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Dissertação de Mestrado
Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de mestre.
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[IX. 186f]
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À
Norma e à Flávia
Agradecimentos
1994/95.
poderosos aliados, bem como a Ana Beatriz Freire pelo apoio nos momentos iniciais
deste projeto.
os quais esta pesquisa não teria os contornos que adquiriu. Em particular a Paulo Vidal
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como também aproximei-me de modo mais sistemático das questões relativas ao tempo e
à memória.
na psicanálise, e que soube apontar o caminho por onde iniciei minha pesquisa.
Resumo
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Résumé
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hypothèses ci-dessus, il a fallu en ajouter une autre: s’il existe ressemblance entre après-
coup et illusion rétrospective , elle ne signifierait cependant pas identité.
Índice
Introdução xi
Instante de ver 1
Do Laboratório à Clínica 2
Hipnose e Histeria 9
As Afasias 13
Locus Suspectus 20
Intensidade e Lembrança 28
Lacuna e Psique 31
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Lembrança e Experimentação 44
Lembrança e Experiência 45
Impasses 49
Reminiscências... 50
História e Lembrança 58
O Estranho 64
Emma 70
Tempo de Compreender 73
V. Do Saber e da Memória
O Fracasso da Memória 89
Duas Memórias 94
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C. Lispector
Introdução
Mnemosyne, mãe das musas, filha de Urano [Céu] e Gaia [Terra]. Essa talvez seja
a primeira referência que nos ocorre quando temos em vista uma pesquisa sobre a
memória. Não só mãe das musas, presidindo, portanto, à função poética, mas também
irmã de Chronos. Desse modo, percebemos em poucas linhas uma relação muito próxima
entre memória e tempo datada já da Grécia arcaica. Mas, o que isso pode significar para
nós que realizaremos uma investigação sobre a memória e o tempo na psicanálise, e, mais
ambos?
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estudaremos aqui cabe uma distância que não pretendemos ver reduzida. Mas pensamos
ser possível através dela nos aproximarmos de algumas questões introdutórias que serão
Na Grécia arcaica a função rememorativa passava por ser uma ascese em direção
à verdade. Os poetas, assim como os adivinhos, são aqueles “cuja memória sabe
discernir, para além do presente, o que está enterrado no mais profundo passado e
verdade tocada pela memória não significava um possível recapitular de uma história
mergulho no “tempo antigo”, ou tempo original, começo absoluto, a partir de onde tudo
teve início. Essa é, portanto, a capacidade que Mnemosyne concederia: estar presente no
Logo, ao poeta inspirado pelas Musas não caberia seguir o tempo num retroceder
quase infinito, como se este fosse inteiramente homogêneo, sem desvios ou sutilezas.
Parece haver uma outra concepção de tempo implicada, onde prevalece a idéia de
exemplo, a idéia de raças arcaicas1 (de ouro, prata, bronze e ferro), onde cada uma delas
Assim poderíamos dizer que a memória não dizia respeito a uma reconstrução do
tempo, nem uma anulação dele, como acontecerá posteriormente. Ela está intimamente
1 Essa formulação está ligada a idéia de idades míticas, e encontra-se explicitada no poema de Hesíodo
(meados do século VII a.C.) Os Trabalhos e os Dias. Nesse poema Hesíodo misturou dois temas já
existentes: o mito das quatro idades com nomes de metais, por ordem decrescente de excelência, e a lenda
de uma idade dos Heróis, inserida entre a terceira e quarta idades. (cf. Goff,1984a:316).
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separava o passado e o presente, e desse modo também o mundo dos vivos e aquele dos
noite. Por isso, aquele que no Hades conseguia guardar a memória transcendia a condição
mortal (ibid).
pitagóricos e depois com Platão, passa a ser compreendida de uma outra forma. A
primeira torna-se o meio pelo qual o homem pode escapar das garras do devir, do
essa condição e, por extensão, passa a estar em estreita conexão com o tempo (idem:122).
justamente na medida em que ela propiciaria uma anulação desse tempo que faz perecer,
reencontrar o “mundo das Idéias”, com Aristóteles haverá uma nova aproximação entre
tempo e memória, mas para eliminar completamente qualquer resquício de divindade que
2 A análise do caráter iniciático, ou hermético, da memória foi muito bem conduzida por Yates (1975), que
nos revela como este tema foi de suma importância da Grécia ao Renascimento.
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pudesse ser encontrado na segunda. A memória passa a dizer respeito à parte sensível da
quanto ao passado, nem quanto ao ser, revelando antes “a nossa incapacidade de ser
encontrar-se-ia ligada à parte intelectual, ainda que fosse portadora de traços das formas
Talvez pudéssemos dizer que este é, em suas linhas gerais, o percurso do papel da
“marca de imperfeição”. Todavia, e aqui nos baseamos em Yates, é preciso também ter
em vista que toda uma arte da memória constituiu-se desde a Grécia antiga até o
Ora, não seria essa uma história que poderíamos repetir, mutatis mutandis, para a
psicanálise, sobretudo no que toca ao percurso freudiano? Dos estudos com Charcot à
Carta 69, não é a veracidade do evento (traumático) que é posta em xeque e com ela a
própria memória? E, entretanto, não seria por essa via mesma que entreveríamos a
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sobre o a posteriori freudiano, sobretudo nos Estudos sobre a Histeria, através dos
Sem dúvida boa parte do uso do conceito de a posteriori aponta para o efeito
se traduz numa defasagem entre um evento de origem sexual e sua lembrança quando da
desta, sobre a experiência que na infância não pôde ser compreendida. É preciso ter em
poderíamos dar mais do que alguns passos, já que a hipótese de uma “sexualidade
primeiro momento do pensamento freudiano. Mas, a pergunta inicial que nos fazemos é:
não estaria implicado nele uma questão que acompanhará Freud por muito tempo, qual
(Carta 69), não haverá aí, perdurando até o final de sua elaboração, pontos tais como o
experiência original)?
inconsciente é estruturado como uma linguagem”, estaria aí dito que tudo é simbólico,
ou, como é dito vulgarmente quanto a Freud e Lacan, que tudo é sexual? Não poderíamos
dizer que em ambos encontramos também um domínio que até revela-se por esse viés,
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mas sem se confundir com uma suposta realidade biológica, diz também respeito a algo
Assim, o primeiro objetivo desta dissertação passa por apontar a limitação que há
de basteamento significante. Ainda que seja a partir desse efeito, por exemplo, que uma
princípio, as suas diversas formas, tais como poderíamos depreender nos termos
rememoração, lembrança, reminiscência etc. Mas, nos interessará o que nesses diversos
termos podemos chamar memória. Quando se fizer necessária a distinção, seja porque um
determinado autor, Platão, Aristóteles - como vimos acima - ou Freud, por exemplo, usa
um ora outro, não querendo apagar com isso as possíveis diferenças que existam, mas nos
servindo delas para especificar a relação entre memória e a posteriori, ou seja, entre
memória e tempo.
Lacan,1988:272), embora não se resuma a ela. Quer dizer, o a posteriori não deve ser
modo que a memória não responderia apenas pela ratificação do passado. Deveremos, por
conta dessa hipótese, também esboçar uma distinção entre sentido e significação (cf.
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Miller,1987:184). Todavia, esse não será nosso objetivo principal, haja vista que tal
algumas considerações que nos serão de valia, sobretudo na medida em que, grosso
Quer dizer, não se trata apenas de uma questão de ordenamento significante. Ou, dito de
algo refratário à ordem da significação. A isso tanto poderemos chamar trauma, como
inassimilável, “origem” dos sintomas, e, por conseguinte, possível ponto de partida para a
análise. Os demais, também apontam para o sintoma, para o que nele existe de intratável.
Quer dizer, resto da intervenção analítica, tal como o objeto a poderia ser entendido
O que esperamos acrescentar com as hipóteses acima diz respeito a uma parcela
doce regresso a um passado já vivido, mas como a perpetuação de um enigma, tal como
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tentar distinguir o que seria uma problemática da memória pensada do ponto de vista da
comentários, uma análise de seu seu grafo do desejo, tal como elaborado ao longo de
precedentes, nos detendo, contudo, nos primeiros trabalhos de Freud. Notaremos como aí
já se esboçava uma tensão no tocante à memória entre o que podemos chamar “uma
tensão do capítulo precedente, nos servindo das Lembranças Encobridoras e dos Estudos
sobre a Histeria. Tentaremos mostrar por que a memória não se definiria como um
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K como representação-limite;
entre pulsão de morte e princípio do prazer, e passaremos a fazer uso de modo mais
VI.Che vuoi? Esse será o capítulo mais longo, e terá como momentos
privilegiados o estudo do caso do Homem dos Lobos, bem como o grafo do desejo
VII.O futuro anterior. Esse será o último capítulo, e nele daremos atenção
aproximação promovida por Lacan entre ele e o tempo verbal do futuro anterior. Tais
argumentações terão como alvo realizar uma distinção entre a posteriori e ilusão
retroativa.
podermos notar uma articulação entre a cadeia significante e seus efeitos retroativos,
assim como também a presença de elementos que, apesar de estarem relacionados com a
cadeia, não se confundem com ela, como por exemplo, a voz. Na mesma medida em que
esta voz comparece como acusmática (cf. Zizek,1992:152), e, portanto, como uma
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negativa, onde um e outro comparecem pelo viés de uma falta, poderíamos dizer que o
sujeito caracterizar-se-ia por uma falta no significante, e o objeto por uma falta do
significante1. Parece ser indicativo disso inclusive o fato de Lacan ter escolhido uma letra
(a) distinta do “S” pelo qual são designados o sujeito e o significante (respectivamente $
e S1, S2). Mesmo que Miller não tenha desenvolvido a distinção entre efeito e produto,
ela nos servirá no momento para notarmos que as relações estabelecidas pelo significante
Parece haver uma diferença capital ao tomarmos o grafo nessa perspectiva, e tal
ênfase distingue as análises de J. Dor (cf. 1990:148 e ss.) e Zizek (cf. 1991, passim e
1992: cap.V), por exemplo. O primeiro expõe de maneira clara e precisa a geração do
em momento algum nomeia esse elemento ímpar que é a voz (um dos nomes do objeto a
que nos levaria ao encontro das formulações de Lacan acerca do real. O caminho
escolhido por Zizek exige necessariamente toda uma outra formulação, já que privilegia
encontramos nela uma problematização maior quanto ao que diz respeito a uma “lógica
1 Para ficarmos apenas numa frase que poderá nos ser útil para essa distinção, poderíamos citar Lacan:
“(...)Quanto a nós, nos atemos a que o significante não concerne ao objeto, mas ao sentido”
(Lacan,1992:53).
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do significante”, onde ao acentuar o papel do que Lacan chamou real, procura examinar
Assim, a memória que pretendemos estudar passa pelo viés do significante, com
diversos autores, não pertencentes ao campo psi, já fizeram também por nos mostrar isso.
Sem entrarmos no campo da filosofia e mesmo na ciência onde muito foi escrito sobre o
ilustração, citaremos apenas Alain Resnais. Três de seus filmes procuram levar os
paradoxos da memória ao seu limite: Hiroshima meu amor [1959], O ano passado em
como um lugar de encontro, da certeza factual, mas como dispersão, fonte de enigmas,
bifurcações incessantes que atravessam o sujeito, não dizendo respeito a uma “memória
individual”, mas perpetuando, entre uma reminiscência e outra, um “X” que não é
Talvez essa passagem pelo cinema seja menos forçada do que parece, ainda que
não tenhamos a intenção de alongá-la mais1 . Mas é bom ter em vista que 1995 trouxe à
Curiosa coincidência que nos leva a ver, tanto em um como no outro, os efeitos de uma
1 Para o início de uma apreciação sobre como o tempo e a memória se impõem como temas privilegiados
no cinema cf. Tarkovski,1990, Peixoto,1996 e Carrière,1995.
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dizer que nelas encontramos o anúncio de uma certa verdade, ao menos daquela que só
É por tudo isso que começamos dizendo que o “círculo não é redondo”. Frase
absurda, a princípio, e que parece ao seu modo traduzir os efeitos que esperamos extrair
posteriori que não os tome como conceitos extremamente simples sobre os quais nada
mais haveria a dizer. Esperamos problematizar esse campo e apontar para o fato de que a
psicanálise tem a falar sobre a memória, e que esta não pode ser entendida apenas como
analítico é o lugar de uma batalha cujo final não pode ser assegurado de antemão, e nem
Para concluir esta introdução, ainda que pese as diferenças já notadas entre a
Garcia-Roza,1993: cap.3 e Jouhaud,1992), poderíamos repetir aqui o que para este autor
era a característica fundamental do tempo: impedir que tudo tenha sido dado de uma vez
Há muito dessa frase que encontraremos ao longo deste trabalho. Assim como há
muito dela também na Carta 52. Na verdade é interessante notar que um dos últimos
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Psicanálise, onde entre outros temas, comenta sobre os efeitos técnicos do tempo
(Lacan,1990a:298 e ss.), definindo-o como uma função onde o simbólico e o real reunir-
se-iam (ibid).
envergadura cada vez maior, que entendemos ser pertinente um estudo do tempo na
psicanálise. Tal como o objeto a, o tempo compareceria também com um “dejeto” da rede
simbólica, impedindo que tudo tenha sido dito, ou lembrando. Excesso que no sentido, ou
Miller,1987:184), onde talvez um e outro não poderiam ser senão “carne viva”, matéria-
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Instante de Ver
Do laboratório à clínica
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Deixo cair a tarde/ Nos olhos fatigados./ O dia foi de luz intensa e demorada,/ Nevada
nas alturas/ ... / Longe daqui, e sempre aqui/ Presente,/ Quero sonhar apenas o que vi./ Quero ver o que vi
mais transparente.
Miguel Torga
Iniciar um estudo sobre a memória implica ter em perspectiva o modo como esse
tema fez-se objeto de investigação. Neste capítulo veremos alguns autores que no século
XIX estudaram a memória, assim como também trataremos das primeiras observações de
Freud sobre essa questão, sobretudo aquelas ligadas ainda ao uso da hipnose.
primeiras pesquisas nessa área, nos depararemos de fato com o que foi o próprio
bifurcação que deverá ser seguida em ambas as direções para que possamos ter uma
histeria, tendo logo de saída produzido um campo de batalha em torno das questões
relativas às localizações cerebrais (cf. Bergson,1990,passim; Garcia-Roza,1991:cap.1 e
deixava de ter nela uma fonte de inspiração no que se tratava dos objetivos, operando um
deslizamento que significou a substituição das perguntas sobre o ser (o que é conhecer,
percebe, p.ex.).
Nesse terreno nebuloso, onde o limite dos saberes encontrou-se pouco a pouco
modificado, foram introduzidas outras personagens, tais como Bergson e Freud. Ambos
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propuseram respostas às questões de sua época, esboçando um quadro novo que não dizia
No que toca à psicanálise, o estudo da memória nos incita a perguntar sobre sua
na psicanálise toca de maneira radical a própria definição de sujeito, e com isso talvez
É desse modo que nos voltamos para o que foi o primeiro estudo científico da
entre tempo e aprendizagem. Ainda que havendo exceções a essa regra, detectadas por ele
parece marcar o início das investigações psicológicas desse tema. O que poderíamos ver
para extrair um dado do fio do tempo para cristalizá-lo num hábito. Ou melhor, o esforço
percepção.
quanto a mensuração de um estado psicológico, ele mesmo reconhecia que, assumindo tal
posição, não fazia mais do que abordar uma determinada face, muito limitada, da
memória:
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apresentar o seu método, ele se colocava questões acerca da natureza da memória para as
(...) se nossa curiosidade nos leva para diante e desejamos informações mais
específicas e minuciosas quanto a essas dependências e interdependências
[da memória] (...) se fazemos perguntas, por assim dizer, quanto à sua estrutura
interna - nossa resposta é silêncio (idem:640).
de valia na medida em que nos colocam diante do que se forjava naquele momento como
método para a psicologia e conseqüentemente nos revelam muito do que era também o
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Mas, no que diz respeito estritamente à nossa investigação, o que devemos reter
em que o tempo por si só seria apenas uma função que atuaria no sentido de desfazer as
Essa oposição, que no momento pode nos parecer ainda pouco precisa, já é por si
mesma suficiente para apontar que o interesse da psicologia experimental parece, pelo
menos nesse momento, reduzir-se a algo que no máximo poderíamos chamar de hábito.
Não que a memória não apresente também essa face, mas o que parece muitas vezes
como uma lição que é aprendida de cor, depreende-se dos experimentos que “ela é
adquirida pela repetição de um mesmo esforço. Como todo exercício habitual do corpo,
enfim, ela armazenou-se num mecanismo que estimula por inteiro um impulso inicial,
1 Guillaume retoma o experimento de Ebbinghaus, concordando com o fato de que o tempo “apaga,
debilita, transforma as recordações”(Guillaume,1959:198). Do mesmo modo, confere um papel importante
à repetição: “A lei do esquecimento permite compreender a verdadeira natureza da fixação. Se foram
necessárias 20 leituras para aprender de memória uma lista de sílabas e no dia seguinte somente foram
necessárias 12 para voltar a aprendê-la no mesmo grau e dois dias depois nada mais que 8, devemos por
isso dizer que essas novas leituras fizeram voltar cada vez a recordação ao estado da véspera? Sem dúvida
o afirmaremos assim, no sentido de que a recordação reconstituída permite sempre a mesma recitação
correta”. A segunda parte da resposta de Guillaume merece um comentário breve. Ele credita a facilitação
na fixação/evocação de lembranças não só à repetição, mas também às alterações fisiológicas: “Mas há
outro sentido em que essa afirmação não deve ser aceita, quando a recordação oferece cada vez maior
resistência a ação do tempo: se sabe o mesmo, mas de outra maneira. A recordação é cada vez mais sólida,
pois o mesmo lapso a debilitará cada vez menos”(idem:199). Decorrendo dessa exposição, ainda seria
interessante enunciar a diferença proposta pelo autor entre memória e saber. Este, sendo mais estável, já
não implicaria uma recordação de suas origens (idem:199-202). Grosso modo tal distinção poderia ser
comparada à oposição entre memória implícita (ou procedural) e explícita (ou declarativa) (ver infra,
p.15).
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ocupam o mesmo tempo”(idem:61). Ainda que não fosse por essa observação de Bergson
sobre a relação entre memória e hábito, a distância que aí queremos ressaltar também se
faria notar, por exemplo, no papel peculiar que Freud concede à memória, seja na Carta
52, seja no Além do Princípio do Prazer, só para nos determos nesses dois momentos de
seu pensamento.
esses estudos sobre a memória foram realizados, lembrando que praticamente no mesmo
período a problemática das afasias e da histeria levantavam questões cruciais acerca desse
num modelo experimental que parece desconhecer por completo o apelo da clínica e suas
Wundt em Leipzig, 1879, ainda que não tenha significado o início da psicologia
teria ficado disperso por entre disciplinas como a anatomia e a fisiologia. Nesse sentido
percepção para que ela pudesse desvencilhar-se de uma série de informações secundárias
experiência mediata, cara às ciências naturais cujo modelo é a física, procederia como
1 Talvez seja necessário esclarecer que não estamos colocando em discussão o estatuto de ciência da
psicologia. Limitamo-nos a contextualizar o objetivo dos autores em questão.
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que por exclusão do fator subjetivo; ao passo em que a psicologia, fazendo apelo à
desde os seus primórdios, apoio que em última instância encontra sua razão de ser na
cisão quando fala dos processos mentais superiores (criação artística, por exemplo), para
os quais seria preciso recorrer a um estudo dos “produtos sociais”, através de uma
investigação histórica.
Apesar de encontrarmos também nele uma dicotomia nos objetos de estudo (corpo e
espírito), ao contrário de Wundt, isso não teria redundado numa dicotomia do método
(ibid).
Weber, fisiologista, postulava uma relação específica entre corpo e mente que no
entanto não se resumia a uma equivalência pura e simples. Entre uma grandeza e a
habilidade para percebê-la caberia estabelecer a razão que as ligaria. Fechner em seu livro
No entanto a querela entre físico e psíquico, ou corpo e mente, teve sua perfeita
anuncia sob esse termo funda-se numa separação entre natureza - cujos métodos
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renovadores da historiografia alemã do século XIX, quem formulou essa distinção que
encontra plena continuação com Dilthey e sua Introdução às Ciências do Espírito [1883].
Alguns anos depois, quando Freud escrevia o Projeto, Dilthey publicava o ensaio
até aqui, a psicologia como uma ciência do espírito, sendo mesmo o seu fundamento.
