá custar cerca de
mil contos, dos quais mais de duzentos, representariam a matéria-prima.
Em Mértola não havia oficina ou estaleiro especial. A maioria fazia os seus próprios
barcos. Havia até há pouco o “estaleiro” de Manuel Eugénio da Encarnação (em
Além Rio) que, apesar de ter outra profissão, passou boa parte dos “tempos livres” a
fazer e a projectar barcos de diferentes dimensões.
Na capitania de Vila Real de S. António estavam registados em 1998 os barcos que
a seguir se apresentam, entre as localidades de Guerreiros do Rio e Mértola (conce-
lhos de Mértola e Alcoutim), o que corresponde ao essencial das populações das lo-
calidades que exploram o rio (quadro 3). Em muitos deles ainda constam como sen-
do proprietários pessoas que entretanto já faleceram. Alguns dos proprietários já não
são pescadores, mas continuam com ligação ao rio, outros (poucos) mudaram de re-
sidência. Note-se o nome dos barcos: a maioria têm nomes femininos, geralmente o
nome de uma filha ou de uma santa, outros relacionam-se também com a família, is-
to é, nomes de outros familiares, pai, filhos, netos ou irmãos masculinos, outros ain-
da com características do próprio barco ou de um projecto finalmente alcançado. A
maioria dos barcos pertence ao concelho de Mértola.
A PESCA NO GUADIANA 60

PROPRIETÁRIOS MATRÍCULA NOME DO BARCO LOCALIDADE


Manuel José Figueira VR-329-L Demorado Roncão (Mértola)
VR-33-L Maria Isabel
António Manuel Figueira Roncanito (Mértola)
VR-202-L Figueira
VR-12-L Lina Maria
António Gonçalves Colaço Pomarão
VR-120-L Ana Segunda
Manuel Martins VR-116-L Palongreia Pomarão
Sebastião dos Reis Soeiro VR-85-L O Goleador Pomarão
Carlos Manuel Justino Rita VR-229-L Rita Penha de Águia
Emídio da Costa Rita VR-82-L Maria Antonieta Penha de Águia
VR-61-L Eugénio Valente
Eugénio Valente da Encarnação Santana VR-80-L Leopardinho Penha de Águia
VR-325-L Carlos Manuel
Francisco José Ribeiro VR-64-L Andorinha do Rio Penha de Águia
Jorge Justino da Costa Rita VR-226-L Já Está Penha de Águia
José Eduardo Justino VR-136-L Mexilhão Penha de Águia
Pedro da Costa Rita VR-178-L Esquesita Penha de Águia
Virgílio Dias Sequeira VR-73-L Sete Estrelas Penha de Águia
João Isidoro VR-154-L Santa Maria Mesquita
VR-78-L Bela
Jacinto Teixeira Raposo Fernandes (Mértola)
VR-35-L Noémia
VR-36-L Maria da Graça
Manuel António da Encarnação Fernandes (Mértola)
VR-37-L Barbosa Guerreiro
Lisboa
José Sebastião Vaz VR-25-L Mértola (Além Rio)
José Manuel
Mateus António Ludovico VR-27-L Maria do Remédio Mértola (Além Rio)
Agostinho F. Neto VR-120-L Francisco Maria Mértola
Victor Manuel
Álvaro Sérgio Raposo VR-29-L Mértola
Venturosa
António Manuel Morais Costa VR-21-L Guadiana Mértola
António Manuel Nunes VR-34-L Maria de Fátima Mértola
António Miguel Sequeira Luís VR-176-L Toni Mértola
Francisco da Costa Flórido VR-23-L Maria do Céu Mértola
Francisco da Palma Ribeiro VR-177-L Lénita Mértola
Francisco Gonçalves Mestre VR-32-L Nossa Senhora te Guie Mértola
Maria Irene
Francisco Pereira Bento VR-26-L Mértola
Camarão
Santa Filomena
Jacinto Alves da Cruz VR-31-L Mértola
Isabel Maria
João Luciano Confeiteiro VR-24-L Três Irmãos Mértola
João Manuel Figueira VR-16-L Ricardo Manuel Mértola
José Eugénio Teixeira da Encarnação VR-83-L Malta da Silva Mértola
Zélia
José Joaquim dos Santos VR-323-L Mértola
Nuno e Santos
José Matias Lopes VR-27-L Francisco Manuel Mértola
Luciano Manuel Confeiteiro VR-115-L Carolina Mértola
Manuel Bento VR-174-L Fátima Mértola
Manuel Caetano Pereira VR-22-L José Marcelino Mértola
Luís Manuel
Manuel de J. da Encarnação. Confeiteiro VR-30-L Mértola
Nª Senhora dos Mártires
Manuel dos Santos VR-126-L Maria do Amparo Mértola
Manuel Eugénio Rodrigues da Encarnação VR-240-L Isabelinha Mértola
Manuel Francisco Mestre VR-172-L Ana Maria das Neves Mértola
Manuel Mestre Gonçalves VR-173-L Não te Rales Mértola
Mateus L.P. Pereira VR-124-L Pereira Mértola
José Colaço VR-20-L Anabela Laranjeiras
Sebastião Federico VR-50-L Quatro Irmãos Segundo Laranjeiras
José das Neves Mestre VR-43-L Nelson C. Pereira
António Madeira VR-254-L Cátia Sofia Alcoutim
QUADRO 3
Francisco António João VR-168-L Alcoutinejo Alcoutim
Embarcações existentes na área en-
João Batista Reis VR-269-L São Expedito Alcoutim
tre os Guerreiros do Rio e Mértola.
João Pereira Baptista VR-58-L Maria Manuela Alcoutim
Fonte: Capitania de Vila Real de
Joaquim António do Rosário VR-146-L Maria Augusta Alcoutim
Santo António.
Manuel Hilário Martins VR-166-L Jorge Manuel Alcoutim
61 A PESCA NO GUADIANA

4.2.2. O TRESMALHO

O tresmalho é a arte mais versátil e mais usada, permite apanhar barbos, lampreias,
muges, eirós, sabogas, etc. É constituída por dois ou mais panos de malhas diferen-
tes, com jogos de pesos, flutuadores em cortiça, bóias (usam-se sobretudo garrafões
de plástico), com âncora ou amarradas ao barco ou à margem. Podem ficar estendi-
dos no rio e ser recolhidas passadas uma ou duas marés.

4.2.3. O CANEIRO

Existia até há poucos anos um caneiro no açude dos Canais e outros dois na Brava.
São construções com centenas ou milhares de anos, constantemente refeitas.
O caneiro é uma construção que pode ter vários metros de comprimento, na parte
do açude por onde a corrente é mais forte. Está assente sobre estacas bem firmes no
chão, que é construído com pedras dispostas de modo a resistir à corrente e às gran-
des cheias.
Aqueles que conhecemos e que foram destruídos pela Guarda Nacional Republica-
na, situavam-se no açude dos Canais, perto da margem ao lado da azenha, e no açude
da Brava também havia dois, onde a corrente é mais forte (Fig. 6 e5).
Têm o formato de um corredor em v com a entrada aberta e fechados no vértice.
Construídos com canas entrelaçadas e intervaladas no chão e nas paredes de cerca de
1m de altura, o suficiente para passar a água e reter a maioria dos peixes. O homem
que tratava do caneiro ou caniço chamava-se caneleiro.
Vejamos uma explicação dada por um pescador (João Luciano):

Qualquer pessoa que vá lá aos Canais e olhe assim, não


vê nada. O caniço... eles fizeram aquilo em cimento, as-
sim de rampa, e a água, por ali é que é que vem (...) ha-
via ali muita saboga, tiravam de lá com uma forquilha, os
moços não davam conta e o peixe era demais, e o homem
que lá estava, o caneleiro, aborrecia-se daquilo. Chama-
vam-lhe caneleiro, o homem que tomava posse daquilo.
(...) Depois por fim já passou a ser o moleiro (...) o pai do
Álvaro Raposo foi o único caneleiro, conhecido por mim
e contado pelo meu pai. (...) o gajo ganhava muito dinhei-
ro, ele era pouco, mas nesse tempo era muito. O homem
punha-se ali, dentro de água, a água gelada, de enverno,
águas turvas, o homem amarrava uma corda até em ci-
ma, agarrava-se à corda, com um feixe de lenha às costas,
ia à tona de água, a água pulava-lhe por cima, com a for-
ça, a água pegava no feixe de lenha e firmava nesses ta-
gulhos e quando firmava nesses ditos tagulhos, sabe para
que era aquilo? Só ele é que fazia aquilo, mais nenhum.
Mas aquele gajo era tão bom tão bom, que fazia aquilo
para o peixe se ir embora.(...)
Puseram uma rede de arame no solo do rabo do cani-
ço, até onde eles pudessem chegar e depois punham outra
parte. O safio chegava ali, balhava, balhava ali em cima.
Aquele homem estava sempre lá, chegou a dormir lá den-
tro do barquinho.
(...)O caniço era do Barbosa e alugavam aquilo.
Aquilo estava lá um, outros três ou quatro anos e pu-
nham-nos a mexer.
Aquilo é um açude, que faz assim, passa para o outro lado
do rio, e ali há uma parte que vem assim e essa parte no sí-
tio mais fundo que o rio tem ali, agora neste tempo um ho-
mem anda de fora de água, e então ali tem um buraco que
é uma espécie de isco, mas grande. A água vem de além, é
um tiro, a água vem encanalizada, à queima-roupa, pas-
sam por ali os peixes, vêem aquele buraco, enfiam lá pa-
ra dentro, mas quando enfiam, bate-lhes a água aqui na
A PESCA NO GUADIANA 62

cabeça, estão logo fora da água. O peixe não resiste com


aquela correnteza. Além de não resistir, quando enfia...
enquanto se endireita e não endireita está cá em baixo.
Os homens estudaram aquilo. Lampreia, sável, safios,
mas safios com seis, sete e oito quilos, a gente aqui nunca
apanhava daquilo, que eles partiam tudo, partiam o tres-
malho, os anzóis cortavam a linha.
Desde que vieram essas águas malinas, com poluição, o
sável desapareceu, o solho isso é que nunca mais cá apa-
receu.
(...) Aquilo tem o rabo do caniço, o caniço é em madeira,
tem uns tagulhos e zimbro.

4.2.4. TARRAFA

A tarrafa ou atarrafa é uma rede de forma cónica em cujo vértice está amarrado um
cabo e que tem a base guarnecida com chumbo. É uma arte de lançar a partir de um
barco ou da margem”. Quando lançada a rede faz um círculo na água que depressa
se fecha devido ao peso do chumbo e onde ficam retidos os peixes. É usada sobretu-
do em águas pouco profundas (Fig. 39 e 40).

4.2.5. O CONTO

O conto destina-se sobretudo à pesca do sável. É constituído por uma vara com mais
de dois metros que o pescador segura com a mão ao mesmo tempo que segura tam-
bém uma corda. Uma outra vara circular contém uma rede e uma outra corda que se
prende à margem. É colocada na corrente e quando o pescador sente que algum pei-
xe entra na rede num gesto rápido recolhe-a (Fig. 38).

4.2.6. A PESCA À COLHER

Segundo palavras de Pedro da Costa Rita:

A colher tinha umas varas grandes e uma rede passada de


um lado ao outro, com uma grande manga e a gente ia di-
reito à terra bogando, devagarinho sem fazer barulho ne-
nhum e a gente quando estava lá perto deitava uma pedra
para dentro do rio e o peixe tinha medo e fugia e como fu-
gia vinha para dentro da colher. Apanhava muito peixe.
(...) Com a colher apanhava-se mais peixe miúdo, tam-
bém apanhava grado, mas era mais o miúdo, quer dizer,
peixe que não tem vergonha. Mas o pessoal começou a
querer só peixe grado e então começámos a andar mais
com tresmalhos.

4.2.7. OUTRAS TÉCNICAS

Também se pescava no Pulo do Lobo, apesar da sua perigosidade. Um relato do Con-


de de Ficalho:

O José Bento foi seguindo a margem, até o sítio em


que o rio se despenhava, desaparecendo na funda ba-
cia. Mais adiante, já para além da queda, viu solida-
mente atada a uma saliência da rocha, uma corda forte
de linho, que passava por cima da aresta e pendia pa-
ra o abismo.
– Olha! está cá um, pescando ao sável! disse ele consigo.
Teve curiosidade de ver, aproximou-se, e, deitando o
chapéu no chão, lançou-se de bruços passando a cabeça
para além da borda. A parede de xisto, irregularmente
fracturada, descia a pique. Em baixo, a água espumava
63 A PESCA NO GUADIANA

e fervia na queda; agitava-se, ainda sentida, em largas


ondulações; e tranquilizando-se pouco a pouco, tomava
os tons denegridos das rochas que a cercavam.
Lá no fundo, na ponta da corda, um homem atado pela
cintura, com os tentos da rede na mão esperava a pan-
8
Guia de Portugal,, Estremadura, cada do sável.8
Alentejo e Algarve, Lisboa, Biblio-
teca Nacional de Lisboa, 1927, vol. Mas já em 1610, Duarte Nunes de Leão se referia às espécies pescadas na área de
II,. p165 Mértola e a esta forma particular de pescar no Pulo do Lobo:
9
Duarte Nunez de Leão, Descrip-
ção do Reino de Portugal, Lisboa, A pescaria que se faz naquelle pego onde a agoa cae,
1610, f. 34 e nos lugares estreitos e profundos do rio ate Merto-
la, he, que se atão os pescadores pela cinta em cordas e
se deitão, por ellas abaxo ficando com os pees jũtos cõ
a agoa, os quaees firmão em hũs feixes de rama ou vi-
des, que também lanção per cordas: e asi tomão muitos
saueis, lampreas, mugeēs e solhos. O pexe deste rio qũ
sobe do mar, he mas crescido em seu género que de ou-
tros rios, mais nam de tão sabor, tirando as eiroos que
são mui boas.9

Hoje em dia já não se pesca assim, mas obtivemos a confirmação, de que há alguns
anos atrás, ainda assim se pescava. Apesar da poluição e da forte corrente, ainda
hoje, se podem ver os peixes a saltar e a tentar tenazmente ultrapassar a queda de
água.
Também Pedro da Costa Rita (Gainha) me confirmou esta forma de pescar, referin-
do a sua perigosidade:

Houve um, aquilo tinha uma pesqueira, aquilo é assim


aprumado e depois faz um canto, a água vem de lá com
toda a força e depois faz aquela arremessazinha. E a lam-
preia e o sável andam muito ali, que aquilo é uma altu-
ra desgraçada, é mau de subir. E então andam ali bai-
lando. O homem ia lá abaixo, fez uma escada em corda,
desceu por aí abaixo, por aí abaixo, preparou aquilo, pas-
sou um feixe de lenha, atou aquilo com uma corda, atada
com umas estacas boas, punha-se lá em cima daquilo e
punha-se ali a pescar com uma saca. E quando lhe pare-
cendo vinha com aquilo para cima. Mas aquilo, o homem
apanhava lá tanta lampreia e há aquelas invejas desgra-
çadas, um marau meteu-se-lhe na cabeça, foi lá e cortou
a corda ao homem. Com umas correntes daquelas, nunca
mais se soube do homem (...)
No outro ano metia-se um cá em cima, mas com uma es-
pingarda ali- venham para cá, venham para cá!. Ao fim
de tantas horas, uma hora ou duas, o outro vinha para ci-
ma, tinha lá no lugar uns ganchos, para trancar lá o con-
to. Vá agora vai lá para baixo! Porque havia tanta escu-
ma, tanta escuma, que um homem deixava de ver. Aquilo
era só para peixe de entrada.

4.3. ARQUITECTURA DE PRODUÇÃO E A HABITAÇÃO

A manutenção e/ou a construção dos barcos, motores e das artes implica encontrar
espaços para armazenar e produzir. Esses espaços situam-se próximo do rio e da ha-
bitação, muitas vezes no leito de cheia. Em geral são separados da habitação e fre-
quentemente o espaço público (do domínio público marítimo ou ruas) são utilizados
para essas actividades. No Além-Rio em Mértola, que tem um declive menos acen-
tuado onde tradicionalmente vivem famílias de pescadores, vêem-se pequenos arma-
A PESCA NO GUADIANA 64

zéns, precariamente construídos em madeira, onde se guardam os apetrechos. Po-


dem também ficar ao ar livre, pois não há o perigo de serem roubados. Antigamente
até as mercadorias eram deixadas na rua sem problemas. Há até uma certa indiferen-
ciação entre espaço público e privado
Na vila os pescadores profissionais têm armazéns onde também praticam essas acti-
vidades (fig. 40). Nas ruas que ladeiam o rio vêem-se casas com portões de dimensão
suficiente para albergar um barco. Geralmente são arrendados. Antigamente, quan-
do não circulavam automóveis também se trabalhava nas ruas e na praça. São espa-
ços onde se trabalha e também se conversa, sem pressas, porque o tempo não é me-
dido por minutos mas por tarefas. Eram espaços onde as crianças aprendiam com os
pais e os vizinhos.
No interior dos armazéns, ao lado das redes podemos ver alguns símbolos de iden-
tificação com um grupo, por exemplo, uma imagem de um clube desportivo ou dos
bombeiros voluntários.
Também na margem do rio, vêem-se algumas construções precárias, que podem até
ser construídas em cima de antigas vias, que servem de apoio às pequenas hortas
construídas no leito de cheia (Fig. 34). Tudo é aproveitado desde que tenha uma fun-
ção: chapas, garrafões de plástico, bidões de óleo, madeiras e canas para fazer veda-
ções. Também as casas antigas, de que só já restam os muros, são aproveitadas para
apoio ou para galinheiros ou pocilgas.
Se estas construções são feitas numa aparente desordem, o mesmo já não se pas-
sa com a casa de habitação. Seguem o modelo de habitação do Sul do Alentejo10. As 10
cf. Mário Moutinho, A Arquitec-
casas são caiadas de branco regularmente, frequentemente sem rodapé, outras com tura Popular Portuguesa, Lisboa,
rodapé azul, amarelo ou ocre, com janelas pequenas. A construção tradicional é ge- Editorial Estampa, 1979, p.p.
ralmente em taipa, também tijolo ou placas de xisto, vendo-se, por vezes, muros exte- 117e 118
riores que nunca foram rebocados. No andar térreo entra-se por uma casa de entrada 11
“Pour le professionnel en effet,
a que se segue a cozinha, mas por vezes esses espaços estão unidos. Tradicionalmente paludier, conchyliculteur ou
há uma lareira de pequenas dimensões, com um chupão, com uma chaminé com uma pêcheur côtier, les métiers du
forma exterior cilíndrica, como é usual sobretudo na margem esquerda do Guadiana travail sur le marais salant, de
e na serra algarvia. A cobertura é um telhado de uma ou duas águas e o tecto tradi- l’élevage des coquillages sur les
cionalmente em cana. Algumas, à semelhança das casas dos montes, têm no exterior parcs, du casier, du bahot, de
um forno, de construção cilíndrica, que dá para um terreiro irregular (Fig. 32). la traîne ou du chalut, son des
As construções têm sido modernizadas e coloridas (mas está-se novamente a voltar ao métiers Qui ne «s’apprennent»
branco). As mudanças principais notam-se nas cozinhas, nas paredes interiores colo- pas, pour autant que l’on don-
ridas (uma tendência dos anos 70 e 80, mas em regressão) a lareira torna-se decora- ne au verbe apprendre un sens
tiva, os tectos em placa, substitui-se a telha mourisca por telha lusa. A televisão tem qui s’apparente à apprendre á
algum impacto no arranjo do espaço, mas esta influencia menos os pescadores acti- l’école » in Geneviève Delbos e
vos, visto que estes partem para a pesca à noite. Mas as funções dos espaços continu- Paul Jorion, La Transmission des
am quase inalteradas, nomeadamente a cozinha onde normalmente se tomam as re- Savoirs, Paris, Editions de la Mai-
feições. son des Sciences de L’homme,
1984, p. 9

4.4. A APRENDIZAGEM PELO TRABALHO

Não se aprende a profissão de pescador na escola. A escola básica tem outros objec-
tivos, tanto agora como em épocas passadas, e a profissão é encarada como um tra-
balho, enquanto a escola servia para aprender a ler, escrever e contar (durante o Es-
tado Novo). Também a escola actual, o ensino universal e obrigatório dificilmente se
relaciona com o mundo do trabalho.
Se a escola é considerada importante como preparação para a vida futura, não é nes-
ta que se aprende a lidar com o rio, nem este é considerado pela Escola. Trabalho e
escola são mundos separados.
Filhos de pais geralmente analfabetos, desconhecedores das regras escolares, estes
tinham grande dificuldade em controlar a educação escolar dos filhos. Eles próprios
aprenderam o seu trabalho através da experiência do dia a dia, que pretendem trans-
mitir, e os possíveis ensinamentos da escola pouco acrescentam aos conhecimentos
necessários ao seu quotidiano. Aliás, no dizer dos próprios, o trabalho “não se apren-
de”, tal como Geneviève Delbos e Paul Jorion tinham verificado numa zona costeira
em França11.Entendemos aqui por trabalho, “uma forma premeditada de actividade
sistemática, padronizada pela tradição e destinada à satisfação das necessidades do
65 A PESCA NO GUADIANA

12
Roger Bastide, Antropologia Apli- homem que se lhes dedica”12. A permanência na escola primária pode até impedir a
cada, São Paulo, Editora Pers- aprendizagem do trabalho de pescador.
pectiva, 1979, pág. 18
13
Pedro Gainha Comecei tinha 11 para doze anos, quando comecei a an-
14
Roger Bastide, Antropologia Apli- dar com o meu pai à pesca. Antes o que é que eu podia
cada, São Paulo, Editora Perspecti- fazer...? andava com o meu pai. Sou tão velho aí na pes-
va, 1979, pp. 126 e 127 ca, podia estar aí esses cinco ou seis anos, na escola, não
é?... mas os meus pais... nesse tempo as dificuldades eram
muitas, andei sempre por aí à pesca, nunca fui à escola.
Eh, eh, a minha escola foi na pesca (...) Eu nem à esco-
la tampouco lá fui um dia. Andava aí com o meu pai éra-
mos também seis filhos e para dar parte a um homem, as-
sim ficava tudo em casa.13

Por outras palavras, a aprendizagem é feita por enculturação, “o processo pelo qual
uma cultura com suas normas de conduta e seus valores próprios, é transmitida pelos
pais a seus filhos”, ou ainda segundo Splinder:

“o processo através do qual o indivíduo adquire a cul-


tura de seu grupo, de sua classe, de seu segmento ou
da sua sociedade... Este processo é limitado à aquisição
de modelos comportamentais, inclusive a linguagem, a
metalinguagem, os costumes, valores, as definições de
funções e outros fenómenos desta ordem”14.

