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© 2010 Rosivaldo Toscano Júnior

Capa e projeto gráfico: Fernando Chiriboga Design Studio


Editoração eletrônica: Leila Chiriboga
Revisão: Amíris Félix Silva de Oliveira
Todos os direitos desta edição reservados.
Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste
livro, através de qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia,
gravação, etc., sem prévia autorização do detentor do copirraite.
Esta é uma obra de ficção. Nomes, locais, personagens e acontecimentos
são inteiramente produtos da imaginação do autor. Qualquer semelhança
com fatos reais, locais ou pessoas é mera coincidência.

Catalogação na fonte: DEPARTAMENTO NACIONAL DO LIVRO


S237e Júnior, Rosivaldo Toscano
O escultor da alma: romance / Rosivaldo
Toscano Júnior. 2ª Ed., 1ª Ed. Digital – Natal: Rosivaldo T. dos Santos
Júnior
255p.

ISBN: 85-902763-1-7

1. Literatura brasileira. I. Título

CDD: B869.3

Impresso no Brasil
DEDICATÓRIA

A ele, que ajudou a construir o homem que sou. A ele,


meu maior mestre na universidade da vida – meu pai.

Ao irmão de sonhos, exemplo de inteligência, coragem


e simplicidade – Desembargador Deusdedit Maia.

AGRADECIMENTOS

Aos amigos
Klícia Maia, Antônio Pereira,
Madson Phetrônnio
Fábio Uchoa, Raimundo Uchoa,
Juliana Dantas e Kalina Maia.
O escultor da alma

PRÓLOGO

A história que narrarei a seguir é verdadeira em sua essência e fatos. Não posso explicar o
porquê de ter sido o escolhido para contá-la. Certamente não pelo talento literário, comum. Com
mais razão pela afinidade com Heloísa e por ter acompanhado sua trajetória de vida durante a
faculdade e, principalmente, nossa residência em medicina, época recente, a mesma dos
acontecimentos do livro.
Mais acostumado a tratar luxações e fraturas, pus-me na tarefa de dedicar diuturnamente
uma hora do meu tempo para narrar, da forma mais fidedigna que pude, o que a mim foi contado.
Para melhor desenvolver o trabalho, a saída foi buscar o máximo de informações possíveis para
desempenhar a tarefa. Como legado pelo árduo destino de concretizar no papel essa, no mínimo,
inusitada história, que envolve dor, descobertas, crescimento, poesias, amizade e amor, tenho, em
minhas mãos, nada menos que dezoito fitas gravadas com as personagens que desfilarão a seguir.
E não foram poucas as idas até as salas de bate-papo do site “Coração do Mundo” para
poder entender ainda melhor o ambiente onde se desenvolveu boa parte dos casos que, em

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O escultor da alma

seguida, relatarei ao leitor. O que era eventual se tornou, aliás, um hábito salutar e que já faz parte
do meu cotidiano. Recomendo fazê-lo. Quem sabe até nos encontremos por lá... Sem percebermos.
O futuro está batendo à porta de cada um agora. Deixe-o entrar. O bom futuro. O bom porvir.
Faz bem lembrar que na transcrição de diálogos na internet, tive o cuidado de não fazer as
reduções tão comuns, tudo com o fim de facilitar o entendimento de quem não é acostumado ao
uso de salas de bate-papo na rede.
Também me certifiquei de, poucas vezes, aparecer no livro. Sou um personagem secundário,
um mero divulgador dos fatos envolvidos, afinal de contas nada mais fiz que reproduzir e organizar
as idéias com o fim de possibilitar o desenvolvimento do enredo. Procurei enfocar minha
participação na terceira pessoa para melhor aprofundar a narração e não influir nela.
Em todo caso, é preciso estar preparado para o que poderá acontecer após a leitura deste
livro. A vida imita a arte. Nesse caso a arte imita a vida. Não é mesmo? Talvez tais palavras não
façam sentido nesse momento. Mas certamente serão recordadas com felicidade ao término
desta pequena obra escrita.
Não sei se irei agradar o gosto de um leitor exigente. Seja complacente comigo. Sempre fui
dado mais à leitura do que à escrita. As palavras veementes faltaram sempre. Mas não o afinco
com que tentei reproduzir nas folhas deste livro a verdade dos fatos, que levarei para a posteridade,
não como a maior obra da minha vida, mas certamente a que me trouxe maiores lições. Lembro
agora os versos do grande poeta baiano Antônio de Castro Alves:

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O escultor da alma

Eu, que a pobreza de meus pobres cantos


Dei aos heróis – aos miseráveis grandes –,
Eu, que sou cego, – mas só peço luzes...
Que sou pequeno, – mas só fito os Andes...
Também cresci escrevendo a saga de Heloísa em busca do seu aprimoramento enquanto ser
humano e mulher. E ainda há surpresas que por ora não podem, e nem devem, ser reveladas...
Mas cabe a você, meu caro leitor, desvendar as folhas que aqui levam para a posteridade uma
história que merece ser contada. O convite está feito.

Alberto.

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O escultor da alma

Dona Raquel estava em um dia difícil. Para ela a mudança de situação não tinha sido, ainda,
digerida. Heloísa olhou sua genitora com um ar de ternura e disse, confiante:
– Mamãe, tenha força. Lembro-me agora do que me falou um amigo, certa vez, quando
também passou por uma grande perda: “Se a vida tem muitas provas, nos dá milhões de presentes!”
Tudo vai passar e, em breve, estaremos recebendo Joãozinho com muita alegria e esperança. –
Era verdade, Magnólia já estava no oitavo mês de gestação. Seria o primeiro sobrinho e neto da
família.
A senhora Raquel olhou a filha, profunda e silenciosamen-te, e sorriu, ainda que de forma
tímida. Depois, disse:
– Pena seu pai não o conhecer.
Heloísa não se fez derrotada e falou:
– Dona Raquel, e quem disse que ele não está acompa- nhando e torcendo por nós neste

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O escultor da alma

momento? Tenho certeza de que também está feliz com o novo rebento da família Algarve, que
em breve estará aqui para nos dar muitas alegrias – e voltou para o quarto, deixando o clima mais
ameno em casa.
De volta ao computador, já passava das dez da noite, horário de encontro na página de bate-
papo da internet. Foi só acessar o atalho e a sala 241 já estava aberta. Havia, ainda, poucos
conectados.
Uma das principais finalidades do site “Coração do Mundo” é auxiliar pessoas em dificuldades
ou mesmo necessi- tando de uma opinião descomprometida e isenta, em questões que as afetem
diretamente. Para manter a maior isenção possível, e sendo as salas divididas, primeiramente,
conforme as cidades ou regiões e, dentro de cada área geográfica, por assuntos, utilizam-se nicknames,
ou apelidos, nomes fictícios que estimulam as pessoas a, através do anonimato, sentir-se mais à
vontade para contar os seus sofrimentos, com a garantia de não serem motivo de comentários na
comunidade. A sala 241 era reservada para a região onde morava Heloísa.
Ela notou que havia um novato conectado, cujo nome fictício, ou nickname, era Paulo. Estava
desconsolado com o impacto da descoberta de que sua esposa era viciada em drogas. Já tinha
percebido que ela andava distante em casa e que algumas coisas, tais como jóias, vinham
desaparecendo. Culpavam a empregada. Tudo começou quando ela foi demitida do trabalho e, há
meses, vivia em uma depressão tremenda, constante. Ganhou peso rapidamente e, sob a pres-
são do marido, que agora se sentia culpado, passou a ingerir remédios redutores de apetite por
conta própria. Assim, tudo se iniciou com o referido medicamento, que causava dependên- cia

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O escultor da alma

física com o uso prolongado. Terminou se viciando e, a partir daí, passou às drogas ilícitas e mais
fortes, como a cocaína. Levada a um médico sob o diagnóstico de depressão, uma vez que ela
escondia muito bem o vício do marido, dos filhos e até mesmo dos médicos, foi encaminhada a
um bom terapeuta. Apesar das sessões terem sido pagas com antecedência, muito tempo depois
é que Paulo foi descobrir que a esposa tinha pedido a devolução do dinheiro e comprado tudo em
entorpe-centes, sem que ninguém soubesse. E o sofrimento não parava por aí. Ela abandonou os
filhos em casa, perdeu completamente a rotina do lar e se tornou agressiva. Paulo chegou a ver
pessoas estranhas rondando a casa à noite. Achava que eram traficantes querendo cobrar dívidas.
Assim, estava em grande estado de tensão e completamente atônito. Heloísa o incentivou a ter
esperança nos tratamentos modernos contra o vício. Ainda mais ela, médica, já ciente de inúmeros
casos dessa natureza e da possibilidade de cura, desde que obedecido o tratamento, que consistia
em internação para extirpação da dependência química e em atividades que a levassem a repensar
a própria vida. Ele aparentava ser um senhor de meia-idade, bom nível de instrução, uma vez que
escrevia com correção e articulava bem as idéias.
Heloísa, codinome “Tâmara” na sala de bate-papo, logo que tomou conhecimento do assunto
envolvendo Paulo, preferiu assistir aos diálogos e às palavras de apoio. Depois, perguntou:
<Tâmara>. O que mais o aflige, Paulo?
<Paulo>. Como assim? Tudo. Ora! Como vou fazer para tirar minha mulher dessa?
<Tâmara>. Caro Paulo. A vida nos coloca obstáculos que nem sempre sabemos como fazer
para vencê-los. De toda ordem, sua angústia só terá razão de ser se depender de você a resolução

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O escultor da alma

do problema. É o que acontece?


<Paulo>. Não. Ela precisa colaborar. E o que mais me dói é ver meus filhos enfrentando
uma barra dessas. Na escola já correu a história da minha mulher. Eles voltam chorando dizendo
que os estão chamando de filhos de uma traficante. Mas sabemos que minha esposa é, na verdade,
uma vítima das drogas.
<Tâmara>. Então, cuide em tornar para eles a situação o menos dolorosa possível. Não se
sinta responsável pelos aconte-cimentos. Faça sua parte, apoie. O momento exige serenidade,
principalmente porque há crianças em jogo. Mais um motivo para manter a tranqüilidade.
As crianças são, não só física como psicologicamente, frágeis. Um lar desarmonioso propicia
o crescimento de indiví- duos inseguros e instáveis, mais propensos a comportamentos rebeldes
e violentos. A maior preocupação de Heloísa era com isso, uma vez que a criança de hoje é o
alicerce do adulto de amanhã.
Outros membros da sala interagiram e deram o seu recado. Querubim, sem perder seu estilo,
atacou de provérbio chinês: “Se o problema tem solução, não esquente a cabeça, porque tem
solução. Se o problema não tem solução, não esquente a cabeça, porque não tem solução”. Não
é fácil pensar assim em uma hora dessas. Mas o que vale é tentar ajudar.
Ao final, Paulo saiu mais confortado e ciente do seu papel em todo aquele problema. Apoiar
a esposa e os filhos, deixando que a equipe médica fizesse sua parte, sempre com o pensamen- to
positivo, mas com um pé na realidade dos fatos, uma vez que se tratava de uma patologia que
merecia um tratamento a longo prazo.

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O escultor da alma

E Heloísa, duplamente reconfortada, sentiu-se feliz em ajudar e em descobrir que havia


superado os acontecimentos traumáticos. Percebeu que há perdas e dificuldades na vida que
podem ser compreendidas e superadas. Isto não quer dizer que se deixe de amar aquele que
partiu, mas que podemos tocar em frente e ajudar a tornar mais feliz quem continua compartilhando
a vida conosco.
A vida é uma estrada de mão dupla, realmente. Ora estamos indo, ora vindo. Porém, o
importante de tudo isso é estarmos, sempre, na busca da felicidade; não somente da nossa, mas
também da felicidade dos que nos cercam...

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O escultor da alma

Retornemos exatamente um ano no tempo.


Portanto, no ano anterior havia mais três pessoas, além de Heloísa Algarve, na família. Seus
pais se chamavam Wilson e Raquel, e a única irmã, que era a primogênita, Magnólia.
Heloísa era morena clara, tinha as feições tênues e lábios retintos que destacavam o belo
sorriso. Seus olhos eram negros, assim como os cabelos, lisos, longos e brilhosos. Era uma bonita
jovem, de beleza delicada e feminina.
Magnólia não distava muito da irmã, sendo apenas um pouco mais gordinha. Não raras
vezes já tinham sido confundidas.
Wilson era alvo, grande, gordo e desengonçado. Filho de portugueses, mais parecia um italiano,
pelo temperamento. Falastrão e alegre, gostava de boa comida, em grande quantidade, de
preferência, e de mimos da esposa.
Já a senhora Raquel fazia o tipo franzino: era pequena e morena clara. Por outro lado, era a

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O escultor da alma

mais ingênua dos quatro. Sempre bondosa e prestativa, vivia para o marido, as filhas e o lar.
Moravam em uma bonita casa de dois pavimentos, situada num condomínio afastado do
centro da cidade. Construída em estilo clássico, possuía telhas de cerâmica e um varandão na
suíte de casal, de onde se podia ter uma bela visão geral da área onde o empreendimento imobiliário
fora encravado. Um gramado de aproximadamente cinco metros, cortado pelos acessos de concreto
da garagem e da entrada social da casa, fazia sua ligação com a pacata e asfaltada rua do condomínio
onde, aos domingos, transitavam animadas crianças em seus skates e bicicletas.
A residência possuía três suítes, uma ampla sala de estar, que se destacava pelo felpudo tapete
branco sob o conjunto de sofás vermelhos. Na parede, uma tela recentemente colocada – de
gosto bastante duvidoso – contrastava com o ambiente. Tinha sido pintada pela dona da casa e,
após grande insistência, sob protestos das filhas, lá tinha sido pendurada. Pelo menos chamava a
atenção dos visitantes – que a olhavam e, às vezes, perguntavam o que significariam aqueles
rabiscos indefiníveis e o excesso de tintas coloridas.
Já a escada em forma de caracol era margeada por um bonito corrimão de madeira talhada,
compondo um ambiente clássico e aconchegante. Na área de recreação, havia uma pequena piscina
ovalada e, mais ao canto, localizava-se uma churrasqueira, palco de constantes festas promovidas
pelas duas irmãs, onde os amigos mais chegados e os namorados de ambas – Mariano, de Heloísa,
e Jonas, de Magnólia – curtiam os momentos de folga.
A família tinha o costume de acordar cedo, tanto em razão dos afazeres de cada um como
também pela distância do centro da cidade: dezenove quilômetros. “É o preço do sossego. Mas

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O escultor da alma

ainda sai barato” – costumava dizer o senhor Wilson, único homem da casa.
Mas aquela manhã seria marcada nas vidas dos membros da família Algarve. Dona Raquel
estranhou a demora do marido, Wilson, durante o banho. Foi até a porta do banheiro e o chamou:
– Wilsinho, Wilsinho! – nenhuma voz respondeu. Ouvia-se apenas o barulho do chuveiro.
Ao girar a maçaneta, estava trancada. Intrigada com o silêncio do marido, resolveu chamar as
duas filhas, Heloísa e Magnólia:
– Filhas, venham até aqui, rápido.
Quando as duas chegaram, logo foram se juntando ao coro:
– Papai! Papai! Responda! – diziam as jovens, já aflitas, enquanto batiam à porta, que continuava
trancada.
Mas o corpo, já desprovido de vida, não reagia aos gritos das filhas. Eram sete horas da
manhã. O silêncio e a demora injustificada do pai no banheiro as assustava cada vez mais.
Chegou, então, Alberto, amigo e colega de faculdade de Heloísa, que com ela revezava caronas
com a tarefa de ir até o centro médico, diariamente. Era um sujeito branquelo, baixo e forte. A
pedido das filhas, em apenas duas tentativas, arrombou a porta, sendo o primeiro a ver a cena
dantesca do pai das jovens estirado ao solo, pálido e seminu. Em sua mão cerrada, fruto da forte
angina, via-se um barbeador. Foi um enfarto fulminante.
A senhora Raquel, aos prantos, caminhava descompassada- mente à porta do banheiro.
Magnólia assistiu, entre apavorada e perplexa, aos primeiros socorros.
Inútil foi o trabalho de ressuscitamento empreendido com todo o vigor pelos jovens médicos

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O escultor da alma

Heloísa e Alberto, uma vez que não mais havia vitalidade naquele corpanzil. Em poucos minutos,
chegou a ambulância. Era tarde. Wilson partira ines- peradamente para a eternidade, deixando
para trás as duas filhas e uma esposa, em polvorosa.
Wilson, cardiopata, não tomava os cuidados necessários, tais como a prática de exercícios
regulares e moderação alimentar. Sedentário, servidor público burocrata, passava os dias atrás de
um birô e adorava comidas ricas em gorduras e colesterol. Não dava cabimento nenhum às
constantes reclamações dos parentes. Era previsível o resultado fatídico.
Heloísa não acreditava no que tinha acontecido. Não passaria tudo de um pesadelo? Ah, se
pudesse despertar e comprovar que não era nada daquilo... Mas era a verdade. Desejou poder
voltar no tempo para salvar seu amado pai. Inúmeras conjecturas surgiram: se houvesse ido
tomar banho antes, talvez não tivesse acontecido... Se pudesse haver percebido logo que ele
tivesse enfartado. Se ele tivesse dito algo antes, reclamado de dores... A crua e dura realidade
agora desabava sobre a família Algarve. Sentiu um aperto no peito ao mesmo tempo em que
experimentava uma profunda sensação de vazio. Jamais dor igual àquela perda havia se instalado
em seu coração. Era uma sensação aguda, extrema e dilacerante. Não se tratava de uma dor física,
localizada. Era muito pior, pois atingia o âmago, a alma. Nunca mais aquele sorriso fácil, as
brincadeiras, o apoio necessário nas horas de angústia, o pai, o amigo, o conselheiro e o confidente.
Tudo se fora naquela manhã trágica.
Para Magnólia, além da saudade e da dor premente, o sonho de entrar na igreja acompanhada
do pai se tornara impossível. Era o que pensava. Seria um momento de tristeza que mancharia a

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O escultor da alma

felicidade na cerimônia de matrimônio, iminente.


Dona Raquel se perguntava como sobreviveria agora sem o amado companheiro de tantos
anos.
O enterro – concorrido, uma vez que Wilson tinha muitos amigos – foi antecedido de uma
noite inteira de velório, fato ainda mais traumatizante, não fosse a assistência dada pelos amigos
e parentes mais próximos, que as acompanharam, durante boa parte daquela fria madrugada, em
um centro especializado. Viam-se sempre ao lado do féretro as jovens filhas e a chorosa esposa.
Foram parafusadas oito alças ao caixão em razão da compleição física do falecido.
O jovem médico Alberto gostava de Wilson, com quem conviveu um bom período, inclusive
no início dos estudos universitários, quando o extinto lhe dava carona ao deixar a filha na faculdade
de medicina, uma vez que residiam próximos. E pensou, preocupado com o futuro das duas
filhas e da esposa do falecido: “como ficarão as três daqui por diante? Uma casa apenas com
mulheres, sentindo-se indefesas e frágeis?”
Heloísa, abatida, óculos escuros, caminhou com dificuldade até o local gramado onde o
féretro seria abaixado naquela manhã nublada. Chovia fino no momento do adeus ao falecido. A
senhora Raquel se desesperou, tendo sido consolada pelas filhas, apesar de também chorosas. O
caixão foi sendo abaixado, lentamente, no jazigo da família Algarve, sob uma chuva de pétalas de
flores.
Alberto percebeu – estranhamente e pela primeira vez com mais nitidez – a beleza da jovem
e se sentiu contrariado por estar, naquele momento, pensando em tal coisa. Sempre foram amigos.

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O escultor da alma

Inclusive tinha um bom contato com Mariano, namorado dela. Mas realmente percebia a jovem
por trás das lentes escuras, que escondiam uma beleza singela e encantadora. Estatura mediana,
olhos e cabelos negros, longos, pele morena clara, feições delicadas, possuía um excelente caráter,
era digna e verdadeira. Às vezes, porém, explosiva e valente. Já sua irmã, Magnólia, trazia um
semblante um pouco mais sofrido naquela hora. Era a primogênita, acostumada a uma criação
rigorosa, castradora. Por isso, mais medrosa e alvoroçada. Formou-se em arquitetura. As duas se
pareciam muito fisicamente, quase gêmeas, embora os três anos de diferença. Heloísa tinha,
assim, um temperamento mais explosivo e emotivo, enquanto Magnólia tendia a ser mais
extrovertida e ansiosa. Contavam vinte e quatro e vinte e sete anos, respectivamente. Magnólia
estava noiva fazia um ano. A cerimônia de casamento, que estava com data e local já definidos,
seria marcada para sempre com o clima triste da orfandade da nubente.
As jovens estiveram, durante o velório, acompanhadas, respectivamente, de Mariano e Jonas.
Dona Raquel, ao contrário das filhas, não passava de um metro e sessenta. Também vestia
luto naquela ocasião e era, visivelmente, a mais abatida das três mulheres – carregava consigo a
dor da perda de uma união de quase trinta anos. Casaram-se jovens, ela com vinte e dois e ele com
vinte e oito anos. Sempre afeita às tarefas do lar e aos cuidados com o marido, seria difícil superar
a perda do seu grande amor, cujos ventos ariscos da rotina dos anos não conseguiram apagar a
chama.
Ao lado de Heloísa, a bela Dália – loira de olhos verdes e penetrantes – sua melhor amiga e
também confidente, que vivenciava com ela as gotas da dor e da saudade de um ente querido.

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O escultor da alma

Choraram, por algumas vezes, abraçadas.


Só quem perdeu um pai ou uma mãe sabe, ao certo, quão profundo é o hiato cujos anos são
capazes apenas de amainar. É um daqueles fatos inevitáveis, mas nem por isso menos doloroso e
traumático.
A jovem médica Heloísa, não bastasse o momento difícil, tinha que se preocupar com a mãe.
A senhora Raquel era a mais frágil das três mulheres da casa, física e psicologicamente. Como
suportaria a solidão depois de tantos anos? Chegou a comentar isso com a irmã.
O pior de uma morte repentina na família é a falta de preparo. Nem sempre se tem a estrutura
para agüentar um abalo dessas proporções. O amargor tomara conta do viver da dona de casa. Só
não seria ainda mais gravoso devido à pensão que receberia do Governo, o que, ao menos, não
afetaria o padrão de vida familiar.
Para Heloísa a situação também era especialmente complicada. Estava iniciando a residência
em traumatologia com uma pesada carga de trabalho, plantões intermitentes, e pouco tempo
para se distrair. Mariano, seu namorado, reclamava dos poucos instantes de convívio, com razão,
e agora a jovem estava prestes a assumir, sozinha, a responsabilidade do lar, uma vez que a irmã
mais velha casaria dentro de uns cincos meses e a mãe, ao que parecia, não estaria em condições
de conduzir a rotina de casa durante um bom tempo. O mundo se fazia pesar sobre as costas.
Nem mesmo a música clássica de que tanto gostava seria capaz de fazê-la relaxar e esquecer,
durante um bom período, a saudosa lembrança do pai.
Tudo parecia ruir sob seus pés. E havia mais para acontecer.

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O escultor da alma

Os problemas em casa fizeram a jovem mergulhar com tudo no trabalho. Dias depois, lá
estava ela assistindo às aulas e clinicando no horário da tarde.
Fazia parte do treinamento dos residentes o acompanha- mento de pacientes por eles
cirurgiados. Havia um roteiro a ser seguido, começando pela ala de urgência, passando pelas
enfermarias e seguindo aos casos mais graves. Os doentes crônicos, ou que há muito estavam
internados, já eram conhecidos do corpo médico.
É comum a um paciente acometido de grave patologia apresentar um certo desânimo,
principalmente ao sentir a debilidade lhe tomando conta. Geralmente passa por três estágios: no
primeiro, ocorre a revolta, quando descobre a doença crônica. No segundo, dá-se a depressão,
quando se abate diante da possibilidade da derrota. E, por fim, no terceiro, a aceitação dos fatos
é o que impera. Esse é o estágio crítico, uma vez que pode desistir, entregando-se, ou lutar contra
a doença. Por isso é importante o corpo médico transmitir ao acamado tranqüilidade e esperança.
A força de vontade, o otimismo, a crença na cura são fatores imprescindíveis. Muitas vezes, até

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O escultor da alma

mesmo a fé tem importância capital para a recuperação do doente. Por isso a recomendação é
para que jamais, mesmo diante de casos gravíssimos, se transmita ao paciente a iminência da
derrota, até porque o ser humano é uma máquina maravilhosa e que, muitas vezes, surpreende
positivamente.
Os doentes mais difíceis de acompanhar eram os da oncologia, ala B do complexo hospitalar.
Isso porque os pacientes entendem a gravidade do problema, permanecem lúcidos e sofrem
vendo sua vitalidade se esvair aos poucos. Ademais, dá-se uma interação com o corpo médico,
uma vez que a doença geralmente é de lenta progressão e muitas vezes letal, o que prolonga um
contato pessoal que a frieza da experiência nem sempre consegue afastar. Por isso exigia-se
equilíbrio e serenidade ao corpo médico em geral.
Naquele dia, havia dado entrada um paciente portador de sarcoma, que é um dos tipos mais
devastadores de tumor cancerígeno, após uns dias na UTI. Heloísa olhou a ficha. Tratava-se de
um senhor chamado Ângelo, 78 anos, fazendeiro que viera do interior do estado. Estava internado
no apartamento 38. Lembrou-se de que se tratava de um paciente recentemente cirurgiado por
ela, uma vez que tinha auxiliado na retirada de um tumor na parede torácica, tendo sido incumbida
da extração do osso esterno, visando extrair as ramificações da patologia, sendo, em seguida,
realizado enxerto ósseo no local.
Era a primeira vez da doutora Heloísa na famigerada ala B. Sabia o que poderia lhe aguardar.
Os colegas relatavam casos de criancinhas em estágio terminal e com os parentes tristes em sua
volta. O clima era pesado e sombrio, bem diferente do setor de obstetrícia, onde se viam jovens

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O escultor da alma

casais, acompanhados de suas famílias, sorridentes e alegres com o nascimento dos primeiros
rebentos.
Ao entrar na sala, encontrou o homem, que a fitou com seus olhos ternamente idosos e
sorriu. Acompanhava-o uma senhora que parecia ser sua esposa, e que levemente a cumprimentou
com um aceno. A primeira impressão que a médica teve foi a de que a pessoa que parecia doente
era a idosa sentada ao lado da cama, não fossem os lugares que ocupavam no quarto. Ela tinha
um semblante mais apagado do que ele. Era a preocupação com o marido.
A cama ampla, limpa e alva, estava em posição reclinada, o que permitia ao senhor uma
acomodação sentada. Aparentava menos idade do que possuía e tinha uma compleição física
invejável para sua idade. À primeira vista, não apresentava nenhum dos efeitos físicos da doença,
mas os relatórios já confirmavam a possibilidade de metástase em razão da extensão do tumor na
caixa torácica. O hospital, apesar de público, era referência no tratamento do câncer há muitos
anos. Ele, pelo menos naquela área do complexo médico, estava em boas mãos.
– Boa tarde, senhor Ângelo, meu nome é Heloísa. Sou médica residente, auxiliei na intervenção
cirúrgica a que foi submetido e farei o acompanhamento do senhor até seu restabelecimento.
Como está se sentindo hoje?
– Forte como um touro! – disse, vigorosamente, quase estremecendo as janelas do quarto.
– Ótimo.
A jovem utilizou o estetoscópio, verificou os reflexos do senhor, os batimentos cardíacos e a
temperatura, e deu andamento aos demais procedimentos comuns, apalpando a região suturada,

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O escultor da alma

perguntando se sentia dores.


Enquanto isso, o velho disse, batutando, como se quisesse recordar algo guardado, há muito
tempo, na memória:
– Doutora Heloísa Algarve... – olhando a plaqueta de identificação da médica, em seguida,
arrematou: – conheci um rapaz que foi gerente do banco em minha cidade há muitos anos. Era
da sua família. Alto, sorridente e desengonçado. Um garoto, na época. Mas já se passaram muitos
anos. Não vou dizer quantos para que a senhora não descubra que já tenho mais de vinte... –
disse, sorrindo. – Seria um parente seu? – Antes que ela respondesse, começou a contar várias
histórias engraçadas envolvendo o então jovem executivo que nada conhecia da vida do interior,
principalmente as trapalhadas com os costumes locais. Heloísa ouviu atenta e alegremente. Até
se abstraiu da gravidade do estado do velho e dos problemas pelos quais estava passando,
recordando, de forma positiva, do genitor. Disse ele que o pobre gerente, apesar dos estudos e de
ser uma pessoa de bem, não diferenciava um bode de uma cabra. Heloísa riu com as mancadas
daquele que seria no futuro ninguém mais ninguém menos que o seu pai. Wilson havia sido
bancário quando jovem, antes de assumir um emprego público e constituir família.
– Wilson Algarve? – perguntou a jovem doutora.
– Isso mesmo! Era seu tio?
– Ângelo, deixe de ser curioso! – reclamou a esposa do idoso.
– Sem problema, senhora. Esse gerente era meu pai.
A idosa, preocupada com uma provável incontinência verbal do marido, advertiu, consolada:

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O escultor da alma

– Agora não vai deixar mais a senhora sair daqui. Melhor arrumar uma cadeira porque a
conversa vai ser longa. Ângelo tem uma memória de elefante. Nunca vi ninguém lembrar tantos
“causos”.
– Pois como ele está? Continua assim, bonito como eu?
– Infelizmente, meu pai faleceu não faz dois meses, senhor... – Heloísa respondeu, com
tristeza.
Concluiu o velho:
– Ângelo, minha jovem, Ângelo. Minhas mais sinceras condolências...
– Obrigada.
– Mas vejo, ao menos, que ele fez bem o seu trabalho. Ter uma moça assim tão bonita,
dedicada, inteligente e sortuda – disse o senhor, para descontrair o ambiente depois da triste
notícia.
– Que sorte? – perguntou, sem entender a afirmação do fazendeiro:
– Por estar cuidando de mim – respondeu, com cara de riso.
Heloísa, dando reciprocidade ao bom humor do velho que, magistralmente, soubera driblar
o constrangedor fato, abriu um sorriso. Maria, mulher do enfermo, apenas amainava a cabeça e
dizia em voz baixa:
– Ai, minha nossa senhora... Esse aí...
Ainda conversaram mais amenidades por uns instantes. Mas a médica tinha que dar
continuidade aos atendimentos. “Que senhor amável”, pensou.

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O escultor da alma

Há um provérbio indiano que diz: “quando falares, cuida para que tuas palavras sejam melhores
que o silêncio”. Ângelo certamente sabia disso.
Heloísa saiu mais leve da ala B naquela tarde. Fora uma boa estréia.

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O escultor da alma

À parte esse acontecimento que trouxe descontração, foram dificultosos os primeiros dias
após o enterro. Apesar do esforço, a concentração da jovem médica se vergava como o pequeno
arbusto sujeito a um vento forte. Às vezes, achava que estava à beira de um colapso. Mas precisava
tocar a vida em frente.
Sua maior preocupação, no momento, era a genitora. Enquanto cada uma das meninas tinha
ocupações que lhe tomavam o tempo, o ócio no lar da senhora Raquel certamente a transformaria
em absorta e distante. Até as tarefas da casa poderiam ser abandonadas, o que levou as filhas a
ficarem bastante apreensivas.
A tia Abgail, irmã da mãe das jovens, apesar de residir distante, tomou um avião e veio
participar do enterro. Havia um laço de amor e amizade muito grande entre as duas, tanto que
nunca perderam o contato, apesar dos anos. Preocupada após ver dona Raquel bastante apática e
depressiva, Abgail chamou as sobrinhas em um canto e disse:

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O escultor da alma

– Estou preocupada com Raquel. É melhor ela ir passar um tempo comigo.


Abgail era casada com Ivan, um engenheiro civil que tam- bém se relacionava bem com o
concunhado, mas que lamentava não poder ter vindo em razão de compromissos profissionais.
Foi ele quem propôs a ida de Raquel para a sua casa durante uns dias ou até meses, se preciso
fosse. Era sua forma de ajudar a cunhada. E Abgail arrematou:
– O que acham?
– Concordamos, tia – falou Magnólia pelas duas –vamos apenas perguntar a ela. – As filhas,
então, dirigiram-se até a mãe e comunicaram o convite, informando que seria importante para ela
mudar de ares. Ela concordou. As malas foram preparadas por Magnólia e Heloísa, às pressas.
Dois dias depois voltou a senhora Abgail para sua cidade, acompanhada por dona Raquel. As
moças foram até o aeropor- to deixar a mãe e a tia, e se abraçaram com fervor.
Para Magnólia, a proximidade do matrimônio servia de incentivo com o fim de esquecer o
episódio. Em algumas oportunidades até sorria, confiante na união matrimonial tão sonhada
pelo jovem casal. Já a caçula tentava ao máximo superar a saudade, o que nem sempre conseguia,
uma vez que Wilson era bastante carinhoso com todas, e brincalhão – a alegria da casa – dizia ela.
Certa tarde, Heloísa foi com a irmã escolher o vestido do casamento. Deu-se um momento
de espontaneidade. Após a escolha da belíssima manta nupcial, estando a futura noiva vestida,
Heloísa brincou:
– Trate esse vestido com cuidado, Magui.
– Por quê, Bela? Está querendo negociá-lo? Vou logo avisando que não o venderei. Será

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O escultor da alma

lembrança. Quem sabe minha filha o vista um dia.


Heloísa colocou as mãos à cintura e, com um tênue sorriso, comentou:
– Ah, sim... Agora, sim. Você acha que uma filha sua iria usar esse vestido daqui a trinta anos?
– E em quem mais serviria? – Magui perguntou, com ironia, fazendo-se de desentendida.
– Em mim, ora – riram, contentes.
A vida de Heloísa se resumia ao convívio com os pais, o pessoal do hospital, Mariano e
alguns amigos mais chegados.
Os colegas de trabalho do centro médico tentaram a todo custo reanimar a jovem. Chamavam-
na de Rapunzel, já que suas madeixas eram volumosas e compridas, à meia altura das costas.
Sempre a convidavam para um cinema, nas poucas horas vagas, ou um barzinho. Na maioria das
vezes, a recusa era educadamente dada.
A rotina diária de Heloísa era pesada. Começava cedo, por volta das sete e meia da manhã,
com raras aulas teóricas e, principalmente, práticas, estendendo-se até o meio-dia. No turno
vespertino, que se iniciava às duas da tarde, atendia normalmente no hospital e acompanhava os
pacientes que foram por ela operados. Os fins de semana, às vezes, eram despendidos em plantões
de até vinte e quatro horas. Ganhava-se razoavelmente com isso, malgrado o sacrifício da vida
pessoal. Um médico afamado e com grande clientela não necessitava de perder seu sábado e
domingo com a família para ficar no corre-corre estressante de um final de semana na emergência.
Restava aos residentes tal tarefa. O hospital, pelo menos, fazia sua parte. Havia alojamentos
climatizados onde podiam eles descansar, juntamente com o corpo médico efetivo que estava em

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O escultor da alma

plantão. Mas o entra e sai dos médicos era constante, o que dificultava um repouso a contento.
Como o hospital era distante de sua residência, geralmente ela, Alberto e outra médica, por
medida de economia, faziam revezamento. Nas segundas, ela dava carona e nas quartas era
caronista de Alberto. Com Patrícia, nas terças, era a caronista e, nas quintas, dava a carona. Às
sextas e feriados, os horários eram diversos, o que obrigava cada um a ir em transporte próprio.
O prédio era imenso. O maior hospital de toda a região metropolitana. Excelência no
tratamento do câncer, há muitos anos, era nacionalmente famoso. Até pacientes de países
circunvizinhos que mantinham acordo já haviam se deslocado até lá para tratamento. Mas tinha lá
suas deficiências em outras áreas. Oito andares, inúmeras salas. Centenas de pessoas trabalhavam
ali na tarefa diária de salvar vidas. Era cansativo, mas Heloísa amava seu mister.
Além do local para descanso e um refeitório, havia um banheiro amplo também colocado à
disposição, tudo exclusivo para os médicos. Nele se encontravam pequenos armários, quase
escaninhos, onde se podia guardar a roupa e alguns objetos pessoais, tais como bolsas, livros etc.
Eram chaveados, o que garantia segurança e tranqüilidade de não verem seus pertences sumirem
enquanto estavam trabalhando.
Certo dia, entretanto, um fato incomum ocorreu. Ao abrir a porta metálica do seu armário,
reparou num bilhete que lá havia sido inserido por umas frestas de aeração. Após desdobrar a
folha, viu um impresso em computador que dizia:

Heloísa, não tenho a intenção de causar problemas. Mas quero avisá-la de que está sendo traída por seu

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O escultor da alma

namorado.
Não tenho coragem de contar a forma como ocorrem, porque considero aviltante para a minha moral. Mas os
encontros se dão às terças-feiras. Vá hoje até o Choupana por volta das 22 horas e verá. Desculpe o anonimato.
Um(a) amigo(a) que lhe quer bem.

Um arrepio correu-lhe a espinha. Não era possível tamanha difamação! Logo ela, que passava
por uma perda grande na família há apenas dois meses, com a mãe depressiva, e repleta de
encargos com o hospital, era vítima de alguém desejoso de prejudicar seu relacionamento amoroso!
Choupana era um conhecido bar da região, muito freqüentado por universitários. Ficava próximo
do campus da Universidade. Mariano não seria tão idiota a ponto de lá se encontrar com alguém,
pois certamente seria visto por todo mundo – pensou.
Heloísa teve vontade de falar ao telefone, imediatamente, e contar ao namorado o acontecido.
Já passava das sete da noite, hora de sua saída do hospital. Para sua surpresa, exatamente, naquele
momento, ligou Mariano para o seu telefone celular:
– Oi, Bela, ainda no hospital? – os mais próximos chama- vam-na de Bela.
– Sim – respondeu a jovem, friamente.
– Aconteceu alguma coisa? – perguntou Mariano.
Por um átimo, Heloísa teve vontade de contar tudo sobre a carta. Mas seu coração pediu que
esperasse...
– Tive mais um problema com Mônica. – Essa moça era uma colega de trabalho bastante

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O escultor da alma

individualista e competitiva. Tivera atrito com os demais residentes e Bela já tinha contado isso
ao namorado. Por isso a desculpa para a frieza.
– De novo essa chata compulsiva? – perquiriu o rapaz. – Pois bem, estou indo jogar bola
com os amigos lá no Mangueirão. Vai ficar em casa estudando? – Era costume de Mariano jogar
futebol às terças à noite e aos sábados no fim da tarde, sempre no Mangueirão, um campo de
futebol society que era alugado pelos esportistas. Heloísa até o estimulava, pois sabia da importância
das atividades físicas. Ela mesmo atuara como levantadora nas equipes de vôlei do colégio e da
Universidade, e ainda jogava com colegas do hospital nos raros finais de semana livres.
– Sim, amor – respondeu, tentando ser mais carinhosa, já que não havia provas de nada. –
Preciso preparar o resumo de um caso clínico sobre consolidação de fraturas para ser apresentado
sexta-feira.
– Pois bom estudo. Que tal amanhã almoçarmos juntos?
Magoada com o conteúdo do bilhete, teve o ímpeto de dar um não ao convite, mas resolveu
consentir:
– Passe lá no hospital ao meio-dia.
– Combinado. Um beijo, Bela – despediu-se o jovem comerciante.
Heloísa e Mariano se conheceram ainda na faculdade, por intermédio de uns amigos. Ela,
estudante de medicina. Ele, aluno do curso de administração, em vias de se graduar. Foi amor à
primeira vista. Havia quase quatro anos que namoravam. Chegaram a conversar sobre o futuro,
mas tudo ficou acertado para depois da especialização, porque ela precisava de mais tempo para

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O escultor da alma

se dedicar à residência em traumatologia e sabia que os rotineiros plantões dificultariam a vida de


dona de casa. Mariano era alvo, estatura e compleição física medianas. Diziam que ela era uma
princesa para ele. Mas a paixão tem razões que não se explicam. O jovem era de família afamada
na cidade. Sempre teve reputação de bom moço e jamais Heloísa desconfiara de algo dessa natureza
ou gravidade. Por outro lado, durante os procedimentos do velório de Wilson, ele tinha sido
bastante solícito, ficando a madrugada inteira ao lado dela, além de ter sido o negociador dos
valores das despesas, providenciado as notas nos jornais e os procedimentos burocráticos exigidos
para o enterro.
Havia um bom entrosamento entre as famílias. As únicas e pequenas rusgas se davam com a
mãe de Mariano, ciumenta. Era, portanto, um relacionamento que não tinha razão para confirmar
as acusações sérias que eram feitas.
Por cautela, porém, ao sair do centro clínico, resolveu passar no local do jogo. E lá estava o
automóvel de Mariano estacionado. Ficou mais tranqüila. Tudo não passava de uma armação de
alguém de má-fé.
E foi para casa se preparar para fazer a apresentação aos outros residentes. Heloísa sempre
foi dedicada nas tarefas que assumiu. E não seria diferente. Apesar do abatimento, uma vez que
não se passaram muitos meses da perda do pai, pôs-se a estudar.
A cozinha jamais fora do agrado de nenhuma das filhas. Na ausência de dona Raquel, a
alimentação passou a ser feita fora de casa, seja em restaurantes, seja através de entregas em
domicílio. Ana, empregada da casa, malgrado o esforço, não era o que poderia se chamar de

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O escultor da alma

cozinheira para o apetite de Heloísa e Magnólia. No máximo, uma boa arrumadeira. Por isso
declinavam constantemente da boa vontade da moça em preparar-lhes o jantar. Ingenuamente, a
doméstica pensava: “essas meninas vão acabar desmaiando de fraqueza. Também, não comem!”.
Para dar um descanso aos estudos, resolveu ela mesma ir pegar a comida em um drive-in.
Chovia. Sequer trocou de roupa. E nem precisava, já que nem ao menos iria sair do automóvel.
Comprou um sanduíche natural, mais ao seu estilo, e um copo de suco. No caminho de volta,
lembrou-se da história do bar Choupana. Uma ponta de irresignação lhe cobriu a mente: “E se
fosse verdade?” Resolveu, então, investi-gar. Sentiu um pouco de culpa em pensar assim. Como
ela mesma pôde conferir, ele estava jogando futebol como havia dito na hora em que ela saiu do
hospital e, sendo assim, deveria estar em casa naquele momento, já que normalmente não jogava
mais que uma hora e meia. Ligou para lá. A empregada da casa disse que ele não tinha chegado,
ainda. – Fácil! – pensou. Porém, ao ligar para o aparelho celular, o mesmo se encontrava desligado.
Olhou o relógio: nove e quarenta e dois. – Será o destino? – perguntou-se. Um frio rompante lhe
percorreu as costas e os braços. Teve um calafrio. Subitamente, decidiu investigar. Mas como
fazer se sequer teria coragem de entrar no ambiente vestida daquele jeito? Decidiu, entretanto,
parar o carro a uma distância segura e aguardar. No estacionamento, olhando rapidamente, não
reconheceu o automóvel dele. Parou, constrangida consigo mesma, numa esquina próxima, em
frente a uma farmácia, de onde se via todo o movimento do estabelecimento noturno. Aproveitou
e jantou ali mesmo, sob os olhares interrogativos do vigia da drogaria.
O bar estava cheio. Era o point da cidade às terças-feiras. Muitos carros estacionados. O

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relógio passou das dez da noite e nada de Mariano. Porém, o celular continuava fora da área de
serviço. Sentindo que estava fazendo papel de boba, de adolescente, decidiu ir embora e acabar
com aquele verdadeiro surto de ciúmes. Não se considerava ciumenta, mas sempre tivera cuidado
com Mariano, o que seria natural em qualquer relacionamento, embora ele afirmasse
freqüentemente que ela tinha um típico comportamento feminino quando dizia: “a
possessividade é atributo da alma da mulher”. Naquela mesma noite iria ligar e se desculpar pelos
pensamentos maldosos. Mariano era genioso, de pouca cultura e, às vezes, irritadiço. Mas tinha
também qualidades. Era carinhoso e até compreensivo com os problemas de disponibilidade de
tempo da jovem, embora vez em quando reclamasse.
Começou, então, uma chuva fina, que caía sobre o pára-brisa do automóvel, e que aos poucos
foi se encorpando. “Melhor ira para casa” – pensou. Ligou o carro e quando ia dando a partida
um susto: o veículo de Mariano!
– Meu Deus! Eu não mereço mais esse desgosto! – falou alto, em tom de desabafo.
De longe viu alguém entrando apressadamente no veículo do jovem. Quem seria? Decidida,
resolveu acompanhar, de longe.
Logo foi tomada por um tremor, as lágrimas dificultavam a visualização das ruas. O susto foi
grande. Estava perplexa. Chegou a estancar o carro. Ia colidindo o veículo por duas oportunidades.
Sorte sua que Mariano estava dirigindo em velocidade média. O veículo se direcionava a uma
zona afastada da cidade. Não acreditava. Seria um sonho tudo aquilo. Não. Seria mais um recente
pesadelo em sua vida?

