Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
por Seth Schoen, traduzido para português com a ajuda de Marie Gomes e editado com a
ajuda de Teresa Guilhon Barros
Este discurso foi escrito para, e proferido em, o seminário “A Cultura além do Digital” em
Recife, PE, no dia 4 de dezembro, e no Rio de Janeiro, RJ, no 7 de dezembro, 2006. © 2006
pela Electronic Frontier Foundation; licenciado sob a licença Creative Commons BYSA 2.5
Brasil1.
Prezados Senhores, boa noite e muito obrigado pela oportunidade de estar aqui. Meu nome e
Seth Schoen da Electronic Frontier Foundation, e gostaria de falar um pouco sobre a relação
entre direitos autorais, direitos do público e padrões de televisão digital.
Falo um pouco português e, portanto, decidi que seria mais agradável e mais fácil para a
audiência se proferisse minha palestra em português (com a ajudinha de uma tradutora
profissional nos Estados Unidos). Tenho certeza que tenho um sotaque americano terrível,
mas espero que me perdoem por isso. Ademais, duvido que meu português seja suficiente
para responder perguntas sofisticadas em tempo real e aproveitarei a ajuda da tradutora
durante a sessão de perguntas e respostas. Devo mencionar também que meu português
escrito é muito melhor que meu português falado e sempre acolho favorávelmente perguntas
por email. Me esforçarei em responder da melhor forma possível.
A historia da televisão e da difusão é, em geral, uma historia conflitual. Não tenho tempo de
discutir sobre as lutas acirradas que ocorreram na primeira metade do século 20 a respeito
das patentes de difusão (e padronização) – levando ao suicídio em 1954 de Edwin Armstrong,
o inventor da radio FM2.
Meus colegas e eu habitualmente contamos não esta historia, mas a historia do conflito entre
a indústria do entretenimento e a inovação tecnológica, geralmente através de demandas
relativas a direitos autorais. Habitualmente, indicamos a impressionante lista de tecnologias
cujos criadores foram processados, ameaçados de ser processados ou denunciados em
1 <http://creativecommons.org/licenses/bysa/2.5/br/deed.pt_PT>
2 Veja, por exemplo, Tom Lewis, Empire of the Air: The Men Who Made Radio (Perennial, 1993).
audiências perante o poder legislativo como ladrões e ameaças para o mundo do
entretenimento.
Para os que lêem o idioma inglês, recomendo o testemunhal perante o Congresso prestado em
1982 pelo famoso presidente da Motion Picture Association of América, Sr. Jack Valenti3. O
Sr. Valenti é um dos personagens mais pitorescos da historia moderna e um dos melhores
oradores do seu tempo.
Nos Estados Unidos, durante seu discurso perante um comitê legislativo a respeito da
ilegalidade do VCR e da gravação de filmes em casa, o Sr. Valenti conseguiu comparar o
VCR com
• uma avalanche
• um terremoto
• uma onda de maré
• uma hemorragia, e
• um assassino serial americano conhecido como o “estrangulador de Boston”.
Durante o século 20, outras tecnologias foram denunciadas e, em alguns casos, os criadores
foram processados por violação de direitos autorais ou por ajudar terceiros a infringir direitos
de autor: incluindo o piano mecânico (Pianola), o radio, o gravador de audiocassetes, a
televisão a cabo, a fotocopiadora (Xerox), a quasedesconhecida cassete áudio digital (DAT),
o gravador de CDs, e o gravador de vídeo pessoal (PVR).
Esta é uma historia importante para nós, pois queremos pôr em perspectiva e no contexto as
criticas da indústria do entretenimento a respeito destas novas tecnologias, já que as pessoas,
hoje, percebem estas criticas com certa simpatia, sobretudo quando escutam as estatísticas
sobre a quantidade de infrações aos direitos autorais.