Há até uma rebeldia da parte das crianças, que pode ser tolerada pela família. Embo-
ra os pais pretendam que os filhos aprendam conhecimentos na escola estes fogem ao
controlo escolar e tentam imitar o trabalho dos mais velhos, em parte porque a famí-
lia vai necessitando da sua ajuda, mas também porque esta aprendizagem é mais es-
timulante para as crianças. Também Pedro Simão, que foi maquinista de barcos que
faziam o transporte de pessoas e mercadorias para Vila Real nos contou que em vez
de ir para a escola, escondia-se no porão e só aparecia quando o barco já ia a algu-
ma distância. Apanhava uma pequena repreensão, mas continuava viagem. Também
não aprendeu a ler.
Vejamos exemplos de duas outras gerações:

– Andei à escola até à idade de 8 anos. A partir dos 8 anos


pois tiraram-me da escola e... não dava nada na escola,
depois tive até aos 11; morreu-me o meu pai tinha eu 11
anos; foi aos 11 anos que me tiraram da escola por com-
pleto. Fui a trabalhar aí na pesca com o avô com 63 anos
e depois morre-me o avô e fiquei sozinho com a minha
mãe, tivemos que vender a turgia toda: barco, redes, tu-
do, ficámos sem nada, fomos criados com a mãe a traba-
lhar à boca de uma pedra a ganhar 15$ cada canastra de
roupa, chamava-se nesse tempo (...) depois fui a trabalhar
para a mata já com 14 anos, depois fui trabalhar para vi-
la Real lá para o campo de tourada, aquela que está lá,
estive trabalhando além na moagem, de sacas às costas,
depois comecei com 15 anos, com 16 anos vá, já come-
cei a fazer camionetas pró Manuel João a ganhar 25$ por
dia.. sem barco, sem rede, com casa (...) depois saí aos
17 anos, foi quando fizeram aí a ponte, estavam a fazer
além a ponte (...) no ano em que eles fizeram além o po-
ço para fazer o pilar lá dentro veio uma cheia levou o po-
ço, esse de madeira, bateu aí dentro do penedro, a saltar
madeira e eu agarrei num (...) de madeira aí, na altura,
posso dizer isso, tirei logo uma prancha dessas (...) escon-
di-la, os gajos que foram além buscar a madeira, quem
era até o encarregado nesse tempo era o Zé Ribeiro, era
um gajo de Lisboa, o encarregado era o Pires, o homem
A PESCA NO GUADIANA 66

deram-me 25$, que era o trabalho que eu tinha tido, (...)


deram-me uma prancha daquelas, com a outra que eu ti-
nha desviado, eram duas. Bom! Duas já eu tenho! conse-
guia fazer o barco.15 15
João Luciano

Não foi o insucesso escolar nem a falta do pai que antes angariava os meios de sub-
sistência para a família que o levaram a ser pescador. Experimentou até outras pro-
fissões, mas o seu principal desejo foi ter um barco que o tornasse um pescador inde-
pendente de patrões.
Já nos anos setenta o seu filho, comete também uma proeza que é o orgulho do pai,
apesar do seu insucesso escolar.

Até à idade que o meu moço tinha quinze anos, tive sem-
pre barcos a fazer, barcos a arranjar e ele, tinha jeito, da-
va-lhe jeito, ele puxava e ele depois quando tinha quinze
anos, mesmo aqui nesta casa diz: pai, a gente é que vai
fazer o barco. Tu?!, se eu tenho visto trabalhar com bar-
cos, fazer barcos e ainda não sou capaz de pregar um pre-
go, como é que tu vais a fazer aqui um barco? Estava aí
em casa e o gajo arranja-me uma prancha, uma prancha
de um lado ao outro da casa (...) cheguei ali a casa e dis-
se assim à mãe: aquele arranjou aquilo de uma manei-
ra...de fazer um barco, parece que há-de sair um papo-se-
co, porra! (...) O gajo pega num bocado de arame e vai ali
(...) tira o molde ao do mestre Chico Ribeiro, do Poma-
rão, agarra assim a rodear (...) faz um molde destes. O ga-
jo faz aí uns moldes, o gajo chega aqui, monta aqui uma
tarquilha, não é? aqui monta outro, e aqui monta outro,
mesmo com estes moldes.
....
-(...) Diz-me ele assim: agora já estão estes aqui; eu vou
fazer o barco. (...) (digo ao Senhor Paulo, que mora aqui
ao lado: você arranjou-me uma (...) muito bonita (...)!
Você meteu na cabeça do moço, disse ao moço para fazer
o barco, porque eu vi logo que tinha de ser de além, fazer
um barco nestas condições, vai sair daqui uma trapalha-
da. “Deixa lá”, (ele fala assim um bocado descansado),
“deixa lá homem! (...). Com 15 anos hã?! O gajo, o mes-
tre Chico Ribeiro vem de além, vem aqui e olhou o barco
e viu que ele estava um bocado torcido, manda chamá-lo
além a casa... vais a tirar as fasquias para andar para todo
o lado. O homem veio, veio aqui (...) alinhou-lhe o barco.
Passado aí uns 15 ou 20 dias temos o barco. Eu começo
a ver, fui fazendo já, já fui tarde, começo a ver, a ver, a ver,
vamos fazer barco, vamos fazer um para a gente. Outro!
Três! fui logo fazer um para mim, outro para ele. Quatro!
Ora e depois com 17 anos, começou já a trabalhar por
conta dele. Pai, eu quero rede. Pronto! Dei-lhe rede. Vá,
vai para aí tu. Depois a vida dele começou a andar, andar,
andar, e uma coisa tão bonita que eu pensava que ele se-
guia para a frente, dá-se o problema do peixe não entrar
aqui. Chateou-se, já não fala em barcos, já não liga às
coisas, não quer saber de nada, não pesca.

Podemos até dizer que a aprendizagem começou quase à nascença. Quando os casais
eram mais novos toda a família ia à pesca. Desde pequeno que há uma fusão com o
rio e toda a família participava, nomeadamente a esposa (Fig. 31):

- Agora já não pode (a esposa), mas andou comigo até aí


à idade de 40, 45 anos. Como a minha outras mais! Nesse
tempo a miséria era o mesmo. Não podia dar para a gente
67 A PESCA NO GUADIANA

nem para os outros. com os moços pequeninos lá a bordo,


dentro do barco, ali amarrados pela cintura com medo
que eles caíssem para dentro de água. Não era só a mi-
nha, a do meu Manel, a do Gainha, todos os pescadores.
- Quando os filhos eram muito pequeninos...
- Iam à mesma. Atão o meu moço ia para lá com meses.
A minha moça, a Maria José, eu cheguei a ter uma atarra-
fa por cima da proa do barco, amarrada pela cintura, por
baixo dos braços, uma atarrafa por cima dos braços, que
era quando o gajo alevantasse, desamarrasse o coiso, en-
fiasse com a cabeça lá nas redes (...) apanhei-a uma vez
(...) em cima do leito do barco (...) tio Pedro Gainha, e eu
deitei-me, estava deitado com a mulher e o moço, e a mo-
cinha estava ali também. Foi só pôr um pezinho lá e caiu
para dentro de água.

O barco era uma segunda habitação para toda a família. No caso de algumas famí-
lias com mais filhos a situação podia piorar. Segundo a mulher de António Guilher-
me, a Beiranita:

Muitos foram criados numa miséria, com tanto piolho,


tanto piolho, lá no barco, aquilo fazia lembrar uma coe-
lheira. Comiam fiado todo o Inverno à da tia Amália que
Deus tem. Depois vinha o Verão ganhavam e pagavam.

Também a concepção de criança era outra. Os filhos eram preparados para seguir a
vida dos pais, brincavam participando em todas as actividades da família. Ainda não
havia o modelo puerocêntrico, que leva frequentemente a colocar a criança no centro
das preocupações da família. Os filhos começavam a conhecer o rio desde pequenos.
Pedro Gainha conta uma situação passada com o filho ainda bebé, em Alcoutim:

Levou ali três quartos de hora chovendo-lhe em cima. Es-


ta malta quase que nasce traz logo o bico afiado. Este
meu Jorge (...) a maré enchia, a gente estávamos ali ao
cais, o barco estava de proa para baixo, encostado ao cais.
E então vá de subir a beber um copo de aguardente, pa-
ra limpar a garganta, para o tabaco, (nesse tempo fumava
muito, hoje já não fumo) e então saltei para a terra. Salto
para a terra, desatei dois ou três cordões no oleado, nes-
te lado, porque o barco, porque o barco estava assim. De-
pois veio uns ventos assim mais rijos e levou uns três quar-
tos de hora chovendo. Os moços é que ao depois olharam
para o relógio... E o moço pequeno, em cueiros, de uns
quantos meses, e então o barco era preia mar e a maré
traz sempre aqueles ventos voltados, a água voltava-se e o
vento voltou-se. Ora, o buraco que eu tinha deixado aqui,
passou a estar do lado de fora do barco, do cais, voltou a
proa para cima. Estávamos ali, as mulheres, aquilo ainda
não havia água canalizada em lado nenhum e as mulhe-
res tiravam água do rio com umas enfusas, com uns cân-
taros, com umas latas para levarem a água, porque nem
furos havia tampouco, lá ao alto é que havia um poço. A
água era boa, belíssima.
Atão o meu mocinho? (estavam ali mesmo rente ao bar-
co, enchendo as bilhas) - Estava muito caladinho, não
soava. - Então está bem obrigado!
Daí a bocadinho lá vinha outra, às vezes duas ou três jun-
tas. Então o meu moço não está para ali chorando? Não,
estive ali agarrada ao barco e também não o ouvi. Bom!,
depois começou assim uma nevrina, aquilo não foi água
de chuva, era aquela nevrina, esse molha-parvos. Fui eu,
A PESCA NO GUADIANA 68

para o barco, o moço nem chorava, não pode estar bem,


aquela parte de onde tinha saído, eu não atei. Pensei, a
mulher fica aí e depois ata o cordão (..) Sim, ata o cor-
dão, para molhar as mãos! Aquilo não fazia mal, tinha fi-
cado bem.
Eu venho, estava aquela nevrina, eu vi, estava uma pin-
guinha de água entre o olho e o nariz, conforme ele fazia
assim a água vinha para baixo. He, eh. Como é que ele es-
tava?. Era encharcadinho, encharcadinho!
– Nada... (...) Anda cá,anda cá que é para veres. - Ai o
meu moço!
– E não chorava?
– Nada!
(...) O Sr. Dr., o Dr. João Dias, um homem muito falado
(...) diz ele assim:
– Estas crianças, é do mais forte que há, nem se constipa
concerteza... Estavam feitos àquilo, àquela marmelada.
Nem se constipou!16 16
Pedro da Costa Rita
17
Pedro Simão
Mesmo em profissões mais especializadas o processo de aprendizagem também não
passava pela escola. É o caso do mestre e do maquinista de um barco de carreira.
Comprou-se o barco, mas até os membros da família saberem governá-lo em condi-
ções, contratou-se também o piloto do mesmo, e este era também encarado como se
fosse um membro da mesma família.

O meu pai [Francisco Simões] andou nesses barcos gran-


des e depois os patrões morreram, eram da família do Dr.
Gomes, o Manuel Gomes. De maneiras que resolveram
vender o barco, foi primeiro para Lisboa e depois andou
por lá a fazer travessias. Era o Guadiana (...) O meu pai
andou sempre com a ideia no barco (...) e o meu pai pen-
sou sempre em comprar um barco. Um dia estávamos lá
em Vila Real nas canoas, eu tinha para aí os meus do-
ze, treze, catorze anos, era já homenzinho. De maneiras
que aparece lá um senhor e o meu pai falando-lhe a ele
nos barcos... e ele disse: o meu patrão (era francês, tinha
uma grande fábrica de peixe) (...) e tinha comprado um
barco em Setúbal para levar para Espanha e ele disse ao
meu pai: Eles não estão sastefeitos com o barco e você es-
teja com ele que ele pode-lhe vender o barco (...) O bar-
co estava em Espanha e resolveram ir ver o barco. Quem
é que lá havia de estar?! O maquinista [Augusto Ribeiro]
tinha vindo da tropa, era algarvio, de Lagos (...) Olhe lá,
os senhores têm que me vender o barco, mas têm que me
vender o maquinista, que o meu rapazinho ainda é novo
e quero que ele aprenda. E ele disse: está bem, se ele qui-
ser ir. Ele estava desejando largar a Espanha disse logo
que sim. Veio para aqui, era como um filho da nossa ca-
sa, aqui comia, aqui dormia, umas vezes dormia no bar-
co, outras vezes em casa. Depois o compadre Augusto co-
meçou a dormir num quarto numa hospedaria...e depois
casou com uma moça de Mértola17.
69 A PESCA NO GUADIANA

Também quando tiveram que mudar para um barco a vapor - o Rabino (Pág. 11),
contrataram um maquinista para aprenderem:

Nessa altura andava eu lá com um homenzinho, que eu


não percebia nada de caldeiras... Mete-se um homenzi-
nho, que já estava reformado, do Pomarão, filho de um
maquinista de um barco da empresa, o tio António. O ve-
lhote fez meia dúzia de viagens comigo para baixo e para
cima e eu aprendendo como era e então ele disse: o Pedro
18
Pedro Simão já faz tudo, eu já não preciso de vir”18
19
”Il n’en est rien cependant, on
pourrait établir la liste de tous ces Actualmente o Estado incita os marítimos a ter mais habilitações, ou seja, a possuir
jeunes destinés par leurs parents à uma carta profissional. Por isso, há alguns anos atrás, os pescadores foram convida-
d’autres activités et qui reviennent dos a fazer um curso para tirarem a carta de arrais para poderem continuar na sua
á point nommé, «par goût» comme profissão. E eles foram quase todos, mas continuam a trabalhar como antes.
ils disent, pour assurer la transmis- A aprendizagem que fizeram tinha começado quase à nascença e trouxe marcas e um
sion: Robert, le menuisier, Charles, gosto pelo rio que dura para toda a vida, mesmo quando se se é obrigado a mudar de
le plombier, Alain, dans l’industrie profissão, “porque o rio já não dá nada”, há sempre um desejo de voltar. Como no
pétrolière, Claude qui élève des caso apresentado por Delbos e Jourion, em que a profissão é sentida como um desti-
moutons, et bien d’autres encore; no desde a nascença, um gosto, uma inclinação19.
tous paludiers par goût, par incli- Mas essa forma de transmissão de saberes terminou. Os pais não vão com os filhos
nation, par un acte de grande liber- para o rio. Os pescadores mais novos (com mais de trinta anos) só o são esporadica-
té qui a dû suivre des hésitations mente. Um colabora com o pai, outro trabalha com tripulante no barco turístico de
douloureuses, tous ont renoué avec passageiros, o Vendaval quando ele funciona (intermitentemente durante a Primave-
un destin inscrit dans la nature des ra, Verão e Outono) e por vezes também pesca.
choses au jour même de leur nais- Nota-se, em alguns casos, anomia, uma desorganização da sociedade em que os in-
sance. Ou faudrait dire, le jour mê- divíduos não sabem que normas hão-de seguir 20. Indivíduos que começaram por ser
me où ils furent conçus ?» Delbos pescadores, mas que já raramente exercem a profissão e que desembocaram no alco-
Geneviève e Paul Jorion, La Trans- olismo, e correlativamente na desintegração da família nuclear.
mission des Savoirs, Paris, Edi- Verificámos também o percurso de indivíduos que pertenciam a linhagens antigas
tions de la Maison des sciences de que viveram do rio durante gerações e que abandonaram esse modo de vida. No ca-
l’homme, 1984, pág 84 so da família Encarnação encontrámos pessoas (hoje em média nos 70 anos) que, de-
20
Segundo a definição de pois de casar, se tornaram domésticas, mas com maridos ligados aos serviços, taxis-
Durkheim, citado entre outros por ta (mas que continuou a construir barcos), comerciante etc. Os respectivos cônjuges
Henri Mendras, Princípios de So- não tinham ligação quase nenhuma com o rio nem com Mértola. Parte deles migra-
ciologia, pág 118 ram para outras áreas, sobretudo para a periferia de Lisboa. No entanto, mantiveram
sempre um desejo de retorno à localidade, que é visível sobretudo na procissão dos
Passos. Conseguiram que os filhos mantivessem uma ligação algo estreita com Mér-
tola. Os filhos tiveram uma educação escolar sem nenhuma referência ao rio nem à
cultura local, mas os pais apostaram na instrução destes. No entanto, continuaram a
passar aqui grandes temporadas, ou porque viveram cá ou porque vinham passar fé-
rias a casa de familiares. Hoje têm entre 35 e 45 anos.
Dos casos analisados (família Encarnação) há professoras do Ensino Secundário
(História e Educação Visual), uma médica, dois veterinários, uma jurista, uma pro-
fessora universitária, topógrafos, (...) Tudo leva a crer que esta geração, com uma ou
outra excepção, foi educada, sobretudo pelas mães, numa atitude positiva perante o
trabalho, e numa disciplina que os levou a alcançar outro status social. De notar tam-
bém, que foram as mulheres (à semelhança do resto do país) que conseguiram ascen-
der mais academicamente, e, neste caso, socialmente.
A PESCA NO GUADIANA 70

FOTO - (LP)
71 A COMUNIDADE RIBEIRINHA
A COMUNIDADE RIBEIRINHA 72

V
A COMUNIDADE RIBEIRINHA
73 A COMUNIDADE RIBEIRINHA

5.1. OS MARÍTIMOS DE MÉRTOLA

Pretendemos saber quantos foram os marítimos do concelho de Mértola e durante


quanto tempo durou a sua actividade. Como durante a maior parte do tempo da época
considerada funcionou a empresa que explorava a mina de S. Domingos, que exporta-
va o minério através do porto do Pomarão e, portanto, pelo Guadiana, achámos que
deveríamos dividir os marítimos por freguesias (os registos não nos permitem ir mais
ao pormenor, na maior parte dos casos) para distinguir os registos que se podem rela-
cionar directamente com a mina, dos outros que se relacionam com a pesca e o tráfego
a partir de Mértola. As freguesias de Corte Pinto (onde se situa a mina) e de Santana
de Cambas estão directamente relacionadas com a empresa mineira. No entanto, con-
vém reparar que haveria pessoas que tinham actividades independentes, isto é, não
eram empregados da empresa, embora se relacionassem com ela, através de peque-
nos serviços ou pela venda ou transporte de mercadorias àqueles que trabalhavam ne-
la. Em relação às outras freguesias, o impacto da actividade mineira seria menor, mas
não dispiciendo, dado que gerava fluxos relacionados com o transporte e o consumo.
Os dados aqui utilizados baseiam-se em registos oficiais (capitania de Vila Real de
S. António). É de crer que alguns indivíduos, que efectivamente utilizavam o rio, po-
deriam não estar inscritos. Outros nem sempre teriam actualizado a inscrição maríti-
ma. No entanto, sobretudo durante o Estado Novo, o controle era apertado, nomea-
damente através da Guarda Fiscal, Polícia Marítima e até a Guarda Republicana e a
PIDE, além dos informadores mais ou menos voluntários. Nos livros de inscrição ma-
rítima registam-se também as confirmações da continuação da actividade, que deve-
riam ser efectuados todos os anos. Utilizámos esses dados de 1893 (quando começam
os registos) até 1973, visto que nos pareceram mais fiáveis, o que não significa que
não houvesse pessoas que continuassem no rio mesmo sem a renovação da inscrição.
É de salientar que há casos de indivíduos que apenas se registam ou confirmam a sua
actividade durante um ou dois anos, enquanto outros a efectuam oficialmente duran-
te dezenas. A partir daí construímos um quadro e um gráfico que nos dá a imagem de
quantos marítimos viviam do rio e em que ano e em que freguesia (Gráfico 11).
Verifica-se que no início, o núcleo que mantém mais marítimos é o da freguesia de
Mértola.
No início do século XX esse número vai sempre aumentando e atinge o máximo em
1922 (73 indivíduos). Há um pequeno decréscimo em 1918, o que pode estar relacio-
nado com a Grande Guerra, logo seguido de um recrudescimento no ano seguinte, o
fim da guerra, que terá levado o regresso de alguns marítimos que foram desmobili-
zados. Há testemunhos orais dessa chegada, com por exemplo de Francisco Simões
Júnior que, depois de ter estado prisioneiro dos alemães regressa a Portugal e chega
a Mértola perante a surpresa dos familiares e da população que o julgavam falecido.
De imediato regressou ao trabalho.
Após esta data, começa uma lenta decadência no número de indivíduos matriculados
de Mértola. Esse declínio acentua-se rapidamente após 1945. Essa tendência pode-
rá relacionar-se com a industrialização que se está lentamente a efectuar no país e a
atrair a mão de obra para o litoral. Por outro lado, está-se a assistir agora ao decrésci-
mo da exploração mineira de S. Domingos. Também a produção cerealífera decresce
em comparação com a “época áurea” da campanha do trigo dos anos trinta.
Mas, ao nível regional, e inserido na construção de um mercado nacional, um fac-
tor importante é a construção da estrada que liga Mértola a Vila Real de S. António
inaugurada finalmente em 1949.
As freguesias de Corte Pinto e Santana de Cambas, onde se situa o Pomarão são as
que são mais influenciadas pela actividade da Mina de S. Domingos. Nestas fregue-
sias assiste-se também a um crescimento do número de indivíduos que atinge o má-
ximo em Santana de Cambas em 1931 (30 indivíduos). A partir daqui começa o de-
créscimo até aos nossos dias e, sobretudo, a partir de 1948. Já tinham acabado os
prósperos anos da Segunda Guerra Mundial em que havia enormes necessidades de
minério devido ao esforço militar. Mesmo assim, entre 1946 e 1967, o número de ma-
triculados de Santana de Cambas é superior ao de Mértola.
As grandes mudanças na sociedade e na economia em Portugal revelam-se lentamen-
te após a 2ª guerra mundial. Após o choque da guerra, a Europa e o Mundo alteram
o equilíbrio aparente, e Portugal inicia um caminho que leva ao fim da pretendida au-
A COMUNIDADE RIBEIRINHA 74

tarcia e ao desagregar da sociedade tradicional e às transformações da sociedade in-


dustrial. Como referem Vitorino Magalhães Godinho e Fernando Rosas:

Com a Segunda Guerra Mundial, houve acumulação de


capitais em Portugal, embora muitas vezes imobilizados
na edificação de prédios de rendimento (...) Quebra-se
a monolítica política até então seguida, no Estado co-
meça uma certa descoordenação consoante a pressão
dos grupos.1 1
GODINHO, V. M., Estrutura da
O regresso ao “viver habitualmente” nos anos 50 trou- Antiga Sociedade Portuguesa, Lis-
xe consigo a ilusória imagem do imobilismo e da estag- boa, Arcádia, 1977, 3ª ed.
nação. De uma aparência, efectivamente, se tratava. Sob 2
ROSAS, Fernando in MATTO-
a “invisibilidade” criada pela censura, pela ausência de SO, José, História de Portugal, Lis-
liberdades, pelo peso do conservadorismo predominan- boa, Círculo de Leitores,1994 vol.
te, a sociedade portuguesa iniciava um dos mais profun- VII, pág. 419.
dos processos de mudança estrutural da sua história, não
obstante poderosos factores sociais e políticos de resis-
tência que subsistiam, condicionando negativamente o
ritmo e o alcance das transformações modernizadoras.2

O fim da Mina teve repercussões enormes em todo o concelho: o fim do transporte


do minério e de mercadorias para as pessoas que estavam ligadas à empresa, o de-
semprego e as migrações em massa para a periferia de Lisboa ou mesmo a emigra-
ção. O porto do Pomarão deixou de ter actividade e os que lá ficaram ligados ao rio,
foram apenas alguns pescadores.
Mas o fim da Mina trouxe também a despoluição das águas, o fim das descargas de
águas ácidas que se faziam intermitentemente, e durante cerca de duas décadas per-
mitiu que se efectuasse a pesca durante todo o ano. Os resistentes foram os pescado-
res e essencialmente os de Mértola. O seu número aumenta mesmo após 1967.
GRÁFICO 11
Marítimos do Concelho de Mértola
(1893/1973)
75 A COMUNIDADE RIBEIRINHA

Segue-se a construção da ponte sobre o Guadiana em Mértola. A estrada para o Al-


garve acaba com o transporte de mercadorias e pessoas pelo rio; o transporte fluvial
deixa de ser rendível face ao transporte rodoviário. Também o incremento do trans-
porte motorizado vai tornar mais rápidas e mais fáceis as ligações com Beja e com
Lisboa (já antes o comboio tinha facilitado essa comunicação, mas a viagem entre
Mértola e Beja ainda era morosa) o que levou o Guadiana a deixar de ser uma via de
comunicação essencial. Nos livros de inscrição marítima os tripulantes do Feliz Des-
tino e do Alentejo III, deixam de renovar a sua inscrição. A viagem ainda continuará
a fazer-se durante alguns anos num barco do senhor Lima (também proprietário de
uma moagem), o Mértola.
Mértola começa cada vez mais a aproximar-se da capital do distrito e a afastar-se de
Vila Real de S. António. A estrada para Beja vai crescendo como rua e constroem-se
novos bairros. O comércio e depois os serviços vão abandonando a vila “velha” e pas-
sam para o arrabalde, a praça deixa de ser o centro.

