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MASSA E PODER:
ALGUMAS REFLEXÕES
LONDRINA,
2002
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APRESENTAÇÃO
tão decisiva para todo o futuro da economia capitalista, tão radical como
transformação da estrutura e organização da indústria que levou alguns a considerá-
la como as dores de parto do capitalismo moderno, e, portanto, o momento decisivo
no desenvolvimento econômico e social desde a Idade Média (Dobb, 1988, p. 15).
é uma mercadoria peculiar: ela é a única capaz de produzir valor. Uma parte
desse valor apropriada sob a forma de trabalho excedente, é trabalho não pago e
passa a integrar o próprio capital. Transforma-se assim numa riqueza que se
encontrará em oposição à classe dos trabalhadores (Oliveira, Quintaneiro, 1995).
Assim surge a taxa da mais valia, que é a expressão do grau de exploração da força
de trabalho pelo capital. Nesse aspecto o capitalismo não deve ser considerado apenas
um sistema de produção para o mercado – um sistema de produção de mercadorias,
como Marx o denominou – mas um sistema sob o qual a própria força de trabalho se
torna uma mercadoria, comprada e vendida no mercado como qualquer outro objeto de
troca. Surge a alienação, a perda da espiritualidade, a incapacidade de o homem fazer
uso de suas próprias potencialidades .
O trabalho, antes considerado uma pena imposta pela justiça divina, tornou-se não
só uma obrigação moral, mas também sinônimo de virtuosidade e os trabalhadores que
antes recebiam como pagamento produtos, gêneros alimentícios e moradia passaram a
receber em moeda por seu trabalho.
Neste novo sistema econômico e político o dinheiro causa um efeito
perturbador sobre a massa de trabalhadores. O próprio dinheiro é um símbolo de massa,
pois a acumulação de cada moeda origina uma quantidade, um tesouro. Mas atualmente
uma nova relação com a moeda foi criada: esta adquiriu um caráter abstrato, deixando
de ser uma unidade e sendo substituída pelo milhão.
A palavra ‘milhão’, entretanto, emprega-se não apenas à fortuna, mas
também às pessoas, o que assemelha ainda mais massa e dinheiro. Na inflação, quanto
maior a massa, menor seu valor. A característica de crescimento rápido e ilimitado
passa a ser negativa. As pessoas também se sentem desvalorizadas devido à sua
identificação com o dinheiro, já que um representa o outro. “Quando os milhões
escalam as alturas, um povo inteiro, composto de milhões, torna-se nada.” (Canetti,
1995, p. 185)
É interessante notar que, de acordo com o mesmo autor (1995), nenhuma
desvalorização é esquecida, mas sim deixa marcas nesta massa empobrecida que é
atingida pela inflação independentemente da hierarquia social de cada componente, já
que tanto o empresário quanto o trabalhador rural sofrem as conseqüências da inflação.
Estas dolorosas marcas deixadas pela perda de valor só podem ser esquecidas caso seja
encontrado algo que tenha ainda menos valor que a própria massa prejudicada e que lhe
será retirado valor até que se torne insignificante.
Esta marcante alteração nas relações de trabalho e no modo de produção fez também
com que as relações sociais fossem transformadas. Com a migração cada vez maior do
campo para as cidades devido ao declínio da comunidade agrária voltada à subsistência
e a busca do acúmulo de capital, já não havia espaço para uma vida tão coletiva quanto
nos feudos.
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O homem não mais vive no mundo rural em relação harmônica com a tradição, os
costumes, a natureza. A sociedade deixou de ter uma estrutura estamental para dar lugar
à divisão em classes sociais e à uma massa de consumidores, livres, assalariados, que
não mais vivem em grandes propriedades rurais com seu senhor, mas agora em
propriedades privadas apenas com a sua família nuclear, com novas maneiras de
conviver em grupo e estabelecer contato e vínculos com as pessoas.
