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UFRJ - UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CFCH - CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


IP - INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PPGTP - PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA
PSICANALÍTICA

SOBRE O TEMPO E A MEMÓRIA NA PSICANÁLISE:


O A POSTERIORI EM FREUD E LACAN

Dissertação de Mestrado

Por: José César Coimbra


Orientador: Waldir Beividas

SOBRE O TEMPO E A MEMÓRIA NA PSICANÁLISE:


O A POSTERIORI EM FREUD E LACAN
2

Dissertação de Mestrado submetida ao corpo docente do Programa de Pós-

Graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do

Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de mestre.

Aprovada por: _____________________________

Prof. Waldir Beividas

______________________________

Profª. Angélica Bastos

______________________________

Prof ª. Josaida de Oliveira Gondar

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Ficha Catalográfica e Instruções

Coimbra, José César

Sobre o tempo e a memória na psicanálise: o a posteriori em


Freud e Lacan.
Rio de Janeiro, UFRJ, IP, Programa de Pós-Graduação em
Teoria Psicanalítica,1997.

[IX. 186f]

Tese: Mestre em Teoria Psicanalítica

1.Psicanálise 2.Memória 3.Tempo 4.Teses

I. Universidade Federal do Rio de Janeiro (IP)


II. Título

3
4

À
Norma e à Flávia

Agradecimentos

Este trabalho pôde ser realizado graças ao apoio da Coordenação do

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), da qual fui bolsista no período

1994/95.

Do mesmo modo, agradeço aos professores do Programa de Pós-Graduação em

Teoria Psicanalítica em cujas disciplinas foram sendo construídas as linhas principais

desta dissertação. Em particular, a Waldir Beividas cuja orientação e estímulo foram

poderosos aliados, bem como a Ana Beatriz Freire pelo apoio nos momentos iniciais

deste projeto.

Também aos professores do Curso de Especialização em Psicanálise (UFF), sem

os quais esta pesquisa não teria os contornos que adquiriu. Em particular a Paulo Vidal

pelas sugestões bibliográficas, bem como ao incentivo sempre reiterado.

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A Virgínia Kastrup, através de quem não só iniciei minhas leituras de Bergson,

como também aproximei-me de modo mais sistemático das questões relativas ao tempo e

à memória.

A Angélica Bastos, com quem aprendi a reconhecer a importância dessas questões

na psicanálise, e que soube apontar o caminho por onde iniciei minha pesquisa.

A Carlos Almino, pelas informações preciosas sobre cinema e língua alemã.

A meus pais, pelo incentivo de todas as horas.

Resumo

Esta dissertação teve como objetivo realizar um estudo sobre o conceito de a


posteriori [nachträglich] em Freud e Lacan, estabelecendo uma correlação com a função
da memória na psicanálise. Para tanto, partimos de uma definição inicial onde o a
posteriori indicaria uma dissimetria entre fato e lembrança, estando o valor traumático,
por exemplo, associado à segunda e não à experiência original. A partir da definição
anterior formulamos as seguintes hipóteses: 1) O a posteriori não deve ser entendido
exclusivamente como dizendo respeito aos efeitos de significação; do mesmo modo que a
memória não responderia somente pela ratificação do passado. Seja num caso ou no outro
não se trata apenas de uma questão de ordenamento significante, análise semântica dos
termos que compreenderiam um enunciado. 2) Tanto no a posteriori como na memória
podemos reconhecer também a produção de algo refratário à significação. Tal produção
desdobra-se em duas vertentes: a) o trauma como dizendo respeito a algo inassimilável,
origem dos sintomas, e, por conseguinte, possível ponto de partida para a análise; b) uma
“memória-lacuna” ou esquecimento constitutivo. Quer dizer, algo também da ordem do
sintoma, embora do que nele existe de intratável. Esse esquecimento equivaleria,
portanto, ao resto da intervenção analítica, tal como o objeto a poderia ser entendido

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como dejeto, sobra da operação de ordenamento significante. Às hipóteses acima


acrescentamos uma última: se existe semelhança entre a posteriori e ilusão retroativa ela
não significaria, contudo, identidade.

Résumé

L’objectif de ce travail a été de faire une étude sur l’après-coup [nachträglich]


chez Freud et Lacan et d’établir sa correlation avec la fonction de la mémoire en
psychanalyse. Pour cela, nous avons parti d’une définition initiale où l’après-coup
signalerait une dissymétrie entre fait et souvenir du fait. La valeur traumatique étant, par
exemple, associée au deuxième et pas au premier. Freud met l’accent sur l’intervalle
temporel qui rendrait l’expérience traumatique. A partir de la définition ci-dessus nous
avons formulé les hypothèses suivantes : 1) L’après-coup ne doit pas être perçu
exclusivement comme attaché aux effets de signification; du même coup, la mémoire ne
répondrait pas qu’à la ratification du passé. C’est-à-dire qu’il ne s’agirait pas seulement
d’une question de mise en ordre du signifiant; 2) Dans l’après-coup, aussi bien que dans
la mémoire, on peut reconnaître également la production de quelque chose de réfractaire
à la signification. Telle production présente deux volets: a) le trauma ayant rapport à
quelque chose d’inassimilable, origine des symptômes, et par conséquent, censé être le
point de départ pour l’analyse; b) une “mémoire d’un trou”ou oubli constitutif, c’est-à-
dire, quelque chose ayant également rapport au symptôme, quoique à ce que celui-ci a d’
intraitable. Tel que l’objet a, résidu de l’intervention analytique, l’oubli constitutif
pourrait être compris comme déchet de l’opération de capitonnage du signifiant. Aux

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hypothèses ci-dessus, il a fallu en ajouter une autre: s’il existe ressemblance entre après-
coup et illusion rétrospective , elle ne signifierait cependant pas identité.

Índice

Introdução xi

Instante de ver 1

I. Um Lugar para a Memória?

Do Laboratório à Clínica 2

Wundt, Weber, Fechner e Dilthey 6

Hipnose e Histeria 9

As Afasias 13

II. Entre o Somático e o Psíquico

Locus Suspectus 20

Os Primeiros Passos de Freud 24

Intensidade e Lembrança 28

Lacuna e Psique 31

A Memória não Toda 34

7
8

III. Sobre a Imagem e a Lembrança

Forsan et Haec Olim Meminisse Juvabit 36

Lembranças Encobridoras, ainda 41

Lembrança e Experimentação 44

Lembrança e Experiência 45

Impasses 49

Reminiscências... 50

IV. A Persistência da Memória

Pulsão de Morte e Princípio do Prazer 54

História e Lembrança 58

O Estranho 64

Emma 70

Tempo de Compreender 73

V. Do Saber e da Memória

Transferência, Sentido e História ( I ) 74

Transferência, Sentido e História ( II ) 83

VI. Che Vuoi?

O Fracasso da Memória 89

Duas Memórias 94

Prolegômenos a uma História de Lobos 101

Sobre o Homem dos Lobos 108

Pravda e Istina 112

Memória, Sonho 116

O Grafo: a posteriori e Memória 118

8
9

O Grafo: a posteriori e Esquecimento 126

Esquecer, Esquecer... 132

VII. O Futuro Anterior

A Gramática do Tempo 136

Ilusão Retroativa 140

Momento de Concluir 148

Escrever é tantas vezes lembrar-se do que

9
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nunca existiu. Como conseguirei saber do


que nem ao menos sei? assim: como se me
lembrasse. Com um esforço de memória,
como se eu nunca tivesse nascido. Nunca
nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e a
lembrança é em carne viva.

C. Lispector

Introdução

“O círculo não é redondo1”

Mnemosyne, mãe das musas, filha de Urano [Céu] e Gaia [Terra]. Essa talvez seja

a primeira referência que nos ocorre quando temos em vista uma pesquisa sobre a

memória. Não só mãe das musas, presidindo, portanto, à função poética, mas também

irmã de Chronos. Desse modo, percebemos em poucas linhas uma relação muito próxima

entre memória e tempo datada já da Grécia arcaica. Mas, o que isso pode significar para

nós que realizaremos uma investigação sobre a memória e o tempo na psicanálise, e, mais

precisamente, especificando a articulação que o conceito de a posteriori promove entre

ambos?

1 Frase citada no filme Before the Rain (M.Manchevski,1994,U.K./Macedônia/França).

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É importante notar que entre a memória na Grécia arcaica e aquela que

estudaremos aqui cabe uma distância que não pretendemos ver reduzida. Mas pensamos

ser possível através dela nos aproximarmos de algumas questões introdutórias que serão

também extremamente pertinentes a este trabalho.

Na Grécia arcaica a função rememorativa passava por ser uma ascese em direção

à verdade. Os poetas, assim como os adivinhos, são aqueles “cuja memória sabe

discernir, para além do presente, o que está enterrado no mais profundo passado e

amadurece em segredo para os tempos a vir” (Vernant,1990:115). No entanto, essa

verdade tocada pela memória não significava um possível recapitular de uma história

individual, e muito menos de uma história coletiva. Diria respeito sobretudo a um

mergulho no “tempo antigo”, ou tempo original, começo absoluto, a partir de onde tudo

teve início. Essa é, portanto, a capacidade que Mnemosyne concederia: estar presente no

passado de modo imediato (cf. Vernant,1990:109).

Logo, ao poeta inspirado pelas Musas não caberia seguir o tempo num retroceder

quase infinito, como se este fosse inteiramente homogêneo, sem desvios ou sutilezas.

Parece haver uma outra concepção de tempo implicada, onde prevalece a idéia de

genealogia, fazendo imperar uma multiplicidade de relações distintas, pressupondo, por

exemplo, a idéia de raças arcaicas1 (de ouro, prata, bronze e ferro), onde cada uma delas

encontrar-se-ia submetida a um determinado “fluxo de tempo”, que diferiria

completamente das demais (idem:112).

Assim poderíamos dizer que a memória não dizia respeito a uma reconstrução do

tempo, nem uma anulação dele, como acontecerá posteriormente. Ela está intimamente
1 Essa formulação está ligada a idéia de idades míticas, e encontra-se explicitada no poema de Hesíodo
(meados do século VII a.C.) Os Trabalhos e os Dias. Nesse poema Hesíodo misturou dois temas já
existentes: o mito das quatro idades com nomes de metais, por ordem decrescente de excelência, e a lenda
de uma idade dos Heróis, inserida entre a terceira e quarta idades. (cf. Goff,1984a:316).

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ligada às funções iniciáticas2 onde se caracterizava por uma possibilidade de

conhecimento sobre-humano, já que por seu intermédio quebrava-se a barreira que

separava o passado e o presente, e desse modo também o mundo dos vivos e aquele dos

mortos (idem:113). É nesse registro que vamos encontrar as primeiras referências à

anámnesis ou reminiscência. Aí também não se encontrava ainda uma distinção entre

Mnemosyne e Lethe, memória e esquecimento, mas ambas funcionavam como um par de

forças complementares (idem:114). Todavia, o esquecimento já era associado à morte, à

noite. Por isso, aquele que no Hades conseguia guardar a memória transcendia a condição

mortal (ibid).

No entanto, essa relação entre memória e esquecimento, mesmo entre os

pitagóricos e depois com Platão, passa a ser compreendida de uma outra forma. A

primeira torna-se o meio pelo qual o homem pode escapar das garras do devir, do

perecimento, da condição humana enfim. E o esquecimento será justamente associado a

essa condição e, por extensão, passa a estar em estreita conexão com o tempo (idem:122).

Portanto, é o tempo imutável (Chronos agéraos) que é divinizado, estando o devir

associado ao engano, à ignorância, à morte. E a valorização da anámnesis dá-se

justamente na medida em que ela propiciaria uma anulação desse tempo que faz perecer,

que é marcado pela mudança (idem:123).

Se sobretudo com Platão assistimos a uma oposição entre tempo e memória, na

medida em que seria a segunda um meio de ascese, nos oferecendo a possibilidade de

reencontrar o “mundo das Idéias”, com Aristóteles haverá uma nova aproximação entre

tempo e memória, mas para eliminar completamente qualquer resquício de divindade que

2 A análise do caráter iniciático, ou hermético, da memória foi muito bem conduzida por Yates (1975), que
nos revela como este tema foi de suma importância da Grécia ao Renascimento.

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pudesse ser encontrado na segunda. A memória passa a dizer respeito à parte sensível da

alma, não podendo significar a possibilidade de um verdadeiro conhecimento, nem

quanto ao passado, nem quanto ao ser, revelando antes “a nossa incapacidade de ser

inteligência pura”, marca de imperfeição (idem:130-131).

Trata-se na verdade em Aristóteles de distinguir entre memória e reminiscência. A

primeira estando ligada propriamente a parte sensível da alma; enquanto a segunda

encontrar-se-ia ligada à parte intelectual, ainda que fosse portadora de traços das formas

corporais. A reminiscência caracterizar-se-ia sobretudo pelo fato de depender da

associação e da ordem (cf. Yates,1975:80 e 84).

Talvez pudéssemos dizer que este é, em suas linhas gerais, o percurso do papel da

memória da Grécia arcaica à aurora do pensamento filosófico: de “função divina” à

“marca de imperfeição”. Todavia, e aqui nos baseamos em Yates, é preciso também ter

em vista que toda uma arte da memória constituiu-se desde a Grécia antiga até o

Renascimento não só como mnemotécnica, mas também contiguamente à retórica e, a

partir dos escolásticos, com a ética.

Ora, não seria essa uma história que poderíamos repetir, mutatis mutandis, para a

psicanálise, sobretudo no que toca ao percurso freudiano? Dos estudos com Charcot à

Carta 69, não é a veracidade do evento (traumático) que é posta em xeque e com ela a

própria memória? E, entretanto, não seria por essa via mesma que entreveríamos a

especificidade com que a psicanálise pode defini-la?

Charcot já havia assinalado, quanto às neuroses traumáticas, preocupação a

respeito de um “tempo de elaboração psíquica”, intervalo que haveria entre um evento e a

manifestação sintomática. Na mesma esteira vamos encontrar as primeiras elaborações

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sobre o a posteriori freudiano, sobretudo nos Estudos sobre a Histeria, através dos

chamados “momentos traumáticos auxiliares”.

Sem dúvida boa parte do uso do conceito de a posteriori aponta para o efeito

traumático advindo de um lapso temporal. Mais especificamente fala de um intervalo que

se traduz numa defasagem entre um evento de origem sexual e sua lembrança quando da

puberdade. Daí significando a possibilidade de um efeito retroativo, a partir do advento

desta, sobre a experiência que na infância não pôde ser compreendida. É preciso ter em

mente que ao nos determos exclusivamente nessa concepção de a posteriori não

poderíamos dar mais do que alguns passos, já que a hipótese de uma “sexualidade

infantil” deveria ser suficiente para colocá-la abaixo.

Iremos notar que o uso do a posteriori parece explicitamente concentrado num

primeiro momento do pensamento freudiano. Mas, a pergunta inicial que nos fazemos é:

não estaria implicado nele uma questão que acompanhará Freud por muito tempo, qual

seja, a da relação entre sintoma e trauma, lembrança e experiência, ou ainda, verdade

material e verdade histórica? Mesmo ao reavaliar a hipótese de uma etiologia traumática

(Carta 69), não haverá aí, perdurando até o final de sua elaboração, pontos tais como o

do “umbigo do sonho”, ou seja, aqueles que se caracterizariam por um limite à

interpretação? E o a posteriori não nos propiciaria justamente a articulação entre uma

representação (sintoma, lembrança) e o que não pode ser representado (trauma,

experiência original)?

Do mesmo modo em Lacan se é postulado uma “lógica do significante”, e que “o

inconsciente é estruturado como uma linguagem”, estaria aí dito que tudo é simbólico,

ou, como é dito vulgarmente quanto a Freud e Lacan, que tudo é sexual? Não poderíamos

dizer que em ambos encontramos também um domínio que até revela-se por esse viés,

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mas sem se confundir com uma suposta realidade biológica, diz também respeito a algo

para além dele, e se expressa, por exemplo, na pulsão de morte e no objeto a?

Assim, o primeiro objetivo desta dissertação passa por apontar a limitação que há

em tratar o a posteriori como pura e simplesmente um efeito retroativo de significação.

Acentuaremos, portanto, o que aí comparece como um resto, produto da operação

de basteamento significante. Ainda que seja a partir desse efeito, por exemplo, que uma

identificação se instaure, e, de modo mais amplo, uma história (a do sujeito em análise,

por exemplo) possa ser narrada (cf. Zizek,1992:100).

O segundo objetivo diz respeito a possibilidade do a posteriori servir para

pensarmos o que seria a memória para a psicanálise. Não trataremos de distinguir, a

princípio, as suas diversas formas, tais como poderíamos depreender nos termos

rememoração, lembrança, reminiscência etc. Mas, nos interessará o que nesses diversos

termos podemos chamar memória. Quando se fizer necessária a distinção, seja porque um

determinado autor, Platão, Aristóteles - como vimos acima - ou Freud, por exemplo, usa

um e não outro, procederemos à explanação. No entanto, voltamos a repetir, usaremos ora

um ora outro, não querendo apagar com isso as possíveis diferenças que existam, mas nos

servindo delas para especificar a relação entre memória e a posteriori, ou seja, entre

memória e tempo.

Os objetivos acima podem ser retomados na formulação das seguintes hipóteses:

1) A estrutura da memória é feita de uma articulação significante (cf.

Lacan,1988:272), embora não se resuma a ela. Quer dizer, o a posteriori não deve ser

entendido exclusivamente como dizendo respeito aos efeitos de significação; do mesmo

modo que a memória não responderia apenas pela ratificação do passado. Deveremos, por

conta dessa hipótese, também esboçar uma distinção entre sentido e significação (cf.

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Miller,1987:184). Todavia, esse não será nosso objetivo principal, haja vista que tal

empreendimento exigiria um trabalho exclusivo. No entanto, deveremos estar atentos a

algumas considerações que nos serão de valia, sobretudo na medida em que, grosso

modo, o primeiro termo é citado em referência a algo que escaparia ao domínio

significante (cf. infra, cap. VI).

2) O a posteriori não deve ser entendido apenas como ligado à retroatividade.

Quer dizer, não se trata apenas de uma questão de ordenamento significante. Ou, dito de

outro modo, como sinônimo de uma capacidade ilimitada de ressignificação do passado.

Tanto no a posteriori como na lembrança podemos reconhecer também a produção de

algo refratário à ordem da significação. A isso tanto poderemos chamar trauma, como

também “memória-lacuna” ou esquecimento constitutivo. O primeiro diz respeito a algo

inassimilável, “origem” dos sintomas, e, por conseguinte, possível ponto de partida para a

análise. Os demais, também apontam para o sintoma, para o que nele existe de intratável.

Quer dizer, resto da intervenção analítica, tal como o objeto a poderia ser entendido

como dejeto da operação de basteamento significante.

Na verdade essas duas hipóteses convergem na medida em que C. Soller nos

apresenta um matema da rememoração (S1/$), indicativo de que na análise o sujeito vem

“produzir, reencontrar e ejetar simultaneamente os significantes a partir dos quais ele se

construiu”(Soller,1991:56). Ela continua: “Reconstruir sua história é reencontrar a

sucessão das identificações do sujeito (S1...S1...S1) e a cada etapa, a verdade que aí se

liga” (idem:57, grifo nosso).

O que esperamos acrescentar com as hipóteses acima diz respeito a uma parcela

de “resto”, que parece introduzir-se na memória de modo a caracterizá-la não como um

doce regresso a um passado já vivido, mas como a perpetuação de um enigma, tal como

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podemos acompanhar em Freud, por exemplo, em seus textos Lembranças Encobridoras

[1899] e Mecanismo Psíquico do Esquecimento [1898], e que nos leva a falar

propriamente de um “corpo estranho” no seio da memória.

O percurso que iremos realizar inicia-se em Freud de modo a seguirmos as

primeiras referências ao a posteriori no corpo de sua obra. De fato, começaremos por

tentar distinguir o que seria uma problemática da memória pensada do ponto de vista da

psicanálise. Posteriormente daremos maior ênfase a Lacan, realizando, entre outros

comentários, uma análise de seu seu grafo do desejo, tal como elaborado ao longo de

seus Seminários As Formações do Inconsciente [1957-58] e O Desejo e sua

Interpretação [1958-59], assim como no texto Subversão do Sujeito e Dialética do

Desejo [1960], embora venhamos a nos deter exclusivamente sobre este.

De modo mais detalhado, propomos o seguinte percurso:

I.Um lugar para a memória?, capítulo onde exporemos os pressupostos nos

quais se basearam as primeiras pesquisas a respeito da memória no século XIX, e o modo

como Freud aí se diferencia, principalmente no que diz respeito a problemática das

localizações cerebrais, das afasias e da hipnose;

II.Entre o somático e o psíquico, onde daremos continuidade às questões

precedentes, nos detendo, contudo, nos primeiros trabalhos de Freud. Notaremos como aí

já se esboçava uma tensão no tocante à memória entre o que podemos chamar “uma

busca no passado” e a possibilidade de uma reconstrução posterior;

III.Sobre a imagem e a lembrança, capítulo onde notaremos a continuidade da

tensão do capítulo precedente, nos servindo das Lembranças Encobridoras e dos Estudos

sobre a Histeria. Tentaremos mostrar por que a memória não se definiria como um

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“espelho do mundo”, estando, ao contrário, próxima ao que Freud formula no Rascunho

K como representação-limite;

IV.A persistência da memória. Nesse momento estaremos investigando a relação

entre pulsão de morte e princípio do prazer, e passaremos a fazer uso de modo mais

sistemático da obra lacaniana, principalmente do Seminário 7;

V.Do saber e da memória. Aqui, nos serviremos de algumas considerações de

Derrida a propósito do nachträglich, bem como teremos em vista a questão da

transferência e o modo como a partir dela memória e tempo se relacionam;

VI.Che vuoi? Esse será o capítulo mais longo, e terá como momentos

privilegiados o estudo do caso do Homem dos Lobos, bem como o grafo do desejo

lacaniano. O objetivo será ressaltar uma “defasagem entre rememoração e história” e o

que daí poderemos definir como esquecimento constitutivo.

VII.O futuro anterior. Esse será o último capítulo, e nele daremos atenção

especial ao uso na língua alemã do vocábulo nachträglich, bem como a importância da

aproximação promovida por Lacan entre ele e o tempo verbal do futuro anterior. Tais

argumentações terão como alvo realizar uma distinção entre a posteriori e ilusão

retroativa.

Esclarecemos que o interesse pelo grafo do desejo dá-se em função de nele

podermos notar uma articulação entre a cadeia significante e seus efeitos retroativos,

assim como também a presença de elementos que, apesar de estarem relacionados com a

cadeia, não se confundem com ela, como por exemplo, a voz. Na mesma medida em que

esta voz comparece como acusmática (cf. Zizek,1992:152), e, portanto, como uma

mancha ou “corpo estranho” no campo do significante, podemos notar também que o

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objeto a, diferentemente do sujeito, comparece como um produto e não como um efeito

da estrutura da linguagem (cf. Miller,1990:103).

Ou seja, se quanto ao sujeito e ao objeto na psicanálise ressaltamos uma dimensão

negativa, onde um e outro comparecem pelo viés de uma falta, poderíamos dizer que o

sujeito caracterizar-se-ia por uma falta no significante, e o objeto por uma falta do

significante1. Parece ser indicativo disso inclusive o fato de Lacan ter escolhido uma letra

(a) distinta do “S” pelo qual são designados o sujeito e o significante (respectivamente $

e S1, S2). Mesmo que Miller não tenha desenvolvido a distinção entre efeito e produto,

ela nos servirá no momento para notarmos que as relações estabelecidas pelo significante

não são unívocas.

Parece haver uma diferença capital ao tomarmos o grafo nessa perspectiva, e tal

ênfase distingue as análises de J. Dor (cf. 1990:148 e ss.) e Zizek (cf. 1991, passim e

1992: cap.V), por exemplo. O primeiro expõe de maneira clara e precisa a geração do

grafo e a articulação deste com as formações do inconsciente (atos falhos, sintomas), e

em momento algum nomeia esse elemento ímpar que é a voz (um dos nomes do objeto a

para Lacan), ou comenta mais detidamente o segundo vetor do grafo (gozo-castração),

que nos levaria ao encontro das formulações de Lacan acerca do real. O caminho

escolhido por Zizek exige necessariamente toda uma outra formulação, já que privilegia

de modo inconteste justamente os conceitos que ficaram à sombra no estudo de Dor.

Se nos vemos orientados pela perspectiva exposta por Zizek é porque

encontramos nela uma problematização maior quanto ao que diz respeito a uma “lógica

1 Para ficarmos apenas numa frase que poderá nos ser útil para essa distinção, poderíamos citar Lacan:
“(...)Quanto a nós, nos atemos a que o significante não concerne ao objeto, mas ao sentido”
(Lacan,1992:53).

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do significante”, onde ao acentuar o papel do que Lacan chamou real, procura examinar

os efeitos que esse registro impõe sobre o domínio do significante.

Assim, a memória que pretendemos estudar passa pelo viés do significante, com

todas as articulações e nuances que começamos a destacar nos parágrafos precedentes.

Essa memória é de certa forma uma pontuação do passado, um modo de narrá-lo, e

diversos autores, não pertencentes ao campo psi, já fizeram também por nos mostrar isso.

Sem entrarmos no campo da filosofia e mesmo na ciência onde muito foi escrito sobre o

tempo, tema conexo à questão da memória, temos também na literatura análises

extremamente interessantes em autores tão díspares quanto Hector Bianciotti, Vladimir

Nabokov, e, sendo quase impossível não citar, Proust.

No cinema também encontramos esse tema em abundância, e, à guisa de

ilustração, citaremos apenas Alain Resnais. Três de seus filmes procuram levar os

paradoxos da memória ao seu limite: Hiroshima meu amor [1959], O ano passado em

Marienbad [1961] e Providence [1977]. Em cada um deles a memória não comparece

como um lugar de encontro, da certeza factual, mas como dispersão, fonte de enigmas,

bifurcações incessantes que atravessam o sujeito, não dizendo respeito a uma “memória

individual”, mas perpetuando, entre uma reminiscência e outra, um “X” que não é

resolvido, ainda que sejam lançados em todas as direções inúmeros apelos.

Talvez essa passagem pelo cinema seja menos forçada do que parece, ainda que

não tenhamos a intenção de alongá-la mais1 . Mas é bom ter em vista que 1995 trouxe à

lembrança a comemoração do centenário do cinema, bem como a da redação do Projeto.

Curiosa coincidência que nos leva a ver, tanto em um como no outro, os efeitos de uma

1 Para o início de uma apreciação sobre como o tempo e a memória se impõem como temas privilegiados
no cinema cf. Tarkovski,1990, Peixoto,1996 e Carrière,1995.

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certa ilusão, aquela dos 24 quadros/segundo e a da proton pseudos1. Não poderíamos

dizer que nelas encontramos o anúncio de uma certa verdade, ao menos daquela que só

pode ser dita numa “estrutura de ficção”?

É por tudo isso que começamos dizendo que o “círculo não é redondo”. Frase

absurda, a princípio, e que parece ao seu modo traduzir os efeitos que esperamos extrair

do a posteriori. Onde, junto à significação produzida “retroativamente”, parece

permanecer um “resto” que não é sem conseqüência.

Ao final, talvez tenhamos contribuído para uma visão da memória e do a

posteriori que não os tome como conceitos extremamente simples sobre os quais nada

mais haveria a dizer. Esperamos problematizar esse campo e apontar para o fato de que a

psicanálise tem a falar sobre a memória, e que esta não pode ser entendida apenas como

uma recapitulação do passado. Na medida em que ela é também produzida, o setting

analítico é o lugar de uma batalha cujo final não pode ser assegurado de antemão, e nem

no passado mais remoto.

Para concluir esta introdução, ainda que pese as diferenças já notadas entre a

psicanálise e a filosofia bergsoniana (cf. Lacan,1985a:139 e 269; 1990a:116 e 153;

Garcia-Roza,1993: cap.3 e Jouhaud,1992), poderíamos repetir aqui o que para este autor

era a característica fundamental do tempo: impedir que tudo tenha sido dado de uma vez

(cf. Bergson,1971:327 e 1993:101-102).

Há muito dessa frase que encontraremos ao longo deste trabalho. Assim como há

muito dela também na Carta 52. Na verdade é interessante notar que um dos últimos

seminários de Lacan teve como título A Topologia e o Tempo2. Marca de uma


1 Essa expressão significa literalmente “primeira coisa falsa”. Na Grécia designava um erro primeiro a
partir do qual decorreriam necessariamente conclusões falsas. Em Aristóteles designa a premissa falsa que
num silogismo leva a uma conclusão também falsa (cf. Garcia-Roza,1991:187).
2 La Topologie et le Temps, Seminário XXVI, 1978-79, inédito

21
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preocupação já assinalada desde Função e Campo da Fala e da Linguagem em

Psicanálise, onde entre outros temas, comenta sobre os efeitos técnicos do tempo

(Lacan,1990a:298 e ss.), definindo-o como uma função onde o simbólico e o real reunir-

se-iam (ibid).

É nesse percurso lacaniano, onde o registro do real vai adquirindo uma

envergadura cada vez maior, que entendemos ser pertinente um estudo do tempo na

psicanálise. Tal como o objeto a, o tempo compareceria também com um “dejeto” da rede

simbólica, impedindo que tudo tenha sido dito, ou lembrando. Excesso que no sentido, ou

na memória, lança-os para além de um vivido, próximo ao sem sentido (cf.

Miller,1987:184), onde talvez um e outro não poderiam ser senão “carne viva”, matéria-

prima para uma nova história.

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Instante de Ver

I. Um Lugar para a Memória ?

Do laboratório à clínica

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Deixo cair a tarde/ Nos olhos fatigados./ O dia foi de luz intensa e demorada,/ Nevada
nas alturas/ ... / Longe daqui, e sempre aqui/ Presente,/ Quero sonhar apenas o que vi./ Quero ver o que vi
mais transparente.
Miguel Torga

Iniciar um estudo sobre a memória implica ter em perspectiva o modo como esse

tema fez-se objeto de investigação. Neste capítulo veremos alguns autores que no século

XIX estudaram a memória, assim como também trataremos das primeiras observações de

Freud sobre essa questão, sobretudo aquelas ligadas ainda ao uso da hipnose.

Se conseguirmos o mínimo de atenção ao nos determos sobre o que foram as

primeiras pesquisas nessa área, nos depararemos de fato com o que foi o próprio

surgimento da psicologia e da psicanálise. Desse modo, nos encontramos diante de uma

bifurcação que deverá ser seguida em ambas as direções para que possamos ter uma

compreensão do quadro que se perfila diante de nós neste momento.

De um lado temos no século XIX uma preponderância das disciplinas ligadas à

neurofisiologia tentando responder às interrogações suscitadas pelas afasias e pela

histeria, tendo logo de saída produzido um campo de batalha em torno das questões
relativas às localizações cerebrais (cf. Bergson,1990,passim; Garcia-Roza,1991:cap.1 e

Heidbreder,1969: Introdução, seção 3). Por outro, a psicologia, que enquanto se

desvencilhando da filosofia, no que dizia respeito ao estabelecimento de um método, não

deixava de ter nela uma fonte de inspiração no que se tratava dos objetivos, operando um

deslizamento que significou a substituição das perguntas sobre o ser (o que é conhecer,

perceber, p.ex.), para aquelas relativas a descrição de um fenômeno (como se conhece,

percebe, p.ex.).

Nesse terreno nebuloso, onde o limite dos saberes encontrou-se pouco a pouco

modificado, foram introduzidas outras personagens, tais como Bergson e Freud. Ambos

24
25

propuseram respostas às questões de sua época, esboçando um quadro novo que não dizia

respeito unicamente à biologia, mas partia de experiências que se pautavam na

metafísica, para o primeiro, e na psicanálise, para o segundo.

No que toca à psicanálise, o estudo da memória nos incita a perguntar sobre sua

própria definição e, em particular, da importância do conceito de a posteriori, onde o

valor traumático de um evento é deslocado em função de sua lembrança. Também

deveremos ter em perspectiva ao longo deste trabalho que a problemática da memória

na psicanálise toca de maneira radical a própria definição de sujeito, e com isso talvez

venha a ser demarcada uma primeira diferença com a psicologia.

É desse modo que nos voltamos para o que foi o primeiro estudo científico da

memória, realizado por Hermann Ebbinghaus que, através do experimento de

memorização de sílabas sem sentido, observou uma relação diretamente proporcional

entre tempo e aprendizagem. Ainda que havendo exceções a essa regra, detectadas por ele

mesmo, o que gostaríamos de sublinhar é a ligação entre memória e aprendizagem que

parece marcar o início das investigações psicológicas desse tema. O que poderíamos ver

nessa primeira iniciativa é exatamente a preocupação de como proceder para otimizar a

investigação da retenção de informações, na mesma medida em que o sujeito do

experimento deveria estar isento de saberes prévios que viessem a interferir na


averigüação, daí as sílabas sem sentido. A preocupação parece ser uma só: como proceder

para extrair um dado do fio do tempo para cristalizá-lo num hábito. Ou melhor, o esforço

parece dar-se no sentido de como verificar a eficácia dessa tentativa, a de poder

reproduzir da melhor maneira possível o que num dado momento apresentou-se à

percepção.

Ainda que os experimentos de Ebbinghaus ponham em relevo a preocupação

quanto a mensuração de um estado psicológico, ele mesmo reconhecia que, assumindo tal

posição, não fazia mais do que abordar uma determinada face, muito limitada, da

memória:

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A fim de verificar praticamente, embora apenas num campo limitado,


uma forma de penetrar mais profundamente nos processos da memória
(...) cheguei ao (...) método [de aprendizagem de sílabas sem sentido]
(Ebbinghaus, 1971:642).

Ao longo de seu texto A Aprendizagem de Sílabas Sem Sentido [1885], além de

apresentar o seu método, ele se colocava questões acerca da natureza da memória para as

quais apontava a insuficiência dos saberes da época, como se não ultrapassassem um

limiar de estudo apenas descritivo. Ele escreveu:

(...) se nossa curiosidade nos leva para diante e desejamos informações mais
específicas e minuciosas quanto a essas dependências e interdependências
[da memória] (...) se fazemos perguntas, por assim dizer, quanto à sua estrutura
interna - nossa resposta é silêncio (idem:640).

As considerações tecidas até aqui acerca do experimento de Ebbinghaus nos são

de valia na medida em que nos colocam diante do que se forjava naquele momento como

método para a psicologia e conseqüentemente nos revelam muito do que era também o

seu objeto de pesquisa. A preocupação quanto a mensuração parece ligar de modo

indissociável Ebbinghaus a Fechner, de modo que poderíamos reconhecer entre ambos os

ideais cientificistas vigentes no século XIX, cujo paradigma encontrava-se nitidamente

ligado às problemáticas de quantificação e matematização dos experimentos. É o que

podemos notar nessa observação de Fechner:

(...) assim como na física e na astronomia, também na mensuração psíquica


podemos inicialmente deixar de lado as irregularidades e os pequenos
afastamentos com relação à ordem, a fim de descobrir e examinar as relações
de princípio com que a ciência deve lidar. No entanto, não se deve esquecer

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a existência de tais exceções, pois o maior desenvolvimento e o maior progresso da


ciência dependem da sua determinação e do seu cálculo,tão logo exista possibilidade
de fazê-lo (Fechner, 1971:83).

Mas, no que diz respeito estritamente à nossa investigação, o que devemos reter

no momento é a razão inversa estabelecida entre tempo e memória. Na mesma medida

em que o tempo por si só seria apenas uma função que atuaria no sentido de desfazer as

ligações da memória, processo conhecido na psicologia como degeneração espontânea do

traço, a repetição apresentar-se-ia como possibilidade de superação desse empecilho,


otimizando e cristalizando relações1.

Essa oposição, que no momento pode nos parecer ainda pouco precisa, já é por si

mesma suficiente para apontar que o interesse da psicologia experimental parece, pelo

menos nesse momento, reduzir-se a algo que no máximo poderíamos chamar de hábito.

Não que a memória não apresente também essa face, mas o que parece muitas vezes

esquecido é que a memória não se reduz ao hábito (cf. Bergson,1990:59-62). Exatamente

como uma lição que é aprendida de cor, depreende-se dos experimentos que “ela é

adquirida pela repetição de um mesmo esforço. Como todo exercício habitual do corpo,

enfim, ela armazenou-se num mecanismo que estimula por inteiro um impulso inicial,

num sistema fechado de movimentos automáticos que se sucedem na mesma ordem e

1 Guillaume retoma o experimento de Ebbinghaus, concordando com o fato de que o tempo “apaga,
debilita, transforma as recordações”(Guillaume,1959:198). Do mesmo modo, confere um papel importante
à repetição: “A lei do esquecimento permite compreender a verdadeira natureza da fixação. Se foram
necessárias 20 leituras para aprender de memória uma lista de sílabas e no dia seguinte somente foram
necessárias 12 para voltar a aprendê-la no mesmo grau e dois dias depois nada mais que 8, devemos por
isso dizer que essas novas leituras fizeram voltar cada vez a recordação ao estado da véspera? Sem dúvida
o afirmaremos assim, no sentido de que a recordação reconstituída permite sempre a mesma recitação
correta”. A segunda parte da resposta de Guillaume merece um comentário breve. Ele credita a facilitação
na fixação/evocação de lembranças não só à repetição, mas também às alterações fisiológicas: “Mas há
outro sentido em que essa afirmação não deve ser aceita, quando a recordação oferece cada vez maior
resistência a ação do tempo: se sabe o mesmo, mas de outra maneira. A recordação é cada vez mais sólida,
pois o mesmo lapso a debilitará cada vez menos”(idem:199). Decorrendo dessa exposição, ainda seria
interessante enunciar a diferença proposta pelo autor entre memória e saber. Este, sendo mais estável, já
não implicaria uma recordação de suas origens (idem:199-202). Grosso modo tal distinção poderia ser
comparada à oposição entre memória implícita (ou procedural) e explícita (ou declarativa) (ver infra,
p.15).