5.2. NOMES, APELIDOS E ALCUNHAS

5.2.1. NOMES E APELIDOS

Françoise Zonabend refere que “O estudo dos nomes pessoais constitui o comple-
mento indispensável do empreendido sobre os termos do parentesco. Como estes,
também aqueles estão sujeitos a um duplo emprego, conotam relações parentais e
3
Françoise Zonabend, “Da família. constituem marcadores genealógicos”3.
Olhar etnológico sobre o parentes- Verificámos ao longo da recolha que a imposição de nomes e apelidos se faz aparen-
co e a Família” in Françoise Zo- temente sem regras rígidas. Há nomes identificáveis facilmente com os parentes, ou-
nabend et ali. (dir. de), História da tros não teriam qualquer relação. Quanto aos apelidos, se uns ficam com o apelido
Família, Lisboa, Terramar, 1996, 1º paterno ou materno, muitos nem sequer os herdaram, tendo-lhes sido registado ape-
vol., p. 25 nas dois nomes. Além disso verificámos também que há mudanças nessa “falta de re-
gras” ao longo do tempo.
Uma primeira dificuldade, não esperada, foi a de definir o que é um nome e um ape-
lido. Os apelidos, em geral, são facilmente reconhecíveis, são aqueles que são trans-
mitidos de geração em geração (nem sempre nos registos oficiais) e que identificam
o indivíduo com determinada família. Em geral posicionam-se no fim. Na linguagem
comum há também alguma confusão entre apelido e alcunha. Utilizámos aqui o ter-
mo apelido equivalente a sobrenome ou nome de família, como atrás descrevemos.
Os nomes identificam o indivíduo em si, e posicionam-se no início. O termo nome
tem o sentido de prenome, visto que é esta a acepção aceite pelos informantes. No
entanto, há casos em que o que é vulgarmente um nome, pode transformar-se em
apelido, como por exemplo António, João ou Porfírio em certas famílias, onde este
nome se repete ao longo de várias gerações ou é transmitido a vários irmãos, geral-
mente em último lugar e sem mais nenhum apelido, identificando o indivíduo com a
sua família.
Há nomes que são característicos de determinadas famílias e que se repetem ao lon-
go das gerações. Veja-se o exemplo de Eugénio (a) que aparece sempre, pelo menos
ao longo de cinco gerações, em oito casos conhecidos na família Encarnação:
Eugénio da Encarnação, Eugénia de Jesus da Encarnação, Eugénia da Encarnação,
Eugénio da Encarnação Simões, Manuel Eugénio Valente da Encarnação, Maria Eu-
génia Simões Santana Alho, Eugénio Valente da Encarnação, Eugénio Valente da
Encarnação Santana, Eugénio do Carmo Simões Rodrigues.
Há outros casos que não são tão explícitos, dada a vulgaridade dos nomes, mas onde
também se pode encontrar a mesma regra. Por exemplo, João Manuel Confeiteiro,
recebe ambos os nomes de familiares em linha recta pelo lado paterno:
João Luciano (pai), Luciano Manuel (avô), Luciano Manuel (bisavô), Manuel Antó-
nio (trisavô), João (quadrizavô).
É frequente os apelidos serem precedidos de de, o que sugere uma família alargada:
da Costa, da Cruz, da Encarnação, de Matos, das Neves, do Nascimento, da Palma,
dos Reis, da Silva, dos Santos. No entanto, muitos dos apelidos citados têm um sig-
nificado de origem religiosa. Refira-se o caso da família Encarnação (uma das linha-
A COMUNIDADE RIBEIRINHA 76

gens mais antigas de pescadores de Mértola) que se pode relacionar com a Senhora
da Encarnação de Vila Real de S. António (padroeira)4 e também com o facto de a 4
Em Vila Real há centenas de mu-
padroeira de Mértola também ter sido a Senhora da Encarnação no século XVIII. lheres com o nome de Senhora da
Para descortinar algumas regras verificámos os nomes e apelidos de todos os maríti- Encarnação.
mos do concelho de Mértola, de que conhecemos pelo menos três gerações em linha
recta, materna ou paterna. Elaborámos quadros e gráficos, por períodos de 20 anos,
abrangendo duas décadas, que correspondem grosso modo, apesar do artificialismo,
a uma geração, e onde poderemos detectar as mudanças operadas.
Em 1830/1850 em 6 indivíduos apenas um tem o mesmo nome do pai. Mas dois rece-
bem o nome do avô paterno e um do avô materno. Apenas um não recebe o apelido
do pai e o da mãe não é transmitido em nenhum caso conhecido.
Em 1850/1869 em dez indivíduos considerados, todos têm apelido, apenas um herda
o nome do pai. Apenas um não tem nenhum apelido, mas quatro (60%) continuam
com o apelido do avô paterno e num dos casos o do bisavô paterno também. Em ne-
nhum dos casos há transmissão de nomes ou apelidos por via materna.
Em 1870/1889, em 22 casos, quatro não têm apelido, apenas 11 o recebem do pai e
11 do avô paterno embora não sejam os mesmos, pois há dois casos em que, embora
não tenham o apelido do pai vão ficar com o apelido do avô. Apenas um tem o mes-
mo nome da mãe, dois têm o apelido da mãe, um tem ainda um apelido do avô ma-
terno. Este caso (Cipriano Alves, nasc. 1885, Mértola) torna-se interessante pois o
pai, Cipriano Nicomedes, era espanhol, de Ayamonte (de origem grega?) e ilegítimo,
tendo sido adoptado pela família Alves, “pais de creação”, e casado com uma mulher
de apelido Alves, daí que herde este apelido por via paterna (pai adoptivo do pai) e
materna (pai da mãe). O outro caso em que um indivíduo herda o apelido da mãe
(Manuel Carlota, 1888, Pomarão) fica com o apelido (que aparentemente seria um
nome) da mãe juntamente com outro irmão (embora haja outro irmão ainda que fi-
ca com o apelido do pai). Estas excepções parecem que apenas confirmam a regra de
que até aqui os apelidos são transmitidos essencialmente por via masculina.
Em 1890/1909, em 30 indivíduos, apenas um não tem apelido, metade tem um dos
nomes do pai. Neste período começam a aparecer os Júnior, em que se repete o no-
me do pai acrescentando Júnior, o que parece tratar-se do primeiro filho (há mesmo
casos em que o “Júnior” aparece registado como filho ilegítimo, embora tivesse sido
criado sempre com os pais e sem que ninguém se tivesse importado com essa situa-
ção). Há pelo menos quatro casos neste período, como sejam Francisco Simões Jú-
nior (1893, Mértola) filho de Francisco Simão, Joaquim da Costa Júnior (1901) filho
de Joaquim da Costa, José Cristóvão Júnior (1901) filho de José Cristóvão e António
José Júnior (1901) filho de António José. Há ainda outro caso, António Lopes da Sil-
va Júnior (1901), filho de António Lopes da Silva, que não foi considerado no quadro
e gráfico por apenas se conhecerem duas gerações.
Em 1910/1929, em 26 indivíduos, 25 têm apelido, 21 têm apelido do pai, 18 têm o ape-
lido do avô paterno e 6 do bisavô paterno. Nenhum herdou qualquer nome por he-
rança materna, mas dez têm o apelido da mãe e um do avô materno.
Parece começar aqui uma viragem no que diz respeito ao uso do apelido materno,
pois começa a tornar-se mais frequente o seu uso. Tal como já tinha acontecido no
período anteriormente considerado, reforça-se também a herança de um dos nomes
do pai. Estas duas tendências levam-nos a crer que se está a dar a afirmação da famí-
lia nuclear. Poderá também tratar-se de um caso de aculturação, em que os maríti-
mos seguem um modelo burguês (de origem aristocrática) de afirmação da identida-
de das famílias, antes desnecessário numa sociedade em que o interconhecimento e a
família extensa dispensavam a individualização da pessoa através da escrita do nome
e dos apelidos paterno e materno. Esta extensão do nome também pode associar-se
à crescente penetração do Estado na vida privada, representado no caso, pela obriga-
toriedade do Registo Civil após a implantação da República.
Em 1930/49 todos os indivíduos considerados (19) têm nome e apelido. Deste 7 her-
dam o nome do pai, 5 do avô paterno, 2 do bisavô paterno e um do trisavô paterno.
Em 5 casos o apelido mantém-se desde o trisavô paterno, 6 desde o bisavô paterno,
15 desde o avô paterno e 17 do pai.
O nome não é transmitido de mãe para filho, mas há um caso em que o avô mater-
no dá o nome ao neto. Os apelidos por via materna são mais frequentes, em 17, 12
recebem o apelido da mãe, 3 do avô materno, 2 do bisavô materno e um do trisavô
materno.
77 A COMUNIDADE RIBEIRINHA

Em 1950/1972 todos os indivíduos considerados recebem os apelidos do pai e da


mãe. Existe uma continuidade ao longo de várias gerações, sendo mesmo de realçar
a transmissão do apelido de origem materna (tal como o paterno) durante 3 e 4 ge-
rações. Os nomes individualizam-se mais, apenas num caso um indivíduo tem o mes-
mo nome do pai e outro da mãe, mas ainda é frequente ir-se buscar o nome do avô,
sobretudo paterno.
Ao longo desta análise começámos a constatar que poderíamos relacionar a trans-
missão dos apelidos com períodos da História de Portugal. Considerámos desta vez
todos os marítimos de quem conhecíamos os nomes do pai e da mãe (com excepção
de alguns incógnitos).
No total, entre 1837 e 1975 verificámos que a maioria dos indivíduos (71%) recebe
pelo menos um apelido do pai e 3% usam ainda dois apelidos transmitidos pelo pai.
Mais de um quarto (26%) não tem qualquer apelido do pai. Os dados quase se in-
vertem em relação à transmissão do apelido materno: 80% não tem qualquer apeli-
do materno, apenas um quinto tem apelido materno, dos quais 1% recebeu também
dois apelidos.
No entanto, ao longo de todos estes anos nota-se uma evolução. Como já tínhamos
assinalado, a data da proclamação da República, com a consequente Lei de Separa-
ção do Estado e da Igreja e o estabelecimento do Registo Civil pareceu-nos ser um
momento de viragem. Entre 1837 e 1910 71% têm um apelido paterno e 3% dois;
26% não usam qualquer apelido. É raro utilizar-se um apelido materno, apenas 4% o
usam. Esta situação deve-se também ao facto de serem poucas as mulheres (as mães)
que usam qualquer apelido. A forma de registo dos nascimentos (os registos de bap-
tismo, paroquiais) não exigia que se registasse mais que um ou dois nomes à criança,
uma tradição que se relacionaria com a alta taxa de mortalidade infantil e certamente
com um Estado menos exigente na obtenção de dados sobre a vida privada, que dele-
gava na Igreja Católica os registos de baptismo, casamento e óbitos.
Teoricamente, a República (mas lembremo-nos que durante este regime a instabili-
dade política e social foi constante e fizeram-se até ensaios de regimes autoritários
como foi o caso do Sidonismo), protege mais os direitos da mulher, confere-lhe mais
personalidade, mais como mãe do que como cidadã activa.

Na mulher, “pela sua crendice fácil” e “emotivida-


de doentia, os republicanos viam o principal meio de
corrupção jesuítica (...) Para os republicanos, a mulher
era “uma alma simples”, ao nível do “aldeão”- e por is-
so ambos vítimas da superstição (Fonseca, Bancarro-
ta, p.18). Promover a condição da mulher, de modo a
torná-la impermeável às seduções dos padres, era, do
ponto de vista dos republicanos, uma espécie de com-
plemento da instrução primária universal e obrigatória.
(...) Ana de Castro Osório, e outras senhoras ligadas à
maçonaria(...) o que estas republicanas faziam era defi-
nir uma função para a mulher no “trabalho nacional”, a
de mãe e educadora, e exigir que as mães fossem trata-
5
Rui Ramos, in José Mattoso, His- das com dignidade e preparadas convenientemente pa-
tória de Portugal, Lisboa, Círculo de ra servir a pátria.5
Leitores, 1994, VI vol. p. 410
6
Rui Ramos, op. cit. pp. 401 e 402 «“O republicanismo era, em primeiro lugar uma moral de virilidade.” Para os republi-
7
Mas, como escreveu Jorge de Se- canos, a liberdade não consistia apenas em limitar o Poder, mas sobretudo em partici-
na em O Reino da Estupidez-I, Lis- par no poder (Furet, Le siécle, p. 20).»6 Libertar o povo da crendice inveterada na Igreja,
boa, Ed. 70,1984, p.140: “a falta, acabar com o clericalismo, ensiná-lo a ter algumas luzes, num sentido positivista vul-
por um lado, de tradições humanís- gar, transformar essa massa analfabeta em cidadãos patriotas seriam alguns dos objec-
ticas, extremamente acentuada por tivos republicanos 7. O cidadão deveria ter um nome liberto da tutela eclesiástica.
um positivismo de circunstância... Após 1910 tivemos dúvidas sobre a divisão em períodos. Pareceu-nos que as mudan-
(e que era, compreenda-se, uma ças de regimes políticos (República e Estado Novo) não alteraram significativamente
pseudofilosofia muito a propósito a forma como o Estado registava as pessoas, embora houvesse diferenças ideológicas
numa época que precisava, na der- significativas no que respeita às políticas familiares.
rocada de uma hierarquia de raiz Essa tendência torna-se particularmente nítida nos anos 60, com o processo de in-
teocrática, refazer burocraticamen- dustrialização em curso, o início do fim do Império Colonial, as migrações internas e
te essa mesma hierarquia);... emigração para a Europa, as lutas operárias e estudantis...
A COMUNIDADE RIBEIRINHA 78

Estas alterações na sociedade reflectem-se também na transmissão dos apelidos. Há


uma tendência nítida para o aumento desta transmissão tanto por via paterna como
materna. Apenas 17% não têm apelido paterno e a maioria já tem apelido materno.
Note-se ainda o aumento do número de indivíduos que usam mais que um apelido pa-
terno ou materno. Perante a desagregação da sociedade reforça-se a identificação com
a família nuclear, o que não significa necessariamente que a família seja mais unida.
As mulheres já usam comummente o apelido e transmitem-no aos filhos. O homem e a
mulher individualizam-se cada vez mais. Poderíamos também relacionar este fenóme-
no com uma mobilidade geográfica e social cada vez maior. O indivíduo é cada vez mais
identificado por si do que pela família extensa de onde provém ou pela profissão dos
pais ou da comunidade em que nasceu. Anteriormente não precisava quase de apelidos
porque era facilmente identificado dentro de uma comunidade de onde não pensava
sair, isto é, onde os seus parentes e sociedade não punham o problema da mobilidade.

Herança de Nomes e Apelidos

GRÁFICO 12
Herança de nomes e apelidos
(1837/1850)

GO G+1 G+2 Nota: G = geração; N= nome; A=


Her M N 6 1 2 apelido. Her M =herança masculi-
A 5 5 3 G0 na; Her F= Herança feminina. Por
Her F N 0 1 G+1 exemplo: G 0= ego, G+1= gera-
A 0 0
G+2 ção anterior a ego.

GO G+1 G+2
Her M N 10 1 0 Her M N
A 10 9 4 Her M A GRÁFICO 13
Her F N 0 0 0 Her F N Herança de nomes e apelidos
A 0 0 0
Her F A (1850/1869)

GO G+1 G+2 G+3


Her M N 22 11 6 0 Her M N
A 18 11 11 2 Her M A GRÁFICO 14
Her F N 1 0 0 Her F N Herança de nomes e apelidos
A 2 1 1
Her F A (1870/1889)
79 A COMUNIDADE RIBEIRINHA

GO G+1 G+2 G+3


Her M N 30 15 8 2 Her M N
GRÁFICO 15 A 29 25 19 12 Her M A
Herança de nomes e apelidos Her F N 2 1 0 Her F N
A 2 0 0
(1890/1909) Her F A

GO G+1 G+2 G+3


Her M N 26 14 5 1 Her M N
GRÁFICO 16 A 25 21 18 6 Her M A
Herança de nomes e apelidos Her F N 0 0 0 Her F N
A 10 1 0
(1910/1929). Her F A

GO G+1 G+2 G+3 G+4


Her M N 19 7 5 2 1 Her M N
GRÁFICO 17 A 19 17 15 6 5 Her M A
Herança de nomes e apelidos Her F N 0 1 0 0 Her F N
A 12 5 2 0
(1930/1949). Her F A

GO G+1 G+2 G+3 G+4


Her M N 12 1 4 1 1 Her M N
GRÁFICO 18 A 12 12 10 6 1 Her M A
Herança de nomes e apelidos Her F N 1 1 1 1 Her F N
A 12 3 2 1
(1950/1972). Her F A
A COMUNIDADE RIBEIRINHA 80

Com 1 apelido Com 2 apeli- Sem apelido Com 1 apelido Com 2 apeli- Sem apelido
TOTAL
paterno dos paternos paterno materno dos maternos materno
GRÁFICO 19
234 10 85 61 4 264 329 Apelidos (1837/1975)

Com 1 apelido Com 2 apeli- Sem apelido Com 1 apelido Com 2 apeli- Sem apelido
TOTAL
paterno dos paternos paterno materno dos maternos materno
GRÁFICO 20
141 5 64 9 0 201 210 Apelidos (1837/1910)

Com 1 apelido Com 2 apeli- Sem apelido Com 1 apelido Com 2 apeli- Sem apelido
TOTAL
paterno dos paternos paterno materno dos maternos materno
GRÁFICO 21
64 1 15 33 2 45 80 Apelidos (1911/1944)

Com 1 apelido Com 2 apeli- Sem apelido Com 1 apelido Com 2 apeli- Sem apelido
TOTAL
paterno dos paternos paterno materno dos maternos materno
GRÁFICO 22
31 4 7 24 2 15 41 Apelidos (1945/1975)
81 A COMUNIDADE RIBEIRINHA

5.2.2. ALCUNHAS

Quase toda a gente tinha ou tem alcunhas. Há mesmo algumas pessoas que não se-
rão facilmente identificáveis se não forem chamadas pela sua alcunha. Algumas delas
podem passar de pais para filhos perdendo-se até o seu significado transformando-se
8
J. G. Peristiany, Honra e Vergo- num apelido não oficial mas aceite. Por exemplo “Gainha” é filho de “... da Gaia”.
nha, Valores das Sociedades Medi- A maioria, no entanto, corresponde a uma característica particular que pode ser um
terrânicas, Lisboa, Fundação Ca- aspecto físico, um determinado comportamento habitual ou um incidente durante a
louste Gulbenkian, 1988, p.5 infância, uma actividade profissional ou o local onde vive. Em alguns casos, quando o
9
“Of all the allegiances and their cinema começou a entrar nos hábitos da população também se recorreu a nomes de
accompanying names that theore- actores para apelidar determinada pessoa. Há também casos em que a pessoa é co-
tically exists for an individual, he nhecida por um apelido não oficial, mas que se herda de um familiar porque tem uma
only in effect claims one or two; if característica semelhante a este.
he claims more, then this will not Há, portanto, alcunhas que têm a mesma função dos apelidos oficiais e que parecem
be reflected necessarily in the use “neutras”, quase desprovidas de significado ou cujo significado entrou no esqueci-
of names or even in his knowled- mento. Outras que passam de pais para filhos também mantêm alguma determinada
ge of them (...) “When a child be- conotação com a família ou algum membro da família. Outras serão individuais mas
gins to wander about on the is- facilmente poderão passar para os descendentes se estes não tiverem algum cuidado,
land, the neighbours speak of it isto é, no caso daquelas que têm uma conotação negativa, o indivíduo terá que pro-
by its Christian name, followed by var que não a merece.
the Christian name of is father. If As alcunhas reflectem também os valores desta sociedade. Apontam-se característi-
this is not enough to identify it, the cas positivas ou negativas a determinados indivíduos ou famílias, que, no fundo, são
father’s epithet - whether it is a ni- exemplos de comportamentos não admissíveis ou tolerados, raramente a copiar, de-
ckname or the name of his own fa- pendendo também do estatuto social ou do sexo da pessoa a quem se atribui a alcu-
ther- is added. Sometimes when nha. “Honra e vergonha são preocupações constantes de indivíduos em sociedades
the father’s name does not lend it- pequenas e fechadas onde as relações face a face, por oposições e relações anónimas,
self, the mother’s Christian name são de extrema importância e em que a personalidade social do actor é tão significan-
is adopted as epithet for the chil- te como o papel que tem a desempenhar”.8 A vida privada quase não existia e o inter-
dren... (...) perhaps the idea of a conhecimento é uma das características desta sociedade. Também a mobilidade social
surname which it gives too modern quase nula permitia o saber-se de tudo em relação a determinada pessoa e família.
for them, perhaps they do use it at Entre aquilo que se considera nomes, apelidos e alcunhas, o que interessa às pesso-
times that I have noticed. Someti- as é o facto de serem nomeadas de determinada maneira ou assim conhecidas social-
mes a man is named from the co- mente. Há casos em que a alcunha é admitida e assumida pelo próprio, outros em
lour of his hair. (...) If an islander’s que ele tolera. Casos há até, em que toda a gente o conhece pela alcunha, mas em que
name alone is enough to distin- não é admissível chamá-lo dessa maneira cara a cara, embora essa situação seja rara,
guish him it is used by itself, and I e se a alcunha é utilizada socialmente, com o tempo o sujeito pode admiti-la.
know one man who is spoken of as Frequentemente os nomes e apelidos que constam no registo oficial quase só são co-
Eamonn. There may be other Ed- nhecidos pelos próprios e pelo seu círculo mais próximo, que só o relembra quando
monds on the island, but if so they se trata de preencher documentos oficiais. O sistema de nomes reflecte a realidade
have probably good nicknames or social e o interconhecimento. O indivíduo é conhecido conforme a sua idade, o esta-
epithets of their own”, Robin Fox, do civil (de facto e não apenas o legal), o conhecimento que as pessoas têm sobre o
The Tory Islanders, a People of the pai ou a mãe, nomeadamente a patrilocalidade ou em substituição a matrilocalidade,
Celtic Fringe, London, Universi- privilegiando-se a ascendência local, determinada característica individual ou acon-
ty of Notre Dame Press, 1994, pp. tecimento marcante ou a profissão. É uma situação semelhante à que Robin Fox re-
74 e 79 lata citando a análise de um professor primário numa ilha irlandesa 9.
A COMUNIDADE RIBEIRINHA 82