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O escultor da alma

Mais esse abismo no caminho da pobre moça. E se questionava do por quê de tanto sofrimento
em tão pouco tempo. E chorava no volante a cada instante. Tentou fazer uma ligação para sua
irmã. Não teve coragem.
O carro seguido entrou em um motel. Não havia mais dúvidas. Era traição!
O local, ermo e sombrio, atemorizava-a. Teve medo, o que seria natural. Deu vontade de
entrar e apanhá-los ali mesmo, fazer um flagrante. E por que não um escândalo? Mas não era
mulher para aquele tipo de comportamento. Resolveu esperar, tirando coragem não se sabe de
onde. Decidiu, então, ligar para Magnólia. A irmã tentou demovê-la:
– Volte para casa, Bela. Não se arrisque aí. É perigoso. – As duas sempre foram muito
unidas. Magnólia estava realmente preocupada e assustada com a situação pela qual passava a
irmã. E o melhor naquele momento era preservar a segurança de Heloísa.
A jovem médica se sentiu aviltada e desprotegida. Será que nem a irmã lhe daria apoio em tão
difícil hora? Não era ingênua. Sabia o que estaria acontecendo no quarto naquele momento.
Sentia ódio e repulsa. Estava absolutamente revoltada com a situação:
– Não. Agora vou até o fim! – exclamou com firmeza – e não ligue para Mariano ou Jonas.
Quero resolver isso logo hoje! Não me traia você também!
– Calma. Sou sua irmã, lembra? Então aguarde que chegarei daqui a pouco.
Magnólia jamais deixaria a irmã passar por aquele momento sozinha. Já a conhecia o bastante
para saber que era melhor acompanhá-la do que esperar que desistisse.
– Venha de táxi, porque não sei se conseguirei dirigir direito – alertou, enquanto pranteava.

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O escultor da alma

– Está certo – e não demorou. Em poucos minutos, lá estava a irmã.


Juntas, choraram, agora as dores do desengano e da decepção, no interior de um carro, em
local afastado e escuro. E a chuva castigava aquela noite de forma violenta.
Foram quase duas horas de tensão. Vez ou outra chegava e saía um automóvel. Magnólia
ainda insistiu para que fossem embora. Heloísa estava irredutível. Precisava saber de tudo, logo.
Já beirava a meia noite quando o carro de Mariano saiu. Magnólia, em melhores condições, guiou
o automóvel. A chuva passara.
O trajeto era inverso. Onde moraria a amante? Eis que o veículo voltou ao local do encontro,
o bar Choupana.
– Não é possível. Agora ficarão juntos lá dentro. É um acinte! – disse Magnólia, revoltada.
Na mente de Heloísa, todo o relacionamento passou em flash-back. Desde quando se
conheceram. As brigas, os momentos de afeto e harmonia. Os planos para o futuro que fizeram,
os sacrifícios e as expectativas em relação ao casal. Tudo jogado fora em tão pouco tempo. Seria
possível o perdão? Naquele momento isso não lhe passava pela cabeça. Mas por que acontecera
aquilo?
– Onde errei? – perguntou-se.
De repente, bem próximo a entrada do Choupana, desceu do carro uma pessoa que, àquela
distância, embora não desse para definir bem, parecia ser uma jovem. As irmãs não foram
percebidas, já que Magnólia, com medo de uma reação desmedida de Heloísa, preferiu manter
certa distância. Na verdade, o bar não era freqüentado por Mariano e seu affair. Era apenas o

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O escultor da alma

ponto de encontro onde a outra pessoa deixava o veículo em segurança. E entra nele. Tinha
planos de fazer o flagrante ali mesmo. Sem escândalos, mas o suficiente para desmoralizar Mariano.
Porém, a vista da jovem médica escurece, prestes a desmaiar. A dor é grande. E cresce
assustadoramente, tornando-se insuportável. As forças lhe faltam. A reação de Magnólia é apenas
balbuciar, estupefata:
– Que decepção...! Dália! – grita Heloísa, antes da síncope – isso mesmo, aquela que julgava
ser sua grande amiga.
A dália é uma flor. Mas aquela tinha espinhos...

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O escultor da alma

Bela só foi se reanimar em casa, e Magnólia a ajudou a sair do carro. Estava completamente
abatida. Foram duas grandes quedas em poucos dias. A perda do pai, amado e saudoso, deixou
um vazio em seu coração que somente o tempo poderia ser lenitivo. Porém, a traição de Mariano
fora também de grande impacto para ela, uma vez que já se encontrava emocionalmente frágil.
Nunca tinha passado por sua cabeça, ainda que nas crises de ciúmes, uma situação tão extremada.
O namorado a traía com aquela que julgava ser a sua melhor amiga. E começou a digerir algumas
situações de que antes não tinha se dado conta, como as ocasiões em que Dália voltara com ele
depois de festas em sua casa. A última vez, não fazia muito tempo, foi no seu aniversário.
Sentiu-se uma tola, tão facilmente enganada. Mas o pior: Dália fora sua confidente durante
todo esse tempo. Os problemas com Mariano eram compartilhados com ela. Até algumas
intimidades do casal, a jovem médica havia contado com absoluta confiança, certa de que a
interlocutora era pessoa acima de qualquer suspeita. Dália tinha se aproveitado disso tudo para se

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O escultor da alma

aproximar de Mariano e conquistá-lo. Mas por que fazer isso com ela? Por que jogar pela sarjeta
uma amizade sincera e de tantos anos? Como poder confiar agora em alguém se a melhor amiga
a traía com o seu amado?
Além de passada para trás, Heloísa se sentia humilhada e revoltada, indignada por saber que
não faria uma coisa dessas. Sentiu-se afetada em sua moral, em sua honra.
Dália não era fisicamente mais bonita que Heloísa. E certamente não seria uma mulher mais
interessante, tendo por conta outros atributos, tais como inteligência, caráter ou dignidade.
Conheceram-se ainda na infância. Residiam próximas uma da outra, no mesmo bairro. Por
isso cresceram compartilhando as mesmas brincadeiras e a turma de amigos. Seguiram, porém,
caminhos diversos na juventude. Heloísa se preocupava com seus estudos. Já Dália sempre fora
mais sociável e festiva. Uma equilibrava a outra: Heloísa a estimulava a estudar, enquanto Dália
fazia crescer o rol de amizades da amiga. Contudo, no íntimo, Dália nunca passara de uma menina
mimada, filha de pais abastados, que não se realizara enquanto profissional. Terminou a faculdade
de Jornalismo sem maiores pretensões. De outro lado, era rosto freqüente nas fotos das colunas
sociais. Não obstante, dizia, não raras vezes, que gostaria de viver um relacionamento mais estável,
como o da amiga. Seus namoros nunca eram duradouros e no fundo temia a solidão futura. Só
poderia ser essa a resposta.
Indignada e abatida, Bela se perguntou, em voz alta:
– Como pude confiar em Dália? Ou melhor, como ela pôde fazer uma coisa dessas comigo?
– Só o tempo irá dizer, irmãzinha. Agora cuide em dormir. Amanhã você poderá resolver

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O escultor da alma

esse problema com a cabeça fria.


Não fosse a exaustão pelo choro, a noite teria sido longa. Mas nem por isso foi tranqüila.
Repleta de pesadelos, a angústia foi sua companheira de claustro na escuridão do quarto. A pedido
de Heloísa, Magnólia não contou a ninguém o ocorrido, nem mesmo ao noivo, Jonas – que
certamente adiantaria a Mariano, uma vez que se tornaram amigos – até que a irmã decidisse o
que fazer.
Porém, o pior foi ter que ir para o hospital na manhã seguinte. Alberto apareceu buzinando
na hora marcada e percebeu o semblante da amiga, que demorou um pouco mais do que de
costume. Os sinais eram evidentes de que algo de grave havia ocorrido. Mas para os colegas
médicos do hospital, o abatimento nem seria motivo de questionamento face à morte recente de
seu genitor. Era até um assunto que evitavam tocar para não causar constrangimentos. Alberto
contou algumas piadas no caminho, a maioria sem graça. Heloísa disfarçou uns sorrisos. Ele
sentiu um clima diferente e teve até vontade de perguntar se tinha acontecido mais alguma coisa
de ruim. Porém, seria uma lembrança qualquer do pai, talvez o dia do aniversário ou coisa assim,
imaginou. Heloísa se mostrava aérea e distante. Estava usando óculos escuros e nada conversou.
Suas respostas eram monossilábicas: – é; sim; não; talvez...
Foi difícil manter a concentração em uma aula teórica que teve de assistir exatamente naquela
manhã. Dirigiu-se ao banheiro algumas vezes para chorar. Decidiu voltar para casa por volta das
nove horas, já que estava sem feitio para disfarçar mais. Magnólia saiu do trabalho no escritório
de arquitetura e a apanhou.

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O escultor da alma

– O que vai fazer? – perguntou a preocupada Magui.


– Não sei ainda – respondeu, grave.
– Pelo amor de Deus, não faça uma besteira, Bela! Já basta o sofrimento de mamãe com a
morte de papai. Não nos dê um desgosto! – Magnólia disse, imaginando como se sentiria se
ocorresse o mesmo com ela.
– Quanto a isso, nem se preocupe. Pelo amor que sinto por ele, até perdoaria uma traição...
Mas com minha melhor amiga, não!
– Você sabe que andava ausente ultimamente, muito atarefada. E sabe como os homens são,
não podem ver um rabo de saia... – argumentou, tentando contemporizar.
– Isso não é desculpa, Magnólia. Deixe de ser machista! Parece que você está do lado dele!
Não jogue a culpa em mim!
Era inegável que, com o passar do tempo, criou-se um elo de afeto e amizade entre Magnólia
e o cunhado. Por outro lado, sabia que Heloísa já sofria muito com a perda do pai e precisava de
um apoio. Talvez ainda houvesse remendo para o relacionamento:
– Está bem! Só estava querendo salvar a relação de vocês.
– Então, coloque-se no meu lugar. O que você faria?
– Eu esgan... – quase cometia um ato falho. Ela também não perdoaria facilmente um ato
desses por parte de Jonas. – Tá bem! Faça o que achar melhor. Mas me responda: vai acabar com
ele?
– Não, não vou matá-lo. Era isso que você pensava?

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O escultor da alma

– Absolutamente, Bela!
– Vou terminar. Não dá para perdoar uma coisa dessas.
– Posso contar a Jonas?
– Ainda não.
A noite mal dormida exigiu, com a mais pura razão, a continuidade do sono em plena
manhã. Agradeceu à irmã e entrou em casa.
Como havia combinado, Mariano passou pelo hospital e perguntou por Bela. Falaram que
tinha ido para casa porque não estava se sentido bem.
Imediatamente, Mariano, sem saber da descoberta, foi até a casa da jovem. Tocou a campainha
e esperou. Eis que Bela apareceu. Gesticulou para que ele entrasse. Mariano estranhou o
comportamento dela e perguntou se algo havia ocorrido. Respondeu que sim, com uma feição
grave. Dessa vez, ele tremeu. Teria Heloísa descoberto? – perguntou-se.
Mariano sempre fora cuidadoso em suas aventuras. Gostava de Heloísa, mas o relacionamento,
que no início era uma chama de paixão, deixou-se apagar pela rotina dos dois. O costume se
tornou mais forte que o sentimento, era pelo menos o que pensava. Por isso as aventuras. Dália,
embora sonhasse conquistar o coração do jovem, agia também por leviandade, deixando em
segundo plano os sentimentos de Bela. Mas, para Mariano, a história não passava de uma aventura,
e nada mais. Nunca valorizaria Dália pelo que fizera. À parte seu machismo, jamais respeitaria a
ponto de amar uma mulher que se sujeitasse a sair com o namorado da melhor amiga. E de que
mais não seria capaz de fazer uma mulher dessas?

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O escultor da alma

O jovem, desconfiado, achou melhor levá-la a um local agradável. Lá seria mais fácil contornar
a situação. Tudo tinha sido uma aventura, sem envolver sentimentos. Heloísa ficaria um bom
tempo chateada, mas terminaria lhe perdoando:
– Não acha melhor sairmos para almoçar?
– Não. Vamos conversar agora mesmo, Mariano – enquanto enxugava as primeiras gotas nos
olhos entristecidos.
Então, de uma vez só – lágrimas rolando do rosto – Bela pormenorizou o que tinha
presenciado. No início Mariano ainda tentou justificar, mas viu que era inútil. Ela sabia de tudo.
Ele se sentiu um crápula, culpado, e chorou, de remorso e vergonha, ali, de frente para quem
jurara tanto amor e que por trás traía. Pediu uma segunda chance. Sem resposta. Sentiu, então,
que poderia perdê-la.
– Foi humilhante, vergonhoso, Mariano. O que você vai dizer aos seus pais? Vai ter coragem
de contar a verdade?
– Bela, me perdoe...
– Saia daqui antes que eu faça uma besteira.
– Eu sei que errei, mas te amo.
– Não diga essa palavra!
O diálogo inicial, então, transformou-se em discussão emotiva. Mariano, em defesa,
argumentou que Heloísa despendia mais atenção à residência em traumatologia que a ele e que
por isso dava suas saídas. Mas logo com a melhor amiga dela? Era difícil para Bela compreender

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O escultor da alma

isso.
– Não passou de uma aventura sem importância. Era só sexo – de que adiantava dizer isso a
Heloísa? Mas seu coração não pendeu, realmente, em momento algum, a favor de Dália.
Não adiantaram as explicações. Aos prantos, expulsou Mariano de casa. Ele saiu atônito.
Andou a esmo no carro. Ligou para Dália e contou tudo. Ela caiu em si. Que coisa horrenda havia
feito com a amiga.
Dália e Heloisa não se falaram mais. Nem pedido de desculpa, nem perdão. Restaram, de um
lado, o rancor e o desprezo. Do outro, o remorso, a vergonha e a culpa. Uma relação mal resolvida
que poderia, no futuro, causar mais transtornos.
A história da traição correu entre os amigos e as conseqüên- cias foram graves para a flor
espinhosa, que murchou pelo abandono. Sequer Mariano a quis. Teria sido leviana? Provavelmente.
Agiu por amor a Mariano? Talvez. O coração se volta, às vezes, contra si mesmo.
Já Mariano teve que engolir a seco tudo que Bela lhe havia dito. Só naquela hora, então, dera
conta do grande erro que foi ter se envolvido com Dália. Seu peito doía. O sentimento por Bela,
que parecia ter adormecido, se fez presente com intensidade. Acordara para o mundo tarde?
Redescobrira o amor por Heloísa de forma traumática. Poderia reconquistá-la? As dúvidas pairavam
sobre as angústias do jovem administrador. E não seria fácil contemporizar seus sentimentos e as
incertezas que agora lhe rondavam. Sabia disso.
O tempo é o senhor dos sábios e dos tolos. Responderia as perguntas na época oportuna. De
toda forma, aquele fora o pretenso almoço mais indigesto que tivera na vida.

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O escultor da alma

Heloísa e Magnólia estavam esperando no saguão do aeroporto. Havia três meses que sua
mãe partira. Nesse tempo muita coisa mudou na vida de todas. Bela terminara um relacionamento
longo e ainda sofria. Magnólia iria se casar em breve e por isso a mãe tinha que voltar. A senhora
Raquel passou por uma mudança de ares necessária.
Após um forte abraço das filhas, a família seguiu até um restaurante para comemorar a volta
da matriarca. Dona Raquel adorava pizza. Dirigiram-se, então, ao seu restaurante preferido. Sentadas
à mesa, foi uma grata surpresa para as filhas sentirem o estado de ânimo da viúva. Parecia mais
tranqüila e descansada. Era o que importava. Estava também mais magra. Mas todas elas perderam
peso no período, o que não seria de se surpreender.
Conversaram, primeiro, sobre as novidades da viagem, os locais visitados e o dia-a-dia com
a irmã, o cunhado e os sobrinhos. Os primos, dois, estavam bem. Um deles, Carlos, terminava
engenharia civil, era cantor de uma banda de rock nas horas vagas e sempre acordava a senhora

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O escultor da alma

Raquel quando chegava das baladas, por mais cuidado que tentasse ter.
E contou às filhas, sorrindo:
– Também, com aquele corpanzil de mais de cento e vinte quilos, mal distribuídos em um
metro e oitenta de altura... Gordo, vive em um regime semi-aberto: assalta à noite a geladeira,
pensando que ninguém nota. Discreto como um rinoceronte – dizia a senhora Raquel – é uma
graça. Sempre cantarolando, dentro de casa, músicas que não eram bem ao gosto de Ivan e
Abgail. Ele está fazendo aquele tipo que usa blusão de couro sintético e pulseiras com cravos
metálicos.
– Vocês acreditam que, certa vez, tocaram a campainha, fui atender e de repente vi um dos
excêntricos amigos de Carlos? Chamei-o e, quando ele chegou até a porta, fez um gesto com as
mãos em forma de diabo, usando o indicador e o dedo mínimo. Eles eram tão esquisitos que
daria para trancá-los em uma jaula e cobrar ingresso – disse, rindo, a senhora.
Referindo-se ainda a Carlos:
– O metaleiro ouve as estridentes músicas constantemente. Mas Ivan teve uma idéia que
salvou a paz no lar: tem que ser com fones de ouvido.
– E como anda Marx? – perguntou Magnólia. Ele era o irmão mais novo.
– Continua o oposto. Intelectual, erudito e reservado, mais magro e formal. Anda sempre
penteado e não perde uma aula do curso de direito, do qual é aluno destacado. Já estagia em um
escritório, apesar de cursar o terceiro período, apenas. Tem um ponto em comum com o
primogênito, pois gosta de música, só que Chopin, Mozart... Para chatear o irmão, Marx colocou-

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O escultor da alma

lhe o apelido de Roberto Carlos. Carlos considera um verdadeiro insulto. E deu o troco, só chama
Marx de “Jaboti”, por considerá-lo um lerdo. O pior é que o danado parece mesmo – confidenciou
às filhas, sorrindo.
– Ivan faz gozação com isso tudo. Costuma dizer agora que um deles foi trocado na
maternidade. – E continuou: – É costume, aos sábados, pedirem para entrega no domicílio duas
pizzas. Eu me deleitava. Só que uma era para o resto da família e a outra somente para Carlos.
Ambas acabavam rapidamente. – As meninas gargalharam.
– E não é só. Eles estão agora com um cachorro grande e felpudo que anima a casa, ao
mesmo tempo em que a enche de pêlos. O nome do sem-vergonha tem tudo a ver: Fofão. Deixa
pêlo até no controle remoto – observou a senhora. – Parece Carlos: grande, desengonçado e
não faz mal a ninguém. Todos o adoravam, inclusive eu. Continuam morando no mesmo local,
uma confortável casa em um condomínio fechado, a vinte minutos do centro da cidade. Lá, eu e
Abgail fazíamos caminhadas matinais bastante agradáveis.
A pedido de Heloísa, dona Raquel passou a contar do dia-a-dia de Ivan, que era engenheiro
civil:
– Continua com a construtora, seguindo a mesma rotina de sair cedo, voltando somente no
início da noite, o que nos dava a tarde inteira para conversar.
As meninas ficaram felizes com o tratamento dispensado pelos tios e depois ligaram
agradecendo. Mas já era hora mesmo da mãe voltar para casa.
No dia seguinte, as irmãs tiveram uma ótima idéia: foram até um pet-shop e compraram um

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O escultor da alma

cachorro para fazer companhia à mãe. Assim dona Raquel teria algo para cuidar e ocupar seu
tempo.
– Qual a raça? – perguntou a vendedora.
– Não pode ser peludo – responderam. Dentro da loja havia um cercadinho repleto de
filhotes, cada um mais bonitinho que o outro.
– Dá vontade de levar todos – comentou Magnólia. Mas escolheram um Beagle branco e
marrom de apenas dois meses de idade. Tal raça é boa porque é pequena, tem pelo curto e é
bastante alegre e brincalhona, o que viria somente a alegrar a residência.
A campainha da casa da senhora Raquel tocou. Ela mesma fez questão de abrir a porta. Não
tinha ninguém. Porém, ao olhar para baixo viu, em uma cestinha, um lindo cachorrinho bicolor
dormindo. Ao lado, uma mamadeira e um cartão:
Mamãe, cuide de mim. Minha raça é Beagle, a mesma do Snoopy, aquele cachorrinho de desenho animado.
Mas sou de verdade, tenho dois meses. Tomarei leite fervido até o próximo mês. Prometo não fazer pipi nem cocô
nos tapetes e nem encher a casa de pêlos, desde que a senhora me ensine. Não tenho nome ainda. Bote um em mim,
por favor.
Ass. …
– Ana, vem cá! Olha só o que as meninas trouxeram... – chamando a empregada.
– Dona Raquel, que coisa linda! Só não vá sujar a casa para eu ter que limpar depois – disse
a empregada, apontando-lhe o indicador, enquanto segurava a cesta onde estava o pequeno e
sonolento cãozinho.

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O escultor da alma

– Chamá-lo de Fofão seria muita falta de criatividade... – pensou um pouco e teve uma idéia
– Snoopy! Isso mesmo! Snoopy será seu nome – enquanto olhava carinhosamente para o bichinho
que dormia com a barriguinha rosada para cima.
Bem, o nome pode não ter sido uma escolha para lá de criativa, mas foi o gosto da dona. A
intenção é o que vale...

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O escultor da alma

Douglas Azatto estava saudoso naquele réveillon. Em plena Plaza Mayor, repleta de nativos e
estrangeiros, passava os seus últimos dias na Espanha. Havia sido um bom ano, de grandes
acontecimentos em sua vida. Concluíra seu mestrado na famosa e antiga Universidade Complutense
de Madri. Mestre recém- titulado, sua dissertação, bastante elogiada pela banca examinadora,
tinha sido sobre Direito Internacional Privado, assunto que o apaixonava.
Contava trinta e um anos. Era alto, magro, alvo, de feições amenas. Naquela noite, usava um
sobretudo cinza que o agasalhava do frio rompante de Madri, a mais alta capital européia,
majestosamente encravada a seiscentos metros de altitude. Junto com alguns amigos, dentre eles
outros dois brasileiros que lá estavam também cursando pós-graduação, assistiram com alegria
aos estampidos dos fogos na Plaza Mayor. Pensou no Brasil. E o réveillon em Copacabana? Seus
pais tinham viajado para romper o ano na cidade maravilhosa. Como estariam todos àquelas
horas?

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O escultor da alma

Abraçada a ele se encontrava Tereza, sua namorada. Os olhos da jovem catalã brilharam ao
encontrar os seus. Sorriram com a espontaneidade que só o amor sabe e pode produzir. Mas eram
conscientes dos seus destinos.
Conheceram-se havia oito meses e depois disso não mais se separaram. Era uma pena o
relacionamento passar por um momento como o que viria em pouco tempo. Haveria, em breve,
um oceano a separá-los. Sabiam disso, mas não queriam pensar senão no presente, embora
inevitável, já que o vôo de volta para o Brasil partiria três dias depois...
Natural de Barcelona, Tereza cursou engenharia elétrica em Madri e, nessa mesma cidade,
iniciara seu trabalho. Filha de família numerosa, por sua inteligência e profissionalismo fora a
única bem sucedida e assumiu a responsabilidade de ser o arrimo dos seus genitores, uma vez que
seus pais eram agricultores nas cercanias da capital catalã. Formara-se com destaque em engenharia
elétrica e se tornara executiva de uma multinacional alemã que atuava na mesma área, após anos
de intenso, destacado e profícuo trabalho, o que ocasionou sua vertiginosa subida dentro dos
quadros da empresa tedesca. Não tinha como se transferir para a América do Sul sem procurar
outro emprego, uma vez que lá não havia subsidiárias do grupo berlinense. Por outro lado, dada
a posição que ocupava naquele holding, não conseguiria igual remuneração no Brasil. Inúteis tinham
sido até então os inúmeros currículos que havia enviado ao País e distribuídos entre head-hunters e
diretores de corporações de porte. Apesar dos sentimentos envolvidos – uma vez que percebera
a grande afinidade entre ela e Douglas – o melhor foi raciocinar com a razão e esperar para ver se
algum resultado concreto adviria das ofertas que surgissem para trabalhar em nossa terra. Azatto

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O escultor da alma

insistiu para que voltasse com ele. Disse que a sustentaria até ela encontrar um emprego. Mas a
espanhola não estava disposta a tamanha aventura. Tinha índole independente, os pais para
sustentar e não aceitaria o risco e nem os custos financeiros para o amado. Por enquanto, ficaria
na Espanha. Tereza Madrigal Cortez, seu nome.
Tinha passado por outras experiências, mas nenhuma havia lhe trazido a felicidade que agora
encontrava com Azatto. Por isso o encantamento que sentia era por todos percebido. Olhava-o
com afeto e admiração, o que era perfeitamente retribuído pelo brasileiro.
Após os estampidos, abraçaram-se todos na Plaza Mayor, desejosos de um Ano Novo de
realizações. Curtiram champanhe, e se confraternizaram em votos mútuos de ventura. Em seu
brinde, Douglas olhou profundamente a espanholinha nos olhos, dizendo a famosa frase de
Dom Péringon, o criador do champanhe: – “estou bebendo estrelas...”. – Após, apertou-a contra
seu corpo naquela noite festiva e fria, sentindo o calor dela lhe atravessar o sobretudo. Ergueu
novamente a taça da bebida francesa. Tomado pela inspiração que o arrebatava inexplicavelmente
ao se sentir amado por Tereza, disse, entre comovido e esperançoso – enquanto seus lábios não
disfarçavam um certo sorriso de felicidade por aquele instante:
– Às nossas realizações, juntos, nesse ano que se inicia... E principalmente ao nosso amor.
Que seja profundo e perene, vigoroso, como um rio que corre, incessante, para abraçar o mar.
Ela, em resposta, sorriu e, no momento do tilintar dos copos, disse:
– Amor, que seus pensamentos reflitam o nosso futuro. Meu amado, meu poeta.
Depois, bons vinhos foram saboreados pelo seleto grupo de amigos, já em um bistrô na

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O escultor da alma

mesma praça. A Plaza Mayor, apesar do nome, mais se assemelha a um átrio, com piso de
calçamento, formando um quadrilátero com aproximadamente cem por cem metros. Em sua
orla existe um imenso casario cujas paredes são coladas, cobrindo toda a sua borda, numa edificação
de quatro pavimentos. São edificações antigas, datadas do século XVII. Num dos lados, há um
prédio imponente cujo terço médio é ocupado por órgãos do governo e as pontas por acomodações
residenciais, onde felizes moradores desfrutam daquela bela visão diariamente ao abrir as janelas.
A disposição confere uma similitude com um imenso átrio encravado no interior de um
quadrilátero, sendo os acessos feitos por arcos amplos no térreo. Seja praça ou átrio, o certo é que
a Plaza Mayor é um dos pontos mais importantes da cidade. O clima naquele local é bastante
agradável, transpirando história e cultura. Em seu centro se encontra a estátua do rei Felipe II.
Quando a madrugada se aproximava, despediram-se. Alguns daqueles amigos seriam vistos
pela última vez até o embarque de retorno às Américas, e cada um mereceu uma sincera e especial
despedida, além do convite para conhecer seu apartamento no Brasil e lá ficar por uns dias.
Em seguida, voltaram para casa onde, na intimidade do quarto, o jovem cavalgou, intrépido,
acompanhado de sua amada, cruzando curvas e montes, buscando veredas perfumadas e vales,
cuja beleza natural o extasiava mais a cada caminhada feita. E nos olhos entreabertos da jovem, a
volúpia se insurgiu. Ele, pacientemente, percorreu os alvos quadris, fazendo-a tremer... E a fez
sentir-se uma mulher distinta de todas as outras. E então cavalgaram, abraçados, pela estrada do
enlevo. Ao som de mil suspiros e, por ínfimos segundos, foram um ser só. Após aquela noite não
mais seriam os mesmos...

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O escultor da alma

Já no final da manhã, admirando a amada que dormia, Douglas levemente acariciou as costas
nuas da jovem debruçada sobre o leito, envolta, dos quadris para baixo, pelo lençol de cetim. As
cortinas, semi-cerradas, guarneciam o quarto da maior parte da luz exterior, criando quase uma
penumbra. Era um quadro lindo vê-la daquele jeito, na pureza e fantasia dos sonhos. Em
homenagem àquele momento de amor e felicidade, o poeta, então, extraiu os seguintes versos das
mãos que reconheceram e avançaram, felizes e velozes, sobre a geografia retilínea das linhas do
papel:

QUANDO...

Quando vejo teu rosto arquear-se de enlevo


Respondendo ao compasso de meus movimentos;
Quando vejo sem veste o encantado relevo
Do teu corpo que assente tantos sentimentos;

Quando o odor que exala tua pele macia


Faz mistura com o ar que envolve o ambiente
Quando tornas reais mais de mil fantasias...
Fechados os olhos, suspiros ardentes...

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O escultor da alma

Posso então dizer que são mistérios


O que ganham em sentido esses momentos –
Essa mágica que o amor tornou império.

Estando em ti eu sou mais vivo e mais amante.


Quando enlaçados estão os sentimentos
Quisera ter a eternidade em tais instantes...

Tereza era uma mulher belíssima. Fisicamente, representava uma típica moça ibérica, estatura
média, com corpo torneado, pele alva, longos cabelos negros e cacheados. Seus lábios eram
macios e rubros. Tinha vinte e nove anos quando conheceu Douglas. Seu olhar era bastante
expressivo. Sempre que algo que a afetava acontecia, tornava-se indisfarçável no semblante da
espanhola, e o brasileiro dizia: – Bebé, tus ojos no me engañan... Carinhosamente, ele a chamava de
Bebé – bebê, em espanhol.
Ele estava cumprindo um trato feito. Ela só falaria com ele em português e ele se dirigiria a
ela em espanhol, tão somente para que um pudesse treinar o idioma nativo do outro.
Era costume de Douglas fazer caminhadas e rápidas corridas ao final da tarde, sempre no
Parque del Retiro. E foi isso que fez no primeiro dia do ano, a sua despedida da capital espanhola,
quando rumaram, ele e a amada, até lá. Essa ilha verde no coração da capital madrilenha era um
dos locais mais apreciados pelo jovem brasileiro. Tereza, bem agasalhada, levou um livro para ler,

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O escultor da alma

uma vez que não agüentaria correr naquele frio de inverno, enquanto Douglas fazia suas passadas
rápidas pelas pistas, apreciando a paisagem. O local é bastante freqüentado pelos nativos que, no
início do dia e nos fins de tarde, lá vão para praticar atividades físicas ou descansar a mente em
um passeio.
O parque também merece o nome que tem. Azatto, naquele dia, apreciou com gosto a
paisagem, passando pelo Estanque, onde há um lago e um bonito monumento em homenagem a
Afonso XII. Depois, contemplou o Palácio de Cristal, imponente construção em ferro e vidro
que, mesmo em época de inverno, conserva inexplicável sensação de leveza. Mas à frente, a área
da Rosaleda, um belíssimo jardim onde, na primavera, explode a beleza de incontáveis variedades
de flores, cujos matizes diferentes formam uma aquarela natural que impressiona mesmo os já
acostumados ao local. Mas, naquela tarde de inverno, só mesmo bem agasalhado poderia Azatto
praticar sua corrida.
Ficaram praticamente todo o tempo juntos nos últimos quatro dias. Tereza até descontou tal
tempo de suas férias no trabalho. Foram para a costa mediterrânea curtir os momentos derradeiros
antes do embarque. O destino foi Málaga, a principal cidade turística da chamada “Costa del
Sol”. Visitaram a Catedral da cidade, o Alcázar, um palácio-fortaleza construído durante a idade
média, século XI. Foram ainda ao Teatro Romano e às ruínas da Fortaleza de Gibraltar. Ficaram
hospedados em pequeno, mas confortável e estilizado hotel. Com arquitetura antiga, remetia o
casal a uma época remota.
Numa das noites, desceram as escarpas numa longa escada de pedra esculpida na encosta,

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O escultor da alma

apreciaram o céu estrelado e exasperaram toda a emoção a dois, à beira mar, em longa toalha
estendida sobre a areia da praia. Juntos, inconfidenciaram três pedidos após a passagem de uma
estrela-cadente... Tiveram o tempo e o isolamento para aproveitar a praia deserta...
As testemunhas estelares guardariam aquele segredo para sempre. O cantarilho das gaivotas
prenunciou os suspiros não ouvidos por ninguém além dos dois amantes que se entregavam... As
ondas quebravam com vigor a cada ida que davam, intrépidas, no rochedo que desejava
incessantemente a volta das vagas espumantes. A gramínea, ao sopé das falésias, estremecia de
enlevo com o vento que a acariciava de forma viril, tocando-lhe com intensidade cada parte de
sua macia folhagem. Era um quadro natural, de inebriante beleza e harmonia. Enquanto isso, a
orquídea perfumosa se abriu, sentindo a dor e o prazer daquele beija-flor noturno que lhe provava
do néctar, no fundo do seu cálice. Balançava, estremecia e gemia baixinho a flor, compassadamente,
ao bater de asas do colibri que, após um período, fez desaguar dentro dela um instante de tremor
e luminosidade intensa, sentido por ambos no mesmo instante em que se olhavam, jubilosos, até
que, saciados, puderam descansar – momento em que a avezinha repousou e dormiu, cobrindo
com suas asas a leve e delicada flor.
Ao amanhecer, voltaram ao quarto do hotel com um sentimento de completude e união.
Caiu uma leve orvalhada naquela madrugada, como se a praia tivesse chorado, junto com eles,
emocionada...

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O escultor da alma

Jonas e Magnólia se conheceram ainda adolescentes. Formavam um casal diferente – até


porque ela era mais alta do que ele – mas muito unido.
Ao contrário de Mariano, a origem do noivo era humilde. Seu pai, proprietário de uma oficina
mecânica, trabalhou a vida inteira sacrificado. Mas conseguiu a formatura dos três filhos – maior
orgulho que tinha na vida. Jonas, filho do meio, era bacharel em contabilidade. Apesar disso, o
que mais chamava a atenção no rapaz era seu senso de responsabilidade. Trabalhava em uma
grande empresa distribuidora de gêneros alimentícios. Era respeitado e querido por todos.
Começou lá cedo, ainda como office-boy. Mostrou talento e competência para números e,
ainda durante a faculdade, já respondia, na prática, pela contabilidade da firma. Sempre disposto
a aprender novas tecnologias, utilizou-se dos recursos da informática e os aplicou na empresa.
Ganhava um bom salário e com ele conseguiu, através dos anos, comprar um terreno e construir
a futura moradia do casal. Era uma residência ainda modesta para os padrões que ansiavam, com

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O escultor da alma

apenas dois quartos, mas o terreno era espaçoso e os projetos estrutural e arquitetônico – elaborados
pela futura nubente, é claro, que também fez o acompanhamento da obra – fora realizado com a
possibilidade de rápida e fácil ampliação.
Jonas era baixo, magro e tímido. Nas rodas de conversa sorria sempre e falava pouco. Mas
era decidido no trabalho. O equilíbrio era o palmilhar de sua conduta em todos os sentidos.
Amava Magnólia de maneira profunda. Não raras vezes, os parentes e amigos o pegavam, olhos
brilhantes, admirando a noiva, que em comparação ao jovem se poderia considerar falastrona.
Formavam, assim, um casal sólido. Uma escolha precoce no tempo e certa no tino.
Os preparativos para o casamento estavam no final. Ela queria uma festa tradicional. Já ele se
contentaria com um coquetel para os parentes e amigos mais próximos.
– Jonas, deixe de besteira. Só vamos casar uma vez. Por isso tem que ser bem feito – costumava
dizer a noiva. Mas chegaram a um consenso: diminuíram o número de convidados e as despesas
com os enfeites da igreja, para que pudessem melhor mobiliar a casa e guardar uma reserva.
Quem ajudou na arrumação da noiva foi a irmã.
– Papai deve estar feliz numa hora dessas, não é mesmo, Bela?
– Certamente, maninha.
Vinte e dois de dezembro era a data marcada. Oito da noite, numa tradicional igreja da
região. Apesar de agnóstico, Jonas não questionou a cerimônia. A recepção se daria em local
próximo. Eram cento e vinte convidados.
E chegou o grande dia. Na casa das jovens o corre-corre era grande. Dona Raquel se

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O escultor da alma

emocionou e recordou o marido. Heloísa tinha organizado uma troca de plantão para prestar
melhor assistência à irmã. A cerimônia foi rápida, mas não tanto quanto queria o impaciente e
nervoso Jonas. A noiva chegou no carro do tio Ivan, que viera de longe com a família para a
cerimônia.
Antes, ele, Abgail, Carlos e Marx, estiveram na casa da tia Raquel. Carlos, o metaleiro,
desconfortavelmente enfiado em um terno azul marinho, não pôde deixar de perceber a pintura
da tia Raquel, pendurada na parede da sala. Apontando para a tela e fazendo uma cara de asco,
dirigiu-se a Heloísa, implacável, em voz alta:
– Prima, que coisa horrível é aquela? Parece que o pintor vomitou na hora em que estava
fazendo!
Na mesma hora Abgail beliscou o filho e disse baixinho:
– Carlinhos, é uma obra de arte feita pela sua tia... Cale a boquinha.
– Realmente é horrível. Mas o que fazer? Mamãe ganhou no grito para colocar esse quadro aí
– riu Heloísa, concordando com o primo.
Voltando ao cenário da igreja de arquitetura barroca, bem decorada e arejada naquela noite,
Jonas estava visivelmente tenso. Entrou apressadamente, apesar do treinamento feito antes. Era
tímido e suava frio só em pensar naquela multidão toda olhando para ele. O fraque preto que
usava deixou o rapaz ainda menor em relação à noiva.
Magnólia entrou logo em seguida, acompanhada do tio Ivan, ao som das Bachianas Brasileiras,
de Heitor Villa-Lobos – música escolhida pela irmã. Emocionada, borrou toda a maquiagem

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O escultor da alma

ainda na entrada. Chorou de alegria, pelo casamento, e de saudades do pai.