Neste contexto, é possível observar como as relações entre as pessoas se
transformaram com o surgimento de novas relações sociais, no trabalho e na família,
trazidas pela privatização da vida cotidiana, pelo acúmulo de capital e pela divisão da
sociedade em classes. Não só o remanejamento da economia e da política são reflexos
destas transformações, mas também o comportamento de massa e as relações de poder
se modificaram a partir desta nova dinâmica da sociedade.
Uma primeira característica a ser ressaltada a respeito do comportamento
de massa é o grande temor do homem no contato com os outros. O medo do toque e da
proximidade é suficiente para nos fazer ansiar por um pedido de desculpas diante de um
contato não proposital no meio da rua. Esta aversão ao contato, transformada em pânico,
faz com que os homens se protejam uns dos outros trancafiando-se em casas cercadas
por altos muros, cercas elétricas1 e apenas assim sentindo-se mais seguros. Apesar disso,
mesmo durante o sono, surge o medo de que algum ladrão possa adentrar e não somente
invadir a propriedade, mas também tocar quem mora nela.
A distância que os homens mantém uns dos outros nas atividades do dia-
a-dia, nos ônibus, no ambiente de trabalho é ditada por este temor e, se por ventura nos
aproximamos de alguém, é porque gostamos desta pessoa e, nesse caso, a iniciativa da
aproximação é nossa.
Entretanto, uma forma de anular ou até de inverter este temor é a massa.
Quando as pessoas se unem em uma multidão, as diferenças, até mesmo entre os sexos,
é diminuída e o contato se torna presente. As pessoas em massa se comprimem umas
contra as outras, se tocam, como que para se libertarem do temor do contato individual.
Quanto maior o contato na massa, maior o alívio.
“Quanto mais energicamente os homens se apertarem uns contra os
outros, tanto mais seguros eles se sentirão de não se temerem mutuamente. Essa
inversão do temor do contato é característica da massa.” (Canetti, 1995, p.14)
A massa se forma através do agrupamento de cada vez mais pessoas em
um local onde outrora se encontravam apenas algumas. Aos poucos o espaço vazio vai
sendo preenchido por muitas e muitas pessoas que se reúnem às vezes até sem saberem
ao certo o motivo de estarem ali.
Ainda assim. ao contrário do que parece, este aglomerado sempre tem
uma meta, a de estar com o maior número de pessoas e evitar a sua dispersão. A meta, o
objetivo da massa, é o de conquistar mais e mais integrantes sem limites para o seu
agrupamento.
Este aspecto é citado na música ‘Muros e Grades’ do grupo Engenheiros do Hawaii: Nas grandes
cidades, no pequeno dia-a-dia/ O medo nos leva tudo, sobretudo à fantasia/ Então erguemos muros que nos dão a
garantia de que morreremos cheios de uma vida tão vazia/ Nas grandes cidades de um país tão violento/ Os muros e
as grades nos protegem de quase tudo/ Mas o quase tudo é quase sempre quase nada/ E nada nos protege de uma vida
sem sentido/ [...] Nas grandes cidades de um país tão irreal/ Os muros e as grades no protegem do nosso próprio mal/
[..] Meninos de rua/ Delírios de ruína/ Violência nua e crua/ Verdade clandestina/ Delírios de ruína/ Delitos e
delícias/ Violência travestida faz seu trotoar/ Em armas de brinquedo/ Medo de brincar/ Em anúncios luminosos/
Lâminas de barbear/ [..] Vamos lutar pelo poder/ Lutar como puder.
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As multidões e a massa, por sua vez, embora ainda presentes como força
política e poder, não ocupam, no cenário social, o mesmo espaço de outrora.
Viveríamos hoje exatamente um declínio da sociedade de massas em prol da sociedade?
Estaríamos vivendo hoje uma condição de massificação no mercado e no consumo?
Quando presenciamos grandes manifestações em massa, como ocorrida
no Brasil por ocasião das eleições ou ainda grandes protestos realizados pela internet,
ainda assim podemos pensar em novas formas de ação das massas?
Estas questões, cuja pretensão não foi abordar neste trabalho, mas apenas
levantá-las, demonstram, de qualquer maneira, que as relações entre a liderança e o
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS