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Quando esta trilogia se consolidou no século XIX, marcou idealmente uma nova
idade, esta em que estamos desde o Liberalismo e a República. Na Europa
latina, as revoluções fizeram-se contra tronos que se escoravam em altares.
Tinha-se constituído desde a Idade Média uma teologia política em que, não só
os príncipes, mas também a ordem social estabelecida, eram religiosamente
legitimados. Não admira, por isso, que a oposição ao Antigo Regime se
alargasse ao clero e à religião que o “justificavam” e com que ele se justificava a
si mesmo.
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Subsistindo, aliás, alguns problemas complexos, uma vez que a sociedade
contemporânea ganhou tal consistência e validade secular que pôde resvalar para
o secularismo, negador de qualquer conveniência pública da religião. Foi até
difícil, mesmo para o catolicismo liberal, resolver o dilema assim colocado: - Se
Deus criador define previamente o bem e o mal, como pode a liberdade humana
escolher legitimamente entre um e outro? – Se a verdade das coisas e das vidas
está eternamente definida por Deus, como pode a liberdade humana dispensar tal
definição? Como sabemos, quer teológica quer politicamente, estas questões só
encontraram solução cabal no Vaticano II, ao estabelecer a liberdade religiosa,
não em detrimento da verdade objectiva, divinamente tutelada, mas na pessoa
humana, como dinamismo pessoal para a verdade, que só livremente se pode
aceitar e cumprir: “[Os homens] têm obrigação de aderir à verdade conhecida e
de ordenar toda a sua vida segundo as exigências da verdade. Todavia, os
homens não podem satisfazer esta obrigação de modo adequado à sua natureza,
se não gozarem de liberdade psicológica e ao mesmo tempo de imunidade de
coacção externa” (Declaração Dignitatis Humanae, nº 2).
E nisto o Concílio recuperou muito bem a própria atitude de Cristo, cuja verdade
suscita a resposta livre e consequente daqueles que interpela. Resposta que os
realizará (= libertará) plenamente, isto é, relacionalmente. Como lhe ouvimos
em Jo 8, 31 ss: “Dizia então Jesus aos judeus que n’Ele tinham acreditado: ‘Se
permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos,
conhecereis a verdade e a verdade libertar-vos-á […]: todo aquele que comete o
pecado é escravo do pecado. […] Portanto, se o Filho vos libertar, sereis
realmente livres”. É óbvio que a liberdade ganha aqui um sentido muito mais
profundo e (inter)pessoal. A comunidade cristã onde este trecho surgiu sentia em
cada um dos seus membros a libertação que a palavra de Cristo – e Cristo
palavra –, devidamente acolhida, originava de facto, superando toda a divisão
com Deus e com os outros. E assim evoluímos, dos limites externos da
liberdade, próprios dos sistemas jurídicos que aliás a garantam, para a
ultrapassagem dos seus limites internos, própria da graça divina, como Paulo o
descobriu e anunciou. “Agora, porém, livres do pecado e feitos servos de Deus,
tendes por fruto a santificação e por fim a vida eterna. Porque o salário do
pecado é a morte, ao passo que o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Nosso
Senhor Jesus Cristo” (Rm 6, 22-23).
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os de intercederem por ele: “Perdoai-me: sei o que me convém; começo agora a
ser discípulo. Coisa alguma visível e invisível me impeça que encontre a Jesus
Cristo. […] A Ele é que eu procuro, que morreu por nós; quero Aquele que
ressuscitou por nossa causa. Aguarda-me o meu nascimento. […] Permiti que
receba luz pura: quando lá chegar serei homem. Permiti que seja imitador do
sofrimento do meu Deus. Se alguém o possui dentro de si, há de saber o que
quero e se compadecerá de mim, porque conhece o que me impulsiona. […]
Meu amor está crucificado e não há em mim fogo para amar a matéria; pelo
contrário, água viva, murmurando dentro de mim, falando-me do interior:
Vamos ao Pai!” (Santo Inácio de Antioquia, Carta aos Romanos, 5-7). E
regressando da Sicília, a 16 de Junho de 1833, arduamente rendido à vontade de
Deus, para renovar a Igreja de Inglaterra, John Henry Newman escreveria: “Luz
terna, suave, no meio da noite, / Leva-me mais longe… Não tenho aqui morada
permanente: / Leva-me mais longe…/ […] Se Tu me dás a mão, não terei medo,
/ Meus passos serão firmes no andar. / Luz terna, suave, leva-me mais longe: /
Basta-me um passo para a Ti chegar” (cf. Liturgia das Horas, Tempo Comum,
Hino de Completas).
Manuel Clemente
Sé do Porto, 11 de Março de 2010
IGUALDADE
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suficientemente nos corações, a escravidão foi sempre considerada como uma
parte necessária para o governo e para o estado político das nações. […] Deste
modo o género humano é naturalmente em grande parte servo, e não pode sair
deste estado senão sobrenaturalmente” (J. de Maistre, Do Papa (1819), Lisboa
1845).
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religião, deve ser ultrapassada e eliminada como contrária ao desígnio de Deus”,
asseverou o Vaticano II (Gaudium et Spes, 29).
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que se queira ou se “sinta” ser, alterando a fisiologia pela tecnologia. Por isso, a
igualdade, no sentido essencial que buscava, pôde dar lugar à indistinção, como
possibilidade e até “legitimidade” de se ser à escolha ou sucessivamente.
Culturalmente também, apetece-se a osmose, mais do que a relação
propriamente dita.