Teríamos por um lado conexões causais e por outro conexões de sentido, aquelas
Roza,1991:71-74).
primeira faz apelo a uma intuição ou experiência vivida, ao passo em que explicar é fazer
em Freud está indissociavelmente marcada por esse conteúdo objetivo (cf. O Homem dos
nexo causal, explicação que vale por elucidar “(...) o vínculo objetivo entre o conteúdo
manifesto e o conteúdo latente do sonho. É por esta razão que o conteúdo manifesto
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hipnose, tal como Freud a utiliza, não poderíamos também ver implicada a questão da
causalidade e do sentido, sobretudo, quando nos diz que caberia à hipnose “remontar à
Hipnose e histeria
“Fique quieto! Não diga nada! Não me toque!” Essas são as palavras
insistentemente repetidas por Frau Emmy von N, às quais Freud acaba por se render.
Esse caso revela-se como uma verdadeira dobradiça entre a hipnose e a associação livre,
literalmente, apagar lembranças que teriam efeitos patogênicos sobre a paciente, a partir
do que, em tese, estaria ela livre dos seus males. No entanto, um primeiro aspecto chama
a atenção: qual o motivo da insistência dos sintomas? Se a história é vasculhada e a
“Na minha opinião (...), todos esses fatores psíquicos embora possam responder
Essa afirmação dos Estudos Sobre a Histeria [1893-95], assim como a quase totalidade
dos casos ali citados, já nos deixa entrever a idéia de um trauma desdobrado em dois
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Entre a indução do paciente e a cura parece reinar um abismo que a hipnose não
cobrirá. Abismo que será marcado tanto mais quanto se puser em evidência o discurso do
paciente e seus pontos eletivos, suas lembranças, seus esquecimentos, seus sintomas.
Desse modo em Freud a hipnose se reveste de uma preocupação que o leva a dizer que
“(...) desde o início fiz uso da hipnose de outra maneira, independentemente da sugestão
hipnótica. Empreguei-a para fazer perguntas ao paciente sobre a origem de seus sintomas
(...)” (Freud,1976:31).
Se a pesquisa da origem dos sintomas parece revelar para Freud a sua diferença
para com as demais práticas da hipnose, o que isso significa? Teria ele de fato feito um
que se tenha desejado fazer uma distinção clara entre as diversas correntes associadas ao
quão difícil é essa tarefa, uma vez que mesmo as sonâmbulas, os espíritas e os
Influência dos Planetas, na qual já podemos ver o princípio básico de seu magnetismo
animal, que nada mais era senão uma retomada de temas tais como o dos vapores ou
fluidos, os quais seriam responsáveis pela unificação do corpo e da alma (ibid). Essa
para os quais o universo era visto como um organismo vivo provido de alma a partir do
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também por sua vez, o autor que centrou a questão histérica no encéfalo, e não mais no
conseqüência direta das paixões - como numa relação linear - dizia respeito muito mais
Ainda que não haja nesse breve comentário sobre Briquet uma referência à
pelo viés da história do paciente, lembrança que fala da origem e das vicissitudes do
sujeito na constituição de seus sintomas, sendo por isso mesmo fonte de um saber e não
quando esta encontrava-se em profundo descrédito, fazendo dela um meio de cura para as
proposição básica que define a hipnose como um tipo de sugestão. Mesmo tendo Freud
interessado-se a princípio por essa definição, ela não foi suficiente para mantê-lo ligado à
Escola de Nancy, uma vez que ele a julgará insuficiente, como já dissemos, para abarcar a
natureza dos fenômenos que se propõe atingir (cf.Freud,1988:122).
condição patológica das histéricas e com isso define-a de modo antagônico à Escola de
Nancy. Para esta, a hipnose era produto da sugestão; ao passo em que para a Salpetrière a
Freud escreve que “na questão da hipnose, realmente tomei partido contra
Talvez possamos ver aí os indícios dos caminhos distintos que implicarão para cada um
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deles uma forma de clínica, assim como o papel que a memória terá no uso que cada um
fará da hipnose.
Porque para dar conta da etiologia da histeria Freud não irá apostar, por muito
tempo, nem na hereditariedade, nem na sugestão, e isso parece apontar para o que nesse
período era uma questão central, a experiência traumática. Por conseguinte, o intuito de
Freud era o de poder estabelecer o que se oferecia como condição suficiente e necessária
origem, questão que será retomada diversas vezes ao longo de suas elaborações, seja, por
exemplo, através das especulações evolutivas com Ferenczi, ou ainda, através da noção
seria lícito afirmar que o que se espera da memória nesse momento é que ela possa tudo
falar, entregando de modo preciso a própria razão de sua opacidade? Ou seja, como
Freud afirmou tantas vezes, a expectativa parecia ser a de um preenchimento das lacunas
da memória para que daí pudesse advir a eliminação do sintoma. Seria o caso de
Antes de prosseguirmos com uma resposta, é necessário frisar que são justamente
os fenômenos hipnóticos e histéricos que colocarão em xeque a função e o sentido das
perdas de memória tal como vinham sendo estudados até aqui. Ao lado dessas
quanto ao estatuto do suporte dessa conservação. Dito de outro modo, onde estaria o
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As afasias
médico francês J-B. Bouillaud propõe que a perda da memória dever-se-ia a uma lesão
cerebral precisa. Do mesmo modo, o médico alemão F. Josef Gall, criador da frenologia,
esforça-se por localizar faculdades psicológicas complexas (amor, ambição, por exemplo)
favor da problemática localizacionista. Ele teria descoberto num paciente que havia
do hemisfério esquerdo. Esse paciente sempre que indagado não conseguia responder,
apesar de aparentemente entender as questões que a ele eram dirigidas, de outro modo
que não através do monossilábico tan, tan, tan (cf.Rosenfield,1994:18). Para esse tipo de
patologia, Broca cunhuou o termo afemia (perda do poder de expressão pela fala, devida
a lesão cerebral).
Em 1874 Carl Wernicke, neurologista alemão, identifica e localiza a lesão
correspondente de um outro tipo de distúrbio da memória que não deixa de guardar uma
equivalência com o distúrbio descoberto por Broca. Enquanto a afasia descrita por Broca
implicava a incapacidade de compreensão dos sons. Nas afasias motoras (Broca), perde-
se a faculdade da fala; nas afasias sensoriais (Wernicke) “as funções expressivas mantêm-
se perfeitas e o paciente é capaz de falar e escrever, mas não consegue ler nem
compreender a fala”(idem:27).
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A tônica dos estudos das patologias da memória, como temos mostrado, tem sido
estabelecimento exato de uma relação entre uma lesão física e o seu correlato
Freud sobre as afasias, opondo-se de maneira contundente ao tema das localizações. Nos
artigos que publicou na revista Brain [1878-1880] ele afirmava que era preciso privilegiar
(Carroy,op.cit.:754). Mas, o que o coloca numa posição distinta daquela dos demais
teóricos de sua época é a ênfase que concederá a uma teoria da memória que se pauta
tornam-se possíveis, ou não. Essa também é a tese central do livro de Israel Rosenfield, A
Invenção da Memória, onde procura desmistificar a idéia de uma memória a longo prazo,
ou, o que vem a ser o mesmo, uma memória cujo funcionamento dar-se-ia a partir de
que não implicaria pura e simplesmente a recuperação de uma informação prévia que
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Essa teoria afirma ser a evolução dos seres vivos um percurso que vai do homogêneo ao
afirmava que os fenômenos do esquecimento seguiam uma ordem inversa àquela da linha
ordem rígida explicar-se-ia não pelo valor intrínseco de cada termo envolvido, mas pelo
fato de que de uma extremidade à outra dessa linha encontrar-se-ia uma especificidade
cada vez maior de aplicação. Assim, por exemplo, os contextos em que as lembranças
intelectuais poderiam ser atualizadas estariam cada vez mais limitados em razão de sua
diversos.
também se utiliza das teorias evolucionistas na memória, tal como Jackson as elaborou.
des Maladies de la Mémoire, que é dividida em quatro capítulos: a memória como fato
biológico; as amnésias gerais; as amnésias parciais; e as exaltações da memória
(cf.Mervant,1989). Ainda que tenha sido Ribot quem procurou otimizar as propostas de
otimização que encontra também outras formas de enunciado, como aquele que diz serem
Semon, sendo retomado e divulgado por K.S. Lashley, sobretudo em seu artigo “In search of the engram”
apresentado em 1950 na Society for Experimental Biology (cf. Doron e Parot,1991:246). É interessante
frisar que a par desse estudo sobre o engrama, onde transparece a preocupação de Lashley sobre o suporte
neuronal da memória, também foi postulado por ele a lei da ação de massa e a plasticidade das estruturas
corticais. A primeira afirma que a perda mnésica dependia menos da localização da lesão do que da
extensão anatômica (quantidade de tecido nervoso) atingida. A segunda postulação afirma que certas
partes do cérebro podem substituir outras lesadas e suprir às funções correspondentes (cf.
Sillamy,1983:383-384).
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e finalmente os verbos, nem por isso deixa de haver diferenças entre ambos.
medida em que Ribot insiste em derivar a psicologia a partir da biologia, ao passo em que
para Jackson se houvesse uma relação entre o biológico e o psíquico, este não se daria
senão em termos de concomitância. Ribot afirmou que a memória é “por essência, uma
fato biológico; por acidente, uma fato psicológico” (apud Mervant, op.cit.:260).
responsável por uma memória mais elaborada, psicológica (ibid). Porém, a respeito de
toda essa caracterização da memória, Mervant parece detectar uma dupla preocupação em
Ribot: o aspecto biológico comparece em sua teoria como que para cobrir uma dimensão
da memória que não seria alcançada propriamente pelos aspectos conscientes envolvidos
(localização no passado, por exemplo). Sendo que, no entanto, essa polarização não deixa
de ser sem conseqüências para o que em Ribot vem a ser entendido como consciente ou
psicológico1.
Mervant parece pautar-se. Primeiro, ele espera buscar na patologia das funções psíquicas
o segredo de sua atividade normal. Segundo, como citamos acima, ele credita à
uma psíquica. Daí Mervant sustentar que Ribot apresenta em seu livro um modelo
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verdadeiro pivô de sua teoria sobre a memória (idem:262). Isso porque ganhará destaque
fixação, que seriam de modo geral aquelas que responderiam pelas desordens de origem
no passado que seria da ordem psíquica. E é esse acesso que se faria segundo “pontos de
lembrança e o evento que ela representa, de modo que o tempo de acesso à lembrança
não seria o mesmo que se passou entre o evento e o momento de sua recapitulação. Nem
o passado apresentar-se-ia tal como ele teria sido, mas segundo pontos privilegiados a
partir dos quais ele é recapturado. Logo, “o quadro que a memória nos dá do passado é
(...) por sua vez enganador e exato - ele ‘tira sua exatidão da ilusão mesma’”(ibid).
O que foi apresentado até aqui parece ser suficiente para nos mostrar a
questões que sem dúvida não deixam de ressoar entre si, mas que procedem segundo uma
lógica interna peculiar, multifacetando o que ingenuamente poderia ser entendido sob o
termo memória.
1 É interessante perceber que semelhante distinção também foi proposta por Lacan e, de certa forma,
guardando as mesmas definições (cf. Lacan,1985:234; tb. infra, cap.VI).
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Ainda poderíamos acrescentar que ora ela é descrita como guardando uma relação de
identidade com o evento do qual ela é a recordação, ora é descrita como semelhante, não
idêntica a um determinado evento, marcada por traços que podem mesmo chegar a
falsificá-lo, mas nem por isso deixando de representá-lo à sua maneira (ver supra, sobre
Ribot).
É a partir dessas considerações que prosseguiremos para verificar como esse tema
psicologia à psicanálise a “clínica da memória como faculdade se substitui (...) [a] uma
clínica das relações do sujeito com suas lembranças” (idem:267), de modo que possamos
Desse modo, as lembranças não deveriam mais ser tomadas simplesmente como
uma história. A referência a um ponto de criação ex-nihillo faz menção a criação de uma
que permaneceria para além da própria cadeia significante. Assim, a memória responde
considerar a rememoração como algo mais do que simplesmente um não querer esquecer.
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Locus suspectus
Nem no meio ambiente nem na hereditariedade eu consigo encontrar o instrumento exato que me
formou, a prensa anônima que estampou em minha vida uma certa marca d'água complexa cujo desenho
singular se torna visível quando examino o papel almaço da vida contra a luz da lâmpada da arte.
V. Nabokov
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tema de investigação para a psicanálise, sendo o acento colocado sobre a relação entre
sujeito e lembrança. Daí a pergunta: seria a memória algo mais do que um processo de
Já passamos em revista o que no século XIX poderia ser entendido sob o termo
apesar de tudo, as questões localizacionistas adquiriram certo vigor. Mas, esses mesmos
É dessa forma, por exemplo, que H. Jackson nos fala de um afásico que sob um
podiam ser desfeitas sob hipnose, descobrindo-se aí inclusive um fato importante para a
sua patologia. Assim, como proceder para compreender esses distúrbios da memória que,
em alguns casos, não têm como chave privilegiada um endereço certo no cérebro?
pontos de convergência, como na definição acima, que guarda uma estreita correlação
Histeria sobre a talking cure. De fato, o próprio Janet chega a incluir uma nota favorável
publicado nos Archives de Neurologie [1893] que posteriormente seria utilizado como
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capítulo final de seu livro L’Etat Mental des Hystériques, publicado em 1894
(cf.Freud,1988:21).
O que está implícito na “conduite du récit” de Janet é que “a cura visa lhe permitir
Ainda que pudéssemos notar na definição acima uma certa equivalência com as
propostas de Freud e Breuer, onde salta aos olhos a idéia de um passado aparantemente
esquecido, presente, contudo, pelo viés dos sintomas, há que se notar, todavia, as
capacidade da paciente fazer uso de uma narração depuratória ou catártica, induzida por
sua vez através da hipnose. Vale a pena notar que, apesar da trajetória teórica divergente
que marcou posteriormente a separação de Breuer e Freud, é a Breuer que Freud credita
modo mais preciso. É a própria definição da histeria que torna remota qualquer
possibilidade de aproximação entre eles. Para Janet a histeria seria marcada pelo regresso
ecos das premissas evolucionistas de Ribot, de quem Janet foi aluno), de modo que a
terapeutica será marcada não só pela tentativa de resgate de uma lembrança
aparentemente esquecida, mas mais ainda, sendo necessário através da hipnose mudar as
próprias lembranças para que um efeito de cura seja alcançado. Há que se notar, porém,
que a oposição de Freud a esta definição de histeria não teria impedido-o de utilizar-se no
Para Breuer, a origem da histeria liga-se a uma experiência vivida sob estado
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lembrança de modo a ab-reagir a cota de afeto a ela ligada. Todavia, talvez pudéssemos
modelo neurológico que parecia predominar notadamente nos estudos dos distúrbios
psíquicos.
Ainda que Freud não tenha compartilhado por muito tempo dos estados hipnóides
(cf. As Psiconeuroses de Defesa e Estudos sobre a Histeria), não é menos certo que a
noção de uma clivagem da consciência, tal como pode ser apreendida dessa teoria, não
tenha sido importante para suas considerações. Freud salienta contudo o aspecto de
modo são as hipóteses de Janet, que invariavelmente apontavam para uma “(...) fraqueza
impossível não ver ali uma preocupação que era também a de Freud, ou seja, a de que
pelo viés da fala o paciente deveria poder elaborar a recordação plena de afeto, fruto da
“incapacidade de síntese psíquica”, para um, ou da experiência que não conseguiu outro
Mesmo alguns anos depois do período de uso do método catártico, em que Freud
fazia uso da hipnose calcado nos pressupostos de Breuer, vamos encontrar ainda nele
desse modo que em Recordar, Repetir, Elaborar [1914], ao distinguir a técnica analítica
daquela que dizia respeito à ab-reação, ainda assim, ele afirmava que “O objetivo destas
à repressão” (Freud,1969:193).
citado anteriormente através de Assoun (ver supra, cap.I), onde ele comentava a relação
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corretamente o que seria a interpretação [Deutung] em Freud; e como sob essa noção
Pois, todo esse procedimento interpretativo objetiva precisar o nexo que ligaria o efeito à
sua causa, do mesmo modo que sob os auspícios da memória não encontraríamos outra
Todavia, ao nos determos somente nessa explanação, talvez não pudéssemos notar
aspecto de hiato que marca a relação entre a experiência e sua lembrança. Desse modo o
percurso de uma à outra não seria passível de uma verificação empírica. Ao contrário,
dar-se-ia segundo uma sutil relação de forças que não exclui componentes de construção
estaríamos autorizados a dizer que ela seria da ordem da invenção? A memória seria
como uma construção que encontra seu lugar no passado posteriormente, e ao dar conta
de um passado, como numa história com começo, meio e fim, resolve todos os dilemas
do sujeito, redundando num final de análise, onde tudo teria sido explicado?
Aqui poderíamos retomar o vínculo objetivo a que Assoun faz menção (ver supra,
causa. Por outro, nos dá uma primeira indicação de que determinadas articulações
impõem-se, e a interpretação não está aberta a todos os sentidos. Como Lacan nos
lembraria mais tarde, numa passagem que não podemos deixar de ligar ao que estamos
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(cf.Lacan,1990:55).
Essas questões, que apontam para um certo embaraço a propósito de temas como
elaborações sobre as neuroses. Vemos, por exemplo, em seu texto Histeria [1888] definir
essa patologia como doença orgânica, assim como creditar uma influência decisiva à
(...) A evolução dos distúrbios histéricos muitas vezes exige uma espécie
de incubação, ou melhor, um período de latência, durante o qual a causa
desencadeante continua no inconsciente (Freud,1990:100,grifo nosso).
período de elaboração, reporta-se ao uso que Charcot fazia desses termos ao postular a
histeria traumática. Nela haveria um hiato entre a experiência traumática e seu efeito,
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Nessa fase do pensamento freudiano com que nos deparamos, a histeria parece
estar próxima de dois fatores que se interligam, e que poderíamos enumerar: primeiro,
segundo, a idéia de um trauma psíquico como uma intensidade com a qual o sujeito seria
fatores, ele nos diz também que a irrupção da histeria no sujeito poderia ser devido não só
Poderíamos notar aqui, talvez, uma inclinação para as postulações de Breuer sobre
mas, por outro lado, já é o anúncio da busca de uma especificidade para o fator
como de Charcot. Vale notar que até 1897 a questão do trauma será uma constante em
sedução.
Trauma, lembrança e intensidade parecem desse modo indissociavelmente
ligados, sendo ainda a lembrança como que a “portadora” dessa experiência que o sujeito
É curioso que se nos detivermos sobre cada um desses aspectos talvez fôssemos
seu estatuto seria definido em função da relação estabelecida com outros eventos que
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colaborariam para esse resultado, como que por somação, por exemplo. Poderíamos do
O interessante é que nesse momento Freud não parece excluir ambas as hipóteses,
elaboração de uma teoria da memória (Freud,1990e:214). Além disso ele escreve que “o
histérico não é uma lembrança qualquer; é o retorno do evento que causou a irrupção da
Dessa origem tantas vezes retomada, tantas vezes quantos forem os ataques
anterior de Freud. Aqui, porém, essa lembrança que forma o conteúdo de um ataque
segundo grupo psíquico. Por isso a necessidade de “trazer essa lembrança inteiramente à
consciência normal” (idem:220). O corolário, que se tornará famoso nos Estudos sobre a
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Histeria, é que os ataques histéricos “são impressões que não conseguiram encontrar uma
Até aqui temos notado como as referências à lembrança, no que dizem respeito a
do que nos perguntarmos sobre sua natureza, devemos nos manter atentos para o que
possa vir a ser entendido sob a denominação de lembrança. Isso porque em mais de uma
traumática. Quer dizer, aquela que o sujeito não pôde elaborar, ou que, enfim, não
os sintomas.
intensidade) com o qual o sujeito vê-se obrigado a deparar-se de tempos em tempos. Mas
aí, voltamos a andar em círculos. Pois, seria o caso de falarmos a respeito de uma
evento, de algo enfim. No entanto, o que vimos até esse momento nos permitiria
mesmo não se apresenta em termos positivos, como representação, mas faz-se presente
em termos de intensidade. E o esforço de Freud, Breuer e até mesmo Janet, é o de torná-
Quase sem ser percebido foi feito já um pequeno movimento. Estamos tratando da
modo completo ou nítido. Seria essa característica um limite ou o ponto de partida para
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afirmármos que começa a delinear-se no horizonte freudiano uma idéia de passado que se
outro aponta para os caminhos da rememoração, é fácil notar que nem um nem outro
deixam de apontar para um limite, que se traduz comumente por um impossível de dizer,
Intensidade e lembrança
Essa referência parece vir ao encontro do que usualmente o próprio Freud, e com
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saída, coloca em destaque um novo viés para a relação causal, onde não caberia um efeito
linear tal como poder-se-ia entender comumente por relação causa-efeito. Mas, ao nos
adiada em função de um outro evento, no caso a puberdade, que como por um efeito de
Pontalis,1988:445).
afirmar que: “(...) segundo a teoria usual de Freud, era a interposição da puberdade entre
uma experiência sexual precoce e a primeira lembrança dessa experiência que tornava
Sem dúvida a pergunta que nos ocorre agora é justamente aquela que diz respeito
Freud, e nesse período sobre o qual nos detemos, estaria esse conceito apenas
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determinado por uma variação, biológica e/ou psíquica, em todo caso ligada ao
desenvolvimento do indivíduo?
