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Adilson Marques
São Carlos
Fevereiro de 2010
Introdução
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Procurando fugir desse padrão educativo, foi proposto, em 1997, o projeto “maquete
lúdica de Rio Preto” para ser realizado com as crianças do projeto Curumim, um programa
de “educação informal” com crianças de 7 a 12 anos de idade, realizado pelo SESC, na
cidade de São José do Rio Preto.
Naquele ano, o tema da programação – para cada ano é realizado um projeto com
um tema central que deve englobar toda a programação infantil, desde a escolha das peças
de teatro para crianças, exposições etc. – era a cidade de São José do Rio Preto e a
programação infantil foi denominada Cidade Curumim.
Com os locais levantados – e o Sesc foi o local mais votado, seguido pelo represa
municipal e pela Cidade das Crianças -, o maqueteiro contratado estudou e apresentou a sua
proposta para a confecção da maquete lúdica de Rio Preto.
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Foi construída, então, uma maquete de 3 X 3 metros, com os 10 locais
representados, fora de escala, para se destacarem na “paisagem”. A biblioteca municipal,
por exemplo, cuja edificação é conhecida pelos moradores como o “prédio da aranha”, foi
representada como um gigantesco aracnídeo de óculos, lendo prazerosamente um livro.
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em outras esferas da vida das crianças, os laços afetivos que elas já construíram pode não
fazer bem, mas mal também não fará. Permitir que além de críticas elas sejam criativas
pode ser que ajude no cultivo de novas formas de sensibilidade, ou seja, junto com a
pedagogia lúcida, pode existir espaço para a pedagogia lúdica.
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A própria organização dos compartimentos do apartamento ou
da choupana: canto onde se dorme, lugar onde se prepara a refeição,
sala de jantar, quarto de dormir, dormitórios, sala de estar, celeiro, casa
da fruta, granja, sótão, todos esses elementos orgânicos trazem
equivalentes anatômicos mais do que fantasias arquiteturais. A casa
inteira é mais do que um lugar para se viver, é um vivente. A casa
redobra, sobredetermina a personalidade daquele que a habita.
Foi possível notar como a maquete possibilita reduzir a cidade inteira em um novo
lar. Além de encantar as crianças, encanta também os adultos que se voltam para as
imagens isomórficas do nicho, da concha e do colo materno, vivendo, no momento de
fruição da maquete uma sensação de involução, pois aciona os schèmes de descida. Este
“microcosmos” carregado de profundas significações sentimentais, concentra a fantasia de
possuir num pequeno espaço a totalidade do Universo, como ocorre com o ikébana e o
bonsai oriental. Essa transformação do Universo em uma substância íntima inverte a
direção dos valores e imagens dominantes em nossa cultura moderna, causando uma
reviravolta em nossas almas. Assim, mesmo que por alguns instantes, deixamos de
gigantizar os heróis e suas proezas.
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proporciona um tipo de prazer que chega a imobilizar o olhar de muitas pessoas.
Possivelmente, era a presença de lîla, o divertimento divino, que ali se manifestava.
Pode-se dizer que a maquete nos remete ao devaneio da segurança. E, como nos
lembra BACHELARD (1988b, p. 207) "a imaginação miniaturizadora é uma imaginação
natural. Aparece em todas as idades do devaneio dos que nasceram sonhadores."
Mas não posso deixar de ressaltar a dimensão sociagógica da maquete, uma vez que
sua contemplação ajuda a possuir melhor a cidade real e de uma forma muito mais
significativa. Lembrando novamente BACHELARD (op. cit., p. 207): "possuo melhor o
mundo na medida em que eu seja hábil em miniaturizá-lo. Mas, fazendo isso, é preciso
compreender que na miniatura os valores se condensam e se enriquecem. (...) É preciso
ultrapassar a lógica para viver o que há de grande no pequeno."
A preocupação com a lógica nos remete apenas para a geometria da maquete, para a
preocupação com a escala, reduzindo, assim, a imaginação criadora. Permanecendo nesse
nível, a maquete apenas serviria para reproduzir a realidade, mas, permitindo uma abertura
para sua dimensão surracionalista, vamos notar que valores estão engolfados na maquete e
que esta faz sonhar.