ALCUNHA CARACTERÍSTICA
Alcotineja Natural de Alcoutim
Aleixinho A esposa tinha apelido Aleixo
Barulho Estava sempre a falar, mesmo sozinho
Borrego Relacionado com a forma de falar
Cágado Trazia cágados da pesca
Caiador Em pequeno uma tia mandou-lhe um pincel de cal.
Capitanito Mestre de um barco de carreira, de estatura baixa
Fazia carvão; vivia numa pateira; bebia muito, chegou a ir rio abaixo com as
Carrusca
cheias
Charinga na gaveta Foi encontrado a mexer nos móveis de outra pessoa
Chupona “Chupava” rapé
da Quinta Morava numa quinta em Além-Rio
das Batatas Vendia batatas e hortaliça no mercado
do Carvão Tinha um armazém de carvão
do Dentinho Alusivo a um problema físico
do Forno Tinha um forno.
do Rio Vivia quase permanentemente no rio; mestre de um barco de carreira
Dr. Laranja “bem vestido”; vestia roupa dada por um Dr.
Enguiço
Escaldaça
Escarpas do medo Título de um filme; tinha umas mãos grandes
Espanhola Por viver Além-Rio (mas na margem portuguesa)
Gasolina (Augusto) Fazia parte da tripulação de um “gasolina”
Guanilho, Gónilho Apelido de um antepassado;
Pala de Aço Anteriormente guarda republicano; alusão à pala do chapéu
Papa-galinhas “Pescou” galinhas alheias com uma cana e minhoca
Pirrolas “malandro”
Pitongo
Ranhosa
Reboleta “Mentiroso”
Roque “herdou” de um amigo
Saltimbanco Pela forma de andar. “Andava aos saltinhos”
Talhada O primeiro fato estava mal talhado
Texugo
Zarak, o bandido De uma personagem de um filme; QUADRO 4
Zorro Raposo; “esperto” Alcunhas

5.3. PARENTESCO

Segundo Robin Fox “Numa sociedade em que o parentesco é de suprema importân-


cia, a lealdade aos parentes sobrepõe-se a qualquer outra lealdade e, por essa razão
singela, o parentesco é o maior inimigo da burocracia”10. 10
Robin Fox, Parentesco e Casa-
Para melhor compreender o sistema de parentesco, depois de observarmos o univer- mento, uma Perspectiva Antropo-
so dos marítimos a que tivemos acesso, partimos de um caso, em que o indivíduo é lógica, Lisboa, Vega, s/d pág. 14
um dos mais novos pescadores de Mértola e ao mesmo tempo membro de uma das 11
Robin Fox, Parentesco e Casa-
linhagens mais antigas (Gráficos 23 e 24). mento, uma Perspectiva Antropo-
lógica, op. cit. pág. 55
“Um tal grupo – que terá porventura um nome, uma
propriedade, um ritual ou uma qualquer actividade em
comum- será um grupo de filiação: um grupo formado
na base na descendência de um antepassado comum.
Sempre que um relacionamento efectivo entre mem-
bros desse grupo possa ser demonstrado (...) e não seja
meramente presumido, o grupo será designado por li-
nhagem.”11
83 A COMUNIDADE RIBEIRINHA

A primeira constatação é que a profissão de pescador se transmite de uma forma es-


tável entre as várias gerações até aos nossos dias: seis gerações conhecidas pelo lado
paterno e pelo menos quatro do lado materno. A profissão era transmitida de pais
para filhos (o papel do avô paterno ou materno seria também fundamental) até qua-
se aos nossos dias.
Tentámos determinar quais seriam as principais famílias de marítimos em Mértola
para verificar depois se teria havido alguma relação de parentesco entre elas. Atra-
vés do número de marítimos registados, verificámos que as famílias mais numerosas
e que ao mesmo tempo se mantêm há mais tempo nestas actividades em Mértola são
as famílias (por ordem decrescente) de apelido: Alves, Confeiteiro (ou Godinho), Pe-
reira, Costa, Encarnação e Mestre.
Verificámos novamente os ascendentes do mesmo indivíduo (João Manuel Caetano
Confeiteiro). Descende da parte do pai da linhagem Confeiteiro/Godinho, dos En-
carnação pela avó (3º grau civil e canónico), dos Alves através de uma trisavó (4º grau
civil e canónico), dos Costa por uma quadrizavó (5º grau civil e canónico). Da parte
da mãe descende dos Pereira e dos Severo pelo bisavô (3º grau civil e canónico).
Estas ligações permitem-nos afirmar que existiu uma grande homogamia (casamento
no próprio grupo) e, dado o número restrito de linhagens e o facto de os casamentos
se realizarem essencialmente com cônjuges da mesma localidade, uma grande ten-
dência para a endogamia, visível na forma de tratamento, em que quase todos se as-
sumem como primos. Veja-se, por exemplo, o caso de João da Cruz (Gráficos 26 e
27) da família Confeiteiro/Godinho (Gráfico 24), casado com uma mulher de apeli-
do Alves e filho também de uma mulher Alves. A primeira é, pelo menos, “prima”
em 8º grau civil e 6º canónico do citado João Manuel C. Confeiteiro e a segunda tam-
bém parente deste.
Mas se fizermos uma análise mais alargada (até ao 5º canónico ou 8º civil) verifica-
mos que o mesmo é parente (por consanguinidade e/ou afinidade) das famílias com
apelidos Allen, Alves, Borrego, Caetano, Caixinha, Confeiteiro, Costa, Cruz, Encar-
nação, Godinho, Lopes, Martins, Palma, Pereira, Reis, Rodrigues, Santana, Santos,
Severo, Simões, Valente…, isto é, praticamente todas as famílias de Mértola ligadas
ao rio.
Há casos mesmo em que a endogamia é bastante visível como seja o caso de dois primos
paralelos (duplamente) que são filhos de dois irmãos e duas irmãs (Gráficos 30 e 31).
A COMUNIDADE RIBEIRINHA 84

Manuel António Godinho Cesária Mendes de Jesus Eugénio Encarnação Antónia Rita Encarnação
n: 1850 em Mértola n: 1855 em Mértola n: 1860 em Mértola n: em Mértola
MARÍTIMO MARÍTIMO

Luciano Manuel Confeiteiro Leonilde Rosa da Conceição Manuel José Encarnação Carolina de Jesus
n: 1881 em Mértola n: em Mértola n: 1884 em Mértola n: em Mértola
MARÍTIMO MARÍTIMO

Luciano Manuel Confeiteiro Eugénia de Jesus Encarnação Mateus José Pereira Maria dos Remédios Caetano
n: 1911 em Mértola n: em Mértola n: em Mértola n: em Mértola
MARÍTIMO MARÍTIMO

João Luciano Encarnação Confeiteiro Ludovica Maria Caetano


n: 1937 em Mértola n: em Mértola
MARÍTIMO

João Manuel Caetano Confeiteiro


n: 1962 em Mértola
MARÍTIMO

João Godinho Maria Rosa


Confeiteiro S. Sebastião
Mértola
MARÍT., BARQUEIRO

Manuel António Cesária Mendes


Godinho de Jesus
1850 Mértola 1855 Mértola
MARÍTIMO

António Manuel Maria Antónuia Jõao Manuel Rita das Neves Luciano Manuel Leonilde Rosa
Confeiteiro Mértola Confeiteiro Hilário Confeiteiro da Conceição
1878 Mértola 1887 Mértola 1881 Mértola Mértola
MARÍTIMO MARÍTIMO
85 A COMUNIDADE RIBEIRINHA

Ludovico José Pereira Adelaide Palma


n: 1894 em Mértola n: em Mértola
MARÍTIMO

Mateus António Ludovico António Severo


n: 1909 em Mértola n: em Mértola
MARÍTIMO

GRÁFICO 23
Ascendentes de João Manuel
Confeiteiro.

GRÁFICO 24
Descendentes de João Godinho
Confeiteiro

Alonso Godinho Domingas Martins Hermínio da Cruz Teresa de Jesus Alves Fortunato António Rosalina
Confeiteiro 1852 Mértola Mértola Godinho da Conceição
1850 Mértola MARÍTIMO 1845 Mértola Mértola
MARÍTIMO MARÍTIMO COST.

Adélia João da Cruz Carolina d’Alves Manuel Confeiteiro Maria António Fortunato
1879 1887 Mértola 1880 Mértola 1878 Godinho
MARÍTIMO MARÍTIMO Mértola
MARÍTIMO
A COMUNIDADE RIBEIRINHA 86

José António Herculana Maria

Eugénio Encarnação Antónia Rita Encarnação


1860 Mértola Mértola
MARÍTIMO

Eugénia da Encarnação Francisco Simões Júnior Natália Encarnação José dos Reis António José Encarnação
Mértola 1893 Mértola Mértola 1886 Mértola
MARÍTIMO MARÍTIMO

GRÁFICO 25
Descendentes de José António

Alves GRÁFICO 26
Alves

António Guanilho Pulquéria Teresa José Alves Guanilho Maria Costa


Alves Mértola
MARÍTIMO MARÍTIMO

Teresa de Jesus Alves Hermínio da Cruz Faustina Maria Cipriano Nicomedes Antónia R. Eugénio Encarnação
Mértola 1852 Mértola 1852 Ayamonte Encarnação 1860 Mértola
MARÍTIMO Além Rio Mértola Mértola MARÍTIMO
MARÍTIMO
87 A COMUNIDADE RIBEIRINHA

Januário Encarnação Manuel José Encarnação Carolina de Jesus José Encarnação


1894 Mértola 1884 Mértola 1891 Mértola
MARÍTIMO MARÍTIMO MARÍTIMO

Eugénia de Jesus Luciano Manuel Confeiteiro Manuel E. Encarnação


Encarnação 1911 Mértola 1929 Mértola
MARÍTIMO MARÍTIMO

Teresa de Jesus Alves Hermínio da Cruz


Mértola 1852 Mértola
MARÍTIMO

João da Cruz Carolina d’Alves


1887 Mértola
MARÍTIMO

Jacinto Alves
da Cruz
GRÁFICO 27 1927 Mértola
Descendentes de Teresa Alves MARÍTIMO
e João da Cruz
A COMUNIDADE RIBEIRINHA 88

Alves GRÁFICO 27
Encarnação Alves
GRÁFICO 28
Descendentes de Encarnação

António Guanilho Pulquéria Teresa José Alves Guanilho Maria Costa


Alves António
Manuel Maria A. Mértola
José António Herculana Maria
MARÍTIMO
Encarnação da Conceição Mértola MARÍTIMO Mértola
Mértola
CARPINTEIRO

Teresa de Jesus Alves Hermínio da Cruz Faustina Maria Cipriano Nicomedes Antónia R. Eugénio Encarnação
Mértola
Ernestina Amália 1852 Mértola
Guilherme Allen Eugénio 1852 Ayamonte
Antónia Rita Encarnação EncarnaçãoManuel 1860 Mértola
Ludovina Maria
dos Santos MARÍTIMO
Lisboa Encarnação Além Rio Mértola
Encarnação Mértola Encarnação MARÍTIMO
Mértola MARÍTIMO 1860 Mértola Mértola MARÍTIMO
MAQ. MARÍTIMO

António Encarnação Carolina Custódia


Mértola Mértola
MARÍTIMO

Manuel António Encarnação Bárbara Guerreiro Valente


1913 Fernandes Mértola
MARÍTIMO

Eugénio Valente Encarnação Maria Valente Encarnação Marçalo Santana Lopes


1943 Fernandes Mért. Penha Águia
MARÍTIMO

Eugénio V. Santana José Valente Santana Lopes


1967 Fernandes Mértola 1965 Álamo GRÁFICO 29
MARÍTIMO MARÍTIMO Descendentes
de António da Encarnação
89 A COMUNIDADE RIBEIRINHA

João Inácio Amélia Rita


n: Mértola n: Mértola

Joaquim Rita Balbina Costa


n: 1893 Mértola n: Mértola
MARÍTIMO

Pedro da Costa Rita Alice Maria Justino


n: Mértola | c: Penha de Águia
MARÍTIMO

Jorge Manuel Justino Costa Rita


c: Alcoutim
GRÁFICO 30 MARÍTIMO
Ascendentes de Jorge Rita

Emídio da Costa Rita Maria Antónia Justino


n: 1932 Mértola
c: Penha de Águia
MARÍTIMO

Carlos Manuel Justino Rita


c: Alcoutim
MARÍTIMO
GRÁFICO 31
Ascendentes de Carlos Rita
A COMUNIDADE RIBEIRINHA 90

5.3.1 UMA FAMÍLIA ALARGADA

“Família patriarcal”, família extensa, família conjunta ou, segundo Mendras, melhor
ainda, família indivisa são termos que são utilizados para “exprimir uma família que
reúne dois avós, seus filhos casados que tiveram filhos (os netos dos avós) (...). Todos
vivem juntos. A família é um grupo de pessoas ligadas pelo sangue que vivem jun- 12
Henri Mendras, Princípios de So-
tas.”12 Este conceito aproxima-se de um exemplo de família que passamos a descre- ciologia, uma iniciação à Análise
ver, embora com uma diferença que é o facto de os filhos casados oficialmente não Sociológica, Zahar Editores, Rio
viverem sempre com os pais. de Janeiro,1975, pág 171
Francisco Simões foi proprietário, ao longo do tempo, de vários barcos que faziam a
carreira do Guadiana. Nos anos trinta e quarenta eram o Feliz Destino (mais conhe-
cido por Rabino) e o Alentejo III, comprado em Espanha. As tripulações eram cons-
tituídas pelos filhos, parentes próximos e outros que eram tratados por primos, em-
bora com dúvidas sobre a relação familiar.
O mestre do Alentejo III era o filho mais velho, o maquinista o filho mais novo. Além
destes, um “primo” por afinidade e outro marítimo. No Rabino o mestre era outro fi-
lho, e faziam parte também da tripulação dois sobrinhos, pelo lado da esposa. A pa-
rentela era também protegida.
Francisco Simões tratava dos negócios em Mértola (telhas, ladrilhos, adubos etc.) e
era ele próprio quem dirigia a empresa familiar, conservava a caixa com o dinheiro e
distribuía os lucros depois pelos filhos que não auferiam um salário. O filho mais ve-
lho recebia também alguns pagamentos, mas entregava tudo ao pai.
Quando algum neto necessitava de roupa, livros da escola ou outros bens era o avô
quem normalmente pagava. Assumia também a autoridade familiar, sobre os filhos e
netos, chefia reforçada pelo controle económico e pela protecção aos netos durante as
ausências dos pais destes (que passavam os dias fora de casa e dormiam frequentemen-
te em Vila Real de S. António). A sua fotografia mostra essa pose patriarcal (Fig. 35).
A sua esposa tinha também um papel importante na direcção da família, como se po-
de mostrar pelos seguintes casos:
Quando soube que o filho mais novo era pai de uma criança, mas não queria assumir
a paternidade (apenas a reconheceu depois de adulto, quando veio da tropa), foi bus-
car o neto e a mãe deste, que passaram a viver na sua casa, apesar da oposição daque-
le. Também após o falecimento do genro, quando um dos netos esteve em risco de ser
educado na Casa Pia, opôs-se terminantemente e a família em conjunto assegurou a
sua educação em Mértola. Era também ela a única pessoa que dispunha do dinheiro
como entendia: não pedia ao marido, exigia.
Todos os filhos viveram sempre em Mértola. O mais velho, junto ao rio, em zona de
leito de cheia, outro em Além-Rio, o mais novo em casa dos pais perto do cais mais
recente, a filha em casa próxima à dos pais (uma pensão que já fechou).
O filho mais velho casou-se com uma esposa de uma das linhagens mais antigas na
actividade piscatória: Encarnação. O mais novo teve filhos de vária mulheres (casou-
se oficialmente com a última quando os filhos já eram maiores), todas de famílias li-
gadas ao rio (Castro Marim, Mértola, Alcoutim) e uma que fazia parte do grupo do-
méstico: “uma criada”.
Os netos ainda aprenderam algumas actividades relacionadas com o rio, nomeada-
mente os rapazes aprenderam a conduzir barcos e a pescar. Todos, homens e mulhe-
res, sabiam (sabem) fazer redes. Ao contrário de outras jovens da vila que não tinham
ligação com a pesca ou transporte pelo rio, as netas aprenderam todas a nadar e “ba-
nhavam-se no rio”, o que nas décadas de 30, 40 ou 50 seria escandaloso para a maio-
ria das mulheres da sociedade alentejana. Compare-se com outras mulheres de Mér-
tola, de famílias de agricultores ou comerciantes, que apenas tomavam banho de mar
no Verão em Monte Gordo, apenas uma ou duas horas após o nascer do sol e total-
mente vestidas.
91 A COMUNIDADE RIBEIRINHA

Esta família era ao mesmo tempo uma unidade de produção e consumo. Como refe-
re Mendras “se se suprimir o património, normalmente se dissolverá a família indivi-
sa, pois cada um deve ganhar a vida de alguma maneira e não haverá mais razão para
13
Mendras, Princípios de Sociolo- todos ficarem juntos unicamente para consumir.”13. Trata-se também de uma solida-
gia, uma iniciação à Análise Socio- riedade mecânica no sentido durkheimiano, uma sociedade de semelhantes14. O Bar-
lógica, Zahar Editores, Rio de Ja- co Branco (O Alentejo III) foi vendido para os Açores e o Rabino embora aguentasse
neiro,1975, pág,174 mais uns anos foi deixado em Guerreiros do Rio onde se afundou. O meu avô man-
14
Cf. Henri Mendras, Princípios de dou pô-lo longe das vistas, disse uma das netas.
Sociologia, p. 143 Nenhum dos netos seguiu qualquer profissão relacionada com o rio, o que se explica
pela decadência destas actividades após a 2ª guerra mundial, nomeadamente com a
abertura da estrada. Acompanhando o movimento migratório foram-se quase todos
embora e espelham um pouco o que as estatísticas confirmam: uma foi para Angola
(regressando mais tarde, para a zona da Grande Lisboa), outro para o Canadá (filhos
da filha), também para a Grande Lisboa (3 filhos do filho mais velho) e um do 2º fi-
lho), Évora, e a maioria dos filhos do filho mais novo foram para o Algarve (Fuzeta e
Olhão). Destes, houve apenas um regresso. Ficaram apenas alguns dos mais novos ou
solteiros:filho da filha que continuou com a pensão, a neta mais nova que casou com
um filho, neto, bisneto... de pescadores do Pomarão e uma irmã solteira.
Tudo indica que os irmãos mais novos são os que mais tempo ficam ligados à casa dos
pais e a quem é atribuída menos responsabilidade. Os solteiros permanecem também
(e durante mais tempo) na casa paterna (e materna).
Apesar da maioria se ter ido embora, continuou a relação e a solidariedade familiar.
A casa de uma das netas (filha do filho mais velho) em Lisboa, era o lugar de acolhi-
mento dos familiares e, através deles, de outros amigos, frequentemente tratados por
primos. Nessa casa (com cozinha, quarto e casa de banho apenas) chegavam a dormir
temporariamente mais de uma dezena de pessoas: um tinha que tratar do passapor-
te, outro partia para a guerra colonial, outro andava à procura de emprego, um por-
que estava doente, outro ainda porque estava a estudar. Em Mértola, a casa da neta
solteira servia para o reencontro familiar, nomeadamente na festa do Senhor Jesus
dos Passos.
A solidariedade entre os familiares continua ainda através da entreajuda e do aconse-
lhamento em diversas situações, o que noutras famílias poderia ser considerado uma
intromissão na vida privada.
A autoridade familiar de ego não se perdeu totalmente. Foi em parte herdada pela
primeira filha casada, do filho mais velho. Continua a aconselhar as irmãs e a prote-
ger os filhos destas e a acolher alguns em casa durante os estudos.