É curioso que no próprio texto que citávamos, Freud nos brinde com uma frase
que não deixa de ser intrigante, e que ao mesmo tempo, de certa forma, aponta para a
que seja o a posteriori. Ele diz que o “recalcamento e a formação de sintomas defensivos
evento até então anódino, essa frase não nos propiciaria susto algum.
posteriori, que consiste num descentramento da causa ao efeito, restrita de fato aos
forneceria a esta uma marca indelével que de saída a forçaria a ser algo mais que a
posteriori pauta-se no fato de que, em suas linhas gerais, ele teria sido elaborado antes
das formulações da teoria sexual infantil de Freud, e, conseqüentemente, antes dele
curioso é que no próprio Freud o uso do a posteriori vem a ter um lugar de destaque no
relato do caso clínico do Homem dos Lobos publicado em 1918, portanto, numa época
Lacuna e psique
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Quanto à frase de Freud que citávamos acima, talvez seja necessário nos determos
um pouco mais sobre ela. Nessa passagem do Rascunho K, Freud nos fala de uma lacuna
na psique como primordial na etiologia histérica, ao mesmo tempo em que ressalta que o
recalque deve-se a intensificação de uma idéia limítrofe que justamente recebe esse nome
tema, mas num deslocamento da atenção ao longo de uma série de idéias ligadas pela
simultaneidade temporal” (ibid). Essas passagens nos são de valia na medida em que nos
permitem situar melhor duas séries com que vínhamos procurando trabalhar até agora.
usual causa-efeito, onde não estaria o efeito contido, a princípio, no que poderia ser
suposto como sua causa. Ou seja, se há em alguns casos de histeria um intervalo temporal
para a manifestação sintomática, não é porque haveria de saída uma causa e seus
interligados”(Hanns,1996:83).
Segundo, se entre evento e experiência traumática, ou entre evento e lembrança,
há uma distância no tempo, a memória parece ser o lugar de uma repetição despojada de
qualquer inclinação reducionista, que pudesse ser traduzida como sendo uma reprodução
nachträglich, que na língua alemã implica não só “que algo permanece latente e se
acréscimo/retorno”. (ibid).
Do que citávamos a respeito da idéia limítrofe, devemos reter que por constituir-
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poderíamos dizer traduz-se em imagens as mais diversas, mas também “forma uma parte
Freud chama nesse texto “uma lacuna na psique”(ibid). Poderíamos nos fazer então a
partir daí duas perguntas: Poderíamos melhor especificar a natureza das imagens em jogo
aquele das lentes num instrumento ótico, um meio de passagem de impressões sensórias.
que significasse uma condição de possibilidade de juízo. Distinção que já havia sido
corresponder a mecanismos diferentes, uma vez que não se poderia conceber um acúmulo
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disposto de acordo com outras relações, talvez causais. Freud diz nessa passagem que os
tentam dar conta do que seria o aparelho psíquico, sendo que nessa primeira elaboração
Na Carta 52 que se situa entre o Projeto e a Interpretação dos Sonhos, encontramos mais
uma vez essa preocupação, marcada pela intenção de definir o estatuto da memória para
A dúvida com que mais uma vez Freud defronta-se na Carta 52 é colocada por
ele nos seguintes termos: “o que falta explicar é por que as experiências sexuais, que, na
época em que eram atuais, geraram prazer, passam, quando são lembradas numa fase
Freud irá acentuar nesse texto o uso de termos que se afastam cada vez mais do
a idéia de que as neuroses em geral seriam o resultado de uma não tradução de parte do
material mnêmico nos registros subseqüentes (idem:326). Daí afirmar ser “uma falha na
tradução (...) o que se conhece clinicamente como recalcamento” (ibid). Quanto a essa
passagem devemos nos valer da observação do prof. Garcia-Roza, quando ressalta que
Freud justamente por conceder um papel importante à sexualidade, não nos autorizaria a
compreender essa “falha” como resultado de alguma problemática mecânica (cf. Garcia-
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Notamos desde nossa primeira citação da Carta 52, que Freud acentua, como
memória), retranscrição, além de dizer que “a memória não se faz presente de uma só
material mnêmico”.
cap.I), frisamos o que parecia ser uma característica dos estudos da psicologia sobre a
memória, qual seja, a de considerar numa relação inversa tempo e memória. Sendo o
tempo como que dotado apenas de um valor negativo, capaz de desfazer os laços tecidos
A memória não-toda
O que queremos ressaltar é essa relação não de toda antinômica que parece
caracterizar tempo e memória na Carta 52, onde cada registro opera com uma
originar uma defesa patológica, sendo o recalcamento entendido como justamente uma
memória pautado no terreno neurológico pode ser visto em todo o texto. Principalmente
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Psicanálise - (Lacan,1988:70), quando Freud nos fala que “o ataque histérico não é uma
descarga, mas uma ação; e conserva a característica original de toda ação - ser um meio
de reprodução do prazer.”(Freud,1990h:331).
Temos, portanto, por um lado que “a memória não se faz presente de uma só vez”
e por outro, essa dimensão não de toda clara, em que descarga e ação começam a
articulação entre elas? Essa ação que não visa a outra coisa que ser um “meio de
substitutas, não haveria em todas elas a idéia de uma incompletude que se confirma na
medida em que de uma à outra a tônica é a falha, a falta, o trauma? Não do que teria um
dia ocorrido, mas do que está sempre em vias de ocorrer, do objeto perdido, da tradução
estranhas que acabam por dizer respeito a uma dissimetria, uma falta de representação
adequada, que quebra a correspondência entre evento e lembrança, e que insiste em se
fazer presente “de tempos em tempos”? Talvez pudéssemos retornar então a uma questão
anterior para recolocá-la do seguinte modo: das imagens evocadas numa lembrança, a
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Um homem é, primeiro, o pranto, o sal, o mal, o fel, o sol, o mar - o homem. Só depois
surge a sua infância texto, explicação das aves que o comem. Só depois antes aparece ao homem.
P.M. Campos
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posteriori, intervalo onde um sentido vem à luz, lançando a experiência para além dela
esse intervalo introduz seus efeitos. No entanto, é na Carta 69 a Fliess (21/10/1897) que
Freud parece promover uma virada nas hipóteses levantadas acima. Tal movimento vem
chocar-se frontalmente com o que era entendido na sua teoria da sedução, onde, assim
como as passagens citadas nos deixam notar, apontando para um evento no passado, era a
sedução da criança por um adulto, muitas vezes o pai, entendida como um fato verídico
que seria determinante para os distúrbios histéricos. Na mudança de posição que essa
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carta nos revela, Freud nos apresenta uma dupla conclusão: 1) “Não acredito mais em
Não seria essa dupla conclusão importante para continuarmos a pensar o papel da
memória na psicanálise? Sendo esse o momento em que Freud revelou pela primeira vez
suas dúvidas quanto a teoria da etiologia traumática das neuroses, parece haver também a
lembrança, onde ela simplesmente recapitularia o passado, para podermos ver delinear-se
um ponto de insuficiência nessa concepção. O próprio Freud escreve que “(...) [Nem] na
psicose mais profunda, a lembrança inconsciente (...) vem à tona, não sendo, pois,
revelado o segredo das experiências da infância nem mesmo no delírio mais confuso”
(ibid). E ele prossegue: “Parece que novamente se tornou discutível se são somente as
com isso, o fator de uma predisposição hereditária recupera uma esfera de influência da
(ibid).
aparentemente, não aceita a hipótese de que o passado seria, em linhas gerais, uma
Mas, justamente ao termos em mira o a posteriori, não nos indagamos sobre como
implicada numa recordação, uma vez que começamos a notar que ao invés de tratá-la
como ícone, talvez seja preciso repensá-la desde o começo, a ponto de nos fazermos a
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seu texto Lembranças Encobridoras. Ele inicia-o nos preparando para os paradoxos a que
o estudo da memória pode nos conduzir. De saída nos fala da distância entre a crença
a se desenhar mesmo ali, é que muitas vezes não seriam as experiências mais marcantes
aquelas que encontrariam um lugar na memória. Paradoxo aparente dirá Freud. Pois, o
que ele procurará nos mostrar é o modo incompleto, deslocado e distorcido com que as
outras que, entretanto, não deixam de estar ligadas a ela. Freud as trata como a resultante
de um paralelogramo de forças (idem:274) onde “o que é registrado como imagem
nos mostrar assim a tensão a partir da qual uma imagem ocorre no psiquismo consciente.
Strachey) que ocupa a maior parte do texto, e a partir do qual Freud erigirá suas
conclusões. Esperamos que ele possa ser consultado pelo leitor, para podermos
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lembranças em três grupos (idem:276): 1) cenas descritas pelos pais, para as quais seria
discurso deles; 2) cenas que a princípio não poderiam ter sido descritas, uma vez que as
pessoas envolvidas não voltaram a ser encontradas desde a sua ocorrência; 3) cenas
irrelevantes para as quais, ao contrário das anteriores, não se consegue descobrir nenhum
nexo associativo, ou motivo, que tenha justificado a sua permanência como lembrança.
Muitas vezes o próprio sujeito dessas lembranças vê-se como personagem nelas.
periodicamente desde há muito ou se, pelo contrário, teria emergido a partir de alguma
acordo arrebatam as flores amarelas, que haviam sido colhidas conjuntamente, de uma
menina que aos prantos corre em direção a uma senhora que lhe dá uma saborosa fatia de
pão. No que é seguida pelos meninos ávidos igualmente por apetitosa fatia. Por outro,
uma recordação, do menino já com 17 anos, marcado por desventuras econômicas, que se
vê atraído por uma jovem, sentimento que, entretanto, não é retribuído por ela. E ainda
uma terceira recordação, dessa vez referente aos 20 anos, em que o interlocutor, ao
retornar à cidade natal para um encontro familiar, vê-se no centro das atenções para que
se case com a prima e procure uma ocupação mais rentável que aquela para qual os seus
Todas as cenas acima são retomadas num momento particular e a relação entre
elas começa a ser tecida lentamente. É a articulação entre algumas semelhanças que
colocará em Freud a pergunta sobre a natureza da memória e se, afinal de contas, ela não
teria sua razão de ser na própria atualidade em detrimento de ir buscar suas raízes no
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passado. Ou seja, poderíamos dar como certa a localização do passado como logicamente
anterior ao presente?
Freud irá pinçar um jogo sutil de repetições que encontra, por exemplo, nas séries
flores amarelas (da primeira lembrança; do passeio nos Alpes)-vestido amarelo (da prima,
lembrança, como vontade dos familiares). Acrescentando uma interpretação que concerne
troca do pão” (idem:281). Que nada mais seria senão um voto de que toda a história
houvesse sido outra, com a permanência no campo ao lado da mulher amada, sem
pesadelos financeiros. Mas que na impossibilidade dessa alternativa, ainda assim, restaria
assegurar o futuro, dedicando-se a uma ocupação “pão com manteiga” (ibid), e não aos
Diante da dúvida, se então tudo não teria passado de uma construção lançada ao
passado, já que vários elementos como a dicotomia fome/amor, o amarelo dos dentes-de-
leão, as dúvidas com relação ao futuro, não foram encontrados senão no período
assim, apesar da falta de garantias da nossa memória (idem:281) é o passado que fornece
o material, por mais precário que seja, para que possa vir a ser utilizado pelos
“um traço mnêmico cujo conteúdo ofereça à fantasia um ponto de contato - como se
andasse meio caminho até ela” (idem:283). Freud complementa: “É como se um traço
entre impressão (tomada num sentido de relação direta e imediata com uma experiência)
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causada, e que daí por diante, retornam de tempos em tempos, de acordo com as leis de
Freud aponta para uma divisão a propósito da memória que se apresenta em pelo
menos duas formas: a do sujeito da lembrança que é ao mesmo tempo personagem dela
dissimetria, que não cessa de acentuar a distância de uma à outra (idem: 284). Mas, o que
experiência e vice-versa e, por decorrência, a do sujeito por si mesmo, que Freud insiste
interrogações precedentes. É inevitável não nos perguntarmos sobre o que incidiria esse
“falseamento”, muito peculiar no entanto, que abole a sua origem como impossível de ser
determinada, mas ao mesmo tempo aponta para algo que não deixa de ser suposto como
traços mnêmicos de que a lembrança foi forjada permanece desconhecida para nós em
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Das citações acima talvez pudéssemos arriscar a formulação de uma hipótese para
Freud tece para nós parece paradoxalmente falar de uma presença e de uma ausência
quase simultâneas. Presença dos dados com os quais nós a conhecemos; ausência
insinuada e suposta nesses mesmos dados de uma experiência originária que só poderia
Quase como se o passado estivesse sempre a dever sua formulação a um tempo por vir, e
onde certamente insiste uma impossibilidade de traçarmos uma linha unindo experiência
e lembrança. Junto à repetição que poderia nos permitir buscar semelhanças entre eventos
propriamente dita, com um “X” sobre o qual não só a lembrança repousa, como não deixa
“como aquela que deve seu valor enquanto lembrança não a seu próprio conteúdo, mas às
relações existentes entre esse conteúdo e algum outro que tenha sido suprimido”
(idem:285), nos lança num horizonte onde não é essencial o fato dela ser
considerações secundárias se nos detivermos sobre esse “conteúdo suprimido” que acaba
por dar sentido à lembrança. É nessa lacuna que talvez venhamos a ver inscrever-se o
que chamaremos sujeito, apreendido a posteriori nos laços de um engodo, que não deixa
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contudo de apontar para uma verdade que o implica, assim como o fetiche não deixa de
dimensão onde ela não poderia se restringir à recapitulação de uma biografia, dos fatos
importantes que teriam sido por si dignos de atenção. A repetição que caracteriza o a
posteriori, e que será melhor notada quando falarmos dos Estudos Sobre a Histeria e do
atualizado em cada divã, onde o sujeito não cessa de dar testemunho do resto que cada
final de sessão deveria saber situar como tal. Rememorar talvez possa vir a ser entendido
não como o que pode ser localizado no passado mais distante, mas como também,
do mesmo modo como “o grito não se perfila sobre o fundo de silêncio, mas, ao
uma vez que é lícito nos perguntarmos quem é o agente dessa ação. Na dicotomia
aparente dos dois termos, notamos que o a posteriori parece quase nos falar de uma
surpresa, de um instante onde o sujeito é capturado por um evento que traz à luz o
Mas já não vimos que o que se prende nas malhas do passado, quanto ao que é dito pelo
sujeito, é sempre outra coisa com relação àquilo que era esperado por ele?
Devemos reter desse momento, embora ainda de modo precário, que se o sentido
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sentido responde também pelo que resiste a ser apanhado nas malhas de um saber, e é
Tensão que como já dissemos assinala na lembrança algo irredutível à série que a
constitui.
Lembrança e experimentação
verdade essa pergunta nos ocorre em função do artigo “Les Souvenirs des Nourissons”
experimentos, vão rejeitar tanto a hipótese de uma “amnésia infantil” como a de uma
maturação biológica que viria propiciar uma melhor capacidade de memorização. Eles
afirmam que a maturação poderia contribuir, sem dúvida, para uma melhora das
estratégias de apelo [stratégies de rappel], mas que em todo caso, as crianças, mesmo os
(idem:741).
Se por um lado esse artigo aponta para uma certa “indestrutibilidade dos traços
mnêmicos”, ele ressalta também que, no entanto, o acesso às experiências infantis seria
muito difícil, na medida em que a memória dos bebês encontra-se marcada por uma
O artigo, que a princípio poderia nos sugerir pensá-lo como uma ponte entre as
como pano de fundo uma crítica à hipótese freudiana da “amnésia infantil”. Segundo os
autores, que não localizam a fonte da argumentação, essa hipótese afirmaria que “os
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elementos do contexto são tão rapidamente esquecidos que sua modificação pode ser
À parte essa leitura opor-se diametralmente àquela proposta por Freud, que não a
53), nos vemos novamente às voltas com o mesmo modelo de Ebbinghaus onde a questão
poderia ser dito sobre a relação entre lembrança e experiência? Ao longo deste capítulo
pudemos notar que Freud vai aos poucos desarticulando a ligação linear que poderia
haver entre ambas, porém, não deixando de salientar um vínculo entre elas. Poderíamos,
Lembrança e experiência
Os Estudos Sobre a Histeria parecem não só nos oferecer boas alternativas para
isso, como também nos auxiliarão a situar uma vez mais o a posteriori no quadro que
estamos elaborando.
Na verdade duas idéias dos Estudos nos deterão por mais tempo. A primeira é a
“agent provocateur”.
Embora essa tenha sido uma obra composta a quatro mãos, pode-se perceber as
fissuras que acabaram por significar o afastamento entre Freud e Breuer. De um lado a
poderiam ser delineadas, como a que se referiria a uma cisão do psiquismo, por exemplo,
68
69
ainda que Freud não vá creditar a ela a característica primordial da etiologia histérica
construir. Particularmente, para o que nos interessa neste momento, vale ressaltar uma
noção que se apresentará em Freud sob vários termos, como aquela de representação-
psiquismo, responsável por sua cisão, e em torno do que vai estruturando-se a idéia de
pela qual a experiência traumática poderia vir a expressar-se, como que a partir de uma
ligação associativa formada por vários elos entre si, onde o “agent” seria responsável pelo
início da manifestação dos sintomas histéricos. O trauma, ao contrário, aponta para uma
lembrança (do trauma) “age como um corpo estranho que, muito depois de sua entrada,
deve continuar a ser considerado como um agente que ainda está em ação (...)”
(idem:44,grifo nosso).
Esse “corpo estranho”, lembrança do trauma psíquico, faz apelo a uma dupla
noção de memória, uma vez que ela não se apresenta na memória dita normal
Essa dupla característica pode ser notada no caso Emmy, onde Freud parece
querer alcançar esse ponto fugidio da origem do sintoma [gagueira] de sua paciente, e
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70
para o qual ele só encontra, a princípio, um muro que se impõe contra seu objetivo. Por
deixará entrever o quão importante é estar atento para uma dimensão irredutível à história
das pacientes.
Isso poderá ser notado na distância entre a hipnose e a associação-livre que irá
manifestar-se de um ponto a outro do texto. Por mais que Freud se lance ao passado, na
algum fato objetivo (Freud,1988:127), ele acaba por deparar-se com algo que escapa
memória, não está muito distante do que no Rascunho K Freud chamará, como já
Freud escreve no caso Lucy que o recalque não opera sobre a cena traumática, mas sim
sobre “uma sensação que isolada torna-se símbolo da lembrança” (idem:135), devemos
1 Haveria uma equivalência entre essa definição de idéia-limite e o matema S(A)? (cf. infra, cap.VI)
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mais uma vez atentar para o quê existe de hiato entre uma experiência e sua repetição na
memória. Hiato que nesse momento nada mais quer dizer senão que existe uma
dissimetria entre esses termos. Dissimetria que será colocada em relevo no que Freud
sintoma, e o outro para o qual a causa estaria sempre presente. Não só isso, como também
é acentuado por Freud que a eles não caberiam simplesmente catalisar uma cena anterior,
invocando-a e daí encontrando toda a sua força. Na verdade, a cena auxiliar equivale à
traumática por seu próprio conteúdo e “não simplesmente como alguma coisa que
Desse modo é a própria noção de um passado como origem do trauma que parece
tempo e a clínica. Pois, se por um lado estão presentes nos Estudos várias referências a
uma teoria da sedução (idem:182), mas na verdade também da sedução própria a histeria,
existe também a construção de uma hipótese onde “a histeria traumática não se situa
impressões originais, mas sim às lembranças das mesmas (idem:179). Lembranças que,
voltamos a insistir, não apenas presentificam experiências de intensidade
Talvez esse seja um bom viés para acompanharmos a mudança de ponto de vista
que significou o abandono da hipnose, ainda que ela significasse em tese a ampliação da
(idem:264) que comparecem nesse discurso liberto da hipnose, mas, onde assim mesmo,
deslocamento (ibid).
