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SAMIZDAT

Especial
www.revistasamizdat.com

25
fevereiro
2010
ano III

ficina

ESCREVER
SAMIZDAT 25
fevereiro de 2010

Edição, Capa e Diagramação: Editorial


Henry Alfred Bugalho

Edição de Imagens: Iniciamos, com esta edição, o terceiro ano de atividades da


Volmar Camargo Junior Revista ­SAMIZDAT.
Henry Alfred Bugalho Como homenagem, nossos autores dedicaram seus textos
a este misterioso, extraordinário, porém negligenciado, ofício:
Revisão Geral a escrita.
Maria de Fátima Romani Acreditava-se que o advento da era digital decretaria a
morte da escrita, da Literatura, do livro, da imprensa, mas o
Assessoria de Imprensa que vemos é justamente o oposto; nunca antes houve tama-
Mariana Valle
nha oferta de obras, textos e escritores. Mas também nunca
antes foi tão difícil determinar o que tem qualidade.
Na pós-Modernidade, tudo é bom e ruim ao mesmo tem-
Autores
po, tudo tem seus méritos e seus defeitos. Para cada texto, há
Caio Rudá um leitor, um apreciador e um detrator.
Carlos Davissara E é esta crença, de que nossas obras um dia chegarão a
Dênis Moura quem se destinam, de que existe alguém a ler o que escre-
Giselle Natsu Sato vemos, goste ou não, que nos motiva, que nos incentiva a
Henry Alfred Bugalho prosseguir. Escrever é uma profissão de fé, não no sentido re-
Joaquim Bispo ligioso, obviamente, mas de um compromisso moral. Escrever
José Guilherme Vereza é acreditar.
Jú Blasina Completamos mais um ciclo. Sem hesitação, preparamo-
nos para o próximo.
Léo Borges
Marcia Szajnbok
Henry Alfred Bugalho
Maria de Fátima Santos
Volmar Camargo Junior

Textos de:
Alain Robbe-Grillet
Fernando Pessoa
Marguerite Duras Obra Licenciada pela Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada
a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.
Imagem da capa:
Todas as imagens publicadas são de domínio público, royalty
http://www.flickr.com/photos/
juanillooo/324199934/sizes/l/ free ou sob licença Creative Commons.
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mons, ou se enquadram na doutrina de “fair use” da Lei de
Copyright dos EUA (§107-112).
As idéias expressas são de inteira ­responsabilidade de seus
autores. A aceitação da revisão proposta depende da vontade
expressa dos colaboradores da revista.
Sumário
Por que Samizdat? 6
Henry Alfred Bugalho

AUTOR EM LÍNGUA PORTUGUESA


Super-grammaticam 8
Fernando Pessoa

MICROCONTOS
Ju Blasina 11

CONTOS
C’a Fé 12
Carlos Davissara
Pouca Sorte 14
Joaquim Bispo
Ortografia Indigesta 18
Volmar Camargo Junior

O Último Soneto 20
Ana Cristina Rodrigues
O Personagem 22
Henry Alfred Bugalho
Papoilas de Janeiro 26
Maria de Fátima Santos

As Devotas 28
José Guilherme Vereza

O Bar dos Homenzinhos 30


Léo Borges
Fragmentos: i. O Tempo 34
Giselle Natsu Sato
Segredos do Tempo 36
Marcia Szajnbok
Sempre há uma verdade... (Parte 1) 38
Maristela Scheuer Deves
TRADUÇÃO
Por um Novo Romance:
A Aplicação da Teoria 40
Alain Robbe-Grillet
Escrita e Solidão 47
Marguerite Duras

TEORIA LITERÁRIA
O Escritor como Personagem 50
Maristela Scheuer Deves
Dez anos de ofício literário 52
Henry Alfred Bugalho
Teorizando o concludo 58
Caio Rudá de Oliveira
Sobre escritores e suas drogas 60
Caio Rudá de Oliveira

RECOMENDAÇÃO DE LEITURA
O Sapateiro. A anatomia de um psicótico 64
Giselle Sato

CRÔNICA
Parindo Letras 68
Ju Blasina
Saramago em Concerto 70
Joaquim Bispo

POESIA
Metapoesias 74
Ju Blasina
Asseio 76
Volmar Camargo Junior
Palavras Novas 77
Maria de Fátima Santos
Concludo: uma fórmula poética 78
Caio Rudá

SOBRE OS AUTORES DA SAMIZDAT 80


O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada
http://www.flickr.com/photos/32912172@N00/2959583359/sizes/o/

ficina
5

www.oficinaeditora.com
Por que Samizdat?
“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico,
­distribuo e posso ser preso por causa disto”
Vladimir Bukovsky

Henry Alfred Bugalho Inclusão e Exclusão se converte em uma ditadu-


henrybugalho@hotmail.com ra como qualquer outra. É a
microfísica do poder.
Nas relações humanas,
sempre há uma dinâmica de Em reação, aqueles que
inclusão e exclusão. se acreditavam como livres-
pensadores, que não que-
O grupo dominante, pela
riam, ou não conseguiam,
própria natureza restritiva
fazer parte da máquina
do poder, costuma excluir ou
­administrativa - que esti-
ignorar tudo aquilo que não
pulava como deveria ser a
pertença a seu projeto, ou
cultura, a informação, a voz
que esteja contra seus prin-
do povo -, encontraram na
cípios.
autopublicação clandestina
Em regimes autoritários, um meio de expressão.
esta exclusão é muito eviden-
Datilografando, mimeo-
te, sob forma de perseguição,
grafando, ou simplesmente
censura, exílio. Qualquer um
manuscrevendo, tais autores
que se interponha no cami-
russos disseminavam suas
nho dos dirigentes é afastado
idéias. E ao leitor era incum-
e ostracizado.
bida a tarefa de continuar
As razões disto são muito esta cadeia, reproduzindo tais
simples de se compreender: obras e também as p ­ assando
o diferente, o dissidente é adiante. Este processo foi
perigoso, pois apresenta designado "samizdat", que
alternativas, às vezes, muito nada mais significa do que
melhores do que o estabe- "autopublicado", em oposição
lecido. Por isto, é necessário às publicações oficiais do
suprimir, esconder, banir. regime soviético.

A União Soviética não


foi muito diferente de de-
mais regimes autocráticos.
­Origina-se como uma forma
de governo humanitária,
igualitária, mas
Foto: exemplo de um samizdat. Corte- logo
sia do Gulag Museum em Perm-36.

6
E por que Samizdat? revistas, jornais - onde ele des tiragens que substituam
possa divulgar seu trabalho. o prazer de ouvir o respal-
O único aspecto que conta é do de leitores sinceros, que
A indústria cultural - e o
o prazer que a obra causa no não estão atrás de grandes
mercado literário faz parte
leitor. autores populares, que não
dela - também realiza um
perseguem ansiosos os 10
processo de exclusão, base- Enquanto que este é um mais vendidos.
ado no que se julga não ter trabalho difícil, por outro
valor mercadológico. Inex- lado, concede ao criador uma Os autores que compõem
plicavelmente, estabeleceu-se liberdade e uma autonomia este projeto não fazem parte
que contos, poemas, autores total: ele é dono de sua pala- de nenhum ­movimento
desconhecidos não podem vra, é o responsável pelo que literário organizado, não
ser comercializados, que não diz, o culpado por seus erros, são modernistas, pós-
vale a pena investir neles, é quem recebe os louros por ­modernistas, vanguardistas
pois os gastos seriam maio- seus acertos. ou q­ ualquer outra definição
res do que o lucro. que vise rotular e definir a
E, com a internet, os au- orientação dum grupo. São
A indústria deseja o pro- tores possuem acesso direto apenas escritores ­interessados
duto pronto e com consumi- e imediato a seus leitores. A em trocar experiências e
dores. Não basta qualidade, repercussão do que escreve sofisticarem suas escritas. A
não basta competência; se (quando há) surge em ques- qualidade deles não é uma
houver quem compre, mes- tão de minutos. orientação de estilo, mas sim
mo o lixo possui prioridades
a heterogeneidade.
na hora de ser absorvido A serem obrigados a
pelo mercado. burlar a indústria cultural, Enfim, “Samizdat” porque a
os autores conquistaram algo internet é um meio de auto-
E a autopublicação, como que jamais conseguiriam de publicação, mas “Samizdat”
em qualquer regime exclu- outro modo, o contato qua- porque também é um modo
dente, torna-se a via para se pessoal com os leitores, de contornar um processo
produtores culturais atingi- od­ iálogo capaz de tornar a de exclusão e de atingir o
rem o público. obra melhor, a rede de conta- ­objetivo fundamental da
tos que, se não é tão influen- ­escrita: ser lido por alguém.
Este é um processo soli-
te quanto a da ­grande mídia,
tário e gradativo. O autor
faz do leitor um colaborador,
precisa conquistar leitor a
um co-autor da obra que lê.
leitor. Não há grandes apa-
Não há sucesso, não há gran-
ratos midiáticos - como TV,

SAMIZDAT é uma revista eletrônica


­ ensal, escrita, editada e publicada pelos
m
­integrantes da Oficina de Escritores e Teoria
Literária. Diariamente são incluídos novos
textos de autores consagrados e de jovens
­escritores amadores, entusiastas e profis-
sionais. Contos, crônicas, poemas, resenhas
literárias e muito mais.

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Autor em Língua Portuguesa

Super-grammaticam
(excerto de “O Livro do Desassossego)

Fernando Pessoa

8 SAMIZDAT fevereiro de 2010


“Meditei hoje, num inter- Outro ainda, igualmente ‘ser’ senão convertendo-o
valo de sentir, na forma consciente dos deveres subitamente em transiti-
de prosa de que uso. Em da expressão, mas mais vo? E então, triunfalmen-
verdade, como escrevo? animado do afecto pela te, antigramaticalmente
Tive, como muitos têm concisão, que é a luxúria supremo, direi ‘Sou-me’.
tido, a vontade pervertida do pensamento, dirá dela, Terei dito uma filosofia
de querer ter um sistema ‘Aquele rapaz”. Eu direi, em duas palavras peque-
e uma norma. É certo que ‘Aquela rapaz’, violando nas. Que preferível não
escrevi antes da norma e a mais elementar das é isto a não dizer nada
do sistema; nisso, porém, regras da gramática, que em quarenta frases? Que
não sou diferente dos manda que haja concor- mais de pode exigir da
outros. dância de género, como filosofia e da dicção?
Analisando-me à tarde, de número, entre a voz Obedeça à gramática
descubro que o meu sis- substantiva e a adjectiva. quem não sabe pensar o
tema de estilo assenta em E terei dito bem: terei que sente. Sirva-se dela
dois princípios, e imedia- falado em absoluto, fo- quem sabe mandar nas
tamente, e à boa maneira tograficamente, fora da expressões. Conta-se
dos bons clássicos, erijo chateza, da norma, e da de Sigismundo, Rei de
esses dois princípios em quotidianidade. Não terei Roma, que tendo, num
fundamentos gerais de falado: terei dito. discurso público, cometi-
todo estilo: dizer o que se A gramática, definindo do um erro de gramática,
sente exactamente como o uso, faz divisões legíti- respondeu a quem dele
se sente - claramente, se mas e falsas. Divide, por lhe falou, ‘Sou Rei de
é claro; obscuramente, se exemplo, os verbos em Roma, e acima da gra-
é obscuro; confusamente, transitivos e intransiti- mática’. E a história narra
se é confuso -; compreen- vos: porém, o homem de que ficou sendo conhe-
der que a gramática é um saber dizer tem muitas cido como Sigismundo
instrumento, e não uma vezes que converter um ‘super-grammaticam’.
lei. verbo transitivo em in- Maravilhoso símbolo!
Suponhamos que vejo transitivo para fotografar Cada homem que saber-
diante de nós uma rapa- o que sente, e não para, dizer o que diz é, em seu
como o comum dos ani- modo, Rei de Roma. O
http://www.sigismundus.hu/guide/pictures/2_7-full.jpg

riga de modos mascu-


linos. Um ente humano mais homens, o ver às es- título não é mal, e a alma
vulgar dirá dela, ‘Aquela curas. Se quiser dizer que é ‘ser-se’.”
rapariga parece um ra- existo, direi ‘Sou’. Se qui-
paz’. Um outro ente vul- ser dizer que existo como
PESSOA, Fernando. Li-
gar, já mais próximo da alma separada, direi ‘Sou
vro do Desassossego.
consciência de que falar eu’. Mas se quiser dizer
São Paulo: Cia das Letras,
é dizer, dirá dela, ‘Aque- que existo como entidade
2002. p. 114.
la rapariga é um rapaz’. que a si mesma se dirige
e forma, que exerce jun-
À esq.: Sigismundo de Luxembur- to de si mesma a função
go, imperador de Roma e acima da
Gramática. divina de se criar, como
hei-de emprego o ver
Retrato por Albrecht Dürer, 1514.

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Fernando Pessoa nasceu
em Lisboa em 1888. Após
ter vivido boa parte de sua
infância na África do Sul,
Fernando Pessoa retornou a
Portugal em 1905, ingressou
na Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, mas
desistiu antes de completar
um ano. Com a herança de
sua avó, fundou uma tipogra-
fia em 1907, que mal chegou
a funcionar. No ano seguinte,
assumiu um cargo como
tradutor comercial, profissão
que exerceria por toda sua
vida.
Apesar duma fervilhante
vida literária desde cedo, o
“dia triunfal”, como o próprio
Pessoa o denominava, foi
o dia 8 de março de 1914,
quando ele criou o heterôni-
mo Alberto Caeiro e, duma
só vez escreveu a obra “O
Guardador de Rebanhos”.
Nesta mesma data, surgiram tinham por Alberto Caeiro, durante sua vida, já era
outros dois heterônimos fun- cada um deles desenvolveria reconhecido como o maior
damentais na carreira poé- um estilo diverso. Dos três, expoente da literatura portu-
tica de Pessoa, Ricardo Reis Álvaro de Campos é o poeta guesa no século XX. Após sua
e Álvaro de Campos, ambos cujo estilo mais se assemelha morte, descobriu-se em seu
discípulos direto da poesia de ao de Fernando Pessoa, aliás, quarto um baú onde Pessoa
Alberto Caeiro. durante sua vida, Fernando guardava seu imenso espólio
“(...) acerquei-me de uma Pessoa por várias vezes se literário, com mais de 18 mil
cómoda alta, e tomando um apresentava - brincadeira ou obras, e que o configuraria
papel, comecei a escrever, não - como Álvaro de Cam- como um dos mais importan-
de pé, como escrevo sempre pos para seus conhecidos. tes poetas portugueses - ao
que posso. E escrevi trinta e Nos manuscritos do autor, lado de Camões.
tantos poemas a fio, numa es- há vários textos de autoria
pécie de êxtase cuja natureza duvidosa, ora assinados pelo
Para saber mais
não conseguirei definir. Foi o próprio Pessoa, ora como
Álvaro de Campos. http://omj.no.sapo.pt/bio2.
dia triunfal da minha vida
htm
e nunca poderei ter outro Fernando Pessoa faleceu
assim.” em 1935 e, apesar de só ter http://pt.wikipedia.org/wiki/
publicado um único livro Fernando_Pessoa
Apesar da reverência que
Pessoa e os heterônimos e alguns textos em revistas

10 SAMIZDAT fevereiro de 2010


Microcontos

O que dizer...
Ju Blasina

http://www.flickr.com/photos/fat_tony/1451128058/sizes/l/
- Do Escrever - Do Sujeito - Da Dormência

O jeito é fazer e torcer, Achou que aquele eu fosse Na assembléia do corpo,


até que gostem, ele. Quem mandou ignorar os membros formigam. Ain-
Benveniste. da ontem, encontrei meu pé
ou fiquem roxos. num pote de açúcar!
O que vier primeiro.

- Do Escrito *Nota: os microcontos


- Da Abstinência acima, participam da série
O poeta já foi há muito, "OQDZ", de Ju Blasina.
os leitores transitam, mas ele Monge tibetano abstém-se
fica... No achados e perdidos da opressão deixando de ser.
das décadas, gêneros e supor-
tes, ser escrito é eterno.

11
Contos

Carlos Davissara

C’A FÉ
12 SAMIZDAT fevereiro de 2010
O lugar onde
Estou aqui, só. Como sem- brincar, nenhuma preocupa- a boa Literatura
pre, depois de um dia de cão, ção. Saudade... Pronto. Agora,
lavando, varrendo e esfregando, vamos experimentar. Argh, é fabricada
lá vou eu pra cozinha, fazer café horrível! Como que esse homem

http://guisalla.files.wordpress.com/2008/09/machado1.jpg
pro maridinho que chega já já pode gostar disto? Credo, pare-
do serviço. Tadinho do meu ho- ce óleo queimado. Mas, o aroma
mem, sofre tanto na mão do Seu ainda é gostoso. Não sei por
Nogueira. Ô, velho ruim! Não que esse cheiro me lembra o Gil
deve dar conta da mulher e fica quando era mais novo. Naquela
descontando nos empregados. época, as coisas eram difíceis,
Um pau-murcho frustrado, isso mas ele nunca me negava um
sim! Tenho tanta dó do meu Gil. sorriso.
Fico triste só quando ele che- Parece que chegou. É, é ele
ga nervoso. Toma o cafezinho sim. Conheço o barulho do
sem nem me olhar na cara, nem portão. Ai, essa batida da porta
um sorriso, um “brigado meu já diz tudo. O traste do Seu
amor”. Tudo bem que, às vezes, Nogueira deve ter broxado com
até me bate, mas quando é

http://www.flickr.com/photos/ooocha/2630360492/sizes/l/
a mulher de novo. E eu é que
assim, já sei que o Seu Nogueira sofro aqui! Gil, seu... Tá trocan-
aprontou alguma. E outra: nem do de roupa, já já vem tomar o
dói tanto. Por isso, faço o café cafezinho que a mulherzinha
com gosto. E o Gil adora. fez. Deixa eu ir pondo no copi-
Nossa, a água já tá fervendo! nho de vidro porque ele só toma
Fogão antigo é outra coisa. Eu assim. Uma vez que usei xícara,
não gosto de café assim, muito quase quebrou na minha cara.
forte, mas o Gil só toma desse Nossa, um pingo bem dentro do
jeito. Três colheres cheias pra copo! É do meu rosto. Por que
pouca água. E bem doce. Parece eu tô chorando? Pára, mulher
uma formiga, o meu homem. idiota, o café vai esfriar. Antes
Lindo... Olha como esse filtro de levar pra ele, só mais uma
segura o pó! Bom era coador coisa, um novo ingrediente com
de pano. Mas, o Gil fica com muito amor e carinho. Disse-
bobeira de que é nojento e tira o ram que uma gotinha já era o
http://www.flickr.com/photos/bitzcelt/399136360/sizes/l/

gosto e não sei que mais. Tomei suficiente. Vou por um pouco
café assim a vida toda e tô vivi- a mais pra garantir. Prontinho,
nha até hoje. Besteira, viu. Tem hoje é todo especial... Oi, meu
hora que fico louca com essas amor, seu café tá pronto.
coisas.
Delícia! Adoro cheiro de café
fresquinho. Lembro da minha
terra, quando eu era menina.
Aquilo que era felicidade. Só
ficina
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13
Contos

Pouca Sorte
Joaquim Bispo

14 SAMIZDAT fevereiro de 2010


Há dias em que um homem tudo cozinhado. Uma vez experi- falar aí com um director, disse-
não devia sair de casa; o proble- mentei, mas disseram que eu não lhe que eras um gajo porreiro,
ma é que só o sabe tarde demais, tinha habilitações. a ver se te arranjava qualquer
como bem se lamenta o meu – E tu, tens-te valorizado? coisa para começar, mas que
vizinho António, que me contou Voltaste a estudar? fosse melhor que responsável da
o que se segue: fotocopiadora. Ele disse que es-
– Tenho lá dinheiro para isso!
tão a precisar de um operador de
António começava a ficar sem folhas de cálculo, só para meter
Foi aos Correios levantar ideias para melhorar a vida do dados, para já. Sabes Access?
uma encomenda e deu de caras amigo.
com um antigo colega de liceu, – Não, nunca liguei a compu-
– Tens filhos, casaste? tadores.
a quem na altura toda a gente
chamava «Fosquinhas». Feitas as – Sim, casei, mas não correu – Não faz mal, eu dou-te uma
saudações e as manifestações de bem. Seis meses depois de casar- ensaboadela. É muito intuitivo.
regozijo adequadas a tão longo mos, ela voltou para casa da mãe Não podes meter férias lá nesse
desencontro, António fez a per- dizendo que «preferia não voltar emprego para vires uma semana
gunta que o perdeu: a ver homem algum, que viver à experiência?
com um falhado destes». Diz-me
– Então, vai tudo bem conti-
se isto não magoa! Mas ela tem
go? Enquanto Gustavo não conse-
razão, eu não presto – choramin-
Gustavo, o amigo, desfor- gou Gustavo. guia um tempo, foi aprendendo
rando-se de um longo jejum de uns rudimentos de Access no
António sentiu-se desconfor-
ouvintes complacentes, sorriu computador do amigo. Quando
tável com o amigo a lacrimejar
tristemente, antes de desenrolar ia lá a casa, tecia sempre comen-
à sua frente. Olhou em volta a
o seu manto de frustrações e tários elogiosos às pinturas de
medir o impacto nos presentes.
infelicidade: António que este tinha espalha-
– Olha, Gustavo, anda daí das pela casa.
– Sabes lá?! Não tenho sorte
apanhar ar. Claro que tu tens
nenhuma. A minha vida é um – Tu és genial! Eu também
valor, toda a gente tem.
vale de lágrimas. Tudo me corre gosto de pintura mas não tenho
mal. – Não sei, António. Os outros jeito nenhum.
passam-me sempre à frente. Nas-
– Não me digas! Não tens tra- – Já experimentaste alguma
ci para sofrer.
balho? – preocupou-se António. vez?
– Nada disso. Só precisas é
– Tenho, mas é só para so- – Sim, uma vez comprei umas
de um empurrãozinho. Amanhã
breviver. Sou o responsável pela aguarelas no supermercado e
http://www.flickr.com/photos/generated/409460731/sizes/l/

podes ir à baixa, aí às dez horas?