3 Veja <http://cryptome.org/hrcwhear.htm>.
Nas fábulas de Esopo, podemos ler a estória do “menino que gritava lobo” e que acabou
perdendo toda credibilidade por inventar tais perigos. É sem dúvida verdade que as
tecnologias podem acarretar mudanças maiores para a indústria – o que o escritor Clayton
Christensen chama de “inovação desruptiva”4 – mas gostaríamos que as pessoas soubessem
exercer seu ceticismo quando confrontados ao argumento de que uma tecnologia específica é
tão poderosa que pode destruir cultura e criatividade. Pelo contrario, como meu colega Fred
von Lohmann bem assinala, todas as tecnologias que mencionei anteriormente e que,
supostamente, deveriam representar a morte da criatividade, a morte da musica, dos filmes
etc., parecem ter tido efeitos benéficos para a cultura.
Hoje, eu vou me concentrar no tema da televisão e, como vocês sabem, o que torna a
televisão digital um tema de atualidade no Brasil, é a recente escolha pelo governo, como
base para o sistema brasileiro de difusão de televisão digital, do padrão digital japonês ISDB-
T entre um grupo de tecnologias concorrentes. Portanto, o Brasil, tal como os Estados Unidos
e vários outros países, encontrase agora num processo de transição da difusão analógica para
a difusão digital. Os Estados Unidos estão, oficialmente, bem na frente neste processo, no
entanto cabeme ressaltar que a data limite para essa transição nos Estados Unidos já foi
adiada várias vezes e muito poucas pessoas, na realidade, assistem televisão digital, e muitos
canais de televisão perderam o prazo para pôr no ar simultaneamente o sinal analógico e
digital. Assim, de certa forma, os EUA talvez não estejam tão mais adiantados no processo
que o Brasil, e isso apesar de uns 10 ou mais anos de intensa pressão setorial5.
Na EFF, não temos posição sobre qual padrão o governo Brasileiro deveria ter escolhido e
não estamos, por exemplo, pedindo ao governo que selecione o padrão americano ATSC,
como posso imaginar que o governo dos Estados Unidos esteja defendendo. No entanto,
existe algo que me preocupa na escolha do sistema ISDBT e espero que seja um problema
4 Veja <http://en.wikipedia.org/wiki/Disruptive_innovation>; veja também Clayton M. Christiansen, The
Innovator's Dilemma (Harvard, 1997) e The Innovator's Solution (Harvard, 2003).
5 Veja Joel Brinkley, Defining Vision: How Broadcasters Lured the Government into Inciting a Revolution in
Television (Harvest, 1998), que conta a historia até 1998.
que possa ser evitado. Para facilitar a compreensão, me permitam contarlhes um pouco da
historia recente da televisão nos Estados Unidos.
Os Estados Unidos vêm usando um padrão de televisão analógico chamado NTSC desde os
anos 40. O NTSC é um sistema analógico basicamente equivalente ao PAL e PALM, mas
não compatível com eles. Todos esses sistemas analógicos possuem uma importante
característica em comum: todos estavam devidamente documentados e toda a informação
necessária para receber o sinal era de conhecimento público. Pode parecer uma característica
óbvia para um sistema de difusão, onde o objetivo é maximizar o número de pessoas capaz de
receber o sinal, mas veremos que isso já não parece ser tão óbvio hoje.
Já que as especificações técnicas eram de conhecimento público, era possível para qualquer
pessoa construir uma TV NTSC. Também era possível para os especialistas realizar novas
aplicações com a NTSC TV que não haviam sido previstas no design (ou seja, na concepção)
do sistema – podese dizer que o NTSC era extensível, adaptável ou reconfigurável. A
chegada da TV a cabo, por exemplo, permitiu que os telespectadores recebessem sinais
distantes, mas isso só foi possível devido à abertura do padrão.
Deixemos de lado todo o aspecto processual que resultou desses experimentos (em que os
difusores disseram que os sistemas de TV a cabo eram como ladrões dos seus sinais) e vamos
para outra coisa interessante que as pessoas fizeram com o NTSC. Descobriram que se pode
gravar.
