Só se defende bem a família quando se vive no horizonte do mundo como família
Hoje é o dia da Estrela que leva os estranhos, os mais afastados, até ao Presépio
1. Em Outubro, José Saramago agitou alguma sonolência religiosa do país, não só
com a narrativa Caim, mas sobretudo com as declarações que fez no seu lançamento, procurando deixar Deus e a Bíblia sem futuro. A provocação parece ter favorecido o despertar religioso. Muitos sentiram a necessidade de viver a fé de forma mais instruída e manifestá-la de modo mais desassombrado. Neste contexto, o Prémio Pessoa, atribuído a D. Manuel Clemente, bispo do Porto, extravasa a alta qualidade cultural do agraciado. O estilo exemplar com que intervém na comunidade católica e na sociedade exprime aquilo que muitos esperam da Igreja e dos que servem com dignidade a sua missão. A discussão em torno do "casamento" entre homossexuais continua no seu curso normal, com gente a favor e gente contra, sem recurso a campanhas religiosas ou anti-religiosas. Os bispos portugueses manifestaram-se nitidamente contra, mas sem apelar a manifestações de rua. Talvez seja a atitude mais acertada. Não é, aliás, uma questão que diga directamente respeito à jurisdição da hierarquia, pois não se trata da celebração católica de "casamento" entre homossexuais. 2. Nesta época, ouço repetir que o Natal está paganizado, porque reduzido a uma festa de família. Há vários equívocos ligados a essa afirmação. A família é uma realidade da condição humana. Quanto aos seus modelos, tem assumido, ao longo da história, diferentes expressões, segundo as várias culturas. Se o Natal consegue congregar as famílias - mesmo quando muitos não participam nas celebrações litúrgicas -, um cristão não pode deixar de se alegrar com esse belo fruto. A celebração litúrgica prossegue um objectivo muito mais amplo e profundo: anunciar que importa fazer família com quem não é da família dita biológica. O contributo original do Natal cristão - sem desvalorizar a família biológica - consiste, precisamente, em abrir o caminho para que o mundo se torne uma fraternidade. O grande contributo da celebração eucarística resulta do facto de manter viva a memória de Jesus, isto é, a vontade de pessoas de muitas famílias formarem um único corpo, alimentando-se da realidade viva de Cristo ressuscitado, que deu a vida para que todos se tornem irmãos, reunir todos os filhos de Deus dispersos (Jo 11, 52). Este horizonte universal corrige a tendência para o isolamento do clã familiar. Do ponto de vista cristão, a família deve ser o lugar e o ambiente onde se desenvolve uma educação para encarar o mundo como globalização da fraternidade. Na laicização dos valores evangélicos - liberdade, igualdade e fraternidade - esta foi sempre a mais esquecida pelos programas políticos e sociais. Daí que um bom exercício natalício seja o convite de uma pessoa ou várias para participar na ceia ou no jantar do Natal: ter dentro alguém de fora. 3. Chamo a atenção para este ponto, porque, graças a boas iniciativas, surgiram, na imprensa, artigos, entrevistas e cadernos sobre o Natal bastante interessantes. Não li tudo, mas no que li não observei que esta questão central tenha sido desenvolvida. Muitas iniciativas são de beneficência. Levar aos sem-abrigo uma ceia ou um almoço, roupas e calçado é uma forma de inclusão que só pode ser elogiada e apoiada, ao longo de todo o ano. No entanto, a Igreja Católica, na defesa da família, terá de colocar na sua agenda uma outra perspectiva: só se defende bem a família quando se vive no horizonte do mundo como família, isto é, na construção de um mundo de irmãos. A falta de partilha económica, cultural e social das famílias ricas deixa sem substância a celebração eucarística. O corpo de Cristo não é só o de há dois mil anos, em Belém, não é só o Cristo ressuscitado, não é só o Cristo presente na missa, mas o corpo místico aberto a toda a humanidade. No fundo, esquece-se o contencioso de Jesus, testemunhado nos Evangelhos, com a família em geral, com as famílias dos discípulos e com a sua família de Nazaré. Consta, literalmente, que os familiares de Jesus, por causa de andar a fazer família com quem não era da família e fazer da casa dos seus pais e irmãos a casa dos necessitados e excluídos, quiseram prendê-lo, julgando que Ele estava doido: Tendo Jesus chegado a casa, de novo a multidão acorreu, de tal maneira que nem podiam comer. Quando os seus familiares souberam disto, saíram para ter mão nele, pois diziam: "Enlouqueceu!"... Nisto chegam sua mãe e seus irmãos que, ficando do lado de fora, o mandam chamar. A multidão estava sentada em volta dele, quando lhe disseram: "Estão lá fora a tua mãe e os teus irmãos que te procuram." Ele respondeu: "Quem são minha mãe e meus irmãos?" Percorrendo com o olhar os que estavam sentados à volta dele, disse: "Aí estão minha mãe e meus irmãos. Aquele que fizer a vontade de Deus, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe" (Mc 3, 20-21; 3, 31-35). Hoje é o dia da Estrela que leva os estranhos, os mais afastados, até ao Presépio. Nele estava a nascer a Estrela para todos aqueles que não querem uns à mesa e outros à porta. A epifania do Presépio aponta para uma religião aberta a todos os povos, a todos os excluídos da família humana, a sagrada família de Deus.