GRÁFICO 32
Família Simões
Homem
Mulher
A COMUNIDADE RIBEIRINHA 92
93 A RELIGIÃO DOS MARÍTIMOS
A RELIGIÃO DOS MARÍTIMOS 94

VI
A RELIGIÃO DOS MARÍTIMOS
95 A RELIGIÃO DOS MARÍTIMOS

6.1. RELIGIÃO INSTITUCIONAL E RELIGIÃO POPULAR.

UM CONFLITO MULTISSECULAR

Historicamente a religião institucional teve sempre algumas dificuldades em impôr


as suas práticas.
Após a reconquista, Mértola ficou sob o domínio da Ordem de Santiago, constituin-
do-se numa comenda. Os cavaleiros espatários impuseram o cristianismo romano e
esforçaram-se por banir tudo o que fosse diferente da sua religião, nomeadamente
da cultura e civilização islâmica.
No entanto, ainda no século XV encontramos em Mértola uma situação quase “es-
candalosa”, do ponto de vista da Ordem, em relação a práticas religiosas. Na visi-
tação efectuada pela Ordem de Santiago em 1482, constata-se o estado em que se
encontrava a Igreja Matriz que, para além da degradação ou ausência de alfaias li-
1
3. “Item primeiramente manda- túrgicas, estava em parte sem cobertura1. Mas, mais interessante, é o facto de os mo-
mos em virtude d’obediencia ao radores ainda continuarem a rezar voltados para Meca, isto é, o altar mor estava no
comendador moor da dicta Villa lugar do mirhab a que o autor chama alcaram, situação com que o visitador não con-
que mande fazer ou comprar huum temporiza.
mistico pera ho altar, de servidom
de todo o anno, e seja composte- 12. Item achamos que os altares que aguora estam na
lano porquanto achamos que nom dicta igreja, scilicet ho altar moor e onde está ho Sacra-
tem nenhuum.” mento nom estam em boom logar, pollo qual manda-
Ísaías Pereira “Visitações de Mér- mos em virtude d’obidiencia ao comendador moor que
tola de 1482” in FERNANDES, mude o dicto altar moor onde estava ho alcaram que
Isabel Cristina e PACHECO, Paulo hé no meyo das naves da igrreja e hé pera onde nace o
(coord. De) As Ordens Militares em ssoll onde per dereito (Fl. 6r) deve d’estar. E o sacrario
Portugal e no Sul da Europa, Lis- se porá dentro no oco da torre em cima do altar moor e
boa, Edições Colibri, 1997 huum retavolo em cima delle2
2
Ísaías Pereira “Visitações de Mér-
tola de 1482” op. cit Parece também que muitos moradores ou não assistiam ao ofício divino ou simples-
3
Ísaías Pereira “Visitações de Mér- mente ficavam em palratórios do lado de fora da Igreja.
tola de 1482” op. cit
22. Item mandamos ao dito priol ou cura que amoeste
todos seus freguesses que aos domingos e festas princi-
paees estêm a todo oficio devino dentro na igreja e nom
fora em palrratorios, sô pena d’escomunhom
18. Item lhe mandamos que em cad’huum anno faça
confessar e comungar todos seus frreguesses amoestan-
do-os em suas estaçõees e os que comtumazes forem os
denuncie e nom dires missa com elles e mandá-los-es
em Rol a Dom Priol em cad’huum anno até Pinticoste
pera averem correiçom e vos amandar a maneira que
nelo tenhaes que seja a serviço de Deus e bem das su-
as almas3.

O próprio documento confirma que ainda existem aqui judeus e mouros que arren-
davam os dízimos devidos à Ordem.

E visto como estas irmidas nom tiinham licença do


Mestre per onde fossem edifficadas segumdo forma de
nossa vesitaçom mandamos em virtude d’obidiemcia ao
dicto priol da dicta Vila que nom comssemta dezer mis-
sa a nenhuum creliguo nem frade nas sobredictas irmi-
das aos comarcãos delas atee os sobredictos comarcãos
averem licemça del rey nosso senhor como ministrador
que hé da dicta Ordem, e Ihe damos d’espaço ho mes
de Mayo.

Os cultos populares também escapavam ao controle da Ordem como o atesta o visita-


dor que encontrou várias ermidas no termo da vila construídas sem licença:
A RELIGIÃO DOS MARÍTIMOS 96

3 Item outra irmida que chamam Santa Maria das Fro-


les que hé na mizquita tres legoas da dicta Viilla gran-
des. Em esta achamos huum calez d’estanho e huua
vestimenta de pano de liinho surrada e mantas e toa-
lhas nos altares. E nom lhe achamos tambem licença
do Mestre como fosse edificada segundo ordenança da
Ordem.

Ainda em 1758 o prior de Mértola nas memórias paroquiais queixa-se do facto de ha-
ver “homens infectos” e judeus que são irmãos da Caza da Misericórdia e que para
sua admiração e perante a sua impotência diante de tal facto chegam a levar a ima-
gem do Santo Cristo na procissão de Quinta Feira Santa ou a assumir cargos dentro
da mesma instituição.

He notavel em serem nella Irmaons homens infectos


com toda a qualidade de infecçam, por requerimento
que os Irmaons fizeram a Sua Magestade para os des-
pensar na pureza, que na forma de compromisso neces-
sitavam ter os que houvessem de ser Irmaons, allegan-
do a falta de gente limpa, e o serviço que elles fazião
continuadamente na guerra com os castelhanos [...]
vendosse na procissam de Quinta Feira Santa levar a
sagrada imagem do Santo Christo às vezes hum Judeo,
que sucede ser o escrivam da Caza, como eu tenho vis-
to há menos de nove anos que vivo nesta villa e tenho
procurado remedear, mas nam posso.4 4
Memórias Paroquiais, Op. cit.
5
Luís de França, Comportamen-
“Homens infectos” serão com toda a probabilidade cristãos novos, “judeus” também. to Religioso da população portugue-
Não sabemos o que é que o cura de Mértola entenderia por estes epítetos. sa, pág. 63
Nos tempos actuais, Mértola insere-se numa área com prática religiosa baixíssima 6
Moisés Espírito Santo, Origens
e estrutura eclesiástica deficiente5. O número de missalizantes com mais de quinze Orientais da Religião Popular Por-
anos é dos mais baixos do país: 1,5%. Número inferior a este apenas em Castro Ver- tuguesa, Lisboa, Assírio e Alvim,
de- 0,8% e Grândola 1%. Aliás as regiões e sub-regiões onde Mértola se inclui, actual 1988, pág. 211
ou historicamente, são das que apresentam taxas mais baixas: o Alentejo em geral, o
Baixo Alentejo e sobretudo a antiga comarca dos Campos de Ourique (Mértola, Cas-
tro Verde, Aljustrel...) e o Baixo Guadiana (Mértola, Alcoutim, Castro Marim, Vila
Real de S. António). A título de comparação no distrito de Braga encontramos per-
centagens quase sempre superiores aos 60% como é o caso de Vila Verde (79%) ou
Amares (78%).
Tal como a restante população de Mértola, sobretudo os homens, os pescadores pou-
co costumam participar nos rituais da Igreja Católica. O que não quer dizer que não
sejam religiosos nem pratiquem rituais que para eles são significativos.
Alguns topónimos relacionam o rio com a religião. Na vila de Mértola a margem es-
querda do Guadiana chama-se popularmente rio Tamuge, mais a jusante há um ri-
beiro, que desagua no Vascão e por sua vez no Guadiana com o nome Tamejoso. Po-
deremos até interpretar estes topónimos como sendo antigo nome do rio, que se
“reduziu” apenas a alguns lugares e que poderia derivar do antigo deus oriental Tha-
mouze. Segundo Moisés Espírito Santo:

Thammuze ou Dommuzi é a terceira pessoa da tríade


suméria e fenícia, filho (ou esposo) de Isthar (Astarté).
Temos referências ao seu nome desde o III milénio a.
C., sendo já cultuado em Biblos. Na Suméria, donde ele
é natural, o seu nome é Dommuzi; para os Assírios e
os Fenícios, é Thammusi ou Thammouze. O seu nome
significa verdadeiro filho ou, sob a sua forma completa,
verdadeiro filho das águas profundas. O seu animal to-
tem era o peixe, que simbolizava a água. (...) As versões
mais antigas e mais difundidas do seu mito dizem que
Thammuze foi pastor ou pescador.6
97 A RELIGIÃO DOS MARÍTIMOS

Certos povos tinham como princípio dar o mesmo no-


me a todas as coisas que se assemelhassem ou que ti-
vessem a mesma função; os rios podiam Ter todos o
mesmo nome sem perigo de se confundirem porque,
vivendo as povoações em autarcia, as relações com os
rios eram de ordem exclusivamente local. Tudo quanto
fosse rio ou riacho podia ser Thamuse, por referência
ao deus que os antepassados conheceram e do qual se
dizia ser a incarnação do ente divino que proporciona-
va a ressurreição anual da vegetação; todos os anos o rio
enchia, secava e tornava a encher desde que lhe pres-
7
Moisés Espírito Santo, op. cit., tassem um culto (...)7
pág. 269
8
Estácio da Veiga, Memórias das Estácio da Veiga descreve várias moedas encontradas em Mértola, Castro Marim e
Antiguidades de Mértola, Lisboa, na Luz de Tavira que identifica pelas letras como sendo de Mértola e anteriores à ins-
Imprensa Nacional, 1880, pág. 60 tituição do Império Romano “em que não há o mínimo emblema militar, mas unica-
9
Henriques Fernandes Sarrão, His- mente os da riqueza local, o solho do Guadiana, a espiga de trigo e a palma das pal-
tória do Reyno do Algarve, pub. por meiras (Phoenix dactylifera, Linn)”.8
Manuel Viegas Guerreiro e Joa-
quim Romero de Magalhães, Lis-
boa,1983, cap. XV, citado por J. 6.2. SANTOS, SENHOR E SENHORAS
Horta Correia, Vila Real de S. An-
tónio, Urbanismo e Poder na Políti-
ca Pombalina, Porto,1997, p.76 6.2.1. S. ANTÓNIO
10
A maioria dos quais espanhóis;
andaluzes e catalães. Os limites da navegação do Guadiana estão mesmo assinalados por marcos religio-
11
J. Horta Correia, Vila Real de S. sos. S. António marca praticamente o início e o fim da navegação do Baixo Guadia-
António, Urbanismo e Poder na Po- na. Com efeito a cidade que marca a barra do Guadiana chama-se Vila Real de S.
lítica Pombalina, Porto,1997, p.79 António, que embora tenha sido criada por decreto real por el-rei D. José em 1775
12
Maria Luísa SANTOS, Ayamonte sucedeu a uma mais antiga povoação chamada de S. António da Arenilha, que fica-
Geografía e Historia, p 179 ria situada ainda mais a jusante. Esta vila estava tão decadente que Henriques Fer-
13
É interessante que durante a Re- nandes Sarrão na História do Reyno do Algarve escrevia que” Os vizinhos eram tão
pública duas Igrejas em Mértola fo- poucos que não passavam de dois “9, apesar de em Monte Gordo, que ficava sob a
ram transformadas em edifícios ci- sua jurisdição, “segundo o testemunho, de Janeiro de 1744, apontavam já para 300
vis: uma a Igreja do Carmo, onde vizinhos. E na temporada da safra (entre Agosto e Dezembro) chegavam a juntar-
há vestígios de uma basílica paleo- se mais de 5000 homens entre pescadores, salgadores e vivandeiros, não contando as
cristã, situada no Rossio do Carmo mulheres”10.[...]
e a de S. António. A primeira pas- Os marítimos de Monte Gordo poderiam pertencer à Confraria do Corpo Santo e
sou a ser uma escola primária e a Mareantes das vilas de Castro Marim e Santo António de Arenilha, erecta na ermida
segunda um teatro, ainda hoje exis- de S. António pelo menos desde meados do século (XVIII)11. Essa ermida ainda ho-
tentes e com funções semelhantes. je existe em Castro Marim.
Um exemplo ilustrativo das atitu- Também em Espanha, em Ayamonte há um culto antigo a S. António. Existe ainda
des “positivistas” e ”progressistas” hoje a Capilla de S. António, na rua do mesmo nome, uma rua que desce do monte
da pequena burguesia republica- e vai directa ao esteiro onde se situava o porto. Esta capela foi fundada por um gré-
na. Também o próprio padre (Ca- mio de marinheiros, que contribuíam para a sua manutenção com percentagens dos
macho) se tornou um republica- produtos da pesca. As suas rendas em 1785, eram de doze mil reais anuais; tinha um
no interveniente, casou-se e consti- cirurgião, distribuía esmolas aos enfermos matriculados que não estavam em condi-
tuiu família. ções de trabalhar e administrava até uma escola. Continua ainda hoje a celebrar-se o
dia do santo com missa, procissão e festejos.12
Em Alcoutim, ao pé do cais e virada para o rio, há também uma capela de S. António.
Em Mértola existiu também uma igreja chamada de S. António dos Pescadores, per-
to do rio, de fundação antiga e que foi transformada em teatro, o teatro da cantina,
pela vereação republicana com o pretexto de acorrer a despesas relacionadas com a
cantina escolar13. O cura de Mértola também refere nas Memórias Paroquiais a igre-
ja de Santo António dos Pescadores com compromisso pela Ordem de Santiago em
sua confraria. Ainda hoje o dia de S. António é considerado por alguns pescadores
de Mértola como o dia dos pescadores.
Existe em Mértola uma imagem de S. António que já por várias vezes “chorou”. Se
pensarmos que S. António pregou aos peixes e que este é um dos milagres popular-
mente mais conhecidos deste taumaturgo encontraremos aqui uma das explicações
A RELIGIÃO DOS MARÍTIMOS 98

para este culto. Por outro lado é um dos santos que assinala o fim da Primavera e o
início do Verão, e é um santo casamenteiro14. 14
Este santo tem ainda outras co-
Os limites da área navegável do rio estão marcados religiosamente e relacionam-se notações em Portugal e no Bra-
com as dificuldades sofridas pela população ribeirinha. Se tivermos em conta que an- sil. É oficial do exército portu-
tes da fundação de Vila Real de S. António, a vila e porto do Guadiana que se situava guês no antigo regimento de
mais próximo do mar do lado de Portugal era Castro Marim, encontraremos também Lagos. É também oficial do exér-
outra “coincidência”. A Senhora mais venerada em Castro Marim, ainda nos dias de cito brasileiro e, relacionado com
hoje é a Senhora dos Mártires, com romaria anual bastante concorrida. Antigamente esse facto, é venerado no Can-
também lá acorria muita gente de Mértola. Do lado espanhol em Ayamonte é a Se- domblé na Bahia como Ogum,
nhora das Angústias. deus da guerra. Diz-se que um
Para quem chegava a Mértola pelo rio, sobretudo à noite, uma das primeira luzes que navio português foi atacado por
avistaria era o cruzeiro do Senhor dos Aflitos, quase em frente à Igreja Matriz (anti- luteranos que atiraram a imagem
ga Mesquita) constantemente iluminado por candeias e velas oferecidas para paga- já mutilada do santo ao mar, a
mento de promessas, atitude que persiste até à actualidade, embora mal tolerada por qual apareceu na Bahia. Os tri-
um dos membros da Igreja Católica15. Para os pescadores é a divindade a que recor- pulantes foram acometidos pe-
rem quando se vêem em aflições. E isto porque “está ao sol, à chuva e ao vento como la peste e os que restaram fo-
eu”, como um pescador. ram massacrados no Brasil (vide,
Após este pode vir a Senhora de Fátima e a Senhora da Boa Viagem. Um dos pesca- Pierre Fatumbi Verger, Orixás,
dores tem mesmo um barco com este nome dado que quando ia a caminho de Vila S. Salvador, Corrupio, 1999, 5ª
Real para o registar foi apanhado por uma trovoada. ed. O elemento comum é sem-
O barco também é sacralizado: à proa resguardada num saco de plástico um pesca- pre a água.
dor leva um papel com uma oração que já a sua tia rezava, e isto apesar dele próprio Para melhor compreender o cul-
não saber ler. to e a simbologia dos santos re-
corremos também a José Leite,
6.2.2. SENHOR DOS PASSOS Santos de cada Dia, Braga, Edi-
torial A. O., 1987, 3 vols. e Jor-
Praticam-se também rituais religiosos públicos. O mais importante para os pescado- ge Campos Tavares, Dicionário
res de Mértola é (aliás como para toda a população) o dia e as procissões relaciona- de Santos, Porto, Lello e Irmãos,
das com o Senhor dos Passos. 1990
A procissão dos Passos é celebrada no Domingo de Ramos. Na liturgia da Igreja Ca- 15
O único sacerdote que existe em
tólica no domingo de Ramos celebra-se a entrada de Jesus em Jerusalém montado Mértola, está bastante doente e
numa burrinha e seguido de uma multidão em festa. Ora a procissão dos Passos cele- quase todas as tarefas relaciona-
bra a morte de Jesus. Por isso, o dia dos Passos em Mértola, se por um lado ritualiza das com o culto católico têm sido
a morte do Deus é também considerado um dia de festa e funciona como o dia de re- desempenhadas por uma freira,
encontro entre os membros das famílias que se encontram dispersos.16 que é acusada frequentemente
No sábado anterior ao Domingo de Ramos, faz-se uma procissão nocturna chamada de assumir posições autoritárias
de “ O Senhor Roubado”. Justifica-se este nome pois a imagem do Senhor dos Passos e, por isso, contestada mesmo
é levada num andor mas escondida dos olhos do público. Segue um percurso que par- pelos que não praticam qualquer
te de uma capela próximo da matriz em direcção à Igreja da Misericórdia. Este cami- culto religioso, mas que assumem
nho ao longo da Vila Velha é feito em silêncio, raramente quebrado. essas práticas como sendo parte
Na procissão do Passos, à tarde, os pescadores têm um lugar especial de que não da sua cultura, ou seja respeitan-
prescindem. São eles que levam o “guião” que tem cerca de 5 metros de altura e 2,5 do as práticas religiosas de mem-
de largura e onde está inscrita a dourado a sigla latina S.P.Q.R.17 (Fig. 48), à frente da bros da comunidade, normal-
procissão. Tem uma vara comprida na vertical e outra na horizontal onde o tecido fi- mente “coisas de mulheres”.
ca seguro. Da vara horizontal saem do lado esquerdo duas cordas (guias) e da direita 16
Repare-se que do concelho de
outras duas com vários metros de comprimento. Apesar da religiosidade, isso não os Mértola tem saído muita gente,
impede de fazer interpretações irónicas sobre a sigla: Sopa para os Pobres, Queijo pa- sobretudo desde os anos 60, em
ra os Ricos. Outra senhora diz que significa Senhor dos Passos Querido Redentor. Mes- que a par do êxodo rural regista-
mo durante a procissão e dado que vão alguns metros à frente dos restantes fiéis, ape- do em todo o país e particular-
sar de ser uma promessa antiga, isso não os impede de irem divertidos. mente no Alentejo, juntou-se o
Antes da procissão estes pescadores vestem-se na casa de um deles com as melhores encerramento da Mina de S. Do-
roupas e levam uma opa roxa que depois envergam na Igreja da Misericórdia, insti- mingos. É significativo que o ac-
tuição que tradicionalmente organizava esta actividade religiosa (Fig. 49). tual grupo coral da Mina de S.
Um deles segura a vara principal e os outros pegam nas guias. É um trabalho, que em Domingos esteja situado na pe-
certas circunstâncias, quando há vento, se torna difícil de coordenar. Dir-se-á que é riferia de Lisboa (Margem Sul)
um trabalho próprio daqueles que estão habituados a lidar com os ventos, isto é os para onde migraram muitos ha-
pescadores. O lugar que ocupam é respeitado escrupulosamente e só é substituído bitantes do concelho. Outros fo-
por morte ou impossibilidade física e, neste caso, por um parente próximo, também ram para a Alemanha, França,
pescador. Canadá ou E. U. A.
17
Senatus Populusque Romanus, O
Senado e o Povo Romano.
99 A RELIGIÃO DOS MARÍTIMOS

Primeiro começou por ser o avô Eugénio, o meu avô, de-


pois como o meu avô morreu muito novo começou o tio
Zé do Rio e depois quando o tio Zé do Rio morreu passou
a ser o primo Luciano da Eugénia a levar o guião, depois
o primo Luciano também morreu passou para o meu pri-
mo Manuel Eugénio e depois é que tem levado o meu pri-
mo João e o Manuel. [Ilda Simões]

Acrescente-se que o filho de João Luciano também participa no grupo que leva o
guião.
Na procissão sobressai também a figura da Verónica, uma adolescente que transporta
o véu onde Cristo se terá enxugado do suor e em que terão ficado impressas as mar-
cas do seu rosto. Antes do andor vão também várias crianças que levam nas mãos os
objectos dos martírios do Senhor. Atrás um sacerdote seguindo-se o andor do Senhor
dos Passos, cheio de flores e segurado por quatro homens. A maioria das pessoas se-
gue em filas, constituídas sobretudo por mulheres. Atrás do andor já se vai de uma
forma mais compacta e sobretudo homens. No final segue a banda. Um ou outro cão
vai também acompanhando as cerimónias.
18
Que actualmente só é utiliza- A procissão, depois de sair da Misericórdia18 passa pela praça e segue pela rua princi-
da como local de culto nestes dias, pal da vila antiga ou seja aquela que ladeia o rio, e segue até ao arrabalde19
funcionando o resto do ano como No Largo, já no arrabalde dá-se o encontro com outra procissão que vem da matriz
museu. com a Nossa Senhora das Dores. É o encontro entre mãe e filho, o momento em que
19
Ainda hoje as pessoas mais ve- os participantes mais se emocionam. Juntam-se as duas procissões, num ambiente
lhas chamam vila à zona amuralha- agora já mais alegre sobem até ao Largo de Nossa Senhora do Carmo, descem a Rua
da e arrabalde ao que fica de fora Larga e seguidamente vão até à matriz. Morre o filho e triunfa a mãe.
desta, apesar de hoje em dia vive- O percurso da “festa” marca também o espaço. Durante a procissão há Passos onde
rem mais pessoas aqui. se pára e se reza cantando. A Nossa Senhora está na igreja mais alta, com mais pres-
20
Ilda Simões S. Alho tígio e mais antiga (matriz, antiga mesquita), próxima do castelo e é daí que parte. O
Senhor dos Passos sai de uma capela mais abaixo da matriz e segue, na véspera, para
a igreja da Misericórdia, que é a igreja mais próxima do rio e que está na esquina da
porta da vila mais próxima deste.
O Senhor dos Passos sobe pela principal rua na margem do rio em direcção ao arra-
balde. O encontro com a mãe faz-se no largo que era a antiga porta mais importante
da vila, a entrada nesta e o ponto de confluência com o arrabalde. Depois a procissão
segue em direcção ao antigo Rossio do Carmo (Fig. 51), onde se situa uma igreja e
uma necrópole paleocristã, e entra novamente na antiga vila e acaba na matriz.

6.2.3. OUTRAS MANIFESTAÇÕES PÚBLICAS DE RELIGIOSIDADE EM


MÉRTOLA

A missa do galo, a missa tradicionalmente efectuada na passagem do dia 24 para 25


de Dezembro é também frequentada por pessoas que não costumam ser missalizan-
tes. Nesta noite também a igreja está cheia, não apenas com habitantes de Mértola
e familiares que vêm passar o Natal, mas também com pessoas que vêm dos montes,
principalmente proprietários. É ainda um pouco do ritual do solstício de Inverno.
O sacerdote tem um papel essencialmente formal, as palavras pouco efeito têm ou nem
sequer são ouvidas. O que interessa é o momento, a entoação e os gestos, o ritual.
As festas da Cruz, dia três de Maio eram também muito concorridas: “uma Cruz en-
feitada, com muitas flores, muitas rosas e depois fazia-se o baile da Cruz”.
Tradicionalmente as festas relacionadas com o solstício começavam no dia de S. An-
tónio, continuavam no S. João (que baptizou Jesus nas águas do rio Jordão) e S. Pe-
dro e iam até ao dia de S. Isabel.

No Santo António, no S. João e no S. Pedro era para bai-


lar. Na véspera do S. António enfeitavam-se as tabernas
do primo Jorge, do primo José Luciano, outras por aí fo-
ra, com vimes, montrastos, junça, cheirava muito bem, as
casas todas enfeitadas com verdura, até na rua. Mas de-
pois por fim iam à palmeira e punham-nas em arcos nas
portas.20
A RELIGIÃO DOS MARÍTIMOS 100

Como em todo o país, festejava-se o solstício de Verão. Actualmente a festa mais im-
portante desta época é o S. João. O mês de Junho era mesmo o mês de S. João.
A iniciativa popular já se perdeu em grande parte e é a Câmara Municipal que orga-
niza a festa que inclui sempre espectáculos com artistas nacionais, normalmente re-
alizados no cais.
Por outro lado, alguns não se reconhecem na Igreja Católica e procuram outros cultos
também cristãos, como é o caso da Igreja Evangélica e Igreja Metodista que possuem
espaços próprios (Fig. 47 e 45). São expressões ainda minoritárias e que passam quase
despercebidas. A Igreja Evangélica usa um edifício que antes era um espaço comer-
cial, em frente à antiga igreja de S. António. O templo da igreja Metodista situa-se em
Além-Rio, e é uma barraca situada quase em cima da antiga estrada romana, sem ca-
sas por perto. O “edifício” pela sua construção e pela sua localização indicia alguma
exclusão social. É frequentado essencialmente por cidadãos de etnia cigana.

6.2.4. NÓS E OS OUTROS FACE AOS RITUAIS COLECTIVOS

A procissão dos Passos nunca foi interrompida. Não é apenas por ser tradição que
ela se faz. As pessoas participam porque funciona como um ritual de reencontro e
coesão entre os membros da(s) comunidades(s). “Quando conseguimos descobrir a
função de um costume particular, por exemplo, o papel que ele desempenha no fun-
cionamento do sistema a que pertence, alcançamos um entendimento ou explica-
ção dele que é diferente e independente de toda a explicação histórica da sua for-
mação”21. Após o 25 de Abril de 1974 o pároco manifestou algum receio em fazer a 21
A. R. Radcliff-Brown e Daryll
procissão. Uma delegação de membros do Partido Comunista convenceu-o e foram Forde, Sistemas Políticos Africa-
os próprios a organizar o evento. Resta dizer que alguns deles eram filhos de marí- nos de Parentesco e Casamento,
timos ou mesmo pescadores22. Esta atitude, apesar do anti-clericalismo latente e do Lisboa, Fundação Calouste Gul-
ateísmo assumido por alguns, não os impede de participar nesta “festa”. benkian, 1982, 2ª ed, p.14
Houve, no entanto, épocas de alguma conflitualidade, principalmente durante a 1ª 22
Um caso semelhante na mesma
República. O Futuro de Mértola, semanário Republicano Democrático (leia-se alinha- época deu-se em Arraiolos, des-
do pelo partido dirigido por Afonso Costa), também anti-clerical, critica a atitude do ta vez com o M.D.P., o que local-
administrador do Concelho, também republicano, que provocou em 1915 os partici- mente significava o mesmo que
pantes da procissão: o Partido Comunista. Os seus
membros não participaram for-
“Não nos enganámos quando no último número do malmente na Procissão dos Pas-
nosso jornal previmos que o Sr. Pedro Alexandre Pal- sos, mas exigiram que o pároco a
ma, administrador do nosso concelho, não seria perdo- organizasse.
ado o seu gesto de atravessar varias vezes a procissão 23
O Futuro de Mértola, n.º 112, 8 de
dos Passos, na tarde de Ramos, de chapéu na cabeça, Abril de 1915, pág. 1
não tendo em consideração mais que o seu modo de
pensar.
(...) o seu gesto de atravessar várias vezes a procissão
dos Passos, de chapéu na cabeça, foi tomado como um
detestável exemplo, que mais veio indisciplinar as clas-
ses que não morrem pelos actos religiosos.
Há quem diga que para o Sr. Pedro Palma fazer o que,
fez atravessar varias vezes a procissão de Passos, de
chapéu na cabeça, melhor fôra não ter consentido que
ela se fizesse.”23

Esta atitude republicana revela-se também na forma como se dão explicações ao povo
sobre as consequências da Lei da Separação do Estado e da Igreja (1911).

Mais explicações
Continuamos a ter conhecimento de que, em diversas
freguezias deste concelho, deixaram de tocar as mati-
nas, meio dia, avé-marias e almas, dizendo que o Sr.
Administrador do concelho lhe havia proibido tocar os
sinos. Mais uma vez explicamos a todos, que os toques
religiosos não foram proibidos, mas sim regulamenta-
dos, em harmonia com o disposto no artigo 59º da Lei
da Separação; e que os toques civis estão autorisados.
101 A RELIGIÃO DOS MARÍTIMOS

Ora pois:- matinas, avé-Maria e almas, são para todos


24
O Futuro de Mértola, n.º 17, 3 de os efeitos toques civis. Percebem?24
Abril de 1913. Sublinhados nossos.
25
O mesmo se passa em relação Duvida-se que houvesse muitos leitores com possibilidade de ter acesso a esta infor-
a outras instituições laicas. A so- mação, mas não seria de desprezar a influência dos notáveis, afinal os únicos que ti-
ciedade recreativa O Grémio não nham acesso à imprensa, como redactores ou leitores.
passa sem o apoio da Câmara. A Se o Estado Novo não punha problemas desta natureza, houve, no entanto, uma que-
maioria dos sócios pagam de quo- bra do culto explicável pela mudança social e evolução demográfica (ver Gráfico 9 e
ta 50$00 mensais e quando há qual- Gráfico 2). Hoje em dia não se põe em questão o culto público, que é até visto como
quer actividade espera-se que se- uma afirmação de uma identidade cultural ou como uma tradição que é preciso pre-
ja a Câmara a subsidiar ou a fazer. servar e até apoiar.
Em geral a responsabilidade em re- A autarquia substitui-se às antigas instituições (confrarias, irmandades) e à iniciativa
lação às coisas consideradas boas popular que já não passa sem esta. Ouvimos o pároco agradecer à C. M. de Mértola
ou más é atribuída à Câmara. todo o apoio dado à procissão dos Passos. O manto protector da Virgem da Miseri-
26
J.M. de Peralta e Sosa in La Ca- córdia é agora a Câmara Municipal (com maioria absoluta comunista).25
sa Encantada, Mérida, 1997, asso-
cia o culto de S. Eulália e Senhora 6.2.5. SENHORA DAS NEVES, SENHORA DOS MÁRTIRES
das Neves, no Alentejo e Extrema-
dura espanhola ao cultos de Pro- O caso da Senhora das Neves é interessante. A festa da Senhora costuma ser (Alen-
serpina e Ategina. tejo) em Agosto, num dos climas mais tórridos do país, onde raramente neva. Há du-
27
João Baptista da Silva Lopes, as capelas da Senhora das Neves [Mértola (Fig. 42) e Mesquita] e um monte chamado
Corografia ou Memória Económica, Neves. Ambas ficam próximo do rio e no alto de um cerro. Parece-nos que a brancu-
Estatística e Topográfica do reino do ra das neves está associada à luz da Lua, mais intensa em Agosto. Este astro e é des-
Algarve, Faro, Algarve em Foco, II de sempre cultuado como uma deusa (por exemplo Ísis ou a Senhora da Conceição)
vol., p. 390 e associado à mulher. O ciclo das marés também está dependente da Lua.
28
Um dos sonhos de muitos habi- Na Mesquita festejava-se em Agosto. Mas em Mértola a procissão coincidia com o
tantes de Mértola, de reformados dia de Corpo de Deus. A imagem era levada para a Matriz e a partir daí fazia-se uma
emigrados ou descendentes é com- procissão até à capela. Depois seguia-se uma festa, em que cada família levava co-
prar uma casa nesta zona do Al- mes e bebes. Já há uns anos que não se faz esta romaria porque um membro da Igre-
garve, especialmente em Vila Re- ja Católica (uma freira) achava a festa indigna. Também aqui a morte do Deus está
al, Monte Gordo ou Altura, projec- associada à festa26
to aliás concretizado por uma certa Havia outras festas religiosas fora do concelho, onde a população de Mértola acorria.
classe média. As mais concorridas eram as de Nossa Senhora dos Mártires, no dia 15 de Agosto (o
mês das marés vivas), em Castro Marim. Ainda hoje é uma romaria bastante concor-
rida embora as pessoas de Mértola não participem tanto.
Dela nos chegam ecos da primeira metade do século passado:

A freguesia, cujo orago he S. Thiago, está hoje na igreja


de N. Sr.ª dos Martyres, templo bonito, depois que foi
acrescentado pelo bispo D. Francisco Gomes, e de que
o prior tirava avultados rendimentos provenientes das
offertas que os devotos levavão a N. Snrª, mormente no
dia da sua festa a 15 de agosto, em que ha feira de mui-
to concurso de gentes.27

Antigamente as pessoas partiam de Mértola em barcos. Hoje ainda alguns (sobretu-


do mulheres) participam nesta romaria, mas partem essencialmente de Vila Real de
S. António, Monte Gordo ou Altura, onde se encontram a passar férias28.

6.2.6. OUTROS SANTOS

Dentro dos santos objecto de culto popular encontra-se um que viveu perto de Mér-
tola, embora hoje quase não haja devoção nem prática religiosa relacionada com ele.
Chamava-se S. Barão. Mas refere Leite de Vasconcelos a propósito do uso da barba
e em particular dos eremitas:

O tipo de ermitão vai rareando, o último que vi foi o de


S. Barão, em Mértola, em 1908. (...) Diz a lenda que S.
Barão ia todos os sábados pedir a Mértola, e que de-
pois se recolhia a uma lapa que existia perto do sítio
em que está hoje a ermida que lhe é dedicada. Os lo-
A RELIGIÃO DOS MARÍTIMOS 102

bos arranhavam a lapa, mas por milagre não chega-


vam a tocar no santo. Ainda lá estão as arranhadelas
na pedra, acrescenta o povo piedosamente. S. Barão te-
ve mais seis irmãos, também santos, nascidos como ele,
em Mértola, e também venerados em ermidas. As se-
te ermidas estão à vista umas das outras, e são, além de
S. Barão, das seguintes invocações: Senhora d’Arceles
(Ara Caeli), do Amparo, de Guadalupe, das Neves; S.
Pedro das Cabeças, e S. Veríssimo.29 29
J. Leite de VASCONCELOS,
Signum Salomonis A Figa A Bar-
Embora hoje em dia o culto a S. Barão esteja praticamente esquecido, era considera- ba em Portugal, Lisboa, D. Qui-
do um dos mais importantes na segunda metade do séc. XVIII: xote,1996, pág. 347
30
Joaquim Ferreira Boiça, e Maria
He tradiçam indisputavel que nesta villa floreceo em de Fátima Rombouts Barros, As
virtudes o Gloriozo Sam Baram, o qual, desta villa em Terras, As Serras, Os Rios, Memó-
que nascera, se retirou a viver em hua gruta da monta- rias Paroquiais de 1758 do Conce-
nha, ao distante legoa e meya perto de huma fonte, que lho de Mértola, Mértola, Campo
lhe criava as ervas, de que elle se alimentava com algu- Arqueológico de Mértola, 1995
mas esmolas, que nos sabados sahia a pedir nesta villa, 31
Citado por Luís Fernando Delga-
em cuja cadea sempre deixava a maior parte delas, e do Alves, “Subsídios para a His-
cuja chegada à mesma annunciavão per sy mesmos sem tória do Concelho de Mértola”,
outro impulso os sinos. De forma que chegando hum in Arquivo de Beja, vol. V, série
Sabbado em que aquella hora se viram dobrar os sinos III, Agosto 1997, pp. 107 a 134
per sy mesmos, e não vir o Santo, se ajuizou seria mor- 32
A. Borges Coelho. Portugal na
to, e assim o acharam algumas pessoas que o foram a Espanha Árabe, Lisboa, Seara
ver, de joelhos com as maons levantadas, e os olhos no Nova, 1972, vol. I, pág. 58
ceo dentro da mesma gruta. Nesta mesma lhe deram 33
Cláudio TORRES, et alii, Museu
sepultura, sobre a qual he hoje a sua eremida. He sin- de Mértola I, Núcleo do Castelo,
gular a sua protecçam para soldar quebrados, amistar e Mértola, Campo Arqueológico
fecundar os cazados, e nam há molestia alguma que es- de Mértola, 1991, pág. 30
te Santo nam cure, pello que em todo o anno he muito
frequentada a sua devoçam e caza.”
(...)só Sam Baram he especial no culto em todo o ano, e
especialmente na Sexta Feira de Ramos, em que// sem
noticia de sua especialidade he a tradiçam de se Ihe
officiar a sua festa, e tambem no dia nove de Agosto,
nos quaes há vigilia em roda da sua igreja.30

São Barão não é reconhecido pela Igreja Católica como santo. Parece tratar-se de um
culto local. O seu nome Barão ou Varão significa homem (do latim vir, viris) o que ex-
plicaria a sua intervenção na fecundação dos casados.
Já anteriormente Diogo Paiva de Andrade, em 1616, se tinha referido a este santo, que
teria morrido em 700, e sobre o qual conta a mesma história, reafirmando: “Tem-se em
toda aquela província por advogado dos casados para terem paz, e haverem filhos”31.
É interessante notar que os cultos públicos mais importantes se realizavam na sexta-
feira de Ramos, em que se festejava um santo que ajudava a salvar a saúde e até te-
ria poderes fecundadores, e no Domingo de Ramos em que se cultua também a mor-
te de Cristo. E o facto de ser numa sexta-feira poderá ter alguma relação com o facto
dos muçulmanos considerarem este como o dia santo, e neste caso seria a memória
desse dia? Há também outro paralelismo interessante que é o facto de ter existido no
século XII um asceta muçulmano em Mértola, Muça ibne Imerane Almertuli que ad-
quiriu a reputação de santo.32
Todas estas ermidas se vêem umas das outras pois estão em sítios altos, algumas de-
las relacionadas com afloramentos rochosos [S. Barão e Ara Caeli (Fig. 43)]. Se algu-
mas delas já estão abandonadas, como é o caso de S. Barão ou S. Veríssimo, outras
continuam ainda com culto e há casos até que esse culto quase foi abandonado (Se-
nhora das Neves, em Mértola, em colina isolada e próxima da confluência entre a ri-
beira de Oeiras e o Guadiana) ou adquiriu até um novo fulgor (Ara Caeli). A capela
de S. Veríssimo ou S. Brissos fica no mesmo local da Senhora do Amparo (Fig. 41).
O culto deste santo seria mais antigo, “de tradição pré-islâmica. O pé de altar do sé-
culo VII reforça esta hipótese33.”
103 A RELIGIÃO DOS MARÍTIMOS

O conjunto destas ermidas estende-se por uma área vasta, desde Serpa (Senhora
de Guadalupe até perto de Castro Verde (S. Pedro das Cabeças), no sentido Leste-
Oeste. Essa área ocupa grande parte do chamado Campo Branco, onde, sobretudo
nos anos trinta se desenvolveu (aliás como em todo o Alentejo) a campanha do Tri-
go, com resultados desastrosos após os primeiros anos, dado que é uma área de so-
los delgados e que historicamente serviu essencialmente para a exploração de gado
ovino. Tudo parece indicar que terá existido aqui uma comunidade territorial, uma
aliança entre povos simbolizados pelas respectivas divindades. Ainda hoje a festa da
Senhora de Ara Caelis é considerada a festa dos agricultores dos concelhos de Mér-
tola e Castro Verde e é organizada por uma comissão eleita pelos próprios que tam-
bém oferecem algumas cabeças de gado para o almoço nos terrenos da capela. O caso
de S. Pedro das Cabeças está até ligado a um mito da fundação da História Nacio-
nal, o da batalha de Ourique entre D. Afonso Henriques e três reis mouros, e ainda
hoje o exército português aí faz cerimónias comemorativas, tendo até sido construí-
do um monumento militar evocativo. A Senhora de Guadalupe que se situa no outro
extremo ainda hoje é objecto de um culto intenso em Serpa. A Senhora de Guadalu-
pe está relacionada com um mito em que um pastor descobre a imagem da Senhora
que tinha sido escondida na serra de Guadalupe em Espanha) aquando da invasão
dos mouros. Mas contrariamente à imagem da Senhora em Espanha e nas Américas
e também em Portugal, a Senhora em Serpa é branca e não negra ou morena, mas
também pequena como convém à Senhora de eleição.
Algumas destas capelas têm, no núcleo essencial, a forma de uma Cuba, isto é uma
planta quadrada, forma cúbica encimada por uma cúpula redonda, uma semiesfera que
poderá simbolizar o céu (casos da Senhora de Guadalupe, Senhora das Neves e S. Pe-
dro das Cabeças). Poderiam ter sido em tempos ribats, semelhantes a outras que existem
no sul de Portugal e sobretudo no Magrebe, mas em geral de culto ainda mais antigo.
A lenda dos sete irmãos foi-nos confirmada oralmente. O Agiológio Lusitano refere
também para a zona de Mértola outra irmandade, onde se incluem alguns destes san-
tos, que seriam S. Brissos, S. Barão e Santa Bárbara34.
34
citado por Luís Fernando Del- Repare-se que S. Bárbara é padroeira dos mineiros, sendo natural o seu culto numa
gado Alves, “Subsídios para a His- área em que há vestígios de mineração desde antes dos romanos, dando origem a to-
tória do Concelho de Mértola”, in pónimos como a aldeia de S. Bárbara dos Padrões e a um renascimento do seu culto
Arquivo de Beja, vol. V, série III, na Mina de S. Domingos, no século XIX, substituindo o orago S. Domingos, relacio-
Agosto 1997, pp. 107 a 134 nado com uma lagoa que tinha águas santas, sulfurosas com poderes curativos (para
35
M. Espírito Santo relaciona o doenças de pele)35 36.
culto de S. Domingos com o deus
Thammuze ou Dommuzi.
36
Há várias águas santas no con- 6.3. PRÁTICAS RELIGIOSAS – O QUE NOS DIZEM OS
celho de Mértola. As mais conhe-
cidas são as termas de Água Santa ETNOTEXTOS
da Morena na ribeira do Vascão e
a Água Santa na ribeira de Oeiras,
com uma exploração rudimentar. “O discurso da literatura oral é um discurso ‘fixado’ ou
37
Jean-Claude Bouvier (dir. de), ‘semi- fixado’, no qual a improvisação não pode ser se-
Tradition Orale et Identité Cultu- não parcial. Quer se queira quer não, e qualquer que
relle, Problèmes et Méthodes, Paris, seja a importância das variantes duma versão a outra
C.N.R.S., 1980, pág. 24 (...), a canção ou a poesia rimada dão ao intérprete cria-
dor um quadro bastante rigoroso. As palavras podem
ser substituídas, versos inteiros modificados, a ordem
dos elementos alterada, e certamente a obra adquirirá
um significado totalmente diferente, mas ela continua-
rá uma canção ou uma poesia popular de tradição oral
bem tipificada”37

Estes etnotextos poderão ter-se fixado, embora com algumas alterações já há cente-
nas de anos como é o caso do romanceiro estudado ultimamente por Pére Ferré e
que segundo este estudioso podem remontar ao século XIV e que se difundiram por
toda a Península Ibérica e por outras regiões do globo onde existem comunidades de
origem ibérica (portuguesas, castelhanas, galegas, andaluzas, catalãs etc.) América
Latina incluída, e comunidades de judeus sefarditas (Marrocos, Turquia etc.) que por
vezes as mantêm em versões mais antigas.
A RELIGIÃO DOS MARÍTIMOS 104

É o caso destes fragmentos de um romance que recolhemos em Mértola38 que aqui se 38


Esta recolha foi obtida junto das
chama Angelina, mas que noutros lugares será a Delgadinha ou Delgadilha (em por- informantes Ilda Simões, Maria
tuguês ou castelhano), Faustina ou Adelina.39 Luísa Simões, Pulquéria Simões
e Maria Januária Simões
Angelina queres ser minha, queres ser minha namorada? 39
Pére Ferré e Ana Maria Martins,
Que eu de ouro te vestia e de prata te calçava (dir. de), Romanceiro Tradicio-
(...) nal do Distrito de Beja, Santiago
O pai dela assim que soube, o pai dela assim que soube de Cacém, Real Sociedade Ar-
Não mandou fazer mais nada, mandou fazer uma torre queológica Lusitana, 1989, vol. I,
Para Angelina ser fechada pp. 82 a 90
(depois ela deixou de comer e beber e quando ele a viu 40
Esta versão tem muitas seme-
já esparvecida mandou os criados dar-lhe água) lhanças com outra recolhida em
Corram todos meus criados, a dar água a Angelina...40 Santa Bárbara dos Padrões onde
Angelina é Adelina,o romance
São essencialmente as mulheres que transmitem as orações aprendidas e transmiti- n.º 68 in Ferré, op. cit. pág. 90
das oralmente através das gerações. As orações e rituais que as acompanham são es-
sencialmente funcionais: pede-se a intervenção da divindade em determinadas cir-
cunstâncias, em determinada hora do dia. Por vezes, contradizem ou pelo menos são
ambíguas em relação à ortodoxia doutrinária da Igreja Católica, o que leva a que se-
jam rezadas em privado ou em pequenos grupos, também para evitar a troça de al-
guns homens (o que não significa que estes duvidem da sua eficácia). Esta contradi-
ção não significa que a encarem como tal, já que é sua forma de sentir e praticar a
religião que os identifica.
Se uma pessoa perde um objecto reza-se a S. António, advogado das coisas perdidas:

S. António para onde vás (vais)


É contigo é que eu vou
Tu comigo não irás
Tu na Terra ficarás
Guardando coisas perdidas
Para entregar aos seus donos.

Quando uma pessoa tem cobranto uma das formas de o tirar é com a seguinte oração:

Maria Virgem
Virgem Maria
Santa Isabel Baptista
Santa Catarina, esposa de Cristo
Conforme estas palavras são dadas
Assim venha a tirar do corpo desta pessoa
Este cobranto este acobrantado
Esta dor de costados
Para as ondas do mar seja deitado
Onde não ouça galo nem galinha cantar
Nem Deus Menino chorar
E em louvor de Deus e da Virgem Maria
Um pai nosso e uma Ave Maria

Outra versão pode começar assim:

Santana pariu a Virgem


A Virgem pariu Cristo,
Santa Isabel Baptista
Santa Catarina, esposa de Cristo
(...)

O cobranto é visto como um mal que vem de fora e que por isso deve ser expulso tam-
bém com palavras sagradas. Por intercepção das santas e em primeiro lugar da Vir-
gem Maria, a seguir de Santa Isabel, mãe de S. João Baptista (o que baptizou Cristo
e que seria um seu antecessor) e por fim Santa Catarina aqui considerada como espo-
sa de Cristo e portanto nora de Nossa Senhora. São duas mães e uma esposa mais no-
105 A RELIGIÃO DOS MARÍTIMOS

va que curam do cobranto. Este vai ser atirado para o mundo de ninguém, onde não
existe nem macho nem fêmea, nem sequer um Menino (Deus) a chorar, um lugar on-
de não há vida. A palavra e o gesto libertam e expulsam o mal das profundezas.
Quando alguém está embruxado também a culpa é de algum ente exterior. Pode ser
uma alma perdida. Essas almas que vagueiam num mundo que não é nem o Céu nem
o Inferno da Igreja Católica.