Em 1975, a Sony introduziu o primeiro VCR destinado ao consumidor e ao mercado de
massa, chamado o Betamax. O ano seguinte, Sony foi processado por umas companhias de
entretenimento6. Essas companhias argumentavam que a Sony deveria arcar com a
responsabilidade acessória ou solidária por infração de direitos autorais. Ou seja, a partir do
momento em que a Sony produziu e vendeu uma ferramenta para copiar e já que talvez
6 Se pode ler a historia em James Lardner, Fast Forward: Hollywood, the Japanese, and the VCR Wars (W.
W. Norton, 1987).
muitos, talvez a maior parte dos usos de essa ferramenta infringiria direitos de autor, as
companhias de entretenimento diziam que a Sony tinha que ser considerada responsável por
contribuir com esses usos.
Esse caso durou muito tempo. Ainda estava em fase de recurso quando o Sr. Valenti prestou
testemunho a respeito do estrangulador de Boston. O resultado deste caso foi uma decisão
muito apertada da Corte Suprema, por uma maioria de 54, na qual a Corte decidiu, primeiro,
que alguns tipos de gravação caseira nãoautorizada deveriam ser considerados como
protegidos com base no direito do consumidor e ao amparo da doutrina de “fair use” ou “uso
legítimo” – mesmo que os consumidores não tenham recebido autorização – e, segundo, que
existiriam limites à responsabilidade do fabricante por infração no uso de um produto
tecnológico. Em particular, a Corte considerou que, ao amparo da Lei estadunidense, e desde
1984, um produto de uso geral podendo ser utilizado substancialmente para outros fins lícitos
(em inglês, “merely ... capable of substantial noninfringing uses”) seria protegido e que o
VCR era um exemplo deste tipo de produto7. Como resultado temos o VCR e esse caso,
agora, parece ser uma estranha nota de rodapé na historia. A indústria cinematográfica
realmente tentou proibir o VCR? E o caso somente foi decidido com um voto de diferença
pela Corte Suprema?
Outra conseqüência da acessibilidade, ou abertura, do NTSC é que as pessoas eram capazes
de fazer placas de captura de vídeo para computadores. Ainda estamos falando de televisão
por transmissão analógica, mas é possível digitalizar um sinal vídeo analógico e colocálo
dentro de um computador, o que hoje é uma característica padrão em muitos dos
computadores pessoais – e significa que você pode assistir televisão no seu computador e,
potencialmente, fazer outras coisas com ele. Da mesma forma, nos últimos anos foi criado o
PVR (gravador de vídeo pessoal; em inglês, personal video recorder). A mais famosa marca é
o TiVo8 (ainda não se pode comprar um aqui no Brasil), e também temos ReplayTV, que
7 Sony Corp. of America v. Universal City Studios, 464 U.S. 417 (1984), disponível em
<http://caselaw.lp.findlaw.com/scripts/getcase.pl?navby=CASE&court=US&vol=464&page=417>.
8 Veja <http://www.tivo.com>.
conheceu um final triste9, e PVRs fornecidos aos assinantes por algumas companhias de
televisão nos Estados Unidos. Também temos softwares livres, como MythTV10, que pode
transformar um computador em um PVR. Mais uma vez, isso só é possível por causa da
abertura do padrão.
A mais recente aplicação que conta com a acessibilidade do NTSC é um dispositivo de
acesso remoto, de marca Slingbox11, capaz de redirecionar a televisão usando Internet para
um laptop ou até mesmo, um dia, para um celular. Este dispositivo é bem popular com quem
viaja muito: o Slingbox fica na sua sala, captura o que passa na televisão, digitaliza o
conteúdo e o redireciona para seu laptop. Um dos usos mais populares é assistir eventos
desportistas locais quando se está viajando.
Todos esses dispositivos de gravação etc. concedem bastante poder ao consumidor, mas, ao
mesmo tempo, são problemáticos para a indústria de entretenimento e publicidade na medida
em que dificultam determinar quando e onde os telespectadores assistem televisão, entre
outras coisas. Chamamos o que estes dispositivos fazem de “timeshifting” (deslocamento
temporal) e spaceshifting ou placeshifting (deslocamento espacial). Também poderia
mencionar o gravador de DVD como próxima geração do VCR – porque permitem assistir
televisão na hora que quiser e em qualquer lugar.
