Para os activistas do movimento LGBT não estão em causa só os direitos dos
homossexuais, mas uma "revolução"
Quando falamos em casamento entre duas pessoas do mesmo sexo falamos de
quê? De "um grande avanço, sem dúvida de enorme significado, no sentido de uma sociedade mais tolerante e mais justa, ? com mais igualdade para todos", como se escreve na proposta de lei do Governo? Ou antes de "uma alteração essencial num instituto milenar, que tem sido comum a todas as épocas da história e a todas as civilizações", como defendem os requerentes da realização de um referendo? Para responder a esta questão não há como ir às fontes doutrinárias - e, nesta matéria, quem talvez tenha melhor elaborado sobre a doutrina do casamento entre pessoas do mesmo sexo até se senta na bancada do partido do Governo: Miguel Vale de Almeida. E que escreveu ele? Que "a reivindicação do casamento para casais do mesmo sexo, parecendo "conservadora", é verdadeiramente "revolucionária"". Não é "conservadora" porque "o casamento mudou, na lei e nas práticas sociais"; é "revolucionária" porque, entre outros argumentos, tornaria "evidente, demasiado evidente, a sexualidade entre pessoas do mesmo sexo, para mais legitimando-a e relativizando a heterossexualidade, que de normativa passa a ser uma entre outras". O texto de Miguel Vale de Almeida que temos vindo a citar é de 2005, uma altura em que este "activista LGBT" ainda era membro da Mesa Nacional do Bloco de Esquerda. Entretanto saiu do BE e candidatou-se nas listas do PS e, agora, como escrevia no seu blogue no passado dia 3, votará a favor da proposta de lei do Governo que consagra o casamento entre pessoas do mesmo sexo vedando, contudo, a esses casais o acesso à adopção de crianças. Porquê? Não porque tenha deixado de defender "que a igualdade legal só estará garantida quando todas as questões de conjugalidade, parentalidade e reprodução estiverem garantidas", mas porque "a política é a vontade mais as circunstâncias", ou seja, "a arte do possível". Por isso, regressando à pergunta inicial, o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo, mesmo que transitoriamente vedando-lhes o acesso à adopção, se não corresponde a um imperativo constitucional - o Tribunal Constitucional já considerou que a lei suprema não impõe, apenas permite, esta mudança legal - ou ao caminho inevitável para corrigir uma desigualdade de direitos, é porque tem um alcance mais vasto, mais simbólico, mais... "revolucionário". É importante fazer esta distinção para perceber se o passo que pode hoje ser dado pela Assembleia é o mais correcto e o mais justo. A discussão sobre este tema tem estado, praticamente desde o início, inquinada. Inquinada por uns sectores considerarem sistematicamente que qualquer manifestação de reservas face ao casamento entre pessoas do mesmo sexo é um sinal de homofobia. Inquinada por se ter, durante muito tempo e até à deliberação do Tribunal Constitucional, considerado que o princípio da não-discriminação implicava de forma automática que a legalização do casamento homossexual era direito fundamental. Inquinada ainda por outros sectores não conseguirem separar o conceito de família da procriação. Os termos podem e devem ser outros. Antes do mais o de saber como resolver as situações em que os homossexuais que vivem juntos podem beneficiar dos mesmos direitos que o casamento civil proporciona aos cônjuges. Depois, o de saber como conciliar os direitos de uma minoria com as tradições e as referências da maioria. Isto é, tratar de resolver um problema e não de fazer uma "revolução". Ou, regressando às referências de Miguel Vale de Almeida, não querendo impor por lei a "relativização" da heterossexualidade que, sendo ou não a norma, não deixa de ser uma decorrência da biologia: a manutenção da espécie exige a reprodução sexuada (e mesmo fornecendo a ciência moderna formas de apoiar uma reprodução sexuada, esta, goste-se ou não, nunca dispensa a presença de um gâmeta masculino e de um gâmeta feminino). De facto, o reconhecimento do direito de cada um a viver a sua sexualidade de forma livre e responsável não implica tratar de forma igual o que é diferente, tal como não implica tratar de forma discriminatória o que é desigual. Ora tanto a proposta do Governo como o projecto do PSD não respondem de forma satisfatória a estas exigências e, tal como estão, arriscam-se a morrer por flagrante inconstitucionalidade. Do ponto de vista formal, a proposta do PSD aproxima-se mais da solução correcta, e não é por acaso que é semelhante à que tem sido adoptada em mais países. O melhor exemplo talvez seja o PaCS (Pacto Civil de Solidariedade) francês, que cria uma figura jurídica diferente do casamento que abarca tanto hetero como homossexuais e lhes permite beneficiar dos mesmos direitos associados ao casamento civil no que refere à propriedade, ao regime fiscal ou à segurança social. O erro da proposta do PSD foi criar uma "união civil" apenas para casais do mesmo sexo, o que pode ferir de inconstitucionalidade uma proposta que, para ser realmente coerente, também deveria implicar o fim dessa inutilidade legal que é a "união de facto" herdada do guterrismo. Já a proposta do Governo, ao modificar o conceito legal de casamento, ofende sem necessidade prática uma figura secular que continua a ter um valor simbólico não substituível por qualquer outro para grande parte da população. Ao mesmo tempo, ao barrar aos novos casais formados por duas pessoas do mesmo sexo o direito à adopção, a proposta cria uma real discriminação que, também ela, pode morrer por inconstitucionalidade. Para os que consideram que o Estado se deve abster de qualquer "engenharia social" ou "guerra cultural" e que as leis devem seguir e enquadrar as realidades sociais, a boa solução não deve derivar de uma agenda de costumes, seja ela qual for. Da mesma forma que não se defende um Estado confessional, não se deseja um jacobino. É por isso que uma "união civil", ou qualquer figura equiparada como o PaCS francês, aberta a todo o tipo de casais, é a resposta mais equilibrada à necessidade de responder à existência de relações pessoais e íntimas, que devem estar protegidas por lei e ainda não estão. Para o Estado, e para os deputados que fazem as leis, devia ser indiferente a agenda LGTB, de acordo com a qual, e regresso a Miguel Vale de Almeida, um tal estatuto jurídico é apenas "um casamento de segunda". Os activistas querem, naturalmente, espetar a sua bandeira em todos os morros ou castelos que ainda imaginam pertencer ao que desprimorosamente tratam por ICAR (Igreja Católica Apostólica Romana), mas há muito que o casamento civil se separou desta sem por isso deixar de ter um importante simbolismo para os que o celebram. Ora é também com estes, e não apenas com a agenda dos militantes gay, que o legislador se deve preocupar.