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LIBERDADE – IGUALDADE – FRATERNIDADE

(Tópicos de reflexão quaresmal)

Quando esta trilogia se consolidou no século XIX, marcou idealmente uma nova
idade, esta em que estamos desde o Liberalismo e a República. Na Europa
latina, as revoluções fizeram-se contra tronos que se escoravam em altares.
Tinha-se constituído desde a Idade Média uma teologia política em que, não só
os príncipes, mas também a ordem social estabelecida, eram religiosamente
legitimados. Não admira, por isso, que a oposição ao Antigo Regime se
alargasse ao clero e à religião que o “justificavam” e com que ele se justificava a
si mesmo.

Como sabemos, a identificação catolicismo – Antigo Regime é muito relativa na


ideia geral e na especificidade de cada circunstância. Na ideia, porque, sendo
certo que a Idade Média considerava ministerialmente o poder régio – num
misto de Antigo Testamento e dalgum agostinismo (de Santo Agostinho): a
cidade terrestre em função da celeste -, isso esteve longe de ser unívoco,
concretamente nas tensões sacerdócio-império: - A quem pertencia a primazia
prática e doutrinária, aos papas ou aos imperadores carolíngios e alemães? Com
vicissitudes várias e até ao advento dos Estados modernos e das monarquias
absolutas – por mais fidelíssimas, católicas, cristianíssimas ou apostólicas que se
chamassem – a ideologia trono - altar foi contestada quer por surtos
“apocalípticos”, que relativizavam qualquer temporalidade que fosse, quer pelo
humanismo evangélico, que não esquecia a distinção entre Deus e César,
estabelecida teórica e praticamente pelo próprio Cristo.

Não faltou por isso, dentro do próprio liberalismo - republicanismo, quem


lembrasse a inspiração cristã da liberdade individual e política. E a corrente
específica do “liberalismo católico” lembrou-o insistentemente. Oiçamos alguns
autores dessa corrente, todos católicos declarados e comprometidos, um francês
e outro português: “Há que repetir sempre as palavras escritas, há vinte anos, por
aquele que se tornou no mais ilustre dos nossos bispos [Dupanloup] […]: ‘Nós
aceitamos e invocamos os princípios e as liberdades proclamadas em 89 …
Fizestes a revolução de 1789 sem nós e contra nós, mas para nós, assim o
querendo Deus apesar de vós’. […] Não, a liberdade de consciência não tem de
modo nenhum origem anti-cristã; pelo contrário, tem a mesma origem do
cristianismo e da Igreja, foi criada e posta no mundo no mesmo dia em que o
primeiro papa, São Pedro, respondeu ao primeiro dos perseguidores: on
possumus” (Charles de Montalembert, A Igreja livre no Estado livre, Paris,
1863). “[Com o Cristianismo nasce] a igualdade dos homens sem diferença de
nacionalidade, de sangue, nem de sexo, a liberdade para todos sem distinção de
cidadãos nem de escravos, a fraternidade humana como raiz de um mundo
novo” (D. António da Costa, O Cristianismo e o progresso, Lisboa, 1868, p. 10).

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Subsistindo, aliás, alguns problemas complexos, uma vez que a sociedade
contemporânea ganhou tal consistência e validade secular que pôde resvalar para
o secularismo, negador de qualquer conveniência pública da religião. Foi até
difícil, mesmo para o catolicismo liberal, resolver o dilema assim colocado: - Se
Deus criador define previamente o bem e o mal, como pode a liberdade humana
escolher legitimamente entre um e outro? – Se a verdade das coisas e das vidas
está eternamente definida por Deus, como pode a liberdade humana dispensar tal
definição? Como sabemos, quer teológica quer politicamente, estas questões só
encontraram solução cabal no Vaticano II, ao estabelecer a liberdade religiosa,
não em detrimento da verdade objectiva, divinamente tutelada, mas na pessoa
humana, como dinamismo pessoal para a verdade, que só livremente se pode
aceitar e cumprir: “[Os homens] têm obrigação de aderir à verdade conhecida e
de ordenar toda a sua vida segundo as exigências da verdade. Todavia, os
homens não podem satisfazer esta obrigação de modo adequado à sua natureza,
se não gozarem de liberdade psicológica e ao mesmo tempo de imunidade de
coacção externa” (Declaração Dignitatis Humanae, nº 2).