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E esse sonho é crepuscular, uma vez que se fica mais à vontade no mundo da
miniatura representada pela maquete enquanto a imaginação permanece vigilante e feliz em
sua contemplação. Aqui podemos salientar uma dimensão animagógica também. A
contemplação da maquete, que expressa o mundo exterior, quase sempre é acompanhada
por uma imensidão interior. É na dialética, ou melhor, na dialógica entre o mundo exterior
(a cidade) e o interior que se pode notar que a topoclastia (sentimento que faz o mundo
parecer terrível) é típico, normalmente, de quem possui os sentidos entorpecidos pelas
enormidades intumescedoras da mente.
Mesmo assim, a maquete lúdica trouxe para muitos adultos um pouco de ordem
interna e também externa. Mesmo quando estamos no meio da confusão urbana
contemporânea, a representação em miniatura da cidade nos permite perceber que esta
possui algo de belo e que suas formas são também graciosas. Como já havia afirmado
HILLMAN (1993:144):
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Onisciência e Onipresença se tornam Deuses. Em outras palavras, sem
os Deuses os Titãs retornam.
Nesse sentido, pode-se dizer que a maquete, para além de suas lógicas geométricas,
permitem o germinar de uma imaginação capaz de conter o excesso, em outras palavras,
capaz de manter acuado o titanismo, permitindo que os princípios e poderes arquetípicos
que permitem o retorno dos Deuses inimigos dos Titãs.
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Dioniso. Grandes soluções e idéias universais fazem parte da
enormidade que estive chamando titânica.
Essa forma de Ação Cultural que foi concluída com a exposição de uma maquete,
contemplada intensamente pelas crianças, seus pais e professores (a maquete foi exposta
por vinte dias nas dependências do SESC Rio Preto) parecia abrir outras portas, sobretudo,
para que os Deuses se voltassem para o interior. Sonhos, visões, fantasias, sensações,
recordações pessoais se misturavam e pareciam formar uma espécie de refúgio positivo
(não narcisista) do mundo desordenado vivido na cidade.
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se manifesta ligado a eles. Os locais ali representados correspondem a afetos carregados de
projeções. Paradoxalmente, a contemplação da maquete pode conduzir para o envolvimento
social e cultural com o espaço urbano. E, nesse caso, penso, simultaneamente, em Afrodite
e Ártemis.
Assim, ao invés de alimentar uma consciência zeusiana, que iria nos dizer: "acorde e
veja!" Esse trabalho de anima-ação cultural nos leva a sentir que o titanismo não é
invisível, ele tem gosto, ele fere nossos ouvidos. Assim, a maquete, para além de suas
lógicas geométricas, permitiu que, a partir da representação singular de cada espaço amado,
se abrisse uma porta para tocar o mundo com os sentidos, com o senso comum e,
sobretudo, com o divertimento.
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todas as definições resvalam, dançam, se combinam, se afastam e voltam
a combinar-se o ambiente onde a diversão ocorre pode ser informal ou
extremamente solene. Até o trabalho mais difícil, se enfrentado com
espírito alegre, pode ser diversão. Quando me divirto, descubro novas
maneiras de me relacionar com as pessoas, com os animais, com as
idéias, com as imagens, comigo mesmo. O divertimento desafia
hierarquias sociais. Misturamos elementos que anteriormente estavam
separados. Nossas ações tomam caminhos inusitados. Brincar é libertar-
se de restrições arbitrárias e expandir o próprio campo de ação. A
brincadeira possibilita uma maior riqueza de reações e melhora nossa
capacidade de adaptação. Esse é o valor evolucionário da diversão – ela
nos torna mais flexíveis. Ao reinterpretar a realidade e criar coisas
novas, nos protegemos contra a rigidez. A brincadeira nos permite
reorganizar nossas capacidades e nossa verdadeira identidade, de forma
que possamos utilizá-las de maneiras inesperadas.
Procurarei me deter em alguns dos locais escolhidos pelas crianças e que foram
representados na maquete. O SESC Rio Preto foi o local da cidade mais lembrado pelas
crianças. Isso talvez ocorra pelo fato da mente criativa, sobretudo a infantil, brincar com os
objetos que ama. E como já disse NACHMANOVITCH (1993:49), “Eros brinca com os
amantes. Os deuses brincam com o universo. As crianças brincam com qualquer coisa em
que possam pôr as mãos.”