Maria (diz-se o nome da pessoa)


Estás embruxada e
Encanicada e
Assombrada
Quem te embruxou,
Quem te encanicou,
Quem te assombrou?
Foi uma alma perdida
Que por aqui passou.
Ela por aqui há-de tornar a passar
Há-de-te desembruxar
Há-de-te desencanicar
Há-de-te desassombrar
E aos quintos infernos há-de ir parar

Os elementos telúricos, sobretudo as trovoadas, metem respeito e é solicitada a in-


tervenção de S. Bárbara.

Santa Bárbara é bendita


No Céu está escrita
Na terra adorada
Nosso Senhor nos livre todos desta trovoada.
Ou
Santa Bárbara se levantou
A sua mão direita lavou
À toalha de Jesus Cristo se limpou
Caminhos e estradas andou
Com Jesus Cristo se encontrou
E ele lhe perguntou
- Onde vais S. Bárbara?
- Vou espalhar a trovoada
Que anda por este mundo armada
- Espalha lá para bem longe
Onde não caia raio nem centelho
Nem capinha de lã
Nem ao pé da bela cruz
- Para sempre Oh meu Jesus

Quando se sai de casa também se pede protecção e esconjuram-se os males (os maus)

De minha casa saio


Em tão bom dia
Em tão boa hora
Os bons me verão
Os maus não me encontrarão
As armas de Jesus Cristo
Armadas comigo vão.

Ao pé da porta acompanha-se uma oração com gestos: braços abertos em movimen-


to para trás e para a frente quando se dizem os últimos dois versos:

Minha porta vou fechar


Não tenho por quem esperar
Espero por Nossa Senhora
A RELIGIÃO DOS MARÍTIMOS 106

Que me venha acompanhar


Todo o mal da minha casa saia
Todo o bem entre (diz-se 3 vezes)

Camisinha da Virgem Maria


Trago eu na minha companhia
Para me guardar a mim e a minha família toda
Para quem me queira fazer mal
Tenha pernas e não ande
Tenha braços e não demande
Tenha olhos e não nos veja
Camisinha da Virgem Maria
Guarde a mim e a minha família toda.

Pede-se protecção ao Anjo da Guarda:

João (diz-se o nome da pessoa)


O anjo da tua guarda
Semelhante ao senhor
Deus te o deu ao mundo
Para teu anjo guardador
Oh anjo bendito
Com seu divino poder
Dos braços do teu inimigo
Te queira defender.

São Francisco poderá ser outro protector, quando se vai pela rua em direcção à Igre-
ja. Na igreja, junto à pia onde está a água benta também se reza:

São Francisco me acompanhe


As cinco chagas do Senhor
Eu vou visitar
Tantos anjos me acompanhem
Como passos eu vou dar.

Nesta casa (na igreja)


De Deus entro
Levo a mão direita à pia
Minha alma será santa
filha da virgem Maria

O receio de um mundo onde não haja sons de animais homens ou mulheres leva a
que se recorra à estrela:

Estrela brilhante e formosa


Que estás a brilhar
No azul do firmamento
Faz-me acesso
E dá-me três sinais
Cães a ladrar
Portas a bater
E homens a assobiar

Ao fechar a porta pede-se a protecção de Nossa Senhora:

Esta porta vou fechar


Não tenho por quem esperar
Espero por Nossa Senhora
Que me venha acompanhar
107 A RELIGIÃO DOS MARÍTIMOS

Ao deitar e ao levantar também se reza:

Com deus me deito


Com Deus me levanto
Na graça de Deus
E do Espírito Santo

Anjo da Guarda
Meu zeloso companhia
Nos guarde esta noite
E amanhã todo o dia

À noite, às escuras podem sentir-se medos e por isso solicita-se a presença divina. O
leito é um mundo limitado por quatro cantos. Invoca-se Nossa Senhora protectora
maternal.

Quatro cantos tem minha cama


Dois anjos aos pés
Dois anjos à cabeceira
Nossa Senhora à dianteira
Nossa Senhora me diz
Maria dorme, repousa
Não tenhas medo
de outra coisa.
ou
Nesta cama me vou deitar
Não tenho por quem esperar
Espero por Nossa Senhora
Que me venha acompanhar.

Há até alguma ambiguidade quando se invoca o Senhor martirizado que se vai deitar
com a mulher (solteira?). Repare-se ainda nesta oração em que o Senhor é apelidado
de Santana, numa referência à mãe de Maria e por conseguinte avó de Jesus.

Senhor Santana
Aos pés da minha cama
Senhor crucificado
Comigo deitado
41
cansado Senhor escalfado41
E abençoado

Em outra versão também se diz:

(...)
Aos pés da minha cama
Senhor preso à coluna
Senhor crucificado
Comigo deitado
(...)

Outras orações evocam ainda a cruz, os anjos da corte celestial e São Blé (diminutivo
de Manuel) que se torna acólito.

Olhei para o Céu


E vi uma cruz
Capela de rosa
Menino Jesus
S. Blé toca à missa
E os anjinhos vão ouvir
Bendita seja a hora
Que ele me deixa dormir.
A RELIGIÃO DOS MARÍTIMOS 108

Entrego-me a Jesus
E à Santíssima Cruz
E ao Santíssimo Sacramento
E às relíquias
Que tem dentro

De madrugada temos ainda outra oração:

Já os galos cantam
Já os anjinhos se levantam
Já o Senhor subiu à cruz
Para sempre
Amém Jesus

Outra considerada antiga em que se pede a um Deus Menino que recebeu as chaves
de S. Pedro e de sua mãe:

Padre Nosso pequenino


Tem a chave do menino
Quem lha deu
Quem lha daria
Foi São Pedro
Santa Maria
Cruzei montes
Cruzei pontes
Já o Senhor subiu à Cruz
Para sempre
Ó meu Jesus

A religião pode até ser satirizada, num tom burlesco, por homens, que assim provo-
cam um pequeno escândalo entre as mulheres, o que não inibe umas boas risadas da
parte destas. Por exemplo:

Eu te benzo Mateus
Com três peidos meus
Três de S. Francisco
As palhas alhas
Caganitas das gralhas
E os bafos de algum cu
Fica descansado
Que deste mal
Não morres tu
109 CONCLUSÃO
CONCLUSÃO 110

CONCLUSÃO

Mértola foi sempre marcada pelo Guadiana, um rio que atravessa centenas de quiló-
metros na Península Ibérica e que aqui tem uma feição especial: depois de passar gar-
gantas estreitas torna-se mais largo e fundo e as suas águas doces misturam-se com as
salgadas e alteram-se com o ritmo das marés, a mais de meia centena de quilómetros
do mar. É um rio de características mediterrâneas, com uma forte estiagem e um In-
verno com torrentes caudalosas, enxurradas que ainda surpreendem o Homem que
teima em “civilizá-lo”.
Essas características específicas do Baixo Guadiana permitiram a navegabilidade e
a entrada de espécies que foram desde sempre um recurso fundamental para os que
aqui vivem e que os distingue das populações vizinhas, embora se integrem na cultu-
ra do Sul do país, do Alentejo.
O rio traçou a História: permitiu a circulação de pessoas, ideias, comportamentos e
mercadorias. Revelou-se sobretudo uma porta de entrada que ligou milenarmente o
Sul de Portugal às civilizações mediterrâneas: longos caminhos por terra e sobretudo
pelo mar, desde o Oriente, Norte de África e Sul da Europa. Sedimentaram-se cultu-
ras, frequentemente em conflito, e que nos deixaram vestígios materiais pré-romanos
(ainda pouco estudados), romanos, islâmicos, estes sobretudo nas suas versões nor-
te-africana/andaluza.
As riquezas da região, o minério, o trigo, o carvão, a pastorícia forneciam a “moeda
de troca” para os bens em falta, desde alimentos até bens sumptuários, quase sempre
com déficit para a região. No caso das minas, exploradas desde a Antiguidade, os lu-
cros auferidos teriam seguido o caminho de Roma, para a Época Contemporânea a
espoliação dos recursos pelo capitalismo inglês, guiou-se pelo lucro máximo e quan-
do este diminuiu, levou-se tudo o que podia e deixou-se em troca os escombros, a po-
luição e os desempregados, ressalvando ainda os direitos sobre a terra.
Houve épocas de dinamismo económico e de atracção de populações, de nacionais
e estrangeiros. A segunda metade do século XIX foi um período de expansão que se
atenua após a Grande Guerra e que, apesar de alguns períodos de recrudescimen-
to, decai definitivamente após a segunda guerra mundial. Os anos 50 e sobretudo os
anos 60 são décadas de autêntico êxodo, acompanhando a tendência do país rural e
da região, mas aqui de uma forma intensa. Essa tendência ainda não parou, o con-
celho vai-se desertificando em termos populacionais e torna-se cada vez mais enve-
lhecido.
Mértola insere-se numa região rural, com uma economia especializada, produção de
cereais (hoje menos), quase em monocultura, e derivados da pastorícia. Mas, como
porto fluvial e quase marítimo, como sede de um concelho onde não há mais centros
urbanos, com os recursos do rio, criou-se aqui uma população que vive tradicional-
mente do comércio e serviços e da pesca. As dificuldades nas comunicações terres-
tres, semelhantes às do resto do país, onde quase não se construíam estradas desde o
tempo dos romanos, com os inerentes obstáculos naturais, a serra algarvia e os vaus
principalmente, a banditagem produzida por um exército permanente de excluídos
socialmente, tornavam o rio como a via mais rápida, mais barata e mais segura. Lito-
ral e interior trocavam entre si, o que significa, em termos concretos, o Algarve (uma
ligação especial a Vila Real de S. António) e Lisboa a partir daqui, mas também a
Andaluzia, e, por outro, a zona de Beja e a margem esquerda do Guadiana (Serpa,
Moura, Barrancos...).
Este meio essencial vai perdendo importância paulatinamente. Primeiro o comboio,
que em parte também revitaliza o tráfego no rio e aproxima de Beja, e as estradas e
as pontes que morosamente se vão construindo. Foi uma das últimas carreiras fluviais
do país que foi definhando após a segunda guerra mundial. A construção de estrada
para o Algarve, finalmente posta em serviço em 1949, marca a mudança.
O rio nem sempre foi uma barreira para com o estado vizinho. Se antes da constru-
ção dos estados ibéricos ele era um elo de comunicação com que é hoje a Andaluzia,
e essa relação terá continuado até à Restauração, os países viram-se de costas um pa-
ra outro, tornando-se Portugal num país de “ilhéus”1. O rio torna-se fronteira, forte-

1
António José Saraiva, A Cultura em Portugal, Lisboa, Bertrand, 1983, I vol., pág. 86
111 CONCLUSÃO

mente guardada, situação que se agrava com as ditaduras ibéricas do século XX, ape-
sar do Pacto Ibérico.
Mas “eppur se muove”, os habitantes de cá e de lá contactam entre si, fazem contra-
bando, sobretudo de objectos utilitários, animais e alimentos, pequenos negócios em
que se arriscava a vida. Também há alguns que vão para lá trabalhar, outros vêm pa-
ra cá, há casamentos, há demonstrações de solidariedade perante a miséria e a pre-
potência dos estados; outros evadem-se à procura de uma vida melhor ou na recusa
de combater uma guerra colonial que se arrasta sem solução, ou “simplesmente” na
luta pela democracia.
O rio permitiu a existência de pescadores até aos nossos dias. Homens e mulheres
profundamente conhecedores das correntes, dos ventos e marés, das profundidades e
das margens a quem deram nomes, guardaram uma memória colectiva que se trans-
mitia oralmente, pois raros sabiam ler e escrever. Memória essa que se vai fragmen-
tando pelo abandono do modo de vida, mas que se revivifica quanto inquirida ou con-
frontada, mesmo depois de anos passados noutro local e noutra profissão.
Esta comunidade não era totalmente sedentária. O rio era aproveitado desde a foz
até ao Pulo do Lobo, essa sim uma barreira para as espécies e para os barcos. O mo-
vimento das águas, marés e torrentes, a época do ano, a hora do dia, levava a que se
pescasse num ou outro lado do rio. O pescador movia-se conforme o sável ou a lam-
preia e levava o barco, as artes e a família. As artes e as embarcações são também o
resultado da adaptação à actividade, diferentes conforme o peixe ou o lugar: o “con-
to” para o sável, o tresmalho para o muge, a rede “coelheira” para as eirozinhas (prá-
tica proibida e condenada por alguns profissionais) e até formas passivas de pesca, co-
mo o caneiro, aproveitando os açudes. O pescador usa o rio como o camponês usa a
terra e só não o respeita (e com mágoa) quando primeiro está a sua sobrevivência.
Aprende-se esse conhecimento desde tenra idade, com os pais, os irmãos e todos os
membros da comunidade, aprende-se a trabalhar imitando, construindo brinquedos
que têm como modelo o que os adultos fazem, coisas que não se compram nas lojas
nem se ensinam nas escola. Esta era um mundo à parte da profissão, de onde se fugia
facilmente para aprender o que era preciso e dava gosto (e o estado contemporizava,
quiçá para manter a estrutura social). A inovação é algo de estranho, mas adaptam-
-se as técnicas a situações concretas. As tecnologias penetram neste mundo artesanal:
hoje compra-se um motor, amanhã um barco de fibra ou de ferro.
Os nomes das pessoas revelam também uma cultura. É a primeira coisa que têm além
do leite materno, é uma transmissão de um património e uma identificação, uma as-
sociação com a família; no nome e no apelido recordam-se os ascendentes e sobre-
tudo a paternidade, embora a influência feminina também se revele. Poderá até não
haver apelido, mas há um nome que provém do pai ou do avô e que se transmite ao
longo de várias gerações. O uso de sobrenomes também evolui: à medida que o Esta-
do penetra na vida dos cidadãos e os laços de parentesco se tornam menos importan-
tes aumenta o número de apelidos do indivíduo. Ao contrário das sociedades do Nor-
te da Europa, onde o normal é o indivíduo ter um nome próprio ou dois e um apelido
paterno, aqui recorre-se à filiação paterna e materna recorrendo a um modelo de ori-
gem aristocrática, mas que revela a ligação também à família materna.
As alcunhas funcionam quase sempre como a melhor identificação do indivíduo nu-
ma sociedade de interconhecimento, onde a vida privada é do conhecimento geral.
Apelidam-se as pessoas por um facto concreto, geralmente um incidente na infância
ou por alguma atitude menos consentânea com os comportamentos admitidos social-
mente. A marca pode até passar de pais para filhos e ser esquecida a sua origem, mas
o indivíduo sujeita-se a aceitá-la.
Os laços de parentesco eram fundamentais nesta comunidade. Funções que são hoje
em dia, melhor ou pior asseguradas pelo Estado, competiam à família. A família nu-
clear seria o normal, mas com ligações estreitas com outros parentes. Uma das con-
sequências é a tendência para a endogamia, que se manifesta pelo facto de cada indi-
víduo ser parente de quase todos, no reconhecimento de que a maioria são “primos”
e na solidariedade no dia a dia, mais visível durante as cheias. Relaciona-se a família
nuclear com o número de pessoas necessárias para a equipagem de um barco, duas
CONCLUSÃO 112

pessoas, marido e mulher ou um camarada, parente próximo. Mas em barcos maio-


res, para o transporte de pessoas e mercadorias, a empresa familiar necessita do con-
curso de todos os parentes próximos.
As práticas religiosas em Mértola revelam, através dos tempos, fortes indícios de he-
terodoxia e resistência aos poderes eclesiásticos instituídos. Santos que identificavam
a população, como S. Barão, eremita e asceta, cuja memória se filia em tradições pos-
sivelmente anteriores ao cristianismo, irmandades de Santos e Senhoras que marcam
um território, Senhoras que se relacionam com um culto lunar, manifestações religio-
sas que celebram a morte do jovem Deus e o triunfo da Mãe, santos protectores das
águas, do rio e sobretudo dos homens que vivem dele.
O conflito com a religião institucional passa mesmo pela religião muçulmana que,
aliás, perdura nos seus símbolos e espaços, num judaísmo atribuído, capelas erigi-
das e não autorizadas e hoje em dia com uma desconfiança em relação aos agentes
da hierarquia católica que também suspeitam da “crendice” popular. O afastamen-
to em relação à religião institucional e também em relação à religião popular mani-
festa-se hoje na fraca afluência aos cultos, e em relação aos santos e Senhora(s), na
fraca resistência às proibições e no aparecimento, quase escondido, de outras formas
de cristianismo.
Não se trata apenas da influência “positivista” ou “modernizadora” que terá sido
exercida por alguns notáveis locais, ainda menos pelo Partido Comunista, de ideolo-
gia ateia, mas cujos membros locais até participam numa procissão. O facto é que a
sociedade e a economia mudaram e os últimos 20 anos aceleraram a desintegração
da sociedade num processo entrópico.
Mas a cultura é persistente. A festa do Senhor dos Passos mantém-se viva e é o tem-
po do reencontro. A protecção antigamente invocada aos santos ou ao manto da Vir-
gem da Misericórdia solicita-se hoje à Câmara Municipal. A noção de trabalho ainda
não chegou ao “tempo é dinheiro”. A nostalgia do rio reacende-se, apesar da polui-
ção, um problema novo e antigo.
113 CONCLUSÃO
ANEXOS 114

ANEXOS

ANEXO 1: COMUNICADO DA C.M.M.

COMUNICADO À POPULAÇÃO

COMERCIALIZAÇÃO E CONSUMO DO PEIXE CAPTURADO


NO RIO GUADIANA NA ÁREA DO CONCELHO DE MÉRTOLA

Considerando que foi estabelecida, por determinação da Direcção-Geral de Veteri-


nária (Secretaria de Estado da Agricultura e do Desenvolvimento Rural - Ministério
da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas), a interdição da comerciali-
zação do pescado no Rio Guadiana - na área do concelho de Mértola;

Considerando que tal interdição tem, por algumas formas, sido apontada como da
responsabilidade da Câmara Municipal, vimos prestar os esclarecimentos necessários
à reposição da verdade, bem como informar sobre o actual estado do processo que
impede a comercialização do peixe e logo, a actividade dos respectivos profissionais:

1. A Câmara Municipal, desde a década de 80, e face aos problemas - de todos co-
nhecidos -, da qualidade da água do rio Guadiana e aos eventuais reflexos na qua-
lidade do peixe, começou, à conta do orçamento municipal e em articulação com o
Centro de Saúde de Mértola, por assegurar a realização de análises ao pescado;

2. As qualidades da água do Guadiana e do peixe, não constituem responsabilidade


da Câmara e logo não lhe cabe encontrar as soluções adequadas, tendo a interven-
ção municipal objectivado só fornecer à população informação sobre a qualidade
daqueles bens, no sentido da defesa da saúde pública;

3. A Direcção Geral de Veterinária, em 4 de Março de 1997 e reforçando idêntica po-


sição anterior, interditou “a colocação no mercado e desaconselhou o consumo do
pescado capturado. na área do concelho de Mértola, no rio Guadiana”;

4. No dia 12 de Março de 1998, na Divisão de Intervenção Veterinária de Beja, e com


a participação deste Serviço, bem como da Direcção Geral de Saúde, da Direcção
Geral da Veterinária, da Direcção Regional do Ambiente do Alentejo, da Direcção
Regional de Agricultura do Alentejo e ainda com as presenças e participações dos
Veterinários Municipais de Mértola, Moura e Serpa, decorreu uma reunião onde
por consenso das várias Entidades presentes, foram extraídas conclusões, dentre
as quais se transcreve a última:

“Face aos dados dos resultados obtidos, nas últimas análises efectuadas no peixe prove-
niente do rio Guadiana-Mértola e aos esclarecimentos do Departamento de Zoologia e
Antropologia da Faculdade de Ciências do Porto e da Direcção Geral de Saúde e discus-
são havida na reunião, foi parecer consensual das várias Entidades presentes que a me-
dida cautelar atempadamente tomada seja levantada.” (sic)

5. Passados mais de vinte dias sobre a conclusão técnica extraída naquela reunião, a
entidade competente - Direcção-Geral de Veterinária - não tomou quaisquer me-
didas sobre o levantamento da interdição que determinou por Edital de 4 de Mar-
ço deste ano;

6. Essa inércia é da exclusiva responsabilidade da entidade competente, não cabendo


à Câmara Municipal tomar medidas sobre a matéria;

7. Mas, não cabendo à Câmara tomar decisões sobre a questão, é seu dever institucio-
nal prosseguir tudo quanto respeite aos interesses da população do concelho;
115 ANEXOS

8. Assim, entende-se ser de dar conhecimento público à questão e simultaneamen-


te expressar:
8.1. Que a Câmara estranha:
8.1.1. Que só o pescado na área do concelho de Mértola esteja interdito à comer-
cialização, como se ao controlo do peixe do Rio fossem aplicáveis as práti-
cas do “redil”;
8.1.2. Que a entidade competente mantenha uma situação excepcional de interdi-
ção da comercialização do pescado do Guadiana na área do concelho, quan-
do as conclusões técnicas vão no sentido (consensual de todos os presentes
na reunião de 12-3-98) de que o peixe está em condições de ser consumido;
8.1.3. Que na acta da mesma reunião técnica se refira que a Câmara Municipal de
Mértola estava presente, quando isso não corresponde à verdade. O seu le-
gítimo representante nem sequer foi convidado a participar nela;

8.2. A actividade da Sr.ª Veterinária Municipal nesta matéria em qualquer circuns-


tância de contactos com pescadores, restaurantes e outros consumidores, nunca
é em nome da Câmara Municipal de Mértola, nomeadamente porque não está
mandatada para tal. Essa intervenção é pelo dever de colaboração com a Admi-
nistração Central, que recai sobre os funcionários municipais daquela carreira
profissional, em termos de relação funcional.

8.3. Que os problemas da qualidade da água do rio Guadiana e as reservas quanto


à qualidade do seu peixe, remontam à década passada e sempre foram objecto
da maior atenção da Autarquia, que assegurou a realização de análises desde o
início, constituindo especulação qualquer tentativa de relacionar a qualidade do
peixe ou da água a qualquer particular situação actual.

Mértola, 3 de Abril de 1998.