– Tio, tão bom se papai estivesse aqui.
– Sorria, Magui, ele está feliz por você nesta hora. – O vestido branco, repleto de
detalhes, compunha um quadro muito bonito, dando maior brilho à beleza natural da noiva.
Estava, realmente, deslumbrante.
Heloísa também estava visivelmente emocionada, assim como dona Raquel. A jovem vestia
um belíssimo longo vermelho, que realçava suas formosas curvas. Se já era uma jovem que não
passava despercebida, àquela altura era alvo de cobiça dos solteirões de plantão na igreja. Mas seu
pensamento estava direcionado apenas para a noiva, e seu coração ainda se recuperava das dores
do passado. Uma lágrima desce do seu rosto e se precipita sobre o vestido. Lembrou o pai,
Wilson, principalmente na entrada da irmã. Quase viu a figura paterna, sorridente, carregando a
filha, orgulhoso. Quase pôde sentir a emoção que outrora desejava, de entrar numa igreja e celebrar
a união com alguém que a amasse. Quem seria, àquelas horas? Ninguém. Ninguém mais a
despertava. Seu coração ainda padecia de sofrimento. Por um bom tempo ela restaria ferida,
incapaz de se entregar a um novo amor. Ao seu lado estava Alberto, escolhido como padrinho,
também. O jovem, também distinto, vestia um bonito terno escuro sobre uma camisa branca e
gravata discreta. Estava sereno.
Raquel, assim como as filhas, também recordou Wilson naquela noite. Sua mente voltou
trinta anos, quando da passagem lenta da filha pelo corredor da igreja. Viu-se naquele vestido
branco, feliz, esperançosa, jovem e sonhadora. Logo puxou um lenço. Duas emoções se

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O escultor da alma

entrelaçavam: a felicidade do casamento da filha e a tristeza pela ainda forte presença em sua vida
do seu grande amor, que partira meses antes para a imensitude...
O padre celebrou a missa rapidamente, para o alívio do noivo. Até na hora das juras, Jonas
gaguejou. Mas ao final deu tudo certo.
Após a cerimônia religiosa, dirigiram-se todos até o local da recepção, que não distava mais
de cinco minutos da igreja. Lá chegando, houve um momento de descontração. Heloísa teve
oportunidade de dançar não só com o amigo Alberto, como também com o primo Marx. Carlos,
após insistência da noiva, dançou uma valsa, contrafeito. Os parentes riram daquela cena rara.
Já de madrugada, Bela, exausta, voltou com Alberto. Ao chegar em frente de casa, estranhou
uma luz acesa e pediu que ele fosse conferir. Não era nada. Ela havia se confundido. Como tinha
sido a última a deixar a casa, pensara que tivesse apagado a luz da cozinha. Na volta, Alberto
olhou para a pintura na parede com uma cara de interrogação.
– Já sei, achou horrível? – perguntou Bela.
– Digamos que seja... “diferente!” – respondeu diplomaticamente. Viam-se as cores distribuídas
indistinta- mente. Parecia que o “artista” havia jogado colheres de sopa de tinta sobre o pano.
Qualquer um poderia pintar daquele jeito. Em alguns pontos da grande tela, que media
aproximadamente um por um metro, juntavam-se montes de tinta de quase um centímetro de
altura. – Pelo menos deve ser pesada – disse, querendo rir.
– É arte da minha mãe – falou, tentando esconder com as mãos o riso. Dona Raquel fez um
curso de pintura de uma semana. O professor era adepto do dadaísmo, uma corrente da arte que

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O escultor da alma

gosta de trabalhar com o aleatório. – Graças a Deus foi a sua primeira e última obra – riram
juntos. Instantes depois Alberto se despediu.
Após a recepção, o casal de nubentes saiu para uma suíte num hotel cinco estrelas. A lua-de-
mel seria em terras ibéricas. A família de Jonas era de origem espanhola, e a de Magnólia, portuguesa.
O pacote de viagem foi custeado pelo patrão de Jonas, o doutor Gualberto, também um dos
padrinhos. Era o seu presente de casamento. Nem deixou que soubessem quanto custara. E não
fora barato.
Homem de pulso firme, sabia também reconhecer o valor dos que com ele administravam a
empresa. Nada mais justo a quem lhe deu recíproca verdadeira na confiança depositada.
Magnólia quis declinar do presente, não porque o considerasse em demasia caro, mas devido
ao seu medo de voar, principalmente em se tratando de viagem transcontinental como a que
fariam. A muito custo, Jonas, com a cooperação de Bela, conseguiu demovê-la. Falou da
oportunidade de conhecer as terras dos seus antepassados paternos e de quantos em seu lugar
não hesitariam em seguir viagem. Por outro lado, como era fã de números, buscou estatística
recente, demonstrando que o vôo é mais seguro que o transporte terrestre.
Mesmo assim, Jonas passou vergonha na hora das decolagens. Magnólia chorava baixinho,
enquanto apertava seu braço com força:
– Amor, amor, tá doendo. Aperta mais devagar...
– Não dá! Ai, meu Deus do céu...
Foram primeiramente a Portugal. Passaram dois dias entre Lisboa e Porto. Depois desceram

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O escultor da alma

até o sul do País, região do Algarve. Para a recém-casada um misto de nostalgia a acolheu. A
região possuía um clima ameno e de muito sol, com uma atmosfera mediterrânea temperada
pelas brisas suaves que sopravam do Atlântico. Sua costa tinha uma grande extensão de praias de
areia branca, com cenários compostos de falésias avermelhadas e rochedos de origem arenítica.
Ficaram em um pequeno hotel entre os rochedos, local romântico, de bela vista por causa da
altitude da pousada. Visitaram, ainda, as muralhas medievais de uma catedral construída sobre
antiga mesquita, bem como a igreja de São Francisco, decorada com uma bela coleção de azulejos
portugueses do século XVIII. Depois foram a Sagres, que ficava perto, local emblemático por ter
sido ponto de partida dos navegadores dos séculos XV e XVI. Provaram da gastronomia da
Algarvia, composta basicamente de peixes e mariscos, como é o caso da famosa cataplana, elaborada
com amêijoas – uma espécie de ostra. Não perdendo a origem dos otomanos que, na idade
média, habitaram a região, os recém-casados provaram um doce de amêndoas como sobremesa.
O Natal foi passado em Algarve, num jantar romântico, à luz de velas.
De Portugal partiram para a Espanha, mais precisamente Madri. Portal de entrada da Europa,
é uma imensa cidade para ser conhecida. Foram até a “Puerta del Sol”, onde havia um vaivém de
pessoas pela praça durante todo o dia e também à noite. A estátua de El Rey Carlos III marcava
o coração da praça.
A época era fria, final de ano. Estavam ambos bem agasalhados e vibravam com as novas
emoções. Fizeram um tour em frente ao Palácio Real, onde havia mais de quarenta estátuas de reis
espanhóis pelos jardins que o cercam.

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O escultor da alma

Visitaram alguns museus da capital espanhola. No “Museo del Prado” tiveram a oportunidade
de apreciar grandes obras dos clássicos espanhóis, entre eles Velázquez, Goya e El Greco. Magnólia
sempre apreciou a pintura, uma vez que a arquitetura não deixa de ser, ao mesmo tempo, ciência,
arte e estética.
Emocionados, impressionaram-se com a força dos traços de Picasso na famosa tela “A
Guernica”, no museu Centro de la Reina Sofía, que trata de um desumano bombardeio acontecido
durante a Guerra Civil Espanhola, na cidade que intitulou a pintura. Para o agrado de Magnólia e
decepção de Jonas, não era temporada de touradas na capital.
O réveillon se passou em Madri mesmo. Não tiveram dificuldades em se comunicar com os
parentes brasileiros, uma vez que o fuso horário local adiantava quatro horas ao do Brasil.
Pouco depois das sete da noite, Ana atendeu à ligação telefônica. Era o casal em lua de mel.
Os parentes se falaram emocionadamente, desejando um feliz Ano Novo.
Romperam o ano na Plaza Mayor, talvez a mais importante das praças madrilenhas. Os cafés
estavam abertos e lotados. As ruas se encontravam tomadas de gente, não obstante o frio. Comeram
uma tapa – típica comida espanhola, assemelhada a um sanduíche – e tomaram, depois, alguns
drinques.
Na hora neutra, os estampidos de fogos irromperam na cidade. A prefeitura local organizou
uma cerimônia especial na Plaza Mayor. O show pirotécnico foi grandioso. Milhares de pessoas
acompanharam, emocionadas, irradiando uma energia positiva pelo ambiente. Fogos de todas as
cores, formando cascatas de luz, desciam do firmamento sobre as cabeças dos presentes, enquanto

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O escultor da alma

chuvas de prata escorriam do céu reverenciando um novo ano. O casal se abraçou num apaixonado
beijo em meio à multidão festejante.
Os lábios dos dois recém-casados se encontraram ternamente, criando um instante de emoção
e deslumbramento. Há noites que são mais radiantes que muitas manhãs. Era o que sentiam
Jonas e Magnólia naquele instante.
E ali, naquela cidade cosmopolita, dar-se-ia início a um novo, marcante e inesperado fato na
vida de ambos. O que seria?

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A maioria dos pertences de Douglas, incluindo os livros, já tinha sido despachada para o
Brasil com antecedência. O apartamento alugado fora entregue e, durante a semana anterior até
o embarque, tinha ficado hospedado na casa de Tereza.
Apenas uma mala o acompanhava, além da valise que sempre carregava consigo. A namorada
o levou até o aeroporto. Era indisfarçável a comoção que aqueles últimos instantes causaram
naqueles dois corações entrelaçados pelos laços da paixão.
Na despedida, Tereza lhe entregou um presente. E em espanhol, quebrando o trato feito –
olhos nos olhos – disse-lhe:
– Irá contigo meu coração, sabes disso. Deixo como última lembrança minha esse livro, para
que possas lembrar de nosso amor durante a viagem e como ele se materializou em nossos
corações. Douglas, meu amor partirá naquele avião – referindo-se ao jovem brasileiro, e apontando
para a aeronave que acabara de ser conectada à área de embarque e desembarque – e não sei

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O escultor da alma

quanto tempo levarei para superar a perda dele, o maior que já tive.
– Tenhamos fé, Bebê. Quem sabe surja uma proposta no Brasil que lhe seja atraente.
– É... Quem sabe... – disse a catalã, com uma ponta de resignação.
E das mãos de Tereza surgiu um embrulho. Era um livro intitulado “El Escultor del Alma”,
ilustrado com belas esculturas fotografadas, contando a vida e a obra do famoso artista plástico
espanhol Joan Miró.
Douglas fez menção de desembrulhar o presente. No mesmo instante Tereza lhe tocou os
lábios com o indicador e pediu:
– Não abra agora, por favor, meu amado. Deixe para quando estiver sobre o Atlântico – o
jovem consentiu, meneando a cabeça.
Dos olhos de Tereza rolaram duas silenciosas e doloridas lágrimas, contrastando com o
sorriso que exibia. Azatto disse a frase de sempre:
– Bebê, teus olhos não me enganam...
Abraçaram-se forte. Sem pudor da multidão, enlaçaram-se em um longo e curtido beijo.
Depois, permaneceram unidos durante uns instantes, silenciosos. Tereza, que abraçou Azatto
por dentro do sobretudo aberto, estava quase que completamente envolta pelo tecido da veste
dele. Afastaram-se, então, lentamente. Seus corpos tremiam de emoção, hesitantes em se separar.
A jovem catalã não suportou e puxou um lenço, levando-o ao rosto.
Dentro em pouco, a moça viu sumindo de sua vista, na rampa de embarque internacional do
aeroporto Barjara, em Madri, um homem branco, alto, magro, de sobretudo cinza. A meio caminho,

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já a uma certa distância, ele olhou para trás e a buscou em meio à multidão.
Fitaram-se por uns segundos, ele tentando sorrir. A longa escada rolante continuou o progresso
lento rumo ao andar de cima. Enquanto isso, disseram tanto naquele olhar, apesar do silêncio que
os guarnecia. Olhar daquele que partia com o coração partido; e daquela que ficava, em pedaços.
E retornou Azatto às Américas, com os olhos rasos d’água...

***

Dentro do avião, o jurista aguardou o início do vôo sobre o Atlântico, abriu o livro e encontrou
belíssima dedicatória em português:

Meu amado Douglas,


Contigo se vai a minha alma. Mas ela parte em boas mãos, nas mãos de um poeta. Agradeço a Deus por ter
te conhecido e provado do teu jeito e gosto em todos os sentidos que pude assimilar.
Sei que o que reside em nosso coração é um amor puro e sereno. Queira Deus que o destino tenha acertado,
porque agora é tarde: tu resides em meu peito como nunca antes alguém bateu e entrou.
Mas não quero te deixar triste, amor meu. Sorria, sorria sempre, porque teu riso será a redenção de todos os
meus sonhos, e os recordando, esquecerei a profunda dor da saudade.
Porém, saiba que és, e eternamente serás, meu poeta – o único capaz de esculpir no papel a própria alma.

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Por isso esse livro, “El Escultor del Alma”. É para que possas, sempre, sonhar comigo, lembrar de nós.
Amo-te,
Da Espanha para o Brasil
Tereza (Bebê).

O rapaz se emocionou com as palavras doces de Tereza e mergulhou no enredo da obra


literária ganha de presente, apreciando as imagens das esculturas de Miró. A recordação da jovem
ibérica era constante: a cada foto, um momento passado juntos; a cada página, um sorriso dela.
Reconhecera, nos traços das esculturas do artista espanhol, a formosura dos contornos do corpo
da sua amada, geografia já tão bem conhecida por ele. Tereza representava uma terra mítica, onde
os mistérios do amor foram revelados em toda a plenitude.
Ao seu lado, viajava um simpático casal de brasileiros que voltava de uma lua-de-mel de dez
dias na Europa.
Azatto até se divertiu por uns instantes com as trapalhadas da moça, que apertava vorazmente
o braço do marido sempre que o avião passava por turbulências. Ela era arquiteta e ele contador.
Falaram sobre trivialidades e descobriram que curtiram o réveillon bem próximos, na Plaza Mayor.
– Como é pequeno o mundo, não é mesmo? – falou Douglas aos dois enamorados. Ele
contou que estivera por mais de um ano na Espanha, capacitando-se em um curso de pós-
graduação, mas já defendera sua dissertação e por isso voltava, definitivamente, ao Brasil.
Perguntaram como era a vida na Ibéria, e se Douglas enfrentara alguma dificuldade com a

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O escultor da alma

língua. Azatto contou algumas passagens interessantes e engraçadas por causa da nossa falsa
idéia de que podemos resolver tudo lá falando o “portunhol”.
Já para o final da viagem, pôs-se a meditar sobre os acontecimentos mais recentes na sua
vida. A temporada na Europa; a vitória no mestrado; a descoberta de um grande amor que, por
obra do destino, lhe escorria entre os dedos das mãos como se fosse uma substância etérea. Seria
o destino assim tão cruel com ele e Tereza?
De um bloco de anotações extraiu pensamentos e chorou, discretamente, levando um lenço
ao rosto.
A jovem senhora apenas notou que algo ele estaria escrevendo em um bloco pautado de
folhas brancas, longe de perceber a comoção pela qual passava o discreto rapaz. Pelo contrário,
imaginando que tudo não passava de uma alergia ou resfriado, falou de casos de pessoas que
sofrem algum tipo de reação alérgica durante o vôo. Douglas amainou a cabeça, em sinal de
concordância com a cordial e jovem senhora, disfarçando os sentimentos que o levaram de volta
ao Velho Mundo. Mas, no íntimo, teve vontade de responder assim: – tenho alergia, mesmo, à
solidão e à saudade de quem amo.
A moça viajou em uma poltrona que dava para a janela. Passado o susto inicial da decolagem
e das turbulências, até relaxou, contemplando as infindáveis formas que as nuvens criavam. Lá
embaixo, o azul. O firmamento se curvava. Acima, também azul. Estava anoitecendo.
No assento do corredor, Douglas, envolto em seus pensamentos, lamentava o destino. Por
que comigo? Por quê?

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Durante o procedimento de aterrissagem, novamente a moça entrou em desespero, apertando


o braço do pobre e franzino marido que tentava, inutilmente, ser discreto enquanto reclamava
das unhas da mulher furando sua pele. Era uma situação inusitada e até, de certa forma, engraçada.
Disse Azatto ao casal, dando mais ênfase à jovem que o olhava assustada e tentando manter
a calma sem muito sucesso:
– O vôo é várias vezes mais seguro que viajar em rodovias.
O marido, contrariado e percebendo que a situação já tinha sido perfeitamente assimilada
pelo vizinho de assento, afirmou em tom de agonia:
– Eu já mostrei a ela até estatísticas internacionais. Não adiantou.
Ela respondeu, tremendo:
– Eu sei que as estatísticas mostram que é muito mais seguro. Mas, e se ESTE vôo não for?
– riram os três. A moça, de nervosismo, também.
Quando chegaram ao destino, já passava das nove horas da noite. Com pressa, Douglas se
despediu e se foi, uma vez que sua bagagem de mão era apenas uma valise que carregou sob o
assento durante a viagem. O casal tinha malas acima da poltrona e demorou mais para o
desembarque.
Quando Magnólia ia saindo, percebeu que o companheiro de viagem tinha deixado seu bloco
de notas no assoalho da aeronave. Ainda tentou chamá-lo, mas sentiu vergonha. Ele ia longe, já se
aproximando da saída principal do avião. Resolveu descer com o bloco de papel e tentar alcançar
o rapaz na área de bagagens, porém Jonas falou:

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– É só um bloco de papel. Não tem valia para ele, salvo se tiver alguma coisa importante
escrita. Tem?
Quando Magnólia o desvirou, pôde ler um poema datado do dia anterior:
DEVANEIOS

És a chama ardente.
És o botão de rosa.
És a beleza de um sol nascente.
És a luz, a gloriosa.
No palco da vida sou um devaneio
Que tem em ti a razão da existência.
Se um “não” cortar, num açoite, meus anseios.
Não terás, porém, em mim, ausência.

Neste instante que a vida enquadra,


Mesmo sendo a solidão incerta,
Resta dizer-te que tu és amada –
E eu sou poeta.

E ao virar a segunda folha do bloco, deparou-se com os chorosos versos de saudade intensa,

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feitos durante a viagem de volta ao País, pois embaixo havia, entre parênteses, a data do vôo e a
seguinte inscrição: “sobre o Atlântico...”:

DESATINO

Quando o silêncio irrompeu na noite


No meu peito se cravou uma lança
E no futuro um imenso açoite.
Foi o vento quem levou o nosso amor.

Tantos altivos momentos passamos


Nas nossas românticas andanças.
A nos separar hoje há um oceano...
Foi o tempo quem levou o nosso amor.

“Senhor Deus dos desgraçados...”


Há somente desatinos e lembranças
Pois muito amei e fui amado.
Mas foi a sina quem roubou o nosso amor.
Hoje, ela reside numa Europa fria,

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Já não me restam suas negras tranças,


Nem no meu rosto antigas alegrias...
Por que, Senhor, separar o nosso amor?

Só a partir desse momento pôde Magnólia compreender quão dolorosa era aquela alergia
durante o vôo...

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É preciso abrir um parêntese e trazer à tona importante acontecimento na vida de Heloísa,


ocorrido aproximadamente um mês antes do casamento da irmã, e que não poderia passar
desapercebido. Portanto, faremos uma rápida digressão na ordem cronológica dos acontecimentos.
Depois do tombo, o coice. Depauperada, mesmo assim Bela voltou ao trabalho e aos estudos.
Continuou a rotina como pôde. Às vezes se perguntava do porquê daquilo tudo, uma vez que
as quedas eram sucessivas: Meu Deus, o que fiz para merecer tamanho castigo?
Naquele início de tarde, estava ela no hospital, fazendo o acompanhamento de pacientes. Foi
até o apartamento onde estava internado o senhor Ângelo. Com o passar dos dias acabou firmando
uma relação de amizade e respeito com o velho. Ao vê-la na primeira oportunidade após o
rompimento com Mariano, o idoso logo deu conta da sua tristeza, indisfarçável para uma alma
experiente.
– Aconteceu algo, minha jovem?

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Heloísa, sem querer trazer seus problemas para quem já estava enfermo, disfarçou com um
leve sorriso. Fez o exame clínico do paciente e providenciou as anotações dos sinais vitais no
prontuário médico.
Naquela tarde havia um rapaz presente. Pela intimidade que demonstrava parecia ser íntimo
do casal. Porém, fisicamente eram muito diferentes.
– Doutora, quero apresentar meu sobrinho, Diderot.
– Oi. Seu tio é uma pessoa muito simpática e agradável. Já dei boas risadas com ele.
– Titia já nem reclama das palhaçadas dele, não é, dona Maria? – A velha sorriu, aquiescendo.
– Agora preciso ir. Foi um prazer, doutora Heloísa.
– O prazer foi meu – e o jovem foi embora.
Ângelo nem deixou a médica digerir as idéias e foi logo dizendo:
– Muito diferente, não é mesmo? É adotado. Meu sobrinho mais novo. Gosto dele como de
um filho. Mas a moça anda triste hoje? É saudade do papai ou problemas do coração?
– Os dois. Mas não vamos falar nisso porque o senhor já tem seus problemas para cuidar.
– Às vezes, a gente acha que tem problemas na vida. Vou lhe contar um que aconteceu com
o pai desse rapaz, meu irmão, Jeremias. Mas você precisa vir fora do horário de trabalho, porque
a história é longa, mas seria bom para você escutá-la. Poderia vir mais tarde?
– Hoje não, porque vim de carona. Mas amanhã, claro.
No fundo, Bela estava carente e necessitando conversar com alguém, uma vez que se sentia
desvalorizada e bastante infeliz. O velho lhe servia de apoio pela serenidade que transmitia. Era

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uma pessoa de grande vivência, e talvez a empatia que sentisse com Ângelo fosse devido à
lembrança de seu pai. Wilson também era alegre, divertido e contador de histórias.
No dia seguinte, após o término do trabalho, foi ao apartamento onde o senhor estava
internado. Lá chegando, o velho sorriu como sempre. Não era o dia de Bela assistir o paciente e,
portanto, sentia-se mais à vontade. Ali estava como amiga, apenas.
Maria a saudou e foi logo indicando uma cadeira próxima ao acamado para Heloísa sentar.
O senhor apertou as mãos da jovem e questionou, falando compassadamente:
– O que lhe causou tamanha tristeza, minha jovem?
Dirigindo-se ao velho e à esposa, respondeu:
– Fico envergonhada em dizer, mas estou muito triste porque fui traída por meu namorado
com minha melhor amiga. Sinto-me a mais infeliz das mulheres.
Ângelo parou por um átimo e arrematou:
– Porém, o mais importante é você ter a sua consciência tranqüila. Deve estar se achando
injustiçada, não é mesmo? Mas há sofrimentos muito maiores do que o seu. Coloque-se no outro
lado da moeda. Você não deve se sentir infeliz ou desvalorizada. Quem cometeu o erro foi o seu
ex-amado. Ele, sim, é quem deve estar, nesse momento, transtornado diante da possibilidade de
perder uma coisinha tão linda e valorosa quanto você – disse sorrindo.
– Uma mulher com os seus atributos não se encontra por aí, sabia? – completou Maria.
E Ângelo continuou:
– Talvez ele não tivesse percebido isso porque estava cego. Mas a vida, às vezes, nos coloca

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em algumas situações extremas, mas que podem servir de lição para melhorarmos ou
abandonarmos aquilo que não nos seria favorável. Pior seria se fosse você quem carregasse a
marca do remorso de um erro. Seus problemas podem ter solução. Você ou poderá perdoá-lo ou
encontrar outro alguém, desde que a respeite como merece. – E prosseguiu: – vou lhe contar a
história do meu irmão – olhou-a com profundidade e parou por um instante, como que para
organizar seus pensamentos:
“Cinco da tarde! Finalmente!
Passos rápidos na escada. Era uma sexta-feira.
Aquele poderia ser só mais um dia na vida de meu irmão. Mas não foi.
Como era costume de há muito, após o fechamento do escritório, ele, um experiente contador,
o primeiro dos filhos a se formar, morando naquela loucura de Rio de Janeiro, saía com destino
certo: o bar “Bodeguito Cabarro”. “Tomar uma gelada pra relaxar”, era o que sempre dizia, referindo-
se à bebedeira diária. Alheio aos apelos da família, que também viraram rotina, era sagrada sua
visita ao Bodeguito.
Chave do carro na mesa do bar, carteira, uma leve inclinação do tronco para trás da cadeira.
Estava preparado.
– Clodoaldo, manda uma mofando!
– Doutor, e uma calabresa?
– Trás, trás.
Meu irmão sempre fora de pouco papo no próprio lar. Quando Jeremias se sentava a uma

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mesa de bar, após três ou quatro garrafas de cerveja, mudava de figura. Tornava-se falastrão, às
vezes ensaiava até uma cantoria. Nunca admitira seu vício. Quanto aos apelos familiares, tinha
sempre uma resposta pronta na ponta da língua: – não sou dominado. Bebo quando quero e paro
quando quero! Sempre que perdia um cliente, bebia pra esquecer. Quando algo de bom acontecia,
era o motivo que faltava. Era rotina chegar tarde em casa.
Mas aquela noite seria diferente. Não porque fosse uma sexta-feira, dia dos mais esperados
por todos os que passam uma semana na luta. Também não seria pelo fato de chegar sóbrio em
casa. Depois de umas boas tragadas, pediu a conta e foi embora.
O bar que freqüentava ficava no centro da cidade, numa rua paralela às principais avenidas
comerciais. Seu carro, um Fusca 71, verde escuro, tinha sempre um albergue seguro sob as copas
de uma castanheira. Sabe Deus quantas vezes esse homem conseguiu chegar a salvo, dado o
estado de embriaguez. A esposa, revoltada, certa vez o deixou dormir na garagem mesmo, pois
em algumas ocasiões era necessária a ajuda dos filhos ou dela mesma para retirá-lo do automóvel.
– Tudo isso ele me contou – disse Ângelo.
Volta para casa: Zuuum! Fachos de luzes. Vista nublada. “Vou conseguir... mas que droga de
câmbio...”. Manter-se acordado era uma verdadeira batalha, já que os olhos pesavam... O caminho
até em casa era de uns quinze minutos, mas àquela hora da noite (já passava das dez) havia poucos
carros, o que ajudava sua chegada sem maiores percalços.
Chovia. Sinal vermelho. Um estampido. Um vulto. O carro balança repentinamente. Pé no
acelerador, foi a única coisa que veio à cabeça de Jeremias. Constatação: “Meu Deus, algo de grave

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aconteceu”.
Tomado pelo susto, ficou desperto. Rodou por mais uns minutos, a esmo. Tentou passar
pelo local do fato, mas teve medo de ser reconhecido. Resolveu então parar o carro em uma rua
deserta e verificar na lataria o ocorrido. Farol direito quebrado, o capô estava amassado e faltava
um dos limpadores do pára-brisa. Já sabia: “Atropelei um sujeito... E agora? Será que anotaram a placa?
Foi na avenida tal. Ah, se eu tivesse vindo por outro caminho esta m. não teria ocorrido. E o pior, o que dirá
minha mulher em casa? Já estou imaginado ela chorando, a me falar: ‘Jeremias, bem que eu te avisei. Isto ia
acabar em problemas mais sérios.’ Se descobriram que fui eu, a polícia já deve estar indo para lá. Foi apenas a três
quadras de casa. Muito perto. E ainda estou tonto”. Toda essa confusão aconteceu em meio à chuva.
Jeremias estava que parecia um zumbi.
Agora, o que fazer? Tentou raciocinar: “Vou dar um tempo. Não posso ficar andando com o carro
amassado. Já devem ter passado a informação à polícia. Estão me procurando, com certeza”. Um sentimento
de solidão surgiu nele. “Posso dizer que o sinal estava aberto, que o cara atravessou correndo para escapar da
chuva, posso prestar queixa do roubo do carro. Mas se der errado?”.
Apesar de se tratar de meu irmão, o que mais impressionava nele era sua própria ausência de
sentimento pelo atropelado. Naquele momento de aflição, toda a sua atenção estava em se safar.
Sua saída era pensar que “o que aconteceu, aconteceu”. A sensação era a de que o destino havia lhe
aplicado uma peça. Por que ele e o atropelado estavam no mesmo local naquela noite fria e
tempestuosa? O sinal, ah, verde, vermelho, não importa... Tudo aconteceu por acaso. “Foi um
acidente. O destino. E aconteceu comigo”.

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Passou um casal se apertando sob um guarda-chuva preto. Houve uma breve troca de olhares
desconfiados. Já era mais de meia-noite.
O costumeiro para ele e a família era sua chegada por volta das dez da noite. A essas horas, a
família toda já estava preocupada. Tinha que fazer alguma coisa. Resolveu, passada boa parte do
efeito do álcool, ligar para casa. Não... Era melhor ficar de bico calado. Resolveu voltar sem fazer
chafurdo. O atropelamento poderia não ter sido visto por ninguém ou, com aquela chuvarada,
quem estivesse presente não conseguiria ver a placa. Mas não custava nada chegar em casa de
táxi. Não mostrar o amasso no carro era importante. Deixaria o fusca numa praça próxima à
oficina de um velho conhecido dele; tomaria um táxi, e, ao chegar em casa, daria a desculpa de
que o carro estava no prego. Não parecia tão difícil.
Pôs, então, o plano em prática.
Quando chegava em casa, quase a uma da manhã, percebeu a rua tranqüila. Por um instante,
teve dúvidas sobre o ocorrido. “Pode ter sido um cachorro daqueles grandes, na vizinhança tem muitos
daqueles cachorrões”.
Ao entrar, dá de cara com nossa mãe – à época passeando, hospedada na casa do meu irmão
– que, em prantos, perguntou:
– Filho, filho, onde você estava?
– O carro quebrou.
– Meu Deus, você não sabe o que aconteceu... Saíram todos.
– Valha-me! O que houve?

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– Há umas duas horas, quando sua filhinha Gabriela voltava da casa de uma amiga, um carro
desgovernado a atropelou, não prestou socorro e a deixou, agonizante, no asfalto! Meu Deus, a
única netinha que eu tinha!”.
Ângelo, após a narrativa, disse:
– Sua esposa não podia ter mais filhos. Por isso adotou Diderot, um garoto que estava
abandonado em um orfanato. Depois do fato, realmente muito triste, deixou o vício da bebida e
se tornou um homem mais voltado para a família. O jovem hoje é o orgulho da casa. Formado
em coisas de computador, que não sei bem o que é.
– Computação, Ângelo – retrucou Maria.
– Isso mesmo! Está para ir aos Estados Unidos fazer um curso.
– Não há um mal que não traga um bem, doutora Heloísa. E sempre há casos piores do que
o da gente. O importante é saber que cumprimos a nossa parte no trato com aqueles que nos
cercam. Meu irmão falhou nisso, o que é grave. Sequer pôde reparar o erro porque a vida que vai
não tem mais volta. Já em seu caso não. Embora a vida não nos isente de sofrer com as mágoas
causadas pelos outros, ela cuida de nos apresentar, depois, aquilo que merecemos realmente. Não
posso esquecer de dizer que até hoje meu irmão sofre, com remorso. E deve ser muito, mas
muito doloroso. – Depois de um hiato, continuou:
– Não posso dizer o que você deve ou não fazer, minha filha. Mas lembre-se de que há
pessoas que precisam de uma sacudida da vida para poderem retomar o caminho. Talvez ele
esteja nessa situação e só a partir de então se torne uma pessoa melhor. Pena que tivesse que

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magoar alguém para aprender. Mas faz parte da caminhada, não é mesmo? Toque sua vida em
frente. Quem vive de passado é livro de história. E, além disso, a sua história pessoal é bonita
porque você é uma jovem de valor – e concluiu – não se desespere com as dificuldades, minha
jovem doutora. Lembre-se de que para se pegar impulso e melhor vencer um obstáculo, é preciso,
antes, dar ao menos um passo atrás.
O fazendeiro não parecia ser uma pessoa erudita. Mas por trás da singeleza daquele homem
do campo se revelava um mestre na cátedra da vida. Disse, certa vez, o Dalai Lama: “Lembre-se que
não conseguir o que você quer é algumas vezes um grande lance de sorte”.

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Na saída do salão de desembarque, familiares de Douglas o aguardavam, ansiosos. Há tempos


sem ver o filho, sua mãe o abraçou, saudosa. O pai, mais retraído, assistia feliz ao retorno de seu
pupilo. Azatto o olhou e, sorridentes, abraçaram-se também. Até Julinha, a irmã caçula, estava
presente. Juntos, foram para o automóvel de seu Eduardo, como era chamado o pai do rapaz.
– Filho, passe o final de semana lá em casa – rogou Eduardo.
– Claro, pai. Mas como está meu apartamento?
– Bem arrumado e limpo, graças à sua mãe – retrucou Doralice.
Durante o trajeto para a casa dos pais – que era razoavelmente longo, distante uns quarenta
minutos do aeroporto, uma vez que Eduardo e Doralice moravam em uma cidade de médio
porte perto da capital do Estado – deu para conversarem sobre as últimas novidades da família.
Eduardo era apaixonado por futebol e o primeiro comentário que fez foi a respeito de
Mauricinho, um garoto que residia próximo.

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– Filho, sabe Mauricinho, aquele garoto vizinho?


– Quem? Aquele bem danado, que adorava tirar jambos lá de casa?
– Sim, aquele mal-criado, mesmo – retrucou Doralice.
Continuou seu Eduardo:
– Vai jogar em um time grande. São Paulo ou Botafogo, comentam.
Azatto, olhando para a mãe, que nada gostava do garoto traquinas, disse, então:
– Só assim mamãe poderá dizer na televisão, um dia, que foi muito amiga dele.
Ela respondeu de pronto:
– Era só o que faltava... Seria mais fácil cobrar o pagamento de dois jarros que sei que foi ele
quem quebrou, caindo do jambeiro – todos riram dentro do automóvel.
A casa dos pais de Douglas ficava em um bairro classe média da cidade. Era encravada em
um terreno de boas proporções, com muitas fruteiras e um amplo gramado à frente da varanda.
Possuía três quatros e uma pequena piscina. Lá residiam seus pais e a irmã caçula, de apenas
quinze anos. Douglas era o primogênito de quatro irmãos. Eduardo Filho, vinte e cinco anos,
tornara-se servidor público na capital. João, que sempre teve tino para o comércio, tinha uma
pequena fábrica de camisetas.
Ao chegar em casa, uma surpresa: os amigos mais próximos e os parentes estavam todos
reunidos, esperando sua chegada. Juntos, comemoraram a volta de Douglas. Havia uns trinta, ao
todo.
Douglas era uma pessoa de fácil convívio e formou um grande cabedal de amigos. Mas dois

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deles se destacavam: Jacinto, ou “Jaça”, como era mais conhecido, cirurgião-dentista, sempre
bem-humorado, brincalhão e mulherengo, e Israel, mais introvertido, culto, tinha um bom caráter
e era muito solidário. Os três eram companhia constante desde a infância. Essa amizade conseguiu
vencer a barreira dos anos.
Israel fez questão de saudar o companheiro que partira para “o além-mar” e voltava titulado.
Todos escutaram as palavras exaltadas do discurso improvisado daquele gigante de quase dois
metros de altura. Empolgado – copo de uísque às mãos – Israel fez uma contagem histórica da
Península Ibérica, desde a invasão árabe até os dias atuais. Uns, tediosos, olhavam para os relógios,
após quase vinte minutos, perguntando-se se aquela ladainha teria fim ou não. Para o azar de
Israel e felicidade geral, começou a chover, momento em que Jacinto, impaciente e irônico, juntou
coro que dizia:
– Conclua! conclua! conclua!
Israel, intrigado com o temperamento do amigo, perguntou:
– Ô Jaça, você devia ser um pestinha quando era pequeno. Pare de perturbação, homem!
Jacinto, aproveitando a presença de Douglas e de outros amigos, chamou-os mais perto para
contar suas traquinagens:
– Caro amigo – olhando para Israel – meu pai ficou careca logo cedo, pois a cada aprontada
minha ele arrancava os heróicos fios de cabelo que ainda restavam da sua cabeleira de juventude.
Mas era exagero de um pai neurótico. O máximo que fiz na minha infância foi atear fogo ao meu
quarto. Só que as chamas se espalharam... A cozinha e o aquário da sala de estar ficaram

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praticamente intactos, apesar dos peixes terem sido literalmente cozidos – ouviram-se lamentos
e risos. – Percebi que, desde a infância, tive tendência para a pesquisa, para a ciência. Lembro-me
de uma vez em que coloquei em prática a grande descoberta de Isaac Newton: a lei da gravidade.
Joguei um gato do terceiro andar. Realmente o gato tem sete vidas, mas este já devia ter gastado
umas seis... – E agora, já se dirigindo a todos que formaram uma roda para ouvi-lo, continuou: –
eu era também muito motivado na arte futebolística. Podia não ser bom no ataque, mas na defesa
era garantido: só a bola passava por mim intacta. Passei um tempo tomando aulas de caratê com
um amigo para melhorar meu desempenho dentro de campo... Às vezes, me pergunto por que
escolhi odontologia e não um curso da área de engenharia. Era ótimo em desmontar os brinquedos
meus e dos amigos. Acho que nasci com esta qualidade. A natureza só não me deu a capacidade
de remontá-los... – todos caíram na gargalhada. Animado, prosseguiu, risonho, enquanto mais
pessoas se aglomeravam para ouvi-lo: – depois, pensei em ser piloto de corridas. Adorava assistir
a Speed Racer na TV. Mas desisti quando meu pai deixou, um dia, a chave do carro na ignição.
Resultado: um muro derrubado. Na rua, sempre fui um garoto magricela e medonho. Adorava
assustar as meninas quando saía com Manuela, minha rã de estimação que, por sinal, morreu de
forma avassaladora: foi atropelada pelo caminhão do lixo. Tragédias à parte, eu era muito querido
entre a garotada. Cheguei até a ser eleito, por méritos próprios, modéstia à parte, o “diabinho da
rua”, pela facilidade que tinha em chamar os colegas da vizinhança para compartilhar das
brincadeiras que inventava, tais como: ovo-no-ônibus, tica-e-cospe, lançamento de pedras que,
aliás, foi extinta após dois pára-brisas de automóvel e uma vidraça quebrados; e a melhor e mais

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emocionante de todas: o “safári”. Saímos à noitinha, na hora do jantar, armados de espingardas


de chumbinho, pulávamos o muro da casa de seu Manoel “Careca”, que criava galinhas soltas no
seu imenso quintal. Có-co-ricó e penas pra todo lado. Era demais! Chegamos a matar cinco
desses ferozes e destemidos animais em apenas uma investida! – o riso foi geral.
Jacinto realmente era a descontração em pessoa. E depois da engraçada história, dirigiu-se a
Douglas. Ao contrário de Israel, sem a mínima cerimônia, foi logo perguntando:
– Ei, amigo, e aquela espanholinha? Traçou? – Jaça sempre fora extrovertido e paquerador.
Tinha muitos namoricos e se gabava da ginástica que fazia para conseguir contornar as trapalhadas
que causava.
– Que é isso, Jaça, você não tem jeito mesmo, não é? Depois fica se perguntando porque leva
tantos foras...
– É porque não sou tão bonitão quanto você – disse, rindo.
– É... – falou pensativo – Passamos oito meses juntos. Os últimos dias foram inesquecíveis,
na costa sul da Espanha. Certa noite tomamos vinho e nos amamos ao relento, em uma praia
deserta próxima a Málaga, na região chamada “Costa del Sol”, no Mediterrâneo. Eu, ela, o vento,
a praia e a noite. Foi demais...
Nesse instante, recordou com toda a intensidade aquela alma grandiosa, aquela mulher graciosa,
e renovou o profundo sentimento que lhe tomava sempre que sentia Tereza em sua vida. Uma
vida de amor, de harmonia, de paz. Uma união que esperava ter continuidade pelo passar dos
anos. E completou:

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– Estou apaixonado, irmão. Pena que ela não pôde vir comigo.
– Por que não?
– Problemas profissionais. Precisamos, antes, encontrar um bom lugar para que ela possa
trabalhar aqui. Mas vai ser difícil porque já fez carreira dentro da empresa onde está e sabe que no
Brasil as coisas serão mais difíceis.
– Mas, para quem ama, vale o sacrifício – completou Jacinto.
Azatto se calou e baixou a cabeça. Jaça percebeu e foi logo dizendo:
– Mas não se preocupe. Eu tenho uma loiraça para lhe apresentar que é uma loucura. Foi
minha paciente. Que boquinha linda... Ma-da-le-na! – disse, balançando as mãos de dentista,
entusiasticamente. Douglas riu da já conhecida irreverência do velho amigo. Porém, sabia que
bom gosto não era o forte de Jacinto naquele quesito...
Quando o relógio se aproximava das duas da madrugada – todos já eufóricos – dona Doralice,
com seu jeito franco, foi logo falando:
– Está tudo muito bom, mas vamos fechar o “bar” porque os vizinhos vão reclamar do
barulho amanhã, e meu filho precisa descansar da viagem. – Todos reclamaram em vão.
Jacinto não perdeu a deixa e falou:
– Dona Doralice, concordo com a senhora, mas teremos que ouvir antes o discurso de
despedida de Israel. Ó Israel, venha aqui – chamou o amigo que se encontrava em outra roda. –
Todos estamos esperando suas palavras.
Mal chegou Israel, dona Doralice foi impagável:

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O escultor da alma

– De jeito nenhum, senão só iremos dormir de madrugada. – as risadas foram gerais. Israel
fez cara de que não tinha compreendido. Mais risos.
Todos se despediram. Ainda restavam umas vinte pessoas. Azatto agradeceu aos pais a surpresa.
– Foi um prazer, meu filho. Você merece muito mais – respondeu seu Eduardo.
Já passava das três horas da madrugada quando Douglas foi se deitar, extenuado, porém
contente com o retorno. Aproveitou para reconhecer seu antigo quarto. O mesmo da sua infância.
Sentiu o conforto do lar que deixara há mais de dez anos. A senhora Doralice ainda conservara na
parede alguns recortes colados em um quadro de avisos contendo fotos, entrevistas com Azatto,
um convite da formatura dele e outras recordações. Após a saída de Douglas, o cômodo havia se
transformado em quarto de hóspedes. Douglas, ao entrar e ver a cama limpinha, as cortinas bem
cuidadas, o piso brilhando, recordou sua infância e adolescência, e pensou: “Nada melhor do que
estar em casa, não é mesmo?”

***

Após o final de semana com a família, voltou para a metrópole onde trabalhava. A viagem
durou apenas quarenta minutos, uma vez que a cidade onde seus pais moravam era considerada
zona metropolitana. Seu automóvel ficara com os pais, que o ligavam semanalmente, pelo menos,
e saíam vez ou outra.

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O escultor da alma

Antes de ter seu próprio apartamento, durante dois anos Azatto fazia aquele trajeto diariamente.
Não estranhou o engarrafamento no caminho, já que o trânsito nas apertadas e centenárias ruas
do centro de Madri também não era nenhuma maravilha.
Na empresa, o doutor Azatto – como era chamado – lidava diariamente com os direitos
internacional privado, alfandegário, tributário e comercial, atuando como consultor jurídico de
uma grande multinacional. Mas não iria trabalhar imediatamente. Necessitava de uns três dias
para reorganizar as tarefas pessoais pendentes.
Ao chegar, e antes de ir para o seu lar, passou em um supermercado e fez compras, uma vez
que a sua dispensa estava vazia. O que havia de perecível antes da viagem foi dado à arrumadeira
e, nas três poucas e rápidas vezes que esteve no Brasil durante o curso, ficou na casa dos pais
porque o apartamento se encontrava bastante empoeirado.
Seu lar era bastante confortável e amplo, incrustado em área nobre. Gostava da altura, décimo-
oitavo andar, o que lhe conferia uma excelente vista da cidade.
Sua segunda paixão eram os vinhos. Não se considerava enólogo, mas apreciava a bebida.
“O vinho esquenta a alma. É a bebida preferida dos poetas”, costumava dizer.
A poesia era um outro caso de amor em sua vida. Tinha livros publicados e uma grande
quantidade de versos inéditos. Por isso andava sempre com um bloco de notas à vista.
E foi pensando no bloco de notas que revistou sua valise em busca da poesia feita durante o
vôo. E pensou: “Devo tê-lo deixado sobre a poltrona na hora da saída. É uma pena ter perdido
aquelas poesias. A que fiz no vôo era triste, mas verdadeira”.