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ocupam o mesmo tempo”(idem:61). Ainda que não fosse por essa observação de Bergson

sobre a relação entre memória e hábito, a distância que aí queremos ressaltar também se

faria notar, por exemplo, no papel peculiar que Freud concede à memória, seja na Carta

52, seja no Além do Princípio do Prazer, só para nos determos nesses dois momentos de

seu pensamento.

Talvez seja necessário nos aproximarmos um pouco mais do contexto em que

esses estudos sobre a memória foram realizados, lembrando que praticamente no mesmo

período a problemática das afasias e da histeria levantavam questões cruciais acerca desse

tema. De saída é interessante notar como o discurso da psicologia é inteiramente pautado

num modelo experimental que parece desconhecer por completo o apelo da clínica e suas

questões. É no espaço do laboratório que vamos encontrar no século XIX toda a

discussão acerca do estatuto da ciência e da oposição desta com a metafísica.

Wundt, Weber, Fechner e Dilthey

É dessa forma que o estabelecimento do primeiro laboratório de psicologia por

Wundt em Leipzig, 1879, ainda que não tenha significado o início da psicologia

experimental (cf. Heidbreder,1969:70), vem dar provas de que a psicologia teria se


tornado definitivamente científica1, moldando para si um objeto de estudo que a princípio

teria ficado disperso por entre disciplinas como a anatomia e a fisiologia. Nesse sentido

Wundt define a psicologia como o estudo da experiência imediata, realizado através do

duplo processo da introspecção e da experimentação, onde o objetivo é o de treinar a

percepção para que ela pudesse desvencilhar-se de uma série de informações secundárias

(luminosidade, cor, hábitos em geral, por exemplo) na descrição de um objeto. Assim, a

experiência mediata, cara às ciências naturais cujo modelo é a física, procederia como

1 Talvez seja necessário esclarecer que não estamos colocando em discussão o estatuto de ciência da
psicologia. Limitamo-nos a contextualizar o objetivo dos autores em questão.

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que por exclusão do fator subjetivo; ao passo em que a psicologia, fazendo apelo à

experiência imediata, não se serviria de tal abstração.

Embora a psicologia experimental esteja apoiada sobre a fisiologia e a anatomia

desde os seus primórdios, apoio que em última instância encontra sua razão de ser na

possibilidade de efetuar uma “teoria do conhecimento” esvaziada de pressupostos

filosóficos e em prol do método experimental, vamos encontrar no próprio Wundt uma

cisão quando fala dos processos mentais superiores (criação artística, por exemplo), para

os quais seria preciso recorrer a um estudo dos “produtos sociais”, através de uma

investigação histórica.

É com Weber e Fechner, este segundo muitos o pai da psicologia experimental,

que podemos detectar de maneira cristalina a preocupação de estabelecer um modo de

correlacionar a atividade psíquica com o estímulo físico (cf. Heidbreder, op.cit.:74-79 e

Herrnstein e Boring, 1971:77-90). Ao contrário do que se percebe na obra de Wundt -

uma dicotomia entre a perspectiva experimental e histórica - com Fechner o intuito é o

de maximizar o alcance que a noção de psicofísica poderia ter no universo científico.

Apesar de encontrarmos também nele uma dicotomia nos objetos de estudo (corpo e

espírito), ao contrário de Wundt, isso não teria redundado numa dicotomia do método

(ibid).
Weber, fisiologista, postulava uma relação específica entre corpo e mente que no

entanto não se resumia a uma equivalência pura e simples. Entre uma grandeza e a

habilidade para percebê-la caberia estabelecer a razão que as ligaria. Fechner em seu livro

Elementos de Psicofísica [1860] irá generalizar o enunciado de Weber a ponto de erigí-lo

em lei, segundo a qual a magnitude da sensação é proporcional ao logaritmo de seu

estímulo (cf. Herrstein e Boring, op.cit.:81).

No entanto a querela entre físico e psíquico, ou corpo e mente, teve sua perfeita

expressão no que se chamou Methodenstreit [querela dos métodos]. A distinção que se

anuncia sob esse termo funda-se numa separação entre natureza - cujos métodos

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corresponderiam àqueles existentes na ciência clássica - e a história ou esfera do homem

-que precisaria recorrer a uma metodologia própria. De um lado o explicar [Erklären] e

do outro o compreender [Verstehen] (cf. Assoun,1983:46). Foi Droysen, um dos

renovadores da historiografia alemã do século XIX, quem formulou essa distinção que

encontra plena continuação com Dilthey e sua Introdução às Ciências do Espírito [1883].

Alguns anos depois, quando Freud escrevia o Projeto, Dilthey publicava o ensaio

Psicologia Comparada, onde além de diferenciar de maneira categórica os campos

concernentes à história e à natureza, situava, contrariamente à maioria dos autores citados

até aqui, a psicologia como uma ciência do espírito, sendo mesmo o seu fundamento.

Teríamos por um lado conexões causais e por outro conexões de sentido, aquelas

trabalhando com categorias como substância e causalidade, e estas com categorias de

significação e força. Essas seriam em linhas gerais as diferenças entre a Naturwissenchaft

[ciência da natureza] e a Geisteswissenschaft [ciência do espírito] (cf. Garcia-

Roza,1991:71-74).

Talvez já pudéssemos arriscar notar um primeiro aspecto da especificidade

freudiana. Compreensão e explicação opõem-se na medida em que, grosso modo, a

primeira faz apelo a uma intuição ou experiência vivida, ao passo em que explicar é fazer

uso de processos discursivos, em particular mostrando que o fenômeno a ser explicado


encontra-se associado a outra coisa - sua causa - ou submetido a uma lei geral.

Mas, Freud justamente não cinde explicação e interpretação. Causa e sentido

recobrem-se e encontram-se no termo alemão Deutung [interpretação] “que explica de

modo interpretativo ou interpreta fornecendo a causa” (Assoun,1983:49). A interpretação

em Freud está indissociavelmente marcada por esse conteúdo objetivo (cf. O Homem dos

Lobos ou o Sonho da Injeção de Irma, por exemplo) que se traduz na explicitação do

nexo causal, explicação que vale por elucidar “(...) o vínculo objetivo entre o conteúdo

manifesto e o conteúdo latente do sonho. É por esta razão que o conteúdo manifesto

sempre introduz, em sua função de significante, um aspecto ‘objetivo’ que o torna

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semelhante a um efeito, assim como o conteúdo latente introduz, no indizível do

significado, a eficiência material da causa. Por conseguinte, o ato interpretativo nunca se

liberta totalmente do ato explicativo pelo qual se remonta do efeito à causa”(idem:50).

Se na interpretação freudiana pode-se delinear a vertente causal da explicação, na

hipnose, tal como Freud a utiliza, não poderíamos também ver implicada a questão da

causalidade e do sentido, sobretudo, quando nos diz que caberia à hipnose “remontar à

pré-história psíquica da doença (...) ocasião psíquica em que se originou o referido

distúrbio”? (Freud,1990:105). Não haveria nessas linhas um flanco aberto às

interrogações sobre a memória?

Hipnose e histeria

“Fique quieto! Não diga nada! Não me toque!” Essas são as palavras

insistentemente repetidas por Frau Emmy von N, às quais Freud acaba por se render.

Esse caso revela-se como uma verdadeira dobradiça entre a hipnose e a associação livre,

onde podemos acompanhar o esforço minucioso por parte de Freud em recuperar e,

literalmente, apagar lembranças que teriam efeitos patogênicos sobre a paciente, a partir

do que, em tese, estaria ela livre dos seus males. No entanto, um primeiro aspecto chama
a atenção: qual o motivo da insistência dos sintomas? Se a história é vasculhada e a

sugestão pós-hipnótica seguida à risca, o que é que está sempre a retornar?

“Na minha opinião (...), todos esses fatores psíquicos embora possam responder

pela escolha dessas fobias, não podem explicar-lhes a persistência” (Freud,1988:112).

Essa afirmação dos Estudos Sobre a Histeria [1893-95], assim como a quase totalidade

dos casos ali citados, já nos deixa entrever a idéia de um trauma desdobrado em dois

momentos e sobretudo a formulação de que a patologia histérica estava intimamente

ligada a uma lembrança carregada de afeto não descarregado.

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Entre a indução do paciente e a cura parece reinar um abismo que a hipnose não

cobrirá. Abismo que será marcado tanto mais quanto se puser em evidência o discurso do

paciente e seus pontos eletivos, suas lembranças, seus esquecimentos, seus sintomas.

Desse modo em Freud a hipnose se reveste de uma preocupação que o leva a dizer que

“(...) desde o início fiz uso da hipnose de outra maneira, independentemente da sugestão

hipnótica. Empreguei-a para fazer perguntas ao paciente sobre a origem de seus sintomas

(...)” (Freud,1976:31).

Se a pesquisa da origem dos sintomas parece revelar para Freud a sua diferença

para com as demais práticas da hipnose, o que isso significa? Teria ele de fato feito um

uso peculiar dela?

As primeiras referências à hipnose reportam-se a Mesmer [1734-1815], e ainda

que se tenha desejado fazer uma distinção clara entre as diversas correntes associadas ao

mesmerismo e a um hipnotismo científico (com Braid e depois Charcot), constata-se o

quão difícil é essa tarefa, uma vez que mesmo as sonâmbulas, os espíritas e os

magnetizadores pareciam também circular pela Salpetrière (cf.Barberis,1992).

A tese de Mesmer em medicina foi a Dissertação Físico-Médica sobre a

Influência dos Planetas, na qual já podemos ver o princípio básico de seu magnetismo

animal, que nada mais era senão uma retomada de temas tais como o dos vapores ou
fluidos, os quais seriam responsáveis pela unificação do corpo e da alma (ibid). Essa

temática do fluido, de um agente geral, influenciou sobremaneira os filósofos românticos

para os quais o universo era visto como um organismo vivo provido de alma a partir do

qual o fluido percorreria o todo e coligaria as partes.

Com o Marquês de Puységur o mesmerismo sofre uma inflexão em direção ao

sonambulismo, onde a influência psíquica do hipnotizador está muito mais em destaque

do que a composição fluídica propriamente dita.

Na continuidade dessa problemática encontramos Briquet [1796-1881] que

representou um ponto de tensão entre a perspectiva romântica e a acuidade médica, sendo

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também por sua vez, o autor que centrou a questão histérica no encéfalo, e não mais no

útero. Ressaltou de modo contundente que a histeria antes de se resumir a uma

conseqüência direta das paixões - como numa relação linear - dizia respeito muito mais

à reprodução, ao memorial, à réplica do acontecimento original (cf.Trillat,1991).

Ainda que não haja nesse breve comentário sobre Briquet uma referência à

hipnose, tal como em Freud, nele se delineia a possibilidade de explicação da etiologia

pelo viés da história do paciente, lembrança que fala da origem e das vicissitudes do

sujeito na constituição de seus sintomas, sendo por isso mesmo fonte de um saber e não

apenas um apêndice a ser suprimido ou um acontecimento ultrapassado pela força da

hereditariedade. Não seriam estas duas últimas características as suposições

implícitas nos dois pilares da hipnose que foram Bernheim e Charcot?

Coube a Liébeaut fundar a Escola de Nancy, assim como retomar a hipnose

quando esta encontrava-se em profundo descrédito, fazendo dela um meio de cura para as

mais diversas doenças, da tuberculose à artrite (cf.Ellemberger,1974).

Mas será Bernheim quem dará continuidade à Escola de Nancy e ratificará a

proposição básica que define a hipnose como um tipo de sugestão. Mesmo tendo Freud

interessado-se a princípio por essa definição, ela não foi suficiente para mantê-lo ligado à

Escola de Nancy, uma vez que ele a julgará insuficiente, como já dissemos, para abarcar a
natureza dos fenômenos que se propõe atingir (cf.Freud,1988:122).

Já para Charcot e a Salpetrière, a hipnose estava indissociavelmente ligada à

condição patológica das histéricas e com isso define-a de modo antagônico à Escola de

Nancy. Para esta, a hipnose era produto da sugestão; ao passo em que para a Salpetrière a

sugestão é que seria uma forma leve de hipnose.

Freud escreve que “na questão da hipnose, realmente tomei partido contra

Charcot, ainda que não estivesse inteiramente a favor de Bernheim” (Freud,1990b:118).

Talvez possamos ver aí os indícios dos caminhos distintos que implicarão para cada um

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deles uma forma de clínica, assim como o papel que a memória terá no uso que cada um

fará da hipnose.

Porque para dar conta da etiologia da histeria Freud não irá apostar, por muito

tempo, nem na hereditariedade, nem na sugestão, e isso parece apontar para o que nesse

período era uma questão central, a experiência traumática. Por conseguinte, o intuito de

Freud era o de poder estabelecer o que se oferecia como condição suficiente e necessária

para a manifestação patológica. Não seria essa a preocupação que acompanharia as

técnicas que sucederam a hipnose, como a concentração e a pressão manual? Não

poderíamos já notar nessas técnicas diversas o intuito de Freud em abordar a questão da

origem, questão que será retomada diversas vezes ao longo de suas elaborações, seja, por

exemplo, através das especulações evolutivas com Ferenczi, ou ainda, através da noção

de fantasias originárias ou do próprio conceito de recalque originário? Desse modo, não

seria lícito afirmar que o que se espera da memória nesse momento é que ela possa tudo

falar, entregando de modo preciso a própria razão de sua opacidade? Ou seja, como

Freud afirmou tantas vezes, a expectativa parecia ser a de um preenchimento das lacunas

da memória para que daí pudesse advir a eliminação do sintoma. Seria o caso de

pensarmos então numa equivalência pura e simples cura/rememoração, sintoma/amnésia?

Antes de prosseguirmos com uma resposta, é necessário frisar que são justamente
os fenômenos hipnóticos e histéricos que colocarão em xeque a função e o sentido das

perdas de memória tal como vinham sendo estudados até aqui. Ao lado dessas

investigações vamos encontrar toda a querela em torno da problemática das afasias e,

conseqüentemente, das localizações cerebrais. O ponto central de todas essas

investigações acerca da memória era sem dúvida a da conservação do passado. Quer

dizer, o que opunha materialistas e espiritualistas, médicos e filósofos, era a problemática

quanto ao estatuto do suporte dessa conservação. Dito de outro modo, onde estaria o

passado? A amnésia implicaria de fato numa destruição das lembranças?

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As afasias

O termo amnésia surge na França em 1803 (cf.Carroy,1994:752), e em 1825 o

médico francês J-B. Bouillaud propõe que a perda da memória dever-se-ia a uma lesão

cerebral precisa. Do mesmo modo, o médico alemão F. Josef Gall, criador da frenologia,

esforça-se por localizar faculdades psicológicas complexas (amor, ambição, por exemplo)

numa região cerebral específica. Em contraposição, os fisiologistas P. Flourens e L.P.

Gratiolet, eminentes pesquisadores desse período, defendiam hipóteses relativas ao

funcionamento cerebral como totalidade (ibid). Nomes, datas e experimentos sucedem-se,

mas o leitmotif acaba por ser sempre o mesmo.

Em 1861 P.Broca ao apresentar ‘o caso Tan’ parecia desfechar o golpe definitivo a

favor da problemática localizacionista. Ele teria descoberto num paciente que havia

perdido a faculdade da fala, e falecido recentemente, um tumor localizado no lobo frontal

do hemisfério esquerdo. Esse paciente sempre que indagado não conseguia responder,

apesar de aparentemente entender as questões que a ele eram dirigidas, de outro modo

que não através do monossilábico tan, tan, tan (cf.Rosenfield,1994:18). Para esse tipo de

patologia, Broca cunhuou o termo afemia (perda do poder de expressão pela fala, devida

a lesão cerebral).
Em 1874 Carl Wernicke, neurologista alemão, identifica e localiza a lesão

correspondente de um outro tipo de distúrbio da memória que não deixa de guardar uma

equivalência com o distúrbio descoberto por Broca. Enquanto a afasia descrita por Broca

dizia respeito à incapacidade de produção dos movimentos da fala, à de Wernicke

implicava a incapacidade de compreensão dos sons. Nas afasias motoras (Broca), perde-

se a faculdade da fala; nas afasias sensoriais (Wernicke) “as funções expressivas mantêm-

se perfeitas e o paciente é capaz de falar e escrever, mas não consegue ler nem

compreender a fala”(idem:27).

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A tônica dos estudos das patologias da memória, como temos mostrado, tem sido

a da amplificação da importância do paralelismo psicofisiológico, ou seja, a do

estabelecimento exato de uma relação entre uma lesão física e o seu correlato

sintomático. Nessa perspectiva é interessante notar a voz discordante que foi a de

Hughlings Jackson, neurologista inglês, autor de relativa importância nas elaborações de

Freud sobre as afasias, opondo-se de maneira contundente ao tema das localizações. Nos

artigos que publicou na revista Brain [1878-1880] ele afirmava que era preciso privilegiar

a clínica em detrimento da neurologia no que dizia respeito aos distúrbios da memória

(Carroy,op.cit.:754). Mas, o que o coloca numa posição distinta daquela dos demais

teóricos de sua época é a ênfase que concederá a uma teoria da memória que se pauta

principalmente sob a problemática do sentido.

Jackson acentua a importância do contexto no funcionamento da memória. “É a

capacidade de criar sentidos inéditos ou novos - rearranjando os estímulos em novos

contextos - que é tão característica da linguagem, em particular, e da função cerebral em

geral”(apud Rosenfield, op.cit.:71,grifo nosso). Desse modo, a memória estaria associada

à capacidade de criar, ou reconhecer, contextos a partir dos quais determinadas respostas

tornam-se possíveis, ou não. Essa também é a tese central do livro de Israel Rosenfield, A

Invenção da Memória, onde procura desmistificar a idéia de uma memória a longo prazo,
ou, o que vem a ser o mesmo, uma memória cujo funcionamento dar-se-ia a partir de

traços permanentes armazenados no cérebro. Ele define uma memória de procedimentos 1,

que não implicaria pura e simplesmente a recuperação de uma informação prévia que

tivesse sido “impressa” no cérebro de modo definitivo2 .


1A definição que Rosenfield faz de uma memória de procedimentos, estritamente ligada à
produção/reconhecimento de sentido, distancía-se das definições usuais de uma memória a longo
termo e a curto termo (que estoca e trata as informações durante o processo de aprendizagem, raciocínio
ou compreensão). Assim como também das definições de uma memória implícita (ou procedural) e
explícita (ou declarativa). A memória procedural nesse caso está ligada a um savoir-faire, na
medida em que existe uma aprendizagem sem no entanto haver retenção da experiência que levou a ela.
A memória declarativa por sua vez aponta para fatos e eventos particulares, experiências (cf. Baddeley: 731
e ss. e Meunier: 761).
2 Essa “impressão” no cérebro está em estreita conexão com o que foi designado como engrama, ou seja,
um traço mnésico inscrito no tecido nervoso. Esse termo foi usado no início do século pelo alemão R.

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Jackson fez uso em seus estudos da memória da teoria evolucionista de Spencer.

Essa teoria afirma ser a evolução dos seres vivos um percurso que vai do homogêneo ao

heterogêneo, ou seja, um processo de diferenciação crescente, ao contrário da teoria

darwinista, que coloca o acento sobre o processo de seleção natural. Conseqüentemente

afirmava que os fenômenos do esquecimento seguiam uma ordem inversa àquela da linha

evolutiva. Desse modo, o déficit atingiria primeiro as lembranças de ordem intelectual,

depois as lembranças afetivas e finalmente os automatismos e os hábitos. Todavia essa

ordem rígida explicar-se-ia não pelo valor intrínseco de cada termo envolvido, mas pelo

fato de que de uma extremidade à outra dessa linha encontrar-se-ia uma especificidade

cada vez maior de aplicação. Assim, por exemplo, os contextos em que as lembranças

intelectuais poderiam ser atualizadas estariam cada vez mais limitados em razão de sua

própria especificidade, opondo-se aos hábitos e automatismos que de certa forma

encontrariam um maior campo de atuação, atualizando-se numa gama de contextos mais

diversos.

Nesse mesmo período vamos encontrar na França um outro pesquisador que

também se utiliza das teorias evolucionistas na memória, tal como Jackson as elaborou.

Ribot publica em 1881 um de seus principais livros, a monografia chamada Psychologie

des Maladies de la Mémoire, que é dividida em quatro capítulos: a memória como fato
biológico; as amnésias gerais; as amnésias parciais; e as exaltações da memória

(cf.Mervant,1989). Ainda que tenha sido Ribot quem procurou otimizar as propostas de

Jackson a respeito da ordem seguida pelos déficits da memória, erigíndo-as em lei,

otimização que encontra também outras formas de enunciado, como aquele que diz serem

Semon, sendo retomado e divulgado por K.S. Lashley, sobretudo em seu artigo “In search of the engram”
apresentado em 1950 na Society for Experimental Biology (cf. Doron e Parot,1991:246). É interessante
frisar que a par desse estudo sobre o engrama, onde transparece a preocupação de Lashley sobre o suporte
neuronal da memória, também foi postulado por ele a lei da ação de massa e a plasticidade das estruturas
corticais. A primeira afirma que a perda mnésica dependia menos da localização da lesão do que da
extensão anatômica (quantidade de tecido nervoso) atingida. A segunda postulação afirma que certas
partes do cérebro podem substituir outras lesadas e suprir às funções correspondentes (cf.
Sillamy,1983:383-384).

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esquecidos primeiro os substantivos próprios, depois os comuns, em seguida os adjetivos

e finalmente os verbos, nem por isso deixa de haver diferenças entre ambos.

Carroy (1994:754), escreve que a principal diferença entre eles dar-se-ia na

medida em que Ribot insiste em derivar a psicologia a partir da biologia, ao passo em que

para Jackson se houvesse uma relação entre o biológico e o psíquico, este não se daria

senão em termos de concomitância. Ribot afirmou que a memória é “por essência, uma

fato biológico; por acidente, uma fato psicológico” (apud Mervant, op.cit.:260).

Seriam três as características da memória para Ribot: conservação, reprodução e

localização no passado, sendo este último item acidental, ligado à consciência, e

responsável por uma memória mais elaborada, psicológica (ibid). Porém, a respeito de

toda essa caracterização da memória, Mervant parece detectar uma dupla preocupação em

Ribot: o aspecto biológico comparece em sua teoria como que para cobrir uma dimensão

da memória que não seria alcançada propriamente pelos aspectos conscientes envolvidos

(localização no passado, por exemplo). Sendo que, no entanto, essa polarização não deixa

de ser sem conseqüências para o que em Ribot vem a ser entendido como consciente ou

psicológico1.

É justamente no cruzamento de duas propostas de Ribot que a hipótese de

Mervant parece pautar-se. Primeiro, ele espera buscar na patologia das funções psíquicas
o segredo de sua atividade normal. Segundo, como citamos acima, ele credita à

capacidade de localização no passado o ponto de distinção entre uma memória orgânica e

uma psíquica. Daí Mervant sustentar que Ribot apresenta em seu livro um modelo

manifesto (fisiológico) e um latente (psicológico), onde o segundo se constituirá como


1 Encontramos em Titchener [1867-1927], aluno de Wundt e fundador da psicologia de cunho estrutural
nos EUA, uma preocupação conexa quando postula a sua teoria do contexto, que no entanto irá
conhecer outros desdobramentos. Nela ele se interroga sobre como o significado se conjuga com a
sensação. “O significado de uma sensação, para a teoria de Tichener, era, simplesmente, o
contexto em que ela ocorria na consciência”(Marx e Hillix,1993:175). Mas seria o significado sinônimo
de consciência? Marx e Hillix, citando Titchener, escrevem que: “(...) o significado pode ser,
principalmente, uma questão de sensações dos sentidos especiais, ou de imagens, ou de sensações
cinestésicas, ou de outras sensações orgânicas, de acordo com o que exija a natureza da situação.
(...) Mas o significado será sempre um significado consciente? Certamente que não; o significado pode
ocorrer em termos puramente fisiológicos” (ibid).

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39

verdadeiro pivô de sua teoria sobre a memória (idem:262). Isso porque ganhará destaque

no livro de Ribot as amnésias periódicas e a cisão histérica, justamente patologias que

não facilmente se adequariam a um modelo de amnésia que se resumisse às amnésias de

fixação, que seriam de modo geral aquelas que responderiam pelas desordens de origem

orgânica, dizendo respeito aos problemas de memorização (idem:263). Elas estariam

muito mais próximas dos problemas de rememoração, assim como as amnésias de

evocação e as amnésias temporárias (ibid).

Essa distinção entre memorização e rememoração1 nos lança no terreno

propriamente psicológico na medida em que, como já citamos, para Ribot é a localização

no passado que seria da ordem psíquica. E é esse acesso que se faria segundo “pontos de

orientação” (idem:261), que significam na prática um “encurtamento” da distância entre a

lembrança e o evento que ela representa, de modo que o tempo de acesso à lembrança

não seria o mesmo que se passou entre o evento e o momento de sua recapitulação. Nem

o passado apresentar-se-ia tal como ele teria sido, mas segundo pontos privilegiados a

partir dos quais ele é recapturado. Logo, “o quadro que a memória nos dá do passado é

(...) por sua vez enganador e exato - ele ‘tira sua exatidão da ilusão mesma’”(ibid).

O que foi apresentado até aqui parece ser suficiente para nos mostrar a

impossibilidade de tratar a memória como se fosse constituída de um modo único e


homogêneo. Do laboratório à clínica, da filosofia à psicologia, nos deparamos com

questões que sem dúvida não deixam de ressoar entre si, mas que procedem segundo uma

lógica interna peculiar, multifacetando o que ingenuamente poderia ser entendido sob o

termo memória.

No entanto, notamos claramente como a memória ora é entendida como uma

capacidade de armazenamento e reprodução de informações, ora é associada a uma

capacidade de ressignificação e/ou localização de um determinado evento no passado.

1 É interessante perceber que semelhante distinção também foi proposta por Lacan e, de certa forma,
guardando as mesmas definições (cf. Lacan,1985:234; tb. infra, cap.VI).

39
40

Ainda poderíamos acrescentar que ora ela é descrita como guardando uma relação de

identidade com o evento do qual ela é a recordação, ora é descrita como semelhante, não

idêntica a um determinado evento, marcada por traços que podem mesmo chegar a

falsificá-lo, mas nem por isso deixando de representá-lo à sua maneira (ver supra, sobre

Ribot).

É a partir dessas considerações que prosseguiremos para verificar como esse tema

apresentou-se inicialmente ao pensamento de Freud, tendo em vista, em particular, a

importância do a posteriori, de modo que se possa melhor compreender o seu papel na

teoria psicanalítica. Seria ele apenas a capacidade de ressignificar o passado? A tradução

inglesa deferred action, e conseqüentemente as traduções para o português de ação

retardada ou ação preterida, seriam elas adequadas?

Tendo em vista que Freud jamais estudou a memória enquanto tal

(cf.Mervant,1989:266), talvez seja preciso seguir a distinção de Mervant, para quem da

psicologia à psicanálise a “clínica da memória como faculdade se substitui (...) [a] uma

clínica das relações do sujeito com suas lembranças” (idem:267), de modo que possamos

delinear as diferenças que se fazem necessárias. E é o estatuto mesmo dessas lembranças

que esperamos colocar em destaque através do nachträglich freudiano, onde parece

prefigurar-se um ponto de criação ex-nihillo (Lacan,1988:258,260 e 261), a partir do qual


a cadeia significante funda-se e articula-se como tal.

Desse modo, as lembranças não deveriam mais ser tomadas simplesmente como

um desenrolar despretensioso sobre o qual viríamos nos instalar e de onde narraríamos

uma história. A referência a um ponto de criação ex-nihillo faz menção a criação de uma

história, ordenamento significante, assim como a produção de um resto, de um resíduo,

que permaneceria para além da própria cadeia significante. Assim, a memória responde

paradoxalmente também pelo que não se pode encontrar de traços positivos,

representação, apontando para uma insistência a partir da qual, talvez, possamos

considerar a rememoração como algo mais do que simplesmente um não querer esquecer.

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41

II. Entre o Somático e o Psíquico

Locus suspectus

Nem no meio ambiente nem na hereditariedade eu consigo encontrar o instrumento exato que me
formou, a prensa anônima que estampou em minha vida uma certa marca d'água complexa cujo desenho
singular se torna visível quando examino o papel almaço da vida contra a luz da lâmpada da arte.
V. Nabokov

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Afirmávamos no capítulo anterior que a memória não se constituiria per se como

tema de investigação para a psicanálise, sendo o acento colocado sobre a relação entre

sujeito e lembrança. Daí a pergunta: seria a memória algo mais do que um processo de

atualização de eventos, oportunidade de repetição do passado, proporcionada por

alterações permanentes do sistema nervoso?

Já passamos em revista o que no século XIX poderia ser entendido sob o termo

memória, e como se procedia à sua investigação. Salientamos que os fenômenos ditos

patológicos (histeria, amnésia, afasia) propiciaram um novo campo de estudo, onde,

apesar de tudo, as questões localizacionistas adquiriram certo vigor. Mas, esses mesmos

fenômenos pareciam complicar sobremaneira uma explicação simplificadora e

reducionista de suas manifestações.

É dessa forma, por exemplo, que H. Jackson nos fala de um afásico que sob um

determinado contexto - um incêndio diante do hospital - conseguiu pronunciar a palavra

fogo (Rosenfield,1994:73). Do mesmo modo, há relatos de como as amnésias histéricas

podiam ser desfeitas sob hipnose, descobrindo-se aí inclusive um fato importante para a

sua patologia. Assim, como proceder para compreender esses distúrbios da memória que,

em alguns casos, não têm como chave privilegiada um endereço certo no cérebro?

É a partir desses problemas que podemos acompanhar um certo redirecionamento


que a questão da memória irá ter no próprio século XIX, de modo que Janet, por

exemplo, irá defini-la como “conduite du récit” [conduta de narração]

(cf.Carroy,1995:756). É interessante que embora as diferenças teóricas entre Janet e a

dupla Breuer/Freud sejam nítidas (cf.Freud,1987:53-55), não se pode deixar de notar

pontos de convergência, como na definição acima, que guarda uma estreita correlação

com toda a argumentação apresentada na Comunicação Preliminar e nos Estudos Sobre a

Histeria sobre a talking cure. De fato, o próprio Janet chega a incluir uma nota favorável

à Comunicação Preliminar em seu artigo Algumas Definições Recentes da Histeria,

publicado nos Archives de Neurologie [1893] que posteriormente seria utilizado como

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43

capítulo final de seu livro L’Etat Mental des Hystériques, publicado em 1894

(cf.Freud,1988:21).

O que está implícito na “conduite du récit” de Janet é que “a cura visa lhe permitir

[à histérica] ser capaz (...) de narrar em lugar de reviver e de repetir”(Carroy,op.cit.:756).

Ainda que pudéssemos notar na definição acima uma certa equivalência com as

propostas de Freud e Breuer, onde salta aos olhos a idéia de um passado aparantemente

esquecido, presente, contudo, pelo viés dos sintomas, há que se notar, todavia, as

diferenças que os separam.

A primeira delas centra-se no fato de que as hipóteses de Breuer diziam respeito à

capacidade da paciente fazer uso de uma narração depuratória ou catártica, induzida por

sua vez através da hipnose. Vale a pena notar que, apesar da trajetória teórica divergente

que marcou posteriormente a separação de Breuer e Freud, é a Breuer que Freud credita

ser a fonte de onde teria forjado a sua clínica (cf.Freud,1988:20).

Ainda poderíamos focalizar o ponto de divergência entre Janet e Breuer/Freud de

modo mais preciso. É a própria definição da histeria que torna remota qualquer

possibilidade de aproximação entre eles. Para Janet a histeria seria marcada pelo regresso

a um funcionamento mental dissociado mais primitivo (talvez possamos perceber aqui

ecos das premissas evolucionistas de Ribot, de quem Janet foi aluno), de modo que a
terapeutica será marcada não só pela tentativa de resgate de uma lembrança

aparentemente esquecida, mas mais ainda, sendo necessário através da hipnose mudar as

próprias lembranças para que um efeito de cura seja alcançado. Há que se notar, porém,

que a oposição de Freud a esta definição de histeria não teria impedido-o de utilizar-se no

nível da técnica, durante algum tempo ao menos, dos mesmos expedientes.

Para Breuer, a origem da histeria liga-se a uma experiência vivida sob estado

hipnóide. Ou seja, um estado de suspensão que caracterizar-se-ia por fundar-se à parte da

corrente associativa consciente, sendo, portanto, indicador de uma clivagem no

psiquismo. A terapeutica diria respeito então à possibilidade de reviver e rememorar a

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lembrança de modo a ab-reagir a cota de afeto a ela ligada. Todavia, talvez pudéssemos

notar em comum nas hipóteses de Breuer e Janet uma tentativa de ultrapassamento do

modelo neurológico que parecia predominar notadamente nos estudos dos distúrbios

psíquicos.

Ainda que Freud não tenha compartilhado por muito tempo dos estados hipnóides

(cf. As Psiconeuroses de Defesa e Estudos sobre a Histeria), não é menos certo que a

noção de uma clivagem da consciência, tal como pode ser apreendida dessa teoria, não

tenha sido importante para suas considerações. Freud salienta contudo o aspecto de

representação incompatível, formulado através do conceito de histeria de defesa. Desse

modo são as hipóteses de Janet, que invariavelmente apontavam para uma “(...) fraqueza

inata da capacidade de síntese psíquica e uma estreiteza do ‘campo da consciência’”

(Laplanche e Pontalis,1988:219), que encontram-se inteiramente desconsideradas.

Entretanto, quando mencionamos a “conduite du récit” de Janet, foi-nos quase

impossível não ver ali uma preocupação que era também a de Freud, ou seja, a de que

pelo viés da fala o paciente deveria poder elaborar a recordação plena de afeto, fruto da

“incapacidade de síntese psíquica”, para um, ou da experiência que não conseguiu outro

destino senão seu isolamento psíquico, para o outro.

Mesmo alguns anos depois do período de uso do método catártico, em que Freud
fazia uso da hipnose calcado nos pressupostos de Breuer, vamos encontrar ainda nele

definições quanto à técnica que concedem um valor todo especial à rememoração. É

desse modo que em Recordar, Repetir, Elaborar [1914], ao distinguir a técnica analítica

daquela que dizia respeito à ab-reação, ainda assim, ele afirmava que “O objetivo destas

técnicas diferentes, naturalmente, permaneceu sendo o mesmo. Descritivamente falando,

trata-se de preencher lacunas na memória; dinamicamente, é superar resistências devidas

à repressão” (Freud,1969:193).

Esse “prencher as lacunas da memória” nos lança diretamente ao que havíamos

citado anteriormente através de Assoun (ver supra, cap.I), onde ele comentava a relação

44
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causa/efeito, conteúdo latente/manifesto, significado/significante, para situar

corretamente o que seria a interpretação [Deutung] em Freud; e como sob essa noção

poderíamos ver o modo pelo qual Freud contorna a querela compreensão/explicação.

Pois, todo esse procedimento interpretativo objetiva precisar o nexo que ligaria o efeito à

sua causa, do mesmo modo que sob os auspícios da memória não encontraríamos outra

coisa que os determinantes da condição patológica atual.

Todavia, ao nos determos somente nessa explanação, talvez não pudéssemos notar

que em geral ao falarmos da memória em Freud devemos necessariamente acentuar o

aspecto de hiato que marca a relação entre a experiência e sua lembrança. Desse modo o

percurso de uma à outra não seria passível de uma verificação empírica. Ao contrário,

dar-se-ia segundo uma sutil relação de forças que não exclui componentes de construção

(tal como definido por Freud em Construções em Análise) e de fantasia, que

necessariamente compõem o quadro onde a interpretação tem lugar.

Contudo, se concordamos que a questão da memória para a psicanálise afasta-se

de uma problemática que diria respeito pura e simplesmente à reprodução de um fato,

estaríamos autorizados a dizer que ela seria da ordem da invenção? A memória seria

como uma construção que encontra seu lugar no passado posteriormente, e ao dar conta

de um passado, como numa história com começo, meio e fim, resolve todos os dilemas
do sujeito, redundando num final de análise, onde tudo teria sido explicado?

Aqui poderíamos retomar o vínculo objetivo a que Assoun faz menção (ver supra,

cap.I) a propósito da interpretação. Por um lado, que poderíamos chamar empírico ou

positivo, ele indica o risco de empobrecer a interpretação, remetendo-a a eventos que

teriam de antemão existido, tentativa de reconstituir os elos que levariam do efeito à

causa. Por outro, nos dá uma primeira indicação de que determinadas articulações

impõem-se, e a interpretação não está aberta a todos os sentidos. Como Lacan nos

lembraria mais tarde, numa passagem que não podemos deixar de ligar ao que estamos

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dizendo aqui, a vida não é um sonho, e a psicanálise não é um idealismo

(cf.Lacan,1990:55).

Os primeiros passos de Freud

Essas questões, que apontam para um certo embaraço a propósito de temas como

tempo, memória e causalidade, estão presentes em Freud desde o início de suas

elaborações sobre as neuroses. Vemos, por exemplo, em seu texto Histeria [1888] definir

essa patologia como doença orgânica, assim como creditar uma influência decisiva à

hereditariedade, sendo a manifestação desencadeada pela presença de “agents

provocateurs”. Sobretudo, ele sublinhará a distância que caracteriza a experiência e o

efeito traumático ao dizer que:

(...) A evolução dos distúrbios histéricos muitas vezes exige uma espécie
de incubação, ou melhor, um período de latência, durante o qual a causa
desencadeante continua no inconsciente (Freud,1990:100,grifo nosso).