CÂMARA MUNICIPAL

ANEXO 2: POSTOS DA GUARDA FISCAL

(DE VILA REAL ATÉ MÉRTOLA)

Vila Real Guerreiros do Rio Canavial


Castro Marim Laranjeiras Palanqueira
Rocha Vinagre Pomarão
Corte da Velha Pontal Rocha Vermelha
Cinturão Alcaçarim Carvão
Almada de Ouro Abrigo Penha de Águia
Forno da Cal Alcoutim Areia Gorda (em frente de)
Freixo Lourinhã Pinheirinhos
Foz de Odeleite Penedeiros Vaqueira
Álamo Enxoval Bombeira
Tenência Vascão Mértola
Álamo
ANEXOS 116

ANEXO 3: ROTEIROS

1
in João Baptista da Silva Lopes,
Corografia ou Memória Económi-
ca, Estatística e Topográfica do rei-
no do Algarve, Faro, Algarve em
Foco, 1988
117 ANEXOS
ANEXOS 118

ANEXO 4: HORÁRIOS DO “GUADIANA”

O Futuro de Mértola, Abril de 1913


Motor “Guadiana”

Carreiras do Rio Guadiana

Horário do mês de Agosto

PARTIDAS DE MÉRTOLA PARTIDAS DE VILA REAL


Dias Horas Minutos Dias Horas Minutos
15 8 3 16 14 59
17 9 23 18 16 45
20 13 15 21 8 34
22 15 52 23 10 41
24 5 6 25 12 8
27 7 - 28 13 56
29 8 14 30 15 19
31 9 45 - - -

Motor “Guadiana”

Carreiras do Rio Guadiana

Horário do mês de Setembro

PARTIDAS DE MÉRTOLA PARTIDAS DE VILA REAL


Dias Horas Minutos Dias Horas Minutos
1 17 -
3 13 25 4 8 29
7 5 - 8 11 21
10 6 6 11 12 53
12 7 26 13 14 2
14 8 21 15 15 32
17 11 - 18 7 -
19 14 29 20 9 28
23 5 23 25 12 56
26 7 13 27 14 12
28 8 35 29 15 45

Motor “Guadiana”

Carreiras do Rio Guadiana

Horário do mês de Outubro

PARTIDAS DE MÉRTOLA PARTIDAS DE VILA REAL


Dias Horas Minutos Dias Horas Minutos
1 11 23 2 6 28
3 13 49 4 8 44
5 15 33 6 10 13
8 4 24 9 10 57
11 5 30 13 13 34
15 9 - 16 4 30
19 14 5 20 8 54
22 4 - 23 8 54
26 6 34 27 13 36
29 8 45 30 15 -
119 ANEXOS

ANEXO 5: NÚMERO DE MARÍTIMOS POR FREGUESIA

E POR ANO.

(fonte: Livros de Inscrição Marítima da Capitania de Vila Real de S. António)

1893 1895
Corte Pinto 0 0 0 0 0 0 0
Espírito Santo 0 0 0 0 0 0 1
Mértola 5 22 22 21 21 22 22
Santana 0 1 1 1 1 1 2
TOTAL 5 23 23 22 22 23 25
1900 1905
Corte Pinto 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
Espírito Santo 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1
Mértola 22 25 26 27 27 30 30 30 31 31
Santana 2 2 2 2 4 4 6 6 6 6
TOTAL 25 28 29 30 32 35 37 37 38 38
1910 1915
Corte Pinto 0 1 1 1 1 1 1 1 1 1
Espírito Santo 1 2 1 1 1 1 2 3 3 2
Mértola 32 32 33 37 41 41 49 51 46 55
Santana 6 10 11 12 12 12 16 20 20 24
TOTAL 39 45 46 51 55 55 68 75 70 82
1920 1925
Corte Pinto 2 2 2 2 2 3 3 3 3 3
Espírito Santo 3 5 5 6 7 8 7 7 8 6
Mértola 63 64 73 69 70 69 66 64 65 63
Santana 23 30 28 28 25 27 27 26 22 26
TOTAL 91 101 108 105 104 107 103 100 98 98
1930 1935
Corte Pinto 5 5 3 3 3 3 3 3 3 3
Espírito Santo 7 16 16 7 7 6 5 5 5 6
Mértola 63 61 53 48 48 48 48 48 46 44
Santana 37 38 37 30 29 29 30 29 28 30
TOTAL 112 120 109 88 87 86 86 85 82 83
1940 1945
Corte Pinto 3 3 3 3 3 2 2 2 2 2
Espírito Santo 5 5 5 5 6 5 5 5 5 3
Mértola 40 37 33 36 31 28 24 22 17 15
Santana 26 25 23 25 27 26 29 31 29 23
TOTAL 74 70 64 69 67 61 60 60 53 43
1950 1955
Corte Pinto 1 1 1 1 1 1 0 0 0 0
Espírito Santo 2 2 2 3 3 3 3 2 2 0
Mértola 12 12 11 11 10 9 6 6 6 3
Santana 18 15 15 15 16 15 12 12 9 9
TOTAL 33 30 29 30 30 28 21 20 17 12
1960 1965 1970 1973
Corte Pinto 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
Espírito Santo 0 0 0 0 1 0 0 0 0 0 0 1 1 1
Mértola 3 5 6 6 6 6 6 23 20 20 21 22 21 21
Santana 8 10 9 8 7 6 6 7 7 6 5 4 2 5
TOTAL 11 15 15 14 14 12 12 30 27 26 26 27 24 27
ANEXOS 120

ANEXO 6: NOMES – HOMENS ANEXO 7: NOMES – MULHERES

Manuel 133 Vicente 2 Maria 98 Caetana 1


António 130 Virgolino 2 Conceição 22 Candeias 1
José 106 Vivaldo 2 Ana 21 Casimira 1
Francisco 57 Alberto 1 Bárbara 19 Cesária 1
João 49 Albino 1 Antónia 17 Cláudia 1
Joaquim 22 Alexandre 1 Francisca 16 Cristiana 1
André 8 Álvaro 1 Rosa 15 Delfina 1
Domingos 8 Anacleto 1 Teresa 13 Delvina 1
Augusto 7 Aníbal 1 Joaquina 12 Emília 1
Jacinto 7 Armando 1 Rita 11 Estefânia 1
Pedro 6 Baltazar 1 Cruz 10 Etelvina 1
Sebastião 6 Barão 1 Custódia 10 Eugénia 1
Eugénio 5 Basílio 1 Isabel 9 Evangelina 1
Guilherme 5 César 1 Jesus 9 Fausta 1
Luís 5 Claudino 1 Carolina 7 Faustina 1
Mariano 5 Custódio 1 Dores 6 Felícia 1
Cipriano 4 Dionísio 1 Jacinta 6 Gertrudes 1
Eduardo 4 Elias 1 José 6 Guia 1
Inácio 4 Elisiário 1 Feliciana 5 Herculana 1
Maria 4 Emídio 1 Felicidade 5 Hermínia 1
Miguel 4 Fulgêncio 1 Helena 5 Inácia 1
Sérgio 4 Gonçalo 1 Adelaide 4 Irene 1
Alfredo 3 Gregório 1 Angélica 4 Jerónima 1
Alonso 3 Herculano 1 Augusta 4 Joana 1
Angelo 3 Hermínio 1 Mariana 4 Leonilde 1
Bartolomeu 3 Iládio 1 Mártires 4 Lucinda 1
Bento 3 Isidoro 1 Albertina 3 Ludovica 1
Caetano 3 Justino 1 Balbina 3 Ludovina 1
Carlos 3 Lavil 1 Catarina 3 Matilde 1
Daniel 3 Leonel 1 Cristina 3 Micaela 1
Feliciano 3 Leopoldo 1 Lúcia 3 Modesta 1
Fortunato 3 Ludovico 1 Vitória 3 Ocupação 1
Januário 3 Ludovino 1 Adelina 2 Olinda 1
Vitoriano 3 Lusitano 1 Amália 2 Purificação 1
Afonso 2 Marçalo 1 Domingas 2 Remédios 1
Conceição 2 Natalino 1 Ermelinda 2 Sacramento 1
Cristóvão 2 Paulino 1 Fortunata 2 Sebastiana 1
Fernando 2 Prudêncio 1 Henriqueta 2 Silvina 1
Gaspar 2 Roberto 1 Júlia 2 Umbelina 1
Jerónimo 2 Rui 1 Madalena 2 Veríssima 1
Jesus 2 Sesinando 1 Perpétua 2
Jorge 2 Severo 1 Rosalina 2
Lázaro 2 Valentim 1 Silvéria 2
Lourenço 2 Venâncio 1 Virgínia 2
Luciano 2 Virgílio 1 Adélia 1
Lúcio 2 Vital 1 Agostinha 1
Mário 2 Vítor 1 Alexandra 1
Mateus 2 Zacarias 1 Alexandrina 1
Matias 2 Ângela 1
Neves 2 Angelina 1
Nuno 2 Assunção 1
Paulo 2 Aurélia 1
Porfírio 2 Aurora 1
Sinfrónio 2 Benta 1
121 ANEXOS

ANEXO 8:

NOMES – MULHERES. ATRIBUTOS DE NOSSA SENHORA

Conceição 22
Dores 6
Mártires 4
Assunção 1
Candeias 1
Guia 1
Ocupação 1
Purificação 1
Remédios 1
38

ANEXO 9:

PESCADORES DO CONCELHO DE MÉRTOLA NOS FINAIS

DO SÉC. XX1

NOMES DE PESCADORES LOCALIDADES


António da Palma Ruivo
José Eduardo Justino Álamo
Fernando Rosa Morais Corte de Sines
Ernesto Bento Gomes Corte Gafo
José Guerreiro Mestre Corte Gafo
Álvaro Sérgio Raposo Mértola
António Manuel M. Costa Mértola
António Romano Deodato Mértola
Domingos Baltazar Mendes Mértola
Eugénio Valente da Encarnação Mértola
Francisco Pereira Bento Mértola
Jacinto Alves da Cruz Mértola
João Luciano Confeiteiro Mértola
José Manuel C. Confeiteiro Mértola
Manuel de Jesus da Encarnação Confeiteiro Mértola
Manuel Francisco Mestre Mértola
Victoriano G. Mestre Mértola
Virgolino Caetano Pereira Mértola
Francisco Palma Ribeiro Mértola, Além Rio
Francisco Ribeiro Mértola, Além Rio
João Manuel Figueira Penha de Águia
José E. T. da Encarnação Penha de Águia
José Joaquim dos Santos Pomarão
José Manuel C. dos Reis Pomarão
Sebastião dos Reis Soeiro Pomarão

1
Fonte: Capitania de Vila Real de S.
António
ANEXOS 122
123 ANEXOS

ANEXO 10:

FICHA DE INSCRIÇÃO MARÍTIMO.

Francisco Simão ou Francisco Simões, Francisco Si-


mões Júnior, afinal o seu nome, aparece nos registos da
capitania como filho de pai incógnito, mas na caderneta
militar, anterior, como filho de Francisco Simões e Ma-
ria dos Reis, seus pais com quem sempre viveu até ca-
sar. Começou de pequeno a trabalhar no rio, não foi à
escola, foi mobilizado para a Grande Guerra, combateu
nas trincheiras, onde foi afectado pelos gases e esteve
preso num campo alemão. Evadiu-se e depois de finda
a guerra, chega a Mértola, onde o julgavam morto. Tra-
balhou com o pai e mais dois irmãos, pilotando barcos
da carreira do Guadiana. Criou seis filhos. Morreu aos
65 anos com problemas pulmonares. Em vida nunca re-
cebeu nenhuma pensão.
FONTES E BIBLIOGRAFIA 124

FONTES E BIBLIOGRAFIA

FONTES CONSULTADAS

• Livros de inscrição marítima da Capitania de Vila Real de S. António: 1 a 27.

IMPRENSA PERIÓDICA E LOCAL

• Ecos do Guadiana, Mértola, 1933-1934


• O Futuro de Mértola, Mértola,1912-1915
• O Mertolense, semanário progressista, Mértola 1907 e 1908
• Vida Nova, Mértola, 1924
• A Voz do Guadiana, Mértola,1922-1926

BIBLIOGRAFIA

• ALTHUSSER, Louis - Marxismo, Ciência e Ideologia, S. Paulo: Ed. Sinal, 1967.


• ALVES, Helena - Mina de S. Domingos: génese, formação social e identidade mineira. Mértola: Campo Arqueológico, 1997.
• ALVES, Luís Fernando Delgado - “Subsídios para a História do Concelho de Mértola”, Arquivo de Beja, vol. V, série III, Agosto 1997.
• ARMAS, Duarte de - Livro das fortalezas. 2ª ed. - Lisboa: Inapa: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 1997.
• ASSOCIAÇÄO DOS ARQUITECTOS PORTUGUESES - Arquitectura popular em Portugal. 2ª ed. Lisboa: A. A. P., 1980.
• BASTIDE, Roger - Antropologia Aplicada, São Paulo: Editora Perspectiva, 1979.
• BOIÇA, Joaquim M. F.; BARROS, Maria de Fátima Rombouts - As terras, as serras, os rios: as memórias paroquiais de Mértola do ano de 1758.
Mértola: Campo Arqueológico, 1995.
• BOUVIER, Jean-Claude (dir. de ) - Tradition Orale et Identité Culturelle: Problèmes et Méthodes, Paris, C.N.R.S., 1980
• BROWN, A. R. Radchiffe; FORDE, Daryll - Sistemas políticos africanos de parentesco e casamento. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1974.
• BURGUIÈRE, André; LEVI-STRAUSS, Claude; DUBY, Georges; SANTOS, Maria da Assunçao; SILVA, Ana Santos, ed. lit. - História da fa-
mília. Lisboa: Terramar, 1996. 4 vols
• CAMPO ARQUEOLÓGICO DE MÉRTOLA - Cerâmica islâmica portuguesa: catálogo. Mértola: C.A., 1987.
• CASTRO, João Bautista – Mappa de Portugal.2ª ed. Lisboa: Officina Patriarcal de Francisco Luís Ameno, 1762
• CAVACO, Hugo- Castro Marim Quinhentista. Castro Marim, 2000.
• CHARBONNIER, Georges- Entretiens avec Lévi-Strauss. Paris : Presses Pocket, 1991.
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• POIRIER, Jean; CLAPIER-VALLADON, S.; RAYBAUT, Paul - Histórias de vida: teoria e prática. Oeiras: Celta Editora, 1995
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• RIBEIRO, Orlando - Introduções geográficas à História de Portugal: estudo crítico. Lisboa: Impr. Nac. - Casa da Moeda, 1977.
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ÍNDICES 126

ÍNDICES

GRÁFICOS E DIAGRAMAS

PAG. 14 | GRÁFICO 1 | Perfil longitudinal do Rio Guadiana.


PAG. 26 | GRÁFICO 2 | População residente segundo a idade (Mértola 1997).
PAG. 26 | GRÁFICO 3 | População residente por freguesias (concelho de Mértola 1991).
PAG. 26 | GRÁFICO 4 | População residente segundo o nível de instrução em1997 (%).
PAG. 27 | GRÁFICO 5 | Analfabetismo (Mértola 1890).
PAG. 27 | GRÁFICO 6 | Sectores de actividade (Mértola 1991).
PAG. 27 | GRÁFICO 7 | Sectores de Actividade (1890).
PAG. 28 | GRÁFICO 8 | População de facto ou presente segundo as grandes divisões profissionais (1890).
PAG. 28 | GRÁFICO 9 | Evolução da população residente (concelho de Mértola).
PAG. 52 | GRÁFICO 10 | Naturalidade da população em 1890. (fonte: censo de 1890).
PAG. 74 | GRÁFICO 11 | Marítimos do Concelho de Mértola (1893/1973).
PAG. 78 | GRÁFICO 12 | Herança de nomes e apelidos (1837/1850).
PAG. 78 | GRÁFICO 13 | Herança de nomes e apelidos (1850/1869).
PAG. 78 | GRÁFICO 14 | Herança de nomes e apelidos (1870/1889).
PAG. 79 | GRÁFICO 15 | Herança de nomes e apelidos (1890/1909).
PAG. 79 | GRÁFICO 17 | Herança de nomes e apelidos (1930/1949).
PAG. 79 | GRÁFICO 18 | Herança de nomes e apelidos (1950/1972).
PAG. 80 | GRÁFICO 19 | Apelidos (1837/1975).
PAG. 80 | GRÁFICO 20 | Apelidos (1837/1910).
PAG. 80 | GRÁFICO 21 | Apelidos (1911/1944).
PAG. 80 | GRÁFICO 22 | Apelidos (1945/1975).
PAG. 84 | GRÁFICO 23 | Ascendentes de João Manuel Confeiteiro.
PAG. 84 | GRÁFICO 24 | Descendentes de João Godinho Confeiteiro.
PAG. 86 | GRÁFICO 25 | Descendentes de José António.
PAG. 86 | GRÁFICO 26 | Alves.
PAG. 87 | GRÁFICO 27 | Descendentes de Teresa Alves e João da Cruz.
PAG. 88 | GRÁFICO 28 | Descendentes de Encarnação.
PAG. 88 | GRÁFICO 29 | Descendentes de António da Encarnação.
PAG. 89 | GRÁFICO 30 | Ascendentes de Jorge Rita.
PAG. 89 | GRÁFICO 31 | Ascendentes de Carlos Rita.
PAG. 91 | GRÁFICO 32 | Família Simões.

MAPAS

PAG. 13 | MAPA 1 | Bacias hidrográficas da P. Ibérica.


PAG. 33 | MAPA 2 | Concelho de Mértola.
PAG. 41 | MAPA 3 | Mértola.
PAG. 42 | MAPA 5 | Alcoutim e Sanlúcar.
PAG. 42 | MAPA 4 | Pomarão.
PAG. 53 | MAPA 6 | Estrangeiros presentes em 1890. Alentejo e Algarve

IMAGENS

PAG. 129 | FOTO 1 | Pulo do Lobo.


PAG. 130 | FOTO 2 | Zona do Pulo do Lobo.
PAG. 130 | FOTO 3 | Corredoura a jusante do Pulo do Lobo.
PAG. 131 | FOTO 4 | Mesa do Rei.
PAG. 131 | FOTO 5 | Caneiro no Açude da Brava.
127 ÍNDICES

PAG. 132 | FOTO 6 | Canais.


PAG. 132 | FOTO 7 | Rocha da Galé.
PAG. 133 | FOTO 8 | Carvoeiro.
PAG. 133 | FOTO 9 | Azenhas (JB).
PAG. 134 | FOTO 10 | Cheia (AS).
PAG. 135 | FOTO 11 | Porto actual.
PAG. 136 | FOTO 12 | A sul de Mértola.
PAG. 137 | FOTO 13 | Zona da Mina de S. Domingos.
PAG. 137 | FOTO 14 | Pomarão.
PAG. 138 | FOTO 15 | Biblioteca.
PAG. 138 | FOTO 16 | Alcoutim.
PAG. 139 | FOTO 17 | Salinas de Castro Marim.
PAG. 140 | FOTO 18 | Ponte internacional em Castro Marim.
PAG. 140 | FOTO 19 | Alfândega de Vila Real (pombalina).
PAG. 140 | FOTO 20 | Margem esquerda em Mértola: vestígios da antiga calçada.
PAG. 141 | FOTO 21 | Porto antigo, inícios do século XVI. Ilustração de Duarte D’Armas.
PAG. 142 | FOTO 22 | Cais de Mértola e Moagem.
PAG. 142 | FOTO 23 | Além-Rio.
PAG. 143 | FOTO 24 | Porto antigo. No rio vê-se um navio a vapor (postal antigo).
PAG. 144 | FOTO 25 | Barcos na ribeira de Oeiras (M. Santana Alho).
PAG. 144 | FOTO 26 | Barco de pesca actual.
PAG. 145 | FOTO 27 | Ponte-barca (AD).
PAG. 145 | FOTO 28 | Viagem para Vila Real (AD).
PAG. 146 | FOTO 29 | Ponte-barca (postal antigo).
PAG. 147 | FOTO 30 | Viagem para Vila Real no Vendaval (1998).
PAG. 147 | FOTO 31 | Casal de pescadores a jusante do Pomarão.
PAG. 148 | FOTO 32 | Casa de pescador. Além-Rio.
PAG. 149 | FOTO 33 | Pescador. Penha de Águia.
PAG. 149 | FOTO 34 | Horta no rio.
PAG. 150 | FOTO 35 | Francisco Simões.
PAG. 151 | FOTO 36 | Barco Alentejo III (postal antigo).
PAG. 152 | FOTO 37 | Artes.
PAG. 152 | FOTO 38 | Conto.
PAG. 153 | FOTO 39 | Tarrafa.
PAG. 153 | FOTO 40 | Artes. Interior de Armazém.
PAG. 154 | FOTO 41 | Senhora do Amparo.
PAG. 154 | FOTO 42 | Senhora das Neves. Mértola.
PAG. 155 | FOTO 43 | Senhora de Aracelis.
PAG. 155 | FOTO 44 | Senhor dos Aflitos e Matriz (desenho de Duarte d’Armas).
PAG. 156 | FOTO 45 | Igreja Metodista. Além Rio.
PAG. 156 | FOTO 46 | Antiga igreja de S. António dos pescadores. Actual cine-teatro.
PAG. 157 | FOTO 47 | Igreja Evangélica em Mértola.
PAG. 158 | FOTO 48 | Procissão do Senhor dos Passos.
PAG. 159 | FOTO 49 | Procissão do Senhor dos Passos.
PAG. 159 | FOTO 50 | Procissão do Senhor dos Passos.
PAG. 160 | FOTO 51 | Passo numa janela da Rua Larga.
ÍNDICES 128
129 IMAGENS

FOTO 1
IMAGENS 130

FOTOS 2 e 3
131 IMAGENS

FOTOS 4 e 5
IMAGENS 132

FOTOS 6 e 7
133 IMAGENS

FOTOS 8 e 9
IMAGENS 134

FOTO 10
135 IMAGENS

FOTO 11
IMAGENS 136

FOTO 12
137 IMAGENS

FOTOS 13 e 14
IMAGENS 138

FOTOS 15 e 16
139 IMAGENS

FOTOS 17 E 18
IMAGENS 140

FOTOS 19 e 20
FOTO 21 (à direita)
141 IMAGENS
IMAGENS 142

FOTOS 22 e 23
143 IMAGENS

FOTO 24
IMAGENS 144

FOTOS 25 e 26
145 IMAGENS

FOTOS 27 e 28
IMAGENS 146

FOTO 29
147 IMAGENS

FOTOS 30 e 31
IMAGENS 148

FOTO 32
149 IMAGENS

FOTOS 33 e 34
IMAGENS 150
151 IMAGENS

FOTO 35 (à esquerda)
FOTO 36
IMAGENS 152

FOTOS 37 e 38
153 IMAGENS

FOTOS 39 e 40
IMAGENS 154

FOTOS 41 e 42
FOTOS 43 e 44 (à direita)
155 IMAGENS
IMAGENS 156

FOTOS 45 e 46
157 IMAGENS

FOTO 47
IMAGENS 158
159 IMAGENS

FOTO 48 (à esquerda)
FOTOS 49 e 50
IMAGENS 160

FOTO 51

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