Apesar disso, todas essas inovações ficaram disponíveis no mercado graças à acessibilidade
ou abertura de um padrão que existe desde os anos 1940. Ninguém tem que pedir permissão
antes de colocar estes produtos no mercado. Ninguém tem que obter licença para interagir
com o NTSC. Em alguns casos, certas indústrias argumentaram que alguns dispositivos se
encontravam fora do âmbito de proteção concedido pela decisão Sony Betamax e fora do
âmbito de aplicação do direito do consumidor. Temos então a oportunidade (e nós da EFF já
9 A empresa que vendeu o ReplayTV foi processado pelas indústrias audiovisuais e, sem admitir culpa,
parou de vender o produto por causa da falência. Veja
<http://www.eff.org/IP/Video/Newmark_v_Turner/> e
<http://www.eff.org/IP/Video/Paramount_v_ReplayTV/>.
10 Veja <http://www.mythtv.org> e <http://www.mythtv.org/modules.php?name=MythFeatures>.
11 Veja <http://www.slingmedia.com>.
fizemos isso) de ir até os tribunais e com a ajuda desses, desenvolver, ampliar e esclarecer
doutrinas jurídicas relativas ao direito do consumidor em relação aos direitos autorais, tais
como uso legítimo e outras doutrinas relativas ao uso pessoal. Mas não existe um regime de
licença como barreira no inicio.
Há aproximadamente dez anos atrás, os Estados Unidos iniciaram seu próprio processo de
transição para a televisão digital terrestre. Os EUA tiveram seu próprio processo de seleção
cheio, como no Brasil, de pressão política, pressão setorial, criticas por parte dos defensores
das tecnologias que não foram escolhidas. A tecnologia escolhida nos Estados Unidos é
chamada eightlevel vestigial sideband modulation ou 8/VSB, e o sistema é chamado ATSC12.
No mercado mundial ainda não foi possível chegar a um acordo sobre um único padrão de
TV digital, desta forma ATSC concorre neste mercado com o sistema europeu, o DVBT e
com o sistema japonês, ISDBT, que foi agora anunciado como base para o sistema brasileiro.
O ATSC, como o NTSC, é um padrão aberto e publicado que qualquer um pode implementar,
o que significa que as tecnologias que mencionei anteriormente podem continuar a existir no
mundo do ATSC e que as pessoas podem continuar pensando em novas aplicações que não
haviam sido imaginadas quando da sua padronização original.
Nos Estados Unidos, a indústria cinematográfica e as organizações profissionais de esportes
não gostaram da idéia dum padrão moderno simplesmente aberto e sem nenhumas restrições
técnicas para seu uso. Preferem o modelo do DVD que foi criado, desde o inicio, com um
sistema de gerenciamento dos direitos digitais (DRM), o qual teoricamente, mesmo que
ineficaz, limita a possibilidade de produzir copias em série a partir de um disco DVD pré
gravado. Também, pela mesma razão, um DVD comprado na região 1 teoricamente não pode
ser visto na região 4. Mas, mais importante, obriga qualquer um que queira fabricar um leitor
de DVD a pedir uma licença à indústria cinematográfica. Há um contraste aqui entre a
indústria audiovisual e da música, porque o CD tem um padrão aberto, e por isso pode ser
extraido para um computador ou dispositivo como o iPod, por exemplo. Mas você não pode
12 O consórcio ATSC publica os padrões do sistema ATSC em <http://www.atsc.org>.
legalmente extrair um DVD para seu laptop nos Estados Unidos. Existe uma lacuna
relativamente à inovação e não se trata do que é tecnicamente possível, tratase de saber se a
inovação requer permissão a priori, se você tem que ir pedir que a indústria audiovisual
aprove de antemão as funcionalidades que você quer incluir no seu produto.
