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LUCAS FERRAZ
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA– 4/3/2010
Para uma discussão que sempre convoca emoções e discursos inflamados, como é a
das cotas raciais ou reserva de vagas nas universidades públicas para negros, a
audiência pública que se iniciou ontem no Supremo Tribunal Federal transcorreu em
calma na maior parte do tempo. Até que um óóóóóóó atravessou a sala. Quem falava,
então, era o senador Demóstenes Torres (DEM-GO), que se esforçava para demonstrar
a corresponsabilidade de negros no sistema escravista vigente no Brasil durante quatro
séculos.
Disse Demóstenes sobre o tráfico negreiro: "Todos nós sabemos que a África
subsaariana forneceu escravos para o mundo antigo, para o mundo islâmico, para a
Europa e para a América. Lamentavelmente. Não deveriam ter chegado aqui na
condição de escravos. Mas chegaram. (...) Até o princípio do século 20, o escravo era o
principal item de exportação da pauta econômica africana."
Sobre a miscigenação: "Nós temos uma história tão bonita de miscigenação... [Fala-se
que] as negras foram estupradas no Brasil. [Fala-se que] a miscigenação deu-se no
Brasil pelo estupro. [Fala-se que] foi algo forçado. Gilberto Freyre, que é hoje
renegado, mostra que isso se deu de forma muito mais consensual."
As referências à história "tão bonita" da miscigenação brasileira, ao negro traficante de
mão de obra negra, o democrata usou para argumentar contra as cotas raciais, já
adotadas em 68 instituições de ensino superior em todo o país, estaduais e federais.
Desde 2003, cerca de 52 mil alunos já se formaram tendo ingressado na faculdade
como cotistas.
O partido de Demóstenes considera que as cotas raciais são inconstitucionais porque,
ao reservar vagas para negros e afrodescendentes, contrariariam o princípio da
igualdade dos candidatos no vestibular.
Na condição de relator de dois processos sobre o tema (também há um recurso
extraordinário interposto por um candidato que se sentiu prejudicado pelo sistema de
cotas adotado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul), o ministro Ricardo
Lewandowski, do STF, decidiu convocar a audiência pública, que se estenderá até
sexta-feira, com intervenções pró e anticotas.
A audiência pública é uma forma de as partes interessadas levarem seus pontos de
vista ao STF. Segundo Lewandowski, o assunto será votado ainda neste ano. Se
considerar que as cotas ferem preceito fundamental, acaba essa modalidade de
ingresso no sistema universitário. Se considerar que são ok, a decisão sobre adotar ou
não uma política de cotas continuará a ser dos conselhos universitários.
No primeiro dia, falou uma maioria de favoráveis às cotas, em um placar de 10 a 3.
Falaram representantes de ministérios e de universidades favoráveis às cotas, e os
advogados do DEM e do estudante gaúcho, além de Demóstenes.
O jornalismo delinquente
DEMÉTRIO MAGNOLI / Folha de São Paulo – 9/3/2010
AS PESSOAS , inclusive os jornalistas, podem ser contrárias ou favoráveis à introdução
de leis raciais no ordenamento constitucional brasileiro. Não é necessário, contudo,
falsear deliberadamente a história como faz o panfleto disfarçado de reportagem
publicado nesta Folha sob as assinaturas de Laura Capriglione e Lucas Ferraz ("DEM
corresponsabiliza negros pela escravidão", Cotidiano, 4/3).
A invectiva dos repórteres engajados contra o pronunciamento do senador Demóstenes
Torres (DEM-GO) na audiência do STF sobre cotas raciais inscreve no título a chave
operacional da peça manipuladora.
O senador referiu-se aos reinos africanos, mas os militantes fantasiados de repórteres
substituíram "africanos" por "negros", convertendo uma explanação factual sobre
história política numa leitura racializada da história.
Não: ninguém disse que a "raça negra" carrega responsabilidades pela escravidão. Mas
se entende o impulso que fabrica a mentira: os arautos mais inescrupulosos das
políticas de raça atribuem à "raça branca" a responsabilidade pela escravidão.
Num passado recente, ainda se narrava essa história sem embrulhá-la na imaginação
racial. Dizia-se o seguinte: o tráfico atlântico articulou os interesses de traficantes
europeus e americanos aos dos reinos negreiros africanos. Isso não era segredo ou
novidade antes da deflagração do empreendimento de uma revisão racial da história
humana com a finalidade bem atual de sustentar leis de divisão das pessoas em
grupos raciais oficiais.
Demóstenes Torres disse o que está nos registros históricos. Os repórteres a serviço
de uma doutrina tentam fazer da história um escândalo.
O jornalismo que abomina os fatos precisa de ajuda. O instituto da escravidão existia
na África (como em tantos outros lugares) bem antes do início do tráfico atlântico.
Inimigos derrotados, pessoas endividadas e condenados por crimes diversos eram
escravizados. A inexistência de um interdito moral à escravidão propiciou a aliança
entre reinos africanos e os traficantes que faziam a rota do Atlântico. Os empórios do
tráfico, implantados no litoral da África, eram fortalezas de propriedade dos reinos
africanos, alugadas aos traficantes.
O historiador Luiz Felipe de Alencastro, convocado para envernizar a delinquência
histórica dos repórteres ("África não organizou tráfico, diz historiador"), conhece a
participação logística crucial dos reinos africanos no negócio do tráfico. Mas sofreu de
uma forma aguda e providencial de amnésia ideológica ao afirmar, referindo-se ao
tráfico, que "toda a logística e o mercado eram uma operação dos ocidentais".
Os grandes reinos negreiros africanos controlavam redes escravistas extensas,
capilarizadas, que se ramificavam para o interior do continente e abrangiam parceiros
comerciais estatais e mercadores autônomos. No mais das vezes, a captura e a
escravização dos infelizes que passaram pelas fortalezas litorâneas eram realizadas por
africanos.
Num livro publicado em Londres, que está entre os documentos essenciais da história
do tráfico, o antigo escravo Quobna Cugoano relatou sua experiência na fortaleza de
Cape Coast: "Devo admitir que, para a vergonha dos homens de meu próprio país, fui
raptado e traído por alguém de minha própria cor". Laura e Lucas, na linha da
delinquência, já têm o título para uma nova reportagem: "Negros corresponsabilizam
negros pela escravidão".