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O escultor da alma

Nem desarrumou as malas. Lembrou-se de Tereza. O que estaria fazendo àquela hora? Os
relógios já haviam batido vinte e duas horas, meia noite em Madri. Pensava nela. Mal se falaram
após sua chegada. No único contato que tiveram após o retorno ao País, ocorrido naquela manhã,
notou que ela parecia triste e distante ao telefone. Não era para menos. Contudo, valia a pena
tentar um emprego no Brasil. Tereza precisava dar uma chance ao tempo para que as coisas
dessem certo. Ambos mereciam isso. Com o currículo dela, algo de bom iria aparecer e Douglas
tinha esperanças, acima de tudo. Já ela parecia menos confiante. Compreensível, uma vez que ele
voltava ao seu ambiente natural e ela teria de largar tudo, ser a grande sacrificada.
Certa vez, Tereza questionou por que ele não ficava na Espanha. Então Douglas contou do
acordo que havia feito com a empresa para poder fazer o mestrado sem perder o vínculo e
receber seus salários. Um ano é um prazo longo. Muita coisa pode acontecer e embora tivesse, à
época, uma reserva para realizar o sonho da qualificação profissional, topou aceitar a proposta. A
companhia custearia suas despesas durante todo o período do mestrado, lhe daria três viagens de
ida e volta no período, e ele iria recebendo o salário básico. Porém, já que não estaria trabalhando
normalmente, não faria jus aos bônus de produtividade e nem teria condições de acompanhar os
processos que mantinha no Brasil de forma extraordinária. Eram aqueles que envolviam casos
judiciais esparsos, geralmente ações individuais relacionadas à vida privada de empregados da
empresa e amigos: questões de família, consumidor, trânsito, etc. Em vias gerais, teve uma redução
de mais de um quarto nos seus ganhos mensais totais, o que era, entretanto, perfeitamente
assimilável para manter um bom padrão de vida no continente europeu.

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O escultor da alma

Todavia, no contrato celebrado com a corporação, salvo ocorrência de força maior, não
poderia deixar a empresa em menos de três anos após a defesa da tese, sob pena de incorrer em
uma multa astronômica, que ultrapassava o equivalente a dois anos de remuneração. Também em
contrapartida, faria alguns trabalhos extras nesse tempo, em áreas afins, dentro da Europa. Era o
mínimo exigido pelo investimento feito no Diretor da Assessoria Jurídica Internacional e
Extraordinária da empresa.
Além disso, explicou que mesmo se resolvesse rescindir o contrato e pagar a multa equivalente
a cento e sessenta mil dólares, sequer poderia advogar porque, ao contrário dos cursos tecnológicos,
seu diploma brasileiro não conferiria poderes para atuar como causídico na nação ibérica, ainda
mais sem conhecer a legislação interna como deveria e precisaria. Teria de começar do zero, fazer
um novo curso de direito, talvez. Já no caso dela seria diferente. Os princípios da física e das
correntes elétricas são imutáveis. O que sofreria diferenças seria apenas a estrutura elétrica das
plantas de tensão de cada país, se muito. Naquele instante ela se calou e seus olhos transpassaram
um ar pensativo.
Possuía em seu apartamento uma pequena adega, que ocupava parte da dispensa. Abriu um
Salton Classic, 1999, bom vinho e de preço acessível, ideal para ocasiões como aquela. Era elaborado
com uvas cabernet sauvignon. Tal vinho é rico em tanino, uma substância da casca da fruta, o que
lhe confere um sabor adstringente, ideal para a ocasião. Foi seu jantar, juntamente com umas
fatias de queijo brie, um dos seus preferidos.
Ao sabor da bebida, recordou das vezes que ensinou a Tereza os princípios da enologia, a

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O escultor da alma

arte de estudar e entender os vinhos e suas conformações. Com ele, aprendeu ela que o enólogo
não bebe até ficar bêbado porque a essência desta arte está em conservar a lucidez para apreciar
as variantes delicadas do gosto, do cheiro, da cor e da textura de cada bebida. Enumerou, ainda,
as principais uvas que originavam vinhos brancos, que para ele seriam as sauvignon blanc, chardonay
e gewürztraminer. As sauvignon blanc, também de origem francesa, mais precisamente Bordeaux,
dão origem a vinhos de acidez elevada e secos, porém bastante refrescantes. Já as uvas chardonay
– ensinou Douglas –, são utilizadas na elaboração dos melhores vinhos brancos existentes no
mundo. Originárias da região da Borgonha, na França, produzem vinho com um paladar
predominantemente seco. Com elas são fabricados, ainda, os famosos espumantes da região da
Champagne. As uvas gewürztraminer, de possível origem italiana, apesar do nome, elaboram
vinhos encorpados, com teor etílico alto e pouquíssima acidez. Podem ser secos ou doces, desde
que, neste caso, sejam colhidas mais maduras.
Mas eram as uvas tintas que originavam os vinhos preferidos de Douglas. Entre elas estavam
a cabernet sauvignon, considerada por muitos a rainha das uvas tintas pela qualidade. Sua origem
é a mesma da maioria das uvas de qualidade: Bordeaux, França. As uvas merlot dão origem a
vinhos com acidez reduzida. São frutas que se destinam a bebidas encorpadas, que com o passar
do tempo ficam mais suaves. Shiraz é outro tipo de uvas tintas. Remontam ao vale do Rhône,
França. Vinhos produzidos com elas apresentam uma coloração mais escura, variando o aroma
dos tânicos médios aos muito tânicos, com elevado teor alcoólico.
Sentou ao computador e deixou sua mente divagar, tomando-se pela força indescritível da

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O escultor da alma

poesia. Suas mãos saltavam entre as peças do teclado. E escreveu poemas como quem se deleitava
em uma música ao piano. Naquela noite, o poeta ouviu a melodia de cada verso escrito, sua
cadência, seu compasso, como se estivesse compondo uma verdadeira canção de paixão; como se
as notas musicais fossem, nada mais, nada menos, que as palavras e a obra musical, o poema.
Lembrou-se novamente de Tereza. Não fizera muito, estiveram juntos em uma noite
inesquecível na “Costa del Sol”, que merecia ser eternizada em poesia.
E daquele instante nasceram versos como uma rosa rubra que desabrocha, regada e iluminada
pelos mais verdadeiros sentimentos de paixão, saudade e arrebatamento:

AQUELA NOITE
Aquela noite não esqueço...
Ficamos juntos em frente ao mar,
Enquanto a lua, com apreço,
No céu pairava a nos iluminar.

O vento sussurrava baixinho


Como se nos quisesse implorar
Para que ficássemos juntinhos,
Olhando as estrelas a brilhar.

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O escultor da alma

Uma estrela-cadente cruzou


O céu como um risco brilhante.
Parecia que a noite a mandou
Só para nós, naquele instante.

Seu balé de ondas o mar dançava


Pelo palco de areia branca e fina.
Escalava seu leito... E cansava...
Deixando-nos sua espuma albina.

As gaivotas, que chegavam,


Voavam rente à beira-mar
E ao sol boas-vindas davam,
O qual logo iria despontar...

A areia era nosso leito...


Onde a natureza iria mostrar
Que o amor acontece de um jeito
Que não há palavras para explicar...

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O escultor da alma

Ao irmos embora, de madrugada,


Uma leve orvalhada caía,
Como se a praia, emocionada,
Chorando se despedia...

Dentro em pouco, do outro lado do oceano, os versos seriam recebidos por Tereza em sua
caixa de correio eletrônico.
Douglas pensou: “Ah, Bebê, se eu pudesse verter minha angústia em suor, correria o mundo
para encontrar teu colo e dormir o sono invejável dos que são amados”. Porém, para sua tristeza,
o pobre Azatto adormeceu sozinho, abandonado e distante do seu amor naquela noite...

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O escultor da alma

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Bela colocou uma roupa leve e saiu para passear, levando o pequeno Snoopy. Estava
particularmente mais bela naquela tarde de um domingo. Por que será que certas mulheres quando
sérias ou retraídas apresentam um ar ainda mais especial e envolvente?
Seu distanciamento aparente de tudo era um charme. Caminhava charmosamente, de camiseta
e short, sem esquecer os óculos escuros. Acompanhada do cachorrinho, andou pelas veredas do
parque da cidade. Gostava daquele passeio, pois era um momento de distração e alheiamento aos
acontecimentos mais recentes em sua vida. Snoopy estava alegre. Era a primeira vez que saía a
um lugar tão amplo. Tudo era novidade: as cores, os cheiros, o movimento de pessoas novas,
adultas e idosas. Crianças passeavam de bicicleta. Havia jovens correndo de patins nas largas
pistas asfaltadas, margeadas por gramados, jardins e clareiras do bosque. O ambiente transmitia
paz. Ouviam-se, ao longe, cantos de pássaros silvestres, vindo das encostas até aquele oásis
incrustado na grande cidade.

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O escultor da alma

Havia um velho tocando acordeão, gente vendendo bebidas isotônicas para atletas. Outros,
óculos, bonés e sombrinhas. Mas tudo feito de forma discreta, de modo a não perturbar o silêncio
e a individualidade dos que por lá passeavam. Era como um código de ética. E Heloísa precisava
disso.
Em sua cintura, pendurado, havia um disc-man, e do headfone ela ouvia uma boa trilha sonora.
Se a morte do pai lhe doía, ainda mais recente era o rompimento com Mariano. E a todo
instante recordava aquele que tinha sido seu grande amor por quase quatro anos. Ora era um
casal passando, ora alguém fisicamente parecido. Aquele local não lembrava em nada seu pai, até
porque era avesso a exercícios físicos. Os momentos que mais o recordavam se passavam em
casa, e por isso mais um motivo para passar seu tempo livre fora.
Tinha convidado Patrícia para acompanhá-la. Após os problemas com Dália, Heloísa se
aproximou mais da amiga e chegaram a ir a outros locais juntas. Mas a companheira não pôde ir
devido a uma viagem inesperada. Então, restava passear sozinha no parque. Ela não era de muitos
amigos, por ser naturalmente tímida. Mas assim como tudo que fazia, suas amizades eram intensas.
A mágoa de Dália resistia e lhe causava desconforto lembrá-la, ao contrário do que acontecia
com Mariano, que trazia ira, mas saudade, também. E esse dilema a perseguia.
Não poupara Mariano aos mais chegados. Contava a história. Como perdoá-lo depois de
uma desfeita dessa? Seria melhor que todos soubessem para que conhecessem o que ele havia
dado em troca da confiança, amor e dedicação dela. E como é perigoso o coração feminino
ferido. Teve vontade de dar o troco na mesma moeda: uma das companhias constantes dele já

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O escultor da alma

havia se insinuado para ela quando ainda namoravam. Porém, não teve coragem de contar ao
namorado com medo de estragar a amizade com Fábio. Era um jovem bonito, de olhos azuis
penetrantes e que morava próximo, em um outro condomínio.
E eis que exatamente o rapaz lhe aparece naquele final de tarde. Estava correndo em sentido
contrário e olhou para Bela como um lobo, ansioso para provar aqueles lábios tão belos que o
cumprimentaram discretamente em um quase inaudível “oi” e descobrir os encantos por trás
daqueles óculos escuros. Ele acenou e acelerou o passo para, na próxima volta, parar um pouco e
atraí-la. Fábio era um bon vivant, oriundo de família rica, gostava de badalações e adorava fazer
charminho. Heloísa não podia negar que, fisicamente, ele era atraente. Alto, forte, de papo
envolvente, sempre sorridente, era alvo constante de comentários das amigas desde a época de
colégio. Fazia o tipo conquistador. Por outro lado, ele não iria perder a oportunidade de se aproximar
de uma gatinha sozinha e carente de afeto, ainda mais quando deixada de forma tão abrupta. Não
a deixaria escapar. Tinha que ficar com ela, pelo menos...
E se aproximou. Bela, por trás das lentes, disfarçou não ver a aproximação. Ele, experiente,
percebeu e foi logo elogiando:
– Obrigado, Heloísa.
– Oi, Fábio. Mas obrigado por quê?
– Ver você me faz sentir bem. Está cada dia mais encantadora.
– Você não sabe mentir.
– Realmente não sei. Só falo a verdade. E essa fofurinha, como se chama?

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O escultor da alma

– Snoopy.
E a conversa rendeu uns vinte minutos. Seus olhos azuis, insistentemente, encaravam a jovem.
Sentia-se estranhamente encabulada, talvez porque pensasse que ele pudesse extrair do seu olhar
que havia imaginado um plano de vingança envolvendo-o. Como já era de se esperar, Fábio
convidou-a para sair. A resposta foi negativa. Anoitecia e o parque estava ficando deserto. Fábio
insistiu e se aproximou, aos poucos, sempre a encarando. Heloísa recuou. Nova aproximação. O
rapaz não tinha limites e achava que qualquer uma cederia aos seus floreios e que não seria ela a
resistir. Tomá-la-ia em seus braços ali mesmo, se pudesse. Em meio à conversa, que seguia
descontraída, resolveu, inopinadamente, roubar um beijo de Bela. Ela, contrafeita, tentou evitar
aquele ato desmedido de Fábio. Mas foi em vão. O cãozinho, inutilmente, latia, tentando
compreender o que se passava. Entre surpresa e indignada com a audácia de Fábio, afastou-se e
o viu, em fração de segundos, caído ao chão, após um barulho surdo. Fábio gemeu, com os
sentidos abalados pela violência do soco que sofrera no rosto. Passaria uns dias com hematomas,
resultado de sua arrogância e insensibilidade. Lá estava Mariano, que a salvara daquela criatura
grotesca. Ela chorou com aquilo tudo. Mariano ainda esbofeteou e chutou o adversário novamente,
que ficou se contorcendo de dor no chão. Era o que podia fazer naquele instante. E nada mais
merecido para o desmedido galã. Apenas um senhor idoso assistiu a tudo e compreendeu os
fatos. Ninguém interveio.
– Você está bem?
Heloísa silenciou ao encarar o ex-namorado. Seu coração disparou. Teve ânsia de desmaio e

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O escultor da alma

a vista escureceu, repentinamente. As pernas ainda lhe faltaram por um instante e balançou.
Estava tonta.
– Você está bem, Bela?
– Acho que sim, obrigada... E começou a chorar.
– Vamos. Vou deixá-la em casa.
– Não... Não precisa... É perto.
– Eu sei que é perto. Mas aquele imbecil pode voltar e tentar de novo. Não vou deixar você
voltar sozinha.
Entre contrariada e encabulada, Heloísa quis insistir em voltar sozinha para casa. Mariano
até disse que entendia que ela não quisesse voltar no seu carro. Mas a acompanharia ao lado, com
o veículo em movimento, enquanto ela caminhasse pela calçada até chegar em casa. E assim foi
feito.
Quando chegou no meio do trajeto, carente e comovida com o ato de bravura do antigo
namorado, fez sinal de que iria entrar no veículo. Ele abriu a porta.
– E se Snoopy fizer pipi no banco do carro? – disse, preocupada com as travessuras do
cachorrinho.
– Bela, por você dou até a minha vida. Quanto mais uma molhadinha no assento. Você vale
tanto para mim.
– Os olhos da jovem brilharam naquele instante. Era como se aquele sentimento jogado pela
janela tivesse conseguido retornar, ainda que em parte. Mas a confusão agora é que se fazia

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O escultor da alma

presente em seu coração e mente. Teve o impulso de beijá-lo. Não era fácil. E pensava: “Não
foram quatro dias. Foram quatro anos”. Mariano fora seu primeiro homem, aquele que descortinou
sua intimidade. Para nenhum outro se entregara a não ser a ele. Estremeceu quando o jovem a
pegou pelo ombro em sinal de defesa após a agressão de Fábio. Reconheceu o contato e o calor
de Mariano, distinto de qualquer outro. Até o perfume que usava, já característico dele.
Quando ele a deixou em casa não explicou nada. E nem era a hora. Mas há dias ansiava
chegar perto daquela que fora o grande amor perdido e que lhe corroía o coração, repleto de
desgosto e saudade. Não estivera no parque por acaso. Sempre que podia, seguia-a com discrição
para, ao menos, vê-la.
Ela sorriu timidamente e até pensou em lhe dar um beijo no rosto. Mas as lembranças foram
mais fortes. Bateu a porta com força. A mesma pela qual Dália saíra, airosa, um mês antes.
Havia dias em que sua mãe falava em Mariano, com saudades. Até contou que Wilson a traíra
durante o casamento, dois anos depois que contraíram núpcias. Após uns meses de crise, e diversos
pedidos de perdão do marido, dona Raquel o perdoou e nunca mais teve notícias de novo adultério.
– Todo mundo é falível, minha filha. Mas o que vale é o sentimento – disse, tentando minorar
a situação.
A mãe de Mariano chegou a telefonar para Bela e lamentar o ocorrido, reconhecendo o erro
do filho e apoiando Heloísa na decisão que tinha tomado. Mas reconheceu que ele andava muito
abatido e retraído. Ficava no quarto correndo na esteira ou assistindo a filmes. Mal saía à noite.
Tinha até vergonha de tocar no assunto com pessoas próximas. Ele dizia sempre: –pago pelo

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O escultor da alma

erro que cometi. Perdi meu grande amor por excesso de vaidade. Quis me sentir homem
agindo como menino. – E teve mesmo que arcar com sérias conseqüências. Só quem já passou
pelo peso desta dor sabe o que ela representa.
Magnólia também quis apaziguar as coisas. Certa tarde, foi conversar com a irmã. O
acontecimento do parque havia ocorrido há poucos dias. Mariano estivera com a jovem senhora
pedindo uma força para que pudesse voltar com a irmã. Sem que Bela soubesse, ele chegou a
chorar copiosamente nos braços da antiga cunhada. Isso a comoveu. Sabia que quando um homem
como ele chora, é porque se despiu de todo o orgulho que tinha. Ela, então, fez sua parte:
– Irmãzinha, é preciso encarar as circunstâncias. Mariano foi induzido por Dália. Ela o seduziu
e ofereceu-se a ele. Pelo que falou, só ocorreu uma vez.
– Não acredito. É mentira. Há muito tempo que vinham saindo juntos.
– E como você sabe disso?
– Sabendo, ora.
– Mais alguém disse alguma coisa.
– Não. Mas nem era preciso. Dava pra notar que o esquema já era velho. Você não viu como
estavam confiantes? É típico de caso antigo. E eu, coitada, aqui ralando para dar um futuro
melhor para os dois.
– Deixe de ser geniosa, Heloísa! Dê uma nova chance. Você sabia que há três coisas que não
voltam atrás? Flecha lançada, palavra pronunciada e oportunidade perdida. Dê uma chance não a
ele, mas aos dois. Você ainda o ama, não é mesmo?

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O escultor da alma

– De que adianta amar um crápula?


– Pessoas boas, às vezes, fazem coisas ruins. Ele não pode ter mudado assim de uma hora
para outra. Não faz muito tempo que você foi comigo comprar o vestido de noiva e pediu que o
tratasse com cuidado para quando você fosse usá-lo.
– É. Só que naquele tempo eu ainda não sabia do futuro que me aguardava.
– O futuro? Seu futuro ainda nem começou. Não o destrua antes do tempo por falta de
oportunidade para as coisas acontecerem.
Bela se calou, pensativa, em dúvida.
Estava certo Algel Gavinet quando disse: “O horizonte está nos olhos e não na realidade”.

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Douglas voltou ao trabalho satisfeito. Trouxe novas experiências e, durante o tempo do


mestrado, auxiliou a empresa fazendo operações de divulgação e assessoramento técnico. Não
era bem a área em que estava acostumado a atuar, mas tinha sido a forma de dar contrapartida ao
investimento feito nele pela instituição, uma vez que não fora dispensado. Agora, mais qualificado
e com os contatos feitos na Europa, poderia avançar nos seus projetos dentro do conglomerado,
prestar melhor sua assistência e participar de processos de fusão que estavam por acontecer no
Brasil.
Seu grupo de trabalho era composto de dezenove pessoas, entre advogados, secretárias e
estagiários. Havia uma área de assessoramento jurídico interno e outra de trato com o mercado
externo e causas complexas. Na primeira, ficavam as questões de ordem trabalhista, comercial e
de consumo. Na outra, as operações de natureza internacional e as que envolvessem grandes
somas. Era esse o setor liderado por Douglas Azatto.

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– Seja novamente bem vindo, doutor Azatto. Como foi lá na Espanha? Como fez com
aquele novo amor que arranjou? Ao menos assim ficarei mais descansada daquelas impertinentes
que ligavam sem parar – disse a doutora Otília, coordenadora administrativa do setor jurídico.
Formada em Administração de Empresas, tratava da parte extrajudicial e administrativa da área,
dando o aporte necessário e integrando o departamento com as demais instâncias do conglomerado.
Era uma senhora de meia idade, pele alvíssima, baixa, gordinha, divertida e autêntica. Azatto
tinha completa confiança nela.
A senhora, por outro lado, nutria um carinho quase maternal pelo chefe e sempre se preocupava
com a saúde dele. Era uma relação interessante. Não raras vezes, era consultada por Douglas e
dava idéias inovadoras. Já era avó três vezes. E a doutora Otília não estava lá há tantos anos por
acaso: possuía grande experiência profissional, cultura, e tinha um sexto sentido bastante aguçado,
muitas vezes imprescindível no jogo implacável dos negócios.
– Pois é, Otília. Mas acredita que ela me descartou? Não quis vir comigo. Preferiu ficar lá.
Estou ainda tentando conseguir um bom emprego na área de atuação dela, engenharia elétrica.
– Meu Deus! Pode interná-la – disse quase sussurrando, enquanto olhava para os lados
verificando se ninguém mais a escutaria. – Acho que ela estava mesmo é com medo da concorrência
aqui. Não vá ficar triste, hein? Você sabe que há candidatas sobrando. O sol que escalda o deserto
é o mesmo que anima o bosque. Quando souberem que você está de volta, vou ficar com a mão
doendo de anotar recados delas. Mas, falando sério, doutor Azatto, tenha paciência. O que tiver
de ser, será. Lembrei-me de um pensamento que tenho guardado há muito, e que me serviu de

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lição. E não esqueça que já sou avó, viu? Certa vez, disse La Rochefoucaud que “A ausência
enfraquece as paixões medíocres e inflama as grandes paixões, como o vento apaga a chama de
uma vela e atiça as de uma fogueira”. Que tal dar tempo ao tempo?
Douglas agradeceu:
– É verdade, obrigado – após uma pausa, perguntou, colocando a mão sobre o ombro da
senhora e conduzindo-a respeitosamente pelo corredor em direção às alas do departamento. –
Mas, diga-me, como estão as coisas por aqui? – e saíram de birô em birô, vendo as novidades e
conhecendo as aquisições humanas do departamento, feitas no período de sua ausência e
apresentadas pela cordata senhora.
Em seu tempo livre, o doutor Azatto sempre ligava para os locais onde os currículos tinham
sido deixados com vistas a saber de possíveis novidades. Mas havia uma oferta considerável de
profissionais brasileiros na área. Não seria fácil. Educadamente, até seus head-hunters conhecidos
desfaleciam as chances de colocação da jovem espanhola em um cargo promissor. Mas a tenacidade
estava na alma daquele jurista respeitado, executivo de sucesso que, acima de tudo, sentia e enxergava
o amor sob a inspiração e as cores vivas da poesia. Não podia desistir. Lutaria até o fim pela
conquista de seus sonhos, pelo seu amor que por ora se encontrava distante. Lutaria até receber
os beijos, acima de tudo merecidos, da vitória.
Sempre que entrava em contato com Tereza passava as novidades e a estimulava a continuar
com esperanças. Ela, por vezes, chorava de saudades. Num dos últimos contatos, programou
uma viagem ao Brasil para dali a duas semanas. Era a grande oportunidade que Azatto estava

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esperando para mostrar-lhe o Brasil, solidificando a vontade de vir aqui residir.


Em pouco tempo, deu uma reformada no apartamento com novas cores, todas bem escolhidas
com a ajuda de profissionais. Instalou um home-theater e renovou a cozinha. Ademais, organizou
uma agenda de passeios pela cidade, onde mostraria os locais mais agradáveis, melhores restaurantes
e centros de compras. Se ela quisesse, compraria uma boa casa em um condomínio fechado para
que pudessem ter uma melhor qualidade de vida. – Não há o impossível para quem ama. Tereza
vai adorar a cidade e concordar em ficar no Brasil – falou consigo mesmo. Programou, ainda,
uma saída com os amigos para que ela os pudesse conhecer, bem como os pais dele.
Para sua surpresa, na mesma semana recebe uma ligação de Sérgio, head-hunter amigo. A
função de tal profissional – cujo termo significa caçador de cabeças, em inglês – é a de buscar
executivos qualificados para exercerem funções de destaque em empresa de médio e grande
porte.
– Azatto, tudo bem? É o Sérgio.
– Oi, amigo. Como você está?
– Tudo ótimo. Tenho uma excelente notícia para você. A Maurach & Brian, multinacional da
área de consultoria, gostou do currículo de Tereza Cortez, sua namorada. Querem uma entrevista
urgente. Há como providenciarmos isso?
– Que notícia boa, Sérgio! É o destino conspirando a nosso favor. Digo isso porque,
exatamente nesse instante, ela está tomando os preparativos para vir me visitar aqui no Brasil.
Está tudo se encaixando como pretendíamos.

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O escultor da alma

– O universo conspira em favor dos que amam.


– É verdade – respondeu, feliz com a boa nova.
Conversaram sobre assuntos pessoais. Sérgio era colega ainda da época de colégio, daquelas
amizades antigas e sólidas e, por algumas vezes, ou foi cliente de Douglas, quando este ainda
advogava isoladamente, ou os seus parentes o foram. Azatto nunca quis cobrar nada pelos seus
honorários, e na hora de pagá-los era uma confusão. Nunca aceitou receber. Terminava a conta
em um jantar ou numa viagem que faziam juntos, paga com muita satisfação e gratidão, apesar
das reclamações do amigo advogado. Devia-lhe, portanto. E estava disposto a retribuir. Douglas
sabia, apesar de ter ficado velado, o quanto era difícil conseguir um emprego com a faixa de
salário esperada pela namorada, ainda mais em sendo estrangeira.
Conforme tinham combinado, foi passado um e-mail com as especificações da empresa para
Douglas. E ele cuidou de repassá-lo a Tereza, efusivamente. Tudo estava caminhando a passos
largos, finalmente.
Tereza se apressou em organizar sua agenda para poder visitar Azatto. Não teve problemas
na empresa. Seus pais, embora tivessem conhecido Douglas e gostado dele, não ficaram contentes
com a idéia de a filha residir no exterior. Mas o que se haveria de fazer? Ela era maior e capaz.
Sabia onde seus passos iriam dar.
Enfim, chegou o dia. Foi difícil para o jovem trabalhar naquela tarde. Houve uma reunião no
turno da manhã com empresários chineses que estavam tendo problemas por causa da cobrança
de taxas alfandegárias na importação de componentes para televisores. Era um caso no qual a ele

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O escultor da alma

foi incumbida a tarefa de encontrar a saída legal para a resolução do problema, afinal de contas
envolvia uma operação de oito milhões de dólares. Mas, para Douglas, aquilo não tinha tanto
valor porque não se pode mensurar os sentimentos. E pensou: “como todas as outras coisas se
tornam pequenas e inúteis quando confrontadas com aquilo que nos é realmente importante,
pois nunca haverá preço capaz de aquilatar os valores da honra, do amor ou da liberdade”.
Após dar início à resolução do problema alfandegário, operou as demais pendências existentes
e então, depois da conclusão delas, dirigiu-se ao aeroporto. Sempre ia para a empresa com bons
ternos e gravatas. Fazia parte do staff. Porém, naquele dia, havia saído para o trabalho
impecavelmente vestido com um terno de cor salmão, última moda, feito sob encomenda. Até os
sapatos de cromo alemão foram escolhidos a dedo para a ocasião, bem como a camisa e a gravata
italianas. Dentro do departamento onde trabalhava, viam-se as pessoas mais próximas olharem
para ele no momento em que saía para apanhar sua amada, reconhecendo em sua fisionomia a
felicidade.
O vôo só iria chegar às 19 horas, porém foi com certa antecedência porque, em uma metrópole,
pode-se ficar no trânsito por duas horas constantemente. Assim, antes mesmo do planejado, já
estava à espera no saguão do aeroporto internacional.
O vôo 723 provinha de Paris, com escalas em Madri e Lisboa. Era uma viagem longa e
Tereza chegaria cansada. Por via das dúvidas, resolveu reservar dois lugares no Abacco, caso ela
quisesse jantar uma comida leve e saborosa.
O vôo atrasou quase uma hora. Já lera os principais noticiários jornalísticos. Finalmente, foi

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O escultor da alma

anunciada a chegada da aeronave.


E no salão de desembarque aguardou a chegada de Tereza. Cada mulher que aparecia ao
longe, em meio aos carrinhos de bagagem e às esteiras rolantes lhe confundia. Será a de azul? Ou
aquela lá por trás?
Passados dez minutos, Tereza não saiu da sala de desembarque. Teriam ocorrido problemas
com a bagagem? Esperava que não, uma vez que já ficara sem suas malas durante dois dias devido
a um extravio. Foram mandadas para a África do Sul, ao invés dos Estados Unidos. Teve, então,
que comprar, com urgência, roupas e até um terno. A companhia aérea pagou as despesas, mas o
aborrecimento tinha sido grande.
Poderia ter ficado na amostragem da Alfândega. A Receita e a Polícia Federal fazem fiscalização
por amostragem na chegada de passageiros para ver se está ocorrendo descaminho, que é a
entrada em nosso território de produto permitido mas sem o pagamento dos impostos de
importação, ou o contrabando, a entrada de produtos ilegais, como armamento pesado. Porém,
passado um tempo, perguntou se tinha ocorrido algum problema com passageiros a um funcionário
da alfândega que atravessava a porta de desembarque naquele instante:
– Nenhum nesse vôo, senhor – informou o inspetor.
Resolveu, então, dirigir-se ao guichê da companhia aérea.
– Senhor, houve um problema: overbooking. Hoje é feriado na Espanha e por isso o vôo lotou.
Infelizmente, sua noiva não embarcou nele.
O overbooking é uma prática condenável, utilizada por algumas companhias aéreas. Como as

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O escultor da alma

aeronaves transportam mais de uma centena de pessoas, é comum que sempre ocorram casos de
impossibilidade de voar. Como visam o lucro acima de tudo, esperando a desistências de uma
parte dos passageiros, seja porque não puderam viajar ou se atrasaram, vendem mais bilhetes do
que o número de assentos disponíveis. Quando a desistência é pequena então ocorre o overbooking,
ou estouro do livro de reservas. Sempre saem passageiros prejudicados por isso, o que ocasiona,
inclusive, responsabilização civil da companhia, para ressarcimento de danos de quem não
embarcou.
– Não é possível. Que falta de respeito. E pensar que eu fiz das tripas coração para estar hoje
com antecedência.
– Mas ela pode estar vindo no próximo vôo de uma outra companhia, senhor. Na escala de
overbooking para esse vôo nos utilizamos dela. Deixe-me consultá-la. Só um minuto, por favor.
– Pois não.
Após entrar em contato com a empresa coligada naquela operação, retornou com uma notícia
esclarecedora:
– Senhor, fui informada de que automaticamente a reserva dela foi transferida para o vôo de
que lhe falei. Queira anotar, por gentileza.
– Sim.
– É o de número... 790. Porém, só chegará às vinte e duas horas. Tenha uma boa noite. Mais
algum questionamento?
– Não, obrigado.

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O escultor da alma

As horas se passaram arrastadas. Tomou um café, comprou uma revista e esperou. Até lavou
o rosto porque o cansaço do dia chegara. Há muito já havia cancelado a reserva no Abacco.
Jantariam em qualquer lugar, ou comeriam algo em casa mesmo.
Outro atraso. Às dez e meia da noite, os passageiros começaram a desembarcar. Em cada
rosto desconhecido que passava, procurava os traços de Tereza. Às vezes, assustava-se e o coração
disparava, em vão, pensando ser ela. Mas estava enganado... E quem já não passou por uma
emoção dessas pelo menos uma vez na vida é porque nunca amou.
Porém, depois que os passageiros desembarcaram e apanharam as malas, nada de Tereza.
Não era possível aquilo. Voltou ao guichê e foi conduzido ao da outra companhia. Estava vazio.
Não havia mais vôos dela naquela madrugada que se aproximava.
Dentro em pouco ainda se via o rapaz, cabisbaixo, esperando o seu amor que deveria ter
embarcado e partido no vôo 723 proveniente de Paris, com escalas em Madri e Lisboa, porém
que não aparecera no desembarque...
Ao chegar em casa, decepcionado, teve por primeiro impulso ligar para a Espanha. Teria
ocorrido uma tragédia? Um acidente? Algo com um familiar? Meu Deus, o que aconteceu? Porém,
ao pegar o fone, viu um sinal na secretária eletrônica. Havia recados.
Tentou ligar antes. Mas nada. Nem na casa dela, nem no celular.
Aflito, restou escutar os recados. Passou o primeiro que tinha sido enviado por um dos
pintores que não concluíra o serviço em tempo.
Para sua alegria, ouviu a voz de Tereza no segundo. Estava bem, pensou. Mas o que teria

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O escultor da alma

acontecido?
– Douglas. Perdoe-me a fraqueza. Não pude embarcar. As coisas estão difíceis na minha
cabeça. Sempre me considerei independente, mas sair da Espanha, nunca cogitei. Não te disse
antes, mas a empresa me fez uma contraproposta para não abandoná-la. Tenho um emprego que
me realiza, estou perto de todos os meus amigos e gosto do país onde nasci e vivo. Não sei se foi
devido à minha criação no campo, porém aprendi... Biiip. Acabou o tempo.
Imediatamente, Douglas passou para a próxima mensagem.
– Sou eu de novo. É difícil. Não é por causa do sentimento por você. Eu te amo. Mas é pelo
medo de não dar certo e sofrer por isso. E o pior é que me encontro em uma estrada que se divide
em ruas outras, uma repleta de cacos de vidro, e a outra de espinhos. Sofro por não ter coragem
de partir. Sofro por não poder estar com você. E tinha medo de ir e aprofundar ainda mais as
coisas... Biiip.
Nova mensagem: – dê-me um tempo para digerir melhor as coisas. Não quero apressá-las.
Sei que não é justo pedir que venha viver aqui porque sei que suas dificuldades serão ainda
maiores que as minhas, ainda mais em um momento não muito bom para a economia espanhola
e sendo você um profissional não comunitário (membro de qualquer país do mercado comum
europeu). Douglas, me perdoe, mais uma vez. Eu te amo... (ouve-se o choro dela ao longe, até o
término do tempo da gravação).
Douglas não se deixou abater. Insistiria na ligação para a casa de Tereza. Mas já era alta
madrugada em Madri. Melhor parar um pouco para refletir. Porém não conseguiu conter a emoção

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O escultor da alma

e se atirou ao sofá, cansado.


Pouco depois, foi até o quarto e ligou seu microcomputador. Sequer havia jantado e nem
sentiu mais fome. Pôs-se, então, a escrever uma mensagem eletrônica para a amada, já que precisava
expressar seus sentimentos. Tereza necessitava de apoio e compreensão naquele momento de
dúvida. Sentia-se fragilizada pela situação de amar alguém que se encontrava tão distante. E
ninguém melhor do que ele para saber o que aquilo significava.
De suas mãos ágeis saiu uma missiva de esperança e conforto. Falou a Tereza que não estava
arrependido do sentimento que nutria por ela. Apenas lamentava o fato de ela não estar dando
chance ao relacionamento. Em último caso até concordaria ele em voltar para a Espanha e, quem
sabe, começar nova carreira por lá, uma vez que a oportunidade que tinha aparecido no Brasil ela,
praticamente, abandonara antes mesmo de tentar.
E, ao final, os seguintes versos foram recebidos pela espanholinha, com profunda emoção,
via e-mail, no acordar do dia seguinte:

AS FLORES DO JARDIM

Não jogues fora as flores do Jardim.


Não jogues fora.
Elas são um pouco do que há em mim.
Está na hora das flores do jardim.

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O escultor da alma

Deste jardim,
Jardim que nasce,
Jardim que cresce,
Que vive em mim.

Não ponhas dúvidas nas flores do jardim.


Não ponhas dúvidas.
São uma das poucas certezas em mim.
Está na hora das flores do jardim.

Deste jardim,
Jardim que nasce,
Jardim que cresce,
Que vive em mim.
Não percas a fé nas flores do jardim.
Não percas a fé.
São uma prova de que Deus habita em mim.
Está na hora das flores do jardim.

Deste jardim,

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Jardim de rosas,
Jardim de flores,
De girassóis,

Jardim que nasce,


Jardim que cresce,
Que vive em nós.

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O escultor da alma

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Aquele episódio no parque mexeu com os sentimentos de Bela. O rancor em relação a Mariano
ora se transformava em um misto de pena e dúvida no futuro. Voltaria a acontecer aquilo?
Não é fácil para a mulher esquecer seu primeiro homem. O mesmo que estreou sua intimidade,
descobrindo seu corpo e sua alma juntamente com ela. Era inegável que tinham experimentado
momentos memoráveis, como aquele em que, no dia do seu aniversário, subiu ele perigosamente
em um morro de pedra próximo à sua casa e lá amarrou um estandarte de mais de três por cinco
metros, com uma frase de amor para ela. Outro foi quando ele gastou parte de suas economias de
estudante da época em uma festa surpresa para Heloísa. Vez ou outra, aparecia com seus doces
preferidos: torta alemã e brigadeirão.
Não era fácil esquecer esses e outros momentos bons, e do quanto se sentia protegida ao
lado de Mariano. Não era um homem muito alto e forte, mas sabia se impor onde chegava e era
corajoso em sua defesa. Certa vez tomou satisfações com um engraçadinho que falou alguma

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O escultor da alma

coisa dela quando passeavam juntos em uma festa de rua. Mesmo sendo mais alto que Mariano,
o rapaz se afastou, intimidado com o ímpeto dele em defendê-la. Apesar de ter reclamado e dito
que não precisava daquilo, no íntimo se sentiu orgulhosa da coragem em guarnecê-la, e valorizada
por ele, que seria capaz até de dar seu sangue por ela, se preciso fosse, como já havia dito em
outra ocasião.
Além disso, reverberava em sua cabeça uma frase que sua irmã lhe tinha dito: “Pessoas boas,
às vezes, fazem coisas ruins”.
Alguns amigos chegaram para contemporizar a situação. Diziam, discretamente, que a culpada
pela traição havia sido Dália. E Heloísa não a perdoava por aquilo. Mariano tinha sido infantil em
cair no jogo de charme de uma menina malvada, capaz de seduzir o namorado da própria amiga.
Realmente – pensava – a grande vilã tinha sido Dália. Como poderia trair a melhor amiga? E logo
ela, Heloísa, que tinha feito tantos sacrifícios e depositado uma confiança extrema na pretensa
amiga?
Pediu ajuda a Deus para que a fizesse descobrir o caminho mais certo.
Pediu até ao seu pai, estivesse onde estivesse, para que, naquela hora, a ajudasse a se decidir.
Tentar de novo ou desistir – eis a grande dúvida que pairava na cabeça da moça.
Na rotina do hospital, que abandonara por uns dias devido a um curso especial ministrado
por pessoas de fora, específico para residentes em sua área, traumatologia, voltou a se entregar a
seus afazeres profissionais. Bela terminou por criar um vínculo afetivo com o senhor Ângelo, que
depois acabou percebendo que em muito lembrava seu avô materno.

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O escultor da alma

O idoso ainda continuava internado, o que já demandava um prazo razoável, agora para
exames oncológicos pós-operatórios.
Ao vê-lo depois de mais de uma semana sem acompanhá-lo, sentiu que o fazendeiro estava
um pouco mais abatido. Notou que a esposa dele não se encontrava presente no quarto. Nem deu
tempo para analisar a ficha atualizada, que foi trazida depois por uma enfermeira, quando já
estavam a conversar:
– Olá, senhor Ângelo, como está hoje?
– Forte...
Interrompendo descontraidamente, ela foi logo completando:
– Já sei, forte como um touro?
– Isso mesmo, minha filha.
A doutora começou, então, a tomada do pulso, da respiração, aferição da pressão e da
temperatura, além de verificar as suturas – já quase que completamente cicatrizadas – da cirurgia
a que tinha sido submetido o paciente, com o fim de extração do tumor maligno na caixa torácica.
Quando terminou, falou:
– Meu acompanhamento está perto de terminar. Mas o senhor ficará em boas mãos. E para
onde foi dona Maria?
– Precisou ir ontem para resolver uns problemas urgentes e depois foi dormir em casa. Acho
mesmo é que foi fazer compras – disse, rindo – Mas vai voltar à tarde. Pelo menos foi o que a
enfermeira falou, porque eu estava dormindo na hora em que Maria saiu. Aliás, ando com um

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O escultor da alma

sono ultimamente... Mas me diga: como está esse jovem coraçãozinho? – Ângelo foi logo
perguntando.
Heloísa não conseguia descobrir bem porque, mas se sentia à vontade para falar um pouco
sobre sua vida pessoal. Não seria tecnicamente correta tal postura, mas acontece que ele não
estava precisando de repouso e aquilo era importante para se sentir útil e melhorar a sua auto-
estima. Sendo assim, aproveitou e contou para ele o acontecido. Falou do ataque de Fábio e a
surra recebida de Mariano. O velho vibrou e disse:
– O rapaz gosta mesmo da doutora. Ele pediu uma nova chance?
– Não, mas nem era preciso. Bastava olhar nos olhos dele.
– E você gosta dele?
– Eu não sei mais, seu Ângelo. Fiquei meio confusa depois daquilo que aconteceu, juntando
com a morte do meu pai. A situação está complexa aqui dentro – apontou para o peito.
– Não, minha filha, tá confuso é aqui, depois de quase oitenta anos – disse, sorridente,
sinalizando para o tórax. –Até meu problema de vista anda pior ultimamente... Mas veja bem, se
eu colocar uma laranja em sua mão você pode dizer a mim se ela é amarga ou doce?
Bela olhou para o teto, pensativa, depois, respondeu:
– Bem, externamente dá para ter alguns sinais. Se a casca for grossa, pode até ser sem gosto.
Se for bem verde, a tendência é, na minha opinião, ser azeda. Mas não posso ter a certeza.
– Por quê?
– Senhor Ângelo, porque para se ter certeza é preciso provar!