A indústria audiovisual disse que o padrão ATSC era um terrível perigo para eles por ser um
padrão aberto que deixaria as pessoas copiar coisas (tal como permite o NTSC). Só
esqueceram de mencionar isso até vários anos depois do ATSC haver sido elaborado e
adotado, mas acabaram mencionando o assunto em 2001 e se dirigiram até a agência de
regulamentação das comunicações, a Federal Communications Commission13 (FCC), e
ameaçaram boicotar o formato ATSC se não se adotassem restrições sob forma de controle de
conteúdo em todos os receptores ATSC14. Os receptores deveriam obedecer a um sinal
chamado “broadcast flag” ou sinalizador15. Se este sinalizador estivesse presente, os
receptores implementariam um tipo de limitação de copia. Claro que os receptores que não
conseguissem ler o sinalizador continuariam funcionando como sempre. Foi então pedido ao
FCC que regulamentasse que todos os receptores ATSC fossem fabricados para ler e entender
este sinalizador.
O que é realmente importante aqui não é o detalhe de quais restrições específicas seriam
implementadas. Como gosto de ressaltar, o problema com o DRM em geral e com o
broadcast flag não é relativo a essas restrições especificas. Não se trata de discutir se o
consumidor estaria autorizado a fazer 7 ou 5 copias ou assistir algo em 9 dispositivos em vez
de 6. O importante aqui é que a regra do broadcast flag teria acarretado uma mudança
qualitativa na forma em que a inovação tecnológica funcionava, porque teria introduzido um
regime de licença. Qualquer um que quisesse desenvolver uma televisão ATSC ou um VCR
13 Veja <http://www.fcc.gov>.
14 Por exemplo, a Viacom escreveu em dezembro 2002 que “[i]f a broadcast flag is not implemented and
enforced by Summer 2003, Viacom's CBS Television Network will not provide any programming in high
definition for the 20032004 television season.” Na verdade, o broadcast flag não tem sido adotado, e a
Viacom continua a transmitir programas de alta definição.
15 Veja <http://www.eff.org/broadcastflag/>.
ou um PVR, ou qualquer outra inovação, teria talvez que passar por todo um processo
político, um processo de licenciamento, para pedir permissão.
Lamento dizer que a FCC foi persuadida em promulgar essa regulamentação em 200316.
Estou feliz em informar que nós da EFF juntamente com os nossos colegas da ONG Public
Knowledge e das associações nacionais dos consumidores e dos bibliotecários contestamos
essa regulamentação perante o sistema judiciário, argumentando que a FCC não tinha a
autoridade regulamentar ou competência nesta área e que atuou fora do seu poder legítimo17.
Argumentamos ainda que a FCC tem amplo poder para regulamentar transmissores, mas não
os receptores. O tribunal concordou e invalidou a regulamentação18. Porém, este pode não ser
o último capítulo porque ainda existem propostas legislativas para para modificar o regimento
do FCC de maneira a ampliar sua autoridade e restabelecer esta regulamentação. Agora,
temos que lutar no Congresso.
Na Europa, também existe uma proposta para um broadcast flag ou sinalizador equivalente
para o padrão DVBT, e participamos há vários anos do consórcio padrão DVB, com a
assistência da fundação MacArthur, tentando entender, opornos e darlhe o máximo de
publicidade. O broadcast flag europeu ainda está longe de estar pronto, mas existe a proposta.
Provavelmente teremos que, como fizemos nos Estados Unidos, contestálo perante as
jurisdições européias, junto às respectivas agencias nacionais de regulamentação de
comunicações, ou talvez tentar evitar a adoção de uma diretiva pela União Européia
requerendo que os países europeus criem leis impondo o broadcast flag.
A boa noticia é que, pelo menos, temos a oportunidade de debater a respeito, de ir a corte, de
argüir junto às agências de regulamentação e de assinalar produtos específicos que hoje são
legítimos e úteis para televisão digital, mas que se vêem ameaçados por propostas como a do
broadcast flag.
16 A regulamentação está disponível em <http://www.eff.org/IP/broadcastflag/20031104_fcc_order.pdf>.
17 Veja <http://www.eff.org/IP/broadcastflag/ALA_v_FCC/>.
18 Se pode ler a decisão do tribunal em <http://pacer.cadc.uscourts.gov/docs/common/opinions/200505/04
1037b.pdf>.