Do mesmo modo, em seu artigo Hipnose [1891] ele afirma que:

A observação dos pacientes mostra que, em regra geral, as impressões


psíquicas necessitam de certo tempo, de um período de incubação, a fim
de efetuarem uma modificação física (Freud,1990c:170).

Esse recurso a um período de incubação, ou um período de latência, ou ainda

período de elaboração, reporta-se ao uso que Charcot fazia desses termos ao postular a

histeria traumática. Nela haveria um hiato entre a experiência traumática e seu efeito,

46
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sendo a causa reconhecida, contudo, na violência do primeiro termo e não no intervalo

temporal propriamente dito (cf.Gondar,1995:50).

Nessa fase do pensamento freudiano com que nos deparamos, a histeria parece

estar próxima de dois fatores que se interligam, e que poderíamos enumerar: primeiro,

uma lembrança entendida como revivescência alucinatória de uma cena traumática;

segundo, a idéia de um trauma psíquico como uma intensidade com a qual o sujeito seria

incapaz de lidar, intensidade que seria o próprio conteúdo da lembrança

(cf.Freud,1990d:203). No entanto, na mesma passagem onde Freud comenta esses

fatores, ele nos diz também que a irrupção da histeria no sujeito poderia ser devido não só

à intensidade do evento em si, mas a sua “ocorrência em um momento particular” (ibid).

Poderíamos notar aqui, talvez, uma inclinação para as postulações de Breuer sobre

os estados hipnóides e sua correlação com o estabelecimento de um efeito patogênico,

mas, por outro lado, já é o anúncio da busca de uma especificidade para o fator

etiológico da histeria. Especificidade que será circunscrita posteriormente como

pertencente ao campo sexual, marcando desse modo um afastamento tanto de Breuer,

como de Charcot. Vale notar que até 1897 a questão do trauma será uma constante em

Freud, sofrendo a partir daí uma modificação em função do abandono da teoria da

sedução.
Trauma, lembrança e intensidade parecem desse modo indissociavelmente

ligados, sendo ainda a lembrança como que a “portadora” dessa experiência que o sujeito

não teve como desvencilhar-se. Assim falávamos, quanto à origem do trauma, de um

“momento particular”, e agora também da lembrança como “portadora” dessa

experiência, do mesmo modo que percorre de um extremo ao outro a idéia de intensidade.

É curioso que se nos detivermos sobre cada um desses aspectos talvez fôssemos

conduzidos a conclusões inteiramente divergentes a respeito de uma mesma questão.

Se é acentudado um “momento particular” a respeito da experiência traumática,

seu estatuto seria definido em função da relação estabelecida com outros eventos que

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colaborariam para esse resultado, como que por somação, por exemplo. Poderíamos do

mesmo modo ressaltar a constituição (biológica ou emocional) do indivíduo que

facilitaria o resultado traumático de uma experiência. Por outro lado, ao falarmos da

lembrança como uma revivescência acentuamos um aspecto que diz respeito a

recapitulação ou reprodução de um determinado evento (ou de pelo menos parte dele).

O interessante é que nesse momento Freud não parece excluir ambas as hipóteses,

de modo que elas comparecem como possibilidades perfeitamente capazes de coexistir:

O conteúdo da lembrança geralmente é ou um trauma psíquico, que,


por sua intensidade, é capaz de provocar a irrupção da histeria no paciente,
ou é um evento que, devido à sua ocorrência em um momento particular, tornou-se
um trauma (ibid).

Essas mesmas questões são recolocadas no Esboço para a Comunicação

Preliminar [1892], onde de saída Freud chama a atenção para a importância da

elaboração de uma teoria da memória (Freud,1990e:214). Além disso ele escreve que “o

elemento constante e essencial de um ataque histérico é o retorno de um estado psíquico

que o paciente já experimentou anteriormente - em outras palavras, o retorno de uma

lembrança” (idem:219). E continua: “A lembrança que forma o conteúdo de um ataque

histérico não é uma lembrança qualquer; é o retorno do evento que causou a irrupção da

histeria - o trauma psíquico” (ibid).

Dessa origem tantas vezes retomada, tantas vezes quantos forem os ataques

histéricos, podemos reconhecer quase as mesmas questões que comentávamos no texto

anterior de Freud. Aqui, porém, essa lembrança que forma o conteúdo de um ataque

histérico é dita também inconsciente e localizada, portanto, como fazendo parte de um

segundo grupo psíquico. Por isso a necessidade de “trazer essa lembrança inteiramente à

consciência normal” (idem:220). O corolário, que se tornará famoso nos Estudos sobre a

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Histeria, é que os ataques histéricos “são impressões que não conseguiram encontrar uma

descarga adequada” (idem:222).

Até aqui temos notado como as referências à lembrança, no que dizem respeito a

etiologia da histeria, aparecem ligadas de modo indissociável à questão do trauma. Mais

do que nos perguntarmos sobre sua natureza, devemos nos manter atentos para o que

possa vir a ser entendido sob a denominação de lembrança. Isso porque em mais de uma

oportunidade notamos que o conteúdo da lembrança ligada a um ataque histérico tem

sido caracterizado como dizendo respeito, no mínimo, a um fragmento da experiência

traumática. Quer dizer, aquela que o sujeito não pôde elaborar, ou que, enfim, não

conseguiu encontrar uma descarga adequada, permanecendo no psiquismo e promovendo

os sintomas.

A lembrança aparece então como a atualização de um sem-sentido (ou

intensidade) com o qual o sujeito vê-se obrigado a deparar-se de tempos em tempos. Mas

aí, voltamos a andar em círculos. Pois, seria o caso de falarmos a respeito de uma

lembrança que ela é lembrança de alguma coisa, lembrança de uma experiência, de um

evento, de algo enfim. No entanto, o que vimos até esse momento nos permitiria

dizer que a lembrança traduz-se sobretudo em termos confusos, imprecisos, ou até

mesmo não se apresenta em termos positivos, como representação, mas faz-se presente
em termos de intensidade. E o esforço de Freud, Breuer e até mesmo Janet, é o de torná-

la consciente ou permitir que algo a seu respeito possa ser dito.

Quase sem ser percebido foi feito já um pequeno movimento. Estamos tratando da

lembrança como se tratássemos da própria experiência, já que uma parece ser a

representante da outra, sendo sua característica principal a de nunca apresentar-se de

modo completo ou nítido. Seria essa característica um limite ou o ponto de partida para

falarmos da memória na psicanálise? Se falávamos em atualização, ela poderia ser

entendida como a permanência da experiência (traumática)? Ou seria o caso de

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afirmármos que começa a delinear-se no horizonte freudiano uma idéia de passado que se

constituiria imanentemente ao seu próprio movimento de elaboração no presente?

O importante a ser mantido em vista diz respeito a influência do conceito de a

posteriori sobre o de memória e vice-versa. Se um assinala a constituição do trauma e o

outro aponta para os caminhos da rememoração, é fácil notar que nem um nem outro

deixam de apontar para um limite, que se traduz comumente por um impossível de dizer,

que é um impossível de lembrar, onde a cura não caminha necessariamente no mesmo

passo que o levantamento de fatos ligados à vida do sujeito.

Intensidade e lembrança

Nessa medida o Rascunho K (anexo à carta 39 a Fliess de 01/01/1896), posterior

ao Projeto, traz referências explícitas à problemática que toca o a posteriori. No mesmo

momento em que vai buscar alternativas à hipótese da hereditariedade como fator

fundamental para a manifestação histérica, ele afirma que:

É nisso, realmente, que se concretiza a possibilidade de uma lembrança


ter, posteriormente, uma capacidade de liberação maior do que a produ-
zida pela experiência correspondente. Somente uma coisa é necessária
para isto: que a puberdade se interponha entre a experiência e sua re-
petição na lembrança -evento que tanto aumenta o efeito de revivescên-
cia (Freud,1990f:308).

Essa referência parece vir ao encontro do que usualmente o próprio Freud, e com

ele a comunidade psicanalítica em geral, propõe para a compreensão do nachträglich. De

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saída, coloca em destaque um novo viés para a relação causal, onde não caberia um efeito

linear tal como poder-se-ia entender comumente por relação causa-efeito. Mas, ao nos

determos exclusivamente na citação acima, somos colocados diante da possibilidade de

compreensão do conceito de a posteriori apenas como ação diferida. Ou seja, ação

adiada em função de um outro evento, no caso a puberdade, que como por um efeito de

adição, viria possibilitar ao primeiro todo o seu efeito patogênico (cf.Laplanche e

Pontalis,1988:445).

Poderíamos reformular o parágrafo precedente do seguinte modo: até que ponto é

necessária a associação entre o a posteriori e a puberdade? Estaria a relação evento e

lembrança (traumática) restrita única e exclusivamente a esse episódio do

desenvolvimento humano? O próprio J. Strachey procura explicitar essa argumentação ao

afirmar que: “(...) segundo a teoria usual de Freud, era a interposição da puberdade entre

uma experiência sexual precoce e a primeira lembrança dessa experiência que tornava

possível a existência das neuroses”(Freud,1990g:322).

É nessa perspectiva que na Carta 46 a Fliess (30/05/96), Freud parece sintetizar

todas as argumentações anteriores entre trauma, intensidade e lembrança ao afirmar que:

O despertar, numa época posterior, de uma lembrança sexual de época


precedente produz um excesso de sexualidade na psique, o qual atua
como uma inibição do pensamento e confere à lembrança e às conse-
qüências desta um caráter obsessivo - impossibilidade de ser inibido
(idem:319).

Sem dúvida a pergunta que nos ocorre agora é justamente aquela que diz respeito

à correta contextualização do conceito de a posteriori. Será que mesmo sob a pena de

Freud, e nesse período sobre o qual nos detemos, estaria esse conceito apenas

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determinado por uma variação, biológica e/ou psíquica, em todo caso ligada ao

desenvolvimento do indivíduo?

É curioso que no próprio texto que citávamos, Freud nos brinde com uma frase

que não deixa de ser intrigante, e que ao mesmo tempo, de certa forma, aponta para a

necessidade de aproximarmo-nos de outras referências para uma melhor apreensão do

que seja o a posteriori. Ele diz que o “recalcamento e a formação de sintomas defensivos

só ocorrem posteriormente, em conexão com a lembrança (...)” (Freud,1990f:318). Na

verdade se mantivermos ao nosso alcance a idéia de que a lembrança adquiriria sua

intensidade, e, conseqüentemente, seu efeito patogênico devido à interposição da

puberdade, que forneceria os elementos necessários para uma ressignificação do primeiro

evento até então anódino, essa frase não nos propiciaria susto algum.

Mas, e a pergunta nos volta com insistência, estaria toda a novidade do a

posteriori, que consiste num descentramento da causa ao efeito, restrita de fato aos

efeitos propiciados pela puberdade? Episódio que em conexão com a lembrança

forneceria a esta uma marca indelével que de saída a forçaria a ser algo mais que a

própria experiência original?

Uma das críticas apresentadas em favor de um certo abandono do conceito de a

posteriori pauta-se no fato de que, em suas linhas gerais, ele teria sido elaborado antes
das formulações da teoria sexual infantil de Freud, e, conseqüentemente, antes dele

mesmo “reconhecer o papel desempenhado na produção das neuroses pelos impulsos

sexuais já presentes na tenra infância” (cf. nota de J. Strachey em Freud,1988:150). O

curioso é que no próprio Freud o uso do a posteriori vem a ter um lugar de destaque no

relato do caso clínico do Homem dos Lobos publicado em 1918, portanto, numa época

onde a primeira fase de sua teoria já se encontrava perfeitamente consolidada.

Lacuna e psique

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Quanto à frase de Freud que citávamos acima, talvez seja necessário nos determos

um pouco mais sobre ela. Nessa passagem do Rascunho K, Freud nos fala de uma lacuna

na psique como primordial na etiologia histérica, ao mesmo tempo em que ressalta que o

recalque deve-se a intensificação de uma idéia limítrofe que justamente recebe esse nome

“porque, de um lado, pertence ao ego e, de outro, forma uma parte não-distorcida da

lembrança traumática” (Freud,1990f:318, grifo nosso). Ele continua, esclarecendo que

essa idéia-limite que representa a lembrança da experiência traumática no fluxo do

pensamento, “não se manifesta numa substituição com base em alguma categoria de

tema, mas num deslocamento da atenção ao longo de uma série de idéias ligadas pela

simultaneidade temporal” (ibid). Essas passagens nos são de valia na medida em que nos

permitem situar melhor duas séries com que vínhamos procurando trabalhar até agora.

Primeiro, a idéia do a posteriori como propiciadora de uma inversão da relação

usual causa-efeito, onde não estaria o efeito contido, a princípio, no que poderia ser

suposto como sua causa. Ou seja, se há em alguns casos de histeria um intervalo temporal

para a manifestação sintomática, não é porque haveria de saída uma causa e seus

desdobramentos, mas, um pouco diferente, o vocábulo nachträglich “enfoca a

permanência de uma conexão entre o agora e o momento de então, mantendo ambos

interligados”(Hanns,1996:83).
Segundo, se entre evento e experiência traumática, ou entre evento e lembrança,

há uma distância no tempo, a memória parece ser o lugar de uma repetição despojada de

qualquer inclinação reducionista, que pudesse ser traduzida como sendo uma reprodução

da experiência original. Sublinhar esse aspecto também é uma tentativa de fidelidade ao

nachträglich, que na língua alemã implica não só “que algo permanece latente e se

manifesta posteriormente”, como também que “algo é refeito/remodelado por

acréscimo/retorno”. (ibid).

Do que citávamos a respeito da idéia limítrofe, devemos reter que por constituir-

se como uma formação de compromisso (cf.Freud,1990f:318) ela não só atende ao ego, e

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poderíamos dizer traduz-se em imagens as mais diversas, mas também “forma uma parte

não-distorcida da lembrança traumática”, ou seja, relaciona-se diretamente com o que

Freud chama nesse texto “uma lacuna na psique”(ibid). Poderíamos nos fazer então a

partir daí duas perguntas: Poderíamos melhor especificar a natureza das imagens em jogo

nas lembranças? E ainda, qual o estatuto dessa “lacuna na psique”?

É na Carta 52 (06/12/1896) a Fliess que vamos encontrar novas pistas a respeito

das questões que temos levantado até aqui. Freud escreve:

(...) estou trabalhando com a hipótese de que nosso mecanismo


psíquico tenha-se formado por um processo de estratificação:
o material presente em forma de traços da memória estaria su-
jeito, de tempos em tempos, a um rearranjo segundo novas cir-
cunstâncias -a uma retranscrição. Assim, o que há de essenci-
almente novo a respeito de minha teoria é a tese de que a me-
mória não se faz presente de uma só vez, mas se desdobra em
vários tempos; que ela é registrada em diferentes espécies de
indicações (Freud,1990h:324).

O mecanismo psíquico que Freud nos apresenta na Carta 52 é dividido em cinco

partes1: Wahrnehmungen [percepções] e Bewusstsein [consciência], ocupando as

extremidades do aparelho. Poderíamos representar o funcionamento da primeira tal como

aquele das lentes num instrumento ótico, um meio de passagem de impressões sensórias.

Apesar da distância espacial no esquema, haveria uma proximidade entre percepção e

consciência na medida em que esta encontrar-se-ia destituída de qualquer característica

que significasse uma condição de possibilidade de juízo. Distinção que já havia sido

formulada no Projeto, onde percepção e memória deveriam necessariamente

corresponder a mecanismos diferentes, uma vez que não se poderia conceber um acúmulo

1 Para o que se segue, cf. Freud,1990h:325-326.

54
55

de funções sobre um mesmo registro. Daí a conclusão que “a consciência e a memória

são mutuamente exclusivas”(idem:325, ver tb. comentários de Breuer e Strachey em

Freud,1988:198); Wahrnehmungszeichen [signos de percepção]: primeiro registro,

associações por simultaneidade; Unbewusstsein [inconsciência]: segundo registro,

disposto de acordo com outras relações, talvez causais. Freud diz nessa passagem que os

traços aqui talvez correspondam a lembranças conceituais; Vorbewusstsein [pré-

consciência]: terceira transcrição ligada às representações verbais e correspondendo ao

ego como tal.

Desde As Afasias [1891] encontramos Freud às voltas com formulações que

tentam dar conta do que seria o aparelho psíquico, sendo que nessa primeira elaboração

ele chega a falar em Spracheapparat [aparelho de linguagem] (cf.Garcia-Roza,1991:26).

Na Carta 52 que se situa entre o Projeto e a Interpretação dos Sonhos, encontramos mais

uma vez essa preocupação, marcada pela intenção de definir o estatuto da memória para

essa nova psicologia que Freud perseguia há muito (Freud,1990e:214 e ss).

A dúvida com que mais uma vez Freud defronta-se na Carta 52 é colocada por

ele nos seguintes termos: “o que falta explicar é por que as experiências sexuais, que, na

época em que eram atuais, geraram prazer, passam, quando são lembradas numa fase

diferente, a gerar desprazer em algumas pessoas e, em outras, a persistir como


compulsão”(Freud,1990h:328).

Freud irá acentuar nesse texto o uso de termos que se afastam cada vez mais do

universo neurofisiológico presente no Projeto. Desse modo, adquire destaque justamente

a idéia de que as neuroses em geral seriam o resultado de uma não tradução de parte do

material mnêmico nos registros subseqüentes (idem:326). Daí afirmar ser “uma falha na

tradução (...) o que se conhece clinicamente como recalcamento” (ibid). Quanto a essa

passagem devemos nos valer da observação do prof. Garcia-Roza, quando ressalta que

Freud justamente por conceder um papel importante à sexualidade, não nos autorizaria a

compreender essa “falha” como resultado de alguma problemática mecânica (cf. Garcia-

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Roza,1991:205 e Freud,1990h:326), mas aponta diretamente para o que está sendo

tratado como defesa já desde os Estudos sobre Histeria.

Notamos desde nossa primeira citação da Carta 52, que Freud acentua, como

comentávamos no parágrafo anterior, noções como as de estratificação, traços (de

memória), retranscrição, além de dizer que “a memória não se faz presente de uma só

vez, mas se desdobra em vários tempos (...) registrada em diferentes espécies de

indicações”. Fala também de uma patologia associada a “não tradução de parte do

material mnêmico”.

Reencontramo-nos com nossas interrogações anteriores, sobretudo no que diz

respeito a relação tempo/memória. Pois, quando falávamos de Ebbinghaus (ver supra,

cap.I), frisamos o que parecia ser uma característica dos estudos da psicologia sobre a

memória, qual seja, a de considerar numa relação inversa tempo e memória. Sendo o

tempo como que dotado apenas de um valor negativo, capaz de desfazer os laços tecidos

pela memória, ou, no máximo, um propiciador para o estabelecimento de hábitos, quer

dizer, repetição de um comportamento adquirido. Tratar-se-ia de fato de uma verdadeira

“corrida contra o tempo”, onde à memória caberia o papel de repetir (reproduzir) e

otimizar o dado que outrora tivesse sido percepção.

A memória não-toda

O que queremos ressaltar é essa relação não de toda antinômica que parece

caracterizar tempo e memória na Carta 52, onde cada registro opera com uma

característica da lembrança, e a não transcrição para o registro seguinte pode vir a

originar uma defesa patológica, sendo o recalcamento entendido como justamente uma

falha nessa tradução (Freud,1990h:326). O ensaio para o abandono de um estudo da

memória pautado no terreno neurológico pode ser visto em todo o texto. Principalmente

numa pequena passagem, utilizada também por Lacan no Seminário 7 - A Ética da

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Psicanálise - (Lacan,1988:70), quando Freud nos fala que “o ataque histérico não é uma

descarga, mas uma ação; e conserva a característica original de toda ação - ser um meio

de reprodução do prazer.”(Freud,1990h:331).

Temos, portanto, por um lado que “a memória não se faz presente de uma só vez”

e por outro, essa dimensão não de toda clara, em que descarga e ação começam a

despontar como antônimos. Poderíamos notar alguma correspondência entre ambas as

formulações e as questões relativas ao nachträglich [a posteriori]? Haveria alguma

articulação entre elas? Essa ação que não visa a outra coisa que ser um “meio de

reprodução do prazer”, desde o Projeto condenada ao fracasso da impossibilidade de

repetição da experiência de satisfação, forçada a desdobrar-se em experiências

substitutas, não haveria em todas elas a idéia de uma incompletude que se confirma na

medida em que de uma à outra a tônica é a falha, a falta, o trauma? Não do que teria um

dia ocorrido, mas do que está sempre em vias de ocorrer, do objeto perdido, da tradução

impossível, não admissível, constituída como tal na própria repetição, da qual a

lembrança é também um índice?

Não estaria assim a memória despojada de suas características de “reservatório”

ou de “máquina de ressignificação” apenas, para deixar-se tingir por características mais

estranhas que acabam por dizer respeito a uma dissimetria, uma falta de representação
adequada, que quebra a correspondência entre evento e lembrança, e que insiste em se

fazer presente “de tempos em tempos”? Talvez pudéssemos retornar então a uma questão

anterior para recolocá-la do seguinte modo: das imagens evocadas numa lembrança, a

que ordem de eventos estariam elas ligadas?

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III. Sobre a Imagem e a Lembrança

Forsan et haec olim meminisse juvabit

Um homem é, primeiro, o pranto, o sal, o mal, o fel, o sol, o mar - o homem. Só depois
surge a sua infância texto, explicação das aves que o comem. Só depois antes aparece ao homem.
P.M. Campos

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Numa primeira resposta à pergunta anterior, poderíamos dizer que Freud em

vários momentos de sua obra procura vincular o conteúdo de uma lembrança a um

aspecto verídico da realidade, a partir do qual operar-se-ia uma reconstituição posterior. É

desse modo que na Carta 59 a Fliess (06/04/1897) ele escreve que:

... O aspecto que me escapou na solução da histeria está na descoberta


de uma nova fonte a partir da qual surge um novo elemento da produ-
ção inconsciente. O que tenho em mente são as fantasias histéricas, que,
habitualmente, segundo me parece, remontam a coisas ouvidas pelas
crianças em tenra idade e compreendidas somente mais tarde. A idade
em que elas captam informações dessa ordem é realmente surpreendente
-dos seis ou sete meses em diante!... (Freud,1990i:338).

A passagem acima é confirmada na Carta 61 (02/05/1897) onde Freud reitera que:

(...) As fantasias derivam de coisas que foram ouvidas, mas só compreen -


didas posteriormente, e todo o seu material, naturalmente, é verídico (...)
(Freud,1990j:341).

Podemos notar em ambas as citações, o descentramento característico do a

posteriori, intervalo onde um sentido vem à luz, lançando a experiência para além dela

mesma, ao mesmo tempo em que é acentuado um fundo de veracidade a partir do qual

esse intervalo introduz seus efeitos. No entanto, é na Carta 69 a Fliess (21/10/1897) que

Freud parece promover uma virada nas hipóteses levantadas acima. Tal movimento vem

chocar-se frontalmente com o que era entendido na sua teoria da sedução, onde, assim

como as passagens citadas nos deixam notar, apontando para um evento no passado, era a

sedução da criança por um adulto, muitas vezes o pai, entendida como um fato verídico

que seria determinante para os distúrbios histéricos. Na mudança de posição que essa

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carta nos revela, Freud nos apresenta uma dupla conclusão: 1) “Não acredito mais em

minha neurótica” (Freud,1990k:357); 2) “(...) no inconsciente não há indicações de

realidade” (idem:358,grifo nosso).

Não seria essa dupla conclusão importante para continuarmos a pensar o papel da

memória na psicanálise? Sendo esse o momento em que Freud revelou pela primeira vez

suas dúvidas quanto a teoria da etiologia traumática das neuroses, parece haver também a

possibilidade de nos determos no que seria uma concepção estritamente linear da

lembrança, onde ela simplesmente recapitularia o passado, para podermos ver delinear-se

um ponto de insuficiência nessa concepção. O próprio Freud escreve que “(...) [Nem] na

psicose mais profunda, a lembrança inconsciente (...) vem à tona, não sendo, pois,

revelado o segredo das experiências da infância nem mesmo no delírio mais confuso”

(ibid). E ele prossegue: “Parece que novamente se tornou discutível se são somente as

experiências posteriores que estimulam as fantasias, que então retornam à infância; e,

com isso, o fator de uma predisposição hereditária recupera uma esfera de influência da

qual eu me incumbira de excluí-lo com a intenção de elucidar amplamente a neurose”

(ibid).

Freud nos lança através de suas interrogações no centro da problemática da

memória no que se pretende articulá-la ao conceito de a posteriori. Por um lado, não se


sente seguro em considerar a lembrança como sinônimo de eventos verídicos; por outro,

aparentemente, não aceita a hipótese de que o passado seria, em linhas gerais, uma

construção, e que diria respeito à infância posteriormente.

Mas, justamente ao termos em mira o a posteriori, não nos indagamos sobre como

se dá a atualização de uma lembrança, ou seja, de que forma o passado faz-se presente? E

assim, não poderíamos retornar à indagação a respeito de como definir a imagem

implicada numa recordação, uma vez que começamos a notar que ao invés de tratá-la

como ícone, talvez seja preciso repensá-la desde o começo, a ponto de nos fazermos a

primeira de todas as perguntas: o que é uma lembrança?

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Freud começa a nos apontar um esboço de resposta a essas questões em 1899 em

seu texto Lembranças Encobridoras. Ele inicia-o nos preparando para os paradoxos a que

o estudo da memória pode nos conduzir. De saída nos fala da distância entre a crença

corrente na influência das experiências da infância na vida posterior, e o fato de ser a

localização desses elementos nas lembranças extremamente difícil.

Na continuação do texto nos deparamos com uma questão que é formulada da

seguinte maneira: poderia o procedimento experimental sanar as dificuldades da

investigação da conservação das primeiras experiências infantis pela memória? Freud

lança mão de um experimento realizado por V. e C. Henri (cf.Freud,1987c:272), onde

com base em avaliações realizadas através de questionários se chegava, entre outras

coisas, ao período correspondente às primeiras recordações. E o paradoxo, que começava

a se desenhar mesmo ali, é que muitas vezes não seriam as experiências mais marcantes

aquelas que encontrariam um lugar na memória. Paradoxo aparente dirá Freud. Pois, o

que ele procurará nos mostrar é o modo incompleto, deslocado e distorcido com que as

lembranças apresentam-se a nós.

Tal como uma formação de compromisso, as lembranças, ou pelo menos aquelas

que respondem pela categoria de encobridoras, dissimulam uma cena utilizando-se de

outras que, entretanto, não deixam de estar ligadas a ela. Freud as trata como a resultante
de um paralelogramo de forças (idem:274) onde “o que é registrado como imagem

mnêmica não é a experiência relevante em si (...) o que se registra é um outro elemento

psíquico intimamente associado ao elemento passível de objeção (...)” (ibid), procurando

nos mostrar assim a tensão a partir da qual uma imagem ocorre no psiquismo consciente.

Não é nossa intenção transcrever o caso (autobiográfico, como nos aponta

Strachey) que ocupa a maior parte do texto, e a partir do qual Freud erigirá suas

conclusões. Esperamos que ele possa ser consultado pelo leitor, para podermos

acompanhar os caminhos seguidos por Freud nessa interrogação à memória.

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O interlocutor de Freud (ele mesmo) começa por desmembrar as suas primeiras

lembranças em três grupos (idem:276): 1) cenas descritas pelos pais, para as quais seria

difícil distinguir se foram imagens mnêmicas de fato ou construções feitas a partir do

discurso deles; 2) cenas que a princípio não poderiam ter sido descritas, uma vez que as

pessoas envolvidas não voltaram a ser encontradas desde a sua ocorrência; 3) cenas

irrelevantes para as quais, ao contrário das anteriores, não se consegue descobrir nenhum

nexo associativo, ou motivo, que tenha justificado a sua permanência como lembrança.

Muitas vezes o próprio sujeito dessas lembranças vê-se como personagem nelas.

Freud pergunta então se a lembrança a que o sujeito alude estaria retornando

periodicamente desde há muito ou se, pelo contrário, teria emergido a partir de alguma

ocasião posterior. É a resposta afirmativa à segunda assertiva que contribuiu

decisivamente para a solução do problema, escreveu Freud.

Temos de um lado a lembrança dita da infância, onde dois meninos de comum

acordo arrebatam as flores amarelas, que haviam sido colhidas conjuntamente, de uma

menina que aos prantos corre em direção a uma senhora que lhe dá uma saborosa fatia de

pão. No que é seguida pelos meninos ávidos igualmente por apetitosa fatia. Por outro,

uma recordação, do menino já com 17 anos, marcado por desventuras econômicas, que se

vê atraído por uma jovem, sentimento que, entretanto, não é retribuído por ela. E ainda
uma terceira recordação, dessa vez referente aos 20 anos, em que o interlocutor, ao

retornar à cidade natal para um encontro familiar, vê-se no centro das atenções para que

se case com a prima e procure uma ocupação mais rentável que aquela para qual os seus

estudos pareciam apontar.

Todas as cenas acima são retomadas num momento particular e a relação entre

elas começa a ser tecida lentamente. É a articulação entre algumas semelhanças que

colocará em Freud a pergunta sobre a natureza da memória e se, afinal de contas, ela não

teria sua razão de ser na própria atualidade em detrimento de ir buscar suas raízes no

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passado. Ou seja, poderíamos dar como certa a localização do passado como logicamente

anterior ao presente?

Freud irá pinçar um jogo sutil de repetições que encontra, por exemplo, nas séries

flores amarelas (da primeira lembrança; do passeio nos Alpes)-vestido amarelo (da prima,

na primeira lembrança, e da menina de quinze anos, na segunda); deflorar (arrancar as

flores da menina)-desposar (a adolescente da segunda lembrança; a prima na terceira

lembrança, como vontade dos familiares). Acrescentando uma interpretação que concerne

à vontade de bem-estar do sujeito e que se expressava na cena de “jogar fora as flores em

troca do pão” (idem:281). Que nada mais seria senão um voto de que toda a história

houvesse sido outra, com a permanência no campo ao lado da mulher amada, sem

pesadelos financeiros. Mas que na impossibilidade dessa alternativa, ainda assim, restaria

assegurar o futuro, dedicando-se a uma ocupação “pão com manteiga” (ibid), e não aos

vôos incertos que os seus estudos pareciam significar.

Diante da dúvida, se então tudo não teria passado de uma construção lançada ao

passado, já que vários elementos como a dicotomia fome/amor, o amarelo dos dentes-de-

leão, as dúvidas com relação ao futuro, não foram encontrados senão no período

concernente à segunda e terceira lembranças, Freud responde resolutamente que ainda

assim, apesar da falta de garantias da nossa memória (idem:281) é o passado que fornece
o material, por mais precário que seja, para que possa vir a ser utilizado pelos

pensamentos do inconsciente (idem:282). Toda a construção só pode ocorrer se houver

“um traço mnêmico cujo conteúdo ofereça à fantasia um ponto de contato - como se

andasse meio caminho até ela” (idem:283). Freud complementa: “É como se um traço

mnêmico da infância se retraduzisse numa forma plástica e visual em época posterior -

na época do despertar da lembrança” (idem:286, grifo nosso).

No entanto, a exposição acima não corrobora em hipótese alguma a equivalência

entre impressão (tomada num sentido de relação direta e imediata com uma experiência)

e lembrança, identidade refutada por Freud como solução extremamente simplista

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(idem:285). Ou seja, não devemos crer que as imagens remanescentes “emerjem

simultaneamente a uma experiência, como conseqüência imediata da impressão por ela

causada, e que daí por diante, retornam de tempos em tempos, de acordo com as leis de

reprodução conhecidas” (ibid, grifo nosso).

Freud aponta para uma divisão a propósito da memória que se apresenta em pelo

menos duas formas: a do sujeito da lembrança que é ao mesmo tempo personagem dela

(idem:277 e 286), divisão de um indíviduo que lembra de si tal como um observador

externo poderia fazê-lo; e a não completa equivalência entre lembrança e experiência,

dissimetria, que não cessa de acentuar a distância de uma à outra (idem: 284). Mas, o que

significaria essa divisão, essa impossibilidade de recobrimento da lembrança pela

experiência e vice-versa e, por decorrência, a do sujeito por si mesmo, que Freud insiste

em salientar? As próprias lembranças, fragmentadas, como que encontrando seus

elementos constitutivos em lugares outros que aqueles onde possivelmente teriam se

originado, para onde aponta esse descentramento?

Lembranças encobridoras, ainda

O falseamento ativo que caracteriza as lembranças encobridoras, acentuado por


aspectos de condensação e deslocamento (idem:286), nos remetem uma vez mais às

interrogações precedentes. É inevitável não nos perguntarmos sobre o que incidiria esse

“falseamento”, muito peculiar no entanto, que abole a sua origem como impossível de ser

determinada, mas ao mesmo tempo aponta para algo que não deixa de ser suposto como

“matéria-prima” da lembrança, ainda que nunca se revelando por completo: “(...) a

lembrança falsificada é a primeira de que tomamos conhecimento: a matéria-prima dos

traços mnêmicos de que a lembrança foi forjada permanece desconhecida para nós em

sua forma original” (ibid). Freud continua:

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Nossas lembranças infantis nos mostram nossos primeiros anos não


como eles foram, mas tal como apareceram nos períodos posteriores
em que as lembranças foram despertadas. Nesses períodos de desper-
tar, as lembranças infantis não emergiram, como as pessoas costu-
mam dizer; elas foram formadas nessa época. E inúmeros motivos,
sem qualquer preocupação com a precisão histórica [grifo nosso]
participaram de sua formação, assim como da seleção das próprias
lembranças (idem:287).

Das citações acima talvez pudéssemos arriscar a formulação de uma hipótese para

avançarmos neste estudo sobre o a posteriori e a memória. O quadro da lembrança que

Freud tece para nós parece paradoxalmente falar de uma presença e de uma ausência

quase simultâneas. Presença dos dados com os quais nós a conhecemos; ausência

insinuada e suposta nesses mesmos dados de uma experiência originária que só poderia

estar ali de modo fragmentado ou incompleto, apreendida e constituída a posteriori.

Quase como se o passado estivesse sempre a dever sua formulação a um tempo por vir, e

onde certamente insiste uma impossibilidade de traçarmos uma linha unindo experiência

e lembrança. Junto à repetição que poderia nos permitir buscar semelhanças entre eventos

que se atualizariam na lembrança, nos deparamos, quanto à origem ou experiência

propriamente dita, com um “X” sobre o qual não só a lembrança repousa, como não deixa

de salientá-lo na função de enigma. A própria definição de lembrança encobridora,

“como aquela que deve seu valor enquanto lembrança não a seu próprio conteúdo, mas às

relações existentes entre esse conteúdo e algum outro que tenha sido suprimido”

(idem:285), nos lança num horizonte onde não é essencial o fato dela ser

predominantemente progressiva ou regressiva, positiva ou negativa (ibid). Essas seriam

considerações secundárias se nos detivermos sobre esse “conteúdo suprimido” que acaba

por dar sentido à lembrança. É nessa lacuna que talvez venhamos a ver inscrever-se o

que chamaremos sujeito, apreendido a posteriori nos laços de um engodo, que não deixa

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contudo de apontar para uma verdade que o implica, assim como o fetiche não deixa de

apontar para a existência da castração, ainda que pretendendo camuflá-la1.

Assim, nossa hipótese é de que o a posteriori impõe à rememoração uma

dimensão onde ela não poderia se restringir à recapitulação de uma biografia, dos fatos

importantes que teriam sido por si dignos de atenção. A repetição que caracteriza o a

posteriori, e que será melhor notada quando falarmos dos Estudos Sobre a Histeria e do

Projeto, transforma um desconhecimento num enigma, produz um sentido, uma

interrogação incessante, para a qual uma resposta é exigida.

A lembrança da qual se fala parece marcada por um impossível que encontramos

atualizado em cada divã, onde o sujeito não cessa de dar testemunho do resto que cada

final de sessão deveria saber situar como tal. Rememorar talvez possa vir a ser entendido

não como o que pode ser localizado no passado mais distante, mas como também,

paradoxalmente, o que na lembrança permanece inatingível, abismo aberto pela palavra,

do mesmo modo como “o grito não se perfila sobre o fundo de silêncio, mas, ao

contrário, o faz surgir como silêncio” (Lacan,1990:31).

A posteriori e rememoração nos colocam no centro da problemática do sujeito,

uma vez que é lícito nos perguntarmos quem é o agente dessa ação. Na dicotomia

aparente dos dois termos, notamos que o a posteriori parece quase nos falar de uma
surpresa, de um instante onde o sujeito é capturado por um evento que traz à luz o

inesperado, uma lembrança, ou a cena traumática, por exemplo. Ao passo em que a

rememoração poderia talvez fazer valer um princípio de vontade no resgate do passado.

Mas já não vimos que o que se prende nas malhas do passado, quanto ao que é dito pelo

sujeito, é sempre outra coisa com relação àquilo que era esperado por ele?

Devemos reter desse momento, embora ainda de modo precário, que se o sentido

só pode sê-lo a posteriori, já que a introdução de um significante está a todo instante

transformando os demais (cf., por exemplo, o já famoso exemplo de Cabas,1982:83), esse

1 Para a relação entre lembrança encobridora e fetiche, cf. Lacan,1990b:498-499.

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sentido responde também pelo que resiste a ser apanhado nas malhas de um saber, e é

para a manutenção dessa tensão que o a posteriori e a rememoração parecem convergir.