71
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Impasses
Etiologia das Neuroses [1896], Freud volta à carga sobre as questões de uma etiologia
específica das neuroses ao mesmo tempo em que reitera o seu afastamento das teorias de
Charcot. Mas, o mais interessante é ter em vista o conteúdo da Carta 69, um ano
posterior a esse artigo, e onde podemos ver Freud passar do otimismo mais contagiante às
a sua distância com relação a Charcot, já que a ela é conferida exclusivamente um papel
sexual na primeira infância sem qualquer efeito sobre a criança, embora deixando nela
contemporâneo (...) ação póstuma de um trauma sexual” (ibid), ou dito de outro modo, a
(idem:146 e 148).
Um outro texto que deve ser apreciado em conjunto com a Carta 69 é o segundo
histeria ele conclui, ainda uma vez, que uma experiência posterior poderia ativar os traços
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mnêmicos de um trauma da infância. Mas, ele acrescenta uma nota de rodapé em 1924
que esta foi um erro que poderia ter acabado precocemente com a psicanálise.
Tendo em vista esses três últimos textos de Freud, a pergunta que devemos nos
Para respondermos a essa pergunta talvez seja necessária uma volta ao que foi o
lema dos Estudos: “as histéricas sofrem principalmente de reminiscências”. O que seria,
Reminiscências...
onde mnemê [memória] era entendida como mera faculdade de conservar o passado, ao
Essa distinção não é corrente, como podemos notar com Mervant (1989a) na
comparação com outros termos que também se relacionam com a memória, como
No século XIX, a definição parece inclinar-se para um “ato pelo qual buscamos
reter uma lembrança incompleta (...) despertar fortuito de traços antigos sobre os quais o
espírito não tem visão clara e distinta” (ibid). No século XX, nos é proposta a seguinte
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definição: “retorno ao espírito de uma imagem cuja origem não é reconhecida (...), a
Ainda que Lalande nos advirta quanto ao caráter impróprio dessas duas últimas
freudiana da histeria, ao apontar para uma perda das fontes ou da origem da lembrança,
significando mesmo que ela, a lembrança, não comparece como tal, como uma possível
recapitulação do passado, mas quase como uma experiência primeira. Todavia, será a
primeira definição que deveremos manter muito próxima a nós para o que exporemos ao
empreendimento, essa pequena incursão pode nos oferecer alguma luz para entrevermos
o que se perfila a nossa frente. Isso porque, ainda que guardada as diferenças entre cada
uma das definições acima, podemos notar que um aspecto de retorno ou repetição,
marcado por uma certa ambigüidade entre a lembrança e o esquecimento, faz-se presente
sob a forma de uma falta de precisão, ou situando-se ora como um dado da vontade, ora
passagens de Freud, talvez viéssemos a perder de vista outros aspectos que também são
própria memória enfim, assim como o a posteriori, com base no que não cessou de estar
presente em tudo que foi escrito até aqui: um jogo incessante, um deslocamento que diz
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A partir dessa ambigüidade, que parece implicar dois movimentos não de todo
claros ainda, não devemos tentar reduzir um conceito a outro, memória à repetição, ou o
conceito que nos leva a pensar a repetição em sua radicalidade, não reduzindo-a a um
repetir algo, mas mantendo-a como “ponto de fuga de toda realidade possível de atingir”
memória e pulsão de morte foi apontada exaustivamente tanto por Lacan no Seminário
11, como por Deleuze em Diferença e Repetição. No entanto, não poderíamos pensar a
memória como uma interface entre essas duas proposições - a primeira marcada por
cabe uma diferença entre reminiscência e rememoração, tal distinção não se daria pelo
aristotélica.
Mas, a verdadeira distinção talvez deva ser apontada quanto ao que é visado na
repetição numa e noutra posição e que, sem dúvida, não pode ser reduzido a intenção de
um “tornar consciente”. Não estaria a repetição a nos posicionar justamente diante do que
não pode ser consciente, de algo irredutível, a lacuna na psique, o “corpo estranho” na
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memória? Será possível precisar a relação entre memória e repetição? Talvez venhamos
mundo das Idéias, não é ela também uma vontade de instalar-se imediatamente num puro
passado, que não se traduziria na recapitulação de tal ou qual evento, de um passado que
teria sido um dia presente, reapresentação, mas ao contrário, não apontaria ela para “um
ser puro do passado, um ser em si do passado, uma Memória ontológica capaz de servir
passado que está lá só-depois? Ou seja, um passado que não é passível de ser reecontrado
numa regressão infinita, mas que, ao invés, desdobra-se em vários momentos e reecontra-
se num salto, sempre fugidio, deslocado, lembrança ou sintoma, que deixa repousar sobre
parece também dizer respeito a essa repetição que ultrapassa o sujeito e que nele deixa
marcas, mas para quem “Algum dia, talvez seja uma alegria recordar até mesmo essas
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Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é
palavara. Quando essa não-palavra - a entrelinha - morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que
se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-
palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente.
C. Lispector
memória, uma dificuldade se impõe de modo crucial. Qual seja, a de efetuar uma
pesquisa onde a memória não seja caracterizada ou resumida a uma função psicológica.
observações sobre a memória nesse Seminário onde o Projeto freudiano é tido como um
Freud de que “a memória está representada pelas diferenças nas facilitações entre os
neurônios ” (Freud, 1990l: 410). Na verdade deveremos ir um pouco além nos servindo
de duas outras citações: primeiro, “a memória de uma experiência (isto é, sua força eficaz
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função primária”(ibid).
Freud não condiz com uma memória-arquivo ou uma possível memória estática, pautada
esquecer que ela também diz respeito a caminho, a uma certa preferência, via que não
preexiste a sua própria constituição. Esse sentido nos parece claro na tradução adotada na
apresenta-se como articulável numa cadeia, numa relação, notaremos que aquela reveste-
ligação. Tratar-se-ia de uma marca ou sinal que, contudo, não deixa de fazer exigência à
haveria uma relação linear progressiva entre impressão, traço e memória, na medida em
qual, já podemos dizê-lo, um saber, uma lembrança, é possível. Ainda que essa memória
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seja essencialmente inconsciente, tal como Freud a concebe em vários momentos de sua
Antes de procedermos a uma explicação do que poderia vir a ser uma “memória
Na verdade não é muito difícil notar que entre a postulação dos Estudos de que
formulações onde a rememoração poderia ser entendida como a resolução dos males
Então, o que se oferece como nosso objetivo passa por buscar o que na memória,
dizer respeito a algo que nela mesma apresenta dissonância, perturba constantemente o
observação nos situa muito bem no contexto do Projeto, onde a memória estaria a serviço
sucesso nesse empreendimento, qual seja, o de evitar o acúmulo de uma quantidade Q (ou
mais exatamente Qn) de energia. É interessante notarmos que essa memória da qual fala
Freud não diz respeito a uma situação - lembremos que no inconsciente não há
indicações de realidade, como nos aponta na Carta 69, por exemplo (cf. tb.
1 Expressão originalmente utilizada por Garcia-Roza e da qual nos servimos, embora não nos atendo à sua
formulação original (cf. Garcia-Roza,1992:56).
2 Seguimos aqui a indicação de W. Benjamin para quem não haveria em Freud distinção semântica
relevante entre os conceitos de lembrança e memória (cf. Benjamin, 1995:105).
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facilitações (idem:480).
Quer dizer, o traço mnêmico que caracterizaria a memória não diria respeito a
possível “fotografia” de um instante, mas aponta para as séries divergentes que são as
Roza,1993:58). Não seriam exatamente esses os fatores que apontamos acima como
significariam? O que se pode concluir de uma memória como resultado de uma força
eficaz e contínua?
É a partir daqui que nos iremos orientar com base nas observações feitas por
seminário com esse tema Lacan venha a tecer comentários bem pontuais sobre a
memória, não sendo, porém, seu objetivo realizar uma teoria a respeito. Entretanto, nos
encontramos com um texto que teria proporcionado uma relação entre ética e memória,
História e lembrança
de ir buscar nesse trabalho de Freud uma fonte para as suas elaborações, na medida em
que postulará ao longo do Seminário um campo que se situaria para além da tendência a
uma certa regularização ou descarga. Não será por outro motivo que veremos lado a lado
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afirma, quanto a articulação do princípio do prazer nos dois trabalhos, que o final
sentido de, ao mesmo tempo em que demarca campo distintintos - um regido pelo
Ainda que o princípio do prazer tenha em Freud começado por estar muito
numa redução radical das tensões ao nível mais baixo (cf. Laplanche e
importante precisar em que contexto Lacan utiliza um termo como destruição em seu
pulsão de morte com o princípio de nirvana, entendido este como a tendência de retorno
ao inanimado, quase que exatamente como o princípio do prazer começou por ser
forjado. Não é por outro motivo que Lacan faz apelo a Sade para falar de uma vontade de
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articulação que vai ao encontro do que o próprio Lacan apontava como sendo uma teoria
em que diriam respeito a uma certa ordenação, legível, e que apelaria a um Outro para
articularia em termos de uma série, sendo da ordem do sinal ou do índice, uma marca que
Nos vemos novamente no centro de nossa problemática inicial. Pois, ela não é
outra senão a pergunta sobre que relação existe entre a pulsão de morte e o princípio do
uma sucessão de inscrições, a memória condiz com uma “lógica do significante”, mas
isso significa que o que não se articula em lembranças deixa de ter efeito sobre elas1?
Quanto a isso, deveremos uma vez mais citar Lacan, na medida em que nesta
A pulsão de morte dever ser situada no âmbito histórico, uma vez que ela
se articula num nível que só é definível em função da cadeia significante, isto
1 Deleuze também parece colocar-se uma questão como essa quando trata do “instinto de morte” como
um princípio transcendental, e do princípio do prazer como tão somente psicológico (cf. Deleuze,1988:44).
Ele toca mais diretamente o nosso problema quando escreve que: “Eros e Tânatos distinguem-se
no seguinte: Eros deve ser repetido, só pode ser vivido na repetição; mas Tânatos (como princípio
transcendental) é o que dá a repetição a Eros, o que submete Eros à repetição” (idem:47).
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é, visto que uma referência, que é uma referência de ordem, pode ser situada
em relação ao funcionamento da natureza. É preciso algo para além dela, de
onde ela mesma possa ser apreendida numa rememoração fundamental, de tal
maneira que tudo possa ser retomado, não simplesmente no movimento das
metamorfoses, mas a partir de uma intenção inicial (Lacan,1988:258).
O que temos descrito aqui deverá servir para em breve (ver infra, cap.VI)
viés pelo qual a problemática do sentido ou, para o que nos interessa mais diretamente, da
memória poderá ser retomada, não indicando somente uma capacidade infinita de
feita de uma articulação significante (cf. Lacan,1988:272), não faremos outra coisa senão
um efeito mecânico, e nem podem ser confundidas com o resultado de algum hábito
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justamente a partir das tentativas de definição sobre o que seria então o trilhamento e o
prazer que Lacan começa a nos apresentar o que no seu entender é o centro da questão
ética.
É interessante notar que nas indicações sobre a memória duas faces se implicam.
Por um lado uma rememoração que se encontra ligada à satisfação; por outro, uma
dimensão que parece irredutível a esta e, como diz Lacan, vai mais além dessa finalidade.
temática do belo. Pois, considerando Lacan o belo e o bem como defesas contra o desejo,
em ambos ele irá ressaltar o aspecto ambíguo em que se faz apelo a uma satisfação; mas
detrimento do bem (idem:291), é porque ele procura acentuar um aspecto em que aquele
impossível”, não se podendo deixar de ver nessas poucas palavras a proximidade com o
para nos apoiármos num termo usado por Lacan a propósito de Antígona - que está
sua determinação em não submeter-se à lei invocada por Creonte, àquela do chefe de
Estado, da cidade1. Antígona situar-se-ia “numa certa legalidade que não está
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qualquer modo é esse caráter limite, ambíguo, de situar-se entre campos distintos,
invocando a estranheza de um sobre o outro - representação vs. lacuna, nómos vs. nómos
De modo mais específico, é a partir desse apelo a uma suposta “falha” - lacuna no
primeiro caso, subordinação a uma outra lei que a da cidade no segundo - que podemos
falar de outro modo, o motivo pelo qual a aposta da psicanálise não pode ser na
constituição de um saber que poderia vir a integrar o sujeito numa ordem qualquer,
fornecendo um significante com o qual ele poderia indentificar-se, por exemplo. Antes,
parece referir-se a um limite que nenhum saber poderia cobrir, do mesmo modo como as
referências ao belo feitas até aqui não tem como alvo qualquer traço de reconforto, mas
O filme La Belle Noiseuse2, parece justamente nos apontar essa dimensão do belo.
De início temos um jovem casal ligado às artes plásticas que acaba por conhecer um
famoso pintor e sua esposa, há muito fora do circuito comercial. Desse encontro nasce no
pintor a certeza de retomar o que teria sido a sua obra-prima, deixada inacabada há alguns
anos, tendo como modelo a jovem que acabara de conhecer. Passo a passo vamos
1 Não estamos fazendo uso da distinção entre belo e sublime, tal como, por exemplo, Zizek o faz servíndo-
se de Hegel e Kant (cf. Zizek,1992:126 e ss.)
2 Jacques Rivette,França,1991.
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impõe, sobre tudo e sobre todos, para sua conclusão. Todavia, justamente quando o
quadro foi dado como terminado, outro desenho esboçou-se ali. Algo a mais, ou em todo
em ambos - pintor e modelo - fez-se presente junto a tela. Algo que culmina no grito
desesperado da modelo ao pintor: “Você não tem o direito de mostrar isso a ninguém!”,
levando ambos a sepultar para sempre o quadro, longe dos olhos de todos. É a partir
desse “desenho” que se faz à revelia do pintor, embora contando com os traços
articulados por ele, e que, todavia, revela algo de mais íntimo do que a mais detalhada
O Estranho
ainda um significante que aponta para uma lacuna, uma representação-limite - estão em
perfeita sintonia com o vocábulo alemão unheimlich tal como foi apontado por Freud em
encontrados para essa palavra, o que mais chamará a atenção é a indiferenciação que
1 A princípio, numa perspectiva estritamente lingüística, a ambigüidade entre familiar e estranho está
unicamente ligado ao vocábulo heimlich (familiar, conhecido, secreto, oculto, inquietante e estranho).Trata-
se de um empreendimento de Freud levar tal ambigüidade também ao termo unheimlich (cf.
Hanns,1996:231-239).
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aspecto estranho que advém do efeito de repetição (como nos nomes das personagens
realidade já aparece como que comprometido de início por uma incerteza radical, que
Freud irá ilustrar de maneira exemplar através desse conto, onde a respeito dos fatos
desenrolados ali, não temos como saber “se o que estamos testemunhando é o primeiro
problemática do belo, que Freud justamente dê inicio ao seu texto interrogando-se sobre a
últimos parágrafos com uma das definições encontradas por Freud para o unheimlich, a
de Shelling, para quem “‘Unheimlich’ é o nome de tudo que deveria ter permanecido...
Tudo o que dissemos acima não aponta para outra coisa senão a relação entre o
levantávamos antes: de que modo a pulsão de morte incide sobre o princípio do prazer?
Isso é também, nos termos do Projeto, um modo de nos perguntarmos como o neurônio a
se relaciona com seus atributos; como a coisa, índice de uma exterioridade absoluta ao
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limite tênue, de difícil precisão, a partir do qual cumpre à pulsão uma exigência ao
psiquismo, ou, para abordarmos a questão de uma outra maneira e em termos lacanianos,
insinuar o que nas suas malhas não pode ser retido senão como perda ou falta. Daí não
significação. Será apenas isso? Não haveria um paradoxo, ou enigma, um pouco maior a
(...) esse objeto, não nos é dito que ele tenha sido realmente perdido.
O objeto é, por sua natureza, um objeto reencontrado (...) que ele
tenha sido perdido é a consequência disso - mas só-depois (Lacan,1988:149).
que Freud elabora o Além do Princípio do Prazer [1920], apontando para o que na
experiência como pertencente ao passado, enquanto a repetição passa por ser uma
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Mas, no que tange à memória é preciso ter ao alcance dos olhos o percurso que
começa antes de 1895, e não se detém em 1920. Em todo caso, nos parece extremamente
princípio do prazer como uma tendência a serviço de uma função, que seria a própria
que mesmo por essas vias impõem-se contra elas. Talvez seja desse modo que se possa
precisar o que do princípio do prazer não se coaduna com a noção de prazer, e o que da
posteriori].
encontramos uma distinção, sobretudo para dar conta de um acúmulo de “tensão peculiar
morte e princípio de nirvana de outro. A idéia que parece ser predominante na primeira
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O que deve prender nossa atenção é que na elaboração de Lacan a pulsão de morte de
saída não se resume ao princípio de nirvana. Ou seja, não está inclinada à cessação
completa das tensões. Freud toca também nessa possibilidade mesmo no Além quando
que não poderia ser resolvida simplesmente na esfera energética, no plano econômico.
Não se trata aqui de propor uma equivalência entre princípio do prazer e pulsão de
, mas que, no entanto, faz-se sempre presente. Uma memória, para tratá-la propriamente,
que não responde pelo passado, mas que imanente ao sujeito o mantém afastado de si
Lacan intensifica essa dimensão onde algo comparece como uma falha, ou falta,
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relação a qual também não se pode deixar de apontar uma persistência, onde o próprio
(...) é como um paradoxo ético que o campo do das Ding é reencontrado no final, e
que Freud aí nos designa o que na vida pode preferir a morte (...) Freud designa-nos
esse campo como sendo aquele em torno do qual o campo do princípio do prazer
gravita, no sentido em que o campo do princípio do prazer está para além do
princípio do prazer (...) (Lacan,1988:131,grifo nosso).
Se Lacan nos propõe que o Além esclarece o Projeto, é porque existe algo de
do prazer, constituindo-se mesmo como uma dimensão sobre a qual o próprio princípio
conceitos, acabaríamos talvez próximos das elaborações de Laplanche para quem parece
haver muito no conceito de princípio do prazer que ainda não foi suficientemente
especificado. Sem dúvida a preocupação é pertinente, mas não devemos tomá-la como
indicativo de que o conceito de pulsão de morte não teria algo novo a oferecer ao
servir aos instintos de morte” (Freud,1976c:85), ele parece por seu turno também apontar
subordinação, por exemplo, entre ambos os conceitos. Não é por outro motivo que se
poderia dizer que em Freud “ o principio do prazer aparece como distinto de tudo o que
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Assim, se salientávamos que algo poderia ser dito sobre memória e ética a partir
com a tragédia, ilustrado por Lacan com Antígona, sobre quem fala de uma escolha
absoluta, escolha que nenhum bem motiva. Escolha que sustenta um limite, Atè, para
além do qual “ a vida humana não poderia transpor por muito tempo” (Lacan,1988:318).
Por que? Porque a memória também constitui-se por esse limite onde o que conta não é
apenas o que à consciência revela-se como recordação. É assim que o inconsciente pode
nos ser definido como “memória do que ele [o homem] esquece” (idem: 282). Para citar
de modo completo:
Emma
Todo o percurso realizado neste capítulo deve terminar no Projeto, no que lá nos
foi mostrado através de um esquema gráfico justamente o vínculo entre o que “deveria ter
permanecido secreto e oculto, mas veio à luz”. Ligação entre o que se apresenta como
uma inocente lembrança, ou nem tanto, em todo caso uma “primeira mentira”, e o
tarde e o outro cedo ainda, quase não demarcável, que localizamos o nachträglich
freudiano.
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É na parte II do Projeto que o caso Emma - que não é a mesma dos Estudos sobre
a Histeria - nos é narrado (cf. Freud,1990l: 476). A respeito desse caso é interessante
notar o comentário de S. André, para quem Lacan faz ressurgir aquilo que se apresentava
É desse modo que Emma está entre a lembrança que ela discerne no passado e
uma outra que vem à análise posteriormente, passo a passo com a construção do analista.
esquema apresentado por Freud, um vazio de onde parte uma seta que se dirige à
descarga sexual. Poderíamos ver aí diversos estratos, para usar um termo caro à Carta 52,
coisa senão indagar sobre os seus limites. Não no sentido da possibilidade de uma
rememoração total - Freud mesmo marca esse impossível, tanto na Carta 69 como nas
suas elaborações sobre a amnésia infantil. Contudo, talvez, seja preciso defini-la como
uma escolha por uma re(a)presentação, a partir da qual, o significante apontaria para uma
face do real, e ela, a lembrança, poderia ser tomada como intempestiva 1, não dizendo
1 Para essa noção oriunda do pensamento nietzscheano, cf. Deleuze,1988:18. M. Moscovici também parece
dar ênfase a essa noção, todavia usando como fonte um texto de P. Loraux -Le Temps de la pensée (cf.
Moscovici,1994:37 e ss.).