E nisto o Concílio recuperou muito bem a própria atitude de Cristo, cuja verdade
suscita a resposta livre e consequente daqueles que interpela. Resposta que os
realizará (= libertará) plenamente, isto é, relacionalmente. Como lhe ouvimos
em Jo 8, 31 ss: “Dizia então Jesus aos judeus que n’Ele tinham acreditado: ‘Se
permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos,
conhecereis a verdade e a verdade libertar-vos-á […]: todo aquele que comete o
pecado é escravo do pecado. […] Portanto, se o Filho vos libertar, sereis
realmente livres”. É óbvio que a liberdade ganha aqui um sentido muito mais
profundo e (inter)pessoal. A comunidade cristã onde este trecho surgiu sentia em
cada um dos seus membros a libertação que a palavra de Cristo – e Cristo
palavra –, devidamente acolhida, originava de facto, superando toda a divisão
com Deus e com os outros. E assim evoluímos, dos limites externos da
liberdade, próprios dos sistemas jurídicos que aliás a garantam, para a
ultrapassagem dos seus limites internos, própria da graça divina, como Paulo o
descobriu e anunciou. “Agora, porém, livres do pecado e feitos servos de Deus,
tendes por fruto a santificação e por fim a vida eterna. Porque o salário do
pecado é a morte, ao passo que o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Nosso
Senhor Jesus Cristo” (Rm 6, 22-23).

Este dinamismo de adesão à verdade e libertação nela mesma, como a


encontramos em Cristo, teve grande expressão espiritual e prática em figuras
maiores do cristianismo de qualquer tempo, continuando a ser, para cada um de
nós, um verdadeiro desafio quaresmal. Oiçamos, por exemplo, Inácio de
Antioquia e Newman: A caminho de Roma, para ser lançado às feras, no
princípio do século II, Inácio escreve aos cristãos daquela cidade, dissuadindo-

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os de intercederem por ele: “Perdoai-me: sei o que me convém; começo agora a
ser discípulo. Coisa alguma visível e invisível me impeça que encontre a Jesus
Cristo. […] A Ele é que eu procuro, que morreu por nós; quero Aquele que
ressuscitou por nossa causa. Aguarda-me o meu nascimento. […] Permiti que
receba luz pura: quando lá chegar serei homem. Permiti que seja imitador do
sofrimento do meu Deus. Se alguém o possui dentro de si, há de saber o que
quero e se compadecerá de mim, porque conhece o que me impulsiona. […]
Meu amor está crucificado e não há em mim fogo para amar a matéria; pelo
contrário, água viva, murmurando dentro de mim, falando-me do interior:
Vamos ao Pai!” (Santo Inácio de Antioquia, Carta aos Romanos, 5-7). E
regressando da Sicília, a 16 de Junho de 1833, arduamente rendido à vontade de
Deus, para renovar a Igreja de Inglaterra, John Henry Newman escreveria: “Luz
terna, suave, no meio da noite, / Leva-me mais longe… Não tenho aqui morada
permanente: / Leva-me mais longe…/ […] Se Tu me dás a mão, não terei medo,
/ Meus passos serão firmes no andar. / Luz terna, suave, leva-me mais longe: /
Basta-me um passo para a Ti chegar” (cf. Liturgia das Horas, Tempo Comum,
Hino de Completas).

Manuel Clemente
Sé do Porto, 11 de Março de 2010

IGUALDADE

Que os homens nascem “livres e iguais em direitos” foi afirmação importante


das revoluções liberais, a acolher certamente. Mas sempre se embateu com a
realidade das distinções persistentes. Por isso, não faltaram críticos práticos aos
liberais teóricos, com alguma confusão de planos. A substituição duma
sociedade de súbditos e privilégios (direitos particulares de cada grupo social)
por outra de cidadãos e direitos comuns, tem sido difícil objectivo da nossa
contemporaneidade. E verificamos que os cristãos entraram no debate, quer
defendendo tradições, que sempre tinham incluído desigualdades sociais e
políticas, quer propugnando por uma igualdade a estabelecer, dada a unidade de
origem e a idêntica vocação geral da humanidade, com maior sensibilidade entre
eles a um ou a outro destes tópicos. Oiçamos um autor muito influente nos
meios católicos oitocentistas: “Uma das risíveis singularidades do último século
[XVIII] foi a de querer julgar tudo pelas regras abstractas, sem atenção à
experiência, o que é tanto mais de surpreender, quanto este mesmo século não
cessava de gritar contra todos os filósofos que começaram pelos princípios
abstractos em vez de os buscarem na experiência. Rousseau […] principia o seu
contrato social por esta máxima retumbante: O homem nasce livre, e por toda a
parte jaz em ferros […]. O homem nasce livre: o contrário desta louca asserção é
a pura verdade; porque em todos os tempos e em todos os lugares, até que se
estabeleceu o cristianismo, e ainda até esta religião ter penetrado