Por exemplo, no caso destas pessoas que desenvolvem em casa gravadores pessoais de TV de
última geração nos seus computadores, o hardware necessário encontrarseia proibido pela
regra do broadcast flag, fomos assim capazes de assinalar um caso muito concreto sugerindo
que existe o risco de se perder algo importante em função destas restrições. Mas essas
oportunidades de lutar pelos direitos do consumidor dependem do fato que o padrão de TV
digital é um padrão aberto.
No Japão, todas estas oportunidades foram perdidas desde o inicio. Nesse país, a indústria do
entretenimento não esperou a adoção de um padrão de televisão digital para comparecer e
exigir restrições.
A implementação no Japão do padrão ISDBT é qualitativamente diferente da implementação
do ATSC e DVBT em outros países. O sistema ISDBT foi criado desde o inicio com
restrições integradas. Partes do padrão ISDBT são publicadas, mas não o bastante, e de
longe, para permitir uma implementação completa. A informação publicamente disponível
não é suficiente para permitir que alguém possa construir uma televisão que receba
transmissão de televisão, e isto é intencional, porque existe um regime de licenciamento
concebido para impor restrições aos telespectadores mediante imposição de restrições aos
fabricantes, os quais são os licenciados. O regime de licenciamento impõe um controle estrito
das funcionalidades e características dos dispositivos fabricados. Por exemplo, os difusores
podem, simplesmente, dizer “não se pode gravar” um determinado programa.
No Japão, todo telespectador tem que possuir um cartão inteligente, ou seja, cartão com chip
(smart card), chamado cartão BCAS. Esse smart card usa o mesmo tipo de tecnologia de
criptografia empregada pelos sistemas de televisão por satélites paga. Nestes sistemas, existe
um paradigma chamado de “acesso condicional” (conditional access) sendo os programas
criptografados (codificados) antes de serem transmitidos, e tão somente quem pagou por eles
é autorizado a decodificálos (uma regra aplicada mediante a utilização de smart cards
individualmente numeradas). A televisão digital japonesa é concebida exatamente como um
sistema de televisão privada por assinatura, com a exceção que você recebe seu smart card
“gratuitamente” com sua televisão – mas continua sendo baseada num acesso condicional.
(Claro que o smart card não é realmente grátis, pois seu preço já vem embutido no valor que
você paga pela televisão, todavia não tem que pagar assinatura mensal após). Então, porquê
concebêla desta forma se seus usuários não têm que pagar pelo serviço? Especificamente
porque o uso de sinais criptografados e de componentes secretos é uma forma de forçar os
fabricantes a submeterse ao regime de licenciamento, para garantir que aplicarão as
restrições DRM e não implementarão novas funcionalidades sem pedir autorização.
No Japão, todo telespectador tem que possuir um cartão com chip (smart card). Esse smart
card usa o mesmo tipo de tecnologia de criptografia empregada pelos sistemas de televisão
por satélites paga. Nestes sistemas, existe um paradigma chamado de “acesso condicional”
sendo os programas criptografados (codificados) antes de serem transmitidos, e tão somente
quem pagou por eles é autorizado a decodificálos (uma regra aplicada mediante a utilização
de smart cards individualmente numeradas). A televisão digital japonesa é concebida
exatamente como um sistema de televisão privada por assinatura, com a exceção que você
recebe seu smart card “gratuitamente” com sua televisão – mas continua sendo baseada num
acesso condicional. (Claro que o smart card não é realmente grátis, pois seu preço já vem
embutido no valor que você paga pela televisão, todavia não tem que pagar assinatura mensal
após). Então, porquê concebêla de esta forma se seus usuários não têm que pagar pelo
serviço? Especificamente porque o uso de sinais criptografados e de componentes secretos é
uma forma de forçar os fabricantes a submeterse ao regime de licenciamento, para garantir
que aplicarão as restrições DRM e não implementarão novas funcionalidades sem pedir
autorização.