fotocopiadora da minha empresa. estive a pintar, mas saiu uma
Vai ter comigo que eu vou ver o
– Mas isso deve dar um borrada…
que se pode arranjar.
ordenado muito baixo! Não tens – Mas, se gostas, porque é
tentado progredir? que não vais para um desses cur-
No dia seguinte, Gustavo sos de pintura, que até as juntas
– Aquilo lá é um covil de
apareceu às dez e meia. de freguesia têm?
mafiosos. Fazem o joguinho só
entre os amigalhaços. – Eh, pá, desculpa. Não estou – Isso é um dom. Ou se nasce
habituado aos transportes cá para com ele ou não.
– Mas, tens concorrido? Ou
baixo.
nem concursos fazem? – Olha que eu melhorei bas-
– Tudo bem. Olha, estive a tante nesses “ateliers”. Dizem
– Concorrer? Para quê? Está

www.revistasamizdat.com 15
que uma obra é muito mais trans- – Eu só queria ajudar! – arre-
piração que inspiração. O jeito pendeu-se António.
melhora com a prática.
– Ná, não é para mim. Eu es- Uns tempos depois, Gustavo
crevo é uns contos. Já tenho uns chegou a fazer a tal experiên-
sete ou oito. Estão lá arrumados cia na empresa onde António
numa gaveta. trabalhava, mas não passou de
– A sério? Gostava de ver uma semana. O director, de mãos
isso. na cabeça, veio ter com António,
– Não, não! Não estão grande queixando-se que o amigo ficava
coisa. Não tenho coragem de os parado a olhar para o ecrã, que
mostrar a ninguém. São só para introduzia dados trocados, que
mim. não tinha apetência por conhecer
novas funcionalidades do pro-
– Se quiseres publicar, tens
grama. Pediu desculpa, mas que
que os mostrar a alguém…
assim Gustavo não podia ficar.
– ironizou António. – E escre-
Quando António comunicou a
ver muitos mais. Os escritores
decisão ao amigo, este mostrou-
conhecidos dizem que escrevem
se muito abatido:
todos os dias.
– Comigo, corre sempre tudo
– Gostava de ser um escritor
mal. Eu não te disse que não
famoso, mas não tenho muita
tenho sorte nenhuma? Felizmen-
pachorra para escrever. E, mes-
te, posso voltar para o mesmo
mo quando estou entusiasmado,
trabalho com a minha fotocopia-
bloqueio, por não saber muito
dora, que essa conheço eu bem.
bem como hei de escrever.
Só que o meu chefe soube desta
– Mas, se achas que gostas escapadela e cortou-me as horas
de escrever, porque é que não extraordinárias. Já viste a minha
investes nessa área? Há muitos pouca sorte?!
livros práticos, há “workshops”,
– Eu só queria ajudar! –
há clubes de leitura. E, há as fa-
desculpou-se António com ar
culdades. Não fazem escritores,
pesaroso, mas por dentro ria
mas fornecem ferramentas muito
impiedosamente.
importantes.
– Tirar um curso? Estás
parvo! Não tenho dinheiro para
isso, nem estou para passar anos
a polir os bancos da universi-
dade só para escrever. Quando
quero, escrevo, mesmo que não
saia muito bem. Acho que é uma
questão de sensibilidade, mais
que de técnicas ou conhecimen-
tos.

16 SAMIZDAT fevereiro de 2010


Ele tinha
nome dediante
“O Cantode
da si sua
lado visão ao concertista.
vampiresco, noturno,
aventureiro – enfim, o meu
chão
diante.a partitura do final
Sereia
SAMIZDATde Bach”, já que a
— Giulia Aquela mesma figura ca- de uma recente compo-
a mais difícil das missões:
Moon é, segundo fontes eu que passava as noites
bela melodia sempre se davérica, que levara tan- sição
SAMIZDATsua – a—primeira
Com tan-a

ficina
seguras (rsrs) um nome teclando com amigos so-
mostrava como um fatal tos a sucumbir,
turnos e escrevendo apontava-
contos tos autores,
lembrar quenacionais
estava eme
artístico. Como é o seu
cumprir a vontade de Deus
enome
irresistível convite ao
de batismo, e por
lhe seus
cruéis na terríveis olhos
Tinta Rubra. estrangeiros,
harmonia comabordando
a música
o vampirismo, é possível
além-túmulo.
que a opção pela adoção ausentes. E como todos os inacabada de Bach. Ter-
fugir de certos clichês
deQuase
um pseudônimo? Você
um ano após o outros,
SAMIZDAT também— OsMozart
vampi- minando,
do gênero,viu ou que a perna
ao fazê-lo
publica textos como “você paralisou-se.
ros são um dos Junto à ima-
temas
www.oficinaeditora.com
que, já estava olivre.
corre-se riscoCorreu
de desca-o
início das mortes, passava
mesma”, diferentes dos de tempos em sentiu
tempos,o racterizar o tema?
pela região umcomo
viajante gem macabra, mais rápido que pôde,
textos escritos Giu- voltam a ser moda. A que
austríaco,
lia Moon? excepcional cheiro da putrefação. As sem
GIULIA olhar paranão
— Bem, trás.existe
O
você atribui este fascínio

http://www.flickr.com/photos/erzs/1357413280/sizes/o/
náuseas dominaram-no, uma lei que diga
som de sua composição que tais
estudante
GIULIA — de música,
O meu nome que temos por estas cria- e tais características são
real é SueliWolfgang
chamado Tsumori. “Giu-Ama- o que o fez libertar-se da servia de trilha sonora
turas? obrigatórias para um perso-
lia Moon”
deus é umQuando
Mozart. nickname paralisia, caindo
GIULIA — Acho que as de joe- para
nagema vampiro.
fuga, enquanto
Acho que
que adotei quando entrei lhos a largos
pessoas gostamvômitos. Em ele
de vampiros pensava
depende como,
do bom até de
senso o
soube da maldição, não
na Tinta Rubra. Ao in- porquea são, em primeiro cada autor. aquela
Um bom senso
se meio engasgos, tosses e momento, música
vésalarmou, disse
de escolher, comoapenas
os lugar, vilões com um bom que o faça reconhecer que,
que gostaria de
outros, um nome romenoouvir o ânsias, ouviu a frase mor- nunca havia lhe parecido
layout. São parecidos com sem algumas características
vampiresco
tal concertocom títulose de
fúnebre de tal: “Termine a música”. tão viva e tão mórbida.
os seres humanos, têm as básicas, o seu personagem
nobreza como “condessa”
conhecer o seu autor. Foi Confuso,
vantagens dadesnorte-
juventude Prometeu não mais
não é um vampiro, mastocá-
e “lady”, reuni dois nomes eterna, imortalidade, la.
alertado de que a história
curtos que tivessem algum
ado, Mozart tentou dons
se alguma outra criatura. Os
psíquicos, força física. É vampiros do meu livro
era
tipo verdadeira,
de significado de para
que as levantar apoiando-se No dia seguinte, o
um monstro que tem um Kaori são os vampiros clás-
pessoas
mim. Eu já não queriam
sempre gostei do no órgão,
arsenal de que
armas sua mão
variado: jovem Mozart já bebem
sicos: predadores, não se
mais estudar música,soava
nome “Giulia”, porque e atravessou
a força, o poder como se nadaa
psíquico, encontrava
sangue (e só pela cidade.
sangue), não
sensual, gracioso e fácil de sedução, a esperteza. Pode andamum a luz do dia,pelo
têm
ele poderia ser o próxi- ali estivesse. Caiu sobre “Mais levado
ser pronunciado. E “Moon”,
mo,
porquee osou
diaumafatalapaixo-
estava o vômito, começando a ou
agir com a “mão pesada” Canto da Sereia de Bach”,de
muita força e capacidade
com sutileza, dependendo se regenerar de ferimentos.
se
nadaaproximando...
pela lua, adoroNada ficar recobrar a razão e ten- diziam. Contudo, soube-
da situação. Mas também Mas já escrevi contos em
devaneando
disso sob uma lua
o espantou. tando
pode ser afastar-se
sentimental, daquele
frágil, se
quenaoshospedaria
vampiros são que ele
seres
cheia ou ler histórias que prenúncio
enfim, pode da
ter morte.
todas as fra- havia partido durante
microscópicos, por exem- a
Dia vinte
envolvam e oito,
noites “Toca-
de luar – quezas
De da mente
bruços sobrehumana,
a terra, plo. Os clichês
madrugada, ruins
são são
e salvo,
ta e Fuga
além em Ré
de achar Menor”,
a grafia de pois já foram humanos um apenas aqueles que são mal
tudo
“moon” como
muitohaviam dito,os sentiu
legal, com algo prendendo-o
dia. Para o autor, é um per-
após o sinistro concerto.
trabalhados pelo autor.
e“o”s
lá lado a lado,
estava lembrando
Mozart pelo
den-Bugalho
sonagempé. Não
muitoteve cora-
estimulante, No cemitério, ao invés do
Henry Alfred
dois olhos arregalados de
tro do cemitério. Com os gem http://www.lostseed.com/extras/free-graphics/images/jesus-pictures/jesus-crucified.jpg
e issodefazolhar
com que parao ver o
produ- esperado músico morto,

O Rei dos
espanto. Quando lancei o SAMIZDAT — Muitos
olhos fechados, deixava-se que
to daera. E novamente
criação a
tenha grandes foi encontrada apenas
primeiro livro, não havia chances de suplicou:
ficar bom.“Ter-E, autores da nova geração
extasiar
razão para com as compo-
assinar de outra
voz suave uma inscrição com
encantaram-se na terra,
os
para o leitor, é aquele vilão
forma, já
sições deque a maioria
Johann Sebas-dos mine a música”. Fazendo parecida
vampiros com o trecho
por causa dos de

Judeus
(ou vilã) bonitão, sacana
meusBach,
tian leitores
numme estado
conhe- uma desesperada
e malvado que adoramosoração jogos departitura.
alguma RPG, especial-
Desde
cia como “Giulia Moon”. E mental, tateou
odiar. Vilões o solo
assim até
sempre mente “Vampiro: a Más-
então, não se noticiou
de euforia sobrenatural. cara” (publicado no Brasil
assim ficou. Nunca publi- fizeram sucesso,
Subitamente, o som encontrar uma pois pedraadora- mais vítimas do “Canto
quei nada como Sueli,se
pois mos esses contrastes: beleza pela Devir). Você perten-
extinguiu. O jovem
Giulia continua sendo,des-
pelo pontiaguda. Com ela, da
ce aSereia de Bach”.
este grupo ou seu
com maldade, delicadeza
menos para
pertou mim, oemeu
do transe dirigiu começou a desenhar no
com crueldade, e assim por interesse é anterior? Qual

do www.revistasamizdat.com 17
w
gr nl
át
oa
is d
Contos

Ortografia indigesta
Volmar Camargo Junior

18 SAMIZDAT fevereiro de 2010


Outra do Seu Ernesto. que eu comi tava estraga-
Esses tempos, dizem da...
que andava doido de von- — Ô, paizinho... o que
tade de comer doces, a foi que o senhor apron-
despeito das recomenda- tou dessa vez? Cadê? O
ções da filha, Marta, e do que é que o senhor co-
médico, Dr. Aristeu. meu?
Em sua ida mensal ao — Ah, eu queria comer
supermercado, Seu Ernes- um doce! Tava louco por
to procurou na seção de um docinho... aí eu com-
enlatados a menor emba- prei esse — e empurrou
lagem de doces. Encon- com o pé uma lata, meio
trou uma perfeita, que, se aberta, com uma colher
ficasse escondida entre as de café no meio de uma
caixas de remédios, não pasta indefinível com
seria encontrada nem na cheiro de peixe.
mais cuidadosa das fre- — Isso aqui não é doce,
qüentes “inspeções sanitá- pai. É peixe enlatado! O
rias” da filha. E, para seu que o senhor pensou que
inteiro deleite, pelo nome fosse?
estampado no rótulo,
— Mas tá escrito pes-
tratava-se do doce feito
cada aí em cima, não tá?
de sua fruta preferida.
Não tem goiabada, figada,
Marta, no mesmo dia, marmelada? Achei que
deu uma passada na casa pescada fosse doce de
paterna depois sair do pesco...
trabalho. Encontrou o
velho, de gatas, vomitando
alguma coisa meio rosá-
cea, meio prateada.
— Minha Nossa, pai!
– disse Marta, erguendo
o velho do chão, já lim-
pando os cantos de sua
boca do ancião com um
lencinho.
— Ai... ai...
— O que houve, meu-
deus-do-céu?
— Acho que a porcaria

http://www.flickr.com/photos/weaselmcfee/2678739541/sizes/l/

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Contos

O último soneto
Ana Cristina Rodrigues

20 SAMIZDAT fevereiro de 2010


(Publicado na coletânea fazer assim, de forma tão suspiro sentido, entregou
AnaCrônicas) óbvia. a alma, para finalmente se
Sequer sabia seu nome. entregar ao seu amor.

Escreveria um soneto. Não tinha idéia de onde Riu, até perder o fôlego.
Não apenas mais um dos morava, ou o que fazia. Ela Começou a tossir, aquela
muitos, mas “o” soneto. não sonhava que ele, pobre tosse doentia que o per-
Então ela entenderia. Sim, infeliz, existisse. Mas não seguia há anos. Sentou-se
naquela derradeira de- precisava saber. Era a sua na cadeira e entregou-se
monstração de sua arte musa, o seu amor. Da ima- aos espasmos dos pulmões
finalmente revelaria seu gem, perfeita, limpa, pura, doentes. O velho gosto de
coração. Olhou a garrafa de sem sequer a mácula do ferro subiu a sua boca,
vinho, largada pela metade conhecimento invasivo, ele deixando um travo amargo.
em cima da mesa. Depois tiraria a inspiração para o Com dificuldade, levantou
de terminar o soneto, usa- soneto perfeito. Infinitamen- e buscou um lenço para
ria aquele mesmo líquido, te superior àqueles versi- limpar os lábios. Quando o
escuro e cor de sangue, e nhos medíocres que publi- tirou da boca, estava man-
acabaria com tudo. Era só cava em revistas literárias, e chado de sangue. Outro
misturar algumas gotas de que lhe davam o dinheiro, acesso de tosse o deixou
um veneno, de preferência aquele sujo capital necessá- ofegante. A dor tomou seu
o mais raro e exótico pos- rio para viver. corpo.
sível para ter um fim digno Levantou-se e percor- Abriu a pequena caixa de
do seu último soneto. reu o quarto imundo até a remédios. Pegou a dose de
Porque este seria magis- janela. Na noite fria, o luar láudano que tiraria a dor.
tral. Sua obra-prima, que o transparecia sereno, lem- Mas um terceiro e mais
tornaria finalmente reco- brando a brancura da pele brutal acesso de tosse fez o
nhecido. E que faria com dela. Sim, escreveria um so- medicamento cair no chão.
que ela o amasse. Há quan- neto, o mais belo de todos. Ajoelhou-se, ainda tossindo.
to tempo a observava em Morreria, por suas próprias A vista ficou turva, sentia
silêncio, enquanto passava mãos. Assim se vingaria de frio. O desespero tomou
pela rua, sempre acompa- todos os que o humilharam conta de si.
nhada por sua dama de e também dela, que passava Não podia morrer agora,
companhia. Tinha cabelos por sua vida como se tives- sem escrever seu último
de ébano e pele de alabas- se esse direito. soneto.
http://www.flickr.com/photos/xo-mox/3306825997/sizes/l/

tro. Jamais conseguira ver o Entrou em um delírio Enquanto visualizava a


rosto, porém imaginava fei- febril. Imaginou-a de luto, sua musa, ele veio à sua
ções delicadas, olhos como chorando desconsolada mente. Completo. E ele viu
o mar velados pelas cor- sobre seu túmulo. Em suas que era realmente genial.
tinas de veludo que eram mãos, uma cópia do sone- Mas já era tarde para o
seus longos cílios. to, suja e amassada, man- derradeiro soneto.
Talvez pudesse começar chada de lágrimas. Viu-a
o soneto assim. definhando de tristeza pelo
amor que tivera sem saber.
Pensou um pouco. De-
E no auge da alucinação, es-
cidiu que seria melhor não
tava lá quando ela, em um

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Contos

O Personagem
Henry Alfred Bugalho

22 SAMIZDAT fevereiro de 2010


O personagem aparece Concebo cenas, plane- despencar montanha
por entre brumas no fun- jo enredos, tento prever abaixo, arrancando ár-
do da memória. É uma como ele se comportará. vores e soterrando tudo,
mescla de muitas pesso- O que ele fará nesta situ- poderá se voltar contra
as, algumas que conheci, ação? Como agirá? Apai- mim, lançando dúvidas e
outras que vi em algum xonar-se-á pela mocinha? angústias, recordando-me
filme ou em livro, ou de Derrotará seu inimigo? dos dias em que eu ainda
mesclas de mesclas de Mas dele só recebo um não sabia o que pretendia
várias outras pessoas das sorriso tímido. Também fazer da vida, nem se as
quais já me esqueci. não sabe a resposta. Tem minhas palavras tinham
Não tem rosto, raras tantas dúvidas quanto eu, algum valor, se mereciam
vezes sei quais são suas vazio de vontade e moti- ser lidas por alguém.
feições. Não me importa, vação, um títere sem vida A decisão é tomada:
deixe que o leitor preen- dependurado cabisbaixo luto contra o mundo
cha esta lacuna. em fios. Aguarda meus ou contra mim mesmo;
Ele permanece em si- dedos para manipulá-lo, empreender esta guerra
lêncio, enquanto eu o fito insuflá-lo de ânimo, pô-lo em duas frentes não é
demoradamente. Pondero em movimento. possível — este havia sido
sobre ele naqueles ins- Então chega o dia que o equívoco e prepotência
tantes inquietos antes de tão ansiosos aguardáva- de Napoleão e Hitler, su-
adormecer, ou dentro do mos. Sento-me ao com- perestimar suas forças.
metrô quando nada nos putador e cuido demo- A decisão é tomada:
resta a fazer senão medi- radamente a página em deflagro o turbilhão e me
tar, ou caminhando pelas branco. liberto. Uma frase somen-
ruas ao meu destino. A página em branco, te basta, e tudo o mais
Às vezes, ele surge a grande adversária do decorre por si.
diante de mim em mo- escritor. E os dias e meses pla-
mentos inusitados, ao Sardonicamente, ela me nejando, concebendo,
dispersar-me da leitura desafia, zomba de mim e refletindo são postos
de um trecho enfadonho do personagem. abaixo. Assim que o pri-
de Soljenítsin ou Beckett, meiro esforço é realizado,
durante o banho ensabo- — Jamais conseguirá! — o personagem mostra
ando o corpo, ou durante ela brada e, vez ou outra, suas garras e assume o
os intervalos comerciais ela me convence. controle. A criatura se
da novela. Mas eu permi- Escrevo qualquer frase, volta contra o criador. A
to tais intromissões com qualquer uma, mesmo marionete não era uma
a mesma tolerância que que tenha de alterá-la,
http://www.flickr.com/photos/oo2/4240491237/sizes/l/

marionete porcaria ne-


recebemos a visita ines- apagá-la, mesmo que seja nhuma; sua inação era
perada de um caro ami- ridícula, vazia, um clichê. fingimento, apenas um
go. Deixo que ele apareça Pois uma frase qualquer disfarce para me enganar,
e sente-se ao meu lado. basta para calar, para atrair-me para sua rede e
Aguardo que ele me diga macular a inquietante capturar-me.
a que veio, mas ele insiste brancura da página, para Daquele instante até
no silêncio. pôr em marcha tudo o fim, o personagem, o
Ele não está pronto, aquilo que fervilha den- pobre “títere”, ata-me em
uma criatura incompleta. tro de mim, para libertar fios e controla meus mo-
a avalancha que, se não vimentos, enreda-me com

www.revistasamizdat.com 23
a própria trama que eu Mas esta submissão Aos poucos, o persona-
pretendia dominar. nem sempre é pacífica. gem começa a se despe-
Dizem que, quando Somos falhos, meros hu- dir. Se conviveu conosco
Robert E. Howard criou manos, cheios de orgulho por horas, dias ou anos,
o personagem Conan, o e ambições. Pouco nos tanto faz, pois, concluída
autor sentia que o bárba- agrada sermos pisotea- a obra, ele viverá para
ro cimério ficava postado dos por nossa cria. Todos sempre. Enquanto existir
ao seu lado, machado os dias, a sociedade, os um leitor no mundo, o
em punho, obrigando-o a governos, os patrões, os personagem estará pron-
escrever, aterrorizando-o poderosos nos oprimem, to para ressurgir e contar
caso fracassasse. arremessam-nos à lama sua história.
da insignificância e sub- Retornamos, enfim, ao
Creio que todo escritor serviência. Acreditamos
encontra-se, pelo menos vazio, ao mundo cotidia-
que, naqueles breves ins- no, à louça suja para la-
uma vez, nesta posição tantes de criação literária,
de prostração. Quanto var na pia, ao filme mais
de elaboração artística, tarde na TV, ao trânsito
mais isto ocorrer, melhor nós seremos os senhores,
é. Quanto menos do es- congestionado, ao filho
a suprema autoridade. que não pára de chorar.
critor encontrarmos nas
palavras, mais o persona- — Este é o meu mundo! O personagem retorna
gem se engrandece, mais Minha criação! — ber- a seu repouso.
autêntico se torna. ramos, debatendo-nos
cheios de brio. E é neste O escritor tem outras
Os maus escritores embate que terminamos páginas em branco para
escrevem pela glória por destruir o que tanto enfrentar.
pessoal. Os bons escri- almejamos. Pondo rédeas
tores escrevem para que em nossos personagens,
o personagem se torne quase sempre os conduzi-
completo, cumpra sua mos para o precipício.
missão e diga plenamente
a sua mensagem. A tarefa É impossível criar e, ao
do autor é desaparecer mesmo tempo, ter contro-
por detrás do persona- le absoluto. Criar é per-
gem que se forma. mitir que o imprevisível
se manifeste.