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suficientemente nos corações, a escravidão foi sempre considerada como uma
parte necessária para o governo e para o estado político das nações. […] Deste
modo o género humano é naturalmente em grande parte servo, e não pode sair
deste estado senão sobrenaturalmente” (J. de Maistre, Do Papa (1819), Lisboa
1845).

A revelação cristã requer e impulsiona a realização histórica da igualdade,


potenciando-a espiritualmente. E os autores cristãos também insistem em que a
igualdade se alcança pelo desenvolvimento e partilha do que é e detém cada um
e não pela rasoira das abstracções comunitaristas. O Catecismo da Igreja
Católica resume-os bem no nº 1936: “Ao vir ao mundo, o homem não dispõe de
tudo o que é necessário para o desenvolvimento da sua vida corporal e espiritual.
Precisa dos outros. Há diferenças relacionadas com a idade, as capacidades
físicas, as aptidões intelectuais e morais, os intercâmbios de que cada um pôde
beneficiar, a distribuição das riquezas. Os ‘talentos’ não são distribuídos por
igual”. Igualdade na complementaridade reconhecida e oferecida, quer-se então
dizer.

Como na comunidade de Jerusalém, assim apresentada por São Lucas: “A


multidão dos que haviam abraçado a fé tinha um só coração e uma só alma.
Ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas, entre eles, tudo era comum.
[…] Entre eles não havia ninguém necessitado, pois todos os que possuíam
terras ou casas vendiam-nas, traziam o produto da venda e depositavam-no aos
pés dos Apóstolos. Distribuía-se, então, a cada um, conforme a necessidade”
(Act 4, 32 ss). Sem idealizarmos demasiadamente o tema – logo a seguir
Barnabé cumpriu a regra, mas Ananias e Safira não -, o certo é que ficou como
horizonte fixo de perfeição cristã, sucessivamente tentado e transbordando para
o campo social. Sobremaneira interessante é a seguinte reflexão de São Gregório
de Nazianzo, na segunda metade do século IV, recuperando a igualdade de
origem para a igualdade a refazer: “Imitemos a altíssima e primeira lei de Deus,
que […] para todos estendeu a terra firme e disponível […]. Ao igual pela
natureza concedeu o dom da igual dignidade, demonstrando assim a riqueza da
sua bondade. Mas os homens […] nem ao menos pensam que penúria e riqueza,
liberdade (assim dizemos) e escravidão, e nomes semelhantes, só mais tarde se
introduziram no género humano […] ‘No princípio, assim se lê, não foi assim’.
[…] Mas considera a primordial igualdade de direitos, não a divisão posterior;
não a lei dos poderosos, mas a da criação” (Sermão XIV, 25-26).

Das revoluções setecentistas à Declaração Universal dos Direitos do Homem


(ONU, 1948), prosseguiu-se num caminho geral que, ao menos na teoria, é
certamente um ganho. Para os católicos, é também um compromisso reforçado:
“Toda a espécie de discriminação relativamente aos direitos fundamentais da
pessoa, quer por razão do sexo, quer da raça, cor, condição social, língua ou

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religião, deve ser ultrapassada e eliminada como contrária ao desígnio de Deus”,
asseverou o Vaticano II (Gaudium et Spes, 29).