O tema é muito mais amplo. Começa por ser teológico, pois na consideração
bíblica da humanidade cada um de nós integra um todo que se realiza na
distinção e na complementaridade. Iguais, conjugando masculino e feminino, na
primeira expressão familiar da sociabilidade; iguais, na especificidade dos vários
órgãos dum só corpo, como Paulo lembrava aos coríntios (cf. 1 Cor 12, 12 ss).
Iguais, mas no espanto daqueles povos todos que, sem deixaram de o ser,
ouviram anunciar, na língua de cada um, as maravilhas de Deus (cf. Act 2, 7 ss).
E nós cristãos sabemos – como outros, aliás, o intuem – que tudo é assim,
complementarmente igual, porque o próprio Deus o é antes de mais, na sua
unitrindade: Pai como Pai e Filho como Filho, no amor do Espírito, que entre os
dois circula.
Manuel Clemente
Sé do Porto, 18 de Março de 2010
FRATERNIDADE
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assim entendida, é a actuação mais autêntica do princípio da fraternidade, que é
inseparável dos da liberdade e da igualdade. Trata-se de um princípio que
permaneceu, em grande parte, não realizado nas sociedades políticas modernas e
contemporâneas, sobretudo por causa da influência exercida pelas ideologias
individualistas e colectivistas”.
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aventurados aqueles que cumpriram tua santíssima vontade, porque a segunda
morte não lhes fará mal”.
Na sua encíclica de Junho passado, o Papa Bento XVI faz excelente eco e
aplicação destas noções, a propósito dos actuais problemas ambientais e
ecológicos. Quase poderemos considerar o número 51 da encíclica Caritas in
Veritate como uma glosa do Cântico de Francisco de Assis, oito séculos depois.
Como Francisco intuíra, assinala a grande interdependência da criação, com as
necessárias consequências de mentalidade e comportamento: “O modo como o
ser humano trata o ambiente influi sobre o modo como se trata a si mesmo, e
vice-versa. Isto chama a sociedade actual a uma séria revisão de vida que, em
muitas partes do mundo, pende para o hedonismo e o consumismo, sem olhar
aos danos que daí derivam. É necessária uma real mudança de mentalidade que
nos induza a adoptar novos estilos de vida, nos quais a busca do verdadeiro, do
belo e do bom e a comunhão com os outros homens para um crescimento
comum sejam os elementos que determinam as opções dos consumos, das
poupanças e dos investimentos”.
Ou seja, para a autêntica resolução da “crise” que nos afecta e põe em causa o
futuro da humanidade inteira, requer-se a conversão dos desejos e dos
comportamentos, uma autêntica educação para a consistência, o esplendor e a
inclusão universal de tudo e de todos, na busca e na partilha do que realmente
satisfaça. Não sendo despropositado referir aqui as práticas quaresmais da
oração, do jejum e da esmola, pois a primeira sacia-nos na única realidade
permanente, que descobrimos em Deus, o segundo implica a escolha do “único
necessário”, que não nos dispersa o gosto, antes disponibiliza a alma, e a terceira
abre-nos a relação a todos e a tudo, na partilha recíproca que nos humaniza
também e universaliza sempre.
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entendida no justo sentido. De facto, a degradação da natureza está estreitamente
ligada à cultura que molda a convivência humana: quando a ‘ecologia humana’ é
respeitada dentro da sociedade, beneficia também a ecologia ambiental. […] O
livro da natureza é uno e indivisível, tanto sobre a vertente do ambiente como
sobre a vertente da vida, da sexualidade, do matrimónio, da família, das relações
sociais, numa palavra do desenvolvimento humano integral”.
Trecho deveras inspirador, para uma concepção criatural fraterna, num sentido
tão cristão como urgentíssimo agora: tudo estimado, porque tudo entendido
entre Deus e o homem, ou do homem para Deus através das criaturas, apreciadas
e respeitados como apelo à comunhão divina e universal.
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velho” da parábola do filho pródigo: Cristo realiza totalmente a fraternidade,
vindo buscar os seus irmãos, por perdidos que estejam, cumprindo nisso a
misericórdia do Pai. E revela-nos que “haverá mais alegria no céu por um só
pecador que se converte, do que por noventa e nove justos, que não necessitam
de conversão” (Lc 15, 7). Na parábola com que ilustra esta revelação
fundamental sobre os sentimentos de Deus a nosso respeito, Jesus contrasta a
atitude excludente do irmão mais velho – “ao chegar esse teu filho…” – com a
resposta absolutamente inclusiva do pai: “tínhamos de fazer uma festa e alegrar-
nos, porque este teu irmão estava morto e reviveu; estava perdido e foi
encontrado” (Lc 15, 30-32). Efectivamente, só no coração universal de Deus,
criador e recuperador de tudo e de todos, encontraremos motivo bastante para
uma fraternidade absoluta.te do irmamentos de DEus ue apelo re Deus e o
homem, ou do homem para DEus
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Concluindo com o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nº 4: “Tornados
novos pelo amor de Deus, os homens são capacitados para transformar as regras
e a qualidade das relações, inclusive as estruturas sociais: são pessoas capazes
de levar a paz aonde há conflitos, de construir e cultivar relações fraternas onde
há ódio, de buscar a justiça onde prevalece a exploração do homem pelo
homem. Somente o amor é capaz de transformar de modo radical as relações que
os seres humanos estabelecem entre si”.
+ Manuel Clemente
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