24 SAMIZDAT fevereiro de 2010


O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada
http://www.flickr.com/photos/32912172@N00/2959583359/sizes/o/

ficina
www.samizdat-pt.blogspot.com
www.revistasamizdat.com 25

www.oficinaeditora.com
Contos

Maria de Fátima Santos

http://4.bp.blogspot.com/_Z290VgmRDPs/S0qOILzP7aI/AAAAAAAAB9Q/JjN4zkx4dlc/s1600-h/papoilas.jpg

26 SAMIZDAT fevereiro de 2010


Contam-nas letras sole- a horas. Esperam-nas em baile de há dois meses.
tradas. casa o pai, a mãe e os Buscam o sangue que
Imagens pintadas uma irmãos. lhes devolva os pássaros
a uma com verbos con- Não usam espartilho, multicores e as papoilas
jugados em tempo e em nem saiote, nem combi- de Janeiros.
pessoa. E com advérbios, nações. Contam-nas as letras
um ou outro adjectivo, Virgens. soletradas.
frases e meias frases.
Sem mácula que aquela Os verbos conjugados
Contam-nas. que lhes deixam as le- em tempo e em pessoa.
Nuas nas palavras. tras com que as contam: Os advérbios, um ou
Cada peça de roupa re- corroem como bicho em outro adjectivo, frases e
tirada: nem botões, nem madeira. meias frases e traços e
molas, nem colchetes. Louras ou morenas, pontos. Muitos pontos.
Nada mais que uma fita sabem que os olhos que Contam-nas.
de nastro, ou seda fosse, deviam eram verdes:
esses, os olhos dos deuses Nuas nas palavras.
deslaçada, atando as abas:
duas frases, entre um tra- nas mulheres.
vessão e um ponto. O sangue, se escorre, é (Mais tarde das noites
Nada mais que duas de manso, num fio, fino, e dos bailes, contam-nas
frases sobre pele e alma. muito vermelho e quente. consoantes e vogais: não
Na saia justa, acima do se cortam nem com facas
E o silêncio das letras joelho, ou por baixo do pontudas ao esventrar
mal paradas: pontes de vestido longo junto ao uma galinha e nem na
sílabas, hífenes, plurais e tornozelo. foice ao sol do meio-dia.
espantos. Nem se picam com car-
Sangue escorrendo
E a seda da fita, ou que na coxa. Sangue que se dos ou picos de rosas.
fosse nastro, uma ponta esconde entre as nalgas, Cortam-se com tesouras
da outra desatando. Um corre-lhes em segredos de prata rendando papéis
cordão deslaçado, escor- e há pássaros que voam, de seda. Picam-se nos
regando. multicores, em céus de bicos finos de agulhas
Destapada a alma sob azul ou de cinzento e costurando rendas ou en-
os seios, o ventre, a pele roxo. tretecendo bordados em
de cada perna, as náde- roupa de cama. Senhoras.)
Contam as palavras,
gas. desfeitas em letras e
Contam-nas, em frases acentos, que no pino do
esfarrapadas. Inverno nascem papoilas,
Soltam-se chinelos e sa- campos delas: vermelho
patos e soquetes e meias. sobre o manto branco
Caem pelo chão protec- das serras.
ções de vulvas e saias E há frases que ecoam:
e vestidos e roupinhas as moçoilas esventram
rendadas que afagam as buracos, tocas de coelhos
mamas. e outros, em busca da
As moças, garridas e erva que desfaz o feito no
vaidosas, vêm dos bailes canto mais sem luz do

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Contos

http://www.flickr.com/photos/pepemichelle/3645213728/sizes/o/in/photostream/
José Guilherme Vereza

As devotas
O VP de Operações, Dr. Webs, tem um cacoete.
É um cacoete horroroso, que joga os olhos para o interior do globo ocular,
como se quisesse olhar para si mesmo. Mas como não consegue enxergar nada lá dentro,
volta as pupilas para fora com um olhar arregaladamente assustado
e pedinte de desculpas por proporcionar aos próximos espetáculo tão bizarro.
A secretária do Dr. Webs tem orgulho do cacoete do chefe.
Compete com uma outra, igualmente secretária, igualmente orgulhosa do cacoete do seu che-
fe,
Dr. Beens, VP Adminstrativo, que por sua vez, não fica nada a dever, em termos de cacoetes,
aos malabarismos faciais do Dr. Webs.
Na verdade, Dr. Beens leva uma ligeira vantagem.
Por ter a língua imensa, toda vez que abre a boca para dizer alguma coisa,
pontua vírgulas com um leve toque da língua no nariz. Um fenômeno. Quando a frase é
mais longa
e merece pontos propriamente ditos, a língua permanece mais tempo na ponta do nariz,
entre o final da frase e o início da outra.
A secretária do Dr. Beens diz à secretária do Dr. Webs que língua no nariz
demonstra mais personalidade que olhares interiores,
opinião veementemente rebatida pela secretária do Dr. Webs,
que afirma que olhares interiores são sutis, introspectivos,
denotam sensualidade e causam frisson.
As discussões entre as duas sempre terminam em baixaria,
mas nunca chegam aos agudos da histeria, quando resolve entrar no bate-boca a secretária

28 SAMIZDAT fevereiro de 2010


do Dr. Gilf,
VP de Finanças. Dr. Gilf mexe com as orelhas.
Sua secretária orgulha-se desse discreto hábito, mas perde a cabeça
quando as outras secretárias confirmam já terem visto Dr. Gilf complementar o movimento
das orelhas
com uma levantada de perna esquerda, tipo cachorro.
Caretas também são freqüentes, juram as outras secretárias,
alimentando as labaredas raivosas da fiel escudeira do Dr. Gilf,
que não admite que se fale assim de um homem tão charmoso, bem-educado e equilibrado.
Mal sabem elas que está para ser contratado pela empresa o jovem Dr. Bardes,
para assumir a recém implantada Vice-Presidência de Inovação e Relações Institucionais.
Dr. Bardes não tem um cacoete marcante.
Tem vários.
Conta-se que certa vez quando remexia revistas importadas na livraria de um aeroporto,
foi acometido por um descontrole muscular no braço direito,
o que o fez enfiar a mão no queixo de uma velhinha, que estava ao seu lado, coitadinha,
saboreando a orelha de um daqueles romances baratos e lacrimejosos.
A velhinha foi a nocaute e depois de pagar fiança,
Dr. Bardes tomou consciência do perigo que morava no seu inconsciente.
Quanto mais pensava no incidente, mais descontrolava o braço
e mais morria de medo de ter outra velhinha o seu lado.
Por medida de precaução, passou a andar com a mão no bolso.
De fato, nunca mais enfiou a mão no queixo de nenhuma velhinha,
mas não dominou por completo a sua fúria. Preso ao bolso, o ímpeto muscular do braço
descarregava nas mãos sua total insubordinação. Por mais que lutasse contra eles,
seus desobedientes dedos viviam a lhe arrancar pelos.
O impacto da violência depilatória era contido por um movimento pélvico e sensual:
um arrebitamento semicircular dos glúteos – como fazem “as cachorras” –
seguido por uma brusca aceleração da lombar no sentido contrário,
ou seja, para frente, viril e obsceno, como se copulasse o vento.
Foi assim que as três secretárias assistiram, numa segunda-feira chata e remelenta,
a chegada de um jovem bem vestido, sempre com a mão direita no bolso,
que de oito em oito segundos, chacoalhava a pélvis à la Elvis Presley,
num ritmo contínuo pra frente e pra trás, como seu ouvisse imaginárias batidas da dança do
créu.
E já chegou subvertendo a cultura cristalizada da empresa.
As três secretárias ficaram perdidamente apaixonadas.
Imaginavam como o revolucionário executivo seria na cama,
com movimentos tão próprios e surpreendentes.
E movidas por uma novo amor ardente, sobrepondo-se à lucidez, à razão e ao decoro profis-
sional,
passaram a disputar a tapa a vaga de secretária do Dr. Bardes.
Dr. Webs, Dr. Beens e Dr. Gilf, sem a devoção passional de suas secretárias,
começaram a ter sérios problemas funcionais.
Em duas semanas estavam demitidos.

www.revistasamizdat.com 29
Contos

Léo Borges

O Bar dos Homenzinhos


O machado de cortar – Você já morreu antes, poesia.
lenha começava a pesar, papai? – perguntou Astolfo, – Claro que não, né, Astol-

http://www.flickr.com/photos/oldredhead/4274753559/sizes/l/
perdendo sintonia com o atrapalhando, outra vez, seu fo? Para a infelicidade da sua
ódio que seus olhos ainda raciocínio. mãe eu nunca morri! Eu esta-
deixavam transparecer. Mas, O escritor percebeu que va era falando comigo mes-
mesmo muito cansado, Me- foi um erro pegar o filho mo – disse exasperado, mas
nandro mantinha Mary Flo- com a ex-mulher justamente adotando, logo em seguida,
wer acuada atrás da mesa de no fim-de-semana do famoso um tom didático. – Se você
jantar, procurando trucidá-la e difícil desafio literário da continuar interrompendo o
da mesma forma como fizera editora Selbstgeben (“Auto- papai, os homenzinhos das
com as outras três vítimas publicado”, em alemão). O histórias não vão fazer o que
dentro daquela bucólica casa. concurso relâmpago, uma deve ser feito e aí não vamos
O ciúme de Menandro o ótima oportunidade para ganhar o prêmio, por isso,
impelia à crueldade: preten- escritores iniciantes, exigia silêncio, tá?
dia não apenas matar como que cada autor estivesse
também comer o coração de Como Astolfo ainda in-
totalmente concentrado na sistia com novas indagações,
sua última vítima. elaboração de três diferentes Libório pegou uma folha
– Não me mate, não mere- textos. Quem determinava em branco, uma caneta e as
ço morrer! isso era o prazo, bastante entregou para o menino:
– Humm... “Não me mate, exíguo, posto pelo edital da
Selbstgeben: apenas 48 horas – Tome, meu filho. Passe
não mereço morrer!”­de o tempo desenhando alguma
novo. Isso já foi usado no para os concorrentes pro-
duzirem as obras e envia- coisa.
conto erótico – murmurou
Libório, incomodado com a rem pela internet. Desta vez – Eles descansam, papai?
repetição e tentando encon- estavam em pauta os gêneros
– Quem?
trar algo que a substituísse. conto – erótico e terror – e

30 SAMIZDAT fevereiro de 2010


– Os homenzinhos. assinadas, queria era rabiscá- mesmo que descansem. Va-
– Não. Não descansam. las, assim como Astolfo sono- mos dormir agora. Papai está
lenta e inocentemente fazia igual a eles: cansado. Ama-
Duas e quarenta da ma- com o papel recreativo. nhã eu termino isto.
nhã. Enquanto Astolfo dese-
nhava preguiçosos rabiscos, Nunca bebeu o amor, Antes de sair, o garoto
Libório ia perambulando sempre preferiu o mar, largou seu desenho sobre os
entre um texto e outro. O rascunhos do pai. Alguns tra-
a dor de Agenor, ços lembravam uma cabana
calor e o sono eram inimigos
declarados, mas o perseve- marinheiro sem lar. e outros se assemelhavam
rante escritor relutava em a mesas e cadeiras. Com
“Não mereço morrer,
parar, pois não apenas o prê- pequeno esforço, lia-se sobre
não sem antes provar, o amontoado de listras o
mio era bom como a compe-
tição por si só era bastante a embriaguez do viver, nome “Bar”, e, embaixo, “dos
excitante. Homenzinhos”.
destilada naquele bar”.
Cintura fina, coxas grossas ***
“Será que a banca vai
e um belo rosto. Nada mais entender? Sem lar, pois não – Cara, que calor!
habitava a mente de Mauro bebia o amor, e aí ele preci- – Ainda bem que criaram
além da vontade de possuir sou de um bar”, tentou expli- um boteco aqui pra gente
Jéssica. Ela era casada, mas car mentalmente o arranjo passar essa noite.
isso nunca foi obstáculo, pois, poético.
casamento, como ele sabia, – Verdade. Senta aí. Você
– Não se explica poesia! está vindo de onde?
não passava de mero papel
Poesia se sente e você sabe
assinado. E, assim, a aliança – Do erótico. Meu nome é
disso, Libório! – corrigiu-se,
no anelar esquerdo da mu- Mauro. E o seu? – perguntou
dessa vez em voz alta, pre-
lher servia apenas como a o homem vestido com uma
ocupado com os problemas
alavanca de um tesão perver- bermuda e uma colorida
no último texto, logo o seu
tido. Todo esse clima, porém, camiseta.
gênero predileto. – “Não
fez Mauro se lembrar do – Agenor, da poesia –
mereço morrer..., não mereço
desespero de sua ex-mulher respondeu o indivíduo que
morrer neste bar...”. Que coi-
quando descobriu uma de ostentava a tatuagem de uma
sa! Parece que os textos estão
suas perfídias: âncora no braço esquerdo.
se homogeneizando. Deve ser
– Não me mate, não mere- o calor deste lugar que está – Poesia? Legal. Coisa bem
ço morrer! furtando minha capacidade romântica isso, né? Ouço fa-
Lá estava a maldita. criativa, ou, então, é o sono. lar que as mulheres adoram
Suprimi-la sem dó poderia Preciso de um café. Ou de quem é poeta.
ser boa ideia, até porque uma cerveja num bar...
– Cara, apesar de atuar
nenhuma mulher morre ao – Um bar, papai, isso no ramo, eu não curto mui-
descobrir uma traição. Passa- mesmo! Fiz um bar para os to... prefiro gêneros com
se um tempo e tudo volta homenzinhos descansarem mais ação. E outra: eu não
ao normal ou, então, sepa- – disse o menino, cujo sono sou poeta, sou marinheiro.
rações acontecem e, neste sumira súbita e misteriosa- Poeta é o cara que me criou
caso, outros contratos são mente, feliz com o desenho e me enfurnou entre rimas
assinados. Libório, anos atrás, finalizado. de qualidade duvidosa como
assinara um desses até-que-a- “amor” e “dor”. Não combino
Libório viu que o filho
morte-os-separe, que depois com esse perfumado esque-
estava sendo mais eficiente
de indevidamente maculado, ma diáfano da poesia, gosto
que ele em produzir obras
passou a lhe morder trinta do terror, onde você sente o
artísticas. Desviou o olhar
por cento no contracheque. cheiro de sangue, onde há a
para o alegre Astolfo e, com
Por isso, para o autor, o estilo alegria de matar alguém, ou
paciência, compartilhou de
de vida despreocupado de então esse seu gênero, lugar
sua alegria pela criação.
Mauro é que era o ideal. Este em que acontecem coisas,
não queria saber de folhas – Que bom, filho, tomara

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literalmente, muito gostosas. zou Mauro. este machado rudimentar de
Estou certo? – Verdade – completou cortar lenha...
– Mais ou menos. Nem Agenor. – Acho bacana, – É, tem razão. E talvez fi-
tudo no meu mundo é verda- inclusive, que em muitos casse ainda melhor na poesia:
deiro. contos de terror o sujeito es- “...tantas flores e uma só Flo-
– Como assim? quarteja a vítima e come seu wer...” – suspirou Menandro,
coração. Nada contra. Aliás, surpreendendo os colegas.
– As mulheres, por exem- torturar muito me compraz!
plo. Já viu conto erótico – Acabei de descobrir o
Perdão pela rima. Força do porquê de nossas histórias
com alguma garota que não hábito.
possuísse “cintura fina, coxas estarem empacadas – irrom-
grossas e um belo rosto”? – Normalmente, quando peu, de repente, um entu-
isso ocorre, é porque o algoz siasmado Agenor, como se
– Não. Mas a sua parceira está com fome. No meu con- resolvesse explicar sua teoria
tem essas qualidades, né? to acho que é porque ela não para uma pessoa invisível.
– Nada. A Jéssica é até quis se entregar. Só mesmo o – O assassino do machado
muito simpática, mas está escritor para saber. tem uma queda pela lírica na
longe dessa perfeição pro- – “Se entregar”? Aí já en- mesma intensidade em que
pagada pelos discípulos de trou na minha área – disse o Casanova aqui tem pela
Anaïs Nin. Mauro. Mary, entretanto, estão impe-
didos de consumar seus de-
Nisso, aproxima-se outro – Falo em um sentido sejos, pois atuam em papéis
homem, expressão extenuada. romântico-trágico – explicou que não lhes agradam! E meu
– Opa, pode chegar, meu Menandro. – Minha ação caso ainda é mais dramático:
nobre – cumprimentou Mau- se traduz em “não é minha? gosto de uma boa violência,
ro. – Vem de onde? Então, não será de mais nin- mas estou nadando em po-
guém”. emas! Por isso sugerirei aos
– Do terror. Menandro,
muito prazer. – E as outras mortes? – senhores uma troca ousada:
questionou Mauro. vou para o terror, Menandro
– Beleza, Menandro. Deixe
vem para a poesia, e a Jéssica
ali o seu machado, meu ve- – O sogro, a sogra e o
morre pelas minhas mãos
lho. Aqui, em princípio, você cunhado.
no lugar da senhorita Flower,
não pretende matar ninguém, – Claro. Nada mais natu- que passaria para o erótico.
não é mesmo? ral – concluiu Agenor. O importante é findarmos os
– Até porque, como vejo, Os homens conversa- textos, da forma mais pra-
o amigo aí já deu cabo de vam tão distraidamente que zerosa possível, para que o
alguém: o machado está todo demoraram a perceber dois cara que nos criou vença esse
sujo de sangue – completou vultos femininos numa outra concurso e, assim, possamos
Agenor. – Conte aí, Menan- mesa. descansar com honrarias.
dro, como andam as coisas Que acham?
lá no teu interessantíssimo – Cara! Olha lá a Jéssica
conversando com uma gosto- – Por mim, ótimo! E vou
setor?
sa! – excitou-se Mauro. revelar algo que vai animá-lo,
– Bem, esta noite já ma- meu bom marujo: a Jéssica é
tei três. O último, inclusive, – Aquela é Mary Flower, a
casada – disse Mauro, sarcás-
esperneou um bocado. Tudo, mulher que devo executar –
tico, referindo-se ao enlace
entretanto, dentro do pre- observou Menandro.
da garota como um macabro
visto. Agora estou tentando – Que isso, rapaz? Matar palpite para a morte.
matar a Mary, mas está difí- aquela delícia?! – inflamou-se
– Nesse caso, melhor ainda
cil e cansativo. Esse negócio o protagonista da obra eró-
– asseverou Agenor, enten-
de matar, mata a gente. Sem tica. – Acho que esse nosso
dendo o toque funesto. –
trocadilho. escritor se confundiu. Essa tal
Achei sua companheira mais
– Calma... em breve você de Mary deveria estar é atu-
suculenta que a magricela da
vai picotá-la toda – profeti- ando comigo e não tentando
Mary. E uma boazuda como
se safar do amigo aqui com