Recuando – ou avançando – de novo, quer no círculo mais próximo de Jesus,


quer nas comunidades que brotaram da sua Páscoa, o Evangelho incarnou
igualmente em homens e mulheres, nobres e plebeus, gente daqui ou dali, os
factores maiores da desigualdade de então. Tudo fundado no ensinamento
central sobre um “Pai” que a todos nos cria e nos espera, pelo caminho da
filiação divina que o mesmo Cristo nos abre e possibilita, pelo Espírito
comunicado. Como na sua despedida – convite: “Subo para o meu Pai, que é
vosso Pai, para o meu Deus, que é vosso Deus” (Jo 20, 17). Em relação a esse
fim comum, a igualdade é absoluta, em termos de oportunidade. Dizia-o Paulo
aos baptizados, com uma clareza que desafiava radicalmente a sua época e não
só: “É que todos vós sois filhos de Deus em Cristo Jesus, mediante a fé; pois
todos os que fostes baptizados em Cristo, revestistes-vos de Cristo mediante a
fé. Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher,
porque todos sois um só em Cristo Jesus” (Gl 3, 26-28). Ou seja, a igualdade é
quase outro nome da nossa dignidade comum, de primeira origem e último
destino, como esclarece o Catecismo da Igreja Católica no nº 1934: “Criados à
imagem do Deus único, dotados duma idêntica alma racional, todos os homens
têm a mesma natureza e a mesma origem. Resgatados pelo sacrifício de Cristo,
todos são chamados a participar da mesma bem-aventurança divina. Todos
gozam, portanto, de igual dignidade”.

É também reconhecida a admiração que as comunidades cristãs causavam aos


seus conterrâneos pagãos, exactamente por reunirem senhores e servos, homens
e mulheres, autóctones e estrangeiros. Ainda hoje a causam aqui e ali, sendo por
isso proféticas. (Mesmo num país como o nosso, as assembleias dominicais são
quase a única ocasião em que se reúnem sistematicamente pessoas de várias
condições sociais, proveniências e idades, para louvar o mesmo Deus, ouvir a
mesma Palavra e comungar da mesma Vida). Contrafacções havia, certamente,
como infelizmente se podem reproduzir. Mas essa igualdade de substância e
destino estava assegurada pela inquestionável pessoa do “Fundador do
Cristianismo”. Não admira assim que, até por não-católicos, a trilogia da
Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade, Fraternidade – fosse também ligada
à herança cristã.

Mas temos de considerar um certo “tropeço da indistinção”, surgido no caminho


da igualdade. Pelas reais ou imaginadas possibilidades da ciência e da tecnologia
modernas, chegou-se, por exemplo, a outra consideração do ser humano e da sua
realidade masculina ou feminina. Mais do que como produto da natureza, o ser
homem ou mulher começou a ser encarado como género cultural de escolha
livre. Não se trataria já de evoluir dentro do que se é agora, mas de escolher o

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que se queira ou se “sinta” ser, alterando a fisiologia pela tecnologia. Por isso, a
igualdade, no sentido essencial que buscava, pôde dar lugar à indistinção, como
possibilidade e até “legitimidade” de se ser à escolha ou sucessivamente.
Culturalmente também, apetece-se a osmose, mais do que a relação
propriamente dita.

“Relação”, de facto, supõe distinções de raiz. Ninguém é absoluto, antes


relativo, pois só na interdependência das diferenças se realiza como pessoa, isto
é, ser em relação. Por isso também, o género ou a raça, a localização e cada
cultura, não são necessariamente “limites” à igualdade essencial a realizar, mas
possibilidades de ser com os outros, dando e recebendo mutuamente, porque os
outros são na verdade outros e nós os outros dos e para os outros. Quererá isto
dizer que a igualdade só pode acontecer entre seres distintos que partilhem o que
têm: acontece como possibilidade e resultado, não como indistinção
“irresponsável”. Entre absolutamente idênticos não haveria campo para a
igualdade, porque esta se define na relação, o mesmo se dizendo para a
liberdade e a fraternidade.

O tema é muito mais amplo. Começa por ser teológico, pois na consideração
bíblica da humanidade cada um de nós integra um todo que se realiza na
distinção e na complementaridade. Iguais, conjugando masculino e feminino, na
primeira expressão familiar da sociabilidade; iguais, na especificidade dos vários
órgãos dum só corpo, como Paulo lembrava aos coríntios (cf. 1 Cor 12, 12 ss).
Iguais, mas no espanto daqueles povos todos que, sem deixaram de o ser,
ouviram anunciar, na língua de cada um, as maravilhas de Deus (cf. Act 2, 7 ss).
E nós cristãos sabemos – como outros, aliás, o intuem – que tudo é assim,
complementarmente igual, porque o próprio Deus o é antes de mais, na sua
unitrindade: Pai como Pai e Filho como Filho, no amor do Espírito, que entre os
dois circula.