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respeito apenas a um tempo que passou, mas acentuando o que ali só pode comparecer
quadro de Dalí de mesmo título1, onde, sob uma paisagem árida, contemplamos uma
fenda que parece significar o fim de tudo que ali está, uma árvore retorcida e relógios que
quase desaparecem. Relógios que não mais marcam um tempo que passa, ou que passou.
Porém, marcados por um tempo de outra natureza, destruidor, e, por isso mesmo,
apontando para um recomeçar conforme uma outra economia que não se detém nos
limites de uma história individual, e nem diz respeito a algum possível passado coletivo e
mítico.
Assim como quisemos fazer notar esse quadro parece nos oferecer um aspecto
E é aí que “a função da memória, (...), é rival (...) das satisfações que ela é encarregada de
passado que teria sido, multiplicando significações. É nesse desvio que nos deparamos
com uma face onde o deserto de Dalí e o crânio de Holbein também comparecem2.
1 Esse quadro data de 1931 e atualmente encontra-se no Museu de Arte Moderna, NY.
2 A breve incursão que propusemos entre a dimensão pictórica, a memória e o belo, já havia sido proposta
por Lacan no próprio Seminário 7. Lá, a ênfase foi dada ao tempo propriamente dito, onde o belo revelaria
uma face que muitas vezes pretenderíamos ver esquecida: “(...) é na medida em que a natureza morta
mostra-nos, ao mesmo tempo, e esconde-nos o que nela ameaça - desenlace, desenrolar, decomposição -,
que ela nos presentifica o belo como função de uma relação temporal” (Lacan,1988:357).
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Tempo de Compreender
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V. Do Saber e da Memória
O que havia depois do universo? Nada. Mas havia alguma coisa à volta do universo para
mostrar onde ele parava antes que o lugar nada começasse?
J.Joyce
pouco mais sistemática do uso que é feito por ele do a posteriori. Do mesmo modo
seguiremos Freud ao longo do caso Dora, onde, para o que nos interessa neste momento,
notaremos como a problemática da transferência passa por uma reviravolta com relação
ao modo como se apresentava até então. É a partir desse caso, sobretudo como podemos
notar no posfácio, que o fenômeno da transferência vai ser apreciado como implicando
necessariamente a figura do analista. Mas, o que teria a memória a ver com isso?
Apenas para darmos os primeiros passos, deveremos ainda colocar mais uma
questão: a transferência não implicaria uma relação do sujeito com sua história, tendo
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psicanálise, também não é certo que nela o sujeito depara-se com os significantes-mestres
que o determinaram ao longo de sua vida, nos moldes como C. Soller nos mostra pelo
não é o passado” (idem:15). Ele vai procurar mostrar como em Freud, notadamente num
período que chamará de intermediário, que vai da Interpretação dos Sonhos ao Homem
Sem dúvida Lacan está levantando todos esses problemas em função do episódio
do Homem dos Lobos, onde evento e fantasia parecem implicar-se, para, num primeiro
acompanhar o seu desenrolar ao longo de alguns outros pontos da obra lacaniana, assim
Devemos nos ater a essa pequena frase já citada de Lacan segundo a qual “a
história”(idem:48).
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Fica patente, no modo como Lacan vai utilizar-se da noção de história, que ela
fica dependente não de um passado, mas do modo como ele é retomado num tempo por
É importante notar como essa argumentação sobre a história faz-se tendo como
pano de fundo a própria questão do a posteriori. O modo como Lacan desdobra o tema
no Seminário 1 merece toda a nossa atenção para que não venhamos a pressupor que o a
posteriori aponte para uma integração total do passado pelo sujeito. O que
poder fazer o inconsciente tornar-se consciente. No limite, e aqui trata-se de opor Freud a
É assim que Lacan nos diz que a neurose infantil do H. dos Lobos desempenha
o mesmo papel que uma Psicanálise, a saber, realiza a reintegração do passado, e coloca
em função no jogo dos símbolos a própria Prägung, que ali só é atingida no limite, por um
jogo retroativo, nachträglich (...) (idem:221).
1 Esse mesmo problema é retomado por Lacan no Seminário 17: “Logo depois da última guerra (...) tomei
em análise três pessoas do interior do Togo, que haviam passado ali sua infância. Ora, em sua análise não
consegui obter nem rastros dos usos e crenças tribais, coisas que eles não tinham esquecido, que
conheciam, mas do ponto de vista da etnografia. (...) O inconsciente deles não era o de suas lembranças de
infância - isto é palpável -, mas sua infância era retroativamente vivida em nossas categorias famil-iares
(...)” (Lacan,1992:85).
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Ainda será preciso fazermos mais uma citação de Lacan, já que a advertência que
Basta simplesmente que o sujeito nomeie seus desejos, que tenha permissão de nomeá-los,
para que a análise esteja terminada? Não fico por aí1 (idem:223).
É por esse viés que estamos tentando definir o a posteriori, em hipótese alguma
movimento retroativo onde a causa recém descoberta poderia bem ser talvez a derradeira.
totalizante, como nos é ilustrado por Schreber (“Ordem do Mundo”), e também por Fliess
Retornando a Lacan, uma sutileza parece residir em suas últimas citações. Nelas
podemos notar que o trabalho da análise não se resumiria a uma retomada do passado,
mas a reintegração no jogo dos símbolos do que beira, do que quase escapa à
1 Philippe Julien também insiste nessa questão. Ele nos faz a seguinte pergunta: “O processo analítico tem
por alvo uma Bejahung completa, uma exaustão total no simbólico, de tal modo que nada apareça no real?
É possível, se é verdadeiro que Freud reconheceu o urverdrängt, o recalcado irredútivel, impedindo que o
todo possa se dizer? (Julien,1990:96). E continua: “A análise não tem por alvo uma exaustão da história do
sujeito no simbólico. Em razão disso: o inconsciente freudiano não é redutível ao recalcado; se o fosse,
como o recalcamento não é sem retorno do recalcado, uma totalização da história poderia ser realizada
inteiramente na palavra nomeadora (...)” (idem:174).
99
100
implicado no sintoma, e uma ordem temporal mais elevada, o que será isso afinal1?
medida em que se para este o inconsciente não conheceria o tempo (cf. Freud,1974:214),
para Lacan o fato do inconsciente se colocar fora do tempo é e não é verdade (cf.
Lacan,1986:276).
Talvez seja o momento de mais uma vez nos aproximarmos do tripé que
propusemos como tema deste trabalho. Pois, se até aqui ficamos, a nível do enunciado,
tempo. Mas, para fazê-lo saltar para uma dimensão menos vulgar que a da cronologia, da
linearidade, do quotidiano, e que com certeza foi contra a qual o conceito de inconsciente
indestrutibilidade dos traços mnêmicos. Todavia, como vimos nos capítulos precedentes,
recordação total, dilema que todavia marcou Freud. O que parece capital é que a par de
1Guy Le Gaufey afirma ter sido o nachträglich que permitiu a Freud a passagem da teoria da sedução
àquela do fantasma (cf.Gaufey,1983:203).
100
101
Ainda que pouco usual, a síntese que estamos propondo parece ter encontrado até
aqui seu exemplo maior no caso Emma do Projeto (ver supra, cap.IV). Ali trauma e
lembrança se recobriram, mas para apontar no gráfico proposto por Freud, e retomado
por S.André, um limite onde a própria representação pareceu faltar, e que seria a idéia de
trauma por excelência. Não é por outro motivo que S. André concede tanta importância à
Todavia, essa “lacuna” diria respeito a algo que poderia ser “preenchido”?
mesmo a dizer que se trata de um dos conceitos diretores de seu pensamento ao lado do
Homem dos Lobos: a questão de uma origem, de um ponto inicial, começo absoluto que
aspecto que é sublinhado por Derrida no uso conjugado que faz do Nachträglichkeit e do
Verspätung. O que é salientado por ele é que esse “retardamento” não diria respeito a uma
relação entre dois presentes possíveis (idem:302-3 e 306), onde algo que não ocorreu
101
102
num dado momento viria a ter lugar num segundo instante, sucessivo. Como ele mesmo
A conclusão de Derrida deverá ser citada na íntegra para que possamos seguir os
seus desdobramentos:
[Quanto ao texto inconsciente] tudo começa pela reprodução. Sempre já, quer dizer,
depósito de um sentido que não foi jamais presente, cujo presente significado é
sempre reconstituído em retardamento, nachträglich, só depois, suplementarmente:
nachträglich quer dizer também suplementar (idem:314).
sintoma, por exemplo, começamos a notar que o a posteriori aponta para uma produção a
mais, um excesso que tem implicações na ordem da causalidade, e que nos é revelado sob
colmata, que vem preencher faltas, mas incide sobre o que se dá a mais, de modo
Sobre esse aspecto, ainda é em Derrida que deveremos buscar mais subsídios para
a nossa pesquisa. Ele nos lembra que “Nachtrag tem também um sentido preciso na
caso o que vem acrescentar-se de modo a promover um sentido que não estava garantido
102
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encontra-se ultrapassada, lançada inteiramente num tempo por vir. De certa forma, não é
essa experiência apresentada por Freud nos inúmeros acréscimos, através de notas
própria idéia de um limite entre eles que estaria sendo posta à prova...(cf. Jacob e
Auroux,1990:139-140).
É a partir dessas mesmas questões que reencontramos Lacan quando ele nos diz
que:
(...) a Verdrängung, não é nunca senão uma Nachdrängung, o que vemos sob a volta
do recalcado é o sinal apagado de algo que só terá o seu valor no futuro, pela sua
realização simbólica, a sua integração na história do sujeito. Literalmente, nunca
será mais do que uma coisa que, num dado momento de realização, terá sido (Lacan,
1986:186).
memória passa por um enquadramento onde não é possível dissociá-la do próprio setting,
no que entendemos sob essa denominação a instauração das duas regras básicas
(associação livre, por um lado, e abstinência, por outro), bem como o estabelecimento da
transferência.
103
104
na história do sujeito, de modo que ele possa vir implicar-se em sua narrativa,
porque o próprio prefixo “auto” deve ser colocado em suspensão. É na relação com uma
alteridade radical que o analista encarna (seja como sujeito suposto saber, objeto a, ou
como Outro), que tem início o trabalho de reconstituição de uma história. “Reconstituir
analista. Ou seja, é o fato do analista não ter como alvo preencher as lacunas do discurso,
que permite ao sujeito percorrer a série significante a partir da qual ele se representa.
Quer dizer, “Na análise (...) [o sujeito] vem produzir, reencontrar e ejetar
1 É interessante notarmos como essa questão também é formulada em outros domínios, como, por
exemplo, a literatura. À guisa de ilustração podemos citar a entrevista de Hector Bianciotti, escritor
argentino radicado na França, a Betty Millan (Folha de S.Paulo, caderno Mais!, 19.12.93). H. Bianciotti
procura fazer ali a oposição entre autoficção (conceito que teria sido forjado por ele) e autobiografia, uma
vez que, como é exposto, a memória e a imaginação trabalhariam juntas. Ainda que não tendo argumentado
com toda minúcia, já que se tratava de uma entrevista, ele procura assinalar como nós não nos lembramos
do fato em si mas da última vez em que nos lembramos dele. Daí decorreria que a autobiografia é
simplesmente impossível, enquanto fidedigno a uma série de situações, sendo mais propício o termo
autoficção. A experiência decorreria portanto de uma pontuação da própria história, onde, pelo viés da
linguagem, o próprio nascimento estaria submetido a determinantes outros, estabelecidos pela tradição,
pelo desejo dos pais, por exemplo. Ele conclui fazendo apelo a uma dimensão criativa da literatura,
segundo a qual ela seria a arte de não chamar as coisas pelo nome, sendo, ao contrário, o modo de utilizar a
linguagem de um modo evocativo e de se deixar levar pelas palavras, abrindo margem, portanto, para
outros destinos que aqueles que poderiam ter sido assegurados pela certeza de um passado.
104
105
apreciá-la de forma mais direta, ainda que não seja nossa intenção quanto a esse tema de
promover um estudo exaustivo. Vamos nos deter sobretudo no caso Dora, e de forma
lateral em alguns comentários de Lacan, principalmente no que teve como objeto aquele
caso freudiano. Essa incursão ainda que breve, justifica-se na medida em que a
Este comentário sobre o caso Dora irá deter-se sobre a questão da transferência,
terceiro, sobre o que poderia ser a história do analisando tomada numa perspectiva
1 Vale lembrar que para Lacan a duração total da análise, e a duração da sessão compõem os modos de
incidência do tempo na técnica analítica (cf. Lacan,1990a:298-300).
105
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analítica. Poderíamos dizer que pelo menos as duas últimas questões entrelaçam-se no
Assim, aproximar-se do caso Dora por esse viés nos parece ser uma via
interessante, na medida em que logo nas primeiras páginas do caso Freud nos diz:
É justamente esse “preencher as amnésias”, tão constante em Freud, que nos força
por um instante a retornar ao texto da primeira afirmação lacaniana. Nele notaremos que
importância da escansão do discurso do paciente. Nela “se verá ajustar-se essa pulsação
da borda por onde deve surgir o que reside aquém”(Lacan,1992a.:323). Ou seja, o tempo
ao qual Lacan faz menção nessa passagem aparece como que indissociavelmente ligado à
este cabe determinar o sentido do que lhe é oferecido, através dos cortes que opera no
discurso do analisando.
Talvez nenhum outro caso seja mais exemplar a esse propósito, mostrando-nos os
descaminhos por onde se pode ir no que diz respeito ao sentido de uma interpretação. O
amor de Dora pelo senhor K., que Freud aponta em vários momentos (Freud,op.cit.:100 e
1 Ao falarmos em interpretação e intervenção do analista temos em vista a formulação lacaniana de
1966, onde a transferência teria “sempre o mesmo sentido de indicar os momentos de errância e também de
orientação do analista, o mesmo valor para nos chamar a atenção sobre o nosso papel: um não agir positivo
em vista da ortodramatização da subjetividade do paciente” (Lacan,1992b:99).
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105), é também desmentido por contrabando quando nas notas de rodapé (idem:101 e
113; Lacan, 1992b:95) Freud salienta a possibilidade de amor homossexual entre Dora e
a senhora K.
Assim, quando Freud escreve sobre o começo do tratamento, dizendo que solicita
que seja narrada toda a biografia da paciente e a história de sua doença, sendo ainda de
todo modo as informações insuficientes para sua orientação (Freud,op.cit.:24), ele nos
apresenta dois problemas: primeiro, que a narração de uma biografia é insuficiente para
texto que tem esse conceito como tema, afirmando que o tempo é um vetor constitutivo
interpretativa (cf.Miller,1988:88).
analista assume no decorrer do tratamento: sujeito suposto saber e objeto a, e que nos
simbólico, e outra fazendo apelo ao que Lacan postulou como real 1. Mas, para não nos
Freud ver-se-á forçado a lançar mão de uma construção, sem que esta oponha-se a algo
de autêntico, mas, pelo contrário, entrando num tipo de consonância, como a que existe
entre um arqueólogo e o objeto por ele restaurado (Freud,op.cit.:21), e que é tantas vezes
107
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descrito por ele, desde Lembranças Encobridoras [1899] até Construções em Análise
[1937].
Ainda que Freud nos tenha delineado esse “ponto cego” para o qual nenhuma
história parece suficiente, ele insiste num trajeto que chega até aos primeiros anos de vida
experiência ocorrida com o sr. K em sua loja, quando ela tinha 14 anos, e onde a partir de
um beijo, ao invés da excitação sexual, foi a repugnância que veio instalar-se (ibid).
Daí a proposição de Freud: “Eu tomaria por histérica, sem hesitação, qualquer
cego”, a histeria, como nos aponta S. André (1987), nos coloca o problema da fronteira
poderíamos do mesmo modo dizer, conforme Lacan, real1. Ou seja, se é pela via do
a clínica da histeria nos mostra pelo fracasso do recalque a hiância por onde se manifesta
o trauma (ibid). Tal perspectiva tem uma relação muito particular com o que é da ordem
1 É S. André quem escreve: “(...) Para além da lógica fálica da castração, o processo analítico revela, de
fato, ao sujeito que o objeto causa do desejo - o objeto da pulsão sexual - é fundamentalmente assexuado,
o que quer dizer que a sexualidade humana não está ligada, originalmente, a uma diferença entre os sexos
sobre a qual o inconsciente permanece mudo (André,1987:15, cf. tb.caps.3-6). André continua essa
explanação nos seguintes termos: “(...)“Homo” ou “hetero”, é do falo que se trata, desse significante único
de um sexo que deve por conseguinte, diferenciar-se pelas mais obscuras vias, e também do objeto causa do
desejo, impossível de apontar, mas, ainda assim, real, e cuja natureza, por sua vez é assexuada”
(André,1995:115).
108
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do dejeto, como Freud nos faz ver na relação entre o sexual e o excrementício 2
É nos moldes de uma reedição que Freud discute a transferência no caso Dora.
Representações e “fantasias substituindo uma pessoa anterior pela pessoa do médico (...)”
dos Sonhos. Quer dizer, entre uma representação inconsciente e uma representação
psíquica da primeira para a segunda, a partir do que poderia ocorrer uma certa
primeiro passo na direção da cura, que hoje podemos chamar de retificação subjetiva, e
que não teria a sua eficácia se não fosse aliada à transferência. Freud escreve quanto a
cura que “de nada servem todas essas afirmações de que é ‘apenas uma questão de
pelas vias indiretas da análise fazer com que a pessoa convença a si mesma da existência
Todavia, ainda é preciso olhar com mais cuidado para a relação entre transferência
e deslocamento, ou, entre sonho e histeria, como teria sido o título original desse caso.
2 A importância desse entrelaçamento, entre o sexual e o excrementício, será precisado por Freud nos
seguintes termos: “O excrementício está todo, muito íntima e inseparavelmente, ligado ao sexual; a posição
dos órgãos genitais - inter urinas et faeces - permanece sendo o fator decisivo e imutável. Poder-se-ia
dizer neste ponto, modificando um dito muito conhecido do grande Napoleão: “A anatomia é o destino”(...)
(Freud,1970a:172).
109
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“Que queres?” que deveríamos ouvir ecoar em cada intervenção analítica? E desse modo,
não estaria o sujeito em análise diante de um convite a que seu passado seja retomado
O fracasso da memória
Um dia, há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na
antiga Rua de Matacavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra, que desapareceu (...).
O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor,
não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só
me faltasse os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu
mesmo, e esta lacuna é tudo.
Machado de Assis
1 Nos servimos aqui de uma formulação de Lacan, alterando, contudo, o contexto de seu enunciado (cf.
Lacan,1992b:99).
110
111
importante não dissociá-la de uma questão do tempo, o que implica dizer, como já
sujeito não diz respeito apenas ao que poderíamos chamar de “uma busca em seu
passado”.
Foi esse o motivo que nos levou a ressaltar que tanto o conceito de inconsciente,
posteriori, uma articulação com a memória que muitas vezes não é suficientemente
notada.
também teriam definido a memória desde uma outra perspectiva, citando como exemplo
psicologia procederiam.
Essa observação é feita aqui apenas para que não tenhamos a impressão ingênua
de que sob um termo, seja memória ou tempo, encontraríamos definições unívocas por
como exemplo de estudos que têm o tempo e/ou a memória como temas privilegiados, os
111
112
Informática com fortes ressonâncias também no campo das Ciências da cognição (cf.
Lévy,1987); ou ainda talvez o mais famoso de todos no que diz respeito as implicações
e Stengers,1991).
interna à sua obra no tocante à memória. Ela manifesta-se numa diferença de tratamento
rememoração; e, por outro, a memória sendo apreciada numa perspectiva que a trata
No entanto, não se trata de afirmar que uma via prevaleceu sobre outra, mas notar
a tensão com que as duas se fizeram presentes em Freud e por que motivos.
Todavia, essa delimitação ainda não seria suficiente para definir o principal
objetivo deste trabalho. É necessário reter dos capítulos precedentes uma pontuação que
quer apontar para um avesso do que comumente é concebido como o a posteriori. Isso
quer dizer que se é em Lacan que o conceito freudiano de nachträglich recupera o seu
vigor (cf. Magno,1986:4), não é menos certo que os chamados lacanianos parecem ter
112
113
basta)1. É nessa via que Zizek fala de como o significante “comunismo” (S1) teria
reordenado toda uma série que dizia respeito, por exemplo, a “trabalho”, “capital”,
“proletariado” etc.
considerações sobre um limite que pode ser lido como “lacuna na psique” (Rascunho K)
salientadas tanto por Lacan como por Zizek. Trata-se em todo caso de uma certa falência
da representação que não é outra coisa senão o centro da questão do trauma, tal como
pudemos ver na leitura de S. André sobre o caso Emma, citado por Freud no Projeto (ver
1 Seguimos aqui a indicação de Zizek para quem o S1 responderia propriamente pelo ‘ponto de basta’,
como sendo significante-mestre (cf. Zizek,1991:43). Por outro lado, há autores que acentuam um aspecto
de ‘antecipação’ a S1, sendo S2 o responsável propriamente dito pelo trabalho de ressignificação (cf.