32 SAMIZDAT fevereiro de 2010


ela não poderia jamais co- “balcão” rima com “coração”. no clichê que tanto combatia:
meter o erro fatal de contrair Isso não te diz nada, Agenor? O Bar dos Homenzinhos
matrimônio! – Muita coisa. Meu novo transformara-se num gran-
Menandro e Mauro se en- trabalho me aguarda – disse de congraçamento literário
treolharam assustados. Longe o marujo com um sorriso entre personagens de estilos
de ser pelo fato de Agenor diabólico, ao tempo em que diferentes, mas de espíritos
querer o massacre de Jéssica erguia o machado. – Nosso idênticos.
instigado por seu estado civil, autor vai gostar de ver que Mauro e Mary Flower,
pois quanto a isso um acor- adiantamos seu ofício, ainda deixando de lado a razão, se
do tácito já havia sido firma- que com pequena modifica- entrelaçaram vivendo uma
do, o que chocou a dupla foi ção nos papéis. insólita aventura, muito mais
a impensável classificação O intrínseco poder de se- erótica do que aterrorizante.
da gordinha com o termo dução de Mauro o ajudou no
“boazuda”. Agenor parecia ter Menandro, a quem o bar
contato com a bela Mary, que proporcionava grande prazer,
o perfil ideal para incorporar não resistiu e se entregou
o papel de estripador. mergulhava sem escafandro
a ele sobre uma das mesas. em versos que espontanea-
Enquanto o ex-funcionário Menandro, aproveitando o mente tirava ao beber.
da poesia mexia com carinho clima, desceu a lenha em
no machado tingido de san- algumas bloody marys mis- Jéssica, por sua vez, cerca-
gue, Mauro tomou a palavra. turadas a vodkas que nunca da por Agenor e o indefec-
experimentara e concebeu ri- tível machado sanguinário,
– Já que é assim, não implorava – não sem algum
percamos mais tempo: vou mas que seu inventor parecia
ser incapaz de bolar. Com deboche – por sua vida:
chamar a Mary Flower e
informá-la de sua saída do Jéssica Agenor teve mais – Não me mate, não mere-
terror e seu ingresso no eró- trabalho. Convencer a caris- ço morrer! Não neste bar...
tico. Faremos o que tem de mática personagem do conto
ser feito, aqui mesmo no bar, erótico de que teria de trocar
que com o perdão da rima, alguns orgasmos por uma
veio bem a calhar. morte a machadadas foi um
tanto complicado. Mas, susto
– Bom – disse Menandro maior levou Libório quando
–, para abrir minha mente chegou ao seu escritório e
aos belos poemas que preten- viu seus homenzinhos mis-
do recitar, vou pegar uma ca- turados de forma aviltante
ninha ali no balcão. Por sinal num texto único, culminando

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O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada

ficina
33
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Contos

Fragmentos:
I. O Tempo
Marcia Szajnbok

34 SAMIZDAT fevereiro de 2010


Acordou sobressaltado O silêncio do quarto diante do adeus verdadei-
pelo silêncio absoluto. amanhecendo fazia eco ro, fingia dormir, como
Naquele instante, não sa- à ausência de respostas. se tudo continuasse igual,
bia onde estava. Será que Não sabia. Naquela cama que o dia fosse mais um,
morri? Mas logo desfez- antiga havia um buraco. como ontem e anteon-
se da dúvida, os olhos Um buraco escuro e sem tem. Mas o choro não era
pouco a pouco divisando fundo. Uma fenda. Um fingimento. Nem se sabia
a grande sombra a seu abismo. Não a alcançava. ainda capaz de chorar...
lado, o contorno retilíneo Não a compreendia. Nem Mas, naquele início de
da janela filtrando para tampouco conseguia se dia recém clareado, cho-
dentro do quarto raios da fazer ouvir. Silêncio. Sem- rou de verdade. Chorou
luz esbranquiçada do al- pre o silêncio. Tateou no de raiva, de tristeza, de
vorecer. Há quanto tempo escuro a grande sombra solidão e saudades. Sobre-
não ficava assim, estático gorda. Um arrepio var- tudo de saudades. Sobre-
no escuro e no silêncio, reu-lhe o corpo e o es- tudo de saudades de si
acompanhando as batidas pírito. Gelada. Ela estava próprio.
do próprio coração? Anos gelada. Gelada, silenciosa
a fio. Décadas, talvez. e imóvel. Levantou-se
Noite após noite acor- num pulo e o jato de Fragmentos é uma série
dava incomodado pelo vômito lavou a parede e de textos curtos, em geral
ronco daquela mulher. o chão do quarto. Morta. de parágrafo único, que
Aquela mulher. Estranho Que raiva, meu deus, que descrevem uma situação
pensar nela assim: aque- ódio! Essa rameira mor- da realidade e seus ecos
la mulher, sem função e reu! Morreu sem respon- no mundo interno dos
sem nome. Quem era ela, der, morreu engolindo personagens, como se, num
afinal? Depois de tanto o mistério de seus risos documentário da vida real,
tempo compartilhando a furtivos e olhares envie- uma voz de fundo narras-
mesma cama, respirando sados. Morreu! A filha de se o que se passa no ínti-
o mesmo ar viciado e uma puta morreu! Sem mo dos atores-autores, que
malcheiroso do quarto, saber o que fazer, deitou- aliás poderiam ser qual-
acostumado a todos os se novamente, puxou a quer um de nós...
detalhes olfativos, sonoros coberta até quase cobrir
e táteis da criatura a seu os próprios olhos e fingiu
lado, certificava-se de que que dormia. Passou ho-
não sabia quem ela era. ras ali, no silêncio morto
No que pensava quando do quarto, entre o fingi-
os longos silêncios leva- mento e o choro. Fingira
vam seu olhar para o in- tanto, ah como fingira...
finito? Com o que sonha- Fingira que não via, que
va quando, no meio da não ligava, que ela não
Foto: Marcia Szajnbok

madrugada, emitia sons existia. Outras vezes


de gozo e fragmentos de fingia que ia embora.
riso, há muito ausentes Devaneava. Via-se saindo,
da vida desperta? O que porta afora com a roupa
sentia? O que desejaria? do corpo e adeus! E agora,

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Contos

Giselle Natsu Sato

Segredos do tempo
36 SAMIZDAT fevereiro de 2010
Quando o tempo sussur- na vida. O xale toma forma,
rou em segredo:- Para você, lentamente passo e repasso
é o bastante? os fios e perco a noção do
tempo. Sonho e repito cenas
A soberba tornou-me inteiras, cheia de saudades
cega e retruquei de malgra- e carinho. Sinto-me prisio-
do um resmungo qualquer, neira e meu algoz não tem
sem prestar atenção às pressa. Anos, meses, sema-
palavras. Apressada, como nas, dias, horas, minutos e
toda jovem, cheia de sonhos segundos. Testemunhas.
e planos. Ousada, destemi-
da, a vida fluindo por todos Cinza chumbo é a cor do
os poros. Mal sabia o que mar agitado, ao longe um
queria, quanto mais o que navio apita e o som estri-
me faltava... dente é apenas um adendo.
A chaleira esquenta , o bolo
Anos mais tarde, a idade recém saído do forno atiça
trouxe o arrependimento. o paladar e a madeira quei-
Infelizmente, já não havia ma lentamente, espalhan-
volta, vi as brumas envol- do calor e aconchego. Um
vendo a paisagem e desejei gato preguiçoso me espia
dentro delas, encontrar o do sofá, acompanhando os
casulo e abrigo. Mas apenas movimentos.
a ilusão gelada da existen-
cia, me acompanhava:- Para O som dos saltos assus-
você foi o bastante? -Ele me tam, assim como a cara si-
questionou novamente, des- suda:- Hora do seu remédio.
ta vez, havia ironia e uma Depois jantar e cama. Hoje
ponta de sarcasmo: está frio demais! A senhora
esqueceu a janela aberta?
-Não! Queria ter ousado Sei que compreende perfei-
mais, dançado, cantado, via- tamente e pode responder.
jado e vivido muito... Muito Podíamos conversar...
mais!Não fui feliz por com-
pleto, não amei o suficiente Não respondo, há anos
nem tive tudo que quis, deixei de falar e dizem que
acabou rápido demais, mal meu olhar é o bastante.
desfrutei ... Maldito tem- Aguardo a visita derradeira
po! Como te odeio! – Ouvi para, quem sabe, reencon-
a risada pelos corredores trar meu companheiro,
vazios, e ainda os ouço... parentes e amigos.Dizem
ainda. que existe esta possibilida-
de, não sei se acredito, ou
O silencio é a compa- se haverá apenas o vazio
nhia com quem reparto e mais solidão. Não resta
solidão e lembranças. muito, aos 100 anos de ida-
Prendo as linhas no tear de , não resta quase nada...
enquanto a lã macia escorre
entre meus dedos e penso

http://www.flickr.com/photos/c-martinez/3830327990/sizes/o/

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Contos

Sempre há uma verdade....


(Parte 1)
Maristela Scheuer Deves

38 SAMIZDAT fevereiro de 2010


Se você não acredita, Você nunca se perguntou, vou dizer. Mesmo assim,
por que olha para os lados mesmo que de brincadei- tenho a obrigação de fazer
disfarçadamente durante o ra, como é que esses mitos esse relato.
filme de terror, ou se assus- se espalharam por todos
Como eu dizia, também
ta se lhe tocam o ombro no os recantos do mundo há
era cético até algum tem-
momento em que o vam- centenas e centenas de anos,
po atrás – até bem pouco
piro persegue a vítima na quando não havia internet,
tempo atrás, na verdade.
tela? Se é tudo invencionice, televisão ou outro meio
Para ser mais preciso, até
por que olha embaixo da rápido para difundir as
duas semanas atrás. Até que
cama ou dentro do guarda- idéias? Como é que simples
minha vida virou de cabeça
roupas antes de deitar, “só histórias puderam chegar a
para baixo, de uma forma
para ter certeza que está diferentes povos, de idio-
que cheguei a pensar seria-
tudo ok”? Por que evita mas distintos e de lugares
mente em me internar vo-
passar à noite em frente aos distantes, mas unidos pela
luntariamente em um asilo
cemitérios, já que garante mesma crença no sobrena-
para loucos. E o teria feito,
ao seu filho pequeno que tural, pelo mesmo medo?
acreditem, se eu pelo me-
fantasmas não existem e os
Pois eu acredito nas nos tivesse a certeza de que
mortos não podem fazer
lendas. Agora, eu acredito. aquilo que descobri deixaria
nada aos vivos?
Depois de anos tentando de ser verdade. Mas eu sei
Precaução, diz você. esconder a verdade de mim que a realidade não pode
Mas... estranho perder mesma, fechando os olhos ser mudada assim, à nossa
tempo se precavendo contra às evidências, eu fui obri- revelia. Por isso, decidi que
algo que não existe. Você gada a acreditar. E não só contar a minha história era
também não acredita em pela lógica que acabei de a única forma de salvação
feitiços, “trabalhos” e vodu, enumerar; lógica, por me- possível. Se não para mim,
mas prefere não pisar em lhor que seja, não são fatos. pelo menos para outros que
uma galinha deixada numa Mas, quando os fatos apon- possam aprender com ela.
encruzilhada, e não se sen- tam que o invisível é real,
No momento em que
tiria nada bem se soubesse também não há lógica que
escrevo, estou escondida,
que um boneco com o seu os possa destruir – infeliz-
encerrada num esconderijo
rosto recebeu agulhas de mente.
distante. Não que esconde-
um desafeto...Será que, no
Da mesma forma, sei que rijos possam evitar o pior,
fundo, não há uma cente-
http://www.flickr.com/photos/31487445@N07/3102544237/sizes/l/

ter um depoimento sobre mas tenho esperanças de


lha de herança ancestral
um fato não é o mesmo que que possam pelo menos
dentro de você, que guarda
vivenciá-lo. Assim, antes adiá-lo. Não tenho muito
uma sabedoria primitiva e
mesmo de contar o que me tempo, por isso preste a
ensina que sempre há algo
aconteceu, conformo-me an- máxima atenção no que eu
de verdade nas lendas? Será
tecipadamente de que você estou lhe dizendo: não irei
que, sem que você perceba,
não acreditará no que eu repetir essa história.
você não se questiona de
digo. Mais uma lenda ape-
onde surgiram vampiros,
nas, sorrirá. Como Tomé,
lobisomens, bichos-papões
só acreditaria se a vivesse. (continua no próximo
e outros personagens que
Então, e sou sincero, prefiro mês)
povoam as histórias feitas
de todo meu coração que
para assustar?
você não acredite no que

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Tradução

Alain Robbe-Grillet
trad.: Henry Alfred Bugalho

Por um Novo Romance


A Aplicação da Teoria
Não sou um teórico do injustificadas - causadas na progresso: excetuando pelo
romance. Apenas fui mo- imprensa por meus pró- número de cópias impres-
vido, como sem dúvida prios livros. sas, que foi muito maior no
todos os romancistas, tanto segundo caso. É claro que
Meus romances não
no passado como hoje, a também houve algum elo-
foram recebidos, após
perfazer algumas reflexões gio, aqui e ali, mesmo que
publicação na França, com
críticas sobre livros que esta apreciação ocasional
unânime entusiasmo; para
escrevi, sobre aqueles que li, me desconcertasse ainda
se dizer o mínimo. Desde o
sobre aqueles que pretendo mais. O que mais me dei-
reprovador silêncio parcial
escrever. Na maior parte do xou pasmo, tanto nas repro-
que saudou o primeiro (Les
tempo, tais reflexões foram vações quanto nos elogios,
Gommes) até a rejeição ma-
inspiradas por certas rea- foi encontrar, em quase
ciça e violenta disseminada
ções - que parecem ser para todos os casos, uma implí-
pelos jornais ao segundo
mim surpreendentes ou cita - ou até mesmo explíci-
(Le Voyeur), houve pouco

40 SAMIZDAT fevereiro de 2010


ta - referência aos grandes O resultado destes arti- acusado de contradição, de
romances do passado, os gos não foi o que eu espe- repudiar a mim mesmo.
quais sempre foram assu- rava. Eles causaram alguma ... Assim, compelido al-
midos como o modelo para comoção, mas foram de- ternadamente por minhas
onde os jovens escritores clarados, por quase todo o próprias explorações e por
http://blogs.lesinrocks.com/photos/wp-content/uploads/2009/10/BLOGalain-robbe-grillet001-copie.jpg

deveriam voltar os olhos. mundo, como simplórios meus detratores, continuei


e tolos. Ainda compelido irregularmente, ano após
Nas revistas literárias,
pelo desejo de convencer, ano, a publicar minhas
frequentemente encontrei
reelaborei, então, os prin- reflexões sobre literatura.
uma resposta mais séria.
cipais pontos controversos, É esta coleção de textos
Mas eu não estava satisfeito
desenvolvendo-os num que aparece neste presente
em ser reconhecido, desfru-
ensaio mais extenso, que volume.
tado, estudado apenas por
apareceu na Nouvelle Re-
especialistas que haviam me
vue Française. Infelizmente,
encorajado desde o come-
o efeito não foi melhor; e De maneira alguma estas
ço; eu estava sequioso por
esta revisão - caracteriza- reflexões constituem uma
escrever para o “público lei-
da como um “manifesto” teoria do romance; elas
tor”, eu me ressentia por ser
- consagrou-me como um apenas tentam esclarecer
considerado como um autor
teórico duma nova “esco- várias linhas de desenvol-
“difícil”. O meu pasmo,
la” do romance, da qual, é vimento que me parecem
minha impaciência estavam
claro, nada de bom poderia cruciais na literatura con-
provavelmente em propor-
ser esperado, e à qual estava temporânea. Se, em muitas
ção à minha ignorância
relegado com entusiasmo, das páginas que se seguem,
sobre os círculos literários e
quase aleatoriamente, qual- eu emprego prontamente o
seus hábitos. Assim, publi-
quer escritor que parecesse termo Novo Romance, não
quei, num jornal político-
ser difícil de se classificar. se trata duma escola de-
literário com grande circu-
“École du regard”, “Romance signada, nem mesmo dum
lação (L’Express), uma série
Objetivo”, “École de Minuit” grupo específico e constitu-
de breves artigos, nos quais
- os rótulos eram vários; ído de escritores trabalhan-
discuti várias idéias que
bem como as intenções do numa mesma direção;
me pareciam nada mais do
atribuídas a mim, que eram, a expressão é apenas um
que óbvias: por exemplo,
na verdade, fantásticas: re- rótulo conveniente aplicável
que a forma do romance
mover o homem do mundo, a todos aqueles procuran-
deve evoluir para poder se
impôr meu próprio estilo a do novas formas para o
manter viva, que os heróis
outros romancistas, destruir romance, formas capazes
de Kafka possuem apenas
todas as regras da composi- de expressar (ou de criar)
uma tênue conexão com os
ção literária, etc. novas relações entre o
personagens de Balzac, que
homem e o mundo, a todos
o realismo socialista ou o
aqueles decididos a inven-
“engagement” sartreano são
Tentei, em novos artigos, tar o romance, em outras
difíceis de serem reconci-
aperfeiçoar as questões ao palavras, a inventar o ho-
liados com o problemático
enfatizar elementos que mem. Tais escritores sabem
exercício da literatura, bem
mais foram negligenciados, que a repetição sistemática
como com o de qualquer
ou mais distorcidos, pe- das formas do passado não
arte.
los críticos. Desta vez, fui somente é absurda e fútil,

www.revistasamizdat.com 41
mas que pode se tornar até vale para a literatura, que sobre seu próprio ofício.
mesmo prejudicial: ao nos a literatura também é viva,
Também aqui, vejo que
cegar quanto nossa real e que o romance, desde
os mitos do século deze-
situação no mundo atual, que surgiu, sempre tem
nove retêm todo seu po-
ela nos impede, em última sido novo. Como um estilo
der; o grande romancista,
instância, de criar o mundo pôde ter se mantido imu-
o “gênio”, é uma espécie
e o homem de amanhã. tável, fixo, quando tudo ao
de monstro inconsciente,
seu redor estava em evo-
Elogiar um jovem escri- irresponsável e à mercê do
lução - até mesmo revolu-
tor, em 1965, por ele “escre- destino, até mesmo ligeira-
ção - pelos últimos cento
ver como Stendhal” é um mente estúpido, que emite
e cinqüenta anos? Flaubert
duplo disparate. Por um “mensagens” que apenas o
escreve o novo romance em
lado, não há nada de ad- leitor pode decifrar. Qual-
1860, Proust, o novo ro-
mirável em tal feito, como quer coisa que ameace
mance em 1910. O escritor
acabamos de ver; por outro, obscurecer o julgamento do
deve consentir a aceitar sua
a própria coisa é impossí- escritor é mais ou menos
própria data com orgulho,
vel: para se escrever como aceito como favorável ao
sabendo que não há obras-
Stendhal, antes de tudo, pleno desabrochar da sua
primas na eternidade, mas
dever-se-ia estar escreven- obra. Alcoolismo, pobreza,
apenas obras na história; e
do em 1830. Um escritor drogas, paixão mística, lou-
que elas sobrevivem ape-
que produza um pastiche cura recaíram sobre as mais
nas pela medida de terem
habilidoso o suficiente para ou menos romantizadas
deixado o passado para trás
conter páginas que o pró- biografias dos artistas, que
e proclamado o futuro.
prio Stendhal poderia ter parecem ser natural vê-las,
assinado naquela época, de desde então, como neces-
modo algum possui mais sidades da triste condição
Entretanto, se há algo em
valor do que se houvesse es- do criador, ver, em qualquer
particular que os críticos
crito as mesmas páginas sob caso, uma antinomia entre
acham difícil tolerar, é que
Charles X. Não é paradoxo criação e consciência.
o artista deva se explicar.
algum que Borges elabora
Eu certamente constatei isto Longe de ser resultado
em Ficções: o romancista
quando, após haver expres- dum escrutínio honesto,
do século vinte que repro-
sado esta e outras noções esta atitude trai uma me-
duz Dom Quixote palavra
óbvias, publiquei meu ter- tafísica. Aquelas páginas
por palavra escreve uma
ceiro romance (La Jalousie). às quais o escritor gerou
obra totalmente diferente
Não somente o livro foi como pensamento incons-
da de Cervantes.
atacado, censurado como ciente, aquelas maravilhas
Além disto, ninguém um tipo de ultraje prepós- não premeditadas, aquelas
sonharia em elogiar um tero contra as belas-letras; palavas “perdidas” revelam a
músico por ter composto como também provado que existência de alguma força
um Beethoven, um pintor tal abominação só podia ter superior que as ditou. O
por fazer um Delacroix, ou sido esperada, pois La Jalou- romance, mais do que um
um arquiteto por ter con- sie era um produto autode- criador no sentido estrito, é
cebido uma catedral gótica. clarado de premeditação: assim um simples mediador
Felizmente, muitos roman- seu autor - Oh, o escândalo! entre os mortais comuns
cistas sabem que o mesmo - se permitiu ter opiniões e um poder obscuro, uma

42 SAMIZDAT fevereiro de 2010


força além da humanida-
de, um espírito eterno, um
deus...