Tensão que como já dissemos assinala na lembrança algo irredutível à série que a

constitui.

Lembrança e experimentação

Assim, retornamos à pergunta que nos fazíamos acerca do auxílio que o

procedimento experimental poderia nos oferecer quanto a problemática da memória. Na

verdade essa pergunta nos ocorre em função do artigo “Les Souvenirs des Nourissons”

(cf. Rovee-Collier e Adler,1994:736 e ss.) onde os autores, citando diversos

experimentos, vão rejeitar tanto a hipótese de uma “amnésia infantil” como a de uma

maturação biológica que viria propiciar uma melhor capacidade de memorização. Eles

afirmam que a maturação poderia contribuir, sem dúvida, para uma melhora das

estratégias de apelo [stratégies de rappel], mas que em todo caso, as crianças, mesmo os

recém-nascidos, podem codificar e estocar a mesma informação que as de maior idade

(idem:741).

Se por um lado esse artigo aponta para uma certa “indestrutibilidade dos traços
mnêmicos”, ele ressalta também que, no entanto, o acesso às experiências infantis seria

muito difícil, na medida em que a memória dos bebês encontra-se marcada por uma

dependência do contexto onde elas se formam, e são ao mesmo tempo extremamente

plásticas, podendo sofrer inúmeras modificações pelas experiências seguintes (ibid).

O artigo, que a princípio poderia nos sugerir pensá-lo como uma ponte entre as

mais recentes pesquisas da neurofisiologia da memória e a psicanálise, na verdade tem

como pano de fundo uma crítica à hipótese freudiana da “amnésia infantil”. Segundo os

autores, que não localizam a fonte da argumentação, essa hipótese afirmaria que “os

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elementos do contexto são tão rapidamente esquecidos que sua modificação pode ser

considerada como responsável pela amnésia infantil” (idem:738).

À parte essa leitura opor-se diametralmente àquela proposta por Freud, que não a

forjou segundo uma possível imaturidade funcional (cf. Laplanche e Pontalis,1988:52-

53), nos vemos novamente às voltas com o mesmo modelo de Ebbinghaus onde a questão

da memória encontrava-se em grande parte resolvida na aprendizagem, entendida como

capacidade de reprodução de um desempenho. Todos os experimentos citados no artigo

pautam-se nesses mesmos pressupostos.

Assim, retornamos a nossa pergunta anterior: o quê, a partir da psicanálise,

poderia ser dito sobre a relação entre lembrança e experiência? Ao longo deste capítulo

pudemos notar que Freud vai aos poucos desarticulando a ligação linear que poderia

haver entre ambas, porém, não deixando de salientar um vínculo entre elas. Poderíamos,

no entanto, delimitar melhor essa relação?

Lembrança e experiência

Os Estudos Sobre a Histeria parecem não só nos oferecer boas alternativas para

isso, como também nos auxiliarão a situar uma vez mais o a posteriori no quadro que
estamos elaborando.

Na verdade duas idéias dos Estudos nos deterão por mais tempo. A primeira é a

noção de “momentos traumáticos auxiliares”; e a segunda, que está intimamente ligada à

primeira, é a distinção que Freud faz já na Comunicação Preliminar entre trauma e

“agent provocateur”.

Embora essa tenha sido uma obra composta a quatro mãos, pode-se perceber as

fissuras que acabaram por significar o afastamento entre Freud e Breuer. De um lado a

histeria de defesa, e do outro os estados hipnóides. Entre eles algumas semelhanças

poderiam ser delineadas, como a que se referiria a uma cisão do psiquismo, por exemplo,

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ainda que Freud não vá creditar a ela a característica primordial da etiologia histérica

(cf.Freud,1987:54 e 57). No entanto, as diferenças são mais profundas e giram em torno

da importância da sexualidade na etiologia da histeria que Freud está em vias de

construir. Particularmente, para o que nos interessa neste momento, vale ressaltar uma

noção que se apresentará em Freud sob vários termos, como aquela de representação-

limite do Rascunho K, e que diz respeito a uma representação intolerável no seio do

psiquismo, responsável por sua cisão, e em torno do que vai estruturando-se a idéia de

uma neurose de defesa.

Essa representação intolerável, Freud a põe em destaque na distinção entre trauma

e “agent provacateur”(cf.Freud,1988:44). Podemos entender o segundo como uma via

pela qual a experiência traumática poderia vir a expressar-se, como que a partir de uma

ligação associativa formada por vários elos entre si, onde o “agent” seria responsável pelo

início da manifestação dos sintomas histéricos. O trauma, ao contrário, aponta para uma

presentificação direta da causa, uma causa diretamente liberadora (idem:45), onde a

lembrança (do trauma) “age como um corpo estranho que, muito depois de sua entrada,

deve continuar a ser considerado como um agente que ainda está em ação (...)”

(idem:44,grifo nosso).

A partir dessas formulações da lembrança traumática, Freud chega ao que é o


verdadeiro lema dos Estudos:

Os histéricos sofrem principalmente de reminiscências (idem:45).

Esse “corpo estranho”, lembrança do trauma psíquico, faz apelo a uma dupla

noção de memória, uma vez que ela não se apresenta na memória dita normal

(consciente), mas apenas na memória do paciente quando hipnotizado (idem:48).

Essa dupla característica pode ser notada no caso Emmy, onde Freud parece

querer alcançar esse ponto fugidio da origem do sintoma [gagueira] de sua paciente, e

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para o qual ele só encontra, a princípio, um muro que se impõe contra seu objetivo. Por

mais que as formações patológicas da paciente sejam “decifradas”, e que a hipnose

permita um desvelamento do passado, os sintomas insistem e a análise dos demais casos

deixará entrever o quão importante é estar atento para uma dimensão irredutível à história

das pacientes.

Isso poderá ser notado na distância entre a hipnose e a associação-livre que irá

manifestar-se de um ponto a outro do texto. Por mais que Freud se lance ao passado, na

tentativa de recuperar e apagar lembranças, ou na expectativa de ligar os sintomas a

algum fato objetivo (Freud,1988:127), ele acaba por deparar-se com algo que escapa

inteiramente à possibilidade de explicação da passagem do objetivo ao subjetivo, e passa

a acentuar o fenômeno histérico como caracterizado por “uma incompatibilidade entre o

ego e uma idéia a ele apresentada” (idem:140).

Se a histeria por um lado refere-se a uma lembrança precisa, aparentemente

esquecida (idem:132), por outro Freud acentua que:

O momento traumático real, (...), é aquele em que a incompa-


tibilidade se impõe sobre o ego e em que este último decide re-
pudiar a idéia incompatível (idem:141).

Essa “idéia incompatível” (idem:169), presente num determinado registro da

memória, não está muito distante do que no Rascunho K Freud chamará, como já

apontamos, representação ou idéia-limite. A sua peculiaridade reside em não

simplesmente representar algo, mas, representar uma lacuna. Justamente, poderíamos

dizer, uma representação que aponta para impossibilidade de representar algo1.

É interessante nos determos sobre essa característica da represtação-limite, pois se

Freud escreve no caso Lucy que o recalque não opera sobre a cena traumática, mas sim

sobre “uma sensação que isolada torna-se símbolo da lembrança” (idem:135), devemos
1 Haveria uma equivalência entre essa definição de idéia-limite e o matema S(A)? (cf. infra, cap.VI)

70
71

mais uma vez atentar para o quê existe de hiato entre uma experiência e sua repetição na

memória. Hiato que nesse momento nada mais quer dizer senão que existe uma

dissimetria entre esses termos. Dissimetria que será colocada em relevo no que Freud

chama “momentos traumáticos auxiliares” (cf. Freud,1987:57 e 1988:141).

Esses momentos auxiliares significam um ponto de convergência entre dois

grupos psíquicos diferentes (cf.Freud,1988:141), aquele que desconhece o motivo de seu

sintoma, e o outro para o qual a causa estaria sempre presente. Não só isso, como também

é acentuado por Freud que a eles não caberiam simplesmente catalisar uma cena anterior,

invocando-a e daí encontrando toda a sua força. Na verdade, a cena auxiliar equivale à

traumática por seu próprio conteúdo e “não simplesmente como alguma coisa que

revivesse experiências traumáticas anteriores” (idem:150-151).

Desse modo é a própria noção de um passado como origem do trauma que parece

se esvanecer, em detrimento de novos fatores que problematizarão a relação entre o

tempo e a clínica. Pois, se por um lado estão presentes nos Estudos várias referências a

uma teoria da sedução (idem:182), mas na verdade também da sedução própria a histeria,

existe também a construção de uma hipótese onde “a histeria traumática não se situa

inteiramente no passado” (idem:178). Isso porque os sintomas não estarão ligados às

impressões originais, mas sim às lembranças das mesmas (idem:179). Lembranças que,
voltamos a insistir, não apenas presentificam experiências de intensidade

incomensurável, mas justamente as fazem surgir como tais.

Talvez esse seja um bom viés para acompanharmos a mudança de ponto de vista

que significou o abandono da hipnose, ainda que ela significasse em tese a ampliação da

memória, e possibilitasse a descoberta de lembranças patogênicas (idem:263). Na

verdade o que chama a atenção de Freud é, sem dúvida, a resistência e a defesa

(idem:264) que comparecem nesse discurso liberto da hipnose, mas, onde assim mesmo,

as lembranças não deixavam de se pronunciar, ainda que trazendo as marcas do

deslocamento (ibid).

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72

Impasses

Num artigo um pouco posterior aos Estudos chamado A Hereditariedade e a

Etiologia das Neuroses [1896], Freud volta à carga sobre as questões de uma etiologia

específica das neuroses ao mesmo tempo em que reitera o seu afastamento das teorias de

Charcot. Mas, o mais interessante é ter em vista o conteúdo da Carta 69, um ano

posterior a esse artigo, e onde podemos ver Freud passar do otimismo mais contagiante às

dúvidas mais atrozes.

As primeiras afirmações de Freud na Hereditariedade e a Etiologia das Neuroses

redimensionam o papel da hereditariedade na etiologia histérica, marcando mais uma vez

a sua distância com relação a Charcot, já que a ela é conferida exclusivamente um papel

de precondição no distúrbio e não de causa específica (Freud,1987a:137, 140 e 141).

A busca de uma causa específica para a histeria leva-o novamente à hipótese de

um trauma desdobrado em dois tempos, na mesma medida em que reforça a teoria da

sedução. O esquema, já conhecido em parte desde os Estudos, resume-se a uma excitação

sexual na primeira infância sem qualquer efeito sobre a criança, embora deixando nela

um traço psíquico (idem:145); e o despertar dessa lembrança na puberdade, ocasião em


que adquire um poder ausente no próprio evento (idem:146).

A conclusão de Freud é que “A lembrança atua como se fosse um evento

contemporâneo (...) ação póstuma de um trauma sexual” (ibid), ou dito de outro modo, a

causa específica da histeria seria a lembrança de uma experiência sexual precoce

(idem:146 e 148).

Um outro texto que deve ser apreciado em conjunto com a Carta 69 é o segundo

artigo de Freud sobre as neuroses de defesa: Observações Adicionais sobre as

Neuropsicoses de Defesa [1896]. Reforçando a tese de uma sedução infantil na base da

histeria ele conclui, ainda uma vez, que uma experiência posterior poderia ativar os traços

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mnêmicos de um trauma da infância. Mas, ele acrescenta uma nota de rodapé em 1924

(Freud,1987b:159) para sepultar definitivamente a teoria da sedução salientando mesmo

que esta foi um erro que poderia ter acabado precocemente com a psicanálise.

Tendo em vista esses três últimos textos de Freud, a pergunta que devemos nos

fazer é: estaria o a posteriori reduzido à teoria da sedução? Haveria algo no conceito de a

posteriori que poderia ter sobrevivido a essa teoria?

Para respondermos a essa pergunta talvez seja necessária uma volta ao que foi o

lema dos Estudos: “as histéricas sofrem principalmente de reminiscências”. O que seria,

então, exatamente, reminiscência?

Reminiscências...

Aristóteles em seu tratado Da Memória e Reminiscência propunha uma distinção

onde mnemê [memória] era entendida como mera faculdade de conservar o passado, ao

passo em que mamnesi [reminiscência] era a faculdade de evocar voluntariamente esse

passado (cf. Goff,1984:22).

Essa distinção não é corrente, como podemos notar com Mervant (1989a) na

pesquisa que realiza a propósito das definições de reminiscência do século XVIII ao


século XX. Primeiramente poderíamos defíni-la como “memória que vem das coisas

passadas e esquecidas, (...) memória feita de esquecimento” (idem:282). Isso porque, em

comparação com outros termos que também se relacionam com a memória, como

rememoração e lembrança, a reminiscência faz apelo a um retorno e não a uma

permanência, fazendo do esquecimento um aspecto central na sua definição (idem:283).

No século XIX, a definição parece inclinar-se para um “ato pelo qual buscamos

reter uma lembrança incompleta (...) despertar fortuito de traços antigos sobre os quais o

espírito não tem visão clara e distinta” (ibid). No século XX, nos é proposta a seguinte

73
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definição: “retorno ao espírito de uma imagem cuja origem não é reconhecida (...), a

reminiscência é como a sombra da lembrança” (idem:284).

Ainda que Lalande nos advirta quanto ao caráter impróprio dessas duas últimas

definições (Lalande,1993:952), na medida em que elas poderiam significar simplesmente

uma recordação vaga e imprecisa, elas permanecem corretas quanto a problemática

freudiana da histeria, ao apontar para uma perda das fontes ou da origem da lembrança,

significando mesmo que ela, a lembrança, não comparece como tal, como uma possível

recapitulação do passado, mas quase como uma experiência primeira. Todavia, será a

primeira definição que deveremos manter muito próxima a nós para o que exporemos ao

longo dos próximos capítulos (ver infra, caps.VI e VII).

Mesmo tendo Mervant chamado a atenção para o caráter limitado de seu

empreendimento, essa pequena incursão pode nos oferecer alguma luz para entrevermos

o que se perfila a nossa frente. Isso porque, ainda que guardada as diferenças entre cada

uma das definições acima, podemos notar que um aspecto de retorno ou repetição,

marcado por uma certa ambigüidade entre a lembrança e o esquecimento, faz-se presente

sob a forma de uma falta de precisão, ou situando-se ora como um dado da vontade, ora

como “um despertar fortuito”.

Sintoma e reminiscência remetem-se um ao outro no que ambos apontam para


uma repetição onde a histérica é capturada, sem que, a princípio, pudesse dar conta disso.

Daí a rememoração ser considerada em grande parte da produção freudiana como o

motor da cura, na medida em que significaria a possibilidade de uma tomada de

consciência que interromperia a repetição.

Mas, a seguirmos essa orientação, ainda que permancêssemos fiéis a algumas

passagens de Freud, talvez viéssemos a perder de vista outros aspectos que também são

essenciais. Pois, talvez venha a ser preciso redefinir reminiscência, rememoração, a

própria memória enfim, assim como o a posteriori, com base no que não cessou de estar

presente em tudo que foi escrito até aqui: um jogo incessante, um deslocamento que diz

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respeito também à repetição, onde há uma alternância frenética esquecimento/lembrança,

a ponto de quase podermos dizer que um “carrega” o outro. O primeiro fazendo-se

presente na ausência da segunda e inversamente, denúncia recíproca e contínua.

A partir dessa ambigüidade, que parece implicar dois movimentos não de todo

claros ainda, não devemos tentar reduzir um conceito a outro, memória à repetição, ou o

contrário, por exemplo. Trata-se de buscar uma melhor compreensão da memória e do a

posteriori de modo a não reduzí-los à repetição [reprodução] de alguma coisa, ou de

algum dado que necessariamente encontrar-se-ia subsumido, em tese, à capacidade de

registro e localização no psiquismo. Nem de fazê-la equivaler à própria pulsão de morte,

conceito que nos leva a pensar a repetição em sua radicalidade, não reduzindo-a a um

repetir algo, mas mantendo-a como “ponto de fuga de toda realidade possível de atingir”

(Lacan,1988:31). A não equivalência entre memória e repetição, e , por extensão, entre

memória e pulsão de morte foi apontada exaustivamente tanto por Lacan no Seminário

11, como por Deleuze em Diferença e Repetição. No entanto, não poderíamos pensar a

memória como uma interface entre essas duas proposições - a primeira marcada por

uma certa ‘representação’ do passado, e a segunda caracterizada justamente por essa

impossibilidade -, de modo que talvez pudessemos falar de uma intervenção da segunda

sobre a primeira, e nesse sentido a modificação de ambas?


A aprendizagem que é exigida dessa tentativa deverá ser de outra natureza,

diferente da memorização-repetição de Ebbinghaus. E aí, talvez, possamos notar que se

cabe uma diferença entre reminiscência e rememoração, tal distinção não se daria pelo

caráter de passividade de um e de atividade do outro, como bem o demonstra a definição

aristotélica.

Mas, a verdadeira distinção talvez deva ser apontada quanto ao que é visado na

repetição numa e noutra posição e que, sem dúvida, não pode ser reduzido a intenção de

um “tornar consciente”. Não estaria a repetição a nos posicionar justamente diante do que

não pode ser consciente, de algo irredutível, a lacuna na psique, o “corpo estranho” na

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memória? Será possível precisar a relação entre memória e repetição? Talvez venhamos

com um certo espanto constatar entre rememoração e reminiscência menos diferenças do

que poderíamos supor a princípio.

Pois, se a reminiscência nos remete quase que imediatamente a teoria platônica do

mundo das Idéias, não é ela também uma vontade de instalar-se imediatamente num puro

passado, que não se traduziria na recapitulação de tal ou qual evento, de um passado que

teria sido um dia presente, reapresentação, mas ao contrário, não apontaria ela para “um

ser puro do passado, um ser em si do passado, uma Memória ontológica capaz de servir

de fundamento ao desenvolvimento do tempo”? (Deleuze,1987:60).

Do mesmo modo em Freud, reminiscência e rememoração não apelam para um

passado que está lá só-depois? Ou seja, um passado que não é passível de ser reecontrado

numa regressão infinita, mas que, ao invés, desdobra-se em vários momentos e reecontra-

se num salto, sempre fugidio, deslocado, lembrança ou sintoma, que deixa repousar sobre

si um impossível de dizer ? (cf.Freud,1988:90)

A passagem do sofrimento histérico à infelicidade comum (Freud,1988:294),

parece também dizer respeito a essa repetição que ultrapassa o sujeito e que nele deixa

marcas, mas para quem “Algum dia, talvez seja uma alegria recordar até mesmo essas

coisas”1 (Freud,1987:282, grifo nosso).

IV. A Persistência da Memória

Pulsão de morte e princípio do prazer

1 “forsan et haec olim meminisse juvabit”

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Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é
palavara. Quando essa não-palavra - a entrelinha - morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que
se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-
palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente.
C. Lispector

Temos nos interrogado até aqui a respeito do lugar da memória na psicanálise e,

em particular, do modo como o a posteriori aí se insere.

A par das especificidades que temos apresentado quanto às concepções de

memória, uma dificuldade se impõe de modo crucial. Qual seja, a de efetuar uma

pesquisa onde a memória não seja caracterizada ou resumida a uma função psicológica.

Mas, o que isso poderia querer dizer?

Para respondermos a pergunta acima nos deteremos agora, sobretudo, no Projeto e

no Além do Princípio do Prazer [1920], assim como no Seminário sobre a Ética da

Psicanálise [1959-60]. Em Freud nos interessará as definições de pulsão de morte,

princípio do prazer e facilitação, bem como o caso Emma. Em Lacan comentaremos as

observações sobre a memória nesse Seminário onde o Projeto freudiano é tido como um

texto fundamental. De um autor a outro deveremos notar como o unheimlich despontará

como noção extremamente fecunda à nossa investigação.

O coração da problemática da memória no Projeto parece situado na afirmação de

Freud de que “a memória está representada pelas diferenças nas facilitações entre os

neurônios ” (Freud, 1990l: 410). Na verdade deveremos ir um pouco além nos servindo

de duas outras citações: primeiro, “a memória de uma experiência (isto é, sua força eficaz

e contínua) depende de um fator que se pode chamar magnitude da impressão e da

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freqüência com que a impressão se repete” (ibid); segundo, “ as facilitações servem à

função primária”(ibid).

Os argumentos acima deverão nos auxiliar a entender por que a memória em

Freud não condiz com uma memória-arquivo ou uma possível memória estática, pautada

em traços imutáveis. As facilitações [Bahnungen] não poderão ser, por conseguinte,

aproximadas de qualquer referência a um modelo de condicionamento onde à repetição

caberia reforçar uma aprendizagem.

Se a tradução corrente de Bahnung por facilitação é correta, não podemos

esquecer que ela também diz respeito a caminho, a uma certa preferência, via que não

preexiste a sua própria constituição. Esse sentido nos parece claro na tradução adotada na

ESB por grau de facilitação (idem:409).

É importante também acompanharmos desde agora a ligação entre facilitação e

impressão, o que significa notarmos a relação entre impressão e memória. É interessante

porque se mantivermos no horizonte as diferenças entre impressão e traço, onde este

apresenta-se como articulável numa cadeia, numa relação, notaremos que aquela reveste-

se sobretudo de características que a deixam a parte de qualquer rede, de qualquer

ligação. Tratar-se-ia de uma marca ou sinal que, contudo, não deixa de fazer exigência à

memória (cf. Garcia-Roza,1993:55).

Memória de impressão e memória de traço. Inicialmente poderíamos dizer que

haveria uma relação linear progressiva entre impressão, traço e memória, na medida em

que a primeira sobrevive na memória como articulação de traços. Ou seja, a memória

responderia propriamente pela possibilidade de um arranjo, de uma cadeia, a partir da

qual, já podemos dizê-lo, um saber, uma lembrança, é possível. Ainda que essa memória

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seja essencialmente inconsciente, tal como Freud a concebe em vários momentos de sua

obra e também no Projeto.

Antes de procedermos a uma explicação do que poderia vir a ser uma “memória

de impressão1”, deveremos nos lembrar rapidamente de algumas características próprias à

memória ao longo da elaboração freudiana.

Na verdade não é muito difícil notar que entre a postulação dos Estudos de que

“Os histéricos sofrem principalmente de reminiscências” (Freud,1988:45) e as

formulações onde a rememoração poderia ser entendida como a resolução dos males

neuróticos, parece permanecer um certo ponto indecidível: a memória seria, ao mesmo

tempo, causa e solução da enfermidade.

Então, o que se oferece como nosso objetivo passa por buscar o que na memória,

na lembrança2 , não só não se apresenta docilmente, como também, em acréscimo, parece

dizer respeito a algo que nela mesma apresenta dissonância, perturba constantemente o

que poderia ser chamado de rememoração.

Assim, citávamos Freud: “as facilitações servem à função primária”, e essa

observação nos situa muito bem no contexto do Projeto, onde a memória estaria a serviço

da descarga de uma excitação, através da repetição de caminhos que já teriam tido

sucesso nesse empreendimento, qual seja, o de evitar o acúmulo de uma quantidade Q (ou

mais exatamente Qn) de energia. É interessante notarmos que essa memória da qual fala

Freud não diz respeito a uma situação - lembremos que no inconsciente não há

indicações de realidade, como nos aponta na Carta 69, por exemplo (cf. tb.

1 Expressão originalmente utilizada por Garcia-Roza e da qual nos servimos, embora não nos atendo à sua
formulação original (cf. Garcia-Roza,1992:56).
2 Seguimos aqui a indicação de W. Benjamin para quem não haveria em Freud distinção semântica
relevante entre os conceitos de lembrança e memória (cf. Benjamin, 1995:105).

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Freud,1990l:440) - mas apóia-se integralmente nas relações estabelecidas entre as

facilitações (idem:480).

Quer dizer, o traço mnêmico que caracterizaria a memória não diria respeito a

possível “fotografia” de um instante, mas aponta para as séries divergentes que são as

facilitações, sendo aí indicativo da magnitude da impressão e da repetição (cf. Garcia-

Roza,1993:58). Não seriam exatamente esses os fatores que apontamos acima como

sendo responsáveis pela força “eficaz e contínua” da memória? Todavia, o que

significariam? O que se pode concluir de uma memória como resultado de uma força

eficaz e contínua?

É a partir daqui que nos iremos orientar com base nas observações feitas por

Lacan no Seminário sobre a Ética da Psicanálise. É muito interessante que num

seminário com esse tema Lacan venha a tecer comentários bem pontuais sobre a

memória, não sendo, porém, seu objetivo realizar uma teoria a respeito. Entretanto, nos

encontramos com um texto que teria proporcionado uma relação entre ética e memória,

tendo em larga medida apoiado-se no Projeto freudiano. As conseqüências disso não

deverão ser pequenas.

História e lembrança

Sem dúvida é a problemática do prazer que proporcionará a Lacan a oportunidade

de ir buscar nesse trabalho de Freud uma fonte para as suas elaborações, na medida em

que postulará ao longo do Seminário um campo que se situaria para além da tendência a

uma certa regularização ou descarga. Não será por outro motivo que veremos lado a lado

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no texto lacaniano o Projeto e o Além do Princípio do Prazer, a respeito dos quais

afirma, quanto a articulação do princípio do prazer nos dois trabalhos, que o final

esclarece o início (Lacan,1988:271,grifo nosso). O esforço de Lacan parece dar-se no

sentido de, ao mesmo tempo em que demarca campo distintintos - um regido pelo

princípio do prazer, e outro justamente significando um além -, mostrar em que medida o

segundo agiria sobre o primeiro.

É assim que a respeito da “dimensão histórica da pulsão” Lacan nos fala:

A rememoração, a historização, é coextensiva ao funcionamento da


pulsão no que se chama de psiquismo humano. É igualmente lá
que se grava, que entra no registro da experiência, a destruição.
(Lacan,1988:256, grifos nossos).

Ainda que o princípio do prazer tenha em Freud começado por estar muito

próximo de um princípio de inércia (idem:39), o que culminaria, nos termos do Projeto,

numa redução radical das tensões ao nível mais baixo (cf. Laplanche e

Pontalis,1988:468), Freud irá distinguí-los no Problema Econômico do Masoquismo

[1924] (cf. Freud,1976b:200-201). Entretanto, a partir dessa indeterminação inicial faz-se

importante precisar em que contexto Lacan utiliza um termo como destruição em seu

Seminário. De início, e pautados no Seminário 7, não poderíamos confundir justamente a

pulsão de morte com o princípio de nirvana, entendido este como a tendência de retorno

ao inanimado, quase que exatamente como o princípio do prazer começou por ser

forjado. Não é por outro motivo que Lacan faz apelo a Sade para falar de uma vontade de

destruição direta, vontade de Outra-coisa, vontade de criação a partir do nada, vontade de

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recomeçar e não simplesmente um retorno ao inorgânico, apaziguamento total das

tensões (cf. Lacan,1988:257-260).

Se considerarmos a Bahnung [facilitação] freudiana equivalente à cadeia

significante lacaniana (idem:53 e 260), encontraremos em ambas uma exigência de

articulação que vai ao encontro do que o próprio Lacan apontava como sendo uma teoria

da memória em Freud, uma sucessão de Niederschriften [inscrições] (idem:66).

Facilitação e inscrição aproximariam a memória da ordem do escrito, do texto, na medida

em que diriam respeito a uma certa ordenação, legível, e que apelaria a um Outro para

seu deciframento (cf. Garcia-Roza,1993:62-67); em oposição à impressão que não se

articularia em termos de uma série, sendo da ordem do sinal ou do índice, uma marca que

não se constituiria como representação (idem:54-55).

Nos vemos novamente no centro de nossa problemática inicial. Pois, ela não é

outra senão a pergunta sobre que relação existe entre a pulsão de morte e o princípio do

prazer, ou entre a impressão e o traço, ou ainda, e principalmente, de que forma essas

questões dizem respeito à problemática da memória na psicanálise. Ou seja, a memória é

uma sucessão de inscrições, a memória condiz com uma “lógica do significante”, mas

isso significa que o que não se articula em lembranças deixa de ter efeito sobre elas1?

Quanto a isso, deveremos uma vez mais citar Lacan, na medida em que nesta

passagem parece apontar para a necessidade de articulação sobre a qual insistimos:

A pulsão de morte dever ser situada no âmbito histórico, uma vez que ela
se articula num nível que só é definível em função da cadeia significante, isto
1 Deleuze também parece colocar-se uma questão como essa quando trata do “instinto de morte” como
um princípio transcendental, e do princípio do prazer como tão somente psicológico (cf. Deleuze,1988:44).
Ele toca mais diretamente o nosso problema quando escreve que: “Eros e Tânatos distinguem-se
no seguinte: Eros deve ser repetido, só pode ser vivido na repetição; mas Tânatos (como princípio
transcendental) é o que dá a repetição a Eros, o que submete Eros à repetição” (idem:47).

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é, visto que uma referência, que é uma referência de ordem, pode ser situada
em relação ao funcionamento da natureza. É preciso algo para além dela, de
onde ela mesma possa ser apreendida numa rememoração fundamental, de tal
maneira que tudo possa ser retomado, não simplesmente no movimento das
metamorfoses, mas a partir de uma intenção inicial (Lacan,1988:258).

O que temos descrito aqui deverá servir para em breve (ver infra, cap.VI)

acompanharmos em Lacan a construção do grafo do desejo. Nele notaremos não só os

efeitos retroativos de significação, como também a produção de um “resto” resultante da

operação de basteamento significante (cf. Zizek,1992:102-103). Acreditamos ser esse o

viés pelo qual a problemática do sentido ou, para o que nos interessa mais diretamente, da

memória poderá ser retomada, não indicando somente uma capacidade infinita de

recontar o passado, por exemplo.

Ao explorarmos ao máximo a indicação de Lacan de que a estrutura da memória é

feita de uma articulação significante (cf. Lacan,1988:272), não faremos outra coisa senão

potencializar um aspecto salientado por ele mesmo onde:

(...) a função da memória, a rememoração, é rival (...) das satisfações que


que ela é encarregada de assegurar. Ela comporta sua dimensão própria,
cujo alcance vai mais além dessa finalidade de satisfação. A tirania da me-
mória, é isso que se elabora naquilo que podemos chamar estrutura (ibid).

Pensamos já ter salientado que as Bahnungen [facilitações] não se constituem por

um efeito mecânico, e nem podem ser confundidas com o resultado de algum hábito

adquirido (idem:271-272). Para Lacan a originalidade do pensamento de Freud foi

justamente o de não definir esses trilhamentos como pura e simplesmente um resultado

da aprendizagem: “o trilhamento não é absolutamente um efeito mecânico, ele é invocado

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como prazer da facilidade, e será retomado como prazer da repetição” (idem:272). É

justamente a partir das tentativas de definição sobre o que seria então o trilhamento e o

prazer que Lacan começa a nos apresentar o que no seu entender é o centro da questão

ética.

É interessante notar que nas indicações sobre a memória duas faces se implicam.

Por um lado uma rememoração que se encontra ligada à satisfação; por outro, uma

dimensão que parece irredutível a esta e, como diz Lacan, vai mais além dessa finalidade.

Poderíamos comparar essa relação com aquela encontrada, segundo Lacan, na

temática do belo. Pois, considerando Lacan o belo e o bem como defesas contra o desejo,

em ambos ele irá ressaltar o aspecto ambíguo em que se faz apelo a uma satisfação; mas

também à possibilidade de ao menos encontrar no primeiro um índice de ultrapassamento

dessa condição (cf. Lacan,1988:276-277 e 290). Se Lacan privilegia o belo em

detrimento do bem (idem:291), é porque ele procura acentuar um aspecto em que aquele

se constitui como uma “tela” que revela/protege paradoxalmente de um “encontro

impossível”, não se podendo deixar de ver nessas poucas palavras a proximidade com o

matema lacaniano da fantasia [$a].

O belo parece apontar para a construção de alguma coisa de horrível, de “cru” -

para nos apoiármos num termo usado por Lacan a propósito de Antígona - que está

sempre no limite de um certo saber. Daí as referências à beleza de Antígona, associada à

sua determinação em não submeter-se à lei invocada por Creonte, àquela do chefe de

Estado, da cidade1. Antígona situar-se-ia “numa certa legalidade que não está

desenvolvida em nenhuma cadeia significante” (Lacan,1988:336-337). Do mesmo modo


1 De Antígona a Creonte não podemos pressupor o mesmo uso do termo nómos [lei]. Para a primeira,
significa regra religiosa; para o segundo, decreto promulgado pelo chefe de Estado (cf.Vernant e
Naquet,1977:84). É interessante notar todavia que essa posição não é fixa. Ao final da peça o próprio uso
do termo nómos por Creonte sofrerá uma alteração em direção ao uso feito por Antígona (ibid.).

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como a representação-limite do Rascunho K invoca antes uma lacuna do que uma

representação, a lei na qual pauta-se Antígona não encontra ancoragem na comunidade de

seus semelhantes, revelando-se tanto mais inflexível e assustadora quanto singular. De

qualquer modo é esse caráter limite, ambíguo, de situar-se entre campos distintos,

invocando a estranheza de um sobre o outro - representação vs. lacuna, nómos vs. nómos

- que nos chama a atenção em ambos os exemplos.

De modo mais específico, é a partir desse apelo a uma suposta “falha” - lacuna no

primeiro caso, subordinação a uma outra lei que a da cidade no segundo - que podemos

apreender alguns modos de atualização do impossível na teoria psicanalítica. Ou, para

falar de outro modo, o motivo pelo qual a aposta da psicanálise não pode ser na

constituição de um saber que poderia vir a integrar o sujeito numa ordem qualquer,

fornecendo um significante com o qual ele poderia indentificar-se, por exemplo. Antes,

parece referir-se a um limite que nenhum saber poderia cobrir, do mesmo modo como as

referências ao belo feitas até aqui não tem como alvo qualquer traço de reconforto, mas

de uma conjunção onde alegria e dor são indissociáveis1.

O filme La Belle Noiseuse2, parece justamente nos apontar essa dimensão do belo.

De início temos um jovem casal ligado às artes plásticas que acaba por conhecer um

famoso pintor e sua esposa, há muito fora do circuito comercial. Desse encontro nasce no

pintor a certeza de retomar o que teria sido a sua obra-prima, deixada inacabada há alguns

anos, tendo como modelo a jovem que acabara de conhecer. Passo a passo vamos

acompanhando as mudanças subjetivas pelas quais os implicados na obra parecem passar.

Mais especificamente, quanto ao pintor e a modelo, o filme nos mostra literalmente os

1 Não estamos fazendo uso da distinção entre belo e sublime, tal como, por exemplo, Zizek o faz servíndo-
se de Hegel e Kant (cf. Zizek,1992:126 e ss.)
2 Jacques Rivette,França,1991.

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efeitos do quadro sobre a carne das personagens, as hesitações e a determinação que se

impõe, sobre tudo e sobre todos, para sua conclusão. Todavia, justamente quando o

quadro foi dado como terminado, outro desenho esboçou-se ali. Algo a mais, ou em todo

caso estranho, um resto, que só conhecemos a partir do transtorno emocional produzido

em ambos - pintor e modelo - fez-se presente junto a tela. Algo que culmina no grito

desesperado da modelo ao pintor: “Você não tem o direito de mostrar isso a ninguém!”,

levando ambos a sepultar para sempre o quadro, longe dos olhos de todos. É a partir

desse “desenho” que se faz à revelia do pintor, embora contando com os traços

articulados por ele, e que, todavia, revela algo de mais íntimo do que a mais detalhada

pintura, que daremos continuidade à nossa investigação com o unheimlich freudiano.

O Estranho

As ambigüidades acima - em última instância um prazer associado a uma dor, ou

ainda um significante que aponta para uma lacuna, uma representação-limite - estão em

perfeita sintonia com o vocábulo alemão unheimlich tal como foi apontado por Freud em

O Estranho [1919]. Na pesquisa promovida ali, entre os diversos significados

encontrados para essa palavra, o que mais chamará a atenção é a indiferenciação que

parece haver entre o que seria estranho e o que seria familiar1.

1 A princípio, numa perspectiva estritamente lingüística, a ambigüidade entre familiar e estranho está
unicamente ligado ao vocábulo heimlich (familiar, conhecido, secreto, oculto, inquietante e estranho).Trata-
se de um empreendimento de Freud levar tal ambigüidade também ao termo unheimlich (cf.
Hanns,1996:231-239).

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Ao utilizar-se do conto de Hoffmann O Homem da Areia, Freud sublinha o

aspecto estranho que advém do efeito de repetição (como nos nomes das personagens

Copélio e Coppola) a que o protagonista encontra-se submetido. O próprio estatuto da

realidade já aparece como que comprometido de início por uma incerteza radical, que

Freud irá ilustrar de maneira exemplar através desse conto, onde a respeito dos fatos

desenrolados ali, não temos como saber “se o que estamos testemunhando é o primeiro

delírio do apavorado menino, ou uma sucessão de acontecimentos que devem ser

considerados na história como sendo reais”(Freud,1976a:286).

É muito interessante, a propósito do que acima procurávamos apontar com a

problemática do belo, que Freud justamente dê inicio ao seu texto interrogando-se sobre a

relação entre estética e psicanálise (idem:275). Na verdade, poderíamos resumir nossos

últimos parágrafos com uma das definições encontradas por Freud para o unheimlich, a

de Shelling, para quem “‘Unheimlich’ é o nome de tudo que deveria ter permanecido...

secreto e oculto mas veio à luz” (idem:281).

Tudo o que dissemos acima não aponta para outra coisa senão a relação entre o

princípio do prazer e a pulsão de morte. Ou seja, poderíamos voltar à questão que

levantávamos antes: de que modo a pulsão de morte incide sobre o princípio do prazer?