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O escultor da alma

– Ah, muito bem, é preciso provar... – arrematou com ênfase, meneando a cabeça com um
leve sorriso.
– Sabe como escolhi minha esposa? Quando a conheci me apaixonei por suas perninhas.
Não diga a ela, mas não eram grossas, não. Pelo contrário, eram até fininhas. Mas, o jeitinho com
que ela andava, eu achava tão bonitinho... Foi uma novela namorar a danada. Seus pais eram
muito rigorosos. Com o tempo, aprendemos a nos conhecer. Meus sogros foram até ficando
mais simpáticos à medida que meu rebanho foi crescendo e produzindo mais leite; meu roçado
dando uma safra maior... E não era para menos. Eles estavam em seu papel: arranjar um bom
partido para a filha. Com o passar do tempo, veio a desilusão. Descobri que Maria era geniosa e
teimosa e, se eu deixasse, mandava até em mim. Por vezes, ranzinza. Fiquei em dúvida quando o
velho começou a dar indiretas sobre casamento, afinal de contas já namorávamos há uns dois
anos e nada de casar. Naquela época, era diferente de hoje, você sabe. Então, peguei uma folha de
caderno e coloquei de um lado o que havia de bom nela; no meio o que não sabia ainda; e do
outro o que havia de ruim. Da primeira vez deu, me lembro bem... Quatro, quatro e três. Era
possível uma virada do “ruim” por sete a quatro. Então, procurei descobrir aquilo que tinha
dúvida. Não sabia se ela era uma boa dona de casa. Comecei pedindo que engomasse uma camisa
que trouxera porque estava com pressa e não tinha ferro quente em casa. Naquela época, era a
carvão, sabia? A camisa voltou impecavelmente engomada. Depois, dei uma desculpa de que
estava doido para comer um bolo de ovos e pedi que fizesse um para mim. Ela fez um bolo
delicioso e o jantamos em sua casa. Depois, um almoço também aprovado. Não sabia se ela

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O escultor da alma

gostava de crianças, porque era filha única e não tinha ninguém pequeno em sua casa para que eu
pudesse, no dia-a-dia, descobrir. Pedi, então, um sobrinho de dois anos “emprestado” e entreguei
para ela tomar conta por um dia, também com uma desculpa bem montada. O menino ficou
louco por ela e depois só falava em Malia, Malia. Outra vez, aproveitei uma viagem que fizemos
para a capital e disse aos pais dela, à mesa de um bom e caro restaurante, que era uma questão de
honra pagar a conta da namorada. Então, entreguei o cardápio e falei para escolher o que quisesse,
na quantidade que quisesse, e deixasse o resto comigo. Ela olhou para os pratos, olhou para os
preços e, depois, escolheu um com preço mediano, até mais para barato. Descobri que não era
esbanjadora e se interessava com minhas economias. É lógico que, de vez em quando, brigamos.
Mas em geral até hoje estamos juntos, felizes.
– O senhor disse três. E a quarta dúvida?
– Ah, minha filha. Essa dúvida a gente não podia tirar antes do casamento, senão ou casava
à força ou ia para a ponta da peixeira...
– Senhor Ângelo, não tem jeito mesmo não é? – disse, colocando as mãos na cintura e
sorrindo, surpresa com a espirituosidade do velho.
Depois de uma breve pausa, o senhor olhou com atenção para a jovem doutora e continuou:
– Faça isso também, minha filha. A hora de errar é agora. Ou de acertar, não é mesmo?
Depois, poderá descobrir se esta é realmente a escolha certa.
– Seu Ângelo, o senhor é dez.
– Não, minha filha, sou mesmo é setenta e oito, já beirando os oitenta, mas forte como um

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O escultor da alma

touro – arrematou, sorrindo.


Após a divertida e construtiva conversa com seu Ângelo, resolveu, já no corredor, ver sua
ficha individual. Para seu espanto, leu no prontuário que havia sido descoberto uma metástase no
cérebro. Bela sentiu uma pontada no coração. Pediu mais detalhes. Uma tomografia apresentada
pela enfermeira-chefe mostrava o avanço da doença.
Quando olhou o prontuário, viu, assustada, a classificação TNM do tumor extirpado de
Ângelo, recentemente anexada: T2N2M2. Significava, portanto, tamanho médio, grande
propagação nos nódulos linfáticos e a existência de metástases. Espalhara-se para o cérebro,
atingindo também o bulbo.
O tumor maligno, tecnicamente conhecido como câncer, resulta do anormal crescimento de
um tecido por causa da multiplicação desordenada e sucessiva de suas células.
Surgiram tumores cerebrais secundários, ou metastáticos. Originaram-se do que já fora retirado
da cavidade torácica durante a intervenção cirúrgica.
Heloísa sabia que Ângelo estaria vivendo seus últimos momentos de lucidez. Sua função
cerebral iria decair profundamente até perder a consciência. O lobo occipital já fora bastante
atingido, o que explicava a dificuldade da visão.
O Bulbo fora alcançado, e isso importaria na afetação dos centros nervosos da respiração,
dos batimentos cardíacos e de outras atividades neurovegetativas.
Em passos rápidos, foi ao oncologista responsável obter mais detalhes.
– Doutor Mauro?

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O escultor da alma

– Pois não, o que a doutora deseja?


– Sou residente e estou acompanhado um paciente. Eis aqui o prontuário. Seu nome é Ângelo.
O médico-chefe responsável pelo doente olhou rapidamente os exames e disse:
– Ah, sim. Lembro-me do caso. Infelizmente há uma neoplasia metastática no cérebro, que
está comprometendo a visão, uma vez que atingiu o lobo occipital e se alastrou pelo bulbo. Em
pouco tempo estará com as funções respiratórias comprometidas.
– Há como operar?
– De forma nenhuma, pelo menos em relação ao bulbo. O ponto central é inacessível. Veja
só – mostrando a intersecção dos tumores dentro da caixa craniana. – O que se pode fazer é dar
uma qualidade de vida satisfatória até lá. Com a idade dele, talvez não resistisse nem à intervenção
para extirpar a metástase que atinge o lobo occipital.
– A família já foi avisada?
– Sim. Eu mesmo dei a notícia à esposa. Como a praxe recomenda, pedi que não informasse
ao paciente. Só causaria mais sofrimento.
Ele percebeu o abatimento da jovem médica, que baixou a cabeça, triste. Encorajou-a, dizendo:
– Doutora, a senhora está apenas começando. Lembre-se de uma coisa: a medicina é uma
guerra contra a morte. Não dá para vencer todas as batalhas. O mais importante é fazer o melhor
que puder, pois só assim você terá, sempre, a consciência tranqüila. Às vezes, não depende só de
nós.
– É verdade, doutor Mauro. Vamos seguir em frente. Obrigada pelo conselho.

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O escultor da alma

– Aliás, sua residência é em quê?


– Traumatologia.
– Muito bom, muito bom.
Bela então compreendeu a razão de Maria não estar no quarto com o marido. Estava em casa
tentando se recuperar da notícia.
Naquela mesma tarde, recebeu um recado. Estava na recepção do hospital uma encomenda
para ela. Desceu, estranhando o fato, inusitado até então.
Quando lá chegou, havia uma embalagem de conhecida loja de doces da cidade. Abriu o
pacote e dentro encontrou uma torta alemã. Junto havia um pequeno bilhete, devidamente datado
e assinado:

Bela,
Seu nome é SAUDADE, É assim que a recordo. Hoje sofro a solidão medonha e procuro, em tudo, o amor.
Mas só em você eu o vejo... E me assusto! Seu nome é ESPERANÇA, é assim que a chamo. Quisera ter o
mundo para mim, mas não posso. Quisera ter meu sonho sendo nosso. Seu nome é AMOR, é assim que a chamo.
Você é um labirinto por onde me perco. Não sei o que faça, só sei o que sinto. Sinto que ao vê-la um espiral de
sonhos se levanta. A brisa rasga meu rosto de puro arlequim. O tempo passou, BELA, mas você não passou em
mim...
Bom apetite. Um beijo.
Mariano.

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O escultor da alma

A torta foi repartida euforicamente pelo pessoal do trabalho, já enjoados da comida do


restaurante. Ela ficou surpresa e comovida com o bilhete e o gesto de Mariano. Estaria ali a
resposta para seus questionamentos?
Seu telefone, então, tocou. Era sua mãe.
– Bela, a que horas vai chegar?
– Mãe, estou na dependência dos horários de Alberto, hoje. Mas deve ser lá pras sete da
noite. O que foi? Aconteceu alguma coisa?
E a senhora Raquel tratou de tranqüilizar a filha:
– É coisa boa, não se preocupe. Quando chegar, eu lhe contarei. Um beijo. Cuidado.
A doutora não fazia revezamento de carros nas idas e vindas do hospital somente em razão
da distância entre sua casa e o hospital – dezenove quilômetros – e do perigo de dirigir sozinha
em uma metrópole. Considerava tanto Patrícia quanto Alberto pessoas agradáveis e boas
companhias. Ele, por sinal, era um amigo de muitos anos. Heloísa o tinha como uma pessoa de
grande confiança.
Discreto, embora soubesse de todo o acontecido entre ela e Mariano, jamais perguntara nada
sobre o assunto. Isso lhe conferia um lugar especial dentre as poucas pessoas às quais poderia
confidenciar seus sentimentos.
Não podia negar que já tivera um carinho especial pelo rapaz antes de namorar Mariano, por
conhecê-lo da vizinhança e por haverem sido contemporâneos no colégio e na faculdade.
Fisicamente, era um pouco baixinho, não se podia negar. Mas ao mesmo tempo tinha as feições

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O escultor da alma

bonitas, um sorriso cativante e era inteligente, além de equilibrado. Conversavam, muitas vezes,
sobre assuntos sérios. Alberto era uma pessoa erudita, acostumada à leitura não só de obras
médicas técnicas, mas também da literatura clássica e contemporânea. Suas proposições sobre a
vida e a forma de encará-la, às vezes, surpreendiam-na. Tinha uma mente aberta e sempre evitava
fazer prejulgamento das questões que lhe apareciam. Mas aquela relação foi ganhando contornos
de amizade, com o passar do tempo, e não mais viu Alberto de forma diferente. Certa vez até deu
um “jeitinho” para uma menina que queria conhecê-lo. De outro lado, ele também nunca dera em
cima de Heloísa.
Por uma única vez algo ficou no ar do que ele falou para a amiga e colega de residência.
Alberto teve um relacionamento duradouro com uma jovem que sentia muitos ciúmes de Bela.
Depois do término, ele ainda chegou a contar a Bela que Ana não compreendia aquela amizade.
E disse que, na verdade, não era fácil aturar uma amiga do namorado, tão bonita e inteligente.
Heloísa corou naquele dia.
Mas como a amizade, até aquele momento, prevalecia, na volta do hospital resolveu
compartilhar com Alberto aquele fato que tanto mexera com ela.
– Alberto, recebi hoje uma torta alemã que Mariano me mandou.
– Que bom. É a sua preferida, não é?
– Sim. E mandou um bilhete. Vou lê-lo – e leu em voz alta para o amigo, enquanto voltavam
do hospital para casa. Alberto, que guiava o carro, escutou silenciosamente. Ao final, Bela arrematou:
– Mas me sinto tão perdida... Ele, tenho certeza, quer voltar. Você soube do que aconteceu

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O escultor da alma

entre mim e ele?


– Perfeitamente.
– E o que acha?
– Que assunto delicado. Logo eu? Sou suspeito.
– Por quê?
– Porque sou seu amigo e tenderei a defendê-la.
– Mas me diga o que você acha.
– Promete nunca contar a ninguém? Não gostaria de causar polêmica com Mariano.
– Prometo.
– Bem, acho, antes de tudo, que você precisa ouvir seu coração, primeiro. Mas não assim, por
impulso. É natural que, quando se termina um relacionamento antigo, se abra aquele vazio. Estamos
acostumados a uma rotina estabelecida com a companheira, ou companheiro. O costume, muitas
vezes, se confunde com o amor. A conveniência, com o sentimento. É preciso dar um tempo
para se situar... Eu sei que é muito fácil falar isso para você nesse momento. Mas pode ser que
haja alguém que melhor se compatibilize com você em algum lugar. Apenas não houve o despertar.
Os fatos, em si, pelo menos do que ouvi, foram graves. Ele a traía com Dália. Não é mesmo? E
não foram poucas vezes.
– Ele falou que foi uma vez só.
– E você acredita nisso?
– Não sei.

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O escultor da alma

– Pois bem. A base de um relacionamento se faz com o respeito e o respeito vem da admiração.
Eu, particularmente, achei uma tremenda falta de respeito e uma grande leviandade. Ele a traiu
dentro do seu círculo de amizades. É grave. Não sei se é possível a fidelidade plena, mas desse
jeito é demais. Porém, não quero falar mais sobre esse assunto. Deu para compreender o que
acho?
– Sim. Na dúvida, não ultrapasse.
– Isso mesmo. Melhor aguardar um pouco até a situação aclarar. Lembre-se, você vai sofrer,
seja de um jeito ou de outro. Vai sofrer se ficar com ele, pois por muito tempo levará consigo esse
fardo. Ele se sentirá em desvantagem e talvez isso cause problemas. Por outro lado, desistir dele
se ainda o ama trará graves conseqüências, pois sempre restará uma dúvida. Deveria ter dado a
segunda chance? Tudo na vida envolve escolhas. E caberá a você, depois de uma boa análise,
decidir. Não deixe os outros decidirem por você. Disse Sartre, certa vez: “O que importa não é
saber o que fizeram de nós, mas sim o que fizemos com o que quiseram fazer conosco”. Em seu
futuro quem manda, lembre-se, é você.
– Mas me responda uma pergunta. Por que você terminou com Ana?
– Porque ela tinha mal hálito. – respondeu Alberto, descontraidamente, após breve silêncio.
– Por isso?
– Brincadeira – riram. – O tempo foi passando e descobri que não era ela...
– Não era ela o quê? – interrompeu Bela.
Alberto, então, desviou os olhos rapidamente do volante e, mirando os de Heloísa, respondeu:

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O escultor da alma

– A mulher que eu desejaria que acordasse ao meu lado pelo resto da vida. Já imaginou o
quanto isso é importante?

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O escultor da alma

15

Douglas chegou abatido pela manhã ao escritório. Otília percebeu, com toda a sensibilidade
que tinha, que algo de errado havia ocorrido com o rapaz. Ele precisava de uma “carga” de
ânimo. E nada melhor do que uma notícia agradável para se começar um bom dia.
– Doutor Azatto, parabéns! Ficou ótima a reportagem na Gazeta Econômica – referindo-se
a uma entrevista dada três dias antes pelo consultor a um jornal especializado em negócios, na
qual ele falava das tendências no direito internacional privado. Ele olhou a matéria forçando o
ânimo para não parecer deselegante com a senhora, que efusivamente chegava para lhe mostrar o
artigo de meia página.
– O que achou? – perguntou a senhora.
– Ficou legal, só não gostei desse feioso, estragou a folha – disse Azatto, rindo um pouco ao
olhar a própria foto no jornal.
– Mas de jeito nenhum – retrucou Otília – vou guardar como lembrança. Pedi para que

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O escultor da alma

comprassem uma edição para você guardar também.


– Vou pedir à minha secretária para arquivar em recorte.
Douglas não deixara transparecer muito no trabalho os problemas pessoais pelos quais passava.
Os demais empregados da empresa não tinham culpa e cada qual já carregava o fardo de suas
próprias preocupações.
Resolveu, a partir de então, não contar o que havia ocorrido, até porque embora não esperasse
o que aconteceu, pensando com calma se veria que Tereza estava em uma situação mais delicada.
O que mais lhe doía era saber que, de todas as mulheres que havia conhecido, a espanholinha era
a que mais lhe impressionara.
Quando somos jovens, agimos mais por impulso e por isso deixamos nos arrebatar mais
facilmente pela paixão. Porém o que vem fácil, fácil vai. Não é incomum, em relacionamentos
entre pessoas imaturas, a descoberta de novas situações que mudam completamente o foco de
uma relação, fadando-a ao fracasso. Na juventude, tudo é muito rápido, com uma intensidade que
se pensa não mais existir em outras épocas, o que não é verdade. Nessa época, a paixão mais se
exprime do que o amor. Ela é como um lago amplo, mas raso, que tanto pode transbordar em
uma única noite de temporal, quanto secar rapidamente ao calor do sol. À medida que vamos
amadurecendo, perdemos ímpeto juvenil de ver tudo com superficialidade. Ganha-se profundidade.
Assim, o amor é um sentimento que não muda, mas a forma de encará-lo é que amadurece
com as experiências dos anos. Tornamo-nos qual um lago profundo, embora menos amplo, que
custa para transbordar, mas que o conteúdo não se vai em um único verão. As paixões diminuem,

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O escultor da alma

o amor permanece e até se intensifica.


Douglas tinha uma forma peculiar de enxergar o amor. Estava amadurecido pelos desafios
da vida, com um vigor de juventude, com a liberdade de sempre e a independência financeira que
não se obtém quando adolescente. Não lhe faltavam candidatas. Mas muitas que conheceu e até
mesmo com quem se deitou, em grande parte das vezes, não passavam de um rostinho e corpinho
lindo que, após os momentos de enlevo, se tornavam mais uma entre todas as mulheres. Tereza,
pelo contrário, era bonita, inteligente e equilibrada, capaz de lhe dizer coisas interessantes e de
fazê-lo refletir. Além disso, era uma boa amante. E, assim como ele, vencera na carreira pela
competência. Tinham diversos pontos em comum e isso fortalecia os laços então existentes.
Mas a dúvida o visitou pela primeira vez. A ave negra fez sombra em sua mente. Conseguiria
Tereza se adaptar aos novos desafios? Passaram-se quatro meses do seu retorno ao País. Como
estaria a cabeça dela quanto aos sentimentos? Talvez tivesse surgido alguém nesse período e
sabemos que, quando estamos carentes, é comum acontecer. Mas não havia ocorrido um fato
desse. Era apenas insegurança devido à distância e à dificuldade de acomodação da relação entre
os dois.
Pensou em ligar para ela com o fim de aprazar uma viagem à Espanha. Era melhor decidir de
uma vez por todas e acabar com o impasse. Mas antes faria uma última tentativa. Ainda conversaram
por alguns minutos ao telefone. Por instantes, teve receio de forçar a barra e depois assumir a
responsabilidade pelo fracasso profissional da espanhola no Brasil. Ainda mais, tirando-a de um
local em que adorava trabalhar e onde conhecia muito bem todas as instâncias da empresa.

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O escultor da alma

Quanto ao futuro profissional dela no Brasil, a firma da qual o amigo houvera arranjado uma
proposta de emprego, já tinha preenchido o lugar. Só se surgisse uma nova oportunidade.
O telefonema foi frio. Tereza estava apática. Agradeceu o poema recebido e falou que o
guardaria para sempre. O tom era de despedida. Douglas percebeu que o rompimento seria uma
questão de tempo.
– Estou pensando em ir até aí.
– Por favor... Melhor não...
– Por que não, Bebê?
– Vai doer mais. Dê-me uma semana para decidir o que fazer, só sete dias.
– Está bem. Cuide-se, tá?
– Você também. Um beijo.
– Um beijo.
Aquele foi o instante da queda. E ao colocar o fone no gancho sentiu, como há muito não
sentira, uma profunda solidão. Apesar de não anunciado o término do relacionamento, olhara
para os lados e se via, agora, sozinho.
Em Madri, dos olhos de Tereza uma lágrima verteu, indo de encontro ao plano. Não tardou
e o pranto teceu seu negro manto de desenganos. Logo quis se recompor. Enxugou o rosto no
travesseiro, pegou o telefone e ligou para Douglas:
– Não suporto mais isso. É um pecado o que estou fazendo conosco, Douglas. E você é uma
pessoa muito especial, mas as circunstâncias da vida selaram nossos destinos. Não posso dizer

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O escultor da alma

que não queria ir ao Brasil para morar com você. Estou com vinte e nove anos e, às vezes, penso
que posso estar perdendo o grande amor da minha vida. Mas algo me diz que não seria bom,
nesse momento, largar tudo aquilo que conquistei durante anos. Você sabe o quanto batalhei,
indo do zero até onde estou, as dificuldades durante a faculdade e outras coisas mais. Não é justo
deixá-lo ligado a mim por mais uma semana, tenso e aflito por uma resposta. Sei que o telefone
não é o melhor meio de terminarmos o que começou de uma forma comum e se transformou
num fato que levarei para o resto da minha vida com um carinho especial. Mas não suportaria vê-
lo pessoalmente. E sei que, para você, também seria terrível. Também não posso dizer que não o
amo porque falaria uma inverdade. Mas talvez devesse amar mais, porque só assim teria coragem
de largar tudo e caminhar ao seu lado onde estivesse. Não sei se foram as inúmeras decepções da
vida que me deixaram precavida. Mas saiba que mesmo quando conheci você e me apaixonei,
sabia dos riscos dessa empreitada. Lembra-se daquela antologia poética de Fernando Pessoa que
você me deu? Eu terminei de ler nos últimos dias. Jamais esquecerei o que ele disse: “tudo vale a
pena se a alma não é pequena”. Valeu ter conhecido você. Valeu ter me apaixonado por você.
Valeu ter me entregado a você. Só o que não vale é o que o destino fez conosco. Mas foi um risco
assumido. Acho melhor não nos falarmos por um tempo porque só irá nos fazer sofrer mais.
Mas, quem sabe, um dia você não resolva vir fazer um doutorado aqui, não é?
Um frio percorreu o corpo de Douglas. Tinha feito de tudo para trazer o seu amor para o
Brasil. Os meses de angústia se estenderam. Foi um lutador. Mas a situação já era realmente
insustentável:

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O escultor da alma

– Tereza, muito obrigado pela acolhida e por tudo, por tudo mesmo. Você é uma mulher
fenomenal e lhe desejo tudo de bom. Estou sofrendo – engole o choro por uns instantes – mas
agora sei que não seria justo exigir tanto de você. Seja feliz porque você merece. E concordo:
valeu a pena. E obrigado por essa ligação, pois você sabe o quanto tentei arranjar uma solução e
que sofreria mais uma semana de expectativas. Mas por você não teria problemas. Sei que esse
não era um dos caminhos que queria. Mas terminou por se tornar “o caminho”. E quem sabe? –
fez uma pausa – como dizemos aqui no Brasil, o futuro a Deus pertence. Um beijo – silenciaram
por um pouco.
– Um beijo... – respondeu Tereza, com tristeza.
Desligaram.
Após a ligação, caneta e papel nas mãos, Tereza e ele seriam o palco de um poema que a
jovem jamais receberia:
SONETO DO AMOR PERDIDO

Perdeu-se o nosso amor assim tão de repente,


Veloz, em meio às lágrimas em nosso rosto,
Alheio a tudo que sonhamos, simplesmente,
Caiu na correnteza de um rio de desgostos.

Perdeu-se o nosso amor assim de forma rude,

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Qual o vento que devasta uma plantação de sonhos...


E nós, que devotávamos a ele mil virtudes...
Sofremos do destino o golpe mais medonho.

Perdeu-se o nosso amor definitivamente,


O elo se rompeu, embalde a chama ardente,
Mas foi o melhor pra nós o que a distância quis?

Perdeu-se o nosso amor por falta de ousadia…


Passando o breu da noite… no raiar do dia
Irei na eterna busca para ser feliz.

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Bela havia saído com a empregada para fazer compras no supermercado. Ao retornar,
acompanhada de Ana, deparou-se com a mãe, eufórica:
– Filha! Que coisa boa! - disse dona Raquel, enquanto segurava Snoopy nos braços.
– O que foi, dona Raquel? – perguntou Ana, curiosa.
– Bela será titia em breve.
A empregada falou, surpresa:
– Não acredito. Mas como? Snoopy ainda é quase um bebê... – enquanto olhava o cãozinho
que queria brincar com ela, remexendo-se nos braços da senhora Raquel.
– Estou falando de Magnólia, sua tonta! Veja só, veja só –mostrando às duas o original do
teste de gravidez, onde se via em destaque a palavra “positivo”.
Bela vibrou de alegria e quis logo falar com a irmã:
– Onde ela está?

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O escultor da alma

– Foi até a casa da sogra dar a boa notícia. Mas já deve ter voltado para casa. Vamos até lá?
– Vamos, sim! – nem sequer trocou de roupas. Queria o quanto antes felicitar a irmã que
tanto amava. Dentro em pouco, Bela e a mãe chegaram à casa de Magnólia. Quando se viram,
abraçaram-se, felizes.
– Devo ter engravidado ainda na viagem. Já estava desconfiada com o atraso. Às vezes, sou
tão alvoroçada com bobagens que esqueço coisas importantes. Quando fui conferir, já estava
com uns três meses... – disse Magui.
Bela sorriu com as já conhecidas confusões da irmã e foi logo dizendo, enquanto levantava o
indicador:
– Vou fazer o parto.
– Se Deus quiser. Só assim poderei dizer que a tia é tão brava que foi a primeira a lhe dar
umas palmadas – referindo-se às tapinhas dadas para que o recém-nascido expila pela boca os
líquidos amnióticos por ventura existentes nas vias respiratórias, logo após o parto.
– E Jonas?
– Está superfeliz. Parece até que adivinhou porque estava juntando um dinheirinho para
eventualidades.
– Como comemoraremos?
– Amanhã, à noite, faremos um jantar aqui em casa. Só virão os pais dele e os irmãos. Será
uma comemoração reservada, bem ao estilo de Jonas.
E passaram a conversar as três sobre suas vidas. Magnólia contou que o escritório de

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O escultor da alma

arquitetura ia de vento em popa. Estava repleta de projetos, o que garantiria trabalho até o período
próximo do nascimento da criança. Dona Raquel não deixou de relembrar Wilson e o quanto ele
ficaria feliz com a notícia. Quanto a Bela, disse que estava em dúvida se reatava ou não com
Mariano e que, há poucos dias, recebera uma torta lá no hospital.
– E ele continua ligando para você? – perguntou Magnólia.
– Ligando, não. Mas seus amigos de vez em quando ligam. Sempre alguém vem me falar dele.
E o pior é que não o esqueci. Olha aqui o que ele me escreveu – disse, tirando o bilhete de dentro
da bolsa, que havia sido dado junto com a torta alemã. As duas outras leram silenciosamente. Por
fim, Magnólia exclamou:
– Belíssimo! Por falar nisso, vi uma declaração de amor linda quando voltávamos da lua-de-
mel. Não contei para vocês porque Jonas estava perto e iria ficar enciumado. Depois, esqueci. Foi
de um bonitão que sentou ao nosso lado. Durante a viagem, ele até chorou. E eu, de boba, pensei
que era um resfriado. Quando ele saiu com pressa, deixou cair o bloco de notas que continha
umas poesias escritas. Pelo jeito ele deixou um amor na Europa e estava triste, com saudades. Um
momento que vou pegar lá dentro.
Quando voltou, mostrou a Heloísa e à mãe. Leram com cuidado. Ficaram tocadas com as
palavras.
– Que poesias profundas! – exclamou a jovem doutora. – E como ele era?
– Alto, bonitão, charmoso. Mas nem olhei direito porque Jonas fez marcação cerrada. Só me
lembrei de você. Tive vontade de dizer: coitado, não se preocupe, eu tenho uma irmãzinha que é

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O escultor da alma

uma fofura para lhe apresentar. Garanto que vai esquecer em pouco tempo sua européia – após
isso, riram e brindaram com felicidade a boa nova.

***

Três dias depois, Mariano ligou para Heloísa, convidando-a para jantar. Disse que precisava
falar com ela. Combinaram às oito da noite. Heloísa procurou não pensar muito no assunto até
o momento do encontro. Melhor não gerar expectativas e ver no que ia dar.
Pontualmente, Mariano chegou. Havia trocado de carro, estava mais magro e lhe deu um
beijo no rosto. Foram a um bom restaurante de cozinha italiana. Pediram ao garçom uma lasanha
ao molho de quatro queijos, bem ao gosto de Bela. No início, a jovem ainda parecia bastante
retraída e constantemente baixava a vista, evitando encarar o rapaz. Depois de um tempo se
descontraiu um pouco e puderam conversar trivialidades e as novidades nas famílias. Na dela, a
gravidez de Magnólia. Na dele, um novo posto de gasolina que estavam montando em um bairro
mais afastado e que ficaria sob a responsabilidade do rapaz. Não falaram logo sobre o problema
da traição.
Após um tempo, de olhos marejados, o rapaz destilou seus sentimentos sem orgulho, falando
do que sentia por ela e do arrependimento pelo que tinha causado. Disse que havia sido a primeira
e única aventura no relacionamento e que nunca tinha passado pela sua cabeça fazer uma coisa

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O escultor da alma

daquela, ainda mais com uma amiga da jovem médica. Falou que a família adorava Heloísa e
sempre perguntavam por ela; que a sua mãe estava do lado dela e, mesmo que não tivesse o amor
da jovem de volta, pelo menos que ela o perdoasse, para ele poder, então, seguir seu destino. Mas,
se o amava, que desse uma nova chance aos dois, porque sentia que teriam um grande futuro
juntos. De seus olhos uma solitária lágrima escorreu, enxugada pelas mãos da já comovida jovem,
com um lenço de papel.
Heloísa se sentiu tocada com a sinceridade do rapaz e não suportou ter seu objeto de desejo
à sua frente, olhando-a nos olhos. Quando veio o jantar sequer com fome estavam. Tinha sido
muito mais um pretexto de ambos para o reencontro. Após saciados, foram embora. Já no
automóvel, no trajeto, conversaram timidamente até chegar à residência da moça. Na volta, Heloísa
ainda estava em dúvida sobre o reatamento. Mariano parou o carro em frente à casa da médica e
pediu uns minutos. Ela parou por uns segundos, fez menção de sair, mas de súbito o olhou e lhe
deu um beijo na boca, que o fez saltar de susto e de júbilo. Ficaram ofegantes de emoção e prazer.
Seus corpos se pediam naquele instante, saudosos que estavam do contato um do outro. Era
madrugada, e se amariam ali mesmo, no carro, em frente à casa da jovem, guarnecidos, tão
somente, pelos vidros escurecidos do veículo, não fossem as mãos de Heloísa que conduziram o
jovem até uma entrada lateral da casa. E tudo aconteceu na garagem...
Pela manhã, passada a emoção e o arrebatamento, Bela sentiu uma certa angústia. Não sabia
se tudo aquilo tinha sido certo. Pairava a dúvida: deveria ou não ter aceitado o convite de Mariano?
A perfídia não fazia muito tempo e ainda se sentia magoada. Talvez devessem esperar a ferida

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O escultor da alma

cicatrizar antes de tentar novamente. Porém, Mariano conseguira reatar o namoro e, temendo
exatamente o que Heloísa sentia, ligou logo cedo para desejar um bom dia.
Naquela manhã, era Alberto quem estava de carona com ela. Por isso saiu no carro até a
residência do amigo.
No caminho foi logo confidenciando a ele, que estava absorto com uns papéis:
– Reatamos.
– O quê?
– Desculpe. Eu e Mariano reatamos.
– Foi mesmo?
– O que tem a dizer? Você é o meu melhor amigo.
– Desejo-lhe sorte.
– Oh! Albertinho! Por que reage assim?
– Assim como?
– Com desprezo. Estou falando que renovamos o namoro. Mas não contei ainda em casa.
Saímos para jantar ontem e terminamos ficando.
– Não entendi. Ficaram ou estão namorando mesmo?
– Bem, não sei... Acho que... ficamos. Depois vou ver o que acontece. Preciso de mais opiniões.
Estou me sentindo meio perdida... Sempre me lembro de meu pai nessas horas. Ah, se ele ainda
estivesse vivo. Era a ele que recorreria. Tinha uma vivência muito grande, sabe?
Agora, sem aquela presença importante e que Heloísa julgava até insubstituível, tudo se

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O escultor da alma

tornara mais confuso. Wilson era o refúgio e o pilar de sustentação em casa. Mesmo após passados
tantos meses, sua ausência ainda era dolorida. E os olhos de Heloísa marejaram. Ainda se sentia
órfã daquela perda. Silenciou por alguns instantes e olhou, indistintamente, a paisagem urbana do
trajeto até o hospital.
– Desculpe-me, Albertinho. Lembrei-me de meu pai, disse, enxugando as lágrimas do rosto.
Era comum pedir conselhos a ele. Antes de responder, ele sempre fazia uma pausa e dizia: “é para
digerir melhor os acontecimentos e tomar o caminho certo. Filha, nunca haja por impulso porque
ele pode levar você além do desejado...”.
– Concordo com o que seu pai dizia, mas você pode conversar com sua mãe e sua irmã,
também. E tem que se acostumar com a ausência de seu Wilson, embora saiba que é difícil. Se
outras opiniões são importantes para você nessa hora, o que elas acham?
– Não dá para conversar com as duas. Conhecem Mariano, e se sentiram ofendidas com o
que aconteceu. No fundo, mesmo, acho que mamãe é a favor da volta e Magnólia contra. Porém,
preciso de uma opinião isenta.
– Opiniões isentas... isso mesmo. É disso que você precisa...
– Está pensando em quê? Não quero divulgar esse fato no hospital com ninguém. Já basta
ter me aberto com um paciente.
– Só não me diga que era da ala psiquiátrica – disse rindo, tentando reanimar a amiga.
– Você sabe que lá não há essa ala. Na verdade, conheci um senhor muito bacana. Um
homem simples, do campo, mas com grande sabedoria. Conversava com ele também para

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O escultor da alma

melhorar-lhe a auto-estima. E confesso que foram ótimos encontros. Você se lembra daquele dia
em que decidi ir de carro também?
– Lembro-me. Foi só para conversar com ele? Então deve ser uma pessoa especial mesmo.
Gostaria de conhecê-lo.
– Será um prazer apresentá-los.
E procurando auxiliar a amiga em tão importante decisão, falou:
– Bela, eu sei de um lugar em que você poderá conversar com pessoas que possam ajudá-la.
– Não venha com outra piadinha...
– Sério. É um site na internet. Na verdade é, também, uma sala de bate-papo.
– Eu, hein?! Se for do estilo das que conheci, não quero. Só falavam besteiras. Tinha inclusive
um engraçadinho cuja curtição era dizer pornografias. Minhas experiências em salas de bate-
papo não foram lá construtivas.
– Mas nessa eu tenho certeza de que você vai se sentir bem. Trata-se de um site especial, onde
o acesso é restrito. Exige-se uma senha que somente quem é associado pode fornecer. Por isso é
bem escolhido. Chama-se “Coração do Mundo”, o site dos amigos eletrônicos.
– E o que é que se faz nesse site?
– Há informações importantes relativas a vários assuntos, desde problemas pessoais até
ecologia, mas sempre com um fim construtivo. Há páginas dedicadas a artes, cotidiano, filosofia,
viagens e educação. Curiosidades e informações culturais também são destaques. Mas sempre
com um conteúdo que vise, antes de tudo, informar e ajudar as pessoas a melhor compreender o

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O escultor da alma

mundo. E sabe quem coloca tais informações? Os próprios usuários. O conteúdo é todo
disponibilizado aos membros.
– E quanto custa?
– O custo é zero. Mas quem quiser ajudar pode contribuir. Mensalmente os balancetes são
divulgados por uma firma de auditoria. Eu mesmo nem contribuí porque não estão necessitando.
O que recebem já é suficiente.
– Tem alguém conhecido lá?
– Eu só conheço uma pessoa. A que me associou. Lá, recebemos um nickname, e a partir daí
é só o que usamos. É recomendada a não identificação real porque o lema é fazer o bem sem
olhar a quem. Isto se aplica às salas de ajuda. Como a finalidade é aconselhar e ajudar pessoas em
dificuldades, e muitas vezes surgem assuntos que podem comprometer várias pessoas, ou mesmo
causar constrangimentos, todos agem anonimamente. Sim, e as salas são divididas por região
geográfica. A sala 241, por exemplo, é da nossa região.
– Que coisa sinistra, Albertinho, parece uma maçonaria.
O jovem a olhou e completou:
– Não seja preconceituosa, amiga. Eu não sou maçom. Mas você sabia que a finalidade da
maçonaria é a mesma, fazer o bem? Pois, sempre que posso, acesso a página “Coração do Mundo”
porque lá encontro discussões interessantes, além de matérias com um ótimo conteúdo. Mas do
que eu mais gosto é exatamente a sala de bate-papo onde pessoas vão tentar obter ajuda para
resolver seus problemas. É uma oportunidade de dar um conselho desinteressado. Há mães que

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O escultor da alma

chegam pedindo uma ajuda porque descobriram que o filho está usando drogas. Outro está
pensando em suicídio. Vale tudo, indicações de locais, orientações técnicas, jurídicas, médicas. Só
não vale rolar dinheiro, para evitar explorações.
– E quais são as regras?
– Não se pode discutir política, religião e esportes, salvo nas salas específicas para esses
temas. No mais, pode tudo, desde que tenha um conteúdo construtivo. Tudo que for leviano é,
desde logo, descartado. Quem quebra a regra pode ter sua senha suspensa por um tempo. Se
reincidir, é excluído.
– Fiquei curiosa. Você me dá o acesso?
– Bem, às salas de bate-papo o acesso é irrestrito. Mas para o restante do conteúdo, não.
Como nós recebemos duas senhas, chamadas elos, estava guardando meu segundo elo da corrente
para alguém como você. O lema para cessão do elo é “gente como a gente”. Devemos escolher
pessoas que possam ajudar também a fazer crescer a finalidade construtiva da página.
– É uma página elitista.
– Depende do ângulo que você olhar. Se for apenas pelo padrão de renda dos membros,
poderá ter surpresas. Mas se palmar pelo perfil pessoal, certamente tenderá a ser elitista, porque
as pessoas são escolhidas com base em valores legítimos como caráter, honradez, honestidade,
responsabilidade, etc, pelos próprios membros.
– E há alguma sala dedicada a dar conselhos sobre relacionamento amoroso?
– Basta fazer o convite.

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O escultor da alma

– Como assim?
– Há um local reservado para escolha de assuntos, dentro do conteúdo aberto, isto é, as salas
de bate-papo. Sempre que alguém está precisando de ajuda, de um conselho ou mesmo querendo
debater um tema, ao selecionar o assunto dispara um sinal em sua região. As pessoas que estão
cadastradas naquela janela de assunto, desde que conectadas, automatica- mente recebem o pedido
de ajuda e podem ingressar na sala para discutir o tema, em separado ou em conjunto com você.
Eu, por exemplo, estou em quase todas as janelas. Se em dois minutos ninguém atender, o apelo
é enviado a outras regiões, sucessivamente.
– E qual a senha de acesso?
– Haverá duas. É melhor você anotar. A primeira é a tecla ALT pressionada, mais os números
0230 do teclado numérico. A segunda é a sua, dada por mim. Essa só fornecerei a você quando
chegar em casa. Mas para acessar as salas de bate-papo é só entrar na página principal.
– E como se chama, mesmo?
– Vou anotar em sua agenda, ok? Vou colocar na data de hoje.
Heloísa ficou intrigada com aquilo tudo e, principalmente, curiosa.

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O escultor da alma

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No hospital, havia um tumulto na entrada. Repórteres anunciavam o óbito de alguém famoso.


Era comum ocorrer aquilo porque o centro médico era referência em algumas áreas, e em razão
disso muita gente de destaque, lá, era tratada.
– O que está acontecendo? – perguntou a doutora.
– Faleceu uma pessoa importante – respondeu a ascensorista.
Um repórter que estava no interior do elevador completou: – O ex-embaixador
Costa Brava. Foi diplomata do Brasil em Londres e na ONU, em Nova Iorque.
Heloísa pensou: “quantos milhares não morrem anonimamente todos os dias...”
As aulas eram realizadas no quarto andar. Após isso faziam refeição na cozinha reservada ao
corpo médico e iam ao trabalho. Pela primeira vez participou como líder de equipe em um
procedimento cirúrgico mais complexo. Era um caso de fratura de fêmur, em um jovem de
dezessete anos, Marcílio, vítima de acidente automobilístico, que exigia a implantação de pinos

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O escultor da alma

para poder corrigir o rompimento do tecido ósseo.


Conversou com o jovem que já se encontrava deitado sobre a mesa de operações:
– Tudo bem, Marcílio?
– Está doendo muito, doutora...
– Mas logo você vai ficar bem e voltar a fazer tudo o que gosta. Joga futebol?
– Sim.
– Pois, dentro em breve, vai poder ser o artilheiro do seu time – disse, sorridente.
O jovem deu um leve sorriso, também.
– E a raqui? – perguntou Heloisa à anestesista.
Ela meneou a cabeça e ergueu o tronco do garoto, que gemeu de dor. Pegou a injeção e
escondeu da vista do jovem. Tateou um espaço entre as vértebras e a aplicou.
Dentro em pouco, a anestesia faria efeito. A raquidiana é administrada na região pós-dura-
mater, a principal camada que recobre a medula espinhal, atingindo o líquor, o líquido existente
no canal medular central. O efeito foi imediato. A insensibilidade, total. O rapaz parou de gemer.
Depois, foi sedado.
Começado o procedimento cirúrgico, sentiu pena do ainda garoto e lembrou-se das inúmeras
mortes e lesões graves ocorrentes diariamente em virtude da imprudência ao volante. O automóvel
é uma arma nefasta quando entregue a quem não sabe dominá-lo da forma correta. E os pais,
muitas vezes, são co-autores inconscientes da morte dos próprios filhos. Ela mesma recordou
que só depois do terceiro ano de medicina é que foi possuir um carro.