Na verdade, basta ler os


diários de Kafka, por exem-
plo, ou a correspondência
de Flaubert, para perceber
de cara o papel principal
assumido, mesmo nas gran-
des obras pretéritas, por
uma criatividade consciente,
pela vontade, pelo rigor.
Trabalho paciente, constru-
ção metódica, a arquitetura
deliberada de cada senten-
Autores do movimento conhecido como “Nouveau Roman”: Alain
ça, bem como do todo do Robbe-Grillet, Claude Simon, Claude Mauriac, Jérôme Lindon, Robert
livro - ela sempre encenou Pinget, Samuel Beckett, Nathalie Sarraute, Claude Ollier (1959).
seu papel. Após Os Moedei-
ros Falsos, após Joyce, após risco, quebrá-lo, até mesmo que haja desenvolvimento
A Náusea, parecemos estar explodí-lo. Longe de res- dum ensaio a outro, entre

http://www.digischool.nl/ckv1/literatuur/roman/1.jpg
tendendo gradativamente peitar certas formas imutá- estes que se seguem. Não, é
para uma época da ficção veis, cada novo livro tende claro, o cru repúdio equi-
na qual os problemas de es- a constituir as leis de seu vocadamente denunciado
tilo e construção serão con- próprio funcionamento, ao por leitores que foram um
sideradas de maneira lúcida mesmo tempo em que pro- pouco descuidados - ou mal
pelo romancista, e na qual duz a própria destruição dispostos -, mas reconside-
preocupações críticas, longe destas leis. Uma vez que rações dum nível diferente,
de esterilizarem a criação, a obra esteja concluída, a reexaminações, outro lado
podem, ao contrário, serví- reflexão crítica do autor lhe duma mesma idéia, ou seu
la como força condutora. servirá posteriormente para complemento, e, em alguns
ganhar uma perspectiva em casos, apenas um aviso
Não há a questão, como relação a ela, imediatamente contra um erro de interpre-
vimos, em se estabelecer nutrindo novas explorações, tação.
uma teoria, um molde pré- uma nova partida.
existente no qual enformar
os livros do futuro. Cada Portanto, a tentativa de
Além disto, é óbvio
romancista, cada romance pôr visões teóricas e obras
que idéias possuem pouca
deve inventar sua própria de arte em contradição não
consequência em relação
forma. Nenhuma receita é muito interessante. A úni-
a obras, o que nada pode
pode substituir a reflexão ca relação que pode existir
substituir a última. Um
contínua. O livro faz suas entre elas é precisamente
romance que não é mais
próprias regras para si, e duma característica dialé-
do que um exemplo grama-
para si apenas. De fato, o tica: uma interação entre
tical ilustrando uma regra
movimento para seu estilo acordos e oposições. Não
- mesmo acompanhada por
geralmente leva a pô-lo em será surpreendente, então,

www.revistasamizdat.com 43
sua exceção - seria natu- funcionamento palavra por continuarão a existir para
ralmente inútil: a asserção palavra - em suma, dar-lhe o romance, em paralelo.
da regra bastaria. Ao exigir uma justificativa, ele não Ainda assim, um caminho
o direito do autor sobre a teria sentido a necessidade já parece estar assinalado
inteligência da sua criação, de escrever o livro. Pois a mais claramente que o res-
em insistindo no interesse função da arte nunca é a de tante. De Flaubert a Kafka,
proporcionado pela consci- ilustrar uma verdade - ou uma linha descendente é
ência de sua própria explo- mesmo uma interrogação traçada, uma ancestralidade
ração, sabemos que princi- - sabida de antemão, mas a que sugere uma progênie.
palmente no nível do estilo de trazer ao mundo certas Esta paixão por descre-
que esta exploração é feita, interrogações (e também, ver, que anima a ambos, é
e que nem tudo é claro no talvez, na hora certa, certas certamente a mesma paixão
momento da decisão. Assim, respostas) ainda não conhe- que discernimos no novo
tendo indisposto os críticos cidas como tais por elas. romance atual. Além do na-
ao falar sobre a literatura turalismo de Flaubert e do
A consciência crítica do
que ele sonha escrever, o onierotismo de Kafka apa-
romancista pode ser útil
romancista sente-se repenti- recem os primeiros elemen-
apenas no nível das esco-
namente desarmado quando tos dum estilo realista dum
lhas, não no da justificação
este crítico lhe pergunta: gênero desconhecido, que
delas. Ele sente a necessida-
“Agora, explique porque agora está vindo à tona. É
de de utilizar certa forma,
você escreveu este livro, o ao esboço deste novo realis-
ou rejeitar certo adjetivo,
que ele significa, o que você mo que a presente coleção
de construir este parágrafo
estava tentando fazer, o que tenta descrever.
de certo jeito. Ele põe todo
você pretendia ao utilizar
seu esforço à procura da (1953 e 1963)
esta palavra, ao escrever
palavra certa, e do lugar
esta sentença!”
certo onde colocá-la. Mas
Diante de tais questões, a desta necessidade ele não
“inteligência” do romancista pode produzir prova algu-
não parece ajudá-lo mais. ma (excetuando, ocasional- ROBBE-GRILLET, Alain,
O que ele estava tentando mente, após o fato). Ele nos For a New Novel, Essays
fazer era apenas o próprio implora que acreditemos on Fiction. New York: Gro-
livro. O que não significa nele, que confiemos nele. E ve Press, 1965. p. 7-14
que ele sempre esteja safis- quando nós perguntamos
feito com ele; mas a obra a ele por que ele escreveu
permanece, em todo caso, a este livro, ele possui apenas
melhor e a única expressão uma resposta: “Para tentar e
possível de sua empreitada. descobrir por que eu queria
E se ele houver tido capa- escrevê-lo”.
cidade para fornecer uma
E, dizer para onde o
definição mais simples,
romance está se encami-
ou resumir suas duas ou
nhando, ninguém pode, é
três centenas de páginas a
claro, fazê-lo com certeza.
alguma mensagem em lin-
Mais do que isto, é provável
guagem clara, explicar seu
que caminhos diferentes

44 SAMIZDAT fevereiro de 2010


Um detetive...
Uma loira gostosa...

Um assassinato...

E o pau comendo entre


as máfias italiana e
chinesa.
­

Alain Robbe-Grillet (Brest, 18


de agosto de 1922 — Caen, 18
* Topologie d’une cité fantôme
(1976) O Covil
de fevereiro de 2008) foi um
escritor e cineasta francês. Era,
assim como Nathalie Sarraute,
* Souvenirs du Triangle d’Or
(1978) dos
* Djinn (1981)
Michel Butor e Claude Simon,
uma das figuras mais associadas * La Reprise (2001) Inocentes
com o movimento denominado * Un roman sentimental (2007)
nouveau roman (“novo roman-
www.covildosinocentes.blogspot.com
ce”).
Robbe-Grillet era membro da Coletâneas
Académie française desde 25 de * Instantanés (1962)
março de 2004, quando sucedeu
Maurice Rheims na cadeira nú-
mero 32. Deixou viúva a também Ensaios
romancista Catherine Robbe- * Pour un Nouveau Roman
Grillet. (1963)
* Le Voyageur, essais et entre-
Obras tiens (2001)

Romances
* Un régicide (1949) Ficções de carácter autobiográ-
fico
* Les Gommes (1953)
* Le miroir qui revient (1985)
* Le Voyeur (1955)
* Angélique ou l’enchantement
* La Jalousie (1957) (1988)
* Dans le labyrinthe (1959) * Les Derniers Jours de Co-
* La Maison de rendez-vous rinthe (1994)
(1965)
do
w
gr nl
* Projet pour une révolution à http://pt.wikipedia.org/wiki/Alain_ át
oa
New York (1970) Robbe-Grillet is d
http://cineconchile.files.wordpress.com/2008/02/sjff_04_img1592.jpg

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Tradução

escrita e solidão
Marguerite Duras
trad.: Vanda Anastácio
seleção: Maria de Fátima San-
tos

46 SAMIZDAT fevereiro de 2010


Excertos de écrire de Margueri- (…) futuro, sem eco, longínqua,
te Duras com as suas regras de ouro,
Escrever era a única elementares: a ortografia, o
selecção de Maria de Fátima
coisa que povoava a minha sentido.
da tradução de Vanda Anastá- vida e me encantava. Fi-lo.
cio - Difel 1994
A escrita nunca mais me (…)
abandonou.
É sempre numa casa que É impossível largar para
estamos sós. E não fora, mas (…) sempre um livro, antes que
dentro dela. ele esteja completamente
A solidão quer dizer, escrito – ou seja: só e livre
(…) também: Ou a morte ou o de nós que o escrevemos.
livro. Mas, antes do mais, É tão insuportável como
A solidão da escrita é
quer dizer álcool. Quero um crime. Não acredito
uma solidão sem a qual
dizer, uísque. Nunca fui ca- nas pessoas que dizem: “
o escrito não se produz,
paz, até agora, mas realmen- Rasguei o meu manuscrito,
ou se esfarela, exangue de
te nunca, ou seria preciso deitei fora tudo.” Não acre-
procurar o que escrever.
procurar bem longe… dito. Ou aquilo que estava
Perde o seu sangue, já não
nunca fui capaz de come- escrito não existia para os
é reconhecido pelo autor. E,
çar um livro sem o acabar. outros, ou não era um livro.
antes de mais, é preciso que
Nunca fiz um livro que não Quando nunca virá a ser
nunca seja ditado a uma se-
fosse já uma razão de ser um livro, não, não se sabe.
cretária qualquer, por mais
enquanto estava a ser escri- Nunca.
hábil que ela seja, e que não
to, e isso, qualquer que ele
seja nunca, nessa fase, dado
fosse. Em toda a parte. Em (…)
a ler a um editor.
todas as estações do ano.
A escrita torna-nos sel-
É sempre necessária uma
(…) vagens. Regressamos a uma
separação das pessoas que
selvajaria antes da vida. E
rodeiam aquele que escreve Ver-se num buraco, no reconhecemo-la sempre, é
livros. É uma solidão. É a fundo de um buraco, numa a das florestas, tão velha
solidão do autor, a da escri- solidão quase total e des- como o tempo. A do medo
ta. Para iniciar uma coisa, cobrir que só a escrita nos de tudo, distinta e insepará-
interrogamo-nos acerca salvará. Estar sem qual- vel da própria vida. Ficamos
desse silêncio à nossa volta.
http://www.cinefrance.com.br/_images/filmes/3-marguerite.jpg

quer tema de livro, sem obstinados. Não podemos


Praticamente a cada passo ideia nenhuma de livro é escrever sem a força do
que se deu numa casa e a encontrar-se, reencontrar- corpo. É preciso sermos
todas as horas do dia, sob se perante um livro. Uma mais fortes do que nós para
todas as luzes, quer estejam imensidão vazia. Um livro abordarmos a escrita, é
do lado de fora, quer sejam eventual. Diante de nada. preciso ser-se mais forte do
lâmpadas acendidas duran- Diante como que de uma que aquilo que se escreve.
te o dia. Essa solidão real escrita viva e nua, como É uma coisa estranha, sim.
do corpo torna-se outra, que terrível, terrível de Não é apenas a escrita, o
inviolável, a da escrita. Eu ultrapassar. Creio que a escrito, são os gritos dos
não falava disso a ninguém. pessoa que escreve está sem animais da noite, os vossos
Nessa época da minha ideia do livro, que tem as e os meus, os dos cães. É a
primeira solidão, tinha já mãos vazias, a cabeça vazia, vulgaridade maciça, deses-
descoberto que dedicar-me e que não conhece, desta perante, da sociedade.
à escrita era o que eu tinha aventura do livro, senão
de fazer. a escrita seca e nua, sem (…)

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A escrita vai muito lon- julgávamos ter explorado, Há uma loucura da escri-
ge…até acabar com. E, às que avança em direcção ao ta que existe por si própria,
vezes, é insustentável. De seu o próprio destino e ao uma loucura de escrever
repente, tudo adquire um do seu autor, então aniqui- furiosa, mas não é por isso
sentido em relação à escri- lado pela sua publicação: que se está no seio da lou-
ta, é de enlouquecer. Já não a sua separação dele, do cura. Pelo contrário.
conhecemos as pessoas co- livro sonhado, como de
nhecidas e julgamos esperar uma criança recém-nascida, A escrita é o desconhe-
aquelas que nunca vimos. sempre a mais amada. cido. Antes de escrever não
sabemos nada acerca do
(…) (… que vamos escrever. Com
toda a lucidez.
Essa ilusão que temos – e Estar só com o livro ain-
que é justa – de termos sido da não escrito é estar ainda É o desconhecido de nós
a única pessoa a ter escri- no primeiro sono da huma- mesmos, da nossa cabeça,
to aquilo que escrevemos, nidade. É isso. É, também, do nosso corpo. Não é se-
quer seja péssimo, quer estar só com a <=”” em=”” quer uma reflexão, escrever
maravilhoso. E eu quando fase=”” morrer=”” não=”” p=”” é uma espécie de faculdade
lia críticas era, geralmente, pousio.=”” tentar=”” é=””> que temos ao lado da nossa
sensível ao facto de dizerem pessoa, paralelamente a ela,
que um determinado livro (…) de uma outra pessoa que
não se parecia com nada. É preciso que chorar aparece e que avança, invi-
Ou seja, que ia ao encontro também aconteça. sível, dotada de pensamento,
da solidão inicial do autor. de cólera, e que, por vezes,
Se é inútil chorar, creio pelos seus próprios factos,
(…) que é, contudo, necessário está em perigo de perder a
Um escritor é uma coisa chorar. Porque o desespero vida.
curiosa. É uma contradição é palpável. Fica. A recorda-
ção do desespero, fica. Por Se soubéssemos alguma
e também um contra-senso. coisa do que vamos escre-
Escrever também não é vezes mata.
ver, antes de o fazer, nunca
falar. É calar. É gritar sem Escrever. escreveríamos. Não valeria
ruído. Um escritor é, mui- a pena.
tas vezes, repousante: ouve Não posso.
muito. Não fala porque é Escrever é tentar saber
Ninguém pode.
impossível falar a alguém aquilo que escreveríamos
de um livro que se escreveu É preciso dizê-lo: não se se escrevêssemos – só o
e, sobretudo, de um livro pode. sabemos depois – antes é a
que se está a escrever. É interrogação mais perigosa
impossível. É o oposto do E escreve-se. que nos podemos fazer. Mas
cinema, o oposto do teatro é também a mais corrente.
É o desconhecido que
e dos outros espectáculos. É
trazemos em nós: ao escre- O escrito chega como o
o oposto de todas as leitu-
ver á isso o que é alcança- vento, é nu, é tinta, é escrito,
ras. É o mais difícil de tudo.
do. É isso ou nada. e passa como nada passa na
É o pior. Porque um livro é
o desconhecido, é a noite, é vida, nada, a não ser ela, a
Podemos falar de uma
fechado, é assim. É o livro vida.
doença do escrito.
que avança, que cresce, que
avança em direcções que (…)

48 SAMIZDAT fevereiro de 2010


http://autoreselivros.files.wordpress.com/2009/07/duras1.jpg
MARGUERITE DURAS (1914 – de uma viúva francesa e de seu mais do que amar - ou execrar -
1996) filho, implicados nos sofrimen- essa pequena mulher provocante,
Nascida em 2 de Abril de 1914, tos impostos pela corrupção rodeada dos seus fantasmas (...).
em Saigão, Indochina, onde do ambiente colonial francês, Essa pequena mulher, que roda
passou a infância e a adoles- e atinge momentos de grande sobre ela mesma como uma valsa
cência, Marguerite Duras iria energia e de um vigor excepcio- solitária, terá sido uma senho-
ficar profundamente marcada nal. Seguem-se outros romances, ra? Foi sobretudo uma mulher
pela paisagem e pela vida da de que se destacam Le Square voraz de uma literatura que é um
antiga colónia francesa. Em (1955), em que a autora envere- grito de amor ao longo de todas
1932 fixou-se em Paris, onde da por uma técnica de narração as páginas. Uma Piaf.” - Jean-
estudou Direito, Matemática que virá a ser uma característica François Josselin.
e Ciências Políticas. Após o dominante do seu ficcionismo e Fonte: http://www.releituras.
armistício, ingressou no Partido que a associou ao movimento do com/ohenry_menu.asp
Comunista Francês, de que foi nouveau roman . Autora de pe-
expulsa, em 1950, por dissidên- ças de teatro e de vários filmes,
cias ideológicas. Formada sob a entre os quais o célebre Hiroshi-
influência da moderna narrativa ma, meu amor, foi o seu romance
norte-americana, e sobretudo O Amante, (prémio Goncourt de
de Hemingway, obteve renome 1984), relato exacerbado de uma
internacional com a publicação paixão na adolescência inquieta
do romance Un barrage contre le da escritora, que a tornou co-
Pacifique (1950), cuja acção de- nhecida de um público vastíssi-
corre na Indochina. Nesta obra, mo, até aí arredado de uma obra
parcialmente autobiográfica, a considerada demasiado difícil e
autora narra a vida estranha intimista. “Não podemos fazer

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Teoria Literária

O escritor como personagem


Maristela Scheuer Deves

50 SAMIZDAT fevereiro de 2010


Escrever sobre o que se Sheldon é mantido preso personagens/escritores
conhece é um conselho por uma fã que quer que segue com os ótimos Ver-
constantemente dado a ele escreva um livro ressus- tigem, de Erica Spindler, O
quem sonha em se tornar citando um personagem. O vendedor de histórias, do
um escritor. Coincidência recurso aparece também consagrado Jostein Gaarder,
ou não, não são poucos os em outras obras de King, e Oscar Wilde e os Assassi-
livros que têm escritores como no recente Love - natos à Luz de Velas, de Gy-
como protagonistas. Dos embora o livro seja teori- les Brandreth. Esse último
mais variados gêneros, essas camente a história de Lisey, tem ainda o atrativo a mais
obras dão um gosto extra à a mulher de um escritor de transportar para a ficção
leitura: a sensação de pe- morto, a figura do criador dois escritores reais, os céle-
netrar, um pouquinho que de histórias ainda está pre- bres Oscar Wilde, autor de
seja, no universo de quem sente e muito forte. O retrato de Dorian Gray, e
cria universos. Do suspense/terror ao Arthur Conan Doyle, cria-
O costume de utilizar suspense psicológico, al- dor de Sherlock Holmes.
esse recurso, que serve guns bons exemplos do que E se um escritor fictício
também para humanizar a falamos aqui são os livros é bom, o que dizer de dois,
figura do escritor, fazendo End of Story (Fim da histó- tendo de quebra ainda uma
com que se aproxime mais ria, em tradução livre), de editora? É o caso do diverti-
do leitor, não é de hoje. Um Peter Abrahams - no qual díssimo Um bestseller para
exemplo é o romance de a escritora iniciante Ivy vai chamar de meu, de Marian
terror Os Mortos Vivos, de ensinar escrita criativa em Keyes, que traz a escritora
Peter Straub, escrito no final um presídio e descobre lá famosa Lily, a escritora ini-
dos anos 1970. Nele, um dentro um talento maior do ciante Gemma e a editora
escritor, Donald Wanderly, que o seu - e Quase o autor, Jojo.
não apenas narra a ação de John Colapinto, que con- A lista de exemplos po-
como é também um dos ta a história de um jovem deria seguir indefinidamen-
personagens centrais. aspirante a escritor que, ao te. No entanto, o que vale
Ainda no terror, quem descobrir o original inédito destacar é que o atrativo
rotineiramente utiliza es- e muito bem construído de dos escritores-personagens
critores como protagonistas um amigo morto, resolve está no fato de eles faze-
http://www.flickr.com/photos/jessieromaneix/2260375806/sizes/l/

é o mestre Stephen King. publicá-lo como se fosse rem com que o leitor veja
Um dos livros em que o seu. Esse mote do escritor os escritores como alguém
personagem/autor aparece é que rouba o livro de outro real, concreto, “gente como
na obra Angústia, também também dá a tônica de In- a gente” - além de mostrar
publicada com o nome de veja, de Sandra Brown: nele, um pouquinho como é a
Misery. Nela, o fato de o uma editora se envolve com rotina de quem vive da
protagonista ser escritor um misterioso autor cujo escrita.
tem suma importância para livro fala sobre um escritor
os rumos da narrativa, já que roubou a obra de outro.
que o escritor fictício Paul A lista de livros com