Eidelsztein,1993:64,65 e120). Para além do que poderia sugerir uma divergência, parece claro que ambos
acentuam uma diferença entre os significantes, a partir da qual um deles compareceria como ‘ponto de
exceção’ donde uma significação se estabeleceria. Talvez uma incursão pelo Seminário 17 possa nos ajudar
a tornar mais precisa essa relação entre S1 e S2: “(...)S1 é aquele que deve ser visto como interveniente. Ele
intervém numa bateria significante que não temos direito algum, jamais, de considerar dispersa, de
considerar que já não integra a rede do que se chama um saber” (Lacan,1992:11); “De início, seguramente
ele[S1] não está. Todos os significantes se equivalem de algum modo, pois jogam apenas com a diferença
de cada um com todos os outros, não sendo, cada um, os outros significantes. Mas é também por isso que
cada um é capaz de vir em posição de significante-mestre, precisamente por sua função eventual ser a de
representar um sujeito para todo outro significante” (idem:83).
113
114
significação), na mesma medida em que não deixam de delimitar algo refratário a ele. No
caso de Freud isso é caracterizado através do conjunto de textos citados até aqui, onde a
seu grafo do desejo o point de capiton [ponto de estofo] indica uma certa parada,
tempo em que ele também se constitui por outros elementos que não apenas os
significantes, como, por exemplo, a voz e o gozo [jouissance]. Isso quer dizer que algo é
produzido no registro simbólico (significante), sem contudo encontrar ali o seu lugar. É
esse produto que poderíamos chamar de resto1, objeto por excelência da psicanálise2.
Algo que tanto do lado do analisando, quanto do analista, embora de modo diferenciado,
vai implicar um “não saber” que, no entanto, deverá ter o seu lugar na cura 3. É nesse
contexto que falamos anteriormente em memória intempestiva, o que não deixa de ser
desejo de Lacan, em concomitância com o caso do Homem dos Lobos de Freud. O nosso
objetivo nessa escolha é apreciar como nesses dois momentos é articulada a relação entre
o que nos capítulos anteriores chamamos dois registros distintos e implicados. No caso do
1 Quanto ao tema do resto como um dos nomes do real, parece ser extremamente interessante a indicação
de Roudinesco quanto a presença velada do pensamento de Bataille nas teorizações de Lacan, sobretudo no
que diz respeito a heterologia (“ciência do inassimilável, do irrecuperável, dos dejetos ou dos ‘restos’) e as
reflexões sobre o impossível (cf. Roudinesco,1994:148 e 150; Bataille,1989, principalmente o ensaio sobre
Baudelaire).
2 “A categoria do real é essencial ser introduzida, ela não pode ser negligenciada nos textos freudianos. Eu
dou a ela esse nome enquanto ela define um campo diferente do simbólico (...)” (Lacan,1985a:98).
3 “(...) por um certo aspecto, o analista tem muita consciência de que não pode saber o que faz em
psicanálise. Há uma parte dessa ação que lhe resta, a si mesmo, velada” (Lacan,1988:350).
114
115
falarmos em diferença entre os dois níveis não pretendemos caracterizar uma simples
oposição, já que a estrutura que o grafo nos deixa ver é topologicamente semelhante a da
banda de Moebius, possui a forma de um “oito interior” e, por conseguinte, faz apelo a
No que diz respeito ao Homem dos Lobos existe uma dupla incidência de uma
na determinação de Freud em estabelecer uma data para o fim da análise. É pelo viés
estabelecido por essas duas decisões que entendemos estar aberta também uma
Duas memórias
Desse modo podemos notar que no Seminário 2[1954-55] Lacan tece algumas
considerações que nos são pertinentes. Para começar, ele invoca o efeito Zeigarnik 1 para
mostrar como a memória no homem é marcada por uma especificidade que a coloca num
1 O efeito Zeigarnick foi descrito pela primeira vez por Bluma Zeigarnick [1927], aluna de K. Lewin, como
sendo “uma fixação na memória da lembrança de uma tarefa interrompida ou de uma intenção que não
pôde ser realizada” (Sillamy,1983:709).
115
116
usual da memória, ao mesmo tempo em que afirmamos que algo sobre ela pode ser dito a
partir da psicanálise.
delimitar uma especificidade ao que quer que diga respeito ao homem, em detrimento de
qualquer aspecto comum que este pudesse manter com o reino animal, irá no próprio
símbolo a engendrar por sua vez uma sucessão” (Lacan,1985:234); e a segunda sendo por
sua vez não mais que uma característica do ser vivo, “propriedade definível da substância
viva” (ibid).
Ainda é preciso citar Lacan mais uma vez para circunscrevermos o âmbito onde
116
117
tenha como efeito uma mudança na posição do sujeito (retificação subjetiva). Entretanto,
que Lacan tenha de certa forma proposto um passo a mais não é duvidoso.
Não é por acaso que introduzimos aqui esse conceito, ainda que, sem dúvida,
de sua formulação inicial. Assim, é preciso ter em vista que Lacan o define como o
sendo a do par sentido2/resto. Não se trata, contudo, de uma oposição entre os elementos
1 É interessante lembrar que nesse Seminário Lacan mantém um diálogo com a Cibernética, sobretudo no
que diz respeito a especificidade do simbólico, da linguagem. Pierre Lévy, autor que pesquisa os
desdobramentos das novas tecnologias, principalmente as ligadas à informática, sobre a cognição, tem se
detido também sobre o problema da memória (Lévy,1993). A citação seguinte tomada em paralelo com a
citação de Lacan acima não deixa de ter ressonâncias sobre o que chamamos de memória intempestiva (ver
supra, cap. IV): “A subjetividade da memória, seu ponto essencial e vital, consiste precisamente em rejeitar
a pista ou o armazenamento no passado a fim de inaugurar um novo tempo” (Lévy,1993:132).
2 Em nossa introdução havíamos citado Miller quanto a oposição entre significação e sentido. De nossa
parte, porém, como já assinalamos, optamos por não iniciar uma investigação dos valores desses termos por
117
118
ainda propor uma oposição significação/sentido 1, mas tal empreendimento não nos
Desse modo, a relação que estamos em vias de estabelecer diz respeito a essa
segunda memória que se desenha as custas do que é dito, narrado. Sendo, todavia, no
poderíamos dizer - são construídas. Conté coloca a questão nos seguintes termos: “(...)
esse sentido (...) posto em circulação pela análise revela-se delimitado por algo de um
tratar-se de um tema vasto e que requer um trabalho próprio, haja vista os diferentes contextos em que
apareceram ao longo do percurso lacaniano. Podemos citar, por exemplo, que no Seminário 3 não
encontramos um campo semântico próprio a cada um desses termos, sendo o termo significação tomado em
diferentes acepções. Todavia, por vezes Lacan parece aproximar significação do registro imaginário: “Que
a significação seja da natureza do imaginário não é duvidoso” (Lacan,1985a:66); ao passo em que o sentido
é utilizado num contexto um pouco diferente: “(...) o sentido, que tem por natureza ocultar-se, acusar-se
como algo que se oculta, mas que se põe ao mesmo tempo como um sentido extremamente pleno cuja fuga
aspira o sujeito em direção ao que seria o cerne do fenômeno delirante, seu umbigo” (idem:294). Esse
parece ser também o caminho escolhido por Milner quando escreve que: “Após tudo, é bem assim que se
legitimam as técnicas de leitura tão características de Freud ou Lacan. Deslocar os acentos, para melhor
fazer ouvir o real da matriz rítmica. Romper as ligações visíveis, para melhor revelar as ligações reais.
Fazer desaparecer as significações, articuladas e completas, para fazer emergir o sentido, sempre lacunar”
(Milner,1995:10, grifos nossos;cf. tb. Lacan,1973:40,44 e 46). Nessa mesma perspectiva, cf. também
Souza,1991:15-16, bem como Nancy e Lacoue-Labarthe (1991:70), que sublinham o fato de que na língua
francesa faltaria uma desinência para passar da “significância” à “significação”: “A significância opera
assim ao menos na borda da significação, isto é, ela toca naquilo que, até aqui, foi excluído por Lacan da
ordem significante”. Para uma retomada dessa questão, em contraposição à uma certa indiferenciação que
comentávamos acima, cf. Lacan,1973:36 e ss. Desse modo, optamos por utilizar o termo sentido como
vizinho ao fora-do-sentido, ao que escapa a cadeia significante, como enunciado há pouco com o termo
significância. O termo significação será utilizado, por conseguinte, de dois modos. Ora como o que é
articulado no basteamento significante (efeito), não havendo ênfase sobre o que resta de tal operação
(produto); ora em referência à miragem de uma totalização da história, ou da memória, tal como
desenvolveremos a partir da chamada ilusão retroativa (ver infra, cap.VII).
1 Ver nota anterior
118
119
como dizendo respeito aos efeitos de significação, é porque parece haver uma
estabelecimento de uma história, não deixa de estar presente uma “exigência” que não se
deixa integrar na rede narrativa, nos mesmos moldes como a propósito da pulsão fala-se
de uma “exigência” ao psiquismo. E é nesse trabalho que vão se compondo produtos que
não são outras coisas senão os sintomas, os sonhos, as inibições e as lembranças. Quer
deixam de apontar para “(...) um verdadeiro que não é apreensível num saber ligado”
A nomenclatura utilizada por Lacan nessa última citação nos remete quase que
relevantes. Levando-se em conta que o termo ligação tem sido em português a versão
iminentemente ligada à idéia de Ego no Projeto, tomado como “a totalidade das catexias
119
120
propriamente ao processo primário, uma vez que este não seria “uma descarga maciça de
2) Ocorre que mesmo no Projeto o aparelho psíquico é marcado por uma série de
consideração que ele está em estreita correlação com o processo primário? Novamente
energia psíquica até a completa evacuação são para Freud sinônimos. Vemos que tal
Das linhas acima é a ambigüidade que comparece como ponto central. Aliás, é
dessa ambigüidade que já algumas vezes nos servimos para tentar circunscrever a
posteriori. Lembramos que, em linhas gerais, o que tratamos como ambigüidade deve ser
entendido em relação ao que Freud nos mostra em seu texto O Estranho (ver supra,
cap.IV). Ali, no decorrer da análise que Freud efetua do vocábulo alemão das
como indissociáveis. Limite, onde o que seria secreto e oculto terá vindo à luz...
Deveremos uma vez mais retornar a algumas passagens do Projeto. Por um lado,
120
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por Freud no próprio Projeto, bem como com o que a posteridade de seu pensamento
fala em uma “força eficaz e contínua” (idem:410) -, a importância dela no Projeto não vai
poder ser reduzida a uma possibilidade de ser um espelho do mundo. Muito pelo
contrário, parece ter uma função específica em íntima consonância com a própria
aparelho psíquico:
Por esse caminho não poderíamos afirmar que a memória está ligada à função
primária? O que, por sua vez, implica levarmos em consideração a formulação de Freud
121
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no Além, onde “O princípio de prazer parece, na realidade, servir aos instintos de morte”
(Freud,1976c:85).
responde tanto por uma concatenação, como também ao que em torno disso poderíamos
O que será que pode ser a memória de algo que está tão
apagado, uma memória de memória? (Lacan,1985:162).
sem relação com a pulsão de morte que estamos tratando. Palco por excelência onde Eros
e Tanatos não deixam de se conjugar, e cujos efeitos notamos em atraso, sempre só-
depois.
lembrança e percepção, notamos que, apesar disso, o aparelho psíquico tratado ali está
Desse modo fica patente que não haveria nenhum mecanismo seguro, quanto ao
aparelho psíquico, de retificação da relação entre ele e o que quer que fosse entendido
como exterioridade.
122
123
Essas observações são relevantes porque de certo modo elas são reeditadas na
freudiano algo que não deixa de nos causar surpresas. Aliás, chamar a atenção para essa
falta de simetria nada mais é do que retornar a uma proposição da Carta 69, onde Freud
técnica levaram a uma outra concepção de memória distinta daquela estabelecida durante
o uso da hipnose.
doença não poderia mais expressar-se como uma “doce volta ao passado”, já que outros
psicanálise. É preciso frisar que interpretar no contexto que estamos ressaltando aqui
significa também que não há a priori um compromisso com o verossímil, com o que é da
No entanto essa questão não se apresentou a Freud de modo tão definitivo como
1Para uma distinção entre verdade e veridicidade, cf. Badiou,1991:66 e ss. Para uma outra distinção, entre
verdade e verossímel, cf. Pirandello,1978:313 e ss.
123
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Em seguida, após ter também afirmado que a convicção que o paciente adquire no
evento (ibid), ele começa um parágrafo diretamente ligado ao caso do H. dos Lobos:
passado talvez seja um dos pontos cruciais com que estamos lidando. Pois, se estamos
às questões do tempo e da memória, ele produz uma ligação entre o que não “poderia ser
recordado”, e uma lembrança que sobre esse fundo de impossibilidade encontra vez.
124
125
Sem dúvida essa passagem já revela o que nas últimas páginas será apresentado
Freud,1976d:184).
O conjunto das citações feitas até aqui nos deixa perceber como não haveria em
existência de uma diferença radical na abordagem do tema, seja quando ela é tomada
como atributo do consciente, quer dizer, onde tornar consciente o inconsciente é a própria
idéia de cura; seja como uma função do inconsciente, onde mesmo sendo presidido pelo
perceber o limite tênue entre lembrança e fantasia. Apesar das diferenças que o próprio
Freud apontou (ver supra), o solo comum a ambos também foi notado (cf.
Freud,1970:77).
Toda essa questão está associada a este trabalho, na medida em que, em última
instância, nos faz ver como a memória pode ser alçada de uma função utilitarista (ver
1 “(...) no seio mesmo dos processos primários, vemos conservada a insistência do trauma a se fazer
lembrar a nós” (Lacan,1990:57).
125
126
supra, cap. I), para situar-se numa interseção entre o sintoma e a fantasia (fundamental),
tensão que se originava disso, entre justamente o que poderia ser ratificado pela memória,
Etiologia das Neuroses e Carta 69), nem por isso deixou de estar presente em trabalhos
posteriores (cf. Homem dos Lobos). Poderíamos, todavia, reduzir todas essas tentativas de
como memória corresponderia ao que Lacan trata como rememoração (ver supra). Do
articulador entre dois campos distintos, o nachträglich também responderia por uma
função análoga. Qual seja, a de articular memória (seus traços passíveis de retranscrição,
ligados à interpretação, significantes) e tempo (aquilo que “impede que tudo tenha sido
memória sutil, “memória de memória”, marcada por um hiato, tal como Lacan nos diz a
1Talvez seja necessário acrescentar que nesse texto Miller define a fantasia como um articulador entre a
dimensão do gozo (mais além do princípio do prazer), com a que corresponde ao princípio do prazer (cf.
Miller,1988:102), ressaltando na diferenciação entre sintoma e fantasia que “em Lacan, nem tudo é
significante” (idem:94). Também é interessante notar que Freud diferencia interpretação e construção do
seguinte modo: a primeira está ligada aos dados positivos de uma análise, uma associação ou uma
parapraxia, por exemplo; o segundo, ao contrário, aplica-se ao que foi esquecido, ao que não comparece
espontâneamente à análise (cf.Freud,1975:295).
2 Para Comte [1798-1857], tanto o espírito humano como as ciências seguem uma linha de
desenvolvimento, explicitada em sua lei dos três estados (teológico, metafísico e positivo). O estado
positivo, em oposição aos anteriores que buscariam respostas absolutas para os problemas do homem, é
caracterizado pela pesquisa de fenômenos observáveis, a partir dos quais uma lei poderia ser formulada. Ou
seja, não uma busca da causa, mas o estabelecimento de relações constantes e invariáveis induzidas a partir
dos fenômenos (cf. Comte,1991:X-XI e 4).
126
127
respeito do H. dos Lobos, que “não chega nunca todavia a integrar sua rememoração em
Essa observação é importante na medida em que a partir dela podemos notar uma
nuance entre duas proposições acerca da rememoração que explicita outras referências já
afirmando estar esta em correlação com a história. Ou seja, a memória tal como deve ser
químico inerente a essa faculdade no ser vivo. Mas, pelo contrário, diz respeito a um
enunciado do sujeito, compondo um texto que não pode ser reduzido à permanência de
um hábito adquirido. E, tal como no sonho em análise, apenas encontra o seu sentido no
Essa dissimetria deverá ser ainda mais uma vez elaborada. Entretanto, neste
momento, ela deverá ser entendida como um dos nomes pelos quais reconhecemos os
É fácil perceber que a argumentação acima tem conexão com o que em Freud foi
127
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Lacan. É patente que Freud mesmo tendo reconhecido os limites dessa correspondência,
nem por isso tenha ficado imune aos efeitos de seus corolários.
Assim, nas Notas Sobre um Caso de Neurose Obsessiva - Homem dos Ratos -
[1909], Freud faz um comentário sobre a questão da faticidade das lembranças (cf.
infância acompanhou Freud por toda a sua carreira, citando desde Lembranças
pautando-se na análise de Moisés e o Monoteísmo, nos diz que em suas últimas obras
Freud insistiria “sempre [em] uma semente de verdade histórica por trás de fantasias
O H. dos Lobos é um texto que nos interessa muito, não só porque nele
construção no que diz respeito à cena primária; do tempo1, porque a decisão de delimitar
uma data para a conclusão da análise não deverá ter sido sem efeitos para Serguéi
1 Já havíamos comentado no cap. V que para Lacan a duração total da análise, e a duração da sessão
compõem os modos de incidência do tempo na técnica analítica (cf. Lacan,1990a:298-300).
128
129
mais detido.
Na verdade, há uma pequena passagem no H. dos Ratos que nos servirá de chave
de leitura aqui. Em certo momento Freud usou de uma metáfora para explicar ao seu
Eram, com efeito, disse eu, apenas objetos achados num túmulo, e o enterramento
deles tinha sido o meio de sua preservação: a destruição de Pompéia só estava
começando agora que ela fora desenterrada (...) (Freud, s.d.:180, grifos nossos).
só porque fala de um passado que só terá sido a partir do presente, mas, mais
especificamente, nos conta sobre uma destruição que teve vez a partir da descoberta das
ruínas de uma cidade. Quer dizer, um aniquilamento que tem como ponto de partida o
ponto de difícil demarcação, onde não sabemos assegurar onde termina o apogeu e onde
começa o declínio, sempre intempestivo, fora da hora propícia, que a fantasia parece
129
130
É preciso chamar a atenção para o fato de que não é nosso intuito amalgamar
como esses conceitos são de tal modo solidários - assim como também os de construção
estrutural nomeado de diversas maneiras ao longo deste trabalho que se trata. Fracasso
que está pari passu com a memória, e ao qual já demos o nome de tempo, como talvez
quase impronunciável, ou melhor, que se diz de modo indireto, nas bordas das ruínas, no
balbucio da fantasia. Há como que a denúncia de uma relação onde algo parece
esclarecida nos textos que a ele são dedicados. É certo que ele diga respeito aos efeitos de
significação, estabilização relativa do que poderia ser um desenrolar sem fim da cadeia
1 Não nos deve passar despercebido que o H. dos Lobos tenha sofrido um episódio paranóide após ter
recebido uma carta de Freud, onde este solicitava que fosse confirmada a veracidade do sonho com os
lobos (cf. Obholzer,1993:9).
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operação que, a um nível distinto, tem como contrapartida o trauma definido como um
Talvez esse seja o modo mais contundente de afirmar uma instabilidade na rede
significante, onde é produzido algo que ao não acomodar-se no simbólico passa a dizer
Ou melhor, trata-se de acentuar que os dois aspectos são na verdade indissociáveis, o que
parece conferir a esse conceito um estatuto um pouco diferente daquele onde a vulgata
encerrou-o. Tal situação parece invocar o desenho de M.C. Escher, Mans dessinant,
trauma - que muito facilmente poderiam ser vistos como a resultante de dois processos
diferentes. Tal proximidade nos parece relançar ambos os termos, bem como o conceito
perdido, não era nosso objetivo exaltar a nostalgia3, o “seio perdido”, ou qualquer coisa
do gênero. A invocação de uma “perda” aqui ainda que talvez não seja inteiramente
1 Por exemplo na frase “Eu... quero... dizer...” cada significante associado ao intevalo seguinte produz um
efeito onde algumas palavras são esperadas, ainda que o advento delas possa ser inteiramente inesperado,
produzindo efeitos de sentido inantecipáveis. Talvez pudéssemos recorrer a um exemplo mais famoso e
ilustrativo da psicose, como o dado por Schreber e o sistema do não-falar-até-o-fim. Schreber através desse
sistema nos informa a tensão em que se via lançado diante das frases incompletas proferidas pelas vozes:
“Agora eu vou me”, “Você deve de fato”, “Nisto eu quero”, “Mas agora ele deveria”, “Mas isto era
realmente”, “Falta-nos agora” (cf. Schreber,1995:175 e ss).