O resultado é que o processo em curso nos Estados Unidos, e potencialmente, na Europa –
onde podemos lutar publicamente contra novas restrições impostas ao consumidor e discutir
sobre as barreiras à concorrência e inovação – não acontecerá no Japão, já que as restrições
existem desde o primeiro dia. Nenhuma nova legislação é necessária, nem modificações do
padrão, não existem produtos no mercado que devam ser proibidos: pelo contrario, tudo está
no lugar desde o inicio. E, neste sentido, as restrições serão quase invisíveis porque, da
mesma forma que o olho humano detecta movimentos e mudanças mas aprende a ignorar o
que está constantemente a vista, é fácil ser incomodado por novas restrições, é mais difícil
preocuparse com o que sempre existiu.
Inútil dizer que acho que as restrições que vêem incorporadas no ISDBT japonês são tão
ruins quanto o broadcast flag; na realidade, são muito parecidas no que diz respeito aos seus
efeitos para com a concorrência, a inovação e os direitos dos consumidores. Gostaria que tais
restrições não fossem impostas aos brasileiros e que pudessem aproveitar todos os benefícios
de um padrão de televisão aberto.
O governo brasileiro já escolheu o padrão ISDBT como base para o Sistema Brasileiro de
Televisão DigitalTerrestre (SBTVDT). Meus colegas informamme que a relação entre o
SBTVDT e o ISDBT continua sendo objeto de debate político mas que o governo não
parece muito disposto a reabrir um processo de seleção. Isso me deixa esperar que o sistema
brasileiro possa ser “baseado” no sistema sem ser, no entanto, idêntico; por exemplo, o
sistema brasileiro, tecnicamente, não tem que usar as modalidades de acesso condicional e de
criptografia que o ISDBT inclui. O governo brasileiro poderia decidir que quer um sistema
aberto com especificações publicadas, ou seja implementável sem ter que passar por um
regime de licença. O governo poderia decidir que a infraestrutura requerida para os smart
cards é muito pesada já que cada telespectador teria que ter um cartão BCAS diferente e
teria que existir uma forma de substituílo caso se perda ou malfuncione. O governo ainda
poderia decidir que apoiar o BCAS é muito caro já que, não somente o smart card mas
também o circuito de decodificação em cada televisão custariam dinheiro e requereriam o uso
de processadores mais rápidos, implicando também num maior consumo de eletricidade.
Imagino que deve haver formidáveis desafios econômicos e políticos para tomar uma decisão
destas, já que, por exemplo, o equipamento ISDBT fabricado no Japão já incorpora a
modalidade para os cartões BCAS e os fabricantes japoneses, independentemente de achar
ou não o BCAS uma boa idéia, poderiam não ficar muito felizes com a idéia de ter que
fabricar linhas de produtos diferentes para outros mercados. Tenho certeza que vocês podem
pensar em outros obstáculos potenciais e em outras organizações que possam ser a favor da
codificação. Por exemplo, a indústria do filme e do esporte certamente argumentarão que a
presença de criptografia no ISDBT é, na realidade, mais benéfico que problemático, e (se
aprenderam a lição ensinada por seus homólogos americanos) que um sistema de televisão
digital não codificado e sem restrições é perigoso, não seguro, e em todo caso não apropriado
para transmitir seu “conteúdo digital de alto valor”. Nunca foram capazes de demonstrar que
a presença destas restrições tem verdadeiramente algum efeito sobre as taxas de infração de
direito autoral – especificamente no que diz respeito à pirataria comercial – mas, o público,
em geral, pode ser complacente, especialmente quando este argumento é apresentado num
tom de voz muito confiante e ameaçando parar de licenciar filmes atuais para difusão na
ausência de codificação.
Assim, não posso terminar com uma nota muito otimista porque, apesar de achar que existem
problemas com o sistema que o Japão implementou, reconheço que será difícil que o Brasil se
afaste deste sistema. Não estou aqui dizendo que a tecnologia ISDBT é pior ou melhor que a
ATSC, DVBT ou qualquer outra alternativa examinada; deixo este tipo de críticas para
outros. Só espero que, seja qual seja a configuração do SBTVDT, possa preservar um
ambiente aberto à inovação que permita que os direitos do consumidor sejam determinados
pelo mercado e publicamente e não de antemão em secreto.