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Teoria Literária

Dez anos de ofício literário


Henry Alfred Bugalho

52 SAMIZDAT fevereiro de 2010


“Por detrás de um su- fácil, não é para quem tem Mas o prazer de ver um
cesso instantâneo, há dez dúvidas, não é para fracos. livro pronto, de ler minhas
anos de trabalho duro”, este palavras, de ver meus pen-
é um ditado corrente em samentos exteriorizados e
Hollywood. Escrever? Por quê? perpetuados numa obra me
Enquanto que, por um motivou a escrever outros.
A escrita, como ofício,
lado, serve de aviso aos entrou acidentalmente em Prazer... Escrevo por
novatos para que estudem, minha vida. prazer.
aperfeiçoem-se e batalhem
Da infância até a adoles-
muito até chegarem ao es-
cência, quis ser desenhista, Contos e romances
trelato, por outro lado tam-
depois, dediquei-me exaus-
bém é a constatação que o
tivamente ao piano, mas, Os primeiros anos fo-
sucesso não vem de graça, é
ao me mudar da casa da ram os mais difíceis. Todo
fruto de muitos sacrifícios e
minha mãe, fiquei vários escritor iniciante se depara
trabalho diário. Não existe
meses sem praticar, sem ter com os mesmos questiona-
vitória sem luta.
como pagar o transporte do mentos: o que escrevo tem
Neste mês de janei- piano. valor? É bom? Os leitores
ro, completo dez anos de gostarão?
Foi na escrita que encon-
carreira literária, desde o
trei a minha forma de ex- E disto deriva o deses-
momento em que conscien-
pressão, quando nada mais pero para fazer seus tex-
temente decidi que, um dia,
me restava. Assim como tos chegarem às mãos das
eu me tornaria um escritor.
ocorre com várias outras outras pessoas, de receber
No calor da batalha, não pessoas, pensei que escrever comentários, de confirmar
há tempo para pararmos e era simples — bastava uma suas expectativas de que ali
refletirmos sobre as derro- folha de papel e uma cane- está o futuro Prêmio No-
tas e conquistas, pequenas ta. bel. Sim, todos os escritores
ou grandes; todos os nossos almejam um dia receber o
Eu tinha apenas deze-
esforços destinam-se ao Nobel, mesmo que seja para
nove anos e acreditava, à
próximo desafio, ao próxi- recusá-lo, como fez Sartre!
época, que tinha muito para
mo combate a ser encarado.
contar. Como muitos, escre- Mas os outros não estão
No entanto, dez anos vi minha autobiografia. Mal interessados no que escreve-
depois, sinto que posso escrita, desinteressante, mal mos. Poucos podem dedicar
compartilhar um pouco do estruturada, mas que ser- seus preciosos minutos len-
que aprendi neste percur- viu como catarse. Acredito do as bobagens dum autor
so e, mais do que isto, que que pude exorcizar muitos desconhecido. Os poucos
eu também necessito desta dos meus medos, dos meus que se prestam a este papel
ponderação para reforçar
Foto: Henry Alfred Bugalho

fantasmas, dos meus entra- nada acrescentam — pais,


uma vez mais minha es- ves subconscientes naquele avós, irmãos ou amigos
colha, pois ser escritor no livro que jamais verá a luz raramente serão sinceros,
Brasil não é uma tarefa do sol. raramente lhe dirão na cara

www.revistasamizdat.com 53
que o seu livro é um lixo. obra. Enviei-lhe o manus- a acreditar que, daquela vez,
Produzi vários contos e crito de “O Canto do Pe- eu seria publicado. Tremia
dois romances nestes pri- regrino” e, no dia seguinte, todas as vezes que abria a
meiros anos. Acreditava recebi a resposta: ela queria caixinha do correio. Após
que, um dia, revolucionaria publicar o meu primeiro onze meses de espera, rece-
a Literatura, mas, relendo romance! bi a resposta: o livro havia
tais textos hoje, percebo Fui até a USP, encontrei- sido recusado.
como eram crus e ingênuos. me com ela e com o dire- Esta sequência de nega-
Estava engatinhando ainda, tor da Editora Com-Arte e ções, a sensação de patinar
precisando de orientação, assinei a autorização para no lugar, me angustiava.
ainda atrelado aos autores a publicação. No entanto, Será que eu tinha talento?
que eu lia ou admirava. a aluna se formou, os anos Deveria continuar?
Mas esta constatação se passaram, e jamais tive Já estava investindo nisto
leva anos para ocorrer; notícia da publicação. Logo há uns quatro anos e ape-
naquele tempo, eu ainda me depois, Chloris Casagrande nas recusas, só fracasso, só
indignava quando, ao ver o Justen, a escritora — aca- batendo a cara na porta...
resultado de um concurso dêmica da Academia Pa-
literário, descobria que meu ranaense de Letras — que
nome não estava entre os havia prefaciado o romance, Internet
primeiros colocados, e me tentou encaixá-lo numa
série de publicações organi- Em 2004, publicar na
revoltava ainda mais ao ler
zada pela Câmara de Depu- internet ainda era arriscado.
os contos ganhadores e ter
tados de Curitiba. Entreguei Todos falavam em cópia,
a certeza de que os meus
o original no escritório de plágio e outras violações de
eram muito melhores. Será
editoração, mostraram-me direitos autorais.
que todos eram cegos? Ou
será que minha genialidade o boneco das publicações, Só é vítima de plágio ou
os cegava? mas nada, até hoje parece cópia aquele autor que tem
que este projeto não saiu do algo a perder.
Nada disto, eu apenas es-
papel.
tava no processo de forma- Eu não tinha nada per-
ção, de desenvolvimento, de Neste mesmo período, der, não tinha leitores, mas
aprendizado. recebi minhas primeiras tinha na gaveta uma porção
cartas de recusa para o se- de textos. Por que não lan-
Mesmo assim, o meu
gundo romance, “O Rei dos çá-los na rede e pagar para
primeiro romance bateu
Judeus”, que chegavam com ver? Por que não ingressar
na trave da publicação por
tamanha rapidez que eu só neste mundo e experimen-
duas vezes. Na primeira,
podia acreditar que nin- tar a escrita num blog?
uma aluna do curso de edi-
guém havia sequer folheado
toração da USP procurava Por que não?
o manuscrito.
um autor para publicação. Criei um blog, depois
Tratava-se do projeto de Todavia, uma das edito-
outro, e, num intervalo de
conclusão de curso dela e ras demorou tanto tempo
meses, já tinha meia dúzia
ela precisava editar uma para responder que cheguei
deles. E, pela primeira vez,

54 SAMIZDAT fevereiro de 2010


também tinha leitores.
Que sensação extra-
ordinária esta de chegar
em casa, acessar seu blog
e encontrar nele alguns
comentários. Elogios ou
xingamentos, tanto fazia, o
importante era saber que
havia alguém lendo o que
eu escrevia, e que se co-
movesse tanto, positiva ou
negativamente, a ponto de
ter de me escrever de volta.
O mais incrível era pen-
sar que, naquela imensidão
da internet, alguém havia
encontrado meus textos e
gasto alguns instantes para

Foto: Denise Nappi


lê-los. Entre milhões de
sites, blogs e textos, alguém
havia escolhido os meus!
Nesta época, escrevi um
ler livros sobre a escrita, ria virtual para produção e
romance diretamente num
estudar inclui ler obras de leitura de textos.
blog, “O Covil dos Inocen-
outros autores — reconheci- Acredito que tenha sido
tes”, que devia ter uns quin-
dos ou não — e, principal- esta última a grande res-
ze leitores fiéis e, depois,
mente, praticar. ponsável pelo escritor que
tornou-se um livro. Quase
todos os meus contos, de- A escrita, como qualquer hoje sou, que me fez perce-
pois de revisados, também outro ofício artístico, exi- ber quais eram meus erros
iam ao ar. ge a prática quase diária. e vícios de escrita, e na qual
Quanto mais tempo dedi- pude receber, pela primei-
Eu ainda não era conhe-
camos ao ofício, maior é o ra vez, pareceres sinceros
cido, mas saciava o meu
domínio sobre ele. sobre meus textos.
desejo por ser lido.
Com este intuito, foi O valor deste tipo de
criada a comunidade “Escri- leitura para um escritor
Oficina da E-TL e Revista tores – Teoria Literária” na é inestimável. Ouvir elo-
SAMIZDAT internet, para debates sobre gios é ótimo, motiva-nos a
a escrita, para o aperfeiçoa- continuar, mas a crítica é
Eu havia constatado, mento mútuo dos escritores essencial. É apenas quando
desde o princípio, que o e, posteriormente, a “Oficina alguém toca nossas feridas
importante, na escrita, era da E-TL”, uma oficina literá- expostas que descobrimos
estudar sempre. Além de

www.revistasamizdat.com 55
como remediá-las. várias outras publicações e E não é tão difícil prever-
Foi com vários escritores sites nacionais e internacio- mos se uma ideia dará um
desta oficina que criamos a nais. Atualmente, o “Jornal bom livro, ou se encalhará
“Revista SAMIZDAT”, uma da Record” está preparando e acabará no lixão.
revista digital que hoje uma matéria sobre nós. Ainda erramos, é ób-
considero como o projeto Do mesmo modo que vio; ainda nos dedicamos
literário que mais me dá minha carreira na escrita a projetos que fracassarão,
motivos de orgulho. São havia começado aciden- mas a experiência nos
dois anos de publicação talmente, também foi por ajuda a compreender me-
mensal ininterrupta, com acidente que concebi e rea- lhor onde falhamos, e lidar
textos de altíssima qualida- lizei meu primeiro projeto mais humildemente com os
de, mas que voa bem mais bem-sucedido. sucessos.
baixo do que poderia. Aliás, foi este trabalho A carreira literária não é
que gerou meus primeiros como o lançamento de um
trocados com a escrita, foguete, que num minuto
Mãos-de-Vaca
após muito tempo gastando está no solo e, logo em se-
Apesar dos vários ro- dinheiro com papel, correio, guida, deixando a atmosfera
mances e da quase centena cartuchos de impressora, ou rumo ao espaço. A carreira
de contos escritos, o meu inscrições para concursos. literária é uma longa ca-
projeto que realmente ob- Inicialmente, foram apenas minhada, um passo após
teve algum reconhecimento poucos centavos por mês, o outro, sob sol escaldante,
nada tem a ver com Litera- mas, em breve, graças ao cheio de pedras e buracos
tura. “Nova York para Mãos-de- no trajeto.
Vaca”, poderei realizar o Não há metáfora mais
“Nova York para Mãos-
objetivo de viver exclusiva- batida, tampouco mais
de-Vaca” foi um dos inú-
mente da escrita. apropriada.
meros blogs que criei, junto
com minha esposa, trazen- Neste período, percebo
do dicas baratas de Nova Considerações finais que obtive algumas con-
York. O número de leitores quistas, mas muito ainda
cresceu exponencialmente Há mudanças drásticas há para ser feito. Direta-
e, em menos de um ano, entre o que escrevi nos pri- mente, desde os meus blogs
estávamos dando a primei- meiros anos e o que escre- ou sites, meus textos foram
ra entrevista para a Globo vo hoje. Acredito que hoje acessados por mais de 600
Internacional. Em três anos escrevo mais e melhor. E mil leitores, indiretamente,
de publicação, este trabalho também é mais fácil orga- imagino que por mais de
foi assunto para entrevistas nizar meu tempo e concluir um ou dois milhões. Não
e reportagens na Revista um livro. sou um “sucesso instan-
TAM, no portal Terra, no Aos poucos, descobri- tâneo”, tal qual no ditado
jornal “O Globo”, no jornal mos alguns macetes, alguns hollywoodiano, mas este
“Estado de S. Paulo”, na Tri- atalhos, o que funciona e o ano de 2010 promete!
buna de Santos, no SBT, em que não funciona tão bem.

56 SAMIZDAT fevereiro de 2010


Coisas que aprendi sobre a escrita nestes 10 anos

1 – Leia, estude e es- bibliotecas, ou cole-os 8 – Escreva corretamen-


creva sempre. Ninguém em postes. Se você quiser te e com clareza. Utilizar
aprende a escrever me- realmente ser lido, deixe sua língua de maneira
lhor lendo; aprende-se a de ser invisível. correta é muito mais fácil
escrever melhor escreven- 6 – O conceito de su- do que parece e, acredite
do. Mas leitura e escrita cesso é relativo: alguns em mim, seus leitores per-
são indissociáveis. querem ficar ricos, famo- ceberão e apreciarão um
2 – Poucos autores vi- sos, admirados, realizados, texto bem escrito. A lín-
vem exclusivamente com ou qualquer outra defini- gua é sua matéria-prima,
o lucro de sua escrita, e ção. Descubra o que sig- por isto, é fundamental
mais raros são os que en- nifica ser bem-sucedido conhecê-la e respeitá-la.
riquecem com Literatura; para você e persiga esta 9 – Assim que você
portanto, não se martirize meta. Nada garante que concluir uma obra, seja
por jamais ter ganhado você conseguirá, mas é um conto ou um romance,
um centavo com seus tex- muito mais fácil ter um deixe-o descansar por uns
tos, você não é o único. objetivo do que ficar va- dias ou semanas. Quan-
3 – Jamais subestime os gando a esmo. do você o ler novamente,
leitores. Eles sabem muito 7 – Todos os escritores encontrará erros e proble-
bem o que gostam e o que gostam de receber elogios, mas que nem imaginava.
querem ler. Comumente, não existe motivação me- Nada é tão bom que não
o autor é o único culpado lhor. No entanto, aprenda possa melhorar. Contudo,
pelo próprio fracasso. a conviver com as críticas. saiba quando pôr o pon-
Muitos o criticarão por to-final e avançar para o
4 – Jamais menospreze
inveja, simplesmente para próximo projeto.
o poder da propaganda,
seja na mídia ou no boca- destruí-los, mas outros 10 – Quase todo mun-
a-boca. Ninguém lerá o apontarão seus erros na do quer, ou já quis uma
que você escreve se não expectativa que você os vez na vida, ser escritor.
souber onde encontrar corrija. Saiba discernir Nem todos conseguirão,
seus textos. entre a crítica maldosa e nem todos têm o talento
a benéfica. É melhor ter necessário. Assim como
5 – A era de domínio
por perto alguém para nem todos podem ser
das editoras passou. Se
corrigi-lo, do que cente- astronautas, engenheiros
nenhuma quer publicá-lo,
nas de aduladores que o ou médicos. Alguns con-
disponibilize suas obras
incentivem a continuar seguirão; a maioria não.
na internet, ou imprima
errando. Mas isto é algo que só
seus textos e deixe-os em
descobriremos tentando...

www.revistasamizdat.com 57
Teoria Literária

Teorizando o concludo
Caio Rudá de Oliveira

O concludo não é re- tica ganhasse nome, antes acidentalmente delineado.


sultado de um esforço existindo somente em sua Assim, falar em gênese do
teórico para desenvolvê-lo. funcionalidade. concludo é também discutir
O empenho, no sentido de Certamente, apenas a própria atividade artística.
lapidá-lo, surgiu quando de reunir suas característi- Ironicamente, a casua-
uma sequência de poemas cas enquanto poema num lidade em questão, funda-
em que vi repetido um texto expositivo seria de mental ao amadurecimento
relativo padrão no núme- um reducionismo comple- da nova fórmula poética,
ro e arranjo de versos. Tal tamente oposto à sua natu- parece em xeque quando se
relativa despretensiosidade reza poética. A origem do remonta ao primeiro poe-
serviu para que somente concludo está diluída em ma escrito com o arranjo
após a organização desse alguns poemas e compre- característico dos versos
artigo a nova forma poé- ende um modus operandi – um simples 6 – 3, isto é,

58 SAMIZDAT fevereiro de 2010


uma primeira estrofe com ma, o rápido intervalo entre minha mera gaita de foles
seis versos e uma segunda estrofes, o hiato essencial, desafinada.
com três – na medida em é componente importante,
que o poema trata da ques- que condiciona uma pausa
tão do fazer poético: com a qual o poeta traba- Romance meu sem início nem
lha na percepção do leitor fim,
e que antecede surpresa, de-
poiesis somente acompanhado meio
cepção ou outro sentimento
poesia é mais que rimar repentino,
desejado pelo poeta.
meia-dúzia de vocábulos, a concepção sorrateira desse
O desfecho, em que o po-
não é um mero brincar eta realmente diz concludo¹, poema.
é pontual. A última estrofe
com as palavras,
não pode ser uma pro-
tampouco expressão Somente para finalizar, o
posição, mas atestamento,
concludo é um projeto po-
dos sentimentos. uma conclusão encerrada
ético que desperta a refle-
no limite do poema. Ain-
xão, não se preocupa com
http://www.flickr.com/photos/22002893@N05/2742111774/sizes/l/

da que, de maneira geral,


poesia é quando você olha métrica e embora seja uma
restem incertezas acerca da
para o papel e não consegue
forma fixa, por dar ênfase
matéria debatida, o poema
à questão dos significados,
deixá-lo em branco. precisa ser finalizado em
acaba proporcionando ao
seu último caractere.
poeta grande liberdade de
Assim, após vários ver- abarcar o que quiser com o
Escrever um concludo
sos terminados, surgiu o bônus de chegar a um obje-
envolve, portanto, o desen-
primeiro concludo delibe- tivo no fim das contas. Em
volver de uma idéia, refle-
radamente escrito como tal, última análise, o concludo
xão, elucubração, dúvida,
Insônia: é mais uma fórmula do que
questionamento, posição ou
asserção em uma estrofe e uma forma; suas caracterís-
posterior e imediata conclu- ticas centrais são o apelo
são na segunda. Esse valor ao ato de reflexão no limite
Um desassossego à noite me
semântico identificado em das 9 linhas. Nessa receita,
poiesis e em outros poemas veio qual peça de arte. mais importam os ingre-
abrangidos pela proposta, Não me concentrava senão no dientes do que a tigela.
encontrou institivamente na balançar
fórmula 6 – 3 a construção
da cortina ao vento, uma rubra ¹ Concludo é a conjugação
ideal, justificada pela ade-
do verbo latino concludere
quação rítmica da quebra pintura expressionista
(concluir) na 1ª pessoa do
de estrofe. A retomada na em penumbra, cena fatídica de presente indicativo.
brevidade de três versos sig-
filme noir.
nifica, além do eficaz efeito
sonoro, uma adequada com- Desconfiei de contratempos

posição estética. Dessa for- em sol na bexiga,

www.revistasamizdat.com 59
Teoria Literária

Sobre escritores
e suas drogas
Caio Rudá de Oliveira

60 SAMIZDAT fevereiro de 2010


As drogas desde há quase mais se acredita que todas tífica atual para o fenôme-
um século, pelo menos, tem as pessoas estejam condicio- no das drogas, condena-se
sido um assunto de total nadas aos mesmos efeitos, e figuras ilustres da História.
rejeição social. Nem sempre que esses resultam de uma Imperadores, intelectuais
foi assim, no entanto. Desde combinação da substância, e escritores, todos eles se
os primórdios, a humanida- expectativas do usuário e revelam, em alguma medi-
de faz uso dessas substân- meio sócio-cultural¹. da, consumidores de psi-
cias, e somente no último Esse modelo tripartido coativos. Mas o que vem a
século devido a aspectos do uso de psicoativos foi ser a literatura da droga, ou
legais o proibicionismo veio e é sustentado por várias drug literature? Essa é uma
a ser a tônica do discurso autoridades, médicos, antro- pergunta que Boon traz,
popular e científico. pólogos e psicólogos, a citar com a reserva de considerar
Esse artigo tenta fazer o psiquiatra estadunidense esse conceito amorfo, dado
um pequeno estudo acerca Norman Zinberg, que ao de- que, ainda que seja excluí-
da literatura da droga, isto senvolver o trinômio ¹drug- da a literatura científica da
é, acerca da relação entre set-setting, provou que não catalogação, não se chega à
drogas, escritores e Litera- há protótipos de usuários, sua definição exata. Para o
tura. Como aponta Marcus contribuindo assim para a presente artigo, a literatura
Boon em sua obra The diminuição do preconceito da droga consolida-se como
Road of Excess, “literatura diante deles. o conjunto de textos artís-
e drogas são dois domínios ticos ou não que mantêm
Com efeito, a tendência
dinâmicos da atividade alguma relação com o uso
da ciência é cada vez mais
humana que evoluíram em de substâncias psicotrópi-
fazer ir por terra a informa-
paralelo e estão ligados cas, seja como matéria de
ção aterrorizante, unilateral
com muitos outros cam- escrita ou artifício do mo-
e preconceituosa do antigo
pos, sejam eles humanos ou dus operandi do autor.
discurso médico. Em outras
não”. palavras, busca-se atual- Encontrar um ponto de
mente substituir a visão partida para o estudo da
das drogas enquanto cau- drug literature não é tarefa
Realidade social da em que todos costumam ser
sa dos problemas sociais.
droga unânimes, mesmo porque
Alguns teóricos do assunto,
inclusive, escrevem que os essa seria uma ocupação
O universo científico arbitrária. Alguns vêem
psicoativos em si não são
ainda é relutante em deixar no poeta inglês Coleridge
bons nem ruins. Mais uma
http://www.flickr.com/photos/kellymallory/3264005029/sizes/l/