2 Para uma aproximação entre o incurável na psicanálise e o sinthome lacaniano parece muito interessante
a análise feita por Zizek do conto de Kafka, Um médico Rural (Zizek,1992: 169 e ss; Kafka,1990: 09 e ss).
3 Nostalgia é uma palavra criada do século XVII para introduzir no meio médico a noção popular de
Heimweh, de “doença do país”, patologia de dor moral ligada ao exílio (cf. Bolzinger,1989:304). O marco
dessa invenção parece ter sido a tese de Johannès Hofer, defendida em 22 de junho de 1688 na
Universidade de Bâle. Essas referências são interessantes na medida em que alguns autores creditam o
nascimento da psicologia clínica justamente a essa tese, ou, ao menos, a esse tipo de questão (cf. Bolzinger,
1989a: 310 e 321).
131
132
Pravda e istina
É o próprio Serguéi quem nos adverte que a língua russa possui duas palavras para
designar “verdade”: pravda, que parece estar ligada ao sentido corrente do termo,
passível de uma verificação; e istina, “a verdade que se oculta por trás das coisas”
(Obholzer,1993:22). Ainda que não seja nosso objetivo realizar uma investigação sobre a
impossível não se tornar sensível aos desdobramentos que esse tema implica tanto em
Freud, como em Lacan, e, em particular, nesse caso clínico. É preciso ter em vista
decisiva para demarcar a importância que o caso do Homem dos Lobos tem para Freud,
sobretudo se nos detivermos no número de vezes em que ele será citado direta ou
indiretamente na obra freudiana (cf. Freud,1976e:15). Freud nesse texto parece opor-se à
sua vez opunha-se diretamente à hipótese freudiana de uma sexualidade infantil, ainda
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133
encobridoras, por exemplo, tenha salientado que a retroação seria um dos modos de
Talvez seja nessa perspectiva que possamos entender a insistência com que Freud
busca os indícios da cena primária. Mas também, para além do factual que a busca pode
nos sugerir, não é menos certo que a questão da causalidade não emerja aí com toda a sua
força. E quanto a isso, uma causa buscada em seu passado, uma série de textos do
Todavia, é preciso percorrer todo o texto e sentir as aporias com que Freud
confronta-se nesse caso. Aquela que revela-se como crucial é sem dúvida a da exigência
de um tempo marcado para a conclusão da análise. Freud parece ter lançado mão desse
futuro como uma data de conclusão marcada para o fim da análise - que encontramos o
memória.
Se por um lado a necessidade de Freud em propor uma data para o fim da análise
poderia ter significado a confirmação da cena primária enquanto evento, forçando uma
sintomas, o que encontramos, como assinalado acima, é uma decisão motivada por um
quadro onde nem a interpretação nem a rememoração pareciam acudir Freud para um
desfecho favorável.
133
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A par das oscilações que atravessam todo o texto acerca da realidade da cena e do
seu significado, é preciso não perder de vista o fato do próprio Freud marcar os intervalos
a partir dos quais o sentido da cena vai sendo construído: o relato dá-se quando o paciente
contava com 23 anos, o sonho remonta aos 4, e quando da cena propriamente dita o H.
dos Lobos não deveria ter mais do que 1 ano e meio, segundo estimativa de Freud (cf.
Freud,1976e:63). É a partir dessa descontinuidade que Freud nos convida a adotar “uma
na hesitação em usar o termo ‘recordação’ para referir-se à cena, preferindo num primeiro
Entretanto, o que mais nos chama a atenção neste momento, quanto ao caso do
Homem dos Lobos, é a tradução usada na ESB de ação ou revisão preterida (idem:63,66
Essa apresentação deverá ainda ser retomada no próximo capítulo quando viermos
ater à continuidade da nota acima, onde Strachey realiza um histórico sobre onde a noção
de ação preterida pode ser encontrada em Freud, bem como efetua uma distinção com
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(...) nesses primeiros esboços da teoria, os efeitos das cenas primárias foram
preteridos pelo menos até a época da puberdade, e as próprias cenas primá -
rias jamais foram imaginadas acontecendo numa idade tão prematura como
no caso presente (Freud,1976e:63).
Ora, podemos dizer pelo que expusemos até o momento que justamente o a
posteriori não deveria ser entendido como um efeito que é simplesmente adiado, como se
“demônio de Laplace1” seria o representante mais certo dessa situação. Do mesmo modo,
não nos parece muito fecundo coordenar o a posteriori com um possível efeito de soma
do Oráculo, que encontrando sua ratificação num tempo futuro participa também desde o
enunciado do Oráculo é um enigma por excelência. Quer dizer, onde o consulente vem
buscar uma resposta sobre a sua origem (como Édipo, por exemplo), o Oráculo oferece
1 É no Ensaio Filosófico sobre as Probabilidades [1814], que Laplace introduz o conceito de uma
inteligência superior - hipotética - que poderia dar conta do futuro e do passado, já que o estado presente
do universo seria entendido como causado pelo anterior e causa necessária daquele que virá (cf.
Moreira,1992).
135
136
um caminho, onde o sujeito será, de certa forma, a própria resposta2. “Ele [o oráculo] não
Avançando um pouco mais, talvez pudéssemos dizer que o próprio fio da navalha
onde Freud se coloca no caso do Homem dos Lobos, a respeito da existência da cena
impossível - da relação sexual, para falarmos com Lacan -, traumático, onde o saber só
parece poder incidir de modo marginal. A análise, por esse viés, seria então o modo de ir
pelas bordas, de modo indireto (como Freud nos fala no caso Dora), produzindo o
intempestivo, tempo que opera entre os significantes, quase sinônimo para o sujeito
Memória, sonho
conjunto do texto.
força Freud a uma nova argumentação a respeito da memória no interior mesmo do que
2 Édipo, por exemplo, foi não apenas o “pé inchado” (oîdos), mas também o homem que “sabe (oîda) o
enigma do pé”. Encontramos assim em Oidípus o verbo oîda: “eu sei”, associado a poús, o pé, “marca
imposta desde o nascimento àquele cujo destino é terminar como começou, um excluído, semelhante a um
animal selvagem que seu pé faz fugir” (...) (cf. Vernant e V.-Naquet,1977:90-91).
136
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estratos revelariam uma cena não imediatamente clara ao analisando, é certo também que
parágrafo precedente ao propor uma certa equivalência entre memória e sonho: “(...)
É a partir dessa ligação que continuaremos nossa pesquisa com o grafo do desejo
Sonho de Injeção de Irma (cf. Lacan,1985:212). Radicalidade que não pode ser outra
senão a da conjugação entre “a carne que jamais se vê, o fundo das coisas, o avesso da
face, do rosto, os secretados por excelência, a carne da qual tudo sai, até mesmo o íntimo
do mistério (...)”; e a fórmula, símbolo por excelência, que não encontra outra explicação
leva mais uma vez a perguntar o que na lembrança pode ser mais do que apenas um “não
querer esquecer”. Ainda que essa memória seja feita de esquecimento. Quer dizer,
137
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Che vuoi? É com essa pergunta que Álvaro se vê interpelado por Belzebu no
pergunta que reluz no topo do grafo do desejo durante a sua elaboração. Do romance ao
grafo parece ser a mesma questão que captura nossa atenção. É a partir dela que a história
do analisando vai sendo composta na transferência, assim como Álvaro nos deixa ver o
(des)encontro entre as suas demandas e o que efetivamente o pacto com Belzebu tinha a
oferecer-lhe.
Que queres? É a partir dessa interrogação que Belzebu assume a graciosa forma
de Biondetta, seduzindo Álvaro, e iniciando com este uma viagem que não é
insignificante em seus percalços. Ao final do romance, quando Belzebu volta à sua forma
tenebrosa, sob uma voz de trovão (cf. Cazotte,1992:100). Talvez devêssemos interromper
poderíamos ainda nos perguntar se entre os dois momentos em que o “Che vuoi?”
comparece com toda a sua “força terrível” (idem:26 e 100) não encontraríamos dois
Álvaros distintos...
1 Não iremos proceder a uma análise exaustiva do grafo do desejo, nem do texto de Lacan, Subversão do
Sujeito e Dialética do Desejo. Para tanto reenviamos os interessados, em primeiro lugar, ao próprio texto
lacaniano, e, em seguida, a Eidelsztein (1993) e Dor (1990). De modo menos sistemático, mas tão
importante quanto os anteriores, conferir também Zizek (1991 e 1992).
138
139
Do mesmo modo, o mote que justifica prosseguirmos este capítulo com o estudo
do grafo vamos encontrá-lo na frase de Lacan, já citada, para quem “[o Homem dos
Lobos] não chega nunca todavia a integrar sua rememoração em sua história”.
Assim, essa segunda sentença vem ecoar sobre o “Che Vuoi?” para sublinhar um
aspecto que neste trabalho é fundamental, qual seja, a de uma defasagem entre memória e
Não terá sido por acaso que nos encontramos há pouco com o tema da verdade na
psicanálise. Isso porque se começamos esta seção com o “Che Vuoi?”, também já
havíamos apontado para o fato de que o grafo compõe-se de elementos que talvez não
Outro”2(Lacan,1990d:798).
1 Tendo sido todavia apresentado em 1960 nos Colóquios Filosóficos Internacionais, em Royaumont (cf.
Lacan,1990d:773).
2 Lacan fornece ainda uma outra definição no sentido que estamos expondo aqui: “(...) posto que a bateria
dos significantes, enquanto que é, está por isso mesmo completa, este significante não pode ser senão um
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Lacan nesse momento nos apresenta a verdade como “não sendo em si mesma
não é outra coisa senão aquilo do qual o saber não pode inteirar-se de que o sabe senão
sobre o tema da verdade da psicanálise. É preciso ter em vista que nossa pretensão é a de
Subversão, sendo esta mais uma maneira de apontar para o “fracasso da memória”, tal
possível notar já nesse texto de Lacan de que modo nos encontraremos com aquelas
uma metáfora da memória que condiz, em parte, com aquela que estamos expondo aqui.
Lacan quando faz uso desse episódio frisa a oposição entre conhecimento e saber, sendo
esse escravo aquele que caminha em direção à morte desconhecendo os signos que estão
inscritos sobre seu próprio corpo (idem:783). Do mesmo modo, não seria a memória na
psicanálise, num primeiro momento, uma reconstrução dos significantes que teriam
traço que se traça de seu círculo sem poder contar-se nele. Simbolizável pela inerência de um (-1) ao
conjunto dos significantes” (Lacan,1990d:799).
140
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Soller,1991:56). Talvez seja essa via que leva Lacan a definir a sessão como a “ruptura de
um falso discurso” (Lacan,1990d:780), afirmando que “a análise faz (...) dos ocos do
(idem:785).
Grafo 1
retroação que encontramos no lado esquerdo do grafo, no que poderia ser chamado
1 Talvez aqui valha a pena lembrar que o point de capiton é usado para unir os dois pontos centrais de
uma almofada, de modo a conferir-lhe uma sustentação flexível.
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associado, por exemplo, ao s(A). Do lado direito há por sua vez o chamado A, o Outro,
2 É necessário sublinhar a preocupação de Lacan em não reconhecer o Outro [A] como código, motivo pelo
qual o denomina de tesouro do significante: “A é o lugar do tesouro do significante, o qual não quer dizer
do código, pois não é que se conserve nele a correspondência unívoca de um signo com algo, senão que o
significante não se constitui se não for de uma reunião sincrônica e numerável donde nenhum se sustenta
senão pelo princípio de sua oposição com cada um dos outros” (Lacan,1990d:785). Tal preocupação parece
não ter sido levada em conta na tradução de Dor (cf. Dor,1990:153). Eidelsztein, por sua vez, procura tanto
quanto possível enfatizar essa diferença (cf. Eidelsztein,1993:68 e ss.).
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Grafo 2
143
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como ele se reduplica quando em lugar de s(A) e A, encontramos S(A) e ($D). Sendo
acompanharmos essa relação entre os dois níveis, talvez seja necessário retomarmos
capítulo IV.
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Grafo 3
145
146
146
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Seminário da Ética, foi aquele que dizia respeito às referências precisas quanto a
memória e que conferiam-lhe um duplo estatuto. De certa forma, um aspecto comum aos
dois textos parece ser o chamado “caráter histórico da pulsão”, retomado no grafo quando
Lacan refere-se à pulsão como “tesouro dos significantes”, afirmando ser a sua notação
esta exposição:
A pulsão de morte dever ser situada no âmbito histórico, uma vez que ela
se articula num nível que só é definível em função da cadeia significante, isto
é, visto que uma referência, que é uma referência de ordem, pode ser situada
em relação ao funcionamento da natureza. É preciso algo para além dela, de
onde ela mesma possa ser apreendida numa rememoração fundamental, de tal
maneira que tudo possa ser retomado, não simplesmente no movimento das
metamorfoses, mas a partir de uma intenção inicial (Lacan,1988:258).
pulsão ao significante, o que nos alerta a não tomá-la como uma entidade autônoma, seja
foi exposta por nós, em outros termos, quando acentuamos o que parecia ser uma
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a pulsão de morte. Tais indicações chegaram mesmo a situar a pulsão de morte como
particularmente importante neste trabalho, haja vista que a memória é tomada ora como
regida pelo princípio do prazer (cf. Lacan,1988:272), ora relacionada a “uma dimensão
Uma outra via que podemos seguir para falarmos dessa heterogeneidade no grafo
foi assinalada por Eidelsztein. Ele afirma ser o grafo do desejo tanto a primeira referência
certa forma, um balizamento mais estreito. A pergunta que devemos fazer é a seguinte:
Por que insistimos na dissimetria entre memória e história proporcionada pelo tempo? O
grafo nos valendo nesse contexto pela sua constituição não homogênea, ou seja, diz
respeito ao significante, mas não é inteiramente significante. Dissimetria que pode ser
matema da rememoração pode ser escrito como S1/$ (revelando assim o discurso do
que teriam constituído sua história, o sujeito não possa, por essa via mesma, reencontrá-
los em uma nova posição. A análise seria portanto um evento a partir do qual a posição de
agente poderia vir a ser ocupada pelo objeto a, revelando assim uma face do discurso do
1 Essa distinção entre letra e significante que está tendo um lugar privilegiado em estudos recentes
(cf.p.ex.: Milner,1995), importante também para esta investigação, será para nós, todavia, o indicativo de
um possível futuro trabalho.
1 S1/$ - S2/a
148
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analista1 . E, ao que nos parece, tal operação estaria inteiramente de acordo com o que já
foi exposto como destituição subjetiva (ver supra). É nesse contexto que parece caber
efeito de significação. Vertente sobre a qual, todavia, não somos os primeiros a tentar
1 a/S2 - $/S1
149
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Grafo completo
150
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Lacan define o significante como sendo “aquilo que representa um sujeito para outro
significante” (ibid). Daí a retificação que faz quando afirma que o S1 representa alguma
coisa: “Chamar isto de alguma coisa já é dizer muito - ele representa x, que é justamente
entre partes, como uma primeira vista sobre o matema da rememoração poderia fazer
pensar.
[Quanto ao S1] o sujeito que ele representa não é unívoco. Está representado,
é claro, mas também não está representado. Nesse nível, alguma coisa fica
oculta em relação a esse mesmo significante (idem:83).
151
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como uma aspiração a tudo-saber (idem:29). Decorre das citações anteriores a oposição
segundo, sendo o saber propriamente dito, respondendo como que pelo estofo,
‘justificativa’ para o primeiro. Grosso modo, poderíamos recorrer a uma metáfora cujas
personagens seriam um rei e seus ministros. Seria a partir da vontade real que os
e S2, como também o fato de que quanto ao S1, sua característica maior não seria
Ora, em que tais características poderiam nos auxiliar numa leitura do grafo?
De saída podemos entender por que Zizek situa o S1 como correlato do ponto-de-
basta. É o significante que vai impor uma ordenação, significação/sentido, ainda que
nada o ligue de antemão a essa determinação. Ou seja, é só-depois que ele é reconhecido
2 S2/S1 - a/$
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base o vetor SignificanteVoz. Tal construção nos sugere já nesse primeiro andar do grafo
que a relação de basteamento significante tem dois resultados distintos. Por um lado, um
efeito que pode ser entendido como significação [s(A)]; e por outro, um produto, a voz,
que mesmo sendo oriunda da estrutura da linguagem não se confunde com o primeiro
resultado.
lacanianas como um resíduo inerente a produção de sentido, ou, em outros termos, à ação
de basteamento da cadeia significante. É esse modo de defini-la que nos sugere essa outra
Faremos a seguir uma citação de Zizek onde ele trata particularmente da definição
Mas, por que a parte direita do vetor de significante S-S’, ou seja, a parte
subseqüente ao ponto de basta, é designada como “voz”? Para resolver
esse enigma, devemos conceber a voz de uma maneira estritamente laca -
niana, isto é, não como portadora de plenitude e de autopresença da sig -
nificação (no sentido de Derrida, que assim analisa a concepção husserli-
1 Para o que segue cf. Lacan,1990d:784, 788, 795 e 797. Acrescentamos apenas que o grafo da página 788
apresenta incorretamente S(A) ao invés de s(A).
2 Zizek quando trata a voz em proximidade com o conceito de voz acusmática nos remete ao livro de
Michel Chion, la Voix au cinéma, Paris, Cahiers du cinéma,1992, o qual não nos foi possível consultar (cf.
Zizek,1993:101). Eidelsztein também chama atenção para esse ponto onde a voz seria tomada como
antípoda do efeito de significação, ainda que numa perspectiva um pouco diferente daquela adotada por
Zizek: “[A voz seria] uma dimensão que acompanha o significante que, como tal, carece de significação e
que tem a propriedade de escapar como objeto ao nada que o significante produz no mundo dos objetos”
(Eidelsztein,1993:201).
153
154
Essa atenção dedicada ao conceito de voz no grafo é importante para que se possa
que compuseram a sua história, tal não bastaria, contudo, para afirmar que a memória, a
Essa outra memória a qual visamos não seria constituída senão com o “dejeto” do
círculo da significação - tal como ilustrado no primeiro nível do grafo. É esse “resto”
Memória que acaba por não oferecer nenhuma resposta, como talvez pudéssemos supor
de um passado reencontrado, mas que pode vir a destituir o sujeito de sua posição de
subordinação aos referidos significantes para que um outro saber possa então advir em
154
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detivemos quase que exclusivamente no vetor SignificanteVoz, onde nos pareceu mais
pequena apreciação quanto ao segundo andar do grafo, nos detendo no matema S(A).
rapidamente nos ocorrerá que esse significante está numa posição ímpar com relação aos
demais.
É exatamente esse último traço que nos chama atenção. Um significante da falta
no Outro que se situa no ponto onde se fecha o círculo da significação. De ($D) para
S(A), é a falta de um significante que adquire relevância, tal como no nível inferior a
de um significado.
Desse modo poderíamos até chegar a dizer que é pela via de um esquecimento que
viesse de algum modo integrar suas lembranças. Trata-se de um limite muito tênue entre
155
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sua função, por exemplo, no que citamos acima como matema da rememoração, não é
menos certo que o próprio Lacan refira-se a ele como oblivium, esquecimento1.
significante não representa propriamente alguma coisa, mas um x, enigma, que seria no
relação a esse mesmo significante. Entre uma citação e outra o acento, como já fizemos
em momentos anteriores, nos parece dever ser colocado sobre uma defasagem ou um
Seria preciso apenas ratificar que esse fracasso não significaria a possibilidade de
uma outra alternativa, que pudesse operar de uma melhor maneira. O fracasso é o próprio
modo como o significante opera, sendo o esquecimento a via pela qual Freud inventou a
“significante de uma falta no outro”, assim como a voz enquanto objeto a, podem nos
Do exposto acima, talvez pudéssemos concluir que a voz (objeto a), possa servir
como índice de um esquecimento visceral, tanto mais presente quanto delimitado pela
rede significante, próximo do que Freud nos dá a ver, por exemplo, em seu Mecanismo
1 Não estamos aqui fazendo uso do contexto original no qual Lacan explicitava essa relação. Esclarecemos,
contudo, que ele anunciava ali sua intenção de precisar a distinção entre censura e recalque, apontando o
primeiro para algo de “mais primordial” na estruturação do sujeito (cf.Lacan,1990:31).