Manuel Clemente
Sé do Porto, 18 de Março de 2010

FRATERNIDADE

A fraternidade será a mais especificamente cristã das ideias-força


contemporâneas. E decerto a mais difícil, pois não lhe bastam as disposições
constitucionais e legais, aliás indispensáveis. Reconhece-o o Compêndio da
Doutrina Social da Igreja, nº 390: “De facto, o campo do direito é o do interesse
tutelado e do respeito exterior, da protecção dos bens materiais e da sua
repartição de acordo com regras estabelecidas; o campo da amizade é, pelo
contrário, o do desinteresse, do desprendimento dos bens materiais, da sua
doação, da disponibilidade interior para as exigências do outro. A amizade civil,

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assim entendida, é a actuação mais autêntica do princípio da fraternidade, que é
inseparável dos da liberdade e da igualdade. Trata-se de um princípio que
permaneceu, em grande parte, não realizado nas sociedades políticas modernas e
contemporâneas, sobretudo por causa da influência exercida pelas ideologias
individualistas e colectivistas”.

O passo é relevante e esclarecedor. Desinteresse, desprendimento, doação,


disponibilidade para as exigências do outro… Grande programa, de facto, mas
nem fácil nem teórico. Imediatamente e falando em geral, somos mais propensos
a tratar de nós e dos nossos interesses pessoais do que logo dos outros e das suas
necessidades, e não estaremos assim tão convencidos da comunidade básica de
origem e destino em que a fraternidade se firma. Teórica e abstractamente,
somos capazes de fixar metas de realização universal, mas tanto as
abandonamos por inexequíveis, como as contradizemos por forçadas.

De facto, a fraternidade, para não se resumir a uma abstracção, precisa daquela


unidade de origem que só a autoria e a paternidade divina e monoteísta lhe
garantem absolutamente: fraternidade pressupõe paternidade comum. Aliás, a
palavra “fraternidade” inclui uma convicção e um afecto que contrastam muito
com o interesse individual imediato, mais inclinado à auto-realização do que a
contemplações altruístas. A própria natureza – e a nossa evolução natural – não
nos parece propriamente “fraterna” entre os vários seres, humanidade incluída.

Parecê-lo-ia a um coração totalmente evangélico como o de Francisco de Assis,


cujo Cântico das Criaturas, está tão repassado da paternidade universal de Deus,
em Cristo revelada e completamente oferecida. Mas é importante notar que, se
São Francisco a tudo e a todos considera tão fraternalmente, é porque reconhece
e exalta a origem divina que a tudo sustenta, define e oferece: “Louvado sejas ó
meu Senhor, com todas as tuas criaturas, especialmente o meu senhor irmão Sol,
o qual faz o dia e por ele nos alumia. E ele é belo e radiante, com grande
esplendor: de ti, Altíssimo, nos dá ele a imagem. […] Louvado sejas, ó meu
Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa, e produz
variados frutos, com flores coloridas e verduras”.

O Sol, como imagem do esplendor divino, a Terra, como sustento e encanto a


todos oferecidos… E ainda e sempre Deus, naqueles que assinalam na vida e na
morte a persistência do/no amor divino: “Louvado sejas, ó meu Senhor, por
aqueles que perdoam por teu amor e suportam enfermidades e tribulações. […]
Louvado sejas, ó meu Senhor, por nossa irmã a morte corporal, à qual nenhum
vivente pode escapar”. Em tudo fraternidade, porque tudo na paternidade divina.
E tudo recuperado mais à frente, naquela eterna bem-aventurança que só o
pecado mortal obviaria, como “segunda morte”, pelo corte com Deus, única e
geral fonte de vida: “Ai daqueles que morrem em pecado mortal! Bem-

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aventurados aqueles que cumpriram tua santíssima vontade, porque a segunda
morte não lhes fará mal”.

Talvez ninguém tenha interpretado, vivido e convivido tão plenamente a


fraternidade revelada em Cristo, a partir do acolhimento da paternidade divina.
Daqui lhe brotava outro sentimento essencial para a realização da fraternidade
universal, que Francisco enunciava como humildade e pobreza, em
despojamento e partilha absolutos, fruição sem desgaste. Porque só Deus é Deus
e se revela totalmente oferecido e dadivoso, só podemos ser acolhedores e
serviçais, diante d’Ele e dos outros. Por isso Francisco conclui o Cântico – e
quase a sua vida terrena - com esta exortação: “Louvai e bendizei a meu Senhor,
e dai-lhe graças e servi-o com grande humildade” (Fontes Franciscanas, Braga,
1982, p. 74-75).