de lado o determinismo um divisor de águas nesse


vez cita-se Boon, quando ele
farmacológico das substân- sentido, um introdutor da
diz que “as drogas não tem
cias psicoativas, mas tem noção de exploração do
sentido fora do contexto
havido sérias mudanças no mundo interior através do
nas quais são usadas”.
direcionamento dos estu- uso de psicoativos. Porém,
dos, muitos dos quais têm Boon credita ao também
formado um novo paradig- inglês Thomas de Quincey
Drug literature
ma para o entendimento do e sua obra Confessions of
consumo de tais substân- O fato é que se não se an English Opium Eater o
cias. Significa dizer que não aceita a interpretação cien- pioneirismo nessa relação

www.revistasamizdat.com 61
simbiótica entre drogas e esboçados. A partir desse café. Vários fatores parecem
literatura. tempo o ópio ressurge com explicar esse fato, como a
A partir dessas conside- força total: Goethe, Novalis, legalidade do produto e a
rações, surge outra ques- Coleridge, Shelley, Byron, facilidade de preparo, além
tão. Sendo Coleridge e De Wordsworth e Keats, mos- de ser uma bebida aprazível
Quincey contemporâneos tram consumo regular de ao paladar.
e precursores, seria a lite- ópio. Por sua vez, Baudelai- Kerouac aparece como
ratura um campo livre das re, Rimbaud, William James um nome forte, quando o
drogas antes deles? Abso- e Nietzsche interessam-se assunto é uso de anfeta-
lutamente não. Estudiosos ou escrevem sobre a ebrie- minas. Diz a lenda que ele
apontam que as drogas dade. escreveu sua obra principal,
sempre tiveram e ainda Avançando a linha do On The Road, em apenas
possuem uma função na so- tempo, Sir Arthur Conan duas ou três semanas.
ciedade que, provavelmente, Doyle foi um famoso con- O filósofo Jean-Paul
permanecerá ao longo de sumidor de cocaína, cujas Sartre é frequentemente
toda a existência humana. condições de usuário ele lembrado pelo seu uso
Homero, na Odisséia, faz transfere para seu persona- constante de drogas, entre
menção a um analgésico gem mais ilustre, o detetive as quais corydrane, compos-
provavelmente derivado Sherlock Holmes. Ainda so- to de anfetamina e aspirina.
do ópio. Também Marco bre a cocaína, cita-se Freud Segundo a biógrafa Annie
Aurélio, imperador romano e seu entusiasmo com a Cohen-Solal, ele acordava
e filósofo nas horas vagas, substância, da qual foi um com uma xícara de café e
supostamente está entre um defensor em parte de sua um tablete de corydrane,
dos antigos consumidores vida, e provavelmente um depois dois, três – quantos
de ópio. E esses são apenas usuário durante toda ela; fossem enquanto durasse a
dois exemplos do comu- ainda assim, um dos mais escrita. Dessa maneira foi
níssimo hábito do ópio, na brilhantes sujeitos de todos escrito toda A Crítica da
Antiguidade. os tempos. Razão Dialética.
Durante a Idade Média, Tem-se, então, os clássi- No outro lado da rua,
devido às circunstâncias da cos casos de Balzac e Jean- em contrapartida ao speed
época, não é de se admirar Paul Sartre: em comum, o das anfetaminas, tem-se
que se encontre pouca ou abuso de substâncias esti- a maconha e o haxixe e
nenhuma referência às dro- mulantes, hábitos de vida sua “serenidade” induzida.
gas. Sequer falar nelas era pouco saudáveis e excesso Na coleção As Mil e Uma
risco de ser ligado a rituais de trabalho num ritmo Noites, clássico da litera-
de magia e ir parar na fo- alucinante. Acredita-se que tura persa, há pelo menos
gueira, conseqüentemente. Balzac tenha consumido duas histórias envolvendo o
em torno de 50.000 xícaras haxixe. Porém, é na França
Na época seguinte, no en-
de café em seus 51 anos do século XIX que o con-
tanto, com o Renascimento,
de vida. Também Marcel sumo essa droga parece ter
já não se fala no binômio
Proust e Francis Fitzgerald, sido comum entre alguns
drogas-concupiscência,
George Buffon, Denis Dide- grupos.
associação perigosíssima
rot e Jean-Jacques Rousseau
séculos antes, e vestígios Moreau de Tours é
eram grandes bebedores de
de liberdade passam a ser acreditado ter introduzido

62 SAMIZDAT fevereiro de 2010


o haxixe na cena artística Artaurd, o belga Henri Mi- autor como uma entidade
parisiense, através do Club chaux, e, óbvio, Aldous Hu- sobrehumana.
des Hashishins – entre os xley e seu grande interesse Foi possível identificar
artistas que freqüentavam sobre a percepção humana. determinados padrões de
estavam Honoré de Balzac, Muitos outros artistas, mú- uso de certas substâncias,
Gérard de Nerval, Eugène sicos e escritores, de algu- o que confirma a idéia da
Delacroix, Honoré Daumier, ma maneira ou de outra, droga enquanto elemento
Alphonse Karr, Gautier, e estiveram ligados com os social, e como tal sujeito às
Baudelaire. psicodélicos, especialmente transformações que as so-
Há também um manus- no século passado, mas a ciedades passam. Os escri-
crito publicado por um jor- lista é tão grande e tão di- tores opiômanos refletiam
nal austríaco, supostamente versa que seria insuficiente uma crise da subjetividade,
escrito por Goethe, em que enumerá-la aqui, merecendo os célebres usuários de co-
ele narra uma experiên- maior e destacada atenção caína, como Freud, desafia-
cia com o haxixe. O texto numa outra oportunidade. ram paradigmas, as anfeta-
seria, inclusive, a primei- minas foram coadjuvantes
ra menção à fome aguda em várias obras em um
Considerações finais
provocada pelo consumo século XX marcado pela
de tal substância, conheci- rapidez. Enfim, escritores e
Conforme foi visto, ao
da como “larica”. De acor- suas obras são resultado do
longo da história da huma-
do com Boon, Coleridge e seu contexto sócio-cultural,
nidade, drogas e literatura
De Quincey não tem seus ao mesmo tempo em que
estiveram de algum modo
nomes associados apenas ao o transformam. Em última
conectadas, embora seja
consumo do ópio, mas tam- análise, a escrita, ato tão in-
comum entender a arte lite-
bém teriam experimentado dividual, é sempre moldada
rária como uma zona pura,
haxixe em alguma oportu- pelo social.
etérea, em cujos domínios
nidade.
nada parecesse imperar se-
O artigo não poderia não a criatividade e o esfor-
estar completo sem tocar ço da técnica. No entanto,
* Esse artigo foi adapta-
nos psicodélicos. Visto que a droga aparece na história
do de um pequeno ensaio
esse seria um campo mui- da literatura como uma
acadêmico para a disciplina
to fértil, estão relatados ferramenta para expandir a
Sócio-antropologia das Dro-
aqui apenas alguns casos percepção e conceber his-
gas, ministrada pelo professor
de autores e suas “viagens”. tórias fascinantes ou pontos
Edward McRae, do curso de
Nesse sentido, encontram-se de vista aguçados, ou para
Psicologia da Universidade
nessa galeria a obra Alice intensificar o ritmo de es-
Federal da Bahia. Para con-
no País das Maravilhas, de crita. De todo modo, as dro-
sultar as referências, clique
Lewis Carrol, e sua evidente gas em suas mais diversas
aqui.
referência ao cogumelo alu- representações estiverem
cinógenos amanita musca- e provavelmente estarão
ria, a aletheia de Heidegger, presentes no fazer literário,
Jünger – utilizavam LSD –, simplesmente porque sendo
Foucault e Deleuze, o escri- essa uma atividade humana
tor Witkacy, o surrealista torna-se impossível ver o

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Recomendação de Leitura

O Sapateiro,
A anatomia de um psicótico
vez, conta, com destreza, um e o demônio fazia com que o
Giselle Sato dos raríssimos casos, em se passarinho crescesse e ficas-
tratando de serial killers, em se duro, obrigando Joseph a
Se você pensa que já leu que foi possível diagnosticar fazer coisas ruins com ele.
tudo sobre grandes assassinos com precisão a origem de Mas agora o doutor havia
psicóticos e não conhece O sua psicose. expulsado o demônio com a
Sapateiro, com certeza deixou Aos cinco anos de idade, faca, de modo que o passari-
passar uma grande oportuni- Joseph foi submetido a uma nho de Joseph ficaria sem-
dade. cirurgia de hérnia. Seus pais pre pequeno. Na noite deste
A autora é Flora Rheta adotivos, um severo casal de mesmo dia, Joseph teve a sua
Schreiber, psiquiatra e autora alemães, explicaram a ope- primeira visão: o seu próprio
de Sybil. ração para a criança de uma pênis, amputado, pendendo
Em O Sapateiro, A anato- forma bem original: eles dis- da lâmina da faca de sapa-
mia de um psicótico, Flora seram que havia um demô- teiro de seu pai adotivo. A
não foge a regra e, mais uma nio no “passarinho” de Joseph, partir daí, Kallinger passou a

64 SAMIZDAT fevereiro de 2010


associar facas e sexualidade torah. assassino, mas sim que o
de tal forma que, mais tarde, Em companhia de seu assassinato foi o efeito inevi-
só conseguiria manter uma outro filho, Michael, na tável da psicose de Kallinger.
relação sexual e mesmo che- época com doze anos, Joseph Incapaz de saber a diferença
gar ao orgasmo se estivesse Kallinger matou ainda três entre suas visões e a reali-
segurando uma faca. pessoas antes de ser preso. dade, entre os fantasmas que
Ele começou a desenvolver Após algumas tentativas de o assombravam e as pessoas
um quadro de esquizofre- suicídio e ataques a outros que pensava estarem tentan-
nia paranóide, talvez a mais presos, finalmente morre do destruí-lo. Era repleto de
penosa e avassaladora dentre em 1996. O mais fascinante paradoxos.
as doenças mentais. As visões nesta história são as questões O relato é rico em deta-
http://www.flickr.com/photos/davepattern/2098969524/sizes/l/

começam a se multiplicar, que ela nos coloca: até que lhes da infância e criação,
Kallinger, agora exercen- ponto o mal é uma opção? do ódio e os motivos que
do a profissão de sapateiro, Somos realmente senhores de o levaram a tornar-se um
como seu pai, recebe a visita nosso destino? Kallinger es- monstro aos olhos do mun-
de Deus, que o ordena que palhou dor e sofrimento por do. Uma criança, moldada
salve a humanidade através onde passou, mas ele próprio por pais doentios, anos a fio,
da construção de um sapato sofria e precisava desespera- torna-se um ser sem qual-
apropriado, com a proprieda- damente de ajuda. quer traço de comoção ou
de de curar as enfermidades O Sapateiro é um livro piedade. Toda a infância de
da alma. onde o personagem principal Joseph é dissecada, o poder
Após cerca de 40.000 explica sua tendência ho- aterrorizante da fantasia e
experimentos ortopédicos micida, o que o impele a ir desejo sexual, dominam e
que obviamente fracassaram, além de todas as convenções distorcem a personalidade do
Kallinger tem outra visão, e limites. A alma humana é menino. O órfão que desde
desta vez do Diabo. O Dia- dissecada, exposta sem pudor o nascimento só recebeu re-
bo lhe diz que, já que havia de chocar pelos detalhes jeição e brutalidades, castigos
falhado em salvar a humani- sórdidos. O relato, nos míni- e humilhações, retribuiu ao
dade, sua missão agora seria mos detalhes, do mais brutal mundo o que aprendeu.
exterminá-la: ele deveria dos assassinos, aconteceram Capaz dos piores atos, do
matar cada homem, mulher quando este estava na cadeia, sadismo, crueldade pura e
ou criança na face da Terra no condado de Camden, em distorção da realidade, Jose-
através da mutilação de seus 1977. Em forma de confis- ph Kallinger é tanto poeta
órgãos genitais. sões, Joseph procurou alívio quanto homicida. Transita
Sua primeira vítima foi aos seus tormentos, através entre a fantasia, horror e
seu filho mais velho, que de longas conversas com a obsessão, com a desenvoltura
depois passou a assombrar autora. da loucura, lutando contra
o pai, na figura de Charlie, Segundo a Dra. Schreiber , seus próprios demônios. A
uma cabeça flutuante sem o assassino psicotico é muito proposta é um mergulho nas
nariz ou boca que o incita- diferente de um assassino profundezas do horror hu-
va a cometer novos crimes. psicopata. Este ultimo mata mano, o leitor é mero expec-
Outra alucinação freqüente por dinheiro ou pelo prazer tador da narrativa vívida dos
era a Voz do Poço, uma can- de matar,enquanto o primei- atos praticados.
tilena fantasmagórica em um ro o faz por causa de sua E uma obra obrigatória
idioma desconhecido: Kryos psicose. Isto não significa para quem busca compreen-
Mary Kristos Kristorah Kris- que todo psicótico seja um der a verdade sobre o assom-

www.revistasamizdat.com 65
broso mundo interno de um but I held back the expression and to me was the command
psicótico arrastado para a in- of it of God, a vengeful,
sanidade e o assassinato. Sem when I could wrathful God.
dúvida, estimulará qualquer There were times that I He was telling me I could
um que se interesse pelo couldn’t: become God myself by destroy
estudo do comportamento times of beating my head us I had been destroyed.
humano e criminologia. against My anger, hot and piercing,
Algumas poesias de the wall and running wild with had led to what I wish
Kallinger em versão original, rage. I had not done.
valem a pena serem lidas, ne- I didn’t fight other kids; And, despite God’s promise
las ele demonstra claramente when I didn’t my adoptive that I would become God,
sua instabilidade emocional. mother I am not God today.
called me chicken and yellow; All I am is a mental patient
but if I had, she would have on leave from prison,
been angry out of the world that fed my
Enraged generating anger in me. rage
Hot anger has coursed through Anger turned like a water
me wheel;
all my life, my adoptive parents’ anger
feeding
Disappointments In My
I see it now,
mine and mine theirs.
Life
I had not recognized the signs
before. I carried a rage into manhood, When I was a little child
Anger, my biographer tells me, although when I first married, I was put in an orphanage
began even before my birth I dreamed of a normal life. for adoption , my first
Not anger then, but But things went sour and my disappointment. After I was
that of my mother who wife, adopted my adoptive parents
wished I had not been concei- angry for reasons of her own, never gave me any love
ved. walked out on me after taking and were cruel to me,
My anger came when up with another man. child abusers, my second
at the age of one month I cannot know, but I believe disapointment in my life.
my mother gave me up, he had more sexual power I was never allowed to play
turning me over to the care of than with other kids or have
starngers; a private boarding I had to offer. friends in my adoptive parents
home, Once my wife was gone, my house all of my young life
an orphanage anger with them, my third disap-
and then my adoption by a grew and grew. pointment,
middle-aged My second marriage led to in my life. When I grew up
childless couple that kept re- angers and got
minding me of its own, married and had children
they were my benefactors. culminating when my children, she ran around with other
They were also always threa- the three total gods of my men,
tening doom, and neer took care of our
to send me back to the orpha- had me locked up. children and finally left me
nage. In time my anger found an for another man and I had
Each time they did, my anger outlet in what the world calls to raise the children alone, my
flamed, crime, fourth disapointment in my

66 SAMIZDAT fevereiro de 2010


life. the banging sound of the large who will rule this, Your Una-
Later when I remarried and stainless steel lids verse
had more children, She was being taken off the trays, as your Antichrist,!-----
childlike and always on the being laid on top with a bang: and during the, Great Tribula-
fringes of everything. She didn’t These sounds open my eyes tion, Period
love our children and never and as I look around I will enter into the new tem-
took the guards march by ple,
care of them and finally left with three trays of food in Jerusalem,----
me, for the men back in the main and proclaim my self as your
My fifth disappointment in my hole God
life. After that I learned I was of this prison, for I the Antichrist am God,!----
severely mentally ill and it had and then I hear the clanging and there will be put, ----
started already in childhood. sounds as I put in the New temple, ----
My sixth disappointment in of each spoon being counted, a statue of myself---
my life. each The Antichrist!-----
From then on my life got incre- being dropped against the God--Your God--I-the-Anti-
asingly stainless christ,!
worse, I went on a six month steel tray: my final waking bell. for I then your God, ----
crime spree. I robbed and Will rule the World,------
murdered as your only God!---
people, My seventh disappoint-
Odd Man and Dictator,!----
ment odd man at the trial for I am the Antichrist,!-----
in my life. Shortly after that I odd man all the while I am,!---& The Antichrist! of
was what journalist’s eye End-Time
arrested and tried for my could write my fearful fright?
crimes
and sent to prison for the rest
of my
live, My eighth disappointment My Home
in my
life. My whole life started out My home is my
in castle and I pray
disappointment and ended in nothing evil will
disappointment ever come cross my door
disappointment is all i have to
remember End-Time Song
for a lifetime
I shall arise from the east to
rule the world,-----
for I am a Beast, ---- they say!
My Final Walking Bell a Man of sin, ----they say!
Yes! that’s right, I am the Anti-
As I rise this morning
christ
I roll out of bed
The Antichrist,!----
to the noise of the food cart
Yes!-I will be, your worlds
being rolled on to the
Dictator:
head of the block,

www.revistasamizdat.com 67
Crônica

Parindo Letras
Ju Blasina

68 SAMIZDAT fevereiro de 2010


A tarefa de escrever se mesclam ao mundo E o que pretendo alcan-
é complexa. Exige mui- e às pessoas com quem çar com aquilo que crio?
to mais do que tempo e interagem tornado-se tão Perguntas retóricas, cujas
dedicação, muito mais do diferentes que o criador repostas utópicas não são
que insight e inspiração, sequer os reconhece — requeridas.
exige coragem e doação. pensando bem, talvez não
Coragem para se expor difiram tanto dos filhos... ... Ah, se um dia mi-
aquilo que se tem de mais É impossível prever seu nhas letras fizerem correr
privado — as emoções — e futuro, o caminho que tri- uma lágrima, mesmo que
doação para oferecê-las a lharão. Aos pais, só resta pequena, ou se um sorrir
estranhos, numa bandeja. exercitar a árdua tarefa discreto se abrir, se um
É preciso ser generoso o do desapego e torcer pelo coração acelerar de leve
suficiente para doar sem melhor. ou bater a saudade pelo
nada esperar em troca. que foi ou deixou de ser,
Parir letras é dedicar a a ansiedade pelo que está
Mesmo que o eu lírico vida a algo cujo retorno é por vir... Neste dia, encon-
não leve de todo o autor invisível, impalpável e si- trarei o baú do tesouro
consigo, na crônica eles lencioso, cuja recompensa que todo escritor persegue.
se encontram e se tan- — para a grande maioria Um tesouro que pode até
genciam assim como a dos novos escritores — não não comprar coisas, nem
tangente que se faz entre pode ser medida em valo- fazer desta a melhor das
ficção e realidade. O autor res que compram coisas, profissões, mas que certa-
dá luz às palavras, como e pela mesma razão, não mente fará de mim a mais
a um filho: ele as gera e ganha o reconhecimento rica das criaturas!
as vê rapidamente crescer do mérito que tem.
sobre o papel, e quando
se sente orgulhoso — sim, Às vezes me tão sinto
cheia de medos, vazia de Os filhos superarem aos
porque a vaidade da cria- pais é o destino que deles
ção é própria da natureza idéias e estéril de palavras,
que busco inspiração nos se espera. Que tenham
humana — as vê partir, uma vida longa e próspera,
autônomas, ganhando o filhos alheios, aqueles que
já ganharam o mundo e e nela encontrem aquilo
mundo. Dá um friozinho que procuram, e com ela
na barriga, misto de receio imortalizaram aos pais
(Quintana, Manuel de marquem o mundo. Que
de não as ter ensinado criem asas e voem longe:
bem e medo de que o Barros, Danuza Leão e os
Fernandos, Sabino e Verís- é isso que desejo as letras
mundo não as trate com que torno minhas!
o respeito e carinho que simo, são os favoritos). E
merecem. eis que então me pergun-
to: De onde vem tamanha
http://www.flickr.com/photos/jeremybrooks/3320242040/sizes/l/

Diferente dos bons fi- pretensão (a minha) de Afinal, não é isso o que
lhos, quanto melhores são gerar ideias, adestrar letras todo pai deseja?
os textos, mais distante do em textos e, mais ainda:
autor eles vão parar. Eles mandá-los ao mundo?