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poderia partir da reflexão de HUIZINGA (1993) das diferenças entre o puerilismo e o
lúdico e as suas conseqüências nas atividades para crianças.
SESC Rio Preto, considerado pelas crianças o local mais importante da cidade.
Foto: Adilson Marques (1997)
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Outro local significativo da cidade de São José do Rio Preto lembrado pelas
crianças foi a represa municipal. Além de abastecer a cidade, a represa se transformou em
uma importante área de lazer. A represa é apreciada pelas pessoas de todas as idades e a
multiplicidade de razões que levam as pessoas a freqüentá-la poderia ser tratada, se é que o
termo pode assim ser utilizado, de uma parataxe social. A parataxe em poesia ou retórica
insiste na complexidade do mundo físico e na interação de todos os elementos entre si. E é
justamente essa vivência “holística” que se pode notar na represa, onde um procedimento
natural de fusão ocorre entre a multiplicidade e heterogeneidade de pessoas e atividades,
tornando-a, paradoxalmente, uma única unidade: a represa municipal de São José do Rio
Preto.
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A represa de Rio Preto é, de certa forma, a metáfora da barroquização na cidade.
Um local que se prolifera como uma matéria em movimento, representando a origem
matricial, a confusão fundadora, exaltando sem distinção a vida, positiva (quando fornece
lazer, descontração etc. para a população) e negativamente (quando transborda e inunda as
ruas com água e lixo).
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Uma outra imagem que gostaria de ressaltar é a do estádio de futebol. Como em
todo o país, o futebol é o esporte preferido dos rio-pretenses. Dos times de futebol
profissional da cidade, o América Futebol Clube é o mais famoso. Mesmo assim, como
deve ser comum também em outras cidades do interior, quase todos torcem por dois times:
um time grande da capital e o time da cidade. Assim, temos corinthianos-americanos,
palmeirenses-americanos, sãopaulinos-americanos etc.
Isso cria uma situação paradoxal ou uma forma “politeísta” de torcer. Esta estranha
– ao ser comparada com o “monoteísmo” vivido na capital do estado - forma de
mobilização pelo futebol revela um torcedor mais amistoso e, o mais importante, centrado
entre a unidade e a multiplicidade. E essa condição limítrofe já é vivida pelas crianças. De
um lado, o instinto de se vincular ao clube da cidade, de outro, com um dos clubes da
capital, gradativamente, permite que nas crianças comece a germinar um processo
simbólico de oposições hermesianas.
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Estádio do América Futebol Clube, mais importante equipe de futebol da cidade.
Na representação aparece com um ilustre jogador, Ronaldinho, que todas as crianças
gostariam que jogasse em seu time do coração.
Foto: Adilson Marques (1997)
Nesse projeto de Ação Cultural, o imaginário infantil sobre a cidade de Rio Preto
emergiu na paisagem. As crianças elegeram a sua cidade, seus territórios de vida cotidiana.
Na maquete encontramos representados os locais onde elas depositam seus afetos, seus
laços topofílicos. Podemos dizer que ali se encontra a “cidade em ato” daquelas crianças,
onde o “ser-junto-com” infantil se realiza. São nesses locais que o imaginário e a
comunicação infantil se integram, e onde as crianças podem viver com mais liberdade seus
mitos e símbolos.
Voltando a maquete criada, outra questão interessante que podemos discutir está na
representação não da “unidade” do mundo infantil, mas, ao contrário, da “unicidade” desse
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mundo. Em outras palavras, a maquete não representa necessariamente uma
homogeneização da alma e dos valores sócio-afetivos e espaciais infantis, mas nos traduz a
heterogeneização dessa alma em movimento. Assim, todos os locais representados formam
uma pequena constelação de espaços amados pelas crianças, o dado sensível dessa
pluralidade lúdica e dionisíaca presente na alma infantil.
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como se fossem nossos vassalos. Não, eles não devem Ter vontades! Não
temos nós as nossas? E onde reside nosso privilégio? No fato de sermos
mais velhos e sensatos?!
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Capa do folder de divulgação da exposição Cidade Curumim
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