Isso é também, nos termos do Projeto, um modo de nos perguntarmos como o neurônio a

se relaciona com seus atributos; como a coisa, índice de uma exterioridade absoluta ao

aparelho psíquico, o inassimilável (cf. Freud,1990l:491), relaciona-se com as demais

representações, passíveis de compreensão.

É justamente dessa articulação entre dois campos distintos (a coisa e seus

predicados, o significante e o inominável, por exemplo) que se trata no conceito de

nachträglich [a posteriori ou só-depois], e que procuramos ilustrar com as referências

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anteriores ao par bem/belo, princípio do prazer/pulsão de morte, assim como no

unheimlich freudiano. É através dele que se revela intensamente, e de modo paradoxal, o

limite tênue, de difícil precisão, a partir do qual cumpre à pulsão uma exigência ao

psiquismo, ou, para abordarmos a questão de uma outra maneira e em termos lacanianos,

onde um dejeto, um resto, comparece como um produto da operação de basteamento

significante, tendo aí também o papel de causa (cf. Zizek,1988:102-103).

Quando falávamos acima de campos distintos associados ao a posteriori, nos

referíamos ao modo como a problemática da memória e do significante se tocam para

insinuar o que nas suas malhas não pode ser retido senão como perda ou falta. Daí não

considerarmos inteiramente correto que o a posteriori responda apenas pelos efeitos de

significação. Será apenas isso? Não haveria um paradoxo, ou enigma, um pouco maior a

ser explorado quando Lacan nos diz, por exemplo, que:

(...) esse objeto, não nos é dito que ele tenha sido realmente perdido.
O objeto é, por sua natureza, um objeto reencontrado (...) que ele
tenha sido perdido é a consequência disso - mas só-depois (Lacan,1988:149).

Não incorreríamos em erro se afirmássemos que é a partir desse tipo de indagação

que Freud elabora o Além do Princípio do Prazer [1920], apontando para o que na

repetição não se coadunava por completo aos postulados do princípio do prazer. De um

modo geral, e nesse texto em particular, rememoração e repetição aparecem como

distintas, sendo mesmo a primeira o antídoto da segunda. A rememoração traduzir-se-ia

na possibilidade de um distanciamento no tempo, caracterizando uma possível

experiência como pertencente ao passado, enquanto a repetição passa por ser uma

recordação agida (cf. Freud,1976c:31-32 e 35).

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Mas, no que tange à memória é preciso ter ao alcance dos olhos o percurso que

começa antes de 1895, e não se detém em 1920. Em todo caso, nos parece extremamente

interessante, quanto ao que estamos apresentando, que Freud vá no Além defininir o

princípio do prazer como uma tendência a serviço de uma função, que seria a própria

pulsão de morte (idem:76).

Se o princípio do prazer diz respeito à repetição, e, como queremos demonstrar, a

rememoração não se resume a recapitulação de uma biografia, passa a suscitar interesse o

que mesmo por essas vias impõem-se contra elas. Talvez seja desse modo que se possa

precisar o que do princípio do prazer não se coaduna com a noção de prazer, e o que da

rememoração vai se ligando de modo indissociável ao après-coup [só-depois ou a

posteriori].

Em determinados momentos do Além do Princípio do Prazer parece haver uma

equivalência entre o princípio do prazer, princípio de constância, princípio de nirvana, e

pulsão de morte como se dissessem respeito a um mesmo domínio. Em outros

encontramos uma distinção, sobretudo para dar conta de um acúmulo de “tensão peculiar

que tanto pode ser agradável como desagradável” (cf. Freud,1976c:84).

É no Problema Econômico do Masoquismo [1924] que operar-se-á uma distinção

mais nítida marcando o distanciamento entre princípio do prazer de um lado e pulsão de

morte e princípio de nirvana de outro. A idéia que parece ser predominante na primeira

elaboração, embora não compreenda todas as questões levantadas ali, é a da constância,

‘alívio de tensão’, ou simplesmente, e de modo mais radical, a de retorno ao inorgânico.

Na segunda, o princípio do prazer se caracteriza por uma modificação do princípio de

nirvana devido a pulsão de vida, Eros.

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O que deve prender nossa atenção é que na elaboração de Lacan a pulsão de morte de

saída não se resume ao princípio de nirvana. Ou seja, não está inclinada à cessação

completa das tensões. Freud toca também nessa possibilidade mesmo no Além quando

escreve sobre um sentimento de tensão absoluta, em oposição à problemática do prazer,

que não poderia ser resolvida simplesmente na esfera energética, no plano econômico.

Tanto no Além como no Masoquismo ele menciona a hipótese, reiterada em outras

ocasiões, de uma dimensão temporal, ritmo, a partir da qual dar-se-ia a passagem da

quantidade à qualidade, e, conseqüentemente, a diferença entre prazer e desprazer.

Não se trata aqui de propor uma equivalência entre princípio do prazer e pulsão de

morte. Devemos especificar o que significa tratarmos o campo do prazer como já

subordinado a um mais além, e notá-lo como não simplesmente um escoamento

energético, e mesmo o escoamento definitivo, mas a persistência que se impõe apesar de

qualquer repouso pretendido. Um resto sem-nome, não localizável em nenhuma biografia

, mas que, no entanto, faz-se sempre presente. Uma memória, para tratá-la propriamente,

que não responde pelo passado, mas que imanente ao sujeito o mantém afastado de si

mesmo, estrangeiro em sua própria história.

Lacan intensifica essa dimensão onde algo comparece como uma falha, ou falta,

no domínio da representação ao dizer que:

o sistema de realidade, por mais que se desenvolva, deixa prisioneira


das redes do princípio do prazer uma parte essencial do que é,
no entanto, e muito bem, da ordem do real (Lacan,1990:57).

Novamente espreitamos a questão que pensamos ser posta à prova numa

problemática da memória. Trata-se da delimitação de uma região onde facilmente

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poderíamos notar o domínio do princípio do prazer (cf.Lacan,1988:272), mas com

relação a qual também não se pode deixar de apontar uma persistência, onde o próprio

princípio do prazer encontra-se capturado:

(...) é como um paradoxo ético que o campo do das Ding é reencontrado no final, e
que Freud aí nos designa o que na vida pode preferir a morte (...) Freud designa-nos
esse campo como sendo aquele em torno do qual o campo do princípio do prazer
gravita, no sentido em que o campo do princípio do prazer está para além do
princípio do prazer (...) (Lacan,1988:131,grifo nosso).

Se Lacan nos propõe que o Além esclarece o Projeto, é porque existe algo de

específico na pulsão de morte que a diferencia de um princípio de inércia, ou do princípio

do prazer, constituindo-se mesmo como uma dimensão sobre a qual o próprio princípio

do prazer viria a operar. Ao se pretender dirimir as diferenças implicadas nesses

conceitos, acabaríamos talvez próximos das elaborações de Laplanche para quem parece

haver muito no conceito de princípio do prazer que ainda não foi suficientemente

especificado. Sem dúvida a preocupação é pertinente, mas não devemos tomá-la como

indicativo de que o conceito de pulsão de morte não teria algo novo a oferecer ao

conjunto da teoria psicanalítica, constituindo-se mesmo no seu conceito mais radical,

como pretendeu mostrar Lacan.

Dessa forma, se Freud escreve que “O princípio do prazer parece, na realidade,

servir aos instintos de morte” (Freud,1976c:85), ele parece por seu turno também apontar

no sentido de que, apesar da mais extrema heterogeneidade, há uma relação, de

subordinação, por exemplo, entre ambos os conceitos. Não é por outro motivo que se

poderia dizer que em Freud “ o principio do prazer aparece como distinto de tudo o que

até aqui conferiu seu sentido ao termo prazer” (Lacan,1988:131).

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Assim, se salientávamos que algo poderia ser dito sobre memória e ética a partir

do Seminário 7, é porque a memória é ali tratada na medida em que parece coadunar-se

com a tragédia, ilustrado por Lacan com Antígona, sobre quem fala de uma escolha

absoluta, escolha que nenhum bem motiva. Escolha que sustenta um limite, Atè, para

além do qual “ a vida humana não poderia transpor por muito tempo” (Lacan,1988:318).

Por que? Porque a memória também constitui-se por esse limite onde o que conta não é

apenas o que à consciência revela-se como recordação. É assim que o inconsciente pode

nos ser definido como “memória do que ele [o homem] esquece” (idem: 282). Para citar

de modo completo:

O temível desconhecido para além da linha é o que, no homem,


chamamos inconsciente, isto é, a memória do que ele esquece.
E o que ele esquece - vocês podem ver em que direção - é
nisso que tudo é feito para que ele não pense - o fedor, a
corrupção sempre aberta como um abismo, pois a vida é
a podridão (ibid).

Emma

Todo o percurso realizado neste capítulo deve terminar no Projeto, no que lá nos

foi mostrado através de um esquema gráfico justamente o vínculo entre o que “deveria ter

permanecido secreto e oculto, mas veio à luz”. Ligação entre o que se apresenta como

uma inocente lembrança, ou nem tanto, em todo caso uma “primeira mentira”, e o

trauma, momento irrepresentável. É na articulação desses dois momentos, um já muito

tarde e o outro cedo ainda, quase não demarcável, que localizamos o nachträglich

freudiano.

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É na parte II do Projeto que o caso Emma - que não é a mesma dos Estudos sobre

a Histeria - nos é narrado (cf. Freud,1990l: 476). A respeito desse caso é interessante

notar o comentário de S. André, para quem Lacan faz ressurgir aquilo que se apresentava

no ponto de partida da obra freudiana: “o encontro, no coração do trauma, de um real,

que aparece como o ‘correlativo da representação’” (André,1987: 67,grifo nosso).

É desse modo que Emma está entre a lembrança que ela discerne no passado e

uma outra que vem à análise posteriormente, passo a passo com a construção do analista.

Ligando ambas as recordações dois elementos significantes: o riso e as roupas. E no

esquema apresentado por Freud, um vazio de onde parte uma seta que se dirige à

descarga sexual. Poderíamos ver aí diversos estratos, para usar um termo caro à Carta 52,

mas deveríamos acrescentar que da operação de inscrição, algo resiste.

É por esse motivo que S. André afirma que:

o real está lá “só-depois”, na medida em que, a nível de inconsciente,


a repetição significante produz literalmente o real em sua função de
causa (André,1987: 79).

Assim, ao nos perguntarmos sobre a memória na psicanálise não fazemos outra

coisa senão indagar sobre os seus limites. Não no sentido da possibilidade de uma

rememoração total - Freud mesmo marca esse impossível, tanto na Carta 69 como nas

suas elaborações sobre a amnésia infantil. Contudo, talvez, seja preciso defini-la como

uma escolha por uma re(a)presentação, a partir da qual, o significante apontaria para uma

face do real, e ela, a lembrança, poderia ser tomada como intempestiva 1, não dizendo

1 Para essa noção oriunda do pensamento nietzscheano, cf. Deleuze,1988:18. M. Moscovici também parece
dar ênfase a essa noção, todavia usando como fonte um texto de P. Loraux -Le Temps de la pensée (cf.
Moscovici,1994:37 e ss.).

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respeito apenas a um tempo que passou, mas acentuando o que ali só pode comparecer

como enigma ou lacuna.

É assim também que ao falarmos numa “persistência da memória” invocamos o

quadro de Dalí de mesmo título1, onde, sob uma paisagem árida, contemplamos uma

fenda que parece significar o fim de tudo que ali está, uma árvore retorcida e relógios que

quase desaparecem. Relógios que não mais marcam um tempo que passa, ou que passou.

Porém, marcados por um tempo de outra natureza, destruidor, e, por isso mesmo,

apontando para um recomeçar conforme uma outra economia que não se detém nos

limites de uma história individual, e nem diz respeito a algum possível passado coletivo e

mítico.

Assim como quisemos fazer notar esse quadro parece nos oferecer um aspecto

irredútivel à dimensão pictórica, do mesmo modo como em Os Embaixadores. Tanto

neles como na memória o essencial parece passar ao longe da representação/recordação.

E é aí que “a função da memória, (...), é rival (...) das satisfações que ela é encarregada de

assegurar”, momento onde o a posteriori não responde apenas por um reconstruir o

passado que teria sido, multiplicando significações. É nesse desvio que nos deparamos

com uma face onde o deserto de Dalí e o crânio de Holbein também comparecem2.

1 Esse quadro data de 1931 e atualmente encontra-se no Museu de Arte Moderna, NY.
2 A breve incursão que propusemos entre a dimensão pictórica, a memória e o belo, já havia sido proposta
por Lacan no próprio Seminário 7. Lá, a ênfase foi dada ao tempo propriamente dito, onde o belo revelaria
uma face que muitas vezes pretenderíamos ver esquecida: “(...) é na medida em que a natureza morta
mostra-nos, ao mesmo tempo, e esconde-nos o que nela ameaça - desenlace, desenrolar, decomposição -,
que ela nos presentifica o belo como função de uma relação temporal” (Lacan,1988:357).

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Tempo de Compreender

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V. Do Saber e da Memória

Transferência, sentido e história ( I )

O que havia depois do universo? Nada. Mas havia alguma coisa à volta do universo para
mostrar onde ele parava antes que o lugar nada começasse?
J.Joyce

Neste capítulo iremos acompanhar os comentários de Lacan acerca da noção de

memória no Seminário 1, assim como começaremos por nos aproximar de maneira um

pouco mais sistemática do uso que é feito por ele do a posteriori. Do mesmo modo

seguiremos Freud ao longo do caso Dora, onde, para o que nos interessa neste momento,

notaremos como a problemática da transferência passa por uma reviravolta com relação

ao modo como se apresentava até então. É a partir desse caso, sobretudo como podemos

notar no posfácio, que o fenômeno da transferência vai ser apreciado como implicando

necessariamente a figura do analista. Mas, o que teria a memória a ver com isso?

Apenas para darmos os primeiros passos, deveremos ainda colocar mais uma

questão: a transferência não implicaria uma relação do sujeito com sua história, tendo

como pivô a função do analista? Se de fato é preciso distinguir repetição e transferência,

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como Lacan nos indicou em seu seminário sobre os conceitos fundamentais da

psicanálise, também não é certo que nela o sujeito depara-se com os significantes-mestres

que o determinaram ao longo de sua vida, nos moldes como C. Soller nos mostra pelo

viés do matema da rememoração? (cf. Soller,1991:56).

Lacan há muito já havia nos apontado as imprecisões que caracterizam as noções

de memória e lembrança (Lacan,1986:47), decorrendo daí a afirmação que “ a história

não é o passado” (idem:15). Ele vai procurar mostrar como em Freud, notadamente num

período que chamará de intermediário, que vai da Interpretação dos Sonhos ao Homem

dos Lobos o que é considerado como recalcado

É ainda e sempre o passado. Um passado que deve ser restituído, e relativamente


ao qual não podemos fazer de outra forma a não ser reevocar uma vez mais a am-
bigüidade e os problemas que ele levanta quanto à sua definição, sua natureza e
sua função (idem:46).

Sem dúvida Lacan está levantando todos esses problemas em função do episódio

do Homem dos Lobos, onde evento e fantasia parecem implicar-se, para, num primeiro

momento, revelar a preponderância do primeiro sobre a segunda. Não deveremos

esquecer essas considerações sobre a memória, já que teremos a oportunidade de

acompanhar o seu desenrolar ao longo de alguns outros pontos da obra lacaniana, assim

como já o pudemos fazer com relação ao Seminário 7.

Devemos nos ater a essa pequena frase já citada de Lacan segundo a qual “a

história não é o passado”. Ele a complementa da seguinte maneira: “O centro de

gravidade do sujeito é essa síntese presente do passado a que chamamos

história”(idem:48).

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Fica patente, no modo como Lacan vai utilizar-se da noção de história, que ela

fica dependente não de um passado, mas do modo como ele é retomado num tempo por

vir1. Não é por outro motivo que:

O passado e o futuro precisamente se correspondem. E não é em qualquer sentido -


não no sentido que vocês poderiam acreditar que a análise indica, a saber, do pas -
sado ao futuro. Ao contrário, na análise, justamente porque a técnica é eficaz, isso
caminha na boa ordem - do futuro ao passado. Vocês poderiam acreditar que estão
começando a procurar o passado do doente num lixo, quando, ao contrário, é em
função do fato de que o doente tem um futuro que vocês podem ir no sentido regres -
sivo (Lacan,1986:184).

É importante notar como essa argumentação sobre a história faz-se tendo como

pano de fundo a própria questão do a posteriori. O modo como Lacan desdobra o tema

no Seminário 1 merece toda a nossa atenção para que não venhamos a pressupor que o a

posteriori aponte para uma integração total do passado pelo sujeito. O que

corresponderia, de certa forma, ao intuito esboçado por Freud em vários momentos de

poder fazer o inconsciente tornar-se consciente. No limite, e aqui trata-se de opor Freud a

Freud, tal iniciativa levaria a liqüidar o conceito de inconsciente.

É assim que Lacan nos diz que a neurose infantil do H. dos Lobos desempenha

o mesmo papel que uma Psicanálise, a saber, realiza a reintegração do passado, e coloca
em função no jogo dos símbolos a própria Prägung, que ali só é atingida no limite, por um
jogo retroativo, nachträglich (...) (idem:221).

1 Esse mesmo problema é retomado por Lacan no Seminário 17: “Logo depois da última guerra (...) tomei
em análise três pessoas do interior do Togo, que haviam passado ali sua infância. Ora, em sua análise não
consegui obter nem rastros dos usos e crenças tribais, coisas que eles não tinham esquecido, que
conheciam, mas do ponto de vista da etnografia. (...) O inconsciente deles não era o de suas lembranças de
infância - isto é palpável -, mas sua infância era retroativamente vivida em nossas categorias famil-iares
(...)” (Lacan,1992:85).

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Ainda será preciso fazermos mais uma citação de Lacan, já que a advertência que

fazíamos acima é formalizada do seguinte modo:

Basta simplesmente que o sujeito nomeie seus desejos, que tenha permissão de nomeá-los,

para que a análise esteja terminada? Não fico por aí1 (idem:223).

É por esse viés que estamos tentando definir o a posteriori, em hipótese alguma

reduzindo-o aos efeitos de significação. Ou seja, de retomada do passado no presente,

onde a elaboração de uma hipótese poderia dar a chave da sintomatologia do sujeito,

movimento retroativo onde a causa recém descoberta poderia bem ser talvez a derradeira.

Nesse movimento estaríamos perigosamente próximos de um saber paranóico,

totalizante, como nos é ilustrado por Schreber (“Ordem do Mundo”), e também por Fliess

(idéia de periodicidade regulando todo o universo).

Retornando a Lacan, uma sutileza parece residir em suas últimas citações. Nelas

podemos notar que o trabalho da análise não se resumiria a uma retomada do passado,

mas a reintegração no jogo dos símbolos do que beira, do que quase escapa à

possibilidade de representação, a Prägung, o que no caso do H. dos Lobos poderíamos

tratar como a cena originária, (re)construída por Freud. “O nachträglich ou

posterioridade segundo a qual o trauma se implica no sintoma, mostra uma estrutura

1 Philippe Julien também insiste nessa questão. Ele nos faz a seguinte pergunta: “O processo analítico tem
por alvo uma Bejahung completa, uma exaustão total no simbólico, de tal modo que nada apareça no real?
É possível, se é verdadeiro que Freud reconheceu o urverdrängt, o recalcado irredútivel, impedindo que o
todo possa se dizer? (Julien,1990:96). E continua: “A análise não tem por alvo uma exaustão da história do
sujeito no simbólico. Em razão disso: o inconsciente freudiano não é redutível ao recalcado; se o fosse,
como o recalcamento não é sem retorno do recalcado, uma totalização da história poderia ser realizada
inteiramente na palavra nomeadora (...)” (idem:174).

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temporal de uma ordem mais elevada”(Lacan,1992a:323, grifos nossos). Um trauma

implicado no sintoma, e uma ordem temporal mais elevada, o que será isso afinal1?

De saída poderíamos notar a propósito mesmo do Seminário 1 que Lacan nos

indica, quanto ao tema da temporalidade, um distanciamento do pensamento freudiano na

medida em que se para este o inconsciente não conheceria o tempo (cf. Freud,1974:214),

para Lacan o fato do inconsciente se colocar fora do tempo é e não é verdade (cf.

Lacan,1986:276).

Talvez seja o momento de mais uma vez nos aproximarmos do tripé que

propusemos como tema deste trabalho. Pois, se até aqui ficamos, a nível do enunciado,

entre o a posteriori e a memória, não é, esperamos, porque tenhamos negligenciado o

tempo. Mas, para fazê-lo saltar para uma dimensão menos vulgar que a da cronologia, da

linearidade, do quotidiano, e que com certeza foi contra a qual o conceito de inconsciente

freudiano se insurgiu (cf. Derrida,1967:318; cf. Porge,1994: 82).

O inconsciente atemporal de Freud nos aponta para uma permanência, para a

indestrutibilidade dos traços mnêmicos. Todavia, como vimos nos capítulos precedentes,

não poderíamos dizer simplesmente que eles significariam a possibilidade de uma

recordação total, dilema que todavia marcou Freud. O que parece capital é que a par de

um saber possível, que se constituiria tendo como base o processo primário -

condensação e deslocamento - é a idéia de um trauma, não plenamente circunscrito pela

representação, que adquire relevância.

1Guy Le Gaufey afirma ter sido o nachträglich que permitiu a Freud a passagem da teoria da sedução
àquela do fantasma (cf.Gaufey,1983:203).

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Não desejamos apontar os diversos modos pelos quais a temática do tempo

apresentou-se na obra de Freud1. Mas, o que estamos tentando mostrar através do a

posteriori é uma articulação entre memória e tempo.

Ainda que pouco usual, a síntese que estamos propondo parece ter encontrado até

aqui seu exemplo maior no caso Emma do Projeto (ver supra, cap.IV). Ali trauma e

lembrança se recobriram, mas para apontar no gráfico proposto por Freud, e retomado

por S.André, um limite onde a própria representação pareceu faltar, e que seria a idéia de

trauma por excelência. Não é por outro motivo que S. André concede tanta importância à

idéia-limítrofe do Rascunho K, e a concomitante concepção de uma lacuna na psique.

Todavia, essa “lacuna” diria respeito a algo que poderia ser “preenchido”?

Derrida nos indica a fecundidade do a posteriori na obra freudiana, chegando

mesmo a dizer que se trata de um dos conceitos diretores de seu pensamento ao lado do

conceito de retardamento [Verspätung](cf. Derrida,1967:303).

É a partir desses dois conceitos que Derrida aproxima-se de um tema do qual

deveremos nos ocupar em breve, principalmente no que dele é revelado no caso do

Homem dos Lobos: a questão de uma origem, de um ponto inicial, começo absoluto que

revelaria a origem/causa tanto do sintoma quanto do sujeito, sendo isso presentificado no

caso através da elaboração da cena originária.

Esse tema do originário, ou das origens, é de um interesse particular no nosso

trabalho já que é posto em xeque quando se fala em a posteriori. E é exatamente esse

aspecto que é sublinhado por Derrida no uso conjugado que faz do Nachträglichkeit e do

Verspätung. O que é salientado por ele é que esse “retardamento” não diria respeito a uma

relação entre dois presentes possíveis (idem:302-3 e 306), onde algo que não ocorreu

1 Para esse tipo de questão reenviamos o leitor para Gondar,1995.

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102

num dado momento viria a ter lugar num segundo instante, sucessivo. Como ele mesmo

propõe, no retardamento “o presente não é constituinte, [mas] originariamente

reconstituído a partir dos ‘signos’ da memória”(idem:306).

A conclusão de Derrida deverá ser citada na íntegra para que possamos seguir os

seus desdobramentos:

[Quanto ao texto inconsciente] tudo começa pela reprodução. Sempre já, quer dizer,
depósito de um sentido que não foi jamais presente, cujo presente significado é
sempre reconstituído em retardamento, nachträglich, só depois, suplementarmente:
nachträglich quer dizer também suplementar (idem:314).

Ou seja, ao mesmo tempo em que se deixa de fazer apelo a um passado remoto,

mítico ou originário para a explicação de uma manifestação do inconsciente, um

sintoma, por exemplo, começamos a notar que o a posteriori aponta para uma produção a

mais, um excesso que tem implicações na ordem da causalidade, e que nos é revelado sob

o aspecto de suplementaridade que lhe concerne. Devemos notar a diferença entre

complementar e suplementar fundamental para que possamos extrair as devidas

conseqüências. O suplemento, ao contrário do complemento, não quer dizer algo que

colmata, que vem preencher faltas, mas incide sobre o que se dá a mais, de modo

irredutível a uma série dada (cf. dicionário Aurélio, suplemento;cf. Lacan,1990c:710).

Sobre esse aspecto, ainda é em Derrida que deveremos buscar mais subsídios para

a nossa pesquisa. Ele nos lembra que “Nachtrag tem também um sentido preciso na

ordem da carta: é o apêndice, o codicilo, o post-scriptum” (idem:314). Ou seja, em todo

caso o que vem acrescentar-se de modo a promover um sentido que não estava garantido

a priori, chegando mesmo a modificar de modo imprevisível o suposto texto “original”.

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103

Quer dizer, a própria idéia de momento original, originário, depositário da verdade,

encontra-se ultrapassada, lançada inteiramente num tempo por vir. De certa forma, não é

essa experiência apresentada por Freud nos inúmeros acréscimos, através de notas

inclusive, realizados em seus textos como, por exemplo, A Psicopatologia da Vida

Cotidiana, Os Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade e mesmo o caso Dora?

Poderíamos então quanto a eles precisar o momento em que foram escritos?

1901,1905,1907,1920,1923...Talvez nem mesmo pudéssemos falar em estratos, já que é a

própria idéia de um limite entre eles que estaria sendo posta à prova...(cf. Jacob e

Auroux,1990:139-140).

É a partir dessas mesmas questões que reencontramos Lacan quando ele nos diz

que:

(...) a Verdrängung, não é nunca senão uma Nachdrängung, o que vemos sob a volta
do recalcado é o sinal apagado de algo que só terá o seu valor no futuro, pela sua
realização simbólica, a sua integração na história do sujeito. Literalmente, nunca
será mais do que uma coisa que, num dado momento de realização, terá sido (Lacan,
1986:186).

Logo, o que estamos acompanhando é o modo como na psicanálise a questão da

memória passa por um enquadramento onde não é possível dissociá-la do próprio setting,

no que entendemos sob essa denominação a instauração das duas regras básicas

(associação livre, por um lado, e abstinência, por outro), bem como o estabelecimento da

transferência.

Ou seja, é o analista, na função de sujeito suposto saber, e, portanto, como pivô da

transferência (cf. Lacan,1968:19; Miller,1988:56) que vem promover um curto-circuito

103
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na história do sujeito, de modo que ele possa vir implicar-se em sua narrativa,

reconhecendo os significantes nos quais encontra-se alienado.

Logo, se aproximamos memória, a posteriori, e transferência é preciso derivar

disso duas conclusões:

1) Não se trata na psicanálise da elaboração de uma autobiografia, justamente

porque o próprio prefixo “auto” deve ser colocado em suspensão. É na relação com uma

alteridade radical que o analista encarna (seja como sujeito suposto saber, objeto a, ou

como Outro), que tem início o trabalho de reconstituição de uma história. “Reconstituir

sua história é reencontrar a sucessão das identificações do sujeito (S1...S1...S1...) e a cada

etapa, a verdade que aí se liga”(ibid, grifo nosso)1;

2) O próprio estabelecimento do setting confere uma dimensão de trabalho à

memória, que é análoga àquela decorrente da dissimetria existente entre o analisando e o

analista. Ou seja, é o fato do analista não ter como alvo preencher as lacunas do discurso,

que permite ao sujeito percorrer a série significante a partir da qual ele se representa.

Quer dizer, “Na análise (...) [o sujeito] vem produzir, reencontrar e ejetar

simultaneamente os significantes a partir dos quais ele se construiu” (idem:56).

1 É interessante notarmos como essa questão também é formulada em outros domínios, como, por
exemplo, a literatura. À guisa de ilustração podemos citar a entrevista de Hector Bianciotti, escritor
argentino radicado na França, a Betty Millan (Folha de S.Paulo, caderno Mais!, 19.12.93). H. Bianciotti
procura fazer ali a oposição entre autoficção (conceito que teria sido forjado por ele) e autobiografia, uma
vez que, como é exposto, a memória e a imaginação trabalhariam juntas. Ainda que não tendo argumentado
com toda minúcia, já que se tratava de uma entrevista, ele procura assinalar como nós não nos lembramos
do fato em si mas da última vez em que nos lembramos dele. Daí decorreria que a autobiografia é
simplesmente impossível, enquanto fidedigno a uma série de situações, sendo mais propício o termo
autoficção. A experiência decorreria portanto de uma pontuação da própria história, onde, pelo viés da
linguagem, o próprio nascimento estaria submetido a determinantes outros, estabelecidos pela tradição,
pelo desejo dos pais, por exemplo. Ele conclui fazendo apelo a uma dimensão criativa da literatura,
segundo a qual ela seria a arte de não chamar as coisas pelo nome, sendo, ao contrário, o modo de utilizar a
linguagem de um modo evocativo e de se deixar levar pelas palavras, abrindo margem, portanto, para
outros destinos que aqueles que poderiam ter sido assegurados pela certeza de um passado.

104
105

Fizemos até aqui algumas alusões à questão da transferência. Deveremos agora

apreciá-la de forma mais direta, ainda que não seja nossa intenção quanto a esse tema de

promover um estudo exaustivo. Vamos nos deter sobretudo no caso Dora, e de forma

lateral em alguns comentários de Lacan, principalmente no que teve como objeto aquele

caso freudiano. Essa incursão ainda que breve, justifica-se na medida em que a

transferência coloca em primeiro plano os temas da memória e do tempo, da mesma

forma que, paradoxalmente, constitui-se como motor ou condição de possibilidade da

análise e obstáculo a ser ultrapassado.

Transferência, sentido e história (II)

Terceira - Por que não haverá relógio neste quarto?


Segunda- Não sei... Mas assim, sem o relógio, tudo é mais afastado e misterioso. A noite pertence
mais a si própria... Quem sabe se nós poderíamos falar assim se soubéssemos a hora que é?
F. Pessoa

Este comentário sobre o caso Dora irá deter-se sobre a questão da transferência,

tomando como ponto de partida a definição proposta por Lacan em A Posição do

Inconsciente segundo a qual “(...) a transferência é uma relação essencialmente ligada ao

tempo e a seu manejamento”(Lacan,1992a:329).

Ouvir essa sentença de Lacan nos coloca de imediato diante de três

desdobramentos possíveis a respeito de uma interrogação mais ampla sobre o tempo 1 na

psicanálise: primeiro, a da duração das sessões; segundo, a da duração do tratamento; e,

terceiro, sobre o que poderia ser a história do analisando tomada numa perspectiva

1 Vale lembrar que para Lacan a duração total da análise, e a duração da sessão compõem os modos de
incidência do tempo na técnica analítica (cf. Lacan,1990a:298-300).

105
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analítica. Poderíamos dizer que pelo menos as duas últimas questões entrelaçam-se no

relato do caso Dora, e, como Freud acentuará no posfácio, a transferência é um elo

primordial dessa relação.

Assim, aproximar-se do caso Dora por esse viés nos parece ser uma via

interessante, na medida em que logo nas primeiras páginas do caso Freud nos diz:

o trabalho leva originalmente o título de ‘Sonhos e Histeria’, que


me parecia peculiarmente apto a mostrar como a interpretação
dos sonhos se entrelaça na história de um tratamento e como,
com sua ajuda, podem preencher-se as amnésias e elucidarem-se
os sintomas”(Freud,1989:19).

É justamente esse “preencher as amnésias”, tão constante em Freud, que nos força

por um instante a retornar ao texto da primeira afirmação lacaniana. Nele notaremos que

a relação tempo-transferência é antecedida de uma exposição onde procura precisar a

importância da escansão do discurso do paciente. Nela “se verá ajustar-se essa pulsação

da borda por onde deve surgir o que reside aquém”(Lacan,1992a.:323). Ou seja, o tempo

ao qual Lacan faz menção nessa passagem aparece como que indissociavelmente ligado à

interpretação1, ao regime da linguagem, e, por conseguinte, centrado no analista no que a

este cabe determinar o sentido do que lhe é oferecido, através dos cortes que opera no

discurso do analisando.

Talvez nenhum outro caso seja mais exemplar a esse propósito, mostrando-nos os

descaminhos por onde se pode ir no que diz respeito ao sentido de uma interpretação. O

amor de Dora pelo senhor K., que Freud aponta em vários momentos (Freud,op.cit.:100 e
1 Ao falarmos em interpretação e intervenção do analista temos em vista a formulação lacaniana de
1966, onde a transferência teria “sempre o mesmo sentido de indicar os momentos de errância e também de
orientação do analista, o mesmo valor para nos chamar a atenção sobre o nosso papel: um não agir positivo
em vista da ortodramatização da subjetividade do paciente” (Lacan,1992b:99).

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105), é também desmentido por contrabando quando nas notas de rodapé (idem:101 e

113; Lacan, 1992b:95) Freud salienta a possibilidade de amor homossexual entre Dora e

a senhora K.

Assim, quando Freud escreve sobre o começo do tratamento, dizendo que solicita

que seja narrada toda a biografia da paciente e a história de sua doença, sendo ainda de

todo modo as informações insuficientes para sua orientação (Freud,op.cit.:24), ele nos

apresenta dois problemas: primeiro, que a narração de uma biografia é insuficiente para

dar conta de um procedimento analítico; segundo, em consonância com o que

procuramos sublinhar até aqui, que a interpretação é decisiva para o estabelecimento de

uma certa temporalidade, ou ao menos, de uma história.

Miller também retoma essa proposição lacaniana da transferência, justamente num

texto que tem esse conceito como tema, afirmando que o tempo é um vetor constitutivo

da transferência, sendo em si mesmo uma modalidade da transferência, uma variável

interpretativa (cf.Miller,1988:88).

Valeria à pena aprofundar essa investigação pelo desdobramento que o lugar do

analista assume no decorrer do tratamento: sujeito suposto saber e objeto a, e que nos

lançaria no limite a pensar duas modalidades da transferência: uma concernindo ao

simbólico, e outra fazendo apelo ao que Lacan postulou como real 1. Mas, para não nos

afastarmos demasiadamente do caso Dora, optamos por retornar ao texto freudiano e a

essa “insuficiência da biografia” que mencionávamos há pouco. Insuficiência para a qual

Freud ver-se-á forçado a lançar mão de uma construção, sem que esta oponha-se a algo

de autêntico, mas, pelo contrário, entrando num tipo de consonância, como a que existe

entre um arqueólogo e o objeto por ele restaurado (Freud,op.cit.:21), e que é tantas vezes

1 Sobre esse tema cf. Silvestre,1991:48 e ss.

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descrito por ele, desde Lembranças Encobridoras [1899] até Construções em Análise

[1937].

Ainda que Freud nos tenha delineado esse “ponto cego” para o qual nenhuma

história parece suficiente, ele insiste num trajeto que chega até aos primeiros anos de vida

de seus pacientes (Freud,1989:34). Tal empreendimento leva Dora a trazer à tona a

experiência ocorrida com o sr. K em sua loja, quando ela tinha 14 anos, e onde a partir de

um beijo, ao invés da excitação sexual, foi a repugnância que veio instalar-se (ibid).

Daí a proposição de Freud: “Eu tomaria por histérica, sem hesitação, qualquer

pessoa em quem uma oportunidade de excitação sexual despertasse sentimentos

preponderantemente ou exclusivamente desprazerosos, fosse ela ou não capaz de produz

sintomas somáticos” (idem:35).

Essa passagem é capital na medida em que, do mesmo modo como falávamos

antes em vertente simbólica e real da transferência, e também em biografia e “ponto

cego”, a histeria, como nos aponta S. André (1987), nos coloca o problema da fronteira

entre o sexual - poderíamos dizer também histórico ou simbólico - e o não-sexual -

poderíamos do mesmo modo dizer, conforme Lacan, real1. Ou seja, se é pela via do

recalque que se opera “a sexualização do corpo e sua separação do organismo” (idem:98),

a clínica da histeria nos mostra pelo fracasso do recalque a hiância por onde se manifesta

o trauma (ibid). Tal perspectiva tem uma relação muito particular com o que é da ordem

1 É S. André quem escreve: “(...) Para além da lógica fálica da castração, o processo analítico revela, de
fato, ao sujeito que o objeto causa do desejo - o objeto da pulsão sexual - é fundamentalmente assexuado,
o que quer dizer que a sexualidade humana não está ligada, originalmente, a uma diferença entre os sexos
sobre a qual o inconsciente permanece mudo (André,1987:15, cf. tb.caps.3-6). André continua essa
explanação nos seguintes termos: “(...)“Homo” ou “hetero”, é do falo que se trata, desse significante único
de um sexo que deve por conseguinte, diferenciar-se pelas mais obscuras vias, e também do objeto causa do
desejo, impossível de apontar, mas, ainda assim, real, e cuja natureza, por sua vez é assexuada”
(André,1995:115).

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do dejeto, como Freud nos faz ver na relação entre o sexual e o excrementício 2

(Freud,op.cit.:37), e também, por outro viés, através da “carne viva” da garganta no

sonho da injeção de Irma.

É nos moldes de uma reedição que Freud discute a transferência no caso Dora.

Representações e “fantasias substituindo uma pessoa anterior pela pessoa do médico (...)”

(idem:110). Nessa via a transferência permanece em estrita dependência de uma idéia de

deslocamento de sentido, ou intensidade, que encontra plena expressão na Interpretação

dos Sonhos. Quer dizer, entre uma representação inconsciente e uma representação

anódina pré-consciente haveria a possibilidade de uma transferência de intensidade

psíquica da primeira para a segunda, a partir do que poderia ocorrer uma certa

manifestação sintomática, sendo o sonho um exemplo.

Mas, talvez, o que pudéssemos descrever como uma diferença entre a

transferência nesse caso e o puro e simples deslocamento de intensidade/sentido é esse

primeiro passo na direção da cura, que hoje podemos chamar de retificação subjetiva, e

que não teria a sua eficácia se não fosse aliada à transferência. Freud escreve quanto a

cura que “de nada servem todas essas afirmações de que é ‘apenas uma questão de

vontade’ e todas as exortações e insultos dirigidos ao doente. Primeiro é preciso tentar,

pelas vias indiretas da análise fazer com que a pessoa convença a si mesma da existência

dessa intenção de adoecer”(idem:49,grifo nosso).

Todavia, ainda é preciso olhar com mais cuidado para a relação entre transferência

e deslocamento, ou, entre sonho e histeria, como teria sido o título original desse caso.

2 A importância desse entrelaçamento, entre o sexual e o excrementício, será precisado por Freud nos
seguintes termos: “O excrementício está todo, muito íntima e inseparavelmente, ligado ao sexual; a posição
dos órgãos genitais - inter urinas et faeces - permanece sendo o fator decisivo e imutável. Poder-se-ia
dizer neste ponto, modificando um dito muito conhecido do grande Napoleão: “A anatomia é o destino”(...)
(Freud,1970a:172).

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Pois, justamente, o sonho em Freud, no que mantemos em perspectiva uma questão

acerca da temporalidade, desdobra-se, assim como a transferência, numa “causa atual

essencial” e num “acontecimento relevante da infância” (idem:72). Ou seja, segundo

Freud, ambos - sonho e histeria - operariam uma remodelagem do presente segundo o

modelo do passado mais remoto (idem).

O interessante a pensar é que em Dora a transferência parece encerrada numa

reedição, ou, no máximo, numa edição revista de um modelo infantil (idem:110).

Entretanto, não seria ela fundamentalmente um modo de interrogar o desejo? Não é um

“Que queres?” que deveríamos ouvir ecoar em cada intervenção analítica? E desse modo,

não estaria o sujeito em análise diante de um convite a que seu passado seja retomado

num discurso em devir1?

VI. Che Vuoi ?

O fracasso da memória

Um dia, há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na
antiga Rua de Matacavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra, que desapareceu (...).
O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor,
não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só
me faltasse os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu
mesmo, e esta lacuna é tudo.
Machado de Assis

1 Nos servimos aqui de uma formulação de Lacan, alterando, contudo, o contexto de seu enunciado (cf.
Lacan,1992b:99).

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Acreditamos ter delimitado ao longo dos capítulos precedentes o eixo em torno do

qual uma problemática da memória na psicanálise se delineia. De saída, vamos repetir, é

importante não dissociá-la de uma questão do tempo, o que implica dizer, como já

apontamos, que a retomada/produção dos significantes que teriam determinado a vida do

sujeito não diz respeito apenas ao que poderíamos chamar de “uma busca em seu

passado”.

Foi esse o motivo que nos levou a ressaltar que tanto o conceito de inconsciente,

como o de transferência, antes de prescindirem da importância do tempo, ou de tomá-lo

exclusivamente numa perspectiva linear, ou de reedição, promovem, assim como o a

posteriori, uma articulação com a memória que muitas vezes não é suficientemente

notada.

Quando começamos a expor em que consistiria a especificidade com a qual a

psicanálise lidaria com as questões do tempo e da memória, salientamos que outros

também teriam definido a memória desde uma outra perspectiva, citando como exemplo

H. Bergson. Entretanto, quando falamos de Ebbinghaus, não pretendíamos resumir toda

a análise psicológica da memória a um único autor. Ainda que pudéssemos reconhecer

nele uma importância quanto ao modo como as investigações posteriores oriundas da

psicologia procederiam.

Essa observação é feita aqui apenas para que não tenhamos a impressão ingênua

de que sob um termo, seja memória ou tempo, encontraríamos definições unívocas por

parte da ciência ou da filosofia, por exemplo. A variação é tamanha, e poderíamos citar,

como exemplo de estudos que têm o tempo e/ou a memória como temas privilegiados, os

trabalhos de Maturana e Varela (cf. Varela,1989), no que toca a Biologia e as Ciências da

cognição; os trabalhos de P. Lévy que se situam numa interface entre a Antropologia e a

111
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Informática com fortes ressonâncias também no campo das Ciências da cognição (cf.

Lévy,1987); ou ainda talvez o mais famoso de todos no que diz respeito as implicações

do tempo, com pesquisas na área da Química e da Epistemologia, Prigogine (cf.Prigogine

e Stengers,1991).

Entretanto, retornando a Freud, é necessário apontar também para uma oposição

interna à sua obra no tocante à memória. Ela manifesta-se numa diferença de tratamento

conferida ao tema onde nota-se, por um lado, a relevância dada a urgência do

estabelecimento de uma verdade histórica, empiricamente certificada pelo viés da

rememoração; e, por outro, a memória sendo apreciada numa perspectiva que a trata

como arranjo de traços e construção.

Para ilustrar, poderíamos citar de um lado a importância e os desdobramentos no

pensamento freudiano das postulações da teoria da sedução, bem como da cena

primária; e de outro, as formulações do Projeto e da Carta 52, por exemplo, onde a

própria formalização em termos de arranjos de traços mnésicos, ou ainda conforme a

leitura de S. André de uma “lacuna na representação”, revela, ao contrário, pontos onde a

própria realidade parece faltar enquanto esteio da lembrança.

No entanto, não se trata de afirmar que uma via prevaleceu sobre outra, mas notar

a tensão com que as duas se fizeram presentes em Freud e por que motivos.

Todavia, essa delimitação ainda não seria suficiente para definir o principal

objetivo deste trabalho. É necessário reter dos capítulos precedentes uma pontuação que

quer apontar para um avesso do que comumente é concebido como o a posteriori. Isso

quer dizer que se é em Lacan que o conceito freudiano de nachträglich recupera o seu

vigor (cf. Magno,1986:4), não é menos certo que os chamados lacanianos parecem ter

acentuado sobretudo o aspecto referente aos efeitos de significação.

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Sem dúvida o a posteriori (ou só-depois, como traduzido originalmente por

M.D.Magno) implica de modo imediato um descentramento onde as formulações de

Lacan acerca do significante encontram um lugar privilegiado. Os significantes

estabelecem um relação de oposição (S1-S2), estando o “saber” (S2) submetido às

ordenações (efeito de significação) derivadas do significante-mestre (S1, ponto-de-

basta)1. É nessa via que Zizek fala de como o significante “comunismo” (S1) teria

reordenado toda uma série que dizia respeito, por exemplo, a “trabalho”, “capital”,

“proletariado” etc.

Sem dúvida podemos reconhecemos aí o a posteriori. Mas o que parece escapar é

que de modo indissociável às formulações freudianas sobre o nachträglich, há

considerações sobre um limite que pode ser lido como “lacuna na psique” (Rascunho K)

ou “intraduzibilidade de parte do material mnêmico” (Carta 52), de outro modo também

salientadas tanto por Lacan como por Zizek. Trata-se em todo caso de uma certa falência

da representação que não é outra coisa senão o centro da questão do trauma, tal como

pudemos ver na leitura de S. André sobre o caso Emma, citado por Freud no Projeto (ver

supra, cap. IV).

Ou seja, na obra freudiana tanto o a posteriori como a memória situam-se numa

relação ambígua onde ambos circunscrevem um campo imagético (ordenamento,

1 Seguimos aqui a indicação de Zizek para quem o S1 responderia propriamente pelo ‘ponto de basta’,
como sendo significante-mestre (cf. Zizek,1991:43). Por outro lado, há autores que acentuam um aspecto
de ‘antecipação’ a S1, sendo S2 o responsável propriamente dito pelo trabalho de ressignificação (cf.
Eidelsztein,1993:64,65 e120). Para além do que poderia sugerir uma divergência, parece claro que ambos
acentuam uma diferença entre os significantes, a partir da qual um deles compareceria como ‘ponto de
exceção’ donde uma significação se estabeleceria. Talvez uma incursão pelo Seminário 17 possa nos ajudar
a tornar mais precisa essa relação entre S1 e S2: “(...)S1 é aquele que deve ser visto como interveniente. Ele
intervém numa bateria significante que não temos direito algum, jamais, de considerar dispersa, de
considerar que já não integra a rede do que se chama um saber” (Lacan,1992:11); “De início, seguramente
ele[S1] não está. Todos os significantes se equivalem de algum modo, pois jogam apenas com a diferença
de cada um com todos os outros, não sendo, cada um, os outros significantes. Mas é também por isso que
cada um é capaz de vir em posição de significante-mestre, precisamente por sua função eventual ser a de
representar um sujeito para todo outro significante” (idem:83).

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significação), na mesma medida em que não deixam de delimitar algo refratário a ele. No

caso de Freud isso é caracterizado através do conjunto de textos citados até aqui, onde a

lembrança responde tanto pela causa (“os histéricos sofrem principalmente de

reminiscências...”), como pela possibilidade de cura (“necessidade de preencher as

lacunas da memória...”). Em Lacan encontramos algo de análogo, na medida em que no

seu grafo do desejo o point de capiton [ponto de estofo] indica uma certa parada,

estabilização no que poderia ser um deslizamento sem fim da significação. Ao mesmo

tempo em que ele também se constitui por outros elementos que não apenas os

significantes, como, por exemplo, a voz e o gozo [jouissance]. Isso quer dizer que algo é

produzido no registro simbólico (significante), sem contudo encontrar ali o seu lugar. É

esse produto que poderíamos chamar de resto1, objeto por excelência da psicanálise2.

Algo que tanto do lado do analisando, quanto do analista, embora de modo diferenciado,

vai implicar um “não saber” que, no entanto, deverá ter o seu lugar na cura 3. É nesse

contexto que falamos anteriormente em memória intempestiva, o que não deixa de ser

certamente uma memória paradoxal.

Dessa forma, iremos prosseguir nossa investigação retomando algumas

considerações já expostas neste trabalho, de modo a culminar no exame do grafo do

desejo de Lacan, em concomitância com o caso do Homem dos Lobos de Freud. O nosso

objetivo nessa escolha é apreciar como nesses dois momentos é articulada a relação entre

o que nos capítulos anteriores chamamos dois registros distintos e implicados. No caso do
1 Quanto ao tema do resto como um dos nomes do real, parece ser extremamente interessante a indicação
de Roudinesco quanto a presença velada do pensamento de Bataille nas teorizações de Lacan, sobretudo no
que diz respeito a heterologia (“ciência do inassimilável, do irrecuperável, dos dejetos ou dos ‘restos’) e as
reflexões sobre o impossível (cf. Roudinesco,1994:148 e 150; Bataille,1989, principalmente o ensaio sobre
Baudelaire).
2 “A categoria do real é essencial ser introduzida, ela não pode ser negligenciada nos textos freudianos. Eu
dou a ela esse nome enquanto ela define um campo diferente do simbólico (...)” (Lacan,1985a:98).
3 “(...) por um certo aspecto, o analista tem muita consciência de que não pode saber o que faz em
psicanálise. Há uma parte dessa ação que lhe resta, a si mesmo, velada” (Lacan,1988:350).

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grafo isso se atualiza de duas maneiras: já no primeiro “nível”, através do vetor

SignificanteVoz; e, em seguida, no vetor GozoCastração. Na verdade veremos que ao

falarmos em diferença entre os dois níveis não pretendemos caracterizar uma simples

oposição, já que a estrutura que o grafo nos deixa ver é topologicamente semelhante a da

banda de Moebius, possui a forma de um “oito interior” e, por conseguinte, faz apelo a

uma certa continuidade (cf. Eidelsztein,1993: 33 e 196).

No que diz respeito ao Homem dos Lobos existe uma dupla incidência de uma

temática do tempo. Tanto na obstinação de um possível resgate da cena originária, como

na determinação de Freud em estabelecer uma data para o fim da análise. É pelo viés

estabelecido por essas duas decisões que entendemos estar aberta também uma

possibilidade de interrogação à memória.

Duas memórias

Antes de chegarmos ao grafo e ao Homem dos Lobos, deveremos realizar alguns

comentários sobre outras observações de Lacan que se encontram dispersas ao longo de

sua obra e que tratam da memória e do a posteriori.

Desse modo podemos notar que no Seminário 2[1954-55] Lacan tece algumas

considerações que nos são pertinentes. Para começar, ele invoca o efeito Zeigarnik 1 para

mostrar como a memória no homem é marcada por uma especificidade que a coloca num

campo inteiramente distinto daquele de uma psicologia animal, ou ainda, de uma

1 O efeito Zeigarnick foi descrito pela primeira vez por Bluma Zeigarnick [1927], aluna de K. Lewin, como
sendo “uma fixação na memória da lembrança de uma tarefa interrompida ou de uma intenção que não
pôde ser realizada” (Sillamy,1983:709).

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memória considerada como “empilhamento de engramas, de impressões”

(Lacan,1985:114). Lacan conclui sua argumentação do seguinte modo:

No homem é a má forma que é prevalente. É na medida em que


uma tarefa está inacabada que o sujeito volta a ela. É na medida
em que um fracasso foi acerbo que o sujeito se lembra melhor
dele (idem:115).

Nessas afirmações encontramos uma ressonância do que estamos em vias de

desenvolver, onde paulatinamente acompanhamos uma certa desconstrução da definição

usual da memória, ao mesmo tempo em que afirmamos que algo sobre ela pode ser dito a

partir da psicanálise.

Essas considerações iniciais tomadas de Lacan, onde prevalece a preocupação em

delimitar uma especificidade ao que quer que diga respeito ao homem, em detrimento de

qualquer aspecto comum que este pudesse manter com o reino animal, irá no próprio

Seminário 2 encontrar uma retomada que nos concerne diretamente.

Lacan distingue ali entre rememoração e memória. A primeira dizendo respeito à

história, “agrupamento e sucessão de acontecimentos simbolicamente definidos, puro

símbolo a engendrar por sua vez uma sucessão” (Lacan,1985:234); e a segunda sendo por

sua vez não mais que uma característica do ser vivo, “propriedade definível da substância

viva” (ibid).

Ainda é preciso citar Lacan mais uma vez para circunscrevermos o âmbito onde

ele está tratando da rememoração como uma memória simbólica:

(...) Não é o que vem depois que é modificado, porém tudo o

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o que está antes. Temos um efeito de só-depois -nachträglich,


como Freud o expressa- específico da estrutura de memória
simbólica, ou seja, da função de rememoração1 (idem:234-5).

Todavia, do que se trataria nessa modificação? O que é que nesse “antes” é

modificado? Parece ser ponto pacífico que a produção de um significante-mestre (S1)

tenha como efeito uma mudança na posição do sujeito (retificação subjetiva). Entretanto,

que Lacan tenha de certa forma proposto um passo a mais não é duvidoso.

O conceito em questão é o de destituição subjetiva, formulado na Proposition du

9 octobre 1967 sur le psychanalyste de l’École, também conhecida como Proposição

sobre o passe, ou, Proposição sobre a transferência.

Não é por acaso que introduzimos aqui esse conceito, ainda que, sem dúvida,

venhamos a utilizá-lo de modo muito específico, nos detendo exclusivamente no contexto

de sua formulação inicial. Assim, é preciso ter em vista que Lacan o define como o

momento - associado ao fim de análise - onde um resto advém como determinante da

divisão do analisando, fazendo-o tombar de seu fantasma, e, por conseguinte, destituíndo-

o como sujeito (cf. Lacan,1968: 23).

Sem querermos nos desviar do escopo deste trabalho, pretendemos estabelecer

uma equivalência entre o par retificação/destituição, e a relação que salientamos em

mais de uma oportunidade como ambígua, existente no conceito de a posteriori como

sendo a do par sentido2/resto. Não se trata, contudo, de uma oposição entre os elementos

1 É interessante lembrar que nesse Seminário Lacan mantém um diálogo com a Cibernética, sobretudo no
que diz respeito a especificidade do simbólico, da linguagem. Pierre Lévy, autor que pesquisa os
desdobramentos das novas tecnologias, principalmente as ligadas à informática, sobre a cognição, tem se
detido também sobre o problema da memória (Lévy,1993). A citação seguinte tomada em paralelo com a
citação de Lacan acima não deixa de ter ressonâncias sobre o que chamamos de memória intempestiva (ver
supra, cap. IV): “A subjetividade da memória, seu ponto essencial e vital, consiste precisamente em rejeitar
a pista ou o armazenamento no passado a fim de inaugurar um novo tempo” (Lévy,1993:132).
2 Em nossa introdução havíamos citado Miller quanto a oposição entre significação e sentido. De nossa
parte, porém, como já assinalamos, optamos por não iniciar uma investigação dos valores desses termos por

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de cada par, mas de tentar delimitar o que é acentuado em um e no outro. Poderíamos

ainda propor uma oposição significação/sentido 1, mas tal empreendimento não nos

permitiria a relação com o primeiro par (retificação/destituição), dadas as definições nas

quais estamos nos pautando.

Desse modo, a relação que estamos em vias de estabelecer diz respeito a essa

segunda memória que se desenha as custas do que é dito, narrado. Sendo, todavia, no

limite, um imperativo que só é integrado de modo parcial a uma história, permanecendo

como motor um “X” em torno do qual justamente as associações - lembranças,

poderíamos dizer - são construídas. Conté coloca a questão nos seguintes termos: “(...)

esse sentido (...) posto em circulação pela análise revela-se delimitado por algo de um

não-senso, que também deve ser levado em conta” (Conté,1995:201). Ou ainda:

(...) se a análise pode apresentar-se como recapitulação da história individual, o


importante é destacar que a reconstituição histórica esbarra num certo número
de impasses e, finalmente,resta algo que não se historiciza de maneira alguma:

tratar-se de um tema vasto e que requer um trabalho próprio, haja vista os diferentes contextos em que
apareceram ao longo do percurso lacaniano. Podemos citar, por exemplo, que no Seminário 3 não
encontramos um campo semântico próprio a cada um desses termos, sendo o termo significação tomado em
diferentes acepções. Todavia, por vezes Lacan parece aproximar significação do registro imaginário: “Que
a significação seja da natureza do imaginário não é duvidoso” (Lacan,1985a:66); ao passo em que o sentido
é utilizado num contexto um pouco diferente: “(...) o sentido, que tem por natureza ocultar-se, acusar-se
como algo que se oculta, mas que se põe ao mesmo tempo como um sentido extremamente pleno cuja fuga
aspira o sujeito em direção ao que seria o cerne do fenômeno delirante, seu umbigo” (idem:294). Esse
parece ser também o caminho escolhido por Milner quando escreve que: “Após tudo, é bem assim que se
legitimam as técnicas de leitura tão características de Freud ou Lacan. Deslocar os acentos, para melhor
fazer ouvir o real da matriz rítmica. Romper as ligações visíveis, para melhor revelar as ligações reais.
Fazer desaparecer as significações, articuladas e completas, para fazer emergir o sentido, sempre lacunar”
(Milner,1995:10, grifos nossos;cf. tb. Lacan,1973:40,44 e 46). Nessa mesma perspectiva, cf. também
Souza,1991:15-16, bem como Nancy e Lacoue-Labarthe (1991:70), que sublinham o fato de que na língua
francesa faltaria uma desinência para passar da “significância” à “significação”: “A significância opera
assim ao menos na borda da significação, isto é, ela toca naquilo que, até aqui, foi excluído por Lacan da
ordem significante”. Para uma retomada dessa questão, em contraposição à uma certa indiferenciação que
comentávamos acima, cf. Lacan,1973:36 e ss. Desse modo, optamos por utilizar o termo sentido como
vizinho ao fora-do-sentido, ao que escapa a cadeia significante, como enunciado há pouco com o termo
significância. O termo significação será utilizado, por conseguinte, de dois modos. Ora como o que é
articulado no basteamento significante (efeito), não havendo ênfase sobre o que resta de tal operação
(produto); ora em referência à miragem de uma totalização da história, ou da memória, tal como
desenvolveremos a partir da chamada ilusão retroativa (ver infra, cap.VII).
1 Ver nota anterior

118
119

esses lugares não-históricos, não dialéticos, constituem nosso campo mais


específico (idem:206-7).

Se falávamos há pouco de uma dimensão da intervenção analítica que escapa

sobremaneira tanto ao analisando quanto ao analista é devido ao fato de encontrarmos

nesse aspecto uma dimensão análoga a aquela da memória.

Assim, se insistimos que o a posteriori não deve ser exclusivamente entendido

como dizendo respeito aos efeitos de significação, é porque parece haver uma

continuidade na produção de sentido que, no limite, de modo concomitante ao

estabelecimento de uma história, não deixa de estar presente uma “exigência” que não se

deixa integrar na rede narrativa, nos mesmos moldes como a propósito da pulsão fala-se

de uma “exigência” ao psiquismo. E é nesse trabalho que vão se compondo produtos que

não são outras coisas senão os sintomas, os sonhos, as inibições e as lembranças. Quer

dizer, manifestações do inconsciente, história, poderíamos dizer, que, entretanto, não

deixam de apontar para “(...) um verdadeiro que não é apreensível num saber ligado”

(Lacan,1985:26, grifo nosso).

A nomenclatura utilizada por Lacan nessa última citação nos remete quase que

instantaneamente aos termos do Projeto, onde facilitação e ligação têm papéis

relevantes. Levando-se em conta que o termo ligação tem sido em português a versão

privilegiada de Bindung, ressaltaremos a seguir dois aspectos que parecem tocar a

problemática da memória, tal como a estamos expondo:

1) Existe uma questão em aberto, ressaltada por Laplanche e Pontalis (1988:350),

quanto à possibilidade de existência de dois tipos de ligação. Uma, que está

iminentemente ligada à idéia de Ego no Projeto, tomado como “a totalidade das catexias

119
120

existentes em determinado momento” (Freud,1990l:437). Outra, que diz respeito

propriamente ao processo primário, uma vez que este não seria “uma descarga maciça de

excitação, mas circulação ao longo de cadeias de representações, implicando ‘laços’

associativos” (Laplanche e Pontalis,1988:350);

2) Ocorre que mesmo no Projeto o aparelho psíquico é marcado por uma série de

características que apontam invariavelmente para a necessidade de um ‘escoamento’ da

energia psíquica, sem a qual o próprio funcionamento encontrar-se-ia comprometido. Ou

seja, poderíamos indagar: qual seria a finalidade do princípio do prazer, levando-se em

consideração que ele está em estreita correlação com o processo primário? Novamente

recorremos a Laplanche e Pontalis: “A livre circulação do sentido e o escoamento total de

energia psíquica até a completa evacuação são para Freud sinônimos. Vemos que tal

processo está no extremo oposto da manutenção da constância” (idem:458).

Das linhas acima é a ambigüidade que comparece como ponto central. Aliás, é

dessa ambigüidade que já algumas vezes nos servimos para tentar circunscrever a

concepção de memória com a qual trabalhamos, e, por extensão, do próprio conceito de a

posteriori. Lembramos que, em linhas gerais, o que tratamos como ambigüidade deve ser

entendido em relação ao que Freud nos mostra em seu texto O Estranho (ver supra,

cap.IV). Ali, no decorrer da análise que Freud efetua do vocábulo alemão das

Unheimliche, chega-se a uma região fronteiriça onde o familiar e o estranho comparecem

como indissociáveis. Limite, onde o que seria secreto e oculto terá vindo à luz...

Mas, o que teria tudo isso a ver com a memória?

Deveremos uma vez mais retornar a algumas passagens do Projeto. Por um lado,

encontramos nesse texto uma caracterização da memória como a que segue:

120
121

As facilitações entre os neurônios constituem, como sabemos, a


memória, ou seja, a representação de todas as influências que
vivenciou a partir do mundo externo (Freud,1990l:490).

Entretanto, é preciso colocar essa definição ao lado de outros aspectos salientados

por Freud no próprio Projeto, bem como com o que a posteridade de seu pensamento

efetuou sobre essa questão.

O principal a nosso ver é que Freud coloca as Bahnungen [facilitações] na própria

genêse da memória (cf. Freud,1990l:409). Ou seja, embora o fato de haver uma

experiência esteja de modo indissociável implicado numa definição de memória - Freud

fala em uma “força eficaz e contínua” (idem:410) -, a importância dela no Projeto não vai

poder ser reduzida a uma possibilidade de ser um espelho do mundo. Muito pelo

contrário, parece ter uma função específica em íntima consonância com a própria

tendência do sistema nervoso, tal como Freud a estabelece em conformidade com o

aparelho psíquico:

Somos (...) obrigados a recordar que a tendência do sistema nervoso,


mantida durante cada modificação, é a de evitar que ele fique
carregado de Q’n ou a de reduzir a carga ao mínimo possível (ibid).

A conclusão que atinge diretamente a questão da memória é a seguinte:

(...) as facilitações servem à função primária (...) (ibid).

Por esse caminho não poderíamos afirmar que a memória está ligada à função

primária? O que, por sua vez, implica levarmos em consideração a formulação de Freud

121
122

no Além, onde “O princípio de prazer parece, na realidade, servir aos instintos de morte”

(Freud,1976c:85).

Estamos salientando, portanto, que de nossa perspectiva a memória em Freud

responde tanto por uma concatenação, como também ao que em torno disso poderíamos

chamar de lacunas (Rascunho K), ou impossibilidade de tradução (Carta 52), e que é

exposto de modo extremamente sutil quando Lacan nos pergunta:

O que será que pode ser a memória de algo que está tão
apagado, uma memória de memória? (Lacan,1985:162).

É dessa memória feita de esquecimento, lembrança-limite que não deixa de ser

sem relação com a pulsão de morte que estamos tratando. Palco por excelência onde Eros

e Tanatos não deixam de se conjugar, e cujos efeitos notamos em atraso, sempre só-

depois.

Prolegômenos a uma história de lobos

Embora Freud desde o Projeto tenha estabelecido teoricamente as distinções entre

lembrança e percepção, notamos que, apesar disso, o aparelho psíquico tratado ali está

praticamente à mercê das alucinações que podem a todo instante assaltá-lo.

Desse modo fica patente que não haveria nenhum mecanismo seguro, quanto ao

aparelho psíquico, de retificação da relação entre ele e o que quer que fosse entendido

como exterioridade.

122
123

Essas observações são relevantes porque de certo modo elas são reeditadas na

relação entre lembrança e fantasia.

Assim, a distinção que poderia parecer fácil a princípio, torna-se no percurso

freudiano algo que não deixa de nos causar surpresas. Aliás, chamar a atenção para essa

falta de simetria nada mais é do que retornar a uma proposição da Carta 69, onde Freud

já nos dizia que no inconsciente não há indicações de realidade.

Freud assinala em Recordar, Repetir e Elaborar [1914] como as modificações da

técnica levaram a uma outra concepção de memória distinta daquela estabelecida durante

o uso da hipnose.

Sobretudo revelou como esse possível regresso a um momento determinante da

doença não poderia mais expressar-se como uma “doce volta ao passado”, já que outros

elementos como a resistência e as lembranças encobridoras - ambas implicando

necessariamente a interpretação - passaram a ter um lugar no conjunto teórico da

psicanálise. É preciso frisar que interpretar no contexto que estamos ressaltando aqui

significa também que não há a priori um compromisso com o verossímil, com o que é da

ordem do factual, do provável ou do coerente. Sendo, todavia, necessário que algum

efeito no sujeito seja alcançado1.

No entanto essa questão não se apresentou a Freud de modo tão definitivo como

nossa exposição poderia fazer crer.

Freud no trabalho que comentávamos há pouco concluiu textualmente que

lembrança e fantasia, enquanto grupos de processos psíquicos, deveriam ser considerados

1Para uma distinção entre verdade e veridicidade, cf. Badiou,1991:66 e ss. Para uma outra distinção, entre
verdade e verossímel, cf. Pirandello,1978:313 e ss.

123
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separadamente (cf.Freud,1987c:195). Ao contrário do que havia feito no Projeto, em

Recordar, Repetir e Elaborar o recordar está em íntima associação com o consciente:

Nestes processos [ fantasias, impulsos emocionais...], acontece com


extraordinária freqüência ser ‘recordado’ algo que nunca poderia
ter sido ‘esquecido’, porque nunca foi, em ocasião alguma, notado -
nunca foi consciente (Freud,1987c:195).

Em seguida, após ter também afirmado que a convicção que o paciente adquire no

decorrer da análise em nada depende do fato de haver recordado ou não um determinado

evento (ibid), ele começa um parágrafo diretamente ligado ao caso do H. dos Lobos:

Há um tipo especial de experiências da máxima importância, para a qual


lembrança alguma, via de regra, pode ser recuperada. Trata-se de
experiências que ocorreram em infância muito remota e não foram
compreendidas na ocasião, mas que subseqüentemente foram compreen -
didas e interpretadas (ibid).

Esse enunciado que fala da impossibilidade de recuperação de um traço do

passado talvez seja um dos pontos cruciais com que estamos lidando. Pois, se estamos

tentando descrever o nachträglich como um operador é justamente porque, no que tange

às questões do tempo e da memória, ele produz uma ligação entre o que não “poderia ser

recordado”, e uma lembrança que sobre esse fundo de impossibilidade encontra vez.

É desse modo que Freud escreve:

Ele [o analista] está preparado para uma luta perpétua com

o paciente, para manter na esfera psíquica todos os impulsos

que este último gostaria de dirigir para a esfera motora; e co-


memora como um triunfo para o tratamento o fato de poder

124
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ocasionar que algo que o paciente deseja descarregar em ação


seja utilizado através do trabalho de recordar (Freud ,1987c:
200).

Sem dúvida essa passagem já revela o que nas últimas páginas será apresentado

como elaboaração [perlaboração/durcharbeiten], entendido aqui como um

ultrapassamento da resistência (idem:202-3), e que em Inibições, Sintomas e Ansiedade

[1926] é especificado como uma resistência própria ao inconsciente, ou, poderíamos

dizer, resistência do Id, ligada estritamente à compulsão à repetição (cf.

Freud,1976d:184).

O conjunto das citações feitas até aqui nos deixa perceber como não haveria em

Freud uma noção exclusiva de memória. Principalmente porque apontam para a

existência de uma diferença radical na abordagem do tema, seja quando ela é tomada

como atributo do consciente, quer dizer, onde tornar consciente o inconsciente é a própria

idéia de cura; seja como uma função do inconsciente, onde mesmo sendo presidido pelo

processo primário, um apaziguamento total das tensões se revela impossível1.

É nesse terreno quase indistinto dos processos primários que começamos a

perceber o limite tênue entre lembrança e fantasia. Apesar das diferenças que o próprio

Freud apontou (ver supra), o solo comum a ambos também foi notado (cf.

Freud,1970:77).

Toda essa questão está associada a este trabalho, na medida em que, em última

instância, nos faz ver como a memória pode ser alçada de uma função utilitarista (ver

1 “(...) no seio mesmo dos processos primários, vemos conservada a insistência do trauma a se fazer
lembrar a nós” (Lacan,1990:57).

125
126

supra, cap. I), para situar-se numa interseção entre o sintoma e a fantasia (fundamental),

ou seja, entre a interpretação e a construção (cf. Miller,1988:103)1.

Dessa perspectiva, nos interessa buscar em Freud o que poderia significar a

urgência no resgate de algum fragmento da infância de seus pacientes, bem como a

tensão que se originava disso, entre justamente o que poderia ser ratificado pela memória,

e a fantasia. Tal dicotomia, apesar de ter se revestido de contornos dramáticos nas

formulações freudianas (cf. Estudos sobre a Histeria, Sobre a Hereditariedade e a

Etiologia das Neuroses e Carta 69), nem por isso deixou de estar presente em trabalhos

posteriores (cf. Homem dos Lobos). Poderíamos, todavia, reduzir todas essas tentativas de

Freud à crença positivista de elaboração de um saber a partir de um dado observável2?

Antes de prosseguirmos gostaríamos de sublinhar que o que estamos tratando

como memória corresponderia ao que Lacan trata como rememoração (ver supra). Do

mesmo modo, se a fantasia fundamental pode ser entendida como a construção de um

articulador entre dois campos distintos, o nachträglich também responderia por uma

função análoga. Qual seja, a de articular memória (seus traços passíveis de retranscrição,

ligados à interpretação, significantes) e tempo (aquilo que “impede que tudo tenha sido

dado de antemão”, corte, descontinuidade), resultando no que poderíamos chamar de uma

memória sutil, “memória de memória”, marcada por um hiato, tal como Lacan nos diz a

1Talvez seja necessário acrescentar que nesse texto Miller define a fantasia como um articulador entre a
dimensão do gozo (mais além do princípio do prazer), com a que corresponde ao princípio do prazer (cf.
Miller,1988:102), ressaltando na diferenciação entre sintoma e fantasia que “em Lacan, nem tudo é
significante” (idem:94). Também é interessante notar que Freud diferencia interpretação e construção do
seguinte modo: a primeira está ligada aos dados positivos de uma análise, uma associação ou uma
parapraxia, por exemplo; o segundo, ao contrário, aplica-se ao que foi esquecido, ao que não comparece
espontâneamente à análise (cf.Freud,1975:295).
2 Para Comte [1798-1857], tanto o espírito humano como as ciências seguem uma linha de
desenvolvimento, explicitada em sua lei dos três estados (teológico, metafísico e positivo). O estado
positivo, em oposição aos anteriores que buscariam respostas absolutas para os problemas do homem, é
caracterizado pela pesquisa de fenômenos observáveis, a partir dos quais uma lei poderia ser formulada. Ou
seja, não uma busca da causa, mas o estabelecimento de relações constantes e invariáveis induzidas a partir
dos fenômenos (cf. Comte,1991:X-XI e 4).

126
127

respeito do H. dos Lobos, que “não chega nunca todavia a integrar sua rememoração em

sua história”(Lacan,1990a:299, grifo nosso).

Essa observação é importante na medida em que a partir dela podemos notar uma

nuance entre duas proposições acerca da rememoração que explicita outras referências já

usadas neste trabalho. Primeiro, a diferenciação entre memória e rememoração,

afirmando estar esta em correlação com a história. Ou seja, a memória tal como deve ser

apreendida pela psicanálise não se relaciona simplesmente com um dado biológico ou

químico inerente a essa faculdade no ser vivo. Mas, pelo contrário, diz respeito a um

universo simbólico que não pode expressar-se senão através da enunciação e do

enunciado do sujeito, compondo um texto que não pode ser reduzido à permanência de

um hábito adquirido. E, tal como no sonho em análise, apenas encontra o seu sentido no

momento em que é enunciado/endereçado a um outro, suposto saber do desejo que

determinou a lembrança, lapso, sintoma ou esquecimento. Nessa perspectiva a lembrança

deve ser também considerada como um efeito do inconsciente.

Todavia, e este é o segundo aspecto a ser ressaltado, não existiria uma

congruência entre rememoração e história.

Essa dissimetria deverá ser ainda mais uma vez elaborada. Entretanto, neste

momento, ela deverá ser entendida como um dos nomes pelos quais reconhecemos os

efeitos do tempo, ou seja, um elemento não inteiramente tomado na rede histórica,

simbólica, e que ainda assim deixa na rememoração suas marcas.

É fácil perceber que a argumentação acima tem conexão com o que em Freud foi

a formulação da hipótese da sedução. Ao assumi-la, Freud teria aceito justamente uma

congruência entre rememoração e história, perspectiva que, no entanto, é alterada por

127
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Lacan. É patente que Freud mesmo tendo reconhecido os limites dessa correspondência,

nem por isso tenha ficado imune aos efeitos de seus corolários.

Assim, nas Notas Sobre um Caso de Neurose Obsessiva - Homem dos Ratos -

[1909], Freud faz um comentário sobre a questão da faticidade das lembranças (cf.

Freud,s.d.:208-211), onde, primeiramente, apresenta uma argumentação sobre as

lembranças da infância onde elas parecem ser caracterizadas como o resultado do

nachträglich e das lembranças encobridoras (idem:209). Todavia, na continuação da nota

Strachey nos adverte como a distinção entre lembranças de infância e fantasias de

infância acompanhou Freud por toda a sua carreira, citando desde Lembranças

Encobridoras [1899] até Moisés e o Monoteísmo [1939]. Nesse momento Strachey,

pautando-se na análise de Moisés e o Monoteísmo, nos diz que em suas últimas obras

Freud insistiria “sempre [em] uma semente de verdade histórica por trás de fantasias

aparentemente mitológicas” (Freud,s.d.:212; cf. tb. Freud,1987c).

Sobre o homem dos Lobos

O H. dos Lobos é um texto que nos interessa muito, não só porque nele

encontramos uma referência explícita ao nachträglich, mas também porque há ali um

entrelaçamento constante entre tempo e memória.

Da memória, porque há uma exigência de que a rememoração venha confirmar a

construção no que diz respeito à cena primária; do tempo1, porque a decisão de delimitar

uma data para a conclusão da análise não deverá ter sido sem efeitos para Serguéi

1 Já havíamos comentado no cap. V que para Lacan a duração total da análise, e a duração da sessão
compõem os modos de incidência do tempo na técnica analítica (cf. Lacan,1990a:298-300).

128
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Constantinovitch Pankejeff, o Homem dos Lobos (cf. Obholzer,1993; Lacan,1990:56;

Deleuze e Guattari,1995:cap.2). Cujos motivos, entretanto, deveremos apreciar de modo

mais detido.