Na sua encíclica de Junho passado, o Papa Bento XVI faz excelente eco e
aplicação destas noções, a propósito dos actuais problemas ambientais e
ecológicos. Quase poderemos considerar o número 51 da encíclica Caritas in
Veritate como uma glosa do Cântico de Francisco de Assis, oito séculos depois.
Como Francisco intuíra, assinala a grande interdependência da criação, com as
necessárias consequências de mentalidade e comportamento: “O modo como o
ser humano trata o ambiente influi sobre o modo como se trata a si mesmo, e
vice-versa. Isto chama a sociedade actual a uma séria revisão de vida que, em
muitas partes do mundo, pende para o hedonismo e o consumismo, sem olhar
aos danos que daí derivam. É necessária uma real mudança de mentalidade que
nos induza a adoptar novos estilos de vida, nos quais a busca do verdadeiro, do
belo e do bom e a comunhão com os outros homens para um crescimento
comum sejam os elementos que determinam as opções dos consumos, das
poupanças e dos investimentos”.

Ou seja, para a autêntica resolução da “crise” que nos afecta e põe em causa o
futuro da humanidade inteira, requer-se a conversão dos desejos e dos
comportamentos, uma autêntica educação para a consistência, o esplendor e a
inclusão universal de tudo e de todos, na busca e na partilha do que realmente
satisfaça. Não sendo despropositado referir aqui as práticas quaresmais da
oração, do jejum e da esmola, pois a primeira sacia-nos na única realidade
permanente, que descobrimos em Deus, o segundo implica a escolha do “único
necessário”, que não nos dispersa o gosto, antes disponibiliza a alma, e a terceira
abre-nos a relação a todos e a tudo, na partilha recíproca que nos humaniza
também e universaliza sempre.

E, depois de elucidar a correlação dos problemas interpessoais com os


internacionais e de todos estes com os ambientais, o Papa insiste, de modo bem
cristão e franciscano: “Requer-se uma espécie de ecologia da pessoa humana,

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entendida no justo sentido. De facto, a degradação da natureza está estreitamente
ligada à cultura que molda a convivência humana: quando a ‘ecologia humana’ é
respeitada dentro da sociedade, beneficia também a ecologia ambiental. […] O
livro da natureza é uno e indivisível, tanto sobre a vertente do ambiente como
sobre a vertente da vida, da sexualidade, do matrimónio, da família, das relações
sociais, numa palavra do desenvolvimento humano integral”.

Em Cristo e na tradição cristã, esta ecologia integral é uma afirmação básica e


sempre retomada. Entrevê-se na profunda comunhão entre a sua vida e a
natureza que recupera, apresentando-se como autêntica recriação do mundo, em
que tudo comunga e se refaz. Um exemplo entre tantos, que os Evangelhos não
deixam de anotar: “Levantou-se, então, no mar uma tempestade tão violenta, que
as ondas cobriam a barca. […] Então, levantando-se, [Jesus] falou
imperiosamente aos ventos e ao mar, e sobreveio uma grande calma” (Mt 8, 23
ss). Talvez um dia compreendamos inteiramente os que estas passagens
prometem, em termos de “fraternidade” criatural…

Entretanto, recolhamos a convicção de Paulo: “Estou convencido de que os


sofrimentos do tempo presente não têm comparação com a glória que há-de
revelar-se em nós. Pois até a criação se encontra em expectativa ansiosa,
aguardando a revelação dos filhos de Deus” (Rm 8, 18-19). Inspirando-nos
ainda em Francisco de Assis - segundo a Legenda Perusina, 51 -, para
percebermos o que essa revelação seja: “Quando lavava as mãos, escolhia um
lugar onde a água das abluções não viesse a ser calcada aos pés. Quando
caminhava sobre pedras, fazia-o com temor e respeito, por amor d’Aquele que é
chamado a Pedra angular. […] Ao irmão que ia cortar a lenha para o lume,
recomendava que não cortasse a árvore toda, mas que deixasse alguns ramos.
[…] Ao irmão hortelão dizia que não ocupasse todo o terreno com plantas
comestíveis, mas deixasse parte para produzir plantas que, a seu tempo, dessem
as irmãs flores. Mais ainda dizia que o irmão hortelão devia em qualquer parte
da horta fazer um canteiro e plantar todo o género de plantas de cheiro e flores,
para que na estação própria convidassem os homens ao louvor de Deus, porque
toda a criatura diz e clama: ‘Foi Deus que me criou por causa de ti, ó homem!”
(Fontes Franciscanas, p. 832-833).

