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INTRODUÇÃO
Nossa preocupação primária consiste na necessidade de procurar no interior do debate
realizado por filósofos, categorias que nos permitam ter "pressupostos"[2] para fazer
uma releitura do conceito geográfico lugar. Tivemos a preocupação de iniciar o debate
com Platão, um dos primeiros filósofos ocidentais a apresentar a categoria contradição.
CATEGORIAS PLATÔNICAS E O CONCEITO LUGAR
O idealismo do pensamento platônico é fundamental para uma investigação sobre “o
mundo dos mitos astrais”, existente na convicção absoluta do pescador artesanal,
manifesta e registrada no seu modo de vida, via inquestionável certeza de que o mito
não é uma idéia falsa referente à realidade social historicamente imposta.
O pescador entende que o mito não é um mito, mas um dado histórico que é
alicerce da maneira de viver da comunidade praieira[3]. Segundo Platão, este mundo
ilusório representado nas imagens falsas sobre os fatos, seres, criaturas e coisas, faz
parte do mundo sensível que é incerto e particular. Na praieira o que o pensamento
racional[4] tem como sendo ilusório, sempre faz parte do mundo objetivado no
racionalismo do processo de trabalho pesqueiro artesanal. Há uma séria contradição no
momento geográfico em que o mito passa a ser resultado e condição para a reprodução
social ímpar do modo de vida do pescador artesanal. Ogum, Exu, Iemanjá, a Virgem
Maria, São João Batista e a Santa Cruz são realidades geográficas por serem criadoras e
recriadoras da história individual e comum do lugar. O equívoco é acerto e o engano é
certeza, sem serem, sendo.
Os mitos[5] são subjetivados no imaginário (eles não estão no mundo dos sentidos
platônicos) e centrados na objetividade da pesca artesanal, no caminhar lento no
labirinto, na procura certeira da curandeira e na procissão da Santa Cruz, que é motivo
de feriado e de pedido de piedade ao mundo celestial/terreno.[6] O fato histórico de que
o lugar tem a possibilidade cultural[7] de possuir atributos diferentes, que entre si têm
divergências internas, faz com que uma reflexão acadêmica
sobre os opostos e as reminiscências[8] seja um dos sustentáculos filosóficos para
se pensar no conceito recordação na dimensão de memória, como fruto de um diálogo
coletivo[9]. Platão coloca em pauta que o mundo das idéias que possuímos na pré-
existência uterina se conserva ou se perde no esquecimento. Assim, só a memória,
enquanto recordação, permite readquirir as idéias pré-existentes. O processo de reaver o
momento histórico, fazendo-o voltar a ser realidade das idéias substantificadas no
momento objetivado, só é possível por meio da reprodução das cenas, e pensar sobre os
tais atos sociais é fazer uma ponte de ligação para o aprofundamento da montagem do
cenário do palco, do espaço cênico, afirmo, do lugar que se manifesta de forma
verticalizada, porque só há lugar se houver diálogo enquanto memória[10], que se
expressa na contradição em movimento refletida na água da praia lagunar, que mergulha
e olha para si própria já que é pura contradição social.
Se o mundo invisível é intransformável, só será possível ocorrer a recriação cultural do
lugar, presente nas suas tradições e costumes, se todos os gestos, olhares, falas e
trabalhos, que sempre constituem o quebra-cabeça, estiverem presentes enquanto
comunidade dotada de singular jeito de viver. Na memória intrínseca do mundo
invisível das idéias, o tipo peculiar de modo de vida é conteúdo e forma de sua
espacialização geográfica enquanto lugar, e a recíproca é verdadeira. Sabemos que a
falta de um dado na “carta geográfica” faz com que a sua leitura possa ser equivocada, o
mundo das idéias foi transformado e o diálogo reprodutor do lugar, enquanto conceito
social, não viabiliza a própria existência de identificação do lugar, cujo conteúdo é a
reminiscência que é potencialmente retroalimentadora dos costumes e das tradições que
só ocorrem como lugar Marambaia, que igual não há.
A pesquisa sobre a imortalidade da alma e a recordação, entendida enquanto
“memória”, são categorias filosóficas abalizadoras para a elaboração de uma tentativa
de entendimento das contradições implícitas na opção histórica marcada na
comunidade. Onde o aprendizado é recordação e reprodução simples da pesca artesanal,
onde a idéia pensada como valor com conteúdo absoluto nos afirma via noção de
contradição que no absoluto, do conteúdo da idéia há o devaneio e a imaginação do
Exu. Se na alma estão as idéias, as recordações, o saber, o conhecer e o reconhecer (o
mundo da verdade) falamos que na Marambaia é no nível do imaginário que estão os
Orixás, os Deuses, as Deusas e o Soldado Guerreiro que mata o mal. Na praia, o ilusório
faz composição e estruturação do mundo da verdade.
A metempsicose do orfismo e do pitagorismo[11] se faz presente no momento histórico
em que os caminhos de areia, a possível existência do Quilombo do Negro Lucas[12] e
a moradia de negros na cidade de Rio Grande transferiu parte da idéia, enquanto valor
com conteúdo absoluto, para os portugueses que originaram a comunidade da
Marambaia. Observamos que os portugueses estão recordando e sentindo saudades de
uns negros que “foram”, quando rezam e pedem proteção para Ogum. São as
reminiscências dos que foram, sem jamais terem ido.
A palavra grega psychê[13] nos remete a noção de “princípio de vida”, o que diferencia
o animado do inanimado. O sentido da palavra não tinha relação com a noção de
imortalidade. O indivíduo era entendido como sendo um elemento inseparável do
mundo (naquela sociedade). Quando se falava em individualidade não se direcionava a
questão para a subjetividade humana.
O entendimento de divindade do espírito, apresentado pelo estudo platônico, viabiliza a
análise de um “eu” transcendente, que é fruto do debate de Pitágoras sobre o fato de que
a alma é imortal (o intelecto enquanto elemento constitutivo da alma é sua dimensão
imortal). A imortalidade é o que o ser humano possui de mais verticalmente humano e
máximo do divino. Através da dialética ascendente, a alma, numa compreensão de ser
uma relação do “intermediário” entre o mundo das idéias e o sensível, atinge o nível da
verdade absoluta. A alma é vista como sendo superior ao plano sensível e dotada de
uma subjetividade pura (divinização do ser humano), isto é, a subjetividade pura é a
parte racional da alma, dotada de uma característica fundamentada no fato de que a
alma recria a estrutura do mundo das idéias em si mesma, isto é, a alma realiza uma
relação direta com o princípio primário de todo o conhecimento antes de ter sido
submergida a transmigração (metempsicose) ocorre um deslocamento da racionalidade
da alma ao ideal (a estrutura da objetividade)[14]. Assim, a evidência atinge o mundo
dos sentidos (dialética descendente) ciente da distinção entre o sensível e o ideal. Ora,
ao ser intermediária a alma pertence ao plano ideal e ao devir e que cada ser humano
possui um anámnesis (identidade racional).Platão coloca o debate de que a estrutura
interna do pensamento é dialética e que sinaliza uma síntese última que une o ideal e o
devir[15].
[1] PLATÃO. A República. São Paulo: Exposição do Livro. s. d. (p. 207 (33)).