Na verdade, há uma pequena passagem no H. dos Ratos que nos servirá de chave

de leitura aqui. Em certo momento Freud usou de uma metáfora para explicar ao seu

paciente a diferença entre inconsciente e consciente. E para tanto falou de Pompéia:

Eram, com efeito, disse eu, apenas objetos achados num túmulo, e o enterramento
deles tinha sido o meio de sua preservação: a destruição de Pompéia só estava
começando agora que ela fora desenterrada (...) (Freud, s.d.:180, grifos nossos).

No contexto deste trabalho a metáfora acima adquire um lugar privilegiado. Não

só porque fala de um passado que só terá sido a partir do presente, mas, mais

especificamente, nos conta sobre uma destruição que teve vez a partir da descoberta das

ruínas de uma cidade. Quer dizer, um aniquilamento que tem como ponto de partida o

registro na história, como bem poderíamos dizer, no simbólico. E é justamente nesse

ponto de difícil demarcação, onde não sabemos assegurar onde termina o apogeu e onde

começa o declínio, sempre intempestivo, fora da hora propícia, que a fantasia parece

encontrar-se com o real, e donde a memória não parece muito distante.

A questão acima é recolocada por Lacan da seguinte forma:

Lembrem-se do desenvolvimento, tão central para nós, do Homem dos Lobos,


para compreender qual é a verdadeira ocupação de Freud à medida que se
destaca para ele a função da fantasia.Ele se empenha, e de modo quase angustiado,
em interrogar qual é o encontro primeiro, o real, que podemos afirmar haver por
trás da fantasia (...) (Lacan,1990:56). (...) a fantasia nunca é mais que a tela
que dissimula algo de absolutamente primeiro (...) (idem:61).

129
130

É preciso chamar a atenção para o fato de que não é nosso intuito amalgamar

conceitos distintos como o de rememoração e o de fantasia. No entanto, é preciso notar

como esses conceitos são de tal modo solidários - assim como também os de construção

e perlaboração - que se torna quase impossível invocar um deles sem apreciá-lo na

relação estabelecida com os demais.

Se a memória que concerne à psicanálise é essencialmente uma memória

fracassada, é nosso interesse justamente amplificar esse ‘fracasso’, de modo a situá-lo

não como um problema contingente, algo passível de ser superado. É de um fracasso

estrutural nomeado de diversas maneiras ao longo deste trabalho que se trata. Fracasso

que está pari passu com a memória, e ao qual já demos o nome de tempo, como talvez

bem poderíamos tratá-lo como real.

Seja na destruição, ou no encontro absolutamente primeiro, trata-se sempre do

quase impronunciável, ou melhor, que se diz de modo indireto, nas bordas das ruínas, no

balbucio da fantasia. Há como que a denúncia de uma relação onde algo parece

necessariamente perdido, não passível de reapropriação, donde decorre a noção de trauma

como um efeito retroativo da simbolização fracassada1 (cf. Zizek,1993:112).

É essa dupla característica do a posteriori que não nos parece suficientemente

esclarecida nos textos que a ele são dedicados. É certo que ele diga respeito aos efeitos de

significação, estabilização relativa do que poderia ser um desenrolar sem fim da cadeia

significante. E, por conseguinte, cessação, também relativa, da tensão que envolve a

1 Não nos deve passar despercebido que o H. dos Lobos tenha sofrido um episódio paranóide após ter
recebido uma carta de Freud, onde este solicitava que fosse confirmada a veracidade do sonho com os
lobos (cf. Obholzer,1993:9).

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antecipação que o significante mesmo em sua inconsistência produz 1. Todavia, é a mesma

operação que, a um nível distinto, tem como contrapartida o trauma definido como um

efeito retroativo da simbolização fracassada.

Talvez esse seja o modo mais contundente de afirmar uma instabilidade na rede

significante, onde é produzido algo que ao não acomodar-se no simbólico passa a dizer

respeito propriamente a um incurável, ou, para retomar um título de Zizek, um intratável 2.

E é este aspecto que entendemos dever ser sublinhado no conceito de a posteriori.

Ou melhor, trata-se de acentuar que os dois aspectos são na verdade indissociáveis, o que

parece conferir a esse conceito um estatuto um pouco diferente daquele onde a vulgata

encerrou-o. Tal situação parece invocar o desenho de M.C. Escher, Mans dessinant,

justamente porque acentua o entrelaçamento contínuo entre dois termos - sentido e

trauma - que muito facilmente poderiam ser vistos como a resultante de dois processos

diferentes. Tal proximidade nos parece relançar ambos os termos, bem como o conceito

de a posteriori, a um regime que poderíamos chamar propriamente psicanalítico.

Se falávamos há pouco do tempo como em relação com algo necessariamente

perdido, não era nosso objetivo exaltar a nostalgia3, o “seio perdido”, ou qualquer coisa

do gênero. A invocação de uma “perda” aqui ainda que talvez não seja inteiramente

1 Por exemplo na frase “Eu... quero... dizer...” cada significante associado ao intevalo seguinte produz um
efeito onde algumas palavras são esperadas, ainda que o advento delas possa ser inteiramente inesperado,
produzindo efeitos de sentido inantecipáveis. Talvez pudéssemos recorrer a um exemplo mais famoso e
ilustrativo da psicose, como o dado por Schreber e o sistema do não-falar-até-o-fim. Schreber através desse
sistema nos informa a tensão em que se via lançado diante das frases incompletas proferidas pelas vozes:
“Agora eu vou me”, “Você deve de fato”, “Nisto eu quero”, “Mas agora ele deveria”, “Mas isto era
realmente”, “Falta-nos agora” (cf. Schreber,1995:175 e ss).
2 Para uma aproximação entre o incurável na psicanálise e o sinthome lacaniano parece muito interessante
a análise feita por Zizek do conto de Kafka, Um médico Rural (Zizek,1992: 169 e ss; Kafka,1990: 09 e ss).
3 Nostalgia é uma palavra criada do século XVII para introduzir no meio médico a noção popular de
Heimweh, de “doença do país”, patologia de dor moral ligada ao exílio (cf. Bolzinger,1989:304). O marco
dessa invenção parece ter sido a tese de Johannès Hofer, defendida em 22 de junho de 1688 na
Universidade de Bâle. Essas referências são interessantes na medida em que alguns autores creditam o
nascimento da psicologia clínica justamente a essa tese, ou, ao menos, a esse tipo de questão (cf. Bolzinger,
1989a: 310 e 321).

131
132

adequada é correlata à proposição de um sujeito “barrado” [$]. Ou seja, um sujeito

evanescente, dividido entre enunciado e enunciação, e que se atualiza no interstício de

uma sucessão significante [S1-S2].

Pravda e istina

É o próprio Serguéi quem nos adverte que a língua russa possui duas palavras para

designar “verdade”: pravda, que parece estar ligada ao sentido corrente do termo,

passível de uma verificação; e istina, “a verdade que se oculta por trás das coisas”

(Obholzer,1993:22). Ainda que não seja nosso objetivo realizar uma investigação sobre a

questão da verdade na psicanálise, que por si só exigiria um trabalho específico, é

impossível não se tornar sensível aos desdobramentos que esse tema implica tanto em

Freud, como em Lacan, e, em particular, nesse caso clínico. É preciso ter em vista

inclusive a importância que a construção da cena primária veio a ter na argumentação

freudiana, e de que modo a verdade aí vem conjugar-se justamente com a impossibilidade

de uma representação que pudesse confirmar a cena como factual.

A querela com Jung em torno do papel da sexualidade infantil é sem dúvida

decisiva para demarcar a importância que o caso do Homem dos Lobos tem para Freud,

sobretudo se nos detivermos no número de vezes em que ele será citado direta ou

indiretamente na obra freudiana (cf. Freud,1976e:15). Freud nesse texto parece opor-se à

hipótese de Jung sobre os fantasmas retroativos [Zurückphantasieren]. Conceito que por

sua vez opunha-se diretamente à hipótese freudiana de uma sexualidade infantil, ainda

que o próprio Freud por inúmeras vezes, através do conceito de lembranças

132
133

encobridoras, por exemplo, tenha salientado que a retroação seria um dos modos de

manifestação do inconsciente (cf. Freud,1976e:129).

Talvez seja nessa perspectiva que possamos entender a insistência com que Freud

busca os indícios da cena primária. Mas também, para além do factual que a busca pode

nos sugerir, não é menos certo que a questão da causalidade não emerja aí com toda a sua

força. E quanto a isso, uma causa buscada em seu passado, uma série de textos do

primeiro período freudiano - Estudos sobre a Histeria, Carta 69, Sobre a

Hereditariedade e a Etiologia das Neuroses, e mesmo Lembranças Encobridoras -

parecem confirmar esse objetivo.

Todavia, é preciso percorrer todo o texto e sentir as aporias com que Freud

confronta-se nesse caso. Aquela que revela-se como crucial é sem dúvida a da exigência

de um tempo marcado para a conclusão da análise. Freud parece ter lançado mão desse

recurso ao constatar a falta de efeitos da interpretação sobre o Homem dos Lobos. É

nessa problemática propriamente temporal - o passado remoto da cena primária e o

futuro como uma data de conclusão marcada para o fim da análise - que encontramos o

nó do caso, quer dizer, o entrelaçamento que o a posteriori promove entre o tempo e a

memória.

Se por um lado a necessidade de Freud em propor uma data para o fim da análise

poderia ter significado a confirmação da cena primária enquanto evento, forçando uma

ratificação do mesmo pelo viés da rememoração e culminando na eliminação dos

sintomas, o que encontramos, como assinalado acima, é uma decisão motivada por um

quadro onde nem a interpretação nem a rememoração pareciam acudir Freud para um

desfecho favorável.

133
134

A par das oscilações que atravessam todo o texto acerca da realidade da cena e do

seu significado, é preciso não perder de vista o fato do próprio Freud marcar os intervalos

a partir dos quais o sentido da cena vai sendo construído: o relato dá-se quando o paciente

contava com 23 anos, o sonho remonta aos 4, e quando da cena propriamente dita o H.

dos Lobos não deveria ter mais do que 1 ano e meio, segundo estimativa de Freud (cf.

Freud,1976e:63). É a partir dessa descontinuidade que Freud nos convida a adotar “uma

convicção provisória da realidade da cena” (Freud,1976e:56). Tal convicção expressa-se

na hesitação em usar o termo ‘recordação’ para referir-se à cena, preferindo num primeiro

momento aquele de ‘ativação’ (cf. Freud,1976e:61).

Entretanto, o que mais nos chama a atenção neste momento, quanto ao caso do

Homem dos Lobos, é a tradução usada na ESB de ação ou revisão preterida (idem:63,66

e 67). Freud ilustra essa ação ou revisão preterida da seguinte forma:

Com um ano e meio, o menino recebe uma impressão à qual é incapaz de


reagir adequadamente; só consegue compreendê-la e ser afetado por
ela quando a impressão é revivida por ele aos quatro anos; e somente
vinte anos mais tarde, durante a análise, está apto a compreender, com
processos mentais conscientes, o que então acontecia com ele. O paciente
desconsidera, justificadamente, os três períodos de tempo e coloca seu ego
presente na situação que se passara havia muito (idem:63).

Essa apresentação deverá ainda ser retomada no próximo capítulo quando viermos

a distinguir o a posteriori da ilusão retroativa. Todavia, para o momento, devemos nos

ater à continuidade da nota acima, onde Strachey realiza um histórico sobre onde a noção

de ação preterida pode ser encontrada em Freud, bem como efetua uma distinção com

relação ao uso inicial que se fez dela. Ele afirma que:

134
135

(...) nesses primeiros esboços da teoria, os efeitos das cenas primárias foram
preteridos pelo menos até a época da puberdade, e as próprias cenas primá -
rias jamais foram imaginadas acontecendo numa idade tão prematura como
no caso presente (Freud,1976e:63).

Ora, podemos dizer pelo que expusemos até o momento que justamente o a

posteriori não deveria ser entendido como um efeito que é simplesmente adiado, como se

todas as suas conseqüências pudessem, em tese, ser previstas antecipadamente. Assim, o

“demônio de Laplace1” seria o representante mais certo dessa situação. Do mesmo modo,

não nos parece muito fecundo coordenar o a posteriori com um possível efeito de soma

que a repetição pudesse gerar.

É preciso que nos atenhamos às duas vertentes possíveis de leitura do a posteriori

(revisão/ação preterida e invenção/construção). O que significa que se há algo que

possamos denominar propriamente invenção, não é menos certo que responderia às

particularidades do pensamento freudiano. Uma invenção trágica, tal como a enunciação

do Oráculo, que encontrando sua ratificação num tempo futuro participa também desde o

primeiro instante da efetivação de seu vaticínio. No entanto, é preciso acrescentar que o

enunciado do Oráculo é um enigma por excelência. Quer dizer, onde o consulente vem

buscar uma resposta sobre a sua origem (como Édipo, por exemplo), o Oráculo oferece

1 É no Ensaio Filosófico sobre as Probabilidades [1814], que Laplace introduz o conceito de uma
inteligência superior - hipotética - que poderia dar conta do futuro e do passado, já que o estado presente
do universo seria entendido como causado pelo anterior e causa necessária daquele que virá (cf.
Moreira,1992).

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136

um caminho, onde o sujeito será, de certa forma, a própria resposta2. “Ele [o oráculo] não

engana, ele dá ao homem a oportunidade de errar” (Vernant e Vidal-Naquet,1977:76).

Avançando um pouco mais, talvez pudéssemos dizer que o próprio fio da navalha

onde Freud se coloca no caso do Homem dos Lobos, a respeito da existência da cena

primária, também aponta para um passado constituído no devir como um encontro

impossível - da relação sexual, para falarmos com Lacan -, traumático, onde o saber só

parece poder incidir de modo marginal. A análise, por esse viés, seria então o modo de ir

pelas bordas, de modo indireto (como Freud nos fala no caso Dora), produzindo o

intempestivo, tempo que opera entre os significantes, quase sinônimo para o sujeito

lacaniano [$], fadado a errar - no limite - sem o esteio de um “saber-de-si”, ou de um

significante próprio que pudesse suturar memória e história.

Memória, sonho

Ainda que estejamos ressaltando as implicações do a posteriori no caso do H. dos

Lobos, é preciso também notarmos a importância das lembranças encobridoras no

conjunto do texto.

As referências diretas ou não são inúmeras. E na realidade trata-se de uma

composição lembranças encobridoras-construção (cf. Freud,1976e:70) que praticamente

força Freud a uma nova argumentação a respeito da memória no interior mesmo do que

vinha expondo em sua História de uma Neurose Infantil.

2 Édipo, por exemplo, foi não apenas o “pé inchado” (oîdos), mas também o homem que “sabe (oîda) o
enigma do pé”. Encontramos assim em Oidípus o verbo oîda: “eu sei”, associado a poús, o pé, “marca
imposta desde o nascimento àquele cujo destino é terminar como começou, um excluído, semelhante a um
animal selvagem que seu pé faz fugir” (...) (cf. Vernant e V.-Naquet,1977:90-91).

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Se a referência às lembranças encobridoras invoca de certo modo uma

“representação indireta” da verdade, ou seja, uma formação compósita onde diferentes

estratos revelariam uma cena não imediatamente clara ao analisando, é certo também que

ao falar em construção Freud nos indica a necessidade de introduzir um elemento na

escuta que não se revelaria a princípio espontaneamente (ibid).

No entanto, Freud procura ultrapassar a antinomia que poderíamos ler no

parágrafo precedente ao propor uma certa equivalência entre memória e sonho: “(...)

sonhar é outra maneira de lembrar” (idem:71).

É a partir dessa ligação que continuaremos nossa pesquisa com o grafo do desejo

de Lacan. Continuidade que quer extrair do binômio sonho-lembrança a radicalidade da

experiência de uma ‘decomposição imaginária’, tal como Lacan a descreve a partir do

Sonho de Injeção de Irma (cf. Lacan,1985:212). Radicalidade que não pode ser outra

senão a da conjugação entre “a carne que jamais se vê, o fundo das coisas, o avesso da

face, do rosto, os secretados por excelência, a carne da qual tudo sai, até mesmo o íntimo

do mistério (...)”; e a fórmula, símbolo por excelência, que não encontra outra explicação

senão a da remissão aos termos que a compõem, da trimetilamina (idem:197 e 201).

É a partir desse encontro impossível - do símbolo e do inominável - que

podemos seguir a afirmação de Lacan segundo a qual a essência da descoberta freudiana

é o descentramento do sujeito com relação ao ego (idem:190). Descentramento que nos

leva mais uma vez a perguntar o que na lembrança pode ser mais do que apenas um “não

querer esquecer”. Ainda que essa memória seja feita de esquecimento. Quer dizer,

memória de uma lacuna, memória-sonho.

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138

O grafo1: a posteriori e memória

Che vuoi? É com essa pergunta que Álvaro se vê interpelado por Belzebu no

romance de Cazotte, O Diabo Enamorado (cf. Cazotte,1992). Do mesmo modo, é essa a

pergunta que reluz no topo do grafo do desejo durante a sua elaboração. Do romance ao

grafo parece ser a mesma questão que captura nossa atenção. É a partir dela que a história

do analisando vai sendo composta na transferência, assim como Álvaro nos deixa ver o

(des)encontro entre as suas demandas e o que efetivamente o pacto com Belzebu tinha a

oferecer-lhe.

Que queres? É a partir dessa interrogação que Belzebu assume a graciosa forma

de Biondetta, seduzindo Álvaro, e iniciando com este uma viagem que não é

insignificante em seus percalços. Ao final do romance, quando Belzebu volta à sua forma

original, com a apavorante “cabeça de camelo”, é a mesma pergunta que retorna,

tenebrosa, sob uma voz de trovão (cf. Cazotte,1992:100). Talvez devêssemos interromper

a comparação neste ponto, não podendo concluir por um Álvaro-analisando. Todavia,

poderíamos ainda nos perguntar se entre os dois momentos em que o “Che vuoi?”

comparece com toda a sua “força terrível” (idem:26 e 100) não encontraríamos dois

Álvaros distintos...

Mas, novamente, em que poderíamos relacionar esse brevíssimo comentário do

Diabo Enamorado [1772] com um trabalho sobre a memória e o tempo na psicanálise?

1 Não iremos proceder a uma análise exaustiva do grafo do desejo, nem do texto de Lacan, Subversão do
Sujeito e Dialética do Desejo. Para tanto reenviamos os interessados, em primeiro lugar, ao próprio texto
lacaniano, e, em seguida, a Eidelsztein (1993) e Dor (1990). De modo menos sistemático, mas tão
importante quanto os anteriores, conferir também Zizek (1991 e 1992).

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À parte o próprio romance ter sido escrito em primeira pessoa e invocar as

lembranças do protagonista, o que nos interessa propriamente é essa interrogação

“terrível”, bem como o seu lugar no grafo do desejo de Lacan.

Do mesmo modo, o mote que justifica prosseguirmos este capítulo com o estudo

do grafo vamos encontrá-lo na frase de Lacan, já citada, para quem “[o Homem dos

Lobos] não chega nunca todavia a integrar sua rememoração em sua história”.

Assim, essa segunda sentença vem ecoar sobre o “Che Vuoi?” para sublinhar um

aspecto que neste trabalho é fundamental, qual seja, a de uma defasagem entre memória e

história, e o modo como o nachträglich aí comparece.

Já havíamos assinalado que o grafo do desejo de Lacan foi construído ao longo de

dois Seminários (As Formações do Inconsciente [1957-58] e O Desejo e sua

Interpretação [1958-59]), sendo retomado nos Escritos com Subversão do Sujeito e

Dialética do Desejo [1966]1.

Assim, de que modo essa “pergunta terrível” se ordena com os demais

componentes do grafo para caracterizar essa defasagem entre história e memória?

Não terá sido por acaso que nos encontramos há pouco com o tema da verdade na

psicanálise. Isso porque se começamos esta seção com o “Che Vuoi?”, também já

havíamos apontado para o fato de que o grafo compõe-se de elementos que talvez não

pudessem ser tomados exclusivamente como significantes (voz, jouissance). Há,

inclusive, um significante que é definido justamente como exceção na rede significante,

sendo chamado, paradoxalmente, S(A), “significante de uma falta no

Outro”2(Lacan,1990d:798).
1 Tendo sido todavia apresentado em 1960 nos Colóquios Filosóficos Internacionais, em Royaumont (cf.
Lacan,1990d:773).
2 Lacan fornece ainda uma outra definição no sentido que estamos expondo aqui: “(...) posto que a bateria
dos significantes, enquanto que é, está por isso mesmo completa, este significante não pode ser senão um

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Então, se salientamos essa dissimetria entre história e memória trata-se de algo

homólogo ao que podemos acompanhar no elaboração do grafo. E a primeira indicação

dessa composição, onde um elemento está sempre em vias de subtrair-se do conjunto,

podemos apreciá-la na relação apresentada por Lacan entre saber e verdade.

Lacan nesse momento nos apresenta a verdade como “não sendo em si mesma

senão o que falta para a realização do saber” (Lacan,1990d:777). E continua: “ A verdade

não é outra coisa senão aquilo do qual o saber não pode inteirar-se de que o sabe senão

fazendo atuar sua ignorância” (ibid).

Já afirmamos que o objetivo dessa dissertação não é o de fazer um comentário

sobre o tema da verdade da psicanálise. É preciso ter em vista que nossa pretensão é a de

delimitar de que modo essa questão se relaciona com o a posteriori, no âmbito do

Subversão, sendo esta mais uma maneira de apontar para o “fracasso da memória”, tal

como o estamos apresentando neste capítulo.

Teremos oportunidade, em breve, de retomar o mito de Édipo e Antígona, mas é

possível notar já nesse texto de Lacan de que modo nos encontraremos com aquelas

narrativas. É na figura do escravo-mensageiro da antigüidade que nos deparamos com

uma metáfora da memória que condiz, em parte, com aquela que estamos expondo aqui.

Lacan quando faz uso desse episódio frisa a oposição entre conhecimento e saber, sendo

esse escravo aquele que caminha em direção à morte desconhecendo os signos que estão

inscritos sobre seu próprio corpo (idem:783). Do mesmo modo, não seria a memória na

psicanálise, num primeiro momento, uma reconstrução dos significantes que teriam

determinado a vida do sujeito, nos quais encontra-se, a princípio, alienado? (cf.

traço que se traça de seu círculo sem poder contar-se nele. Simbolizável pela inerência de um (-1) ao
conjunto dos significantes” (Lacan,1990d:799).

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Soller,1991:56). Talvez seja essa via que leva Lacan a definir a sessão como a “ruptura de

um falso discurso” (Lacan,1990d:780), afirmando que “a análise faz (...) dos ocos do

sentido os determinantes de seu discurso”(ibid).

É no primeiro momento do grafo, chamado didaticamente grafo 1 (idem:784), que

é exposto o ponto de basta (ou ponto-de-estofo1, tradução adotada no livro de Dor). A

função desse ponto seria o de “deter o deslizamento indefinido (...) da significação”

(idem:785).

Grafo 1

O ponto de basta responde então por essa característica de retroação cara à

significação, com relação a qual já fizemos alguns comentários. E é devido a essa

retroação que encontramos no lado esquerdo do grafo, no que poderia ser chamado

diacronicamente de seu “ínicio”, atributos como o de pontuação, produto acabado,

1 Talvez aqui valha a pena lembrar que o point de capiton é usado para unir os dois pontos centrais de
uma almofada, de modo a conferir-lhe uma sustentação flexível.

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associado, por exemplo, ao s(A). Do lado direito há por sua vez o chamado A, o Outro,

tesouro do significante2 (ibid).

2 É necessário sublinhar a preocupação de Lacan em não reconhecer o Outro [A] como código, motivo pelo
qual o denomina de tesouro do significante: “A é o lugar do tesouro do significante, o qual não quer dizer
do código, pois não é que se conserve nele a correspondência unívoca de um signo com algo, senão que o
significante não se constitui se não for de uma reunião sincrônica e numerável donde nenhum se sustenta
senão pelo princípio de sua oposição com cada um dos outros” (Lacan,1990d:785). Tal preocupação parece
não ter sido levada em conta na tradução de Dor (cf. Dor,1990:153). Eidelsztein, por sua vez, procura tanto
quanto possível enfatizar essa diferença (cf. Eidelsztein,1993:68 e ss.).

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Grafo 2

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É importante analisarmos o grafo em seus dois níveis, acompanhando o modo

como ele se reduplica quando em lugar de s(A) e A, encontramos S(A) e ($D). Sendo

tanto A quanto ($D) reconhecidos como “tesouro do significante” (idem:796). Para

acompanharmos essa relação entre os dois níveis, talvez seja necessário retomarmos

algumas considerações do Seminário 7[1959-60], tal como já o fizemos em nosso

capítulo IV.

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Grafo 3

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Um dos traços que entendemos ter ressaltado quando de nosso comentário ao

Seminário da Ética, foi aquele que dizia respeito às referências precisas quanto a

memória e que conferiam-lhe um duplo estatuto. De certa forma, um aspecto comum aos

dois textos parece ser o chamado “caráter histórico da pulsão”, retomado no grafo quando

Lacan refere-se à pulsão como “tesouro dos significantes”, afirmando ser a sua notação

[($D)] a que “mantém a sua estrutura ligando-a à diacronia” (ibid).

Retomaremos duas citações utilizadas no capítulo IV para darmos continuidade a

esta exposição:

A pulsão de morte dever ser situada no âmbito histórico, uma vez que ela
se articula num nível que só é definível em função da cadeia significante, isto
é, visto que uma referência, que é uma referência de ordem, pode ser situada
em relação ao funcionamento da natureza. É preciso algo para além dela, de
onde ela mesma possa ser apreendida numa rememoração fundamental, de tal
maneira que tudo possa ser retomado, não simplesmente no movimento das
metamorfoses, mas a partir de uma intenção inicial (Lacan,1988:258).

(...) a função da memória, a rememoração, é rival (...) das satisfações que


que ela é encarregada de assegurar. Ela comporta sua dimensão própria,
cujo alcance vai mais além dessa finalidade de satisfação. A tirania da me-
mória, é isso que se elabora naquilo que podemos chamar estrutura (idem:
272).

As duas citações anteriores cumprem um duplo objetivo. Primeiro, o de ligar a

pulsão ao significante, o que nos alerta a não tomá-la como uma entidade autônoma, seja

de caráter biológico ou metafísico. Entretanto, em segundo lugar, ressalta que essa

característica não é a única a ser levada em consideração. Essa mesma argumentação já

foi exposta por nós, em outros termos, quando acentuamos o que parecia ser uma

preocupação comum a Freud e Lacan quanto às implicações entre o princípio do prazer e

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a pulsão de morte. Tais indicações chegaram mesmo a situar a pulsão de morte como

primordial para o funcionamento do princípio do prazer. Essa ordenação é

particularmente importante neste trabalho, haja vista que a memória é tomada ora como

regida pelo princípio do prazer (cf. Lacan,1988:272), ora relacionada a “uma dimensão

própria”, não se restringindo a uma possível função de satisfação.

Uma outra via que podemos seguir para falarmos dessa heterogeneidade no grafo

foi assinalada por Eidelsztein. Ele afirma ser o grafo do desejo tanto a primeira referência

no tocante à noção de letra na obra lacaniana, como também a introdução do objeto a em

seu ensino1 (cf. Eidelsztein,1993:14-16).

O caminho que seguimos ao longo dos capítulos anteriores, encontra aqui, de

certa forma, um balizamento mais estreito. A pergunta que devemos fazer é a seguinte:

Por que insistimos na dissimetria entre memória e história proporcionada pelo tempo? O

grafo nos valendo nesse contexto pela sua constituição não homogênea, ou seja, diz

respeito ao significante, mas não é inteiramente significante. Dissimetria que pode ser

entendida, portanto, como a impossibilidade de identidade entre o sujeito e sua história,

ou do sujeito consigo mesmo, daí decorrendo o matema $. Em outras palavras, se o

matema da rememoração pode ser escrito como S1/$ (revelando assim o discurso do

mestre1 ), não é menos certo que, ao deparar-se na análise com os significantes-mestres

que teriam constituído sua história, o sujeito não possa, por essa via mesma, reencontrá-

los em uma nova posição. A análise seria portanto um evento a partir do qual a posição de

agente poderia vir a ser ocupada pelo objeto a, revelando assim uma face do discurso do

1 Essa distinção entre letra e significante que está tendo um lugar privilegiado em estudos recentes
(cf.p.ex.: Milner,1995), importante também para esta investigação, será para nós, todavia, o indicativo de
um possível futuro trabalho.
1 S1/$ - S2/a

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analista1 . E, ao que nos parece, tal operação estaria inteiramente de acordo com o que já

foi exposto como destituição subjetiva (ver supra). É nesse contexto que parece caber

uma apresentação do a posteriori que não o resumisse exclusivamente à sua vertente de

efeito de significação. Vertente sobre a qual, todavia, não somos os primeiros a tentar

exercitar uma crítica (cf. Cain,1982).

1 a/S2 - $/S1

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Grafo completo

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O grafo: a posteriori e esquecimento

Já fomos advertidos por Lacan quanto à especificidade do significante em sua

obra, em particular no que tange à problemática da representação (cf. Lacan,1992:27-28).

Lacan define o significante como sendo “aquilo que representa um sujeito para outro

significante” (ibid). Daí a retificação que faz quando afirma que o S1 representa alguma

coisa: “Chamar isto de alguma coisa já é dizer muito - ele representa x, que é justamente

o que tem que ser elucidado nessa história1” (ibid).

Essa rápida incursão pelo Seminário 17 - O Avesso da Psicanálise - [1969-70],

nos informa que a definição de significante não contém a possibilidade de uma

totalização, ou seja, o significante não representa, não estabelece uma correspondência

entre partes, como uma primeira vista sobre o matema da rememoração poderia fazer

pensar.

Todo esse Seminário visa a apresentação dos quatro discursos, e, em particular, o

papel do significante-mestre [S1]. Portanto, a fim de continuarmos nossa investigação,

nos deteremos ainda em mais uma citação de Lacan oriunda do Avesso:

[Quanto ao S1] o sujeito que ele representa não é unívoco. Está representado,
é claro, mas também não está representado. Nesse nível, alguma coisa fica
oculta em relação a esse mesmo significante (idem:83).

1 Matema da rememoração: S1/$.

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Todavia, quando Lacan trata do S2, sobretudo quando está em perspectiva o

discurso universitário2 , ou seja, o discurso do saber na posição de agente, caracteriza-o

como uma aspiração a tudo-saber (idem:29). Decorre das citações anteriores a oposição

entre S1 e S2. O primeiro sendo puramente performativo (idem:59), ligado a um fiat. E o

segundo, sendo o saber propriamente dito, respondendo como que pelo estofo,

‘justificativa’ para o primeiro. Grosso modo, poderíamos recorrer a uma metáfora cujas

personagens seriam um rei e seus ministros. Seria a partir da vontade real que os

ministros deveriam descobrir e legitimar os meios necessários para sua realização.

Para o momento, é preciso acentuar não só a distinção comentada acima entre S1

e S2, como também o fato de que quanto ao S1, sua característica maior não seria

propriamente a de representar, mas de ser “performativo”, ao mesmo tempo em que

“alguma coisa permanece oculta em relação a esse mesmo significante”.

Ora, em que tais características poderiam nos auxiliar numa leitura do grafo?

De saída podemos entender por que Zizek situa o S1 como correlato do ponto-de-

basta. É o significante que vai impor uma ordenação, significação/sentido, ainda que

nada o ligue de antemão a essa determinação. Ou seja, é só-depois que ele é reconhecido

como tal. Como escreve o próprio Zizek:

O ponto de basta é o ponto através do qual o sujeito é costurado ao significante e,


ao mesmo tempo, é o ponto que interpela o indivíduo como sujeito, dirigindo-se
a ele através do apelo a um certo significante-mestre (“Comunismo”, “Deus”,
“Liberdade”, “América”); numa palavra, é o ponto de subjetivação da cadeia
significante (Zizek,1992:100).

2 S2/S1 - a/$

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Do mesmo modo, e ainda no primeiro nível do grafo, podemos arriscar uma

correspondência com as definições do S1 citadas acima1. O segmento s(A)-A tem como

base o vetor SignificanteVoz. Tal construção nos sugere já nesse primeiro andar do grafo

que a relação de basteamento significante tem dois resultados distintos. Por um lado, um

efeito que pode ser entendido como significação [s(A)]; e por outro, um produto, a voz,

que mesmo sendo oriunda da estrutura da linguagem não se confunde com o primeiro

resultado.

A voz, como já ressaltamos através de Zizek, parece comparecer nas formulações

lacanianas como um resíduo inerente a produção de sentido, ou, em outros termos, à ação

de basteamento da cadeia significante. É esse modo de defini-la que nos sugere essa outra

vertente do a posteriori e, por extensão, da memória, onde o caráter não representativo do

significante se vê reforçado. Ao passo em que qualquer totalização do saber, ou, em

nossos termos, da história, encontra-se impossibilitada no que se refere ao sujeito tal

como ele é tomado na teoria psicanalítica2.

Faremos a seguir uma citação de Zizek onde ele trata particularmente da definição

da voz no grafo, tal como a temos delineado:

Mas, por que a parte direita do vetor de significante S-S’, ou seja, a parte
subseqüente ao ponto de basta, é designada como “voz”? Para resolver
esse enigma, devemos conceber a voz de uma maneira estritamente laca -
niana, isto é, não como portadora de plenitude e de autopresença da sig -
nificação (no sentido de Derrida, que assim analisa a concepção husserli-

1 Para o que segue cf. Lacan,1990d:784, 788, 795 e 797. Acrescentamos apenas que o grafo da página 788
apresenta incorretamente S(A) ao invés de s(A).
2 Zizek quando trata a voz em proximidade com o conceito de voz acusmática nos remete ao livro de
Michel Chion, la Voix au cinéma, Paris, Cahiers du cinéma,1992, o qual não nos foi possível consultar (cf.
Zizek,1993:101). Eidelsztein também chama atenção para esse ponto onde a voz seria tomada como
antípoda do efeito de significação, ainda que numa perspectiva um pouco diferente daquela adotada por
Zizek: “[A voz seria] uma dimensão que acompanha o significante que, como tal, carece de significação e
que tem a propriedade de escapar como objeto ao nada que o significante produz no mundo dos objetos”
(Eidelsztein,1993:201).

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ana), mas como um objeto sem significação, um resto objetal rejeitado


pela operação de significação, pelo basteamento. A voz é o que resta de -
pois de termos subtraído do significante a operação retroativa de bastea -
mento que produz a significação. A mais clara encarnação concreta des -
sa condição objetal da voz é a voz hipnótica: quando uma mesma palavra
nos é repetida indefinidamente, ficamos desorientados, e essa palavra per-
de seus últimos vestígios de significação; o que resta é somente sua pre-
sença inerte, que exerce uma espécie de poder hipnótico e sonífero - é a
voz como objeto, como o dejeto objetal da operação significante (Zizek,
1992:102-103).

Essa atenção dedicada ao conceito de voz no grafo é importante para que se possa

entrever a possibilidade de uma definição do a posteriori onde este não se resumiria a

operação de basteamento significante, tal como definida anteriormente.

Assim, se é o matema da rememoração [S1/$] que nos indica o percurso do

sujeito em análise, onde ele encontra a possibilidade de retomar os significantes-mestres

que compuseram a sua história, tal não bastaria, contudo, para afirmar que a memória, a

análise e o sujeito resumam-se a relação S1/$.

Essa outra memória a qual visamos não seria constituída senão com o “dejeto” do

círculo da significação - tal como ilustrado no primeiro nível do grafo. É esse “resto”

que já tivemos oportunidade de nomear como “memória paradoxal” ou “intempestiva”, e

que encontra na formulação freudiana de representação-limite uma certa equivalência.

Memória que acaba por não oferecer nenhuma resposta, como talvez pudéssemos supor

de um passado reencontrado, mas que pode vir a destituir o sujeito de sua posição de

subordinação aos referidos significantes para que um outro saber possa então advir em

um novo lugar (cf. discurso do analista).

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155

Ainda que tenhamos ressaltado a importância do segundo nível do grafo, nos

detivemos quase que exclusivamente no vetor SignificanteVoz, onde nos pareceu mais

manifesto as relações que gostaríamos de comentar. Realizaremos ainda, portanto, uma

pequena apreciação quanto ao segundo andar do grafo, nos detendo no matema S(A).

Partiremos, assim, primeiro, de sua definição: “significante de uma falta no

Outro”; e, segundo, de sua posição no grafo. Se nos lembrarmos que a designação de

“tesouro do significante”, sendo A ou ($D), está invariavelmente no lado direito do grafo,

rapidamente nos ocorrerá que esse significante está numa posição ímpar com relação aos

demais.

Eidelsztein resume o parágrafo precedente do seguinte modo:

(...) há um significante, S(A), que escapa a este lugar do significante e que,


além disso, é o ponto a partir do qual se fecha o círculo da significação
(Eidelsztein,1993:189).

É exatamente esse último traço que nos chama atenção. Um significante da falta

no Outro que se situa no ponto onde se fecha o círculo da significação. De ($D) para

S(A), é a falta de um significante que adquire relevância, tal como no nível inferior a

cadeia significante cindia-se em duas resultantes, impossibilitada de encerrar-se entorno

de um significado.

Desse modo poderíamos até chegar a dizer que é pela via de um esquecimento que

essa memória se presentificaria ao sujeito, dada a impossibilidade de um significante que

viesse de algum modo integrar suas lembranças. Trata-se de um limite muito tênue entre

lembrança e esquecimento que é necessário manter em vista. Pois, se o significante tem a

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sua função, por exemplo, no que citamos acima como matema da rememoração, não é

menos certo que o próprio Lacan refira-se a ele como oblivium, esquecimento1.