www.revistasamizdat.com 69
Crônica

Saramago em
Concerto Joaquim Bispo

70 SAMIZDAT fevereiro de 2010


Na última passagem de Seria possível encher um
ano, desloquei-me com o pavilhão, a pagar, para ver
grupo familiar habitual ao um autor a criar um conto?
espaço fronteiro à Torre de Várias câmaras captariam a
Belém, onde a autarquia pro- folha onde o escritor alinha-
metia música e fogo de ar- ria as palavras, apresentando
tifício. A surpresa foi muito em grandes ecrãs panorâ-
agradável. Até à meia-noite, micos, com que palavras
actuou um conjunto muito começava, quais cortava,
curioso: é formado por três mostrando o conto a nascer
violas, bateria, piano e três e a crescer paulatina, mas
metais, só tocam músicas dos inexoravelmente. Outras câ-
Beatles, copiam-nos em tudo, maras mostravam que apoios
até nas roupas. Dão pelo consultava, que palavras
nome de «Get Back Beatles» procurava nos dicionários,
e são brasileiros. O esforço que partes ia aproveitando.
rende resultados: abstraindo- Seria de evitar que o escritor
nos um pouco, quase acredi- usasse computadores, que
tamos que estamos a ver e a embora tornassem a histó-
ouvir os autênticos, quarenta ria visualmente mais limpa,
anos depois, em Lisboa, todos fariam desaparecer as partes
vivos e jovens. rejeitadas, que no papel se
conservam riscadas como
Admirei estes fulanos por cicatrizes do lutar literário.
terem conseguido arranjar Quando muito, uma secre-
um nicho de mercado origi- tária, bonita e eficaz, iria
nal e rendoso. passando a computador e
mostrando em ecrã próprio a
Este revivalismo vem história num evoluir limpo.
acontecendo com outras O frenesi no público aumen-
formulações. Tomei conhe- taria, à medida que algumas
cimento que, num clube variantes da história eram
privado, um grupo fazia a abandonadas, nem sempre
passagem de ano só com a recompensado com uma va-
banda sonora de uma novela riante mais interessante. Por
brasileira. Uma passagem de fim, a história atingia o seu
ano temática. fim e o público rebentava em
aplausos, a cujos “bis” o autor
Sempre atento às opor- se mostrava surdo.
tunidades de ganhar di-
nheiro com a literatura, dei Numa fase de esgotamen-
por mim a pensar como se to da receita, o espectáculo
aplicaria o conceito ao ramo podia incluir, como novida-
literário: de, a apresentação em ecrãs
próprios, como complemento,

http://www.flickr.com/photos/bigfez/243030084/sizes/o/

www.revistasamizdat.com 71
do desenrolar da tempestade O público que conhecesse a demos comprar o livro, mas
cerebral do autor, através de história iria achar que esta por que não ir ao concerto?
sensores encefalográficos, versão era mais neo-realista Já imaginaram um concerto
podendo o público assistir ao que o original, por exem- de Fernando Pessoa, ou uma
saltitar constante da activida- plo, ou que não respeitava a audição de Woody Allen? Aí,
de cerebral, acendendo uma intensidade da relação entre um “diseur” pode obter al-
ou outra área, convenien- os protagonistas. Uma opção gum efeito de arrebatamento
temente identificadas pelo a considerar. no ouvinte: a clareza cris-
nome e pela actividade que talina da voz, as entoações,
desenvolvem. O que eles fazem é imitar insinuando significados, as
os Beatles e as suas músicas pausas, dramatizando silên-
Daria para encher um pa- ao mais pequeno porme- cios – alguém que transmita
vilhão com dez mil pessoas? nor. O equivalente literário toda a potência dos diálo-
seria um escritor transcrever, gos, como quando o cantor
Para um público mais palavra por palavra, uma arranca emoções da audiên-
restrito e conhecedor – em obra literária de um monstro cia, que faça o pensamento
sala-estúdio –, o escritor das letras. Onde residiria o do público vogar por regiões
podia produzir uma histó- interesse do público? Talvez etéreas, quando percorra os
ria “à maneira de” um autor a confirmar a sobreposição bons nacos de prosa narrati-
conhecido. A história seria perfeita da história. Os mais va, qual solista a desenvolver
totalmente nova, mas faria puristas trariam exempla- a parte instrumental.
lembrar, irresistivelmente, res da obra em execução e
o autor de referência. Para comparariam, ponto a ponto, Com o fenómeno da
os melhores resultados, não o virtuosismo do escritor-re- pirataria a fazer perigar o
faltaria quem levantasse a produtor. Não se lhe exigiria, retorno económico das edi-
suspeita que o escritor se li- claro, que nunca tivesse lido ções, a solução pode passar
mitara a transcrever um iné- a obra – como Borges fez pelos concertos. Quem sabe
dito desconhecido do autor com Pierre Menard – mas se alguns de nós, escrito-
emulado, conseguido sabe-se que não lhe escapassem as res iniciantes, mas muito
lá por que ínvios meios. reticências cheias de segun- promissores, não viremos
dos sentidos, nem o rigor dos a obter divulgação e início
De qualquer modo, não itálicos. Depois dos aplausos, de reconhecimento público,
se trataria de um paralelo haveria sempre alguém que fazendo a primeira parte de
perfeito com estes “Beatles”. comentaria: ”Viram onde grandes concertos de escrito-
O que eles fazem não é criar ele pôs o travessão, quando res famosos!
música com o estilo “Bea- Gregor Samsa percebe que é Alguém sabe quando é o
tles”, nem recriar, com estilo um insecto? Já vi o Fritzl exe- concerto do Saramago?
próprio, as músicas originais. cutar este conto com muito
Isto seria escrever uma histó- mais virtuosismo, sem falhar
ria conhecida com palavras uma vírgula. Não há execu-
próprias. Eventualmente, tante de Kafka como ele!”
introduzindo uma peripécia,
ou alterando outra, de ma- Pensando bem, a reprodu-
neira a potenciar a emoção ção em literatura tem o seu
que a história já transmite. maior público na leitura. Po-

72 SAMIZDAT fevereiro de 2010


Henry Alfred Bugalho
A
GUI
Nova York
para Mãos-de-VAca
O Guia do Viajante Inteligente
www.maosdevaca.com

Comentário de Henry Alfred Bugalho

Uns quatro anos atrás, um literárias, milhares se reu-


cronista brasileiro chamado niam para ouvi-lo recitando
Mario Prata fez um expe- "Oliver Twist", ou "Um Conto
rimento semelhante. Colo- de Natal".
caram uma câmera na casa Os americanos ainda man-
dele e o site acompanhava, tém esta tradição e contam
em tempo real, tudo o que que Truman Capote também
ele escrevia no computador. conseguia dominar a audi-
Assim, os leitores não só ência.
podiam ver a vida cotidiana
do autor como também o
resultado, segundo a segundo, Mais recentemente, Chuck
do trabalho dele, os trechos Palahniuk causou comoção
que apagava ou mantinha. durante as leituras de "Guts",
um de seus contos, e foi um
fenômeno de histeria cole-
Já o "concerto literário", tiva, pessoas desmaiavam,
imagino que as leituras de choravam, tinham crises
contos e trechos de roman- nervosas. Dado o sucesso,
ces fiquem mais ou menos contrataram um ator para ler,
perto disto. com ainda mais impacto, tal
Dickens era famoso em conto.
Londres por suas leituras

www.revistasamizdat.com 73
Poesia

Metapoesias
Ju Blasina

Quimera

Poesia é mais que letras em elo


De encadeamento arbitrário, ilusório cená-
rio
Poesia é mais que meros signos adestrados

Mais que imagem, auditiva ou visual


Mais que um tom, de tinta ou som
Poesia é mais que relato ou autorretrato

Poesia é mais que ato ou reflexo


Mais que você ou eu. Poesia é e não é

Poesia é tudo (isso e aquilo) e além de.


— Ser poeta é ser Quimera

74 SAMIZDAT fevereiro de 2010


http://www.flickr.com/photos/8078381@N03/2683238976/sizes/o/
Ao Papel

Hoje não escrevo a mim nem a ti E por vezes me atravessa


Escrevo apenas E não raro me impele
Ao papel Só no papel sopro-lhe vida
Pois sua existência assim o pede E ao etéreo se eterniza
O sentimento que infere
Sua alva superfície clama
E em triste vastidão reclama Escrevo ao papel
Por letras, riscos Pois nele transcrevo a vida
Ou traço qualquer E fora dele sou nada que a vida
Retilíneo ao paralelismo linear repele
Arrisco meros rabiscos em versos No papel sou poeta que versa a
própria pele
De folhas ou poemas talvez

Escrevo, pois assim o papel pede


E linha a linha me toma
E paginando a vida mede
Sobre mim, reflito
Sobre você, palpito
Sobre o papel, escrito
Sua leitura é minha
Inspiração

Confesso
O eu-lírico não me é

www.revistasamizdat.com 75
Poesia

asseio as verdades do mundo se escondem


no meio da trama dos fios do tapete
nas teias de uma aranha velha
que se acumulam nos batentes
da porta dessa casa estranha
Volmar Camargo Junior
pobre aranha que nunca roubou
a vida de uma só mariposa

alheias estas ao que o mundo esconde


alheia aquela ao pó que ignora
alheio aquele ainda aos pés que trazem do mundo
somente a verdade

pobres partículas de verdade


em si contém tudo o que há em tudo
- falta-lhes apenas um pingo de vontade
de serem mais do que migalhas
de um mundo infinitamente maior

alheio este às próprias migalhas que o constituem


alheamento, ignorância, verdades,
tapetes empoeirados, teias-de-aranha empoeiradas
e pó
são os bens, o legado desta casa velha

resta viver em meio ao pó


respirá-lo até que adira aos pulmões
e que termine por deixar quem o respira
velho e empoeirado como a habitação

ou removê-lo
deitar fora o tapete sujo
tirar todas as teias-de-aranha - e matar
cada uma delas
e a todas as mariposas
e com baldes e baldes d’água
dar à casa uma aparência clara, limpa e habitável
como só a mais asseada ignorância é capaz

http://www.flickr.com/photos/sfj/523298402/sizes/o/

76 SAMIZDAT fevereiro de 2010


palavras novas
Maria de Fátima Santos

Quando chegou o dia


As palavras fugiram

Nem uma só que dissesse:


este recanto,
este troço de rio,
esta conversa,
aquele babado de um filho

Nem uma só resistiu


Esgaçadas de um tempo
Apagadas de dizeres antigos

Quando chegou o dia


Tu inventaste as palavras
Disseste corpo e alma
Mãe, cipreste, calma
Rebento de árvore
Disseste Amor e Amante e Amigo
e desespero
e choro
e mar
e estrelas
e murmúrio

E disseste medo e praia


E escreveste sol e lua e Universo
http://www.flickr.com/photos/paingouin/1288699637/sizes/l/

E clamaste Paz e Terra e sossego

Inventaste um termo desusado


Depois um outro
E mais outros
Muitos
Palavras novas
Precisadas

E só então gritaste Liberdade!

www.revistasamizdat.com 77
Poesia

Concludo: uma fórmula poética


Caio Rudá de Oliveira

inexorável

hoje o entardecer é tela


arrebol em minha janela
uma moldura desgastada
não nega os anos vividos
cães vivazes me fazem inveja
e o sol se pondo é cabal

espero a noite para dormir


após o acalento matreiro
do crepúsculo que não volverá

o despertar de uma mulher

o despertar de uma mulher


é uma melodia serena
feito um balanço no parque
lá e cá, deslizando no ar
um movimento leve e paciente
cadenciado, contra o qual insurgem
lapsos de descompasso

não importam as intermitências


o despertar de uma mulher é sutil e elegante
é uma flor com hora certa para desabrochar

78 SAMIZDAT fevereiro de 2010


Testamento

Eu quero morrer louco


são nem um pouco
doido de pedra
demente, decadente
sem mente, sim
completamente doente.

Eu quero morrer assim


para não fechar meus olhos
ciente de que é o fim.

versos do ocaso

há esse senhor leitor


que folheia sem pudor
e a cada página perpassada
letras contam uma vida

http://www.flickr.com/photos/pagedooley/2677892783/sizes/o/
perfeitamente contida
num livro sem muita cor

velhice é noite sem estrelas


são memórias foscas e
o fim de leitura

www.revistasamizdat.com 79
SOBRE OS AUTORES DA

SAMIZDAT
Edição, diagramação e capa

Henry Alfred Bugalho


Formado em Filosofia pela UFPR, com ênfase em
Estética. Especialista em Literatura e História. Autor
de quatro romances e de duas coletâneas de contos.
Editor da Revista SAMIZDAT e um dos fundadores
da Oficina Editora. Autor do livro best-selling “Guia
Nova York para Mãos-de-Vaca”. Mora, atualmente, em
Nova York, com sua esposa Denise e Bia, sua cachor-
rinha.
henrybugalho@gmail.com
www.maosdevaca.com

Edição de imagens

Volmar Camargo Junior


Inconformado com a própria inaptidão para di-
zer algo sem ser através de subterfúgios, abdicou de
parte de suas horas diárias de sono, tentando domar
a sintaxe e adestrar a semântica. Depois de perambu-
lar pelo Rio Grande do Sul, acampou-se na brumosa,
fria, úmida, às vezes assustadora – mas cercada por
um cenário natural de extrema beleza – Canela, na
Serra Gaúcha. Amargo e frio, cálido e doce, descen-
dente de judeus poloneses, ciganos uruguaios, indí-
genas missioneiros, pêlos-duros do Planalto Médio,
é brasileiro, gaúcho, e, quando ninguém está vendo,
torcedor do Grêmio Futebol Porto-alegrense. Autor
dos blogs “Um resto de café frio” e “Bah!”.
v.camargo.junior@gmail.com
http://recantodasletras.uol.com.br/autores/vcj

80
80 SAMIZDAT fevereiro de 2010
Assessoria de imprensa

http://www.photoshoptalent.com/images/contests/spider%20web/fullsize/sourceimage.jpg
Mariana Valle
Por um amor não correspondido, a carioca de
Copacabana começou a poetar aos 12 anos. Veio o
beijo e o príncipe virou sapo. Mas a poesia virou sua
amante. Fez oficina literária e deu pra encharcar o
papel com erotismo. E também com seu choro. Em
reação à hipocrisia e ao machismo da sociedade.
Atuou como jornalista em várias empresas, mas foi
na TV Globo onde aprimorou as técnicas de reda-
ção e ficção. E hoje as usa para contar suas próprias
histórias. Algumas publicadas em seu primeiro livro
e outras divulgadas nos links listados em seu blog
pessoal: www.marianavalle.com

Revisão
Maria de Fátima Brisola Romani
Nasceu em SP em 1957 mas mudou-se para Salvador em 1984 onde reside
até hoje. É arquiteta e artista plástica, além de tradutora (inglês e italiano) e re-
visora de textos. Escreve poesias esporadicamente desde adolescente e há cerca
de um ano começou a escrever contos. Pretende concorrer ao mestrado em
Artes Cênicas na Escola de Teatro da Ufba.

Colaboração

Maria de Fátima Santos


Nasceu em Lagos, Algarve, Portugla em 1948. Vi-
veu a adolescência em Angola e reside em Lagos.
Licenciada em Física, é aposentada de professora do
Ensino Secundário. Já participou na SAMIZDAT e por
afazeres de vida afastou-se. Tem poemas em diversas
antologias, e publicou em Janeiro de 2009 um livri-
nho com pequenas histórias, aquelas que lhe voam
no teclado: Papoilas de Janeiro é o título, com ilus-
trações de TCA do blogue http://abstractoconcreto.
blogspot.com/ Muito material está publicado nos
blogues e www.intervalos.blogspot.com e http://tris-
teabsurda.blogspot.com/ Escreve pelo gosto de deixar
que as palavras vão fazendo vida. Escreve pelo gozo.

www.revistasamizdat.com 81
Giselle Sato
Autora de Meninas Malvadas, A Pequena Baila-
rina e Contos de Terror Selecionados. Se autodefine
apenas como uma contadora de histórias carioca.
Estudou Belas Artes, Psicologia e foi comissária de
bordo. Gosta de retratar a realidade, dedicando-se
a textos fortes que chegam a chocar pelos detalhes,
funcionando como um eficiente panorama da socie-
dade em que vivemos.

Léo Borges
Nasceu em setembro de 1974, é carioca, servidor
público e amante da literatura. Formado em Comu-
nicação Social pela FACHA - Faculdades Integradas
Hélio Alonso, participou da antologia de crônicas
“Retratos Urbanos” em 2008 pela Editora Andross.

Dênis Moura
Paulistano de pia, cearence de mar e poeta de
amar. Viaja tanto o céu estrelado quanto o ciberes-
paço, mais com bits de imaginação que com telescó-
pios. Pensa que tudo se recria a cada Big Bang, seja
ele micro, macro ou social. Luta pela justiça, a paz e
a igualdade, com um giz na mão e uma pistola na
outra. É Tecnólogo a sonhar com Telemática social,
com a democracia participativa eletrônica, onde o
povo eleja menos e decida mais. Publica estes dias
sua primeira obra, um Romance de Ficção Científi-
ca, e deixa engavetadas suas apunhaladas poesias. É
feito de bits, links e teia pra que não desmaterialize,
o clique, o blogue e o leia!

82
82 SAMIZDAT fevereiro de 2010
http://www.photoshoptalent.com/images/contests/spider%20web/fullsize/sourceimage.jpg
Carlos Davissara
Paulistano, filho de nordestinos, desenhista desde
sempre, artista plástico formado, escritor. Começou
sua vida profissional como educador e, desde então,
já deixou seu rastro por ONG’s, Escolas e Centros
Culturais, através de trabalhos artísticos e pedagó-
gicos – experiências que têm forte influência sobre
seus escritos. Atualmente, organiza oficinas de ilus-
tração para crianças, estuda pós-graduação em Histó-
ria da Arte e escreve para publicações na internet.
carloseducador@hotmail.com
http://desnome.blogspot.com

Jú Blasina
Gaúcha de Porto Alegre. Não gosta de mensurar
a vida em números (idade, peso, altura, salário). Não
se julga muito sã e coleciona papéis - alguns afir-
mam que é bióloga, mestre em fisiologia animal e
etc, mas ela os nega dizendo-se escritora e ponto fi-
nal. Disso não resta dúvida, mas como nem sempre
uma palavra sincera basta, voltou à faculdade como
estudante de letras, de onde obterá mais papéis para
aumentar a sua pilha. É cronista do Caderno Mulher
(Jornal Agora - Rio Grande - RS), mantém atualiza-
do seu blog “P+ 2 T” e participa de fóruns e oficinas
virtuais, além de projetos secretos sustentados à base
de chocolate e vinho, nas madrugadas da vida.

Joaquim Bispo
Ex-técnico de televisão, xadrezista e pintor ama-
dor, licenciado recente em História da Arte, experi-
menta agora o prazer da escrita, em Lisboa.

episcopum@hotmail.com

www.revistasamizdat.com 83
José Guilherme Vereza

http://www.photoshoptalent.com/images/contests/spider%20web/fullsize/sourceimage.jpg
Publicitário, redator, executivo, professor, aluno, marido,
pai, filho, cunhado, tio, sobrinho, genro, sogro, amigo, bota-
foguense, tijucano, lebloniano, neopaulistano, escritor, leitor,
eleitor, metido a cozinheiro, guloso, nem gordo nem magro,
motorista categoria B, pedestre, caminhante, viajante, seden-
tário, telespectador, pilhado, zen, carnívoro, beatlemaníaco,
cinemeiro, desafinado, sinfônico, acústico, capricorniano,
calorento, alérgico a ditaduras, sonhador, delirante, insone,
objetivo, subjetivo, pragmático, enérgico, banana, introspec-
tivo, extrovertido, goleiro, blogueiro, colunista do Bolsa de
Mulher, colaborador do Mundo Mundano, tem livro publi-
cado, conto premiado, teve texto encenado no teatro, fez ro-
teiros para televisão, criou uma infinidade de comerciais e
aprendeu que aproveitar a vida intensamente é ser de tudo
um muito. Samizdat é seu mais recente energético..

Caio Rudá
Bahiano do interior, hoje mora na capital. Estuda
Psicologia na Universidade Federal da Bahia e espera
um dia entender o ser humano. Enquanto isso não
acontece, vai escrevendo a vida, decodificando o enig-
ma da existência. Não tem livro publicado, prêmio,
reconhecimento e sequer duas décadas de vida. Mas
como consolo, um potencial asseverado pela mãe.

Marcia Szajnbok
Médica formada pela Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo, trabalha como psiquiatra
e psicanalista. Apaixonada por literatura e línguas
estrangeiras, lê sempre que pode e brinca de es-
crever de vez em quando. Paulistana convicta, vive
desde sempre em São Paulo.

84
84 SAMIZDAT fevereiro de 2010
O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada
http://www.flickr.com/photos/32912172@N00/2959583359/sizes/o/

ficina
www.revistasamizdat.com 85

www.oficinaeditora.com
Também nesta edição, textos de

Caio Rudá José Guilherme Vereza

Carlos Davissara Jú Blasina

Dênis Moura Léo Borges

Giselle Natsu Sato Marcia Szajnbok


http://www.flickr.com/photos/st-stev/155466775/sizes/l/

Henry Alfred Bugalho Maria de Fátima Santos

Joaquim Bispo Volmar Camargo Junior

86 SAMIZDAT fevereiro de 2010

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