Trecho deveras inspirador, para uma concepção criatural fraterna, num sentido
tão cristão como urgentíssimo agora: tudo estimado, porque tudo entendido
entre Deus e o homem, ou do homem para Deus através das criaturas, apreciadas
e respeitados como apelo à comunhão divina e universal.

E aqui deparamos com o cristianismo, por direito próprio. As derivações


fraternas da filiação divina são claramente evidenciadas pelas palavras de Cristo
e também pelo seu comportamento, radicalmente oposto ao do “irmão mais

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velho” da parábola do filho pródigo: Cristo realiza totalmente a fraternidade,
vindo buscar os seus irmãos, por perdidos que estejam, cumprindo nisso a
misericórdia do Pai. E revela-nos que “haverá mais alegria no céu por um só
pecador que se converte, do que por noventa e nove justos, que não necessitam
de conversão” (Lc 15, 7). Na parábola com que ilustra esta revelação
fundamental sobre os sentimentos de Deus a nosso respeito, Jesus contrasta a
atitude excludente do irmão mais velho – “ao chegar esse teu filho…” – com a
resposta absolutamente inclusiva do pai: “tínhamos de fazer uma festa e alegrar-
nos, porque este teu irmão estava morto e reviveu; estava perdido e foi
encontrado” (Lc 15, 30-32). Efectivamente, só no coração universal de Deus,
criador e recuperador de tudo e de todos, encontraremos motivo bastante para
uma fraternidade absoluta.te do irmamentos de DEus ue apelo re Deus e o
homem, ou do homem para DEus

É por isso que a fraternidade se consegue a partir do acolhimento pessoal e


comum da vontade do Pai. Podendo-se dizer que a sua vontade é que sejamos
irmãos, ou que é na sua vontade que nos descobrimos verdadeiramente tais, a
partir de Cristo: “E, indicando com a mão os discípulos, [Jesus] acrescentou: ‘Aí
estão minha mãe e meus irmãos; pois, todo aquele que fizer a vontade de meu
Pai que está no Céu, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mt 12,
49-50). Por outro lado, só o Pai – que “faz com que o sol se levante sobre os
bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores” (Mt 5, 45) –
pode garantir uma fraternidade perdurável. Uma fraternidade que não desista de
ninguém, apesar de tudo, como em Cristo crucificado, que pede o que sabe ser
próprio do seu Pai e com Ele e connosco partilha, numa fraternidade que resiste
à - e na - própria morte, tão injustamente sofrida, tão magnificamente oferecida:
“- Perdoa-lhes Pai, porque não sabem o que fazem!” (Lc 23, 34).

De Cristo e da vida em Cristo tirava Paulo a mais “revolucionária” das


consequências, no que à fraternidade respeita, como escreveu a Filémon.
Conhecemos a circunstância: Filémon era cristão de estrato social elevado, a
quem fugira um escravo, Onésimo. Paulo pede-lhe que o acolha de novo,
livrando-o das graves penas em que incorria pela lei da altura, mas dando-lhe
uma razão novíssima para proceder assim, ou seja, o facto de, na comum
pertença a Cristo, Onésimo ser agora um irmão: “É que, afinal, talvez tenha sido
por isto que ele foi afastado por breve tempo: para que o recebas para sempre,
não já como escravo, mas muito mais do que um escravo: como irmão querido;
isto especialmente para mim, quanto mais para ti, que com ele estás relacionado
tanto humanamente como no Senhor” (Flm 15-16).

Desta nova condição fraterna, alcançada “no Senhor”, tirarão sucessivamente os


cristãos novas consequências, até à própria abolição da escravatura para toda a
humanidade. Caminho longo para um espírito novo, finalmente acolhido.

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Concluindo com o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nº 4: “Tornados
novos pelo amor de Deus, os homens são capacitados para transformar as regras
e a qualidade das relações, inclusive as estruturas sociais: são pessoas capazes
de levar a paz aonde há conflitos, de construir e cultivar relações fraternas onde
há ódio, de buscar a justiça onde prevalece a exploração do homem pelo
homem. Somente o amor é capaz de transformar de modo radical as relações que
os seres humanos estabelecem entre si”.

Sé do Porto, 25 de Março de 2010

+ Manuel Clemente

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