Poderíamos entender esse esquecimento originado do significante a partir de

algumas considerações anteriores tomadas do próprio Lacan. A primeira, que o

significante não representa propriamente alguma coisa, mas um x, enigma, que seria no

contexto do matema da rememoração o próprio sujeito [$]; a segunda, que o sujeito

representado pelo significante, não o é integralmente, restando alguma coisa oculta em

relação a esse mesmo significante. Entre uma citação e outra o acento, como já fizemos

em momentos anteriores, nos parece dever ser colocado sobre uma defasagem ou um

fracasso do significante que poderíamos chamar esquecimento.

Seria preciso apenas ratificar que esse fracasso não significaria a possibilidade de

uma outra alternativa, que pudesse operar de uma melhor maneira. O fracasso é o próprio

modo como o significante opera, sendo o esquecimento a via pela qual Freud inventou a

psicanálise, descortinando dali uma memória a qual deu o nome de inconsciente,

memória do que o homem esquece (cf. Lacan,1988:282). É nessa perspectiva que o

“significante de uma falta no outro”, assim como a voz enquanto objeto a, podem nos

sugerir uma “memória-lacuna”, ao invés da tão propalada “lacuna na memória”2.

Do exposto acima, talvez pudéssemos concluir que a voz (objeto a), possa servir

como índice de um esquecimento visceral, tanto mais presente quanto delimitado pela

rede significante, próximo do que Freud nos dá a ver, por exemplo, em seu Mecanismo

1 Não estamos aqui fazendo uso do contexto original no qual Lacan explicitava essa relação. Esclarecemos,
contudo, que ele anunciava ali sua intenção de precisar a distinção entre censura e recalque, apontando o
primeiro para algo de “mais primordial” na estruturação do sujeito (cf.Lacan,1990:31).
2 Toda essa exposição sobre a relação memória/esquecimento, bem como a distinção lacuna da memória vs.
memória-lacuna, deve muito ao artigo Passage de l’inoubliable a l’oubli, de Alain Merlet (1990), ainda que
não tenhamos seguido ipsis litteris a argumentação original.

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157

Psíquico do Esquecimento [1898], ainda que nesse momento dê destaque aos efeitos do

recalque.

É nesse texto que podemos notar por trás do lapso em lembrar-se do nome

Signorelli a presença da morte, insinuando-se por entre os nomes substitutos (cf.

Freud,1987d:259 e ss.). Esquecimento acompanhado de um “tormento interno”

(idem:261), que se traduz apenas numa urgência de trabalho, onde todos os significantes

citados (Herzegovina, Bósnia, Herr, Botticelli, Boltraffio, Trafoi etc.) parecem compor

um pano de fundo para um outro desenho que não era senão o do “senhor absoluto”.

Esquecer, esquecer...

A sobreposição do conceito de a posteriori ao de memória tem sido nosso

objetivo principal. O que decorre daí é, de certa forma, uma lembrança que

paradoxalmente não diria respeito exclusivamente ao passado; do mesmo modo que

quanto ao a posteriori a significação não se revelaria seu único resultado.

Se pudemos descortinar algo como um não-saber em jogo na memória foi ao

reunírmos sob um único movimento lembrança e esquecimento. O que talvez merecesse

uma maior atenção, num outro trabalho, seria a distinção mais precisa e nuançada entre

dois tipos de esquecimento: o derivado do recalque, e um outro que nos parece ter sido

esboçado aqui. Desses dois “esquecimentos” parece partir, por exemplo, a diferença entre

a função de um “não-saber” que diz respeito ao analista, e outra que se refere ao

analisando.

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Curiosamente o que vimos no último texto de Freud utilizado foi a urgência de um

descobrimento. Do mesmo modo em Édipo lembrança e esquecimento formam uma

vizinhança estranha. Em Édipo Rei é o momento da revelação do pastor sobre o passado

de Édipo que parece num átimo de segundo, après coup, fazer ressurgir toda história, e

com ela a tragédia de ser um só, ao mesmo tempo, autor e vítima, descobridor e objeto da

descoberta. Nessas linhas, talvez pudéssemos reconhecer o que estamos tratando como

retificação subjetiva. Por outro lado, em Édipo em Colono a decisão1 do protagonista em

não ser sepultado, apesar de contar com a atenção dos deuses, não é sem ressonâncias no

que se refere à relação memória/esquecimento.

Tal episódio nos remete tanto à saga de Antígona em sepultar o cadáver de

Polinices, quanto à tradição dos guerreiros da Grécia épica. Nesta, era a bela morte que

se encontrava em jogo em cada combate, sendo a verdadeira morte “o esquecimento, o

silêncio, a obscura indignidade, a ausência de fama” (Vernant,1972:41). Assim, não

bastava a morte do inimigo, sendo necessário também despojá-lo de todos os signos que

pudessem representá-lo como um bravo guerreiro. Todos os tipos de mutilações eram

praticadas, culminando no cadáver insepulto. O objetivo dessas iniciativas não era outro

senão barrar a inscrição do guerreiro na memória social que tomava duas formas: a

primeira que era a do canto épico, e a segunda que dizia respeito ao mnêma, o memorial.

Ambas constituíam “no fim do ritual funerário, a edificação do túmulo e o erguimento de

um sêma, relembrando aos homens por vir, ‘essoménoisi’, como o faz o canto épico, uma

glória assim assegurada de não mais perecer” (idem:55).

1 Parece importante citar aqui que não havia na Grécia antiga uma palavra que correspondesse ao que hoje
chamamos “vontade”. A tragédia nesse contexto surge exatamente num momento onde o Direito começava
por se interrogar a respeito dessa questão, utilizando-se, inclusive, de um vocabulário comum para a
elaboração de seus enredos. “O homem trágico já não tem que ‘escolher’ entre duas possibilidades; ele
‘verifica’ que uma única via se abre diante dele”(Vernant e Vidal-Naquet,1977:37. Para um estudo
minucioso das questões relativas à vontade e à tragédia, da “decisão sem escolha”, cf. cap.3).

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Ao contrário da tradição épica, Édipo parece ter inclinado-se, de certa forma, por

uma “não inscrição” na memória social1, esquecimento que veio fazer par com a urgência

em descobrir o local onde encontraria seu fim. Do mesmo modo no Freud que

encontramos há pouco, foi um “esquecimento” que o levou a percorrer uma certa série

significante, forçando-o a deparar-se com “o valor atribuído à morte e ao gozo sexual”

(Freud,1987d:261).

No caso de Édipo esse segundo momento implica um outro passo com relação ao

anterior. Já não se trata de reconhecer-se “autor e vítima”. Porém, de um assentimento ao

evento que o fez ser Édipo, e que o leva a exclamar às suas filhas: “De hoje em diante

vosso pai já não existe; de fato, agora acaba-se tudo que fui e cessa o vosso encargo de

cuidar de mim (...)” (Sófocles,1994:182, grifos nossos).

Assim, é no momento em que está prestes a desaparecer que notamos o

esquecimento despontar como uma via pela qual Édipo já não se confunde com sua

história, não sendo mais, ao mesmo tempo, “descobridor e objeto da descoberta”.

Poderíamos arriscar dizer que ele se mantém numa espécie de suspensão em relação aos

seus significantes-mestres (parricida, matricida, pai, rei...), não se identificando com eles,

mas sendo movido por algo que não se encerra nas situações nas quais sua vida foi

forjada. É exatamente essa separação que poderíamos, talvez, tratar como destituição

subjetiva. Encontro entre lembrança e esquecimento onde o Che Vuoi? ecoa, e a partir do

qual a memória responde não apenas por um passado, “pelas glórias imorredouras” mas,

principalmente, toma a forma de um convite ao que ainda está por vir, lacuna que não

conhece o amparo de nenhuma história2.


1 A esse respeito, Ismene nos lembra: “Ele está morto, mas sem sepultura, afastado de todos os olhares”
(Sófocles,1994:187).
2 Ainda quanto ao “cadáver insepulto” e uma possível aproximação com a questão da “destituição
subjetiva”, parece muito ilustrativo o episódio narrado por Bataille sobre o testamento de Sade. Nele

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VII. O Futuro Anterior

A gramática do tempo

haveria a seguinte indicação: “Uma vez recoberta a cova, serão semeadas em cima landes, a fim de que, em
conseqüência, o terreno da dita cova se encontrando guarnecido de novo e o mato se encontrando cerrado
como era anteriormente, os traços de meu túmulo desapareçam de cima da superfície da terra como eu me
deleito que minha lembrança desapareça da memória dos homens” (apud Bataille,1989:97). O interessante
é que tal citação encontra-se numa seção intitulada “ A vontade de Destruição de Si” e anuncia o objetivo
de Bataille em demonstrar que “o sentido de uma obra infinitamente profunda está no desejo que o autor
teve de desaparecer (de se anular sem deixar traço humano ): porque não existia nada mais à sua medida”
(Bataille,1993:96-97).

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(...) o tempo, o tempo, esse algoz às vezes suave, às vezes mais terrível, demônio absoluto
conferindo qualidade a todas as coisas, é ele ainda hoje e sempre quem decide e por isso a quem me curvo
cheio de medo e erguido em suspense me perguntando qual o momento, o momento preciso da
transposição?
Raduan Nassar

Neste capítulo teremos como objetivo a distinção entre a posteriori e ilusão

retroativa.

Antes, no entanto, devemos esclarecer os valores semânticos explorados por

Freud no uso que fez do vocábulo alemão nachträglich:

Aquilo que é nachträglich evoca um trânsito entre o presente e o passado.


Pode ocorrer uma manifestação retardada (postergada) do passado,o qual,
“fermentando” ao longo do tempo, só mais tarde se faz sentir, criando um
“efeito retardado”; ou, em vez disso, pode ocorrer um retorno ao passado
(ou,o que é equivalente,uma presentificação do passado),realizando-se um
acréscimo a posteriori de novos significados a serem agregados aos anti -
gos eventos (Hanns,1996:86-7).

Da explanação acima podemos notar duas leituras possíveis: a primeira, que

acentua o aspecto de “efeito retardado”; e a segunda, que se situa na vertente de um

“remanejamento do passado”. Como dissemos, ambas as vertentes encontram-se

presentes na obra freudiana (idem:80), ainda que tenhamos ao longo deste trabalho

privilegiado a segunda de um modo muito peculiar.

Do mesmo modo como é necessário estar atento às nuances do termo original, é

preciso ter em vista que o uso do a posteriori na língua portuguesa guarda possibilidades

que não seriam, todavia, encontradas no alemão.

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A principal é que o termo em português sugeriria uma distância temporal entre

eventos, uma sucessão. Ao contrário, “nachträglich enfoca a permanência de uma

conexão entre o agora e o momento de então; mantendo ambos interligados” (idem:83).

Assim como não pretendemos esgotar a problemática da memória em Freud, é

necessário que não negligenciemos os desdobramentos semânticos do nachträglich em

sua obra, notando que boa parte de suas denotações (guardar rancor, levar ou portar algo

atrás de alguém, acrescentar a posteriori, qualidade de ter efeito retardado) e conotações

(volta para acrescentar, volta ao evento/evento permanecendo no sujeito, trabalho

elaborativo) foram exploradas por Freud (idem:83-88).

Salientamos, contudo, que a exposição acima não parece opor-se ao que

propusemos como objetivo deste trabalho, o qual poderíamos formular mais uma vez:

tanto o a posteriori quanto a memória, no que nesta percebemos a presença daquele, não

se resumem a um “já dado” ou à consolidação de uma significação. Assim, teríamos

privilegiado uma vertente que nos parecia menos explorada pelos comentadores, ao

mesmo tempo em que nos detivemos exclusivamente nas questões relativas à memória.

Dito isto, seria interessante que nos mantivéssemos ainda próximos à significação

literal do nachträglich, nos servindo agora de uma outra perspectiva.

Lacan aproxima o a posteriori de um tempo verbal que parece portar um

paradoxo em seus termos: o futuro anterior. O que poderíamos dizer a respeito disso?

Basicamente o futuro anterior anuncia três possibilidades:

- que uma ação estará concluída quando outra intervier (ou seja, uma ação

futura antecedendo uma outra ação futura);

- a formulação de uma hipótese;

- que uma ação estará terminada em uma data mais ou menos precisa.

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É formado utilizando-se o futuro simples do verbo auxiliar mais o particípio

passado do verbo principal (cf. Mouger,1993 e Bescherelle,1990).

Como exemplos poderíamos citar:

- Dès que j’aurai fini ce rapport, j’irai à la conférence;

- Vous aurez sans doute mal compris;

- Ce jour-lá, on pourra dire que l’humanité aura fait un grand pas (ibid)

A tradução para o português pode suscitar algumas dificuldades, embora

tenhamos em nossa língua dois tempos verbais que estão em íntima relação com o futur

antérieur. São eles o futuro do presente composto e o futuro do pretérito composto.

O primeiro é usado para:

- indicar que uma ação futura estará consumada antes da outra;

- exprimir a certeza de uma ação futura;

- exprimir incerteza quanto a fatos passados (cf. Cunha e Cintra,1985:448-

453).

Exemplos:

- Em breve terei acabado meu trabalho e então poderei ir ao cinema;

- Se a Justiça prevalecer, seu esforço não terá sido em vão;

- Quem terá esquecido aquele livro?

Do mesmo modo como o futur antérieur podemos notar que o futuro do presente

também é formado pelo futuro simples do verbo auxiliar mais o particípio do verbo

principal. Ambos estando adequados às mesmas situações.

Quanto ao futuro do pretérito composto podemos notar algumas diferenças em

relação aos tempos anteriores. Ele é empregado para:

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- indicar que um fato teria acontecido no passado, mediante certa

condição;

- exprimir a possibilidade de um fato passado;

- indicar a incerteza sobre fatos passados (ibid).

Exemplos:

- Não sei se o campeonato teria sido o mesmo, se o Flamengo ganhasse

aquele jogo;

- A testemunha chegou a afirmar que o fugitivo teria escapado pela av.

principal;

- Teria ela conseguido chegar ao outro lado?

Como podemos notar, o futuro do pretérito composto é formado pelo futuro do

pretérito simples mais o particípio do verbo principal, tendo em comum com o futuro do

presente a possibilidade de exprimir uma dúvida com relação a eventos passados.

Todavia, em que esse desvio pela Gramática poderia nos auxiliar, para além do

fato de notarmos uma certa equivalência entre o futur antérieur e o nosso futuro do

presente composto?

Ilusão retroativa

Embora tenhamos buscado no pensamento bergsoniano a argumentação que

apresentaremos a seguir, entendemos que, ainda assim, ela suscita questões extremamente

pertinentes para uma investigação sobre o a posteriori na psicanálise.

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De saída é preciso notar em que contexto é formulada a definição de ilusão

retroativa [illusion de rétrospectivité]. Para começar, podemos afirmar que a filosofia

bergsoniana faz da “invenção1” sua palavra de ordem, não se furtando nesse objetivo a

um debate constante com as principais correntes científicas de sua época. Haja vista, por

exemplo, Matéria e Memória [1896], onde está presente uma discussão sobre as teorias

localizacionistas do cérebro e a questão das afasias; e Evolução Criadora [1907], onde

procura colocar em xeque as principais teorias da evolução, em particular a de Darwin,

uma vez que nelas, segundo o autor, não haveria uma presença efetiva do tempo.

Mas, quanto a ilusão retroativa, como defini-la?

Inicialmente podemos dizer que Bergson depara-se com essa questão diante da

necessidade de distinguir entre o possível e o real 2. Assim, por exemplo, quando é

perguntado sobre o futuro da literatura, sobre o que poderia ser a grande obra dramática

do amanhã , ele não pôde responder de outra maneira: “se eu soubesse o que será a

grande obra do amanhã, eu a faria”(cf. Bergson,1993:110).

Em outras palavras, poderia o possível preexistir à realidade?

Essa é a questão por excelência donde a preocupação a respeito da ilusão

retroativa parte. E é a resposta negativa a ela dada por Bergson que também deverá ser

apreciada por nós. A ilusão retroativa seria assim o modo de reconstituir o passado com

fragmentos do presente, negligenciando o fato de que “a realização traz com ela um

imprevisível nada que muda tudo”(idem:99, grifo nosso). Ou seja, é a tendência, a qual

poucos parecem escapar, de subsumir a emergência de algum evento à condição que o

haveria possibilitado. Como se não pudesse ser a própria emergência que nos permitisse,

1 Não estamos utilizando neste trabalho a distinção entre invenção e criação.


2 O resultado dessa distinção parece ser o conceito de virtual, importantíssimo no pensamento bergsoniano,
e retomado de modo extremamente profícuo por Deleuze.

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em atraso, rastrear suas condições de possibilidade. Em Bergson é o tempo que responde

pela separação entre “antes” e “depois”, não permitindo que se possa estender de um ao

outro algo que pudesse ser entendido como razão, causa ou lei. Ao contrário, o tempo

seria o princípio a partir do qual a indeterminação instalar-se-ia na matéria.

Ainda tentando tornar essa idéia mais precisa, apelaremos para a citação seguinte:

Pelo único fato de se realizar, a realidade projeta atrás dela


sua sombra no passado indefinidamente longíquo; ela
parece assim ter preexistido, sob forma de possível, à sua
própria realização (ibid).

Como podemos notar na citação precedente, a argumentação bergsoniana pauta-se

na oposição entre possível e realidade, afirmando que é a distância entre eles que deverá

ser concebida como tempo, ou criação:

Ao fim e a medida que a realidade se cria, imprevisível e nova,


sua imagem se reflete atrás dela no passado indefinido; ela se
encontra assim ter sido, sempre, possível; mas é neste movimento
preciso que ela começa a ter sido sempre, e eis aí por que eu dizia
que sua possibilidade, que não precede sua realidade, terá precedi-
do uma vez a realidade aparecida. O possível é então a miragem do
presente no passado (...) o possível é o efeito combinado da realida-
de uma vez aparecida e de um dispositivo que a lança para trás (...)
(idem:111-112).

Ora, não poderíamos ler nessas formulações o mesmo tipo de dúvida que poderia

nos assaltar quando de um estudo sobre o a posteriori?

É o próprio Lacan quem, numa argumentação muito próxima às anteriores, nos

lembra que o passo a ser dado no ultrapassamento dessa ilusão não seria um movimento

166
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fácil. Embora ele não esteja comentando sobre o a posteriori, as observações seguintes

nos serão de muita valia para a distinção que entendemos ser necessária:

Quando vem à luz, algo que somos forçados a admitir como sendo novo,
quando uma outra ordem da estrutura emerge, pois bem! ele cria sua
própria perspectiva no passado, e dizemos - Isto jamais pôde não ter
estado aí, existe desde toda eternidade. Aliás, será que não está aí uma
propriedade que nossa experiência nos demonstra? (Lacan,1985:12)

Algumas páginas depois, Lacan continua ainda às voltas com essa questão.

Respondendo a J.Hyppolite a respeito do platonismo e da relação entre simbolismo e

verdade ele diz:

(...) há dois tipos de relação com o tempo. A partir do momento em que uma
parte do mundo simbólico emerge, ela cria, efetivamente, seu próprio
passado. Mas não do mesmo jeito que a forma no nível intuitivo. (...) Há em
todo saber, uma vez constituído, uma dimensão de erro, que consiste em
esquecer a função criadora da verdade em sua forma nascente (idem:29-30,
grifos nossos).

Jankélévitch em seu comentário sobre a ilusão retroativa, usa, a certa altura,

exatamente o tempo verbal do futuro anterior para esclarecer o seu funcionamento. Ele

pergunta: “o futuro anterior não é a posteridade tornada ficticiamente passado por

antecipação?”( Jankélévitch,1989:21).

Todavia, não nos será permitido uma outra leitura, partindo exatamente do futur

antérieur? Quando comentávamos sobre seu emprego, não teríamos podido ver que a

certeza do futuro estava lado a lado com as dúvidas do passado? Não poderíamos tomar o

futur antérieur como um tempo de partida, de engendramento, “de formulação de uma

hipótese”, um retorno ao que não deixa de nos acossar e, portanto, o que reluz para cada

167
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um como o mais verdadeiro? Não é aí que imaginamos não saber, ou, em todo caso, não

saber o suficiente1?

Assim como antes falávamos de um limite tênue entre lembrança e esquecimento,

do mesmo modo podemos repetir o enunciado para a relação entre a posteriori e ilusão

retroativa. Ou seja, a diferença entre ambos não se dá pela negativa de um ao outro. Eles

não são simétricos na medida em que o a posteriori poderia ser descrito como uma ilusão

retroativa “esclarecida” de seus enganos; a ilusão retroativa não é o negativo do a

posteriori. Mas, um pouco diferente, talvez pudéssemos dizer que na distinção que

queremos realizar, trata-se de notar no próprio engodo ao qual estamos sujeitos na relação

com o saber, uma defasagem a partir da qual saber e memória, ou, como tratado

anteriormente, história e memória não se recobririam.

Assim, tratar-se-ia de uma questão de acento para irmos de um ao outro. Desse

modo, tornar o futuro um passado por antecipação seria sublinhar a vertente do saber ou

da significação (efeito) que a verdade instaura; por outro lado, tornar o passado o motivo

de um devir seria acentuar o que ali para sempre será fonte de enigma, resíduo (produto)

que nenhuma significação terá conseguido capturar em suas possibilidades.

E quanto a memória, o que seria então essa vertente na qual insistimos?

Tal como apresentamos no capítulo precedente a leitura crucial é a da passagem

de uma “lacuna na memória” para uma “memória-lacuna”. A primeira, que aspira ser

preenchida, baseia-se na possibilidade de congruência entre memória e história, aposta na

significação ou nos efeitos do significante-mestre, tal como se ele pudesse representar

1 É impossível não nos depararmos nessa passagem com o que já foi escrito por Deleuze: “Ao
escrevermos, como evitar que escrevamos sobre aquilo que não sabemos ou que sabemos mal? É
necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo a dizer. Só escrevemos na extremidade de nosso
próprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber e nossa ignorância e que transforma um no
outro”(Deleuze,1988:18).

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algo. Esse pressuposto, portanto, exclui o outro resultado da operação de basteamento,

qual seja, o que diz respeito ao produto. Aqui poderíamos falar em significação, caso o

matema da rememoração pudesse ser entendido apenas na sua vertente de alienação ao

significante.

A “memória-lacuna”, por sua vez, encontra seu móbil no que S1 oculta, “x” que

acentua o aspecto de velamento que lhe é caro também. Trata-se de reinserir o matema da

rememoração1 no discurso do mestre2, de modo que possamos notar o lugar do produto 3

aí existente. Quer dizer, como deixamos ver com o “x” acima, que algo escapa a relação

S1/$. E é exatamente esse “resto” que poderá vir a ocupar um outro lugar no discurso do

analista4, agora na posição de agente.

É sob o termo “memória-lacuna” que encontramos a afirmação de um “terá sido”,

esquecimento constitutivo5 que faz da volta ao passado, às origens, o encontro com o que

lá parece estar sempre em falta, tal como no filme O ano passado em Marienbad, onde o

casal de protagonistas a cada vez pergunta-se: “teríamos nos encontrado antes? Terá sido

no ano anterior? Este encontro já estaria marcado?” Ou, como esclarece Marie-Claire

Ropars, cujo comentário pode nos valer para associarmos o filme de Resnais às nossas

questões:

1 S1/$
2 S1/$ S2/a
3 Agente/Verdade Outro (trabalho)/Produto (produção).
4 a/S2 $/S1
5 A associação entre um “esquecimento constitutivo” e o futuro anterior foi assinalado por Julien (1990:12-
13). No entanto, o papel desse esquecimento deve ser creditado a Foucault, em cuja conferência “Qu’est-ce
qu’un auteur?”[1969] o anunciava como um dos três modos de “retorno às origens” nos quais as
discursividades necessariamente ver-se-iam implicadas: “redescoberta”, “reatualização” e “retorno a”. É
quanto a este último que o esquecimento constitutivo estaria associado. O primeiro seria entendido como
“os efeitos de analogia ou de isomorfismo que, a partir de formas atuais do saber, tornam perceptível (...)
uma figura que tenha desaparecido (...) em realidade trata-se de uma codificação retrospectiva do olhar
histórico”; o segundo, seria “a reinserção de um discurso num domínio de generalização, de aplicação ou
de transformação que é para ele novo” (cf. Foucault,1994:807-808, grifos nossos. Para uma distinção entre
esse esquecimento e o futuro do pretérito, bem como o impacto dessa conferência sobre Lacan cf.
Roudinesco,1994:343-344).

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No momento em que a narrativa, imaginária ou não, de um primeiro encontro em Marienbad


acabou de se juntar ao segundo encontro e de modificá-lo, nesse momento a história
presente do segundo encontro cai por sua vez no passado, e a voz do narrador recomeça a
a evocá-lo no imperfeito,como se um terceiro encontro já se esboçasse, relegando à sombra o
que acaba de transcorrer, como se melhor dizendo toda essa história nunca deixasse de ser
passada (apud Deleuze, 1990:142).

Todavia, para concluirmos a distinção entre a posteriori e ilusão retroativa, dos

riscos que levam de um ao outro, devemos recorrer a Foucault. Ainda que sua formulação

original tenha sido feita num contexto diverso daquele que tratamos aqui, acreditamos

que sua argumentação nem por isso deixa de nos ser pertinente:

Para que haja retorno, em efeito, é preciso, de início, que tenha havido esquecimento,
não esquecimento acidental, não recobrimento por qualquer incompreensão, mas
esquecimento essencial e constitutivo. O ato de instauração, em efeito, é tal, em sua
essência mesma, que ele não pode não ser esquecido (...) Retorna-se a um certo vazio
que o esquecimento evitou ou mascarou, que ele recobriu de uma falsa ou de uma má
plenitude e o retorno deve redescobrir esta lacuna e esta falta; daí, o jogo perpétuo
que caracteriza esses retornos à instauração discursiva - jogo que consiste em dizer
de um lado: isto estava lá, basta ler, tudo se encontra ali, é preciso que os olhos
estejam bem fechados e as orelhas também para que não se veja nem se ouça; e
inversamente: não, não se trata disso nesta palavra aqui, nem naquela lá, nenhuma
das palavras visíveis e legíveis não diz isto que está agora em questão, trata-se antes
disto que está entre as palavras, no espaço, na distância que as separa (...) (Foucault,
1994:808).

É nesse movimento incessante que entendemos encontrar o que está em jogo no a

posteriori. Que o analista aí não negligencie as partes que o compõe, parece algo

desejável. Que sob o grito a análise possa “ouvir” o silêncio aberto no instante de seu

170
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aparecimento é o que quisemos apontar. Que a memória possa ser esquecimento de si, é

um modo diferente de afirmar a presença do tempo, onde este não deveria ser entendido

apenas como responsável pela degeneração da lembrança.

Se a psicanálise promove um encontro entre o passado e o presente, não seria, no

entanto, com o objetivo de “atar as duas pontas da vida”. Antes, talvez pudéssemos dizer

que se trata de apontar o impossível de tal empreendimento. Impossível que

reconhecemos sob o nome de tempo, e que assinala para o sujeito um convite: reconhecer

em sua história o que lá só pode comparecer como falta. Lembrança, portanto, que no

passado encontra um nada. Sinal de que tudo está por começar.

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Momento de Concluir

“O círculo não é redondo”

... e se acaso distraído eu perguntasse “para onde estamos indo?”

Raduan Nassar

Mnemosyne, mãe das musas, filha de Urano [Céu] e Gaia [Terra]. Essa talvez seja

a primeira referência que nos ocorre quando temos em vista uma pesquisa sobre a

memória. Não só mãe das musas, presidindo, portanto, à função poética, mas também

irmã de Chronos. Desse modo, percebemos em poucas linhas uma relação muito próxima

entre memória e tempo datada já da Grécia arcaica. Mas, o que isso pode significar para

nós que realizamos uma investigação sobre a memória e o tempo na psicanálise, e, mais

172
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precisamente, especificando a articulação que o conceito de a posteriori promove entre

ambos?

Inicialmente poderíamos reafirmar nossas principais considerações: primeiro, que

o a posteriori não diz respeito apenas aos efeitos de significação, mas também aponta

para o que não pode comparecer senão como lacuna, interrogação, falta. Segundo, se

podemos reconhecer na memória a presença do a posteriori, é porque ambos não se

caracterizariam somente pela possibilidade de reencontrar o passado.

Entre a primeira e a segunda proposição, nos deparamos com uma distinção que

teve o seu relevo em nossos últimos capítulos. Se na psicanálise falássemos apenas nos

problemas oriundos de uma “lacuna na memória”, acentuaríamos apenas a impotência

diante do empreendimento de “atar as duas partes da vida”. Quase como se houvesse um

significante ao qual o sujeito estivesse alienado, sem que, concomitantemente, houvesse

também a separação que concerne ao objeto. O que redundaria num significante que

pudesse efetivamente nomear o sujeito. É no rastro dessa problemática que o próprio

Freud, ainda nos Estudos sobre a Histeria, nos dá sinais constantes a respeito de uma

insistência sintomática por de trás das lembranças recuperadas. Episódio que sempre nos

alerta para o terreno onde transita a psicanálise, aquele da claudicação, do que está

sempre em vias de não funcionar a contento.

Por outro lado, se podemos falar numa “memória-lacuna” o que buscamos

acentuar? Não seria essa uma vertente por onde assinalaríamos o impossível da iniciativa

precedente? Ao reconhecer-se como distinta da nostalgia, não estaria esta segunda

memória apontando não só para o que foi, mas também para o que terá sido? Quer dizer,

futuro paradoxal que a cada instante lança atrás de si o “antes” com o qual se forja.

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174

No entanto, será preciso ir um pouco mais longe. Pois, se em nosso último

capítulo realizamos uma separação entre a posteriori e ilusão retroativa, foi por termos

nos deparado com um pequeno detalhe que leva de um a outro e inversamente. Enquanto

a ilusão retroativa parece ressaltar uma correspondência entre presente e passado, tal

como se uma situação estivesse desde sempre dada, o a posteriori revela o que nesse

retorno não pode comparecer senão como fracasso, como não correspondente, estando aí

o próprio motivo do retorno.

Em outros termos, a ilusão retroativa apela para o efeito, enquanto o a posteriori

aponta para o produto da operação de basteamento significante. Aqui nos servimos da

distinção entre significação e sentido, tal como os definimos, ainda que nossa

argumentação tenha ficado em seus traços mais simples. Porém, conforme nossa

exposição, poderíamos dizer que o primeiro está para a ilusão retroativa, assim como o

segundo está para o a posteriori, querendo dizer assim que o último não negligenciaria o

que comparece como “resíduo” do circuito significante.

E como poderíamos atualizar a argumentação acima para o campo da memória

propriamente dita?

Por um lado, dizendo que o que escapa a operação de basteamento significante é o

que chamamos de esquecimento; por outro, afirmando que esse esquecimento não é sem

conseqüências para o que é composto como lembrança. No modo como exploramos o

tema foi nosso intuito mostrar que um esquecimento visceral, ou constitutivo, pode

traduzir-se de dois modos: primeiro, revelando-se o próprio móbil de uma busca onde

uma certa série significante é percorrida, desenhando às custas das lembranças uma outra

figura que jamais poderá ser integrada à história (Signorelli vs. Morte). Segundo, como o

índice de uma não completa correspondência entre o significante e o sujeito, podendo ser,

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175

até mesmo, talvez, o momento em que a distância entre ambos se torne mais manifesta

(Édipo em Colono).

Como dissemos no capítulo anterior, ilusão retroativa e a posteriori podem ser

facilmente confundidos. Todavia, o que quisemos expor foi a hipótese de que o a

posteriori na psicanálise caracterizar-se-ia pela tomada conjunta dos dois resultados da

operação de basteamento: efeito e produto.

A tensão oriunda da proposição acima, podemos encontrá-la, sem dúvida, em

muitos outros lugares que não apenas na psicanálise. Ainda que correndo o risco de

estender a outros domínios reflexões que são pertinentes a um campo específico, o que

equivaleria, de certa forma, a padecer da ilusão retroativa (“isso já está dito lá, basta

olhar com atenção...”), nos serviremos, mais uma vez, de uma citação de C. Lispector

através da qual, pensamos, poderemos avançar um pouco mais em nossa conclusão:

Vou lhe contar um segredo: a vida é mortal. Vou ter que


interromper tudo para te dizer o seguinte: a morte é o
impossível e o intangível.De tal forma a morte é apenas
futura que há quem não a agüente e se suicide. É como
se a vida dissesse o seguinte: e simplesmente não
houvesse o seguinte. Só os dois pontos à espera.
(Lispector,1994:90, grifos nossos).

Parece que a citação acima traduz, à sua maneira, a tensão que anunciávamos

como oriunda da relação efeito-produto. Aliás, mais precisamente poderíamos tomá-la

como uma alegoria onde o efeito não se apresentaria, mas apenas o produto do

basteamento “em estado puro”, se pudéssemos dizer algo assim. Não seria da mesma

maneira que falaríamos do objeto a como simultaneamente “dejeto” e causa do desejo?

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Ou ainda, do belo como uma defesa contra o desejo e índice do fracasso desse

empreendimento? (ver supra, cap.IV). De outro modo, não menos doloroso, poderíamos

continuar com C. Lispector a respeito do que chamamos “memória-lacuna”:

Entre um instante e outro, entre o passado e o futuro,


a vaguidão branca do intervalo. Vazio como a distância
de um minuto a outro no círculo do relógio (...) Apenas
um segundo quieto talvez separando um trecho da vida
seguinte (...) Deixando depois de si o intervalo perfeito
como um único som vibrando no ar. Renascer depois,
guardar a memória estranha do intervalo, sem saber
como misturá-lo à vida. Carregar para sempre o
pequeno ponto vazio - deslumbrado e virgem, demasiado
fugaz para se deixar desvendar (Lispector,1995:176,grifos
nossos).

Em alguns momentos ao longo deste trabalho falamos em memória intempestiva,

bem como, dados os últimos parágrafos, poderíamos chamá-la de uma memória

impossível, ou, de outra maneira, uma memória feita de esquecimento, muito próxima da

definição que encontramos para reminiscência (ver supra, cap. III). Entretanto, a

exposição que fizemos teria sido clara o suficiente?

Durante os capítulos precedentes algumas questões foram apenas esboçadas, uma

vez que exigiriam um trabalho próprio para que, de fato, pudéssemos chegar a respostas

mais satisfatórias. Sumariamente poderíamos citá-las:

- letra

- sentido/significação

- retificação/destituição subjetiva

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Do mesmo modo, alguns textos capitais da psicanálise, no que tocam à memória,

não foram objetos de um estudo minucioso, como, por exemplo:

- A carta roubada [1966]

- Um nota sobre o bloco mágico [1925]

- Um distúrbio de memória na acrópole [1936]

- Análise terminável e interminável [1937]

- Construções em análise [1937]

No entanto, pelo viés desses pontos de interrupção, podemos notar a trama na qual

deveremos, posteriormente, continuar esta pesquisa. Assinalemos, contudo, que o texto

de Lacan acima nos diz respeito na medida em que associa o futuro anterior ao caput

mortuum do significante1; assim como os demais nos revelam a preocupação de Freud,

em seus últimos escritos, não só com temas como tempo e memória, que implicariam

nessa última fase os conceitos de verdade histórica e material, mas também com o que

poderia ser um “resíduo” do tratamento analítico. No Distúrbio, há ainda a

interessantíssima observação sobre desrealização e despersonalização.

Por fim, poderíamos retomar uma observação de Jankélévitch, que ao descrever a

ilusão retroativa falava de seu caráter estéril e de sua impossibilidade de criação do novo:

(...) É verdadeiramente o ídolo por excelência: ela leva para a

1 “(...) Isso poderia figurar um rudimento do percurso subjetivo, mostrando que ele se funda na atualidade
que tem no seu presente o futuro anterior. Que no intervalo desse passado que ele já é no que ele se projeta,
um buraco se abre por constituir um certo caput mortuum do significante (...) constitui, eis o que basta, para
suspendê-lo da ausência, para obrigá-lo a repetir seu contorno” (Lacan,1990e:44;1992c:57).

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fabricação a virtude da organização,e, à força de nos logicizar


nos impede de conhecer a nós mesmos. A mulher de Loth,
olhando para trás, transforma-se em bloco de sal, quer dizer
torna-se uma estátua inanimada e estéril. Orfeu, olhando para
traz dele, perde para sempre aquela que ele ama (...)
(Jankélévitch,1989:23).

Porém, quanto a última formulação de Jankélévitch, poderíamos também nos

lembrar de uma outra versão1. Nela, Orfeu ao olhar para trás exprime de fato o desejo de

que Eurídice esteja perdida para sempre, de modo que ele possa reencontrar o seu

verdadeiro amor. Assim também, através das citações anteriores, podemos entrever o

motivo que leva C. Lispector a valorizar em boa parte de seus livros expressões como

“estranha alegria” e “alegria sem esperança”. Tais expressões, bem como a “memória do

intervalo”, enfatizam um passado impossível de ser recuperado, e, por conseguinte,

refratário à nostalgia.

É assim que a “memória-lacuna” ou o esquecimento constitutivo podem ser

tomados como um convite. Retorno a uma certa série significante cujo brilho parece ser

mais intenso, e onde não podemos ver senão um “x” que nos captura por completo.

Trama que no sentido, ou na memória, lança-os para além de um vivido, onde talvez um e

outro não poderiam ser senão “carne viva”, matéria-prima para uma nova história.

1 Cf. filme Orphée, de J.Cocteau,França,1950, onde o protagonista, após sua descida ao reino dos mortos, é
tomado de paixão pela Morte.

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