2 Toda essa exposição sobre a relação memória/esquecimento, bem como a distinção lacuna da memória vs.
memória-lacuna, deve muito ao artigo Passage de l’inoubliable a l’oubli, de Alain Merlet (1990), ainda que
não tenhamos seguido ipsis litteris a argumentação original.
156
157
Psíquico do Esquecimento [1898], ainda que nesse momento dê destaque aos efeitos do
recalque.
É nesse texto que podemos notar por trás do lapso em lembrar-se do nome
(idem:261), que se traduz apenas numa urgência de trabalho, onde todos os significantes
citados (Herzegovina, Bósnia, Herr, Botticelli, Boltraffio, Trafoi etc.) parecem compor
um pano de fundo para um outro desenho que não era senão o do “senhor absoluto”.
Esquecer, esquecer...
objetivo principal. O que decorre daí é, de certa forma, uma lembrança que
uma maior atenção, num outro trabalho, seria a distinção mais precisa e nuançada entre
dois tipos de esquecimento: o derivado do recalque, e um outro que nos parece ter sido
esboçado aqui. Desses dois “esquecimentos” parece partir, por exemplo, a diferença entre
analisando.
157
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de Édipo que parece num átimo de segundo, après coup, fazer ressurgir toda história, e
com ela a tragédia de ser um só, ao mesmo tempo, autor e vítima, descobridor e objeto da
descoberta. Nessas linhas, talvez pudéssemos reconhecer o que estamos tratando como
não ser sepultado, apesar de contar com a atenção dos deuses, não é sem ressonâncias no
Polinices, quanto à tradição dos guerreiros da Grécia épica. Nesta, era a bela morte que
bastava a morte do inimigo, sendo necessário também despojá-lo de todos os signos que
praticadas, culminando no cadáver insepulto. O objetivo dessas iniciativas não era outro
senão barrar a inscrição do guerreiro na memória social que tomava duas formas: a
primeira que era a do canto épico, e a segunda que dizia respeito ao mnêma, o memorial.
um sêma, relembrando aos homens por vir, ‘essoménoisi’, como o faz o canto épico, uma
1 Parece importante citar aqui que não havia na Grécia antiga uma palavra que correspondesse ao que hoje
chamamos “vontade”. A tragédia nesse contexto surge exatamente num momento onde o Direito começava
por se interrogar a respeito dessa questão, utilizando-se, inclusive, de um vocabulário comum para a
elaboração de seus enredos. “O homem trágico já não tem que ‘escolher’ entre duas possibilidades; ele
‘verifica’ que uma única via se abre diante dele”(Vernant e Vidal-Naquet,1977:37. Para um estudo
minucioso das questões relativas à vontade e à tragédia, da “decisão sem escolha”, cf. cap.3).
158
159
Ao contrário da tradição épica, Édipo parece ter inclinado-se, de certa forma, por
uma “não inscrição” na memória social1, esquecimento que veio fazer par com a urgência
em descobrir o local onde encontraria seu fim. Do mesmo modo no Freud que
encontramos há pouco, foi um “esquecimento” que o levou a percorrer uma certa série
(Freud,1987d:261).
No caso de Édipo esse segundo momento implica um outro passo com relação ao
evento que o fez ser Édipo, e que o leva a exclamar às suas filhas: “De hoje em diante
vosso pai já não existe; de fato, agora acaba-se tudo que fui e cessa o vosso encargo de
esquecimento despontar como uma via pela qual Édipo já não se confunde com sua
Poderíamos arriscar dizer que ele se mantém numa espécie de suspensão em relação aos
seus significantes-mestres (parricida, matricida, pai, rei...), não se identificando com eles,
mas sendo movido por algo que não se encerra nas situações nas quais sua vida foi
forjada. É exatamente essa separação que poderíamos, talvez, tratar como destituição
subjetiva. Encontro entre lembrança e esquecimento onde o Che Vuoi? ecoa, e a partir do
qual a memória responde não apenas por um passado, “pelas glórias imorredouras” mas,
principalmente, toma a forma de um convite ao que ainda está por vir, lacuna que não
159
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A gramática do tempo
haveria a seguinte indicação: “Uma vez recoberta a cova, serão semeadas em cima landes, a fim de que, em
conseqüência, o terreno da dita cova se encontrando guarnecido de novo e o mato se encontrando cerrado
como era anteriormente, os traços de meu túmulo desapareçam de cima da superfície da terra como eu me
deleito que minha lembrança desapareça da memória dos homens” (apud Bataille,1989:97). O interessante
é que tal citação encontra-se numa seção intitulada “ A vontade de Destruição de Si” e anuncia o objetivo
de Bataille em demonstrar que “o sentido de uma obra infinitamente profunda está no desejo que o autor
teve de desaparecer (de se anular sem deixar traço humano ): porque não existia nada mais à sua medida”
(Bataille,1993:96-97).
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(...) o tempo, o tempo, esse algoz às vezes suave, às vezes mais terrível, demônio absoluto
conferindo qualidade a todas as coisas, é ele ainda hoje e sempre quem decide e por isso a quem me curvo
cheio de medo e erguido em suspense me perguntando qual o momento, o momento preciso da
transposição?
Raduan Nassar
retroativa.
presentes na obra freudiana (idem:80), ainda que tenhamos ao longo deste trabalho
preciso ter em vista que o uso do a posteriori na língua portuguesa guarda possibilidades
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sua obra, notando que boa parte de suas denotações (guardar rancor, levar ou portar algo
propusemos como objetivo deste trabalho, o qual poderíamos formular mais uma vez:
tanto o a posteriori quanto a memória, no que nesta percebemos a presença daquele, não
privilegiado uma vertente que nos parecia menos explorada pelos comentadores, ao
mesmo tempo em que nos detivemos exclusivamente nas questões relativas à memória.
Dito isto, seria interessante que nos mantivéssemos ainda próximos à significação
paradoxo em seus termos: o futuro anterior. O que poderíamos dizer a respeito disso?
- que uma ação estará concluída quando outra intervier (ou seja, uma ação
- que uma ação estará terminada em uma data mais ou menos precisa.
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- Ce jour-lá, on pourra dire que l’humanité aura fait un grand pas (ibid)
tenhamos em nossa língua dois tempos verbais que estão em íntima relação com o futur
453).
Exemplos:
Do mesmo modo como o futur antérieur podemos notar que o futuro do presente
também é formado pelo futuro simples do verbo auxiliar mais o particípio do verbo
163
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condição;
Exemplos:
aquele jogo;
principal;
pretérito simples mais o particípio do verbo principal, tendo em comum com o futuro do
Todavia, em que esse desvio pela Gramática poderia nos auxiliar, para além do
fato de notarmos uma certa equivalência entre o futur antérieur e o nosso futuro do
presente composto?
Ilusão retroativa
apresentaremos a seguir, entendemos que, ainda assim, ela suscita questões extremamente
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bergsoniana faz da “invenção1” sua palavra de ordem, não se furtando nesse objetivo a
um debate constante com as principais correntes científicas de sua época. Haja vista, por
exemplo, Matéria e Memória [1896], onde está presente uma discussão sobre as teorias
uma vez que nelas, segundo o autor, não haveria uma presença efetiva do tempo.
Inicialmente podemos dizer que Bergson depara-se com essa questão diante da
perguntado sobre o futuro da literatura, sobre o que poderia ser a grande obra dramática
do amanhã , ele não pôde responder de outra maneira: “se eu soubesse o que será a
retroativa parte. E é a resposta negativa a ela dada por Bergson que também deverá ser
apreciada por nós. A ilusão retroativa seria assim o modo de reconstituir o passado com
imprevisível nada que muda tudo”(idem:99, grifo nosso). Ou seja, é a tendência, a qual
haveria possibilitado. Como se não pudesse ser a própria emergência que nos permitisse,
165
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pela separação entre “antes” e “depois”, não permitindo que se possa estender de um ao
outro algo que pudesse ser entendido como razão, causa ou lei. Ao contrário, o tempo
Ainda tentando tornar essa idéia mais precisa, apelaremos para a citação seguinte:
na oposição entre possível e realidade, afirmando que é a distância entre eles que deverá
Ora, não poderíamos ler nessas formulações o mesmo tipo de dúvida que poderia
lembra que o passo a ser dado no ultrapassamento dessa ilusão não seria um movimento
166
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fácil. Embora ele não esteja comentando sobre o a posteriori, as observações seguintes
nos serão de muita valia para a distinção que entendemos ser necessária:
Quando vem à luz, algo que somos forçados a admitir como sendo novo,
quando uma outra ordem da estrutura emerge, pois bem! ele cria sua
própria perspectiva no passado, e dizemos - Isto jamais pôde não ter
estado aí, existe desde toda eternidade. Aliás, será que não está aí uma
propriedade que nossa experiência nos demonstra? (Lacan,1985:12)
Algumas páginas depois, Lacan continua ainda às voltas com essa questão.
(...) há dois tipos de relação com o tempo. A partir do momento em que uma
parte do mundo simbólico emerge, ela cria, efetivamente, seu próprio
passado. Mas não do mesmo jeito que a forma no nível intuitivo. (...) Há em
todo saber, uma vez constituído, uma dimensão de erro, que consiste em
esquecer a função criadora da verdade em sua forma nascente (idem:29-30,
grifos nossos).
exatamente o tempo verbal do futuro anterior para esclarecer o seu funcionamento. Ele
antecipação?”( Jankélévitch,1989:21).
Todavia, não nos será permitido uma outra leitura, partindo exatamente do futur
antérieur? Quando comentávamos sobre seu emprego, não teríamos podido ver que a
certeza do futuro estava lado a lado com as dúvidas do passado? Não poderíamos tomar o
hipótese”, um retorno ao que não deixa de nos acossar e, portanto, o que reluz para cada
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um como o mais verdadeiro? Não é aí que imaginamos não saber, ou, em todo caso, não
saber o suficiente1?
do mesmo modo podemos repetir o enunciado para a relação entre a posteriori e ilusão
retroativa. Ou seja, a diferença entre ambos não se dá pela negativa de um ao outro. Eles
não são simétricos na medida em que o a posteriori poderia ser descrito como uma ilusão
posteriori. Mas, um pouco diferente, talvez pudéssemos dizer que na distinção que
queremos realizar, trata-se de notar no próprio engodo ao qual estamos sujeitos na relação
com o saber, uma defasagem a partir da qual saber e memória, ou, como tratado
modo, tornar o futuro um passado por antecipação seria sublinhar a vertente do saber ou
da significação (efeito) que a verdade instaura; por outro lado, tornar o passado o motivo
de um devir seria acentuar o que ali para sempre será fonte de enigma, resíduo (produto)
de uma “lacuna na memória” para uma “memória-lacuna”. A primeira, que aspira ser
1 É impossível não nos depararmos nessa passagem com o que já foi escrito por Deleuze: “Ao
escrevermos, como evitar que escrevamos sobre aquilo que não sabemos ou que sabemos mal? É
necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo a dizer. Só escrevemos na extremidade de nosso
próprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber e nossa ignorância e que transforma um no
outro”(Deleuze,1988:18).
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qual seja, o que diz respeito ao produto. Aqui poderíamos falar em significação, caso o
significante.
A “memória-lacuna”, por sua vez, encontra seu móbil no que S1 oculta, “x” que
acentua o aspecto de velamento que lhe é caro também. Trata-se de reinserir o matema da
aí existente. Quer dizer, como deixamos ver com o “x” acima, que algo escapa a relação
S1/$. E é exatamente esse “resto” que poderá vir a ocupar um outro lugar no discurso do
esquecimento constitutivo5 que faz da volta ao passado, às origens, o encontro com o que
lá parece estar sempre em falta, tal como no filme O ano passado em Marienbad, onde o
casal de protagonistas a cada vez pergunta-se: “teríamos nos encontrado antes? Terá sido
no ano anterior? Este encontro já estaria marcado?” Ou, como esclarece Marie-Claire
Ropars, cujo comentário pode nos valer para associarmos o filme de Resnais às nossas
questões:
1 S1/$
2 S1/$ S2/a
3 Agente/Verdade Outro (trabalho)/Produto (produção).
4 a/S2 $/S1
5 A associação entre um “esquecimento constitutivo” e o futuro anterior foi assinalado por Julien (1990:12-
13). No entanto, o papel desse esquecimento deve ser creditado a Foucault, em cuja conferência “Qu’est-ce
qu’un auteur?”[1969] o anunciava como um dos três modos de “retorno às origens” nos quais as
discursividades necessariamente ver-se-iam implicadas: “redescoberta”, “reatualização” e “retorno a”. É
quanto a este último que o esquecimento constitutivo estaria associado. O primeiro seria entendido como
“os efeitos de analogia ou de isomorfismo que, a partir de formas atuais do saber, tornam perceptível (...)
uma figura que tenha desaparecido (...) em realidade trata-se de uma codificação retrospectiva do olhar
histórico”; o segundo, seria “a reinserção de um discurso num domínio de generalização, de aplicação ou
de transformação que é para ele novo” (cf. Foucault,1994:807-808, grifos nossos. Para uma distinção entre
esse esquecimento e o futuro do pretérito, bem como o impacto dessa conferência sobre Lacan cf.
Roudinesco,1994:343-344).
169
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riscos que levam de um ao outro, devemos recorrer a Foucault. Ainda que sua formulação
original tenha sido feita num contexto diverso daquele que tratamos aqui, acreditamos
que sua argumentação nem por isso deixa de nos ser pertinente:
Para que haja retorno, em efeito, é preciso, de início, que tenha havido esquecimento,
não esquecimento acidental, não recobrimento por qualquer incompreensão, mas
esquecimento essencial e constitutivo. O ato de instauração, em efeito, é tal, em sua
essência mesma, que ele não pode não ser esquecido (...) Retorna-se a um certo vazio
que o esquecimento evitou ou mascarou, que ele recobriu de uma falsa ou de uma má
plenitude e o retorno deve redescobrir esta lacuna e esta falta; daí, o jogo perpétuo
que caracteriza esses retornos à instauração discursiva - jogo que consiste em dizer
de um lado: isto estava lá, basta ler, tudo se encontra ali, é preciso que os olhos
estejam bem fechados e as orelhas também para que não se veja nem se ouça; e
inversamente: não, não se trata disso nesta palavra aqui, nem naquela lá, nenhuma
das palavras visíveis e legíveis não diz isto que está agora em questão, trata-se antes
disto que está entre as palavras, no espaço, na distância que as separa (...) (Foucault,
1994:808).
posteriori. Que o analista aí não negligencie as partes que o compõe, parece algo
desejável. Que sob o grito a análise possa “ouvir” o silêncio aberto no instante de seu
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aparecimento é o que quisemos apontar. Que a memória possa ser esquecimento de si, é
um modo diferente de afirmar a presença do tempo, onde este não deveria ser entendido
entanto, com o objetivo de “atar as duas pontas da vida”. Antes, talvez pudéssemos dizer
reconhecemos sob o nome de tempo, e que assinala para o sujeito um convite: reconhecer
em sua história o que lá só pode comparecer como falta. Lembrança, portanto, que no
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Momento de Concluir
Raduan Nassar
Mnemosyne, mãe das musas, filha de Urano [Céu] e Gaia [Terra]. Essa talvez seja
a primeira referência que nos ocorre quando temos em vista uma pesquisa sobre a
memória. Não só mãe das musas, presidindo, portanto, à função poética, mas também
irmã de Chronos. Desse modo, percebemos em poucas linhas uma relação muito próxima
entre memória e tempo datada já da Grécia arcaica. Mas, o que isso pode significar para
nós que realizamos uma investigação sobre a memória e o tempo na psicanálise, e, mais
172
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ambos?
o a posteriori não diz respeito apenas aos efeitos de significação, mas também aponta
para o que não pode comparecer senão como lacuna, interrogação, falta. Segundo, se
Entre a primeira e a segunda proposição, nos deparamos com uma distinção que
teve o seu relevo em nossos últimos capítulos. Se na psicanálise falássemos apenas nos
também a separação que concerne ao objeto. O que redundaria num significante que
Freud, ainda nos Estudos sobre a Histeria, nos dá sinais constantes a respeito de uma
insistência sintomática por de trás das lembranças recuperadas. Episódio que sempre nos
alerta para o terreno onde transita a psicanálise, aquele da claudicação, do que está
acentuar? Não seria essa uma vertente por onde assinalaríamos o impossível da iniciativa
memória apontando não só para o que foi, mas também para o que terá sido? Quer dizer,
futuro paradoxal que a cada instante lança atrás de si o “antes” com o qual se forja.
173
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capítulo realizamos uma separação entre a posteriori e ilusão retroativa, foi por termos
nos deparado com um pequeno detalhe que leva de um a outro e inversamente. Enquanto
a ilusão retroativa parece ressaltar uma correspondência entre presente e passado, tal
como se uma situação estivesse desde sempre dada, o a posteriori revela o que nesse
retorno não pode comparecer senão como fracasso, como não correspondente, estando aí
distinção entre significação e sentido, tal como os definimos, ainda que nossa
argumentação tenha ficado em seus traços mais simples. Porém, conforme nossa
exposição, poderíamos dizer que o primeiro está para a ilusão retroativa, assim como o
segundo está para o a posteriori, querendo dizer assim que o último não negligenciaria o
propriamente dita?
que chamamos de esquecimento; por outro, afirmando que esse esquecimento não é sem
tema foi nosso intuito mostrar que um esquecimento visceral, ou constitutivo, pode
traduzir-se de dois modos: primeiro, revelando-se o próprio móbil de uma busca onde
uma certa série significante é percorrida, desenhando às custas das lembranças uma outra
figura que jamais poderá ser integrada à história (Signorelli vs. Morte). Segundo, como o
índice de uma não completa correspondência entre o significante e o sujeito, podendo ser,
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até mesmo, talvez, o momento em que a distância entre ambos se torne mais manifesta
(Édipo em Colono).
muitos outros lugares que não apenas na psicanálise. Ainda que correndo o risco de
estender a outros domínios reflexões que são pertinentes a um campo específico, o que
equivaleria, de certa forma, a padecer da ilusão retroativa (“isso já está dito lá, basta
olhar com atenção...”), nos serviremos, mais uma vez, de uma citação de C. Lispector
Parece que a citação acima traduz, à sua maneira, a tensão que anunciávamos
como uma alegoria onde o efeito não se apresentaria, mas apenas o produto do
basteamento “em estado puro”, se pudéssemos dizer algo assim. Não seria da mesma
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Ou ainda, do belo como uma defesa contra o desejo e índice do fracasso desse
empreendimento? (ver supra, cap.IV). De outro modo, não menos doloroso, poderíamos
impossível, ou, de outra maneira, uma memória feita de esquecimento, muito próxima da
definição que encontramos para reminiscência (ver supra, cap. III). Entretanto, a
vez que exigiriam um trabalho próprio para que, de fato, pudéssemos chegar a respostas
- letra
- sentido/significação
- retificação/destituição subjetiva
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No entanto, pelo viés desses pontos de interrupção, podemos notar a trama na qual
de Lacan acima nos diz respeito na medida em que associa o futuro anterior ao caput
em seus últimos escritos, não só com temas como tempo e memória, que implicariam
nessa última fase os conceitos de verdade histórica e material, mas também com o que
ilusão retroativa falava de seu caráter estéril e de sua impossibilidade de criação do novo:
1 “(...) Isso poderia figurar um rudimento do percurso subjetivo, mostrando que ele se funda na atualidade
que tem no seu presente o futuro anterior. Que no intervalo desse passado que ele já é no que ele se projeta,
um buraco se abre por constituir um certo caput mortuum do significante (...) constitui, eis o que basta, para
suspendê-lo da ausência, para obrigá-lo a repetir seu contorno” (Lacan,1990e:44;1992c:57).
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lembrar de uma outra versão1. Nela, Orfeu ao olhar para trás exprime de fato o desejo de
que Eurídice esteja perdida para sempre, de modo que ele possa reencontrar o seu
verdadeiro amor. Assim também, através das citações anteriores, podemos entrever o
motivo que leva C. Lispector a valorizar em boa parte de seus livros expressões como
“estranha alegria” e “alegria sem esperança”. Tais expressões, bem como a “memória do
refratário à nostalgia.
tomados como um convite. Retorno a uma certa série significante cujo brilho parece ser
mais intenso, e onde não podemos ver senão um “x” que nos captura por completo.
Trama que no sentido, ou na memória, lança-os para além de um vivido, onde talvez um e
outro não poderiam ser senão “carne viva”, matéria-prima para uma nova história.
1 Cf. filme Orphée, de J.Cocteau,França,1950, onde o protagonista, após sua descida ao reino dos mortos, é
tomado de paixão pela Morte.
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