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O escultor da alma

Durou cerca de três horas a intervenção cirúrgica. O seu fêmur foi rompido no terço médio
superior, tendo sido implantado um fixador externo, através de hastes metálicas. O paciente
ainda sofreria um bocado com aquela grade metálica em sua coxa. Mas a imobilização era necessária
para que o osso cicatrizasse. E o único meio disponível para o caso era aquele. Ao final, estava
exausta. Não devido ao esforço físico, mas à concentração, pois deveria permanecer alerta aos
detalhes ou provocaria sérios problemas ortopédicos no rapaz. Pensou: “não vão ficar nenhuma
maravilha as vinte e duas suturas na coxa. Mas, pelo menos, poderá praticar todas as atividades
normalmente, depois do prazo de convalescença”.
Terminada a cirurgia, descansou alguns minutos e passou ao plantão. Por volta das cinco e
trinta da tarde é que foi fazer o trabalho de acompanhamento de doentes.
Já na ala de oncologia, pediu os prontuários dos pacientes por ela acompanhados. Naquele
dia, iria chamar Alberto para conhecer o senhor Ângelo. Ao final, disse à enfermeira:
– Sandra, e o paciente do 38?
– Não soube?
Heloísa gelou, pensando no que acontecera e perguntou em seguida:
– Não, o que houve com ele?
– Veio a óbito hoje de madrugada. Parada respiratória devido ao tumor no bulbo. Morreu
dormindo.
– O Sr.Ângelo!?
– Ele mesmo. Teve muita gente aqui hoje de manhã. Seu corpo vai ser embalsamado porque

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O escultor da alma

os filhos moram no exterior e vêm para o enterro. Nunca tinha ouvido falar dele? Era o doutor
Ângelo Nelson da Costa Brava. Foi embaixador. Um conhecido me disse que era um homem
rico, mas de muita simplicidade, e que depois que se aposentou voltou ao Brasil para cuidar de
suas terras. É uma pena. Mas é a realidade de um hospital.
Heloísa foi tomada pela emoção, mas se conteve. Sabia da gravidade do quadro e de sua
irreversibilidade. Pelo menos ele não sofreu, pois morreu dormindo – raciocinou. Realmente, em
muitos casos oncológicos o doente sente dores imensas, terebrantes, só minoradas por sedativos
potentes como a morfina. Sentiu-se reconfortada por ver que pelo menos essas dores não
consumiram o amigo. Apesar disso, foi até o alojamento dos médicos e lá chorou baixinho por
uns instantes.
Quem se importa em mostrar o que tem é porque esconde o que é. Heloisa aprendeu a
admirar o velho fazendeiro Ângelo, humilde e valoroso. Por trás havia uma figura importante, um
homem do mundo, um diplomata, que jamais precisou usar sua posição para cativar aqueles que
dele se aproximavam. Em nenhum momento, nas conversas com Heloísa, deixou transparecer o
seu passado de destaque e nem a sua fortuna presente.
O enterro foi bastante concorrido. Somente naquele instante veio a saber que o velho tivera
três filhos, todos residentes no exterior. Maria lá estava e reconheceu Heloísa:

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O escultor da alma

– Nos últimos dias ele sempre perguntava por você, gostava de sua companhia – disse a
velha.
– Ele era um homem incomum, vou sentir saudades – falou Bela.
A grandeza de alguém está, acima de tudo, na simplicidade e não na ostentação. Ângelo se
tornara um exemplo disso. Era um anjo, como o próprio nome dizia.

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O escultor da alma

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Os dias foram se passando e os sentimentos de Heloísa ficando cada vez mais confusos.
Mariano tentava, a todo custo, reconquistar a jovem, mas sentia que a queda havia sido grande.
Embora Alberto tivesse falado da página da internet, devido à morte de Ângelo sequer
estava se lembrando de matar a sua curiosidade. Havia se passado uns dias. Resolveu acessá-la
naquela noite. E digitou o endereço fornecido. Segundos depois, apareceu a página principal. O
site era discreto. Havia os acessos às salas de ajuda e à área restrita. Para sua surpresa, o primeiro
caractere da senha tinha tudo a ver com o lema amigos eletrônicos. Foi só deixar a tecla ALT
pressionada enquanto digitava 0230. Apareceu o caractere mestre. Mas como não tinha os demais
números da senha, resolveu entrar nas salas de bate-papo.
Como Alberto havia dito, as salas eram abertas e divididas por regiões. Pôde, então, Heloísa
entender porque tinha tal divisão: eram muitas pessoas conectadas, senão não haveria como
conversar direito. Seria um tumulto.

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O escultor da alma

Foi olhar, então, os temas. Havia vários: Amor; Saudade; Tristeza; Perdas; Saúde; Boa forma;
Cultura Popular; Pintura; Poesia; Cinema; Aviação; Tecnologia, e assim por diante. Resolveu
pedir ajuda no tema amor. Primeiro lhe pediram para digitar um apelido. Colocou Tâmara. Foi
então direcionada a uma nova janela. Foi dado o aviso de que ela estava querendo conversar sobre
amor. Dentro de poucos segundos, chegou a notícia:
<Querubim entrou na sala>. Olá, Tâmara. Quer conversar sobre amor?
<Tâmara>. Sim. Estou com uma dúvida. Namorei um rapaz durante quase quatro anos e,
depois disso, flagrei-o com a minha melhor amiga. Terminamos e depois ele me pediu para
voltar. Ficamos uma noite, mas perdi a confiança e o gosto pela relação. Porém não quero perdê-
lo.
<Querubim >. Primeiro, qual a sua idade? E depois, o que é que você sente quando está com
ele?
<Tâmara>. Tenho vinte e quatro. Não consegui definir ainda o que estou sentindo. Mas
alguma coisa mudou para pior. Quando o beijava antes, sentia algo especial, mas agora não é mais
o mesmo.
<Querubim >. Talvez você tenha avançado o sinal. Acho que melhor seria esperar mais um
pouco. Por que não pede um tempo?
<Tâmara>. Não sei se teria coragem... Afinal, estamos ficando, e tenho receio dele arranjar
outra e não conseguir mais voltar.
<Querubim >. A vida é feita de riscos. Não dá para conseguir tudo de uma vez. Veja bem, já

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O escultor da alma

passei por uma situação parecida e percebi que a melhor escolha foi ter dado um tempo. Se ele
está querendo voltar, é porque gosta de você. Ele não iria deixar de gostar assim, de uma hora
para outra.
Outras pessoas entraram e deram suas opiniões. Mas Querubim foi quem lhe chamou mais
a atenção. Houve uma empatia mútua entre os dois. Depois de uns quarenta minutos, Heloísa se
despediu. E se dirigiu a Querubim:
<Tâmara>. Obrigado pelo conselho. Já vou. Como se chama?
<Querubim >. Eu sou apenas um querubim querendo ajudá-la. Isso é o que importa, tá?
<Tâmara>. Tá certo. Tchau.
Heloísa gostou. Mas era estranho. Sentiu-se um pouco encabulada em se abrir com uma
pessoa que jamais conhecera. Porém, resolveu que aquela tinha sido a primeira experiência no site
“Coração do Mundo”. Mas não seria a última. Ligou imediatamente para o celular de Alberto e
pegou o seu elo com a finalidade de ter acesso ao conteúdo restrito, também. O que mais a
impressionou foi a sinceridade com que as pessoas falavam sobre os problemas e tentavam auxiliar.
E era preciso superar suas dificuldades. O que viesse a somar, seria bem vindo.

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O escultor da alma

19

Com o passar dos dias, porém, foi voltando a adquirir confiança no jovem. Sequer acessou
mais que quatro vezes o site. Contou em casa que estavam apenas conversando, mas o envolvimento
já era total com Mariano.
Passaram um final de semana juntos em um hotel-fazenda. Desfrutaram da companhia um
do outro e se soltaram às emoções. Mariano não podia ser tão ruim quanto ela havia pintado. É
que quando estamos magoados, tendemos a transformar os sentimentos. Quanto maior o amor,
maior a desilusão. Não podemos ter uma decepção de quem não gostamos. Mas ao mesmo
tempo, é preciso saber perdoar. E era isso que Heloísa estava tentando fazer.
A viagem de volta transcorreu em harmonia. Dialogaram alegremente durante o percurso,
cada um falando dos planos futuros. Finalmente Bela estava disposta a recomeçar com Mariano.
Durante a viagem, ele até tinha dito que sairia de casa e essa seria uma boa oportunidade de
morarem juntos no apartamento que estava adquirindo:

161
O escultor da alma

– Que tal? Poderíamos fazer um test-drive.


– Nem pensar, Mariano. Dona Raquel iria ter um ataque cardíaco. Mas nada impede que
façamos boas visitas a ele...
Ao chegarem, beijaram-se e ela entrou rapidamente em casa. Mariano estava apressado porque
tinha perdido a hora de fechar o balanço de um dos postos de gasolina.
Heloísa contou para a mãe do reatamento. Ela se mostrou receptiva à notícia. Porém, quando
já estava para se deitar, ouviu o barulho de um celular tocando. Ao abrir a bolsa, percebeu que
Mariano havia esquecido o aparelho celular com ela. Como tinham ido nadar em uma lagoa ainda
pela manhã, o telefone tinha lá ficado e, na pressa para ir embora, nem se lembrou de pedir de
volta.
Ao atender, uma voz feminina foi logo perguntando, chateada: – Mariano, cadê você? Está
atrasado mais uma vez. Estou aqui já toda arrumada esperando você.
Heloísa desligou, assustada. Não acreditou no que tinha ocorrido. O número chamado era
desconhecido. Quem estaria ligando para ele às dez da noite? Certamente não seria nenhuma
empregada porque antes diria “doutor Mariano”. O tom com que falou denotava intimidade. O
certo é que a desconhecida o esperava... Resolveu, portanto, ligar para o número que originou a
chamada. Mas eis que antes seu telefone toca. Era Mariano de um dos postos de gasolina. Aflito,
lembrou-se de que esquecera o celular em sua bolsa e pediu-lhe que desligasse o aparelho porque
iria sair no outro dia cedo e não teria tempo de recarregar a bateria que já estava baixa. Perguntou
ainda se alguém havia ligado.

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O escultor da alma

– Não, meu amor, ninguém ligou – desconversou a jovem.


Teve vontade de explodir. Entretanto, nessa hora, lembrou-se do conselho de Ângelo. Resolveu
testar antes de decidir alguma coisa. Poderia ser só um mal-entendido. Ou mesmo ser uma parente
que não conhecia. Ligou para Alberto e pediu um favor:
– Alberto, desculpe-me ligar a essa hora, mas eu preciso de um favor seu.
– Pois diga, Bela.
– Você poderia ligar para um número de celular e perguntar a quem pertence?
– Só isso?
– Só. Mas é muito importante. Se você conseguir mais alguma coisa sobre essa pessoa,
melhor ainda.
– Está certo.
Após uns vinte minutos, Heloísa já ansiosa, Alberto dá a resposta.
– O nome dela é Gabriela, mora distante, é comerciária, tem dezenove anos e é de escorpião.
– Como você conseguiu isso tudo?
– Foi fácil. Fingi ser ligação errada e puxei assunto. Até combinamos de nos conhecer –
respondeu Alberto, airoso.
Heloísa ferveu. Daquela vez, não haveria mais perdão. Todavia, resolveu aguardar o dia
seguinte. Nem saiu do quarto, chateada.
Ele ligou logo pela manhã. Agora ela descobrira o porquê. Sentia o peso na consciência e por
isso a agradava logo na manhã seguinte. Depois de ouvir seus galanteios, ela lhe pediu para pegá-

163
O escultor da alma

la no hospital após o trabalho, no início da noite.


Como já tinha sofrido muito da primeira vez, o impacto foi muito menor. Sentiu-se usada, é
verdade, mas decidira que Mariano não mais estaria em seu futuro.
Após o trabalho, como combinado, Mariano a esperava à entrada do hospital.
Ela nem entrou no carro e foi logo dizendo, ainda da janela:
– Posso ir dirigindo?
Mariano estranhou. Mas como ela ainda não havia dirigido seu carro novo, prontamente
deixou, passando para o banco do passageiro. Ela abriu a porta do lado do motorista e entrou.
Logo que saíram, ela foi dizendo:
– Sabe quem me ligou hoje? Gabriela. Conhece?
O rapaz ficou pálido e engoliu seco. Sem nenhuma convicção respondeu:
– Não...
– É uma gatinha, não é mesmo, Mariano?
– Deixe-me lhe explicar...
– Pois pode começar agora mesmo.
– Eu a conheci quando terminamos. Ficamos algumas vezes, mas hoje iríamos terminar.
– Mentira. Iam mesmo era para um motel. Foi ela quem me contou – blefou.
– Mas eu iria acabar.
– Nem adianta mais. Espero que seja feliz. Vocês se merecem. Agora nunca mais me procure,
nunca mais!

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O escultor da alma

E, enquanto dirigia, falou a ele da sua falta de sensibilidade. Que a tinha feito sofrer e que
mesmo assim ainda teve coragem de continuar enganando-a. Ele só ouviu, apático. Durante esse
monólogo, o telefone de Heloísa tocou:
– Alô! Chicão? Está chegando? Eu também, dentro de dez minutos. Pagarei o tempo extra,
não se preocupe.
– Para aonde estamos indo, Heloísa?
– Para a beira-mar da praia do Barro Seco – um local que costumavam freqüentar, porque
fora da época de estação ficava praticamente deserto, bom para namorar... – Quero lhe mostrar
uma coisa. Garanto que não vai esquecer, pois tenho certeza de que vai ajudá-lo a saber o que
estou sentindo e o quanto sofri. Eu também preciso disso.
Mariano não estava em condições de exigir nada. Era até melhor deixá-la desabafar, só assim
a raiva dela passaria e talvez até conseguisse contornar a situação. Gabriela era uma relação que
mantinha, há alguns meses. Dália não tinha sido a única, mas tão somente a ponta do iceberg. O
problema foi que Heloísa a descobriu. Nesse caso, ele realmente se arrependeu, mas não pela
traição e sim pela escolha que havia feito. Tinha sido muita ousadia ficar saindo logo com Dália.
Era lógico que alguém, senão ela mesma, iria deflagrar a história. Desconfiava de Dália mesma,
até porque, nas semanas anteriores, ela o havia pressionado para largar Heloísa.
Ele era do tipo machista. Daqueles homens que queriam a sua mulherzinha em casa guardada
para ele e as outras para sua satisfação. Estava fora do seu tempo sem saber, embora não tivesse
se apaixonado por nenhuma daquelas que fizeram parte de suas aventuras.

165
O escultor da alma

Em todo caso, sua situação não era nada confortável àquela altura dos acontecimentos.
Preocupava-se com sua imagem porque, desta vez, a revolta de Heloísa poderia ser muito maior.
Portanto, o melhor foi fazer o recuo estratégico e esperar para ver o que acontecia.
– Esse carro é muito bom. Você gosta dele? – perguntou Heloísa com uma ponta de malícia.
– Claro, me custou uma nota – respondeu, contrariado.
Ao chegarem no local, subitamente ela acelera e entra em um acesso para bugres da praia
típica de veraneio que, em face de não ser estação de férias, encontrava-se deserta – tudo isso em
meio aos gritos de Mariano, que se preocupava com seu carro, que não fora concebido para andar
naquele tipo de terreno. Já na areia, próximo à arrebentação, pára o veículo.
– Você está louca? O carro vai atolar!
E atolou mesmo.
Heloísa mira os olhos dele e fala, séria:
– Lembra-se de que você disse que uma molhadinha no seu carro não era nada? Como nunca
gostou de mim, resolvi tirar algo de que amasse realmente, seu conversível novinho. Essa é para
que saiba que não pode brincar com os sentimentos alheios e o quanto dói perder algo de que se
gosta.
Ele, não acreditando na ousadia da namorada, fica atônito. Nem responde. Apenas os olhos
se arregalam e a boca se entreabre.
E Bela arremata:
– São sete e meia da noite – disse, olhando para o relógio. – A maré está subindo... – ela abriu

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O escultor da alma

a porta do veículo e saiu calmamente.


Ele, então se deu conta da cilada, saiu contrariado do veículo, vendo as ondas já alcançando
os pneus dianteiros. Foi para o banco do motorista, desesperado, tentando salvar o carrão esportivo.
O automóvel estancou porque o motor já estava todo molhado, enquanto a espuma das ondas
explodia na grade dianteira. Precisava de socorro urgente.
– O celular, o celular, Heloísa!!! – esbraveja, em estado que beirava o caos.
Sem, sequer, olhar para trás, responde:
– Está dentro do carro em algum lugar. Procure.
Ele saiu à cata do aparelho e finalmente o encontrou: – alô, é do serviço de guincho? Pelo
amor de Deus, estou com o carro sendo engolido pelo mar...
Enquanto isso, Heloísa, com os sapatos à mão, toda de branco e como um cisne vingado,
saiu da areia ereta e embarcou no táxi que a esperava...
– Seu Chicão, não lhe disse que estaria na hora marcada?
O veterano taxista – que tinha ponto em frente ao hospital e havia sido contratado previamente
para aquela corrida – sem entender o que estava ocorrendo, olhou a sua já conhecida cliente do
hospital e disse, com um ar de preocupação:
– Doutora, aquele rapaz vai perder o carro, melhor chamar um guincho rapidamente pelo
meu rádio.
– Não se preocupe, seu Chicão, ele já perdeu coisas mais valiosas em sua vida...
E saíram daquela praia deserta, deixando o jovem empresário lutando contra as ondas do

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O escultor da alma

mar que encharcavam o interior de seu conversível. O automóvel não foi engolido pelas vagas
porque o reboque chegou a tempo e Mariano, todo molhado, o defendeu, com unhas e dentes, da
força das ondas. Mas jamais teria coragem de cobrar de Heloísa o grande prejuízo que teve.
Mentiu aos amigos e parentes, de vergonha, dizendo que tinha ido dar uma volta na praia,
imaginando que seu veículo não atolaria, e por isso o acidente. Todos acreditaram, riram da cena
dantesca contada por ele e o chamaram de burro, dentre outros epítetos nada elogiosos...

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O escultor da alma

20

Douglas passou uns dias tristes depois do término com Tereza. Para ele, o fim poderia ter
sido outro. Mas não foi o que aconteceu. E o que lhe restava fazer? Sair com os amigos, ampliar
suas amizades e conhecer novas pessoas. Era preciso colocar a sua vida pessoal em ordem, afinal
de contas, como já costumava dizer, “quem age na vida olhando para baixo, vê apenas as unhas
dos pés. Quem age na vida olhando para cima, contempla as estrelas”.
Apesar disso, podia-se, de seu bloco de notas posto ao lado da cama, ver uma poesia onde
extravasou seus sentimentos, feita durante um momento de abandono e recatamento, ao deitar:
SOLIDÃO

Solidão é preencher-se de nada.


Ver-se sozinho em meio à multidão.
É viver numa incógnita estagnada:

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O escultor da alma

Por quem deve bater o coração?

Solidão é morrer ao sol, de frio.


Por onde anda a outra metade?
Não brilham estrelas sobre o céu anil,
Sentir a fuga da felicidade...
Pensar no futuro — resto de esperança.
Lembrar o passado — qual cinema-mudo.
Levando, assim, a vida — numa lenta dança.
Solidão começa onde termina tudo...

No final de semana, rumou para a cidade dos pais, onde resolveu sair à noite com os amigos.
Em uma mesa de bar, surgiu a discussão sobre bate-papo na rede. Alguns reclamavam que não
havia um lugar em que se pudesse encontrar pessoas que valessem a pena. Contou Jacinto –
aquele amigo dentista metido a conquistador – que certa vez havia entrado num site e conversado
com uma tal de Bianca. Na época, ele estava brigado com a noiva e despejou suas mágoas,
angústias e sonhos, tendo recebido total apoio e compreensão da menina. Já ela contou que
também passava por problemas emocionais parecidos e que não sabia o que fizesse para resolvê-
los. Ele aconselhou paciência e diálogo. Começou, então, uma boa amizade via internet. Sempre
se falavam, trocavam e-mails e coisas do tipo. Mas tudo se resumia ao contato na rede. Até aí tudo

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O escultor da alma

bem, mas quando Bianca contou que estava apaixonada por Jacinto, ele não perdeu a chance de
convidá-la para sair. Porém, antes disso, ela perguntou se ele tinha preconceito com pessoas que
fumam. Ele disse que não curtia cigarro, mas, no mais, não tinha problema. E se fosse uma
pessoa mais alta do que ele? Também sem problema. Porém, quando ela perguntou se sexo no
relacionamento era problema, ele disse que se ela estivesse carente ele poderia ajudá-la, que com
o tempo a mulher precisa de carinho e de um homem de verdade ao seu lado – já bastante
animado a essas horas. Foi então que Bianca disse: “O problema não é o sexo, mas o meu sexo...
tenho que admitir: meu nome é Abelardo!” – Todos caíram na risada.
Cada um, em seguida, contou seus “causos” na internet, um mais inusitado que o outro.
Houve até quem mandasse e-mail para a sogra falando mal dela, pensando que estava enviando
para um cunhado.
Mas eis que Israel conta sobre um site onde as pessoas vão falar de seus problemas de uma
forma séria. Fala dos propósitos da página, qual seja o de ajudar pessoas com o fim de construir
uma sociedade com mais união e fraternidade. Alguém perguntou a ele:
– Qual é a igreja?
– Não, não é de igreja. Pelo contrário, não se pode discutir religião. Somente temas interessantes
são lá debatidos. Também não se fala em futebol e nem em política partidária.
– Agora só falta não poder falar de mulher e nem de bebida – disse um dos amigos.
– Pode sim. Tem uma seção só com artigos sobre vinhos, além de uma lista de discussão...
Foi então que Douglas se sentiu interessado. O gosto pelo vinho era antigo, mas foi na Espanha

171
O escultor da alma

que pode apreciar mais a arte de saborear a referida bebida.


– Bem, temos aqui um grande enólogo – disse Jacinto, apontando para Douglas.
– Enófilo, caro Jaça. Enólogo é quem tem curso superior. Eu sou apenas um autodidata.
Vou acessar essa página – falou, dirigindo-se a Israel.
Foi então que Israel contou que a página era restrita aos filiados, e que somente as salas de
bate-papo estavam disponíveis para o público em geral, isto é, para aqueles não associados ao site
“Coração do Mundo”.
– E como faço para fazer parte deste seleto grupo? – perguntou Azatto.
– Tem que ser convidado.
– E você pode me convidar?
– Eu não posso mais. Cada um tem direito a inscrever uma pessoa. Mas posso perguntar a
quem inscrevi se ainda não usou seu segundo elo. Se ele concordar, peço para dá-lo a você.
Jacinto, gozador, não deixaria passar em branco:
– Hum... Passar o elo... Oh! Israel, não venha me convidar para uma dessas que estou fora!
Que coisa feia! Passando o “elo” por aí...
– Você adora zombar, meu caro inculto. Mas é porque o sistema funciona como uma corrente,
por isso o termo “elo”. Pode deixar, Douglas – voltando-se ao outro amigo – vou ligar agora
mesmo para ele. – Pegou o telefone celular e efetuou a ligação, afastando-se do barulho do grupo.
Depois de uns segundos, retornou. Dirigindo-se ao amigo, disse: – Pronto. Amanhã ele irá lhe
passar um e-mail com a senha.

172
O escultor da alma

***

Douglas, ao abrir sua caixa de mensagens na manhã seguinte, lá estava a senha de acesso e
algumas orientações do amigo de Israel, que lhe fornecera o elo de acesso.
Ao final da tarde foi correr – um de seus hábitos – num dos principais parques da metrópole
e se lembrou da conversa com os amigos. Poderia ele encontrar ajuda para superar a dor da perda
de Tereza? Uma coisa estava bem definida em sua cabeça: embora ainda a amasse, iria procurar a
sua felicidade. Já tinha feito o que lhe estava à altura para solucionar o problema da distância. Foi
triste constatar, mas talvez Tereza não o amasse o suficiente para vencer seus medos. E não seria
ele o algoz de um futuro frustrante para ela. Amar é querer melhorar. Seria egoísmo de sua parte
pedir um sacrifício não desejado por ela, transformando em uma prisão o que deveria ser liberdade.
O amor é livre, e as pessoas devem ser livres para poderem decidir sobre ele.
Mesmo diante de uma decisão, não se pode mandar no coração. Em sua mente, um flash-back
se dava sempre que alguma coisa lembrava a jovem espanhola, fosse aquela bonita moça que
caminhava absorta no shopping, fosse um carvalho imponente, que o recordava de uma certa vez
que, repetindo um gesto milenar, talhou na casca o nome dos dois em uma árvore existente na
fazenda dos pais de Tereza...
Após o trabalho, já em casa, entrou no site, digitou a senha principal e a individual. Abriu-se

173
O escultor da alma

então, uma página que continha as regras básicas de navegação e comportamento. Era proibido o
uso de termos chulos. A ética estava dentro da maneira de se portar. A finalidade era retransmitir
cultura e divulgar notícias e assuntos de interesse geral ou mesmo de um grupo de pessoas, desde
que tivesse cunho artístico, médico, sociológico, tecnológico ou humanitário. Seguindo esse
palmilhar de conduta, não se admitia a proliferação de propaganda comercial de qualquer natureza
e nem a administração de doutrina religiosa, não que propagasse o ateísmo, uma vez que se
pretendia o ecumenismo. Era recomendável que os membros usassem sempre seu nickname e não
revelassem sua identidade real, visando conservar a filosofia de fraternidade acima da
individualidade, e o caráter filantrópico. No caso de quebra de qualquer das regras de conduta, o
fato poderia ser comunicado imediatamente por qualquer membro, com a aplicação de uma
suspensão ao infrator. Em havendo reincidência, a senha individual seria retirada, perdendo o
acesso ao conteúdo exclusivo. Mas como a intenção era ajudar pessoas, as salas de bate-papo
estariam sempre disponíveis.
Cada usuário recebia dois elos da corrente “amigos eletrônicos”, o próprio e um outro a ser
passado à pessoa que aconselhavam ser bem escolhida. Tinha que digitar um nickname: escolheu
EA, tão somente. Também cada membro recebia um endereço de correio eletrônico. O dele
ficou ea@alvor.org.br.
Douglas concordou com as condições e foi, imediatamente, tornado membro da página,
tendo acesso ao conteúdo restrito.
Ao contrário das salas de discussão, anônimas, havia uma parte destinada à divulgação de

174
O escultor da alma

obras artísticas, artigos e variedades de autoria de membros do site, em que os autores eram
conhecidos, até para a proteção dos direitos autorais – das mais variadas áreas, que iam da filosofia
à política urbana. Foi até a página dedicada à enologia, onde pôde aprender um pouco mais sobre
o assunto.
Vários poetas tinham seus trabalhos lá divulgados, o que o animou, também, a fazer parte.
Já nas salas de bate-papo, entrou numa que tratava de depressão, somente para compreender
o comportamento dos membros. E pôde perceber que a finalidade era mesmo a de ajudar pessoas.
Um homem já idoso, que morava sozinho e tinha uma péssima relação com os filhos, pensava em
suicídio. Lá estava tentando encontrar uma saída. A tônica dos membros durante a conversa com
ele foi a de que deveria restabelecer um diálogo com os filhos e que seu suicídio não poderia ser
utilizado como arma para feri-los porque quem sairia perdendo seria ele, que deixaria de ter o
dom mais precioso: a vida.
Leu, nas instruções, que deveria se inscrever nos temas que lhe interessassem mais. E os fez:
amor, poesia, enologia e filosofia. Havia até uma página sobre direito comercial, que tinha muito
a ver com o seu trabalho. Inscreveu-se nela também.
Com o passar dos dias, começou a participar das discussões nas salas de bate-papo. Na de
direito comercial, fez algumas orientações a um consumidor que estava sofrendo com um vício
do produto que adquiria em uma loja de eletrodomésticos. Quando ele perguntou se poderia
Azatto ser seu advogado, cumprindo a regra da página, disse-lhe que era apenas um amigo, ainda
que anônimo, uma vez que o verdadeiro amigo é aquele que quer e faz o bem a outrem. E ainda

175
O escultor da alma

que procurasse um bom causídico e terminaria satisfeito.


Na sala que tratava de amor, pôde conversar com várias pessoas. Uma delas, que parecia ser
uma jovem, contou como se vingara das traições do ex-namorado, fazendo com que ele, uma
pessoa materialista, se desesperasse com o próprio carro atolado à beira-mar. Mostrou fibra.
Dentre os que com ele mantiveram contato, esta, em especial, lhe chamou a atenção. Como havia
sido traída pelo referido namorado, encontrava-se desiludida, o que não era de surpreender.
O diálogo foi bem interessante. O apelido dela era Tâmara. Soava exótico. Parecia estar
sofrendo bastante, mas estava disposta a recomeçar a vida, assim como Douglas. Encontravam-
se na mesma situação, embora que por motivos diversos. A jovem se queixava, ainda, da ausência
do pai, que morrera meses antes e que fora seu grande confidente e amigo. Outras pessoas
também com ele travaram conversa, mas sem muito destaque para Azatto.
No final, ocorreu o seguinte:
<Tâmara>. Não sei como poderei acreditar nos homens. Sofri um baque muito grande e
agora o que preciso é saber como poderei me entregar ao amor novamente. Estou travada e
ferida. Mas preciso continuar a vida.
<EA>. O que você precisa fazer é transformar a ferida em cicatriz.
<Tâmara>. Mas como?
<EA>. Só o tempo resolve. Estou passando por uma situação parecida. Morei fora um
período e lá deixei uma pessoa que muito amava. Mas, infelizmente, ela não pôde vir comigo.
Resolvi vencer essa dor e sei que só com o tempo resolverei isso. Seria muito bom se tudo na vida

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O escultor da alma

fosse como quiséssemos. Mas não é assim. O importante é encarar a vida pelo lado positivo.
Você agora tem mais tempo para fazer o que quer, pode se cuidar melhor e ampliar suas amizades.
Além disso, a gente nunca sabe o que irá acontecer no futuro. Quem sabe a dor que sentimos
agora não seja o desafogo de uma imensamente maior pela qual passaríamos no futuro. Não
estou dizendo que é bom sofrer. Mas como já dizia uma amiga, o sol que escalda o deserto é o
mesmo que anima o bosque. Guarde isso sempre que pensar no seu ex.
<Tâmara>. Bonita frase: o sol que escalda o deserto é o mesmo que anima o bosque... Vou
guardá-la comigo. Olha, EA, gostei do nosso diálogo. Mas já está tarde e estou muito cansada.
Preciso ir. Você estará aqui nesse mesmo horário amanhã?
<EA>. Estarei, Tâmara. Diga-me uma última coisa. Gosta de poesia? Se responder sim
receberá duas na sua caixa de correio do site.
<Tâmara>. Sim. Mas não sei se entenderei bem. Tinha um amigo que escrevia umas coisas,
mas não dava para extrair algo significativo. Sempre fui de ler mais livros técnicos.
<EA>. Mas não tem importância. O importante é interpretá-la. Um texto técnico se lê,
porque ele é objetivo. A poesia sente-se através da interpretação, já que as palavras escondem
seus significados mais marcantes, e só mostram seus grandes mistérios para os que a sabem
desvendar. Pois então dê uma lida nelas e amanhã nos encontraremos aqui na mesma hora, sala
241, promete?
<Tâmara>. Prometo.
Enviou a ela, então, “O Verso do Reverso e o Reverso do Verso”, com a finalidade de mostrar-

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O escultor da alma

lhe que todas as situações da vida podemos encarar com pensamento positivo.
Depois de sair do site, percebeu o quanto poderia ser útil a outras pessoas. Mas em nenhum
momento pediu ajuda para os seus próprios problemas, até porque sabia que o único remédio
para ele tinha apenas cinco letras: tempo.

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O escultor da alma

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Embora seu coração ainda estivesse abatido com mais uma desilusão, teve coragem de dar
uma lição em Mariano. Daquela vez nenhuma pessoa veio perguntar sobre o acontecido, até
porque quase ninguém chegou a saber do reatamento. Heloísa já imaginara que ele não tinha
contado o que realmente ocorrera. Disposta a tirar Mariano definitivamente de sua vida, procurou
sair e conhecer outras pessoas. Alberto era companhia constante e juntos foram assistir a um
filme.
Nessa oportunidade, o amigo perguntou se ela havia acessado a página do site “Coração do
Mundo”. Ela falou que só umas quatro vezes. Lembrou-se então de lhe passar a senha individual
para que ela acessasse o conteúdo exclusivo, também: AZ23W.
– E quem sabe você encontre uma ajuda. Nessas horas, é bom conversar com alguém.
Já passava das duas da manhã quando os amigos foram embora. Queriam ir a uma boate.
Bela e Alberto não toparam. Ficaram só os dois, apenas, sentados à mesa.

179
O escultor da alma

Alberto, então, mirou nos olhos de Bela e falou:


– Não vai demorar para você encontrar uma pessoa especial. Em todo caso, talvez fosse
melhor esperar um tempo. Mas gostaria de dizer que você é cativante, bonita e inteligente.
– Não diga isso, Albertinho, que eu fico sem jeito.
– Mas é verdade. Sabia que eu já paquerei você?
A jovem ficou sem reação após aquela afirmação. Será que ele sabia dela? Resolveu contar:
– Eu também.
– Pena que sejamos hoje amigos, não é verdade?
– É... – disse Heloísa.
– Mas está na hora, preciso acordar cedo amanhã. Vou sair para pescar com o meu pai.
– São só duas horas. E faz tempo que não saio, Alberto. Além disso, esse barzinho é tão
legal...
O jovem olhou contrariado para ela e, com sinceridade, disse:
– Bela, não podemos ficar mais aqui senão estaremos cometendo um grande erro – seu
coração acelerou e o jovem corou.
– Como assim?
– Você está carente e pode confundir as coisas. Não que um dia não possamos namorar, mas
é que, no momento, você precisa colocar sua cabecinha no lugar.
– Nem se preocupe, Albertinho, porque eu estou tão descrente de relacionamentos que nem
sei se vou poder me entregar ao amor novamente da mesma forma.

180
O escultor da alma

Com um misto de alívio e decepção, uma vez que a achava atraente, mas reconhecia a
vulnerabilidade dela e o fato de que necessitava primeiro sarar as feridas para poder se envolver
com alguém, resolveu guardar seus sentimentos para o momento oportuno. Afinal de contas, o
amor é paciente. E assim, Alberto sorriu para a amiga. Foram, então, embora, conversando
alegremente.

***

No dia seguinte, quando chegou do plantão, Bela acessou sua caixa de correio e lá estava o e-
mail. Abriu. Não havia nenhuma mensagem. Apenas a poesia:
<<De: [æ@alvor.com.br] ea@alvor.com.br>>
<<Para: tamara@alvor.com.br>>

O VERSO DO REVERSO E O REVERSO DO VERSO

Lutar pra ter um mundo mais feliz!


Sonhar com uma ordem bem mais justa
A Nação que sempre se quis...
Jamais desistir da luta...

181
O escultor da alma

Não! Prefiro ir vivendo assim:


A paz na submissão...
É a melhor saída para mim.
E a luta contra a opressão?

É a covardia, sem calma,


A essência dos desvalidos
Sempre esteve em minha alma –
E a coragem pra não ser vencido?

Depois, nossos problemas pessoais


Que são mais importantes para nossa paz,
Temos que nos preocupar com eles
Porém, vejo a miséria de milhões...

Contudo, é difícil encarar a luta...


Poucos esbanjam, muitos se privam,
Se ninguém denuncia esse crime!
Não quero mais nem saber
Que desilusão! Estava precisando de uma palavra de apoio, e ele lhe mandara um poema

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O escultor da alma

horrível. Como havia dito o misterioso companheiro de site, interpretou a poesia. Na segunda
quadra, dizia que preferia a paz na submissão. Na terceira, afirmava que a covardia sempre estivera
em sua alma. Na quarta, os problemas pessoais deveriam ser a coisa mais importante, revelando
um funesto egoísmo. E na última, reafirmava sua alienação. Pensou, então, Heloísa: “Aquele
rapaz deve estar brincando. É como se estivesse dizendo: não adianta, você não vai superar seus
problemas”.
À noite, quando do horário marcado, conectou-se à internet.
Em pouco tempo estava na mesma sala 241, conversando com aquele que já tinha apelidado,
secretamente, de “O poeta do apocalipse”, autor de uma trágica e infeliz poesia. Resolveram
conversar em reservado. O reservado é um meio de conferir exclusividade ao diálogo. As outras
pessoas da sala não têm acesso aos diálogos nesse modo. Não era recomendado pelo site, mas
como se tratava de discussão de um assunto pessoal, e Heloísa iria criticar EA, melhor fazer sem
que os outros tivessem conhecimento.
<EA>. Olá, Tâmara. O que achou das poesias? Ajudaram você?
<Tâmara>. Vamos conversar em reservado?
<EA>. Sim, sem problemas.
<Tâmara>. Não me julgue grosseira. Mas posso ser sincera, misterioso amigo?
<EA>. Deve. Não se preocupe, eu supero.
<Tâmara>. Primeiramente, você só mandou uma poesia. Fui ler pensando em algo que me
fizesse sentir melhor. Todavia, para minha surpresa, o que entendi da poesia foi que se tratava de

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O escultor da alma

uma pessoa que via os problemas sociais, mas era submissa, covarde, egoísta e individualista,
além de alienada, só se importando com o próprio umbigo. Tenho certeza de que você não pensa
assim e nem teve a intenção de me colocar para baixo. A mensagem passada é a de que não se
deve lutar para vencer os problemas porque eles são insolúveis. E, por sinal, caro amigo, não
precisa mandar a outra. Muito obrigado. Estou certa?
<EA>. Exatamente. Isso no Verso do Reverso. E no Reverso do Verso?
<Tâmara>. É uma poesia só. Ou não é?
<EA>. O que eu quero é fazer você descobrir. O que posso lhe dizer é que são duas: o Verso
do Reverso e o Reverso do Verso.
<Tâmara>. Pois então me mande novamente porque só veio uma. Houve um erro. Pode
olhar na sua caixa de mensagens enviadas. Você cometeu um esquecimento. É a sua chance de se
redimir.
<EA>. Você é uma pessoa inteligente. Vou lhe mandar uma dica.
<Tâmara>. Agora virou um jogo, foi?
<EA>. Não. É porque faz parte do processo.
<Tâmara>. Que processo?
<EA>. Você vai saber quando receber a dica. Agora, quem se despede por hoje sou eu. Um
abraço. Abra sua caixa postal daqui a pouco.
<Tâmara>. Um abraço.
Heloísa percebeu que ele, ao menos, era educado. Tinha ouvido falar que poetas eram pessoas

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O escultor da alma

complicadas e depressivas. Boêmios, na sua maioria. Alguns, já tinha lido, morreram loucos ou se
suicidaram. Seria a visão correta? Um gênio ou um louco? Porém, fazia parte conhecer novas
pessoas e trocar idéias. Ademais, não havia problemas de envolvimento. Era só não fornecer seu
endereço nem telefone. A jovem continuou conectada e conversou com mais membros da sala de
bate-papo.
Quando já ia desligar o computador, resolveu verificar novas mensagens. E para seu agrado,
abriu sua caixa de mensagens e lá estava novo e-mail:

<<De: [æ@alvor.org.br] ea@alvor.com.br>>


<<Para: tamara@alvor.com.br>>
“O poema é uma bola de cristal. Se apenas enxergares nele o teu nariz, não culpes o mágico”
Mário Quintana.

O que estava EA querendo dizer com aquilo? Resolveu ler novamente. Nada. No dia seguinte,
imprimiu a poesia e a pista e mostrou aos amigos da Traumatologia. Ninguém foi capaz de
solucionar o mistério daqueles versos.
Decidiu, então, ler da esquerda para a direita. Não havia sentido. Leu intercalados os versos.
Sem sentido. Magnólia, que fora fazer uma visita, também ajudou, mas nada. Foi então que lhe
ocorreu de ler ao contrário. Para sua surpresa encontrou o seguinte:

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O escultor da alma

Não quero mais nem saber


Se ninguém denuncia esse crime!
Poucos esbanjam, muitos se privam,
Contudo, é difícil encarar a luta...

Porém, vejo a miséria de milhões...


Temos que nos preocupar com eles
Que são mais importantes para nossa paz,
Depois, nossos problemas pessoais
E a coragem pra não ser vencido?
Sempre esteve em minha alma –
É a covardia, sem calma,
A essência dos desvalidos

E a luta contra a opressão?


É a melhor saída para mim.
A paz na submissão...
Não! Prefiro ir vivendo assim:

Jamais desistir da luta...

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O escultor da alma

A Nação que sempre se quis...


Sonhar com uma ordem bem mais justa
Lutar pra ter um mundo mais feliz!

Impressionada, viu que o sentido mudava completamente quando se lia de baixo para cima.
Ao invés da alienação, o descontentamento. Ao inverso do egoísmo, a preocupação com os
outros antes dos problemas pessoais. A coragem a e condenação da covardia. O inconformismo
com a submissão e o desejo de ver e construir um mundo mais feliz. Impressionou-se com o
novo amigo. Como o havia julgado mal.
– Magnólia! Vem cá ver uma coisa. Que maravilha!
Quando a irmã chegou, juntamente com a mãe, foi instigada a ler de baixo para cima os
versos, e ficou impressionada.
– Que coisa bonita! Deve ser difícil fazer uma obra dessa. Só mesmo muita inspiração. Como
ele é?
– Não sei.
– Mas como, Bela. Não perguntou nada?
– Não. No site em que converso, não revelamos nada pessoal para que possamos ter mais
liberdade em dizer o que sentimos e em expressarmos os pensamentos. Apenas sei que ele morou
fora e lá deixou um grande amor. Sofre como eu.
Dona Raquel, que já assistira a alguns fatos perigosos envolvendo namoro via internet, alertou

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O escultor da alma

a filha.
– Bela, não forneça seu endereço a ele. Quem é que pode garantir que foi ele mesmo quem
escreveu aquilo? Esta semana deu no noticiário que uma jovem está desaparecida depois de
marcar um encontro com um homem que conheceu na internet e se dizia um rico empresário.
Descobriram quando a polícia resolveu acessar sua caixa de correio. Tenha cuidado, ainda mais
agora que o único homem da casa não tem mais de quarenta centímetros de altura e é cheio de
pêlos – enquanto olhava para Snoopy que, efusivamente, mordiscava-lhe a mão e brincava com
dona Raquel.
– Mas bem que poderia ser o bonitão do vôo, aquele da poesia...
– Aterrise, Magnólia. Não tem nem cabimento uma coisa dessas. Seria coincidência demais.
Magui, você é mesmo uma sonhadora – disse Heloísa:
–Não falo em coincidência, mas em destino.
Intrigada com o que seria essa nova modalidade de comunicação, dona Raquel resolveu tirar
umas dúvidas:
– Bela, como é que funciona essa tal de sala de bate-papo? É como um telefone, é?
– Mãe, a sala de bate-papo é um local onde as pessoas conectadas na internet se reúnem para
discutir, ao vivo, temas do seu interesse. O meio de comunicação entre os participantes, geralmente
é o teclado. As conversas podem ser vistas por todos os integrantes da sala ou restritas somente
para o emissor e o receptor da mensagem, o que se chama mensagem reservada. – E Heloísa
sabia o quanto isso a ajudou nas dificuldades por ela enfrentadas nos meses anteriores.

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O escultor da alma

– Só não quero que divulgue seu endereço ou telefone. Promete, Bela? – perguntou dona
Raquel.
– Prometo – e se dirigindo à irmã mais velha, completou: – você sabe que sou objetiva. Sou
científica. Não acredito nessas coisas. Ainda mais agora, depois de tantas quedas, aprendi muito.
– Mas não ensine isso a Joãozinho, falou Magnólia, sorridente.
– Quem é Joãozinho?
– Seu sobrinho. Fiz a ultra-sonografia ontem. Vai ser menino.
E se abraçaram, curtindo o momento.

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O escultor da alma

22

Heloísa ficou surpresa com a poesia. Parecia ser o anônimo amigo uma pessoa inteligente e
distinta, fora do comum. A poesia exige sensibilidade, capacidade de construir as idéias de uma
maneira diferenciada. E começou a imaginar como seria aquele homem...
Por outro lado, já marcada por decepções, recordou a advertência de sua mãe. Era fácil, no
anonimato da internet, atribuir a si o que havia sido construído por outrem. Ela mesma já se
divertira em outra oportunidade, quando em uma sala de bate-papo fez de conta que era uma
adolescente de dezessete anos. Outra vez se passou por uma balzaquiana divorciada. Bem que o
sujeito que não conhecia poderia estar com um livro aberto do lado, tendo o trabalho apenas de
digitar.
Conversaram por algum tempo. O papo fluía, agradável aos dois. Mas, ainda com uma ponta
de desconfiança e, ao mesmo tempo, curiosa, na primeira oportunidade testou o amigo virtual:
<Tâmara>. Adorei a poesia. Consegui desvendar o mistério. Na verdade são duas: o verso

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O escultor da alma

do reverso, quando lida de cima para baixo; e o reverso do verso, quando lida de baixo para cima.
Como você é talentoso.
<EA>. Obrigado. Nem eu sei como faço tais coisas. O interessante é que tem horas que
escrevo e me interrogo: “meu Deus como fiz uma coisa dessas”, surpreso com o resultado de um
belo poema. Outras vezes, penso: “meu Deus como fiz uma coisa dessas...”, decepcionado com
uma poesia piegas. Porém, Tâmara, o que há de bom nisso tudo é a possibilidade de extravasar
um sentimento.
Cética, Bela fez uma pergunta incisiva:
<Tâmara>. Você poderia fazer uma poesia, agora? – Se ele respondesse que sim, ela daria
um tema difícil e ele cairia do cavalo. Se respondesse que não, ela poderia constatar que estava
diante de um embuste.
<EA>. Você tem uma profissão?
<Tâmara>. Tenho.
<EA>. Poderia me dizer?
<Tâmara>. Olhe o anonimato... Mas vou dizer. Sou médica.
<EA>. Poderia fazer uma consulta por telefone?
<Tâmara>. Não seria o ideal. Mas responda a pergunta.
<EA>. O mesmo acontece comigo. E a inspiração? Não que me falte capacidade de escrever
algo para você agora. Em todo caso, cabe lhe alertar que o poeta é um piano. Toque-me, antes,
para poder ouvir a melodia... Como toda obra de arte, a poesia, para que ganhe relevo, precisa de

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O escultor da alma

inspiração.
<Tâmara>. Mas você poderia ter copiado aquele poema de algum livro.
<EA>. Mas você poderia não ser médica. O importante não é o que dizemos. É o que
somos. Acredito que você seja médica porque não vejo razões para mentir, nem para mim e nem
para você. E por que não acreditar?
<Tâmara>. Mas ser médica traz um status diferenciado, não acha? Poderia falsear só para
impressionar você.
<EA>. Acrescento que para mim é irrelevante a sua profissão, em si. Em nada me impressiona,
embora acredite no que diz. É inegável que, em suas mãos, vidas são salvas. Mas lembre-se de
que, por trás da magnificência das vestes brancas do médico há, na essência, sempre, um homem,
igual a qualquer outro, repleto de anseios, angústias, esperanças e sonhos... A profissão é somente
uma das facetas que formam a nossa individualidade. O que torna o ser humano ímpar é a forma
de ver a vida e de reagir ao que lhe acontece. Mas não preciso fazer uma poesia para que você
acredite em mim. Quem sabe um dia a faça por inspiração porque, então, reconheceria, naquelas
palavras, todos os contornos de você.
<Tâmara>. Mesmo assim, você seria capaz de falsear um sentimento na poesia.
<EA>. Mas isso não é o mais importante. Um poeta poderia até escrever o que não estivesse
sentindo, mas jamais exprimir o que não seria capaz de sentir...
<Tâmara>. E onde está o limite dos sentimentos na poesia?
<EA>. Nossa sensibilidade vai além das palavras. É a raiz de nossa origem, do mistério, do

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O escultor da alma

divino. Os sentimentos, muitas vezes, são tão grandiosos e inexplicáveis que as letras se tornam
insuficientes para descrevê-los...
Suas dúvidas desfaleceram após a conversa com EA. Ele fizera poesia sem perceber.
<Tâmara>. Mas há muitas fantasias na internet.
<EA>. Fantasias, para mim, são projeções positivas, embora idealizadas, de algo bom. O
que há, às vezes, são enganações ou delírios. Diga-me uma coisa. Que sentimento lhe vem à
cabeça nesse instante, Tâmara?
<Tâmara>. Saudade. Perdi meu pai e na quinta-feira completará um ano. Mas é preciso dar
continuidade à vida, não é mesmo? Ele era uma pessoa alegre e não gostaria de nos ver tristes. Foi
um dos motivos para estar neste site, até porque ele era meu confidente e, depois de sua morte,
não tive com quem desabafar e nem trocar idéias. Mas sentir saudades de quem amamos é um
bonito sentimento. Não acha? Infelizmente, há quem se apegue mais a coisas do que a pessoas.
Minha mãe está triste, vai anunciar no jornal a celebração de uma missa.
<EA>. É verdade, Tâmara. E outros parentes, você não tem? E amigos?
<Tâmara>. Tenho uma irmã e minha mãe. Mas elas precisam mais é de minha força. Não
posso contar com elas nesse sentido. Aquela que julgava a melhor amiga me traiu com o meu ex-
namorado. Tenho um amigo em quem posso confiar, mas ultimamente meus sentimentos se
confundiram e, certa noite, íamos nos beijando. E não quero estragar aquela amizade. Por isso,
recorri à internet. Como aqui é anônimo, posso conversar com pessoas que não têm envolvimento
comigo, sendo mais isentas.

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O escultor da alma

E passaram quase duas horas conversando. Tâmara lhe contou dos seus sonhos de exercer a
profissão que amava, de encontrar alguém para somar ao seu amor, das realizações na família.
E.A. também descreveu suas metas, afirmou sua felicidade na profissão ao mesmo tempo
em que dizia que ninguém é feliz sem se realizar afetivamente. Por isso estava ali, e embora desse
algumas opiniões sobre Tâmara, às vezes, também se sentia frágil e solitário, já que depois de
Tereza não aparecera ninguém. Contou que um amigo dentista o havia apresentado a uma paciente,
mas que não tinha sentido nada de especial, embora fosse tão bonita e jovem.
<Tâmara>. Mas os homens não podem ver uma mulher que vão logo analisar o aspecto
externo, como se fosse um produto...
<EA>. Comparo a mulher bonita a um presente. De que adianta a embalagem se o conteúdo
não servir?
Heloísa saiu intrigada daquelas conversas virtuais. Sentiu vontade de conhecê-lo pessoalmente.
Mas ainda tinha medo. Se fosse um velhote passando por garotão? Ou alguém mal- intencionado
querendo se aproveitar de sua fragilidade declarada? Era melhor ser prudente e esperar um pouco.
Mas parecia, até então, ser verdadeiro.
Douglas se sentiu à vontade com a jovem. Não tinha dúvidas de que ela não mentira para ele.
Pela primeira vez, em meses, sentiu inspiração para escrever. Mas já era tarde da noite. Precisaria
viajar na manhã seguinte a uma cidade distante, visando participar de uma audiência em um
rumoroso processo judicial envolvendo a responsabilidade civil da empresa. Porém, a inspiração
que andava adormecida acendeu em sua mente uma nova chama, chama de esperança e

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O escultor da alma

contentamento. E assim, os seguintes versos surgiram, como que emergindo das trevas e clareando
seus passos rumo à felicidade almejada. A fonte cristalina da poesia verteu, refrescante, os seguintes
versos, que ganharam vida na tela do computador:

ESTOU DE VOLTA, POESIA

De uma canção de alegria


Eu me encontrava distante.
Estou de volta, poesia,
Para alargar horizontes.

Mas agora vejo tudo


Como nunca dantes vi:
Se a dor é um mar profundo
Eis-me e... então: emergi!

Saí do claustro e do choro


Rompi as amarras... zarpei
A vida tem vozes de um coro
Canções que nunca cantei!

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O escultor da alma

E a tardança é senhora
Que não exalta o pior:
Vem nos guardar outra hora
Para o que há de melhor

Há sempre uma boa nova


No dia subseqüente
Se a vida tem muitas provas
Nos dá milhões de presentes!

Dentro em pouco Tâmara receberia a poesia em sua caixa de mensagens.

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O escultor da alma

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Os dias se passaram. Com uma ponta de tristeza, a senhora Raquel aproveitou a presença de
Magnólia para falar do aniversário da morte de Wilson:
– Já falei com a Diocese. A missa será na quinta, às dezenove horas.
O clima mudou e todas se calaram. Recordaram daquele que, um ano antes, enchia a casa de
alegria com seus berros e o bom humor de sempre. Desceu uma lágrima solitária do rosto de
Bela.
Dona Raquel acordou triste aquela manhã. Dali a três dias seria celebrada a missa de um ano
de aniversário da morte de Wilson. Foram feitos os convites e também o anúncio no principal
jornal da região.
Bela recebera e lera com gosto a poesia enviada, ficando particularmente feliz com os dois
versos finais: “Se a vida tem muitas provas/Nos dá milhões de presentes!” Contentou-se ao ler
os versos também porque sentiu que algo interessante poderia estar brotando entre os dois.

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O escultor da alma

Todavia, tentou, nos dias seguintes, conversar com o amigo, mas em nenhuma oportunidade ele
apareceu.
Na noite da missa de aniversário da morte de Wilson, presentes estavam os parentes próximos
e muitos, muitos amigos. Tomadas pelo momento, as três mulheres se emocionaram. Heloísa,
porém, era a mais conformada e foi quem deu a mão à sua genitora no momento da saída da
igreja.
Já na noite seguinte, ela chegou apressada em casa, ansiosa para mais um momento de reflexão
e contato com um novo mundo que lhe era descortinado pouco a pouco. Livros e bolsa na cama,
ligou o computador e esperou. Havia dias que não se comunicavam. O que teria ocorrido? Estava
ficando preocupada, uma vez que não tinha como saber se algo de grave acontecera. Ao abrir sua
caixa de correspondências, correu entre os e-mails recebidos, buscando a mensagem esperada. E
lá estava ela em sua caixa postal eletrônica:

<<De: [æ@alvor.com.br] ea@alvor.com.br>>


<<Para: tamara@alvor.com.br>>

Os últimos dias foram corridos. Fiz uma viagem de negócios. Por isso, o silêncio. Porém, estou de volta.
Tâmara, eis o resultado da conversa daquele dia. Gostei do seu ponto de vista sobre um assunto que sei que
a toca e fiquei feliz com a forma de encarar os acontecimentos em sua vida. Deu até vontade de quebrar o
anonimato, confesso, e perguntar seu nome e endereço. Também poderia chegar até você: bastava procurar nos

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O escultor da alma

jornais a missa. Mas não seria através de um fato dessa natureza que gostaria de conhecê-la. Devemos manter o
pacto, não é mesmo? Todavia, você me tocou, e isso é o que importa para um poeta. Obrigado.
Ass. E. A.

Em tempo, veja esse pensamento, que considero genial, e, depois, mais uma poesia:

“Saudade é ser, depois ter” – Guimarães Rosa


SAUDADE

Sente falta do que gostas: de objetos,


De dinheiro, dos prazeres mais seletos,
Mas na ausência de quem amas de verdade
Não sentes algo que não seja a saudade.

Neste mundo apego às coisas materiais


Valoriza, ó homem, os teus que são iguais.
Não rebaixes a saudade em coisas vãs,
Estas surgem hoje e fogem no amanhã.

A saudade é desalento na certeza

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O escultor da alma

Da distância que se transforma em tristeza,


E esperança no reencontro ainda incerto.

Pensa em Deus quando apertar o sentimento.


Se quem amamos longe está nesse momento,
Não esqueças que Ele está sempre por perto.

Um abraço.

Uma lágrima desceu o rosto de Heloísa. Lembrou a perda e, por um instante, a saudade lhe
corou a face. Mas, retomando-se, leu novamente a última estrofe, acendendo o ânimo e a vontade
de viver. Recordou o que o seu pai dizia: “filha, o bom futuro é feito de passados...”. Vou concluir meus
estudos e cumprir minha missão aqui. Meu pai, esteja onde estiver, ficará orgulhoso – pensou.
Passaram mais um tempo se comunicando. A empatia era mútua e foi se tornando um hábito.
Por quanto mais sustentariam aquela situação, anônimos?
Douglas sentia-se bem em estar dialogando com Tâmara, ao mesmo tempo em que já pensava
em quebrar o protocolo do site. Há pouco mais de dois meses, conversavam, e os assuntos estavam
cada vez mais aprofundados. Percebera nela uma mulher de fibra e digna. Sequer uma vez falou
sobre frivolidades. Precisava conhecê-la. Ou melhor, desejava.

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O escultor da alma

24

Azatto voltou feliz da viagem de negócios. Havia feito um acordo, o que rendera elogiosos
comentários da direção da empresa. No trabalho, o ambiente sempre fora ameno. Sua rotina
diária era a seguinte: acordava às seis horas, tomava um copo de suco e ia caminhar e correr no
parque estadual. Após isso voltava ao apartamento onde tomava o café, e depois de um banho se
dirigia ao edifício central da multinacional, onde funcionava seu departamento. Lá chegava às
oito horas, trabalhava até as doze, doze e trinta. Almoçava rapidamente e por volta da uma e vinte
já estava de novo na labuta. Às dezenove ou vinte horas, saía do local de trabalho, sempre que não
havia expediente extra em outro prédio ou sucursal da empresa, ou ainda audiências em locais
distantes.
Trabalhava sempre de terno e gravata, procurando apresentar um visual moderno e fino,
uma vez que lidava diretamente com a cúpula da corporação. Sempre se fazia presente nas reuniões
mais importantes e, principalmente, nas assembléias de acionistas, visando o assessoramento da

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O escultor da alma

diretoria.
Porém, o que mais lhe aprazia era mesmo sentir o cheiro da natureza no parque, ainda na
matina. Ouvia o cantarilho alegre dos pássaros enquanto praticava seu cooper. O parque estadual
era uma reserva florestal no coração da metrópole, um oásis em meio ao deserto de concreto e
vidro das fachadas dos edifícios e o tumulto da procissão de veículos nas congestionadas avenidas
centrais.
Colocava um par de tênis, calção folgado e camiseta e fazia os exercícios de alongamento
ainda na entrada do condomínio. Sabia da importância de tais posturas corporais para evitar
contraturas e contusões, uma vez que os músculos devem ser antes preparados para a carga física
que sofrem durante as corridas. Outrossim, a flexibilidade do corpo influi no ânimo da pessoa.
A importância da atividade física sempre esteve na pauta de Douglas. No início, fazia por
obrigação. Com o passar do tempo, virou parte de sua rotina e o prazer o conduzia às caminhadas.
Esse prazer se deve também à liberação de endorfina, um hormônio natural que causa sensação
de bem estar e de relaxamento.
Aquela manhã, em particular, estava fria. Resolveu, portanto, sair com um casaco sobre a
camiseta. O frio não o assustava, uma vez que em Madri a temperatura era, inúmeras vezes, mais
fria e a sensação térmica também.
Seu apartamento distava seis quadras do parque. Por isso ia sempre a pé. A ida era mais fácil
porque o trânsito ainda não atingira o pico naquele local da megalópole. Gastava não mais que
cinco minutos de trajeto. Já a volta era mais complicada e exigia maior atenção por parte dos

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O escultor da alma

pedestres.
E foi o que fez. Atravessou a primeira rua, a segunda e a única avenida que separava o
parque da região onde residia. Junto dele muitas outras pessoas faziam o mesmo. Só que, naquela
hora, a maior quantidade era de idosos. Algumas pessoas já eram conhecidos antes mesmo da
viagem à Europa. Eram comuns as perguntas “por onde você andou?” ou “voltou novamente?”
Sempre explicava, pacientemente, que tinha passado uma temporada fora, mas que agora retornara
definitivamente.
Douglas nunca foi adepto de academias. O ambiente fechado não o agradava, como também
não eram de seu gosto as músicas estridentes no estilo da ginástica aeróbica.
O que o agradava era o verdume do parque. Havia um grande lago onde se viam os peixes
subirem à tona para caçar pequenos insetos que caíam. Podia-se passear nele de pedalinhos. O
parque era orleado por uma belíssima pista que, apesar de estreita, adentrava em diversos pontos
nos quais a vegetação era mais densa. Tratava-se de mata nativa e, em alguns casos, de reflorestagem,
mas sempre mantendo a característica original. Adentrando-se mais no parque, havia uma pista
larga, onde a população podia trafegar também de bicicletas, skates e patins. Para os mais idosos,
a alternativa era a utilização de carrinhos elétricos, no estilo daqueles usados em campos de golfe.
Dentro do parque existiam dois museus, uma biblioteca, um amplo anfiteatro, além de um
local para exposições e departamentos públicos ligados à arte e à cultura do Estado.
Azatto fazia, em média, trinta minutos de cooper, voltando pelo mesmo trajeto até seu
apartamento.

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O escultor da alma

Naquela manhã, retornava apressado porque estava chovendo fino.


Parou, esperando o sinal de pedestres lhe dar a vez de passar. Quando atravessava, ouviu
uma forte frenagem e uma buzinada. Mal deu tempo para perceber do que se tratava. “Meu
Deus!” Foi o que conseguiu pensar. Ainda sentiu a descarga de adrenalina e pulou sobre o capô
do veículo desgovernado que o atingiu. E, após isso, tudo escureceu com o violento impacto.
Sequer sentiu dor, pelo menos. Fora colhido violentamente por um motorista imprudente, que
furou o sinal vermelho, o atingiu e depois se evadiu do local.
Trinta e um anos de idade. Tão jovem para partir. Era uma pena morrer assim, anônimo,
agonizante, no asfalto de uma metrópole...

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O escultor da alma

25

O plantão aquele dia estava movimentado. Houve um tiroteio em uma favela e vários jovens
foram socorridos e atendidos. Em uma grande cidade, a sexta-feira é sempre um dia com
movimento acima da média, devido, principalmente, ao consumo de bebidas alcoólicas na quinta
à noite, varando a madrugada. Sequer tinha tido a médica tempo para um café da manhã. Estava
já há seis horas no plantão e não parara em quase nenhum minuto. E não podia, sob pena de
deixar escorrer entre seus dedos a vida de alguma pessoa.
A profissão do médico tem uma grandeza inigualável. Quantos já não foram salvos pelo
esforço daqueles obstinados que, mesmo sem os recursos logísticos necessários, e na necessidade
de decidir em segundos, resolveram agir e evitaram o sofrimento de filhos órfãos, pais sofridos,
viúvos e viúvas? Se Deus tem o dom de dar a vida, o médico tem o de conservá-la.
– Doutora, veja esse atropelado, com urgência.
– Há pulso?

205
O escultor da alma

– Não – respondeu, após examiná-lo.


– Faça o exame de retina, por favor, Marta.
A enfermeira acendeu uma pequena lanterna e direcionou o feixe de luz às córneas. Não
houve reação.
– Nada – falou, séria. A contração da pupila demonstra se o cérebro ainda está ativo. Em não
havendo reflexo, quer dizer que houve morte cerebral.
– Morte cerebral – completou a enfermeira com tristeza, ao olhar o corpo estendido sobre a
mesa de cirurgia.
Dentro de poucos minutos, a doutora se esforçava ao máximo para reanimar o corpo de um
outro homem. Sofrera uma parada respiratória seguida de uma cardíaca. Os para-médicos
realizaram uma boa operação de reanimação com massagem cardíaca, o que evitara a morte por
falta de oxigênio no cérebro, mas não fizera retornar os batimentos espontâneos.
Verificado o pulso, notou-se que o paciente estava em assistolia, sem resposta. A massagem
cardíaca manual continuava desde a ambulância.
– Aplique 5mililitros de adrenalina intravenosa a cada 5 minutos – e continuou: – Desfibrilador,
rápido!
– Doutora, a temperatura está baixando. Trinta e cinco e baixando. Acho que se foi.
– Não vamos desistir. Vamos, rapaz, reaja.
Ouve-se o sinal agudo do aparelho. Passa-se um líquido sobre a pele do tórax do acidentado,
bem nos locais em que se aplicariam os choques elétricos. As duas plaquetas metálicas, que mais

206
O escultor da alma

lembram ferros de passar, descarregam mil e duzentos volts no paciente. A finalidade é estimular
o coração a voltar a bater.
– Carga pronta.
– Pode aplicar. Afastem-se. Um, dois, três!
A musculatura do paciente reage violentamente e o tronco salta a quase quinze centímetros
de altura da maca. E o procedimento foi repetido algumas vezes, intercalado com massagens
cardíacas.
– O paciente não está voltando – a enfermeira experiente avisa à médica plantonista que já
estavam lutando há trinta e cinco minutos. – Doutora, fizemos o possível. Olhe o monitor cardíaco:
nada.
Mas a jovem médica não queria desistir:
– Não podemos baixar a guarda agora. Essa batalha ainda não está perdida. Cinco miligramas
de atropina endovenosa. Vamos, coração, volte!
E o assistente aplicou os cinco miligramas em um último recurso visando salvar a vida do
doente.
– Doutora, ele já deve ter tido morte cerebral.
– Examine as pupilas... Não! Só mais uma vez: o desfibrilador!
Os enfermeiros se entreolhavam descrentes, mas continuavam recebendo e obedecendo às
ordens emitidas pela médica plantonista.
– Afastar. Um, dois, três, agora! – E mais uma descarga foi dada, causando grande convulsão

207
O escultor da alma

nos músculos.
–Marta, examine a córnea. Há reflexo?
Nesse momento, o paciente tossiu. O monitor cardíaco tornou a registrar batimentos cardíacos.
Tiiim, tiiim, tiiim...
– Doutora, tenho que confessar que já não tinha mais esperanças – disse um dos enfermeiros,
com um leve sorriso de contentamento por mais uma vida arrancada dos braços da morte.
– Mas a batalha ainda não está ganha. Vamos fazer o acompanhamento pelas próximas
setenta e duas horas. Agora deve ser levado com urgência ao raio-x, uma vez que, com tantas
escoriações, deve ter múltiplos traumatismos.
As radiografias demonstravam a fratura de três costelas e luxações no braço esquerdo e
pernas. Aquele jovem, pelo menos, teve sorte.

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O escultor da alma

26

A sua vida passou em flash-back. Viu, em frações de segundos, o momento de seu nascimento,
a felicidade de seus pais pegando-o no colo, como se ele fosse uma terceira pessoa assistindo ao
parto. A sua infância feliz no interior do estado, durante as férias, subindo em fruteiras e correndo
a cavalo. A juventude engajada nas lutas estudantis, os primeiros amores. Os familiares e amigos,
tudo apresentado em uma velocidade vertiginosa. Somente o momento do acidente foi visto em
slow-motion.
Agora não estava mais naquele plano. Passou por um deserto sombrio e sem vida, onde as
areias eram sacudidas violentamente ao sabor do vento. Teve impressão de que algo havia ali,
apesar de invisível aos seus olhos. Em seguida, o panorama mudou completamente. Viu um
jardim florido onde crianças brincavam alegremente sobre um vasto gramado. Sentia-se como se
estivesse pairando a uns trinta metros de altura. Ao longe, percebeu sons maravilhosos tocados
em uma melodia que lembrava uma mistura de músicas clássicas, só que com uma escala de sons

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O escultor da alma

indescritível. Era como se seu campo auditivo tivesse sido ampliado. O céu era diferente, com
uma tonalidade que variava do azul ao castanho claro. As vestes de todos eram simples e claras.
Ao fundo, via-se uma espécie de edifício imenso, ornado com flores em um material que lembrava
plástico e vidro. O local era tranqüilo e as pessoas passeavam alheias ao estranho que as observava
do alto. Era uma visão quase surreal e algo que se assemelhava a um paraíso. Ali não poderia
existir maldade, egoísmo ou ambição. Emanava amor, fraternidade e compaixão.
De repente, foi transmudado a uma região que parecia o espaço sideral. Viu estrelas se
formando e explodindo, quasares, pulsares e cometas. Alguém o acompanhava. Não dava para
ver, mas era perfeitamente perceptível. Era alguém que lhe queria bem.
Tudo acontecia em uma velocidade estonteante. Mas como se sua percepção estivesse
ampliada, tinha condições de perceber tudo e de assistir de maneira completa, assimilando um ar
de paz, de tranqüilidade.
Douglas sentiu, então, uma sensação de ausência de gravidade e viu um túnel em cores
caleidoscópicas. No fim, uma luz amarelada que o convidava a continuar escalando aquele duto
multicolorido. Vestia branco, aliás, notou que ele mesmo emitia uma espécie de luz. Olhou a mão,
translúcida, e percebeu que ele se transformara em uma substância etérea. Parecia que aquele era
o seu ambiente original. Não sentiu estranheza, mas sim um déjà vu, como se já tivesse ali estado,
não naquele local propriamente, mas em um meio físico análogo. Percebeu pessoas que lhe pareciam
familiares lhe assistirem naquele momento. Felizes, estavam presentes, como se os pudesse sentir,
mas sem os ver. Aos poucos foi se acostumando com a situação e desejando ali permanecer para

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O escultor da alma

sempre. A tranqüilidade e a paz eram completas. Sentia-se como que realizado enquanto ser.
Uma paz indescritível lhe tomou conta da matéria etérea que o formava e ouvia, não se sabe de
onde, uma voz lhe dizendo para ter calma, que o momento certo só chegaria muito depois e que
a sua missão precisava ser completada. A voz vinha do fim do túnel que ainda distava uma
centena de metros. Concordou, ainda que sem saber bem do que se tratava e o que era aquilo
tudo.
Apareceu-lhe o rosto de uma bela moça, que lhe disse, a sorrir: “isso é o essencial”. Viu, em
seguida, uma criança nascendo. Sem que ninguém lhe dissesse algo, percebeu que aquelas duas
criaturas cruzariam seu destino de alguma forma. Quem seriam?
E a frase ecoou em sua mente: “isso é o essencial”, “isso é o essencial”...
Sensação de uma queda eterna. Foi a última coisa que sentiu acontecer...

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O escultor da alma

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Douglas pôde ver todas as pessoas na sala. Abaixo, viu o corpo de um homem jovem e uma
equipe médica que lutava para ajudá-lo na reanimação. Percebeu o ânimo de cada um. Em torno
do rosto de uma enfermeira havia uma nuvem escura demonstrando que não mais acreditava no
ressuscitamento. O outro enfermeiro não apresentava um quadro melhor. O rapaz com a máquina
de choques torcia para que desse certo.
Porém de todos eles o semblante mais iluminado era o da médica. Jovem e bonita, irradiava
uma tonalidade amarela-clara. Sua tenacidade o fez querer voltar. Sentiu que era preciso.
Não era fácil. Após o retorno a esse plano, era como se houvesse um peso grande sob cada
milímetro de seu corpo. Preferia a leveza de instantes antes. Naquele momento, pensou em sua
mãe e, imediatamente, deslocou-se para a cidade dos seus pais, na residência da família. Ela estava
preparando o almoço e teve um sobressalto. Viu perfeitamente a cozinha, os pratos, o café da
manhã ainda na mesa, juntamente com os talheres. Até o pano quadriculado que forrava a mesa

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O escultor da alma

foi bem visto. Assustado, retornou em uma fração de segundos até a sala de emergência.
Mais uns instantes e foi sugado até o seu corpo. Havia luzes em seu rosto. Assustado, não
conseguia abrir os olhos e nem se mexer. Por segundos, teve a impressão de que estava sendo
pressionado pelo peso do seu próprio corpo. Era a força da gravidade. Enquanto isso: “não
desistam, não desistam” era o que tinha vontade de gritar. Embora não pudesse reagir, Azatto foi
capaz de ouvir os incentivos da médica em seu favor. Aos poucos foi sentindo seus membros, sua
pele, o peso total de seu corpo e perdeu a consciência, exausto.
Dentro em pouco, tomado de grande torpor, tossiu. Estava vivo novamente.

***
Passava das dez horas quando a doutora Otília estranhou a ausência de Azatto. Já
havia ligado para o celular. Ele estivera ausente em uma reunião marcada para as nove horas, fato
nunca ocorrido nos seis anos de empresa. Sequer havia deixado recado. Ninguém atendia em
casa. A mãe do rapaz telefonou perguntando por ele logo cedo, pedindo que retornasse a ligação.
Ligou novamente àquela hora, já se sentindo aflita, contando para a coordenadora que ainda cedo
foi tomada por um grande mal estar e pensou no filho. Seria um sexto sentido? Otília resolveu
conferir.
Ao chegar no condomínio onde residia Douglas, o porteiro confirmou que ele saíra cedinho,
como habitualmente fazia, com vestes de corrida, mas não tinha voltado.
– Tem certeza de que ele não voltou para o apartamento depois?

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O escultor da alma

– Sim, senhora. Hoje não deixei este posto um minuto sequer.


Percebendo a gravidade do fato, rapidamente se dirigiu ao parque estadual, visando obter
dados sobre o acontecido. Teria ocorrido um seqüestro? Douglas era um executivo de sucesso e
talvez alguém soubesse disso e buscasse vantagem econômica. Começou a pensar nas
possibilidades. O porteiro falou que saíra a pé. Teria sido assaltado e baleado? Talvez não porque
não levaria carteira para atrapalhá-lo na corrida. E dinheiro provavelmente não, porque morava
próximo do parque e não precisaria comprar nada. Era jovem para ter um ataque cardíaco. Mas,
por via das dúvidas, seria bom consultar a enfermaria do parque.
– Bom dia. Tenho um amigo que todas as manhãs vem aqui correr e que hoje não foi ao
trabalho. A família está preocupada com sua ausência e gostaria de saber se foi feito algum
atendimento hoje de manhã.
– Não senhora. Hoje foi tranqüilo, respondeu um auxiliar de enfermagem que lá trabalhava,
olhando para a já quase idosa.
Quando ia saindo o jovem atendente a chamou: – senhora, não apareceu nenhum senhor
idoso para atendimento de urgência. Mas soube de um atropelamento nessa avenida que passa
aqui – apontando com o indicador – era um freqüentador do parque, pelo que comentaram.
Otília tremeu e reconheceu a possibilidade de ser o caso de Douglas.
– Para onde foi socorrido?
– Não sei. Mas geralmente levam para o hospital central. Mas parece que já o levaram morto.
Meu Deus, não pode ser Douglas – pensou Otília. Seus olhos marejaram de emoção. Mas

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O escultor da alma

não poderia perder tempo. Agradeceu e, com a rapidez que o seu corpanzil permitia, foi até o
automóvel da empresa onde um motorista a aguardava.
Pouco tempo depois, chegaram ao setor de urgências do grande hospital. O clima era terrível,
vendo-se pessoas amontoadas em macas por todos os lados. Na maioria, humildes.
Dirigindo-se ao balcão de atendimento, a senhora explicou a situação e uma atendente, sem
muita presteza e com demora, terminou informando que, naquela manhã, chegaram dois
atropelados e um havia falecido.
O coração de Otília disparou. Ligou para a empresa, em vias de se desesperar. Pediu que a
levassem para identificação do corpo e do acamado. Foi conduzida, então, para a câmara de
conservação, as chamadas “geladeiras”. Apreensiva, aguardou que um funcionário abrisse a porta
e puxasse a esteira metálica.
– Graças a Deus, não é ele – jazia sobre a lâmina um homem baixo e idoso, bastante machucado.
A cena era terrível, mas para ela foi, ao menos, um alívio saber que não era Douglas.
Encaminhada ao setor de UTI, onde tinha dado entrada o outro jovem atropelado e sem
identificação, foi alertada de que ele estava desacordado. Havia fraturas de costelas e luxações
pelo corpo. Pediu para fazer o reconhecimento. E lá estava Douglas, engessado, respirando com
ajuda de aparelhos.
– Qual o estado dele?
– As funções vitais estão normais. Mas como teve uma parada cardíaca, permanecerá hoje na
UTI e mais uns dois dias em observação, fora o tempo de recuperação das fraturas.

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O escultor da alma

Rapidamente, comunicou o acidente à empresa. Providenciou a remoção para um hospital


particular, onde todas os procedimentos seriam pagos pelo plano de saúde especial.
Infelizmente teve que reportar o fato aos familiares, depois que se inteirou dos pormenores.
– Dos males o menor, dona Doralice. Foi atropelado, mas está vivo. – A mãe começou a
chorar ao telefone. – Estamos providenciando melhores acomodações. De grave, em princípio,
só umas fraturas de costelas, mas a médica disse que superaria isso sem problemas.
E ficaram, a médica, uma enfermeira e Otília, observando o paciente.
Como já estava de saída, a plantonista pôde se deter um pouco com o paciente e a senhora.
Admirou a beleza do jovem que, apesar de entubado, guardava os traços leves e harmônicos.
– Ele vai se recuperar. Trabalha em quê?
– É executivo de uma multinacional. Foi atropelado quando atravessava uma avenida próxima
ao parque estadual. Já estamos providenciando sua remoção para um hospital particular. Não
quero desmerecer esta instituição. Foi a senhora que o atendeu?
– Fui eu mesma. Aliás, não posso deixar de admitir que será melhor para ele ser transferido.
Hospital público sofre com falta de muita coisa, inclusive manutenção de equipamentos.
Dentro em pouco, o rapaz abriu os olhos. Sua vista estava turva. As costelas doíam. Sentia-
se imobilizado. Estaria vivo ou morto? A primeira visão que lhe apareceu era de uma belíssima
jovem, que com um leve sorriso o cumprimentou. Disse algo que não deu para entender. Mas
reconheceu aquela voz. Ao lado estava Otília, também esboçando um sorriso. Sentiu alívio, apesar
de tudo. Nascera de novo.

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O escultor da alma

– Você deu um trabalhão, hein, rapaz. Mas agora está tudo bem. Por sinal, já acabou meu
plantão. Vou para casa descansar. Boa sorte, senhor – dirigindo-se ao jovem que voltou a fechar
os olhos, ainda se recuperando.
Após a saída da médica, a enfermeira confidenciou:
– Tenho que admitir que essa doutora é uma lutadora. Ele só está aqui graças a ela. Passou
mais de meia hora tentando o ressuscitamento. O caso dele foi grave porque, devido ao impacto
do atropelamento, seu coração parou. Quando todos já estavam desistindo, até mesma eu, ela
prosseguiu e salvou-lhe a vida.
– Fico feliz em saber disso. É de pessoas assim que precisamos no mundo. Como é o nome
dela, mesmo?
– Doutora Heloísa.

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O escultor da alma

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Magnólia, que já estava com mais de oito meses de gestação, foi até a casa da mãe e lá
jantaram. À mesa, perguntou a Heloísa:
– E aí, Bela, alguma novidade?
– Lembra-se daquele rapaz da internet? A cada dia gosto mais de conversar com ele. Confesso
que se ele pedir meu telefone eu darei – disse, olhando para a mãe com uma ponta de malícia.
– Ah, não! Nem pensar, Heloísa! Não quero ser visitada por um psicopata. Bom era no meu
tempo, quando a gente podia conhecer antes a família do rapaz. Você me prometeu não dar seu
endereço nem telefone. Cuidado, minha filha, cuidado.
As filhas riram, gozando a mãe que conservava uma cara de preocupação.
– Mas como ele é?
– Educado, inteligente, culto. Vou perguntar sua idade e o que faz. Espero que seja um
gatinho.

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O escultor da alma

– Pode ser é um monstrinho – retrucou a mãe, com ar de preocupação.


– Mãe, cadê sua educação, falando de boca cheia...
– Bela, não me deixe transtornada – falou dona Raquel, temendo algum ato violento do
desconhecido amigo virtual.
Magnólia aproveitou para participar da gozação:
– Qualquer coisa temos o nosso Snoopy para defendê-la.
– Esse aí não pega nem mosquito – olhando para o inocente cãozinho que se prostrava
alegremente ao pé da mesa, atento às migalhas de pão arremessadas pela mãe das jovens.
Após o jantar, empolgada com E.A., Bela conduziu a irmã até o computador, que estava em
seu quarto: – ele mandou outras poesias, veja só – dentre elas se destacava uma em especial,
mostrada a irmã:

DESPERTANDO PARA O AMOR

Eras a imóvel paisagem montanhosa,


Ou o belo vale que a serenidade encerra.
Eras a água que escorre da cachoeira intocada,
Perdendo-se, incólume, nas profundezas da terra...

Estavas alheia como um vento árido

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O escultor da alma

Ressoando em inóspitos rochedos,


Eras semente de orquídea que a tempestade
Jogou em esquecidos e brumosos arvoredos.

Eras sozinha, julgavam-te adormecida...


Mas não acreditei ao te ver assim...
Sem perceber, fui-me aproximando,
Vejo que o amor já repousava em mim.

E transpus barreiras e montanhas,


Galguei escarpas, sem desatinos.
Venci batalhas, rompi mil laços,
Para vivermos nossos destinos.
E tinha mesmo que acontecer...
E ao meditar sobre o que faço e o que fiz,
E o muito que haveremos de fazer,
Só me resta te dizer, feliz:

Quero ser a fonte que te banha a alma,


Sentindo, radiante, o teu esplendor.

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O escultor da alma

Quero ser um sonho em tua vida,


Tornando-te desperta para o amor.

Magnólia, após ler os versos, disse:


–Que coisa linda! Será que foi para você?
Heloísa a olhou, fazendo cara de encabulada:
– Espero que sim! – e se abraçaram, rindo. Na hora combinada, resolveu acessar a internet.
– Daqui a pouco irá conhecê-lo – foi até a sala de bate-papos e EA não estava. Resolveu conversar
um pouco com outras pessoas. Depois de uns trinta minutos, nada.
Magnólia não podia esperar muito. Tinha compromissos em casa:
– Preciso ir. Eu o conhecerei outro dia. Boa sorte! – Em seguida se despediu da irmã mais
nova.
Bela ainda continuou por mais alguns minutos. Viu que, naquela noite, não conversariam.
Sentiu saudades.

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O escultor da alma

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Azatto foi transferido ainda naquele dia para um dos melhores hospitais da megalópole. O
helicóptero aterrissou no heliponto e da cobertura ele foi encaminhado até a aeronave.
Já estava consciente. Lá foi submetido a uma bateria extensa de exames, incluindo tomografia.
Ao final, já em um apartamento, o médico que o assistia falou:
– O senhor é um homem de sorte. No seu prontuário consta um trabalho de ressuscitamento
de quase quarenta minutos. A plantonista que o atendeu está de parabéns. Sua recuperação será
menos demorada do que pensa. Precisará ficar mais alguns dias aqui. Depois, quinze dias de
botas de gesso e o engessamento do tronco para a consolidação das fraturas das costelas por um
pouco mais de tempo.
Eduardo e Doralice já estavam lá, acompanhando o filho.
Quando Otília chegou, a família agradeceu-lhe efusivamente pela presteza e preocupação
com ele. Graças ao empenho dela, Douglas não permaneceu muito tempo em um hospital

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O escultor da alma

tumultuado como aquele, ainda mais como um indigente.


Perguntado de que se lembrava, Douglas contou o que se passou. Do momento do susto à
viagem para um local desconhecido. O túnel de luz, a sensação de leveza, o flash-back de toda a sua
vida. Tudo passava em sua mente como se tivesse assistido a um filme.
A mãe de Douglas corroborou com a história:
– Filho, realmente por volta das sete horas pensei em você e me deu um aperto no coração.
Pude, ainda, sentir sua presença. Liguei depois para o seu trabalho, preocupada.
Seu pai, mais cético, disse que poderia ter sido um sonho. E completou:
– O mais importante, meu filho, é que você está vivo e bem. Essas coisinhas aí – referindo-
se aos engessamentos – logo vão ser retiradas e poderá voltar às suas atividades, normalmente.
– Preciso agradecer à médica que me salvou. Otília, você a conheceu. Era aquela que estava
aqui quando acordei?
– Sim, era aquela gatinha. Vou deixar um buquê em seu nome. Bonita, não? – perguntou,
com o bom humor de sempre.
– Não pude ver muito bem porque a visão estava turva, mas parecia ser, sim. Foi a primeira
pessoa que vi.
– Ainda bem. Fiquei com medo que acordasse e visse logo esta velha feia e gorda. Poderia ter
tido um enfarto – disse a sorridente senhora.
– Não. Ficaria muito feliz em ver uma grande amiga – respondeu, com ar de gratidão. –
Minha amiga Otília, que tanto se preocupou comigo e me deu a mão em um momento de grande

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necessidade. Desculpe o clichê, mas a verdade é que os amigos certos a gente conhece nas horas
incertas. Só tenho que lhe agradecer. – Depois de uma pausa, prosseguiu: – Como anda a empresa?
– Não se preocupe. Todos estão sabendo e querendo visitá-lo. Pedi que não viessem hoje
devido a sua necessidade de descanso. Seria um tumulto todos aqui.
No dia seguinte, os amigos mais próximos, incluindo Jacinto e Israel, compareceram, além
de uns colegas do trabalho.
– E aí, há alguma enfermeira gata? – perguntou Jacinto.
– Você acha que, neste estado, eu penso nisso?
– Você é um caso clínico interessante. É inusitado ter um amigo maníaco sexual – zombou
Israel, ao se referir a Jacinto.
– Vocês são uns trouxas. Conheci certa vez uma enfermeira que tratou muito bem de mim...
– Mas, para dizer a verdade, havia uma médica muito bonita. Não a vi direito porque minha
vista estava embaçada... – enquanto olhava para o teto, tentando recordar o rosto com maiores
detalhes.
– A que horas vem? – perguntou Jaça.
– Não é neste hospital. Era no outro.
E continuaram conversando amenidades. Jaça e Israel zombavam um do outro, o que ajudou
a tornar o clima mais descontraído naquele apartamento.
***

Quando Heloísa iniciou o trabalho na manhã seguinte, foi saber do paciente e obteve a
informação de que havia sido transferido para outro hospital. Lembrou-se com carinho do rapaz
que ajudara a resgatar dos braços da morte, compreendendo que a transferência tinha sido o
melhor caminho para ele, já que só recomendaria o famoso setor de oncologia do hospital onde
estudava e trabalhava, e não o de urgência. Fora um contato rápido. Sentia uma grande satisfação
pelo resultado do trabalho e, intimamente, ligava-se àquele que salvou, desejando uma rápida e
pronta recuperação. Sabia que salvar uma vida não era como consertar um motor, uma porta,
uma coisa. Era uma vida, ímpar, distinta, que não pararia por ali. Seria uma pessoa que amava, era
amado, e que talvez um dia viesse a ajudar o mundo a crescer. E, quando já ia dando as costas, a
atendente da recepção a chamou:
– Doutora Heloísa, tenho uma encomenda para a senhora.
Não era possível que Mariano, passado tanto tempo, tivesse a audácia de lhe mandar outra
torta, pensando em reconquistá-la. A moça lhe entregou o buquê onde havia um pequeno bilhete
escrito, parabenizando pelo seu trabalho no plantão. Otília agradecia em nome de Douglas Azatto.
Heloísa se sentiu recompensada pelo que fez, embora não o fizesse esperando reconhecimento
nem louros. Era sua profissão. Era o que fazia com amor.
***

Ao chegar em casa, à noite, nenhum sinal de EA na internet. Deve ter viajado, pensou.
Resolveu mandar um e-mail perguntando o por quê do silêncio de tantos dias. Aguardava resposta
breve. E no final, um beijo ou um abraço? O que ele pensaria se ela colocasse um beijo? Estaria
ela se oferecendo? E se colocasse um abraço? Demonstraria mera amizade?
Sentiu, naquele momento, que estava apaixonada pelo desconhecido. Mas que coisa ridícula.
Apaixonada por um homem que nem sabia com certeza se era real ou uma mera criação de
alguém. Poderia ser um velho solitário que inventou o EA para realizar suas fantasias. Ou seria
um homem comprometido? Não. Uma mulher, não tinha cabimento. Seria muita enganação.
Uma dessas não suportaria. Só não queria se decepcionar novamente. O melhor, então, seria não
colocar nada. Nem beijo, nem abraço. Quase apertara o botão de enviar. De súbito resolveu
ousar: – um beijo! E que seja o que Deus quiser – disse, enquanto digitava as palavras.
Só que, mais cinco dias se passaram, e nada de resposta. Foi perdendo as esperanças. Será
que ele voltou para a ex-namorada que conhecera fora? Ou encontrou alguém interessante? Como
se sentia uma boba. Ele poderia, ao menos ter um pouco de consideração e responder. Fora tão
gentil e educado com ela... Certamente algo havia acontecido que não o deixara responder. Talvez
uma nova viagem. Só restava aguardar.
Estava mesmo apaixonada. Mas ainda sentia medo.
***

Douglas não podia ficar sentado muitas horas que suas costelas doíam. Os primeiros dias
foram passados, na maior parte do tempo, na cama mesmo. Devido às luxações nas pernas, seus
deslocamentos eram feitos em cadeiras de rodas. Israel, que estava de férias, foi ficar com o
amigo no apartamento dele uns dias, juntamente com dona Doralice. Preocupado com Tâmara,
que certamente estranhara seu desaparecimento, já que não tiveram mais contatos, dirigiu-se a
Israel:
– Amigo, me faça um favor.
– Pois não, Douglas.
– Tem uma poesia que fiz na noite anterior. Está aqui ao lado no meu bloco de notas, disse,
apontando para o local onde se encontrava o volume de folhas. Poderia transcrevê-la para o
computador e depois mandá-la para alguém por e-mail?
– Já sei, é para a tal de Tâmara. Sem problema nenhum.
A tônica das ultimas conversas com Bela ainda tinha girado em torno do medo dela em amar
novamente. Aproveitando isso, e certamente com interesse em conhecê-la melhor, fez mais uma
poesia.
Depois de concluída a transcrição, pediu Douglas que o amigo explicasse que tinha sido
acidentado e por isso silenciara, e que era um amigo quem digitava.
– Israel, envie informando que eram versos antigos, pois não quero que ela perceba que
estou muito interessado nela. Será que vai notar alguma coisa pela poesia?
– De jeito nenhum. Pode deixar, meu grande amigo. Vou ser bem discreto.
– Dá para ler a mensagem para mim?
– Pois não:
“Cara Tâmara. Você não sabe o que aconteceu. Fui atropelado e quase morri. Passei um dia na
UTI, mas agora estou bem. Quem tecla é um amigo porque, devido às seqüelas, ainda estou de cama. Mando uma
poesia antiga minha, que fiz há uns oito anos e que só agora me lembrei. Vou passar uns dias em branco, mas logo
que puder entrarei em contato. Um abraço.
E.A.”.

– É isso aí. Gostei do final. “Um abraço. E.A.”, para que ela não fique notando logo que
estou muito interessado.
Só que não foi bem isso que Israel disse no e-mail...

***

– Albertinho, o que devo fazer? – perguntou Bela ao amigo.


– Ele pediu o seu telefone?
– Não. O pior é isso. Mas estou com muita vontade de conhecê-lo. Acho que vou arriscar e
dar o meu telefone.
Alberto tinha repensado nos últimos dias seus sentimentos por Heloísa. Talvez não devesse
misturar amor e amizade. E como sempre agiu, foi sincero, embora que contrariasse seus
sentimentos por ela:
– Você é quem sabe. Talvez ele tome isso como a postura de uma mulher que sabe o que
quer. Diga que gostaria de conhecê-lo pessoalmente porque o achou interessante e não gostaria
de ter essa amizade apenas virtual. Estaria quebrando a regra do site, mas por um bom motivo.
Pelo que falou, vale a pena, e você está realmente interessada nele.
– Vou fazer isso.
– Pronto. Chegamos. Boa sorte. Mas antes queria lhe dizer uma coisa: fui eu.
– Fui eu o quê?
– O autor da carta anônima. Certa vez, numa terça-feira, estava no Choupana e presenciei o
encontro dos dois. Na outra terça, a mesma coisa. Fiquei decepcionado com Mariano e Dália.
Achei um atrevimento muito grande dos dois, e uma tremenda falta de respeito. Sempre tive um
carinho especial por você, Bela. Não poderia admitir aquilo. Entretanto, não queria interferir
diretamente no assunto. Dei-lhe uma chance para descobrir. Melhor naquela hora que depois, se
estivesse noiva ou casada. Já fazia meses que se encontravam. A saída foi o bilhete, ainda que
anônimo. Sei que lhe causou uma decepção grande no início, mas depois serviu para você acordar
para a realidade daquele rapaz.
– Mas por que você não me contou logo?
– Resolvi avaliar. Às vezes, cometemos erros e não reincidimos. Era mais prudente aguardar
para ver se o fato se repetiria.
– E quanto à outra menina?
– Também havia sabido, só que pouco tempo antes que você. Um amigo meu era conhecido
dela. Não sei se por coincidência mesmo, ou destino, a notícia veio parar em minhas mãos. Nesse
caso resolvi esperar mais um pouco. Já estava me preparando para escrever nova carta quando
soube por você mesma que tinha descoberto. Resolvi, então, silenciar. Espero que compreenda
meu jeito de agir. Até porque o fiz com a melhor das intenções: no primeiro caso, para despertar
você para a realidade antes que fosse tarde demais. E no segundo, verificar antes de cometer uma
difamação e estragar o relacionamento entre os dois, já que, à época, vocês estavam reatando. Por
isso você se irritou comigo naquela vez que conversamos, quando perguntou o que eu achava.
Heloísa olhou, carinhosamente, para o amigo e lhe deu um beijo no rosto.
– Obrigada pela consideração. Você agiu bem porque me fez descobrir as tramas de Mariano,
antes de sofrer mais.
– Serei sempre o seu “Querubim”, ok?
– Você não tem jeito, mesmo – disse sorrindo, ao descobrir que fora ele mesmo aquela
pessoa que, certa vez, lhe dera conselhos na internet.
Despediram-se e Bela bateu a porta do carro do amigo, entrando em casa. Tomou um banho,
foi jantar e esperar o horário de encontro na sala de bate-papo. Para sua decepção, mais uma vez
EA não estava. Resolveu, então, ver sua caixa de mensagens antes de enviar seu telefone para o
amigo que não mais respondera.
Feliz, notou que ele lhe havia mandado uma mensagem. Abriu, feliz e leu o seguinte:

<<De: [æ@alvor.com.br] ea@alvor.com.br>>


<<Para: tamara@alvor.com.br>>
Cara Tâmara. Você não sabe o que aconteceu. Fui atropelado e quase morri. Passei um dia na UTI, mas agora
estou bem. Quem tecla é um amigo porque, devido às seqüelas, ainda estou de cama. Vou passar uns dias em
branco e logo que puder entrarei em contato. Mas como não a esqueci nesse tempo todo, envio uma poesia que fiz
pensando em você. Só agora percebi realmente que algo de novo está acontecendo. Algo de novo. Algo de bom. Um
beijo. E.A.

PELO MEDO DE AMAR

Pelo medo de amar submergem esperanças


Soerguendo-se, em lanças, muralhas infindas.
Cresce, ainda, um vazio, um deserto, por perto
Dos que temem amar.

Pelo medo de amar se apagaram mil sóis.


Não mais há girassóis nos jardins do porvir.
Não existe o sorrir por temer-se o chorar,
Pelo medo de amar.

Pelo medo de amar se perde o amor.


Encharcando-se em dor, afogando-se em prantos,
E se encobrem com o manto tecido sem par...
Pelo medo de amar.

Pelo medo de amar só se enxergam os espinhos...


O passado é fantasma que espanta o futuro.
E o que é duro: persiste, na angústia, a cismar,
Pelo medo de amar.
Pelo medo de amar é que um dia se vê, no estertor,
Que o amor que se deixou escapar,
Foi por outrem acolhido e hoje está
A viver, a pulsar, por alguém que, ainda bem,
Não teve mais medo de amar...

Magnólia chegou logo depois, com as mãos nos quadris para contrabalançar a barriga de
quase nove meses, e perguntou:
– Está fazendo o quê? – perguntou.
– Leia isso aqui – respondeu Bela, já cedendo a cadeira em frente ao computador.
Com dificuldades, Magui sentou e começou a ler atentamente o poema. Encantou-se com o
rapaz:
– Que sensibilidade... Esta foi para você! Não tenha dúvida. Mas está pronta para amar ou
ainda tem medo?
– Chega de sofrer, não é mesmo? Agora é hora de buscar a felicidade. Magui, vou dar meu
telefone a ele. É verdade que posso até sofrer novamente, mas nem por isso vou deixar de buscar
a felicidade. Outro dia fiquei refletindo sobre a poesia “As Flores do Jardim” que ele me mandou
por e-mail. Depois, quando passeava no parque, parei, sentei em um banco e comecei a olhar
umas roseiras. Vi mariposas, borboletas e abelhas provando do néctar. Como são lindas as rosas.
Porém, têm espinhos. Mas nem por isso perdem a beleza. Tudo na vida é assim, porque nada é
perfeito, nem mesmo eu. Estou disposta a descobrir, seja o que for. Quero arriscar. Você sugere
alguma coisa?
– Faça como uma amiga minha. Você mandou fotos suas para ele?
– Não. E nem ele.
– Pois é exatamente isso.
– Isso o quê? Fale logo!
– Calma. Marque um encontro. Diga que irá com uma determinada roupa e pergunte sobre
a dele. Só que você irá com outra. Se gostar dele, é só se apresentar. Se não gostar você pode ir
embora para um local afastado e ligar para o celular dele dizendo que, infelizmente, aconteceu um
imprevisto no hospital e deixará para outra oportunidade. Quando a coisa esfriar um pouco
poderão, ao menos, ser amigos. Assim você não o magoa.
– Ai, Magnólia, parece coisa de adolescente. Já passei dessa idade. Olhe, você vai ser mãe,
hein?! Vê lá como cria Joãozinho. É preciso enfrentar a realidade. Fora isso, ele sofreu um
acidente e vai passar uns dias sem poder sair de casa.
– E se ele for um velho?
– Assim também... Ficaria com raiva porque, pelo que falou, não disse que era velho.
– Qual a idade?
– Não sei.
– Zero quilômetro, novo ou usado?
– O quê?
– Zero quilômetro é homem solteiro. Novo é o separado ou divorciado, sem filhos. Usado é
o separado ou divorciado, com filhos.
– Acho que é zero quilômetro. Teve uma namorada, aquela que morava longe – falou, rindo.
– Já pensou se fosse o bonitão do vôo? Faz poesias e teve uma namorada no exterior.
– Você novamente com essa história... Ele disse fora. Fora quer dizer em outra cidade, em
outro estado... Mas está bem. Acho que vou fazer assim mesmo. Deseje-me boa sorte.
– Boa sorte!
30

Os dias pareciam se arrastar durante a convalescença. De certa forma, o isolamento ajudou


a crescer as expectativas em torno de Tâmara. Seria esse o nome dela? Soava exótico. Começou a
contar tudo ao amigo Israel.
– E se eu pedir o telefone dela? Poderia marcar um encontro.
– Olha, internet dá muitas furadas... Pode ser, como diz Jacinto, um trem virado. Melhor usar
uma estratégia, caso você não se interesse por ela. Você pode fazer assim: combinem um local, e
digam as roupas que irão vestir. Vá com uma roupa diferente e lá poderá observá-la. Se não
gostar é só voltar para o carro, ligar para o celular dela e dizer que teve um compromisso importante
e que ficará para outra oportunidade.
– Que coisa atrapalhada! Prefiro enfrentar a situação. Você é muito enrolado, meu amigo
Israel. Já vi a morte de perto e sinto, do fundo do meu coração, que esse é o caminho. Não aceito
complicar mais nada na minha vida. Vou encarar tudo de frente porque a gente veio aqui para ser
feliz e fazer as pessoas felizes. Vou vestido da forma que acertar com ela, mesmo. Não quero
magoá-la. Se não pintar o clima, serei sincero, só assim, ao menos, não causarei mágoas, até
porque ela já sofreu demais com inverdades e subterfúgios. Por causa dos nossos medos, a gente
perde muitas oportunidades. Às vezes, temos medo de rejeição e deixamos de conhecer alguém,
temos medo de ousar e caímos no marasmo. A vida é muito curta para nos enrolarmos com essas
filigranas.
– Você é quem sabe. Já me dei mal devido a uma coisa dessas. A mulher era prima de minha
namorada e eu não tinha percebido pela conversa. Ia ser uma confusão grande. E ainda tem mais:
se for uma adolescente neurótica? Ou pior: um cara?
– Tenho certeza de que não se encaixa em nenhuma de suas hipóteses malucas.
– Mas como não?
– Não posso explicar a você mas, depois do que aconteceu comigo, a vida ganhou uma outra
dimensão. Não tenho esses medos. Você parece que não leu a poesia que transcreveu. Leia-a, caro
amigo.
Passaram-se alguns dias e, quando já estava melhor, pôde sentar ao computador e conversar
com Tâmara.
Conversaram rapidamente sobre o acidente e a viagem fantástica que tivera. Bela evitou
tocar no assunto do acidente em si, pois era doloroso e desagradável. Mas falou que já tinha lido
sobre experiências de quase morte e ficou interessada em saber de maiores detalhes sobre seu
caso. Quem sabe até poderia escrever um artigo sobre o tema. Era o pretexto que ele queria.
<EA>. Vamos nos encontrar?
Ela silenciou por um pouco e vibrou. Era exatamente aquilo que queria. E o melhor, partira
dele. Mas desconversou, só de charminho:
<Tâmara>. Aqui na internet? Quando?
<EA>. Não falo aqui, nesse mundo virtual. Falo do real. Depois de tudo o que passei,
percebi que precisamos realmente viver a vida. Não quero enclausurar nossa amizade a esse
circuito. Nada impede de nos conhecermos de verdade, até porque somos reais e não apenas
impulsos elétricos que viajam à velocidade da luz.
<Tâmara>. Mas quebraremos a regra do site.
<EA>. O anonimato foi importante enquanto estávamos feridos. Sob o seu manto, pudemos
abrir nossos corações e deixar sair toda a dor pela qual passamos, extirpando o que havia de ruim.
Mas agora que as feridas cicatrizaram, perdeu a razão de ser.
O charminho de Bela já tinha sido o suficiente:
<Tâmara>. Está bem. Que tal sexta-feira, às oito da noite, no shopping Vitral?
<EA>. Só no sábado estarei com condições de andar normalmente. Que tal nesse dia? Pode
ser no mesmo horário. Praça da alimentação?
<Tâmara>. Praça da alimentação.
<EA>. Estarei de calças jeans e camisa amarela.
<Tâmara>. Estarei vestindo saia e camisa azuis.
<EA>. Um beijo e até lá.
<Tâmara>. Um beijo.
Antes de se despedirem, Azatto lembrou-se de pegar o número do celular dela, caso algo
desse errado.
Para ele tinha sido um alívio. Douglas não se contentava em apenas dialogar através de um
teclado de computador. Não podiam disfarçar uma vontade crescente de se conhecerem enquanto
homem e mulher. Era verdade que aquele meio virtual abriu as portas para o sentimento brotar,
de uma forma até descompromissada e pura. Mas não seria ele capaz de realizar a conjunção dos
dois, o que deveria se dar em alma, mas também em corpo.
Seus sentidos queriam ser exercidos em sua totalidade, não só no imaginário. Eis que aquela
mulher que lhe despertara um sentimento precisava ser desvendada por completo. Queria vê-la
para melhor conhecê-la. Senti-la para melhor admirá-la. Ouvi-la, para melhor querê-la. Prová-la
para só assim poder, em sua intensidade, amá-la.
Naquele instante, viu-se feliz pela superação de todo o sofrimento passado com Tereza.
Tinha sido ela importante em sua vida e não fora causa de sua dor, a não ser na medida em que
não se entregou por completo para viver e se esbaldar com todo o afeto que ele a proporcionaria.
Desejava-lhe o bem, o que não poderia ser diferente. Queria-a feliz e rapidamente a imagem da
espanhola lhe veio à cabeça, como em uma despedida daquele resquício do desejo que ainda
guardava por ela. Chama que se apagaria lentamente, restando, por muito, o calor aconchegante,
envolto nas boas lembranças, nos momentos de comunhão que viveram juntos. Ela passou de
seu presente para o passado, da sua representação de amor para um ícone, uma figura mítica,
escondida na terra em que os antigos mouros derramaram seu sangue e lustraram a arte e a
cultura de uma atmosfera exótica, distinta.
Ao contrário dele, Heloísa curtia um ar de desengano e amargura quando se lembrava de
Mariano. Talvez o tempo a fizesse esquecer a dor. Não que o amasse ainda, pois seus próprios
atos se encarregaram de sepultar para sempre o que havia de puro e divino no que ela sentia por
ele. Restaram o silêncio e o rancor, que precisavam ser exorcizados. Seria mais pelo tempo que
por atitudes de remorso ou perdão. De toda forma, a porta que unia o destino daqueles dois
mundos foi fechada, definitivamente. Ela estava, agora, redimida e pronta para conhecer um
novo amor.
31

Magnólia acompanhou Heloísa, por insistência própria já que, mesmo prestes a parir, não
largava aquela irmã que tanto amava. Havia sentido, calada, dores fracas pela manhã, o que poderia
até ser um prenúncio. Como alvoroçada que era, não queria perder a oportunidade de ir com
Bela, e demonstrava claramente ser a mais nervosa das duas:
– Será que ele vai estar lá? – perguntou Magnólia.
Depois de tanta insistência da irmã, Heloísa mudou a camisa para uma tonalidade azul bem
claro, o que não deixava de ser o azul que falara, mas ao mesmo tempo lhe daria a oportunidade
de verificar antes, se quisesse, quem seria E.A.
– Vai, Magnólia... me deixe, ao menos, dirigir. E se lembre do que eu falei. Você sai logo que
eu o encontrar, está certo? Dê um tempinho para nos conhecermos, está bem?
– Tudo bem, Bela. Já entendi, não precisa repetir!
Chegaram com uma certa brevidade. Esperaram. Dentro em pouco, Magnólia lhe aperta o
braço:
– Olha lá! Lá vem um com camisa amarela – era um senhor com aproximadamente sessenta
anos. Bela tremeu. Esperava não ser aquele. Para seu agrado, o homem passou direto. Olhou para
o relógio. Estava quase na hora. Resolveram, então dar uma volta pela praça da alimentação do
shopping, que era bastante ampla. Orleada de restaurantes, na maioria fast-foods, docerias,
lanchonetes e sorveterias, a quantidade de mesas era enorme. Não seria fácil achar alguém em um
sábado à noite naquele local.
Enquanto isso, Douglas e Israel, que era seu motorista, uma vez que ainda não conseguia
dirigir em razão das fraturas das costelas, estavam sentados bem no meio do amplo salão.
– Douglas, a fome apertou. Vamos comprar um sorvete? Você aproveita e dá uma olhada. –
Azatto respondeu:
– Está bem. – E foram até a sorveteria mais próxima dentro da praça da alimentação.
Enquanto isso, Bela e Magui caminhavam, já no mesmo local, procurando o dito rapaz de
camisa amarela.
Douglas pediu um sundae e inventou de colocá-lo numa bandeja. Sua mão direita estava,
ainda, dolorida. Melhor seria mesmo ter carregado a taça na mão esquerda. Quando ia virando o
corpo, algo bateu nele e o fez perder o equilíbrio. Deixou a taça de vidro cair ao chão. Ela se
espatifou. Corado de vergonha olhou para a pessoa que o atingira e...
***

Bela caminhava distraída, procurando alguém de camisa amarela, sentado a uma mesa da
praça da alimentação.
– Magui, me ajude, por favor, olhe lá para o fundo, que procuro aqui nas quatro primeiras
fileiras.
Displicentemente, deixou-se encostar e empurrou uma pessoa. Ainda a viu perdendo o
equilíbrio e uma taça de vidro rumando ao chão – pluft! – espatifou-se no piso do shopping.
Todos em volta olharam a cena. Corada de vergonha, tocou o braço do jovem para pedir desculpas.
– Me descul... – O instante mágico aconteceu. Seus olhos, entre assustados e surpresos,
encontraram-se. A bolsa que carregava caiu do ombro. Rapidamente a pegou do solo.
Ambos estavam tremendo de emoção. Parecia que já se conheciam há milênios... Era uma
sensação de conforto mútuo e de redescoberta. Os corações dos dois apaixonados palpitavam de
felicidade. Tremeram. Fazia tempos que ambos não experimentavam um instante de tamanha
intensidade como aquele. Que coisa maravilhosa. Que obra do destino juntar os dois naquela
noite. Tudo acontecera muito, mas muito acima das expectativas.
Do âmbito de Heloísa, reparou que ele era mais alto, jovem e belo do que esperava.
Reconheceu-o no mesmo instante. As peças se juntaram: acidente, o hospital, a UTI... No dia do
plantão no hospital nem se deu bem conta, porque o rapaz estava bastante machucado e, depois,
entubado. Mas, naquele momento, sua beleza fascinava a jovem médica. Tudo em volta perdeu
importância. O barulho das pessoas transitando silenciou instantaneamente. Aliás, desapareceram
todos naquele átimo. As pessoas que transitavam não foram notadas. Sequer a moça, que
delicadamente fazia a limpeza da taça de sorvete no chão, foi percebida.
Do outro lado, Douglas se sentia hipnotizado com o esplendor da jovem. Seus olhos escuros,
os cabelos lisos e negros, longos e brilhosos. A pele lisinha da morena clara encantava Azatto, que
nem acreditava no que estava acontecendo. Viu a roupa azul de Heloísa. Seria ela?, perguntou-se
emocionado. Por via das dúvidas, era melhor testá-la para saber se seria Tâmara mesmo.
– Mas você não é...
– A médica que o atendeu na urgência?
– Exatamente.
Magnólia, escondida atrás da irmã, quase sibilando, dizia, insistentemente:
– Bela, eu tenho uma coisa para lhe dizer... Bela, eu tenho uma coisa para lhe dizer...
– Como está se sentindo? Pelo menos à primeira vista, vejo que está bem. O que faz aqui? –
perguntou, não acreditando no que estava acontecendo.
– Gostei da cor da sua camisa – soltou a indireta, Douglas.
– É... É azul claro. Mas é azul.
– Eu ia pedindo um sorvete de tâmara, mas disseram que não tinham – falou, sorrindo.
Sem saber o que dizer, dada a emoção que sentia naquele instante, resolveu apresentar a
irmã:
– Sim, já ia esquecendo. Essa é minha irmã, Magnólia. Magnólia...
– Douglas. Mas já nos conhecemos também!
– Era o que eu estava querendo dizer o tempo todo a ela. Você não é aquele moço do avião?
Olha, eu tenho uma poesia sua – sorridente, disse para o rapaz. E completou: – Heloísa ficou
apaixonada com a sensibilidade que você demonstrou. – Rapidamente abriu a bolsa e retirou,
feliz, o papel amarrotado que trouxera, na esperança de reencontrar o poeta. Heloísa corou
novamente. E olhou para a irmã, com ânimos de beliscá-la por fazê-la passar por aquela vergonha.
– Pode ficar. É seu – completou Magnólia.
– Isso mesmo. Obrigado – segurando o papel, tímido e espantado. Após um breve intervalo,
recuperou a ordem das coisas e comentou: – saí com pressa da aeronave e depois fiquei procurando.
Vou guardar com carinho. Cada poesia é única. Tentei até reconstruí-la, mas nunca fica a mesma
coisa porque o sentimento daquele momento não voltará jamais. Lembro-me bem que viajamos
juntos. Foi divertido. Continua com medo de voar?
– Sim. Deu para perceber?
– Um pouquinho – disse. Todos riram, até Magnólia.
Puxando calorosamente o amigo, Douglas o apresentou às moças:
– Por sinal, Israel, venha conhecer minhas amigas. Esta é a doutora...
– Heloísa. E esta é minha irmã, Magnólia.
– O prazer é todo meu – formal, Israel respondeu, enquanto beijava a mão de cada moça.
Nem se lembrando mais do sorvete, Douglas fez um convite para que todos se sentassem a
uma mesa.
– Claro! – todos responderam. E conseguiram uma mesa próxima.
Ficaram conversando por quase uma hora. Quando chegou o momento de irem embora,
Douglas os convidou para jantar. Magnólia disse que não poderia ir porque Jonas já havia ligado,
perguntando por onde andava. Além disso, estava no fim da gravidez e as costas também doíam.
Queria deitar um pouco.
– Onde você mora? – perguntou Azatto a Heloísa.
– Aqui perto.
Israel, percebendo as intenções do amigo, foi logo emendando:
– Bem, preciso ir também. Tâmara, digo, Heloísa, você está de carro?
– Estou.
– Então Douglas poderia ficar com você e eu deixaria sua irmã em casa. Tenho certeza de
que ele prefere ficar com sua médica, afinal, precisa de cuidados, e por uma questão de bom gosto
e bom senso, lógico. – Riram todos. Dirigindo-se a Magnólia, perguntou:
– Teria algum problema se voltasse comigo? Seu marido não ficaria chateado? – Magnólia
olhou para a irmã, que fez um sinal rápido para que concordasse.
– Claro que não! – respondeu efusivamente.
– Então, vamos lá? – e partiram.
Os dois, a partir daí, combinaram ir ao restaurante Pane et Vino, sugerido por Azatto. Era um
dos seus favoritos.
Mas eis que, de repente, o celular de Douglas toca:
– Alô! Israel? Sim... Passando mal? Estamos indo.
– O que foi?
– Sua irmã está passando mal.
Correram até o estacionamento. Magnólia sentia fortes contrações e a bolsa amniótica já
havia estourado.
– Ela está entrando em trabalho de parto. Vamos até o hospital?
–Vamos! – responderam os rapazes.
Dentro em pouco, dava Magnólia entrada na área de obstetrícia do hospital. Heloísa queria
acompanhar a irmã e falou a Douglas que, se quisesse ir embora, marcariam outra vez, pois o
procedimento cirúrgico do parto demoraria umas duas horas.
– Posso ficar?
– Certamente. Jonas, meu cunhado, estará chegando dentro de alguns minutos – e já saindo
em direção ao centro cirúrgico, completou: – logo que puder, estarei de volta.
– Fique à vontade. Não tenho pressa e nada marcado para essa noite. Aliás, quase nada –
erguendo o indicador direito, sorrindo, referindo-se ao jantar.
– Heloísa sorriu e fez um sinal para que a esperasse.
Pouco tempo depois, Jonas chegou, acompanhado da senhora Raquel e os pais dele, e
reconheceu Azatto. Conversaram os três, eles dois e Israel.
Dentro da sala de cirurgia, Heloísa acompanhava a irmã, que gemia de dor. Na hora do
parto, a obstetra falou:
– Às suas ordens, doutora Heloísa. Eu é que serei sua auxiliar.
Por trás da máscara cirúrgica, Bela sorriu de contentamento e ela mesma realizou o
procedimento.
Ao final, ouviu-se um chorinho. Nascera Joãozinho. Heloísa o ergueu e após ter sido limpo
por uma enfermeira, foi entregue a Magnólia, que sorria de emoção, com os olhos marejados.
Após se despedir da equipe médica e agradecer o gesto de cortesia da obstetra, Heloísa se
dirigiu à irmã:
– Magui, agora preciso ir. Douglas me espera.
– Mando um beijo para o meu futuro cunhado – respondeu, sorrindo. Deram-se as mãos em
sinal de confiança. Bela sorriu de felicidade. Quando já ia saindo, Magui gritou:
– Ei! É um gato. Não avisei a você? – Bela concordou com um gesto. Mandou um beijo e foi
encontrar Azatto.
Quando voltou do alojamento dos médicos, uma vez que precisou tomar um banho rápido e
trocar novamente de roupas depois de voltar da sala de cirurgias, Bela se deparou com os familiares.
Abraçaram-se felizes. Douglas já tinha sido devidamente apresentado, uma vez que reconhecera
Jonas quando este esteve na sala de espera. A senhora Raquel disse:
– Da família, ele só precisa conhecer Snoopy – dirigindo-se a Bela. E depois continuou: –
Filha, por sinal, vim com uma amiga que já foi. Você poderia me deixar em casa? Vou pegar umas
coisas para voltar e ficar com Magnólia. Jonas já foi apanhar pertences da sua irmã e ligou agora,
dizendo que passaria lá para me pegar se eu fosse agora.
Bela olhou para Douglas que imediatamente fez sinal de não se incomodar. E acrescentou:
– Bem, não tenho hora para chegar em casa. E é melhor ficar calado porque estou de carona
– disse, risonho.
Bela também sorriu com o bom humor do rapaz. E arrematou:
– Tudo bem. Mas seremos rápidos. Estou morrendo de fome.
Durante o trajeto, conversaram sobre a vida familiar de cada um. Douglas explicou onde
moravam seus pais, seus irmãos, o que faziam, etc.
Quando chegaram em casa, dona Raquel pediu que entrassem para que ele pudesse conhecer
o último membro da família. Douglas e Heloísa ficaram sentados no sofá. Do outro lado, o rapaz
observou um grande quadro, esquisito, de um claro mau gosto. As cores dominantes eram o roxo
e o verde abacate. Não tinha nada a ver com o resto da decoração, o que fazia com que chamasse
ainda mais atenção. Teve vontade de perguntar se tinha sido feito por alguma das irmãs quando
era pequena, porque não tinha cabimento um artista de verdade ter produzido aquilo. Heloísa, já
acostumada, emendou, de pronto:
– É horrível, mesmo. Só não diga para a pintora, dona Raquel. – Douglas não conteve a
vontade de rir, pois não pensara que Bela já tinha percebido. Ela também riu.
Eis que surge o alegre cãozinho marrom e branco, abanando efusivamente o rabinho. Após
um breve contato e afagos no dengoso mascote da família Algarve, Heloísa foi logo se despedindo
de Raquel:
– Pronto, mãe, ele já conheceu seu filho mais novo, agora podemos ir.
– Não é lindo?! – perguntou a mãe de Heloísa.
– Com certeza – respondeu Douglas. E era mesmo.
Saíram, então, Azatto e Heloísa.
– Já são onze e meia. Ainda tem vontade de ir àquele restaurante? – questionou Bela.
– E por que não? Nunca é tarde para momentos felizes...
O Pane et Vino ficava em um local privilegiado, no alto de uma serra. Possuía, assim, uma
belíssima vista da cidade. Após subirem a encosta por uma estrada de calçamento, lá chegando,
acomodaram-se à varanda, e o jovem perguntou:
– Quer um bom vinho e uma tábua de queijos como entrada?
– Excelente escolha. Pode pedir. Confio no seu paladar – respondeu Heloísa.
O jovem apreciador de vinhos pediu, então:
– Por favor, quero um bom vinho tinto, elaborado com uvas cabernet sauvignon. O que a
casa sugere?
– Senhor, temos o Lovara Gran, Reserva 1999. É o que sugiro.
– Ótimo. Para acompanhar, uma tábua de queijos brie e camembert.
E o garçom se retirou para encomendar o pedido.
Conversaram sobre o que havia ocorrido a ambos nos últimos meses, bem como das
impressões iniciais de cada um sobre Tâmara e E.A., respectivamente.
Em dado momento, após uma pausa, Douglas pegou a mão de Heloísa e a beijou gentilmente,
falando, olhos nos olhos:
– Precisava agradecer por ter salvado a minha vida. Não fosse sua perseverança, não estaria
aqui nesse instante. Ela esteve em suas mãos e, graças a Deus, foi muito, mas muito bem cuidada...
– E você salvou meu coração, que andava muito triste.
Os olhares novamente se entrecortaram. Encararam-se e se despiram de todos os medos.
Queriam poder se conhecer mais profundamente para, reciprocamente, mergulharem no oceano
de simpatia, pureza, simplicidade e liberdade, que está repousado no amor, contido em cada um
de nós.
Então, naquele instante, só havia os dois amantes, juntos, completos, para percorrerem o
mundo... Selaram um beijo, ofegantes, em plena varanda do restaurante. Embora ainda estivesse
com parte do tronco engessado, Azatto não perdeu tempo e abraçou carinhosamente Heloísa,
que fechou os olhos de felicidade.
Instantes depois, passou uma senhora que lhe fez lembrar Otília. Ele a olhou e sorriu. Heloísa
perguntou:
– O que foi, Douglas?
– É que tem uma senhora que trabalha comigo, chamada Otília, e que muito me ajudou.
Jamais esquecerei uma frase que me disse certa vez: “O sol que escalda o deserto é o mesmo que
anima o bosque”.
Heloísa tirou a moral da frase:
– A mesma dor que me levou até a internet para buscar ajuda me abriu as portas para o amor
me trazendo você. Mas me responda: Por que EA?
– São as iniciais de “Escultor da Alma”.
Bela então, fez feição de interrogação. Achou bonita e profunda a expressão. Mas qual seria
o significado? Resolveu perguntar:
– E o que isso significa?
– É que a poesia é a arte de esculpir a própria alma no papel.
– Lindo! De onde tirou isso?
Douglas silenciou por um átimo e respondeu, feliz por estar ali, naquele momento, ao lado
da jovem médica. Tudo parecia distante agora:
– Uma amiga que conheci há muito, muito tempo... – E você, por que “Tâmara”? – perguntou,
procurando saber a origem de tão exótico nome.
Heloísa riu, como se já esperasse a pergunta:
– A resposta é profunda: é que eu estava comendo umas no momento em que acessei o site
pela primeira vez – riram.
– Gostei de sua irmã, Magnólia. É uma pessoa autêntica.
– Tem um grande coração. Isso é o essencial, não acha?
“Isso é o essencial”. Nesse momento se deu um insight. Douglas parou, surpreso. Ela percebeu
algo diferente e aguardou. Azatto recordou a premonição que tivera. Reconhecera naquele rostinho
delicado o mesmo que lhe aparecera na experiência de quase-morte. Surpreendeu-se e, ao mesmo
tempo, alegrou-se. E arrematou, perguntando, com um leve sorriso:
– Por que você demorou tanto?
Surpreendida com a pergunta, Bela se justificou:
– Como assim? Eu cheguei com muita antecedência ao shopping!
Então, Douglas novamente segurou as mãos de Heloísa, que estavam sobre a mesa, e,
aquecendo-as, disse-lhe com ternura:
– Não é disso que estou falando. É que, só agora, pude perceber que esperei a minha vida
inteira... por você.
Após um caloroso abraço, o jovem se levantou por um instante, foi até o caixa e de lá voltou
com uma folha de papel. Sentou-se, fez um leve sinal de espera, debruçou-se sobre a mesa e
compôs, em traços rápidos e precisos, um memorial do que o seu coração transbordava naquele
momento:

BELA:
Por todo o infortúnio que passaste
– As dores da ilusão ou da maldade –
Podes ter certeza de que guardaste
Um crédito para com a felicidade.

As lágrimas que rolaram do teu rosto,


Imerecidas pelo teu ser belo e puro,
Serão rosas a brotaram pelo chão,
No jardim radiante do futuro.

Não há máscara que tolha a verdade;


Não há rio que não corra para o mar;
Não há vida sem amor, sem liberdade;
Não há sonho que não possas realizar...

Após ler, jubilosa, a poesia feita naquele instante para ela, Heloísa marejou os belos olhos
negros, de emoção. Sentiu em Douglas o grande amor que tanto ansiou. E, calada, cerrou as
pálpebras por um átimo, agradecendo a Deus. O casal se beijou com paixão. Passaram o resto da
noite curtindo um ao outro, descobrindo as novas fronteiras a serem conquistadas rumo à felicidade.
A premonição de Douglas, na sua experiência de quase-morte, completar-se-ia em poucos
anos, com o nascimento de Casimiro. Mas essa já é uma outra história...
Enquanto isso, testemunhas celestiais assistiam a tudo, silentes e felizes, aguardando o
desenrolar dos fatos com o passar dos anos. O vento refrigerante da serra deslocou seus ares para
o casal de enamorados que contemplava, da varanda do restaurante – um mirante – a cidade
adormecida. Os dois, nesse momento, encontravam-se abraçados.
Olhando-se a partir do firmamento estrelado daquela noite, a alguns metros acima do casal,
podia-se ver a arquitetura antiga do prédio. As inclinações do telhado retangular formavam desenhos
geométricos, enquanto a varanda, onde se encontravam Douglas e Heloísa, estendia-se por uns
trinta metros na encosta da serra, a cerca de cento e cinqüenta metros de altura.
Subindo algumas dezenas de metros acima do local, percebia-se o restaurante, com seus
espaços angulares e convergentes, como um topázio encravado na elevação coberta de mata,
formando, com as áreas adjacentes, um imenso camafeu.
Mais alto ainda se tinha a visão de todo o contorno da serra, onde a varanda já se confundia
com uma tênue linha amarelada, sendo os dois amantes enlaçados não mais que um pequeno
ponto.
Depois, notava-se a amplitude geográfica da megalópole, que até então parecia tão grande.
Mas, à medida que se subia, agora a cidade diminuía vorazmente e, dentro em pouco, não passava
de mais uma luz brilhando no vasto território do estado... do país... do continente, de um globo
gigante azulado com uma face escurecida onde as cidades não passavam, naquele átimo, de milhares
de luzes que cintilavam como vaga-lumes.
Nesse momento, a terra parecia tão perfeita e, ao mesmo tempo, delicada, e encolhia frente
à imensitude do sol, o astro-rei, soberano de um sistema longínquo, agora também já pequenino
pela distância incessante e uma viagem à velocidade vertiginosa. O sistema solar parecia, então,
quase que perdido na imensidão da Via-láctea... E esta, após uns instantes, era, tão somente, uma
dentre incontáveis outras galáxias que povoam o Universo...
EPÍLOGO

Não se desespere com acontecimentos ruins, caro leitor. As lágrimas que ontem, ou mesmo
hoje, vertemos na nossa caminhada por essa vida podem, sem sabermos disso, estar regando
nossos futuros sonhos, para que eles desabrochem da maneira mais intensa e completa possível.
Diz a lei da natureza que o homem nasce, cresce, reproduz e morre. Que desdobramento
mais sombrio se fosse apenas isto. Somos seres superiores, pensamos, sofremos, aprendemos e
amamos, e temos uma capacidade inigualável de buscar e superar nossos limites, ampliar fronteiras,
aprender e progredir. Não nos basta, apenas, estar vivos. Precisamos VIVER.
E seremos eternos pelo que construirmos de bom aqui. Poderemos, então, ao olhar para o
passado, reconhecer que nos avanços dos que nos cercam estavam encravados os ideais que
compartilhamos. Deixaremos de ter sido apenas mais um ser vivente sobre o mundo. Ele terá,
em sua essência, um pouco de nós...
A teia do destino, muitas vezes, faz-nos esbarrar com o próprio futuro sem que nos
apercebamos. Quem sabe assim, despidos dos rigores do dia-a-dia, preparados para viver a vida
com toda a intensidade, tomemos consciência do quanto o mundo é pequeno e o quanto somos
grandes na nossa capacidade de realizar os sonhos e sermos felizes. Basta acreditar. É preciso
acreditar...

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