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discutindo

a história

do feudalismo
ao capitalismo:
transições
samuel sérgio salinas

coord.: jaime pinsky


Capa: Sylvio Ulhoa Cintra Filho
Fotos de capa e de miolo: Vilu Salvatore
Pesquisa iconográfica: Letícia V. de Sousa Reis
Composição: Linoart Ltda.
Impressão e Acabamento: DAG Gráfica e Editorial

Copyright © Samuel Sérgio Salinas

Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Salinas, Samuel Sérgio.


S16d Do feudalismo ao capitalismo : transições / Samuel Sérgio
Salinas. — São Paulo : Atual, 1987.
(Discutindo a história)
Bibliografia.
1. Capitalismo — História 2. Feudalismo
3. História econômica — Idade Média, 500-1500 I. Título. II.
Série.

CDD-330.902
-330.12209
87-1297 -940.14

índices para catálogo sistemático:


1. Capitalismo : História 330.12209
2. Economia medieval : História 330.902
3. Feudalismo : Europa : História 940.14
4. Idade Média : Economia : História 330.902

Todos os direitos r e s e r v a d o s à
ATUAL EDITORA LTDA.
R u a José Antônio Coelho, 785
Telefone: 575-1544
04011 — São Paulo — SP

LUYLIVI

2 4 6 8 10 9 7 5 3 1

NOS PEDIDOS TELEGRAFICOS BASTA CITAR O CÓDIGO: ANCH0132E


sumário

Bate-papo com o Autor 1


1. O que m u d a na História 3
2. Roma 6
3. O feudalismo europeu 15
4. O capitalismo 31
5. América Latina: capitalismo mercantil, feudalismo . . . 49
6. Observações finais 56
Bibliografia 59
Cronologia 61
Discutindo o texto 63
"Os capitalistas se distinguem dos senhores feudais, na
medida em que estes últimos têm uma relação externa com
a produção, pois eles são beneficiários externos — com aju-
da de meios repressivos particulares — através dos tributos
ou da renda, num processo de trabalho onde eles não apare-
cem estruturalmente integrados. O capitalista teria então
uma situação nova junto à produção, pois à diferença dos
outros representantes das classes dominantes dos modos de
produção pré-capitalista, ele está integrado na produção
como organizador da produção e da circulação. A burguesia
tem uma atividade no processo de sua reprodução — seu
direito de propriedade — que é, e constitui, tanto uma pre-
sença direta quanto uma presença delegada. Estudar a bur-
guesia como classe é estudar o Estado, pois é através deste
aparelho que a burguesia como tal se constitui em classe
dominante."

(Carlos Henrique Escobar, Ciência da História e Ideologia,)


bate-papo com o autor

Nascido em 1932, em Araraquara, Samuel Sérgio Salinas


foi jornalista e bacharelou-se em Direito pela USP em 1955,
tendo ingressado no Ministério Público do E s t a d o de São
Paulo, onde se aposentou como P r o c u r a d o r da Justiça. For-
mou-se em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Rio Claro, e trabalhou na UNICAMP.
Foi t a m b é m aluno do I Curso Taller, organizado no
México pelo I n s t i t u t o Latino-americano de Pesquisas Econô-
micas e Sociais. Atuou como consultor das Nações Unidas
p a r a o II Curso Taller de Estratégias Econômicas e Sociais.
É autor do livro O bando dos quatro, sobre a industria-
lização do sudeste asiático, e integra o Conselho Curador da
Fundação Cásper Libero.
A seguir, Samuel Salinas responde a três questões:

1. Qual a atualidade de seu livro?


O tema é p a r t e do conjunto de preocupações teóricas
q u e redimensionaram a História a p a r t i r do século XIX,
projetando-a como a mais dinâmica das Ciências Sociais
contemporâneas.
1
2. O feudalismo termina através de morte natural ou pro-
vocada?
P a r a nos situarmos no contexto da pergunta, diríamos
q u e pelos dois motivos, m a s n ã o se deve atribuir a " n a t u r a l "
q u a l q u e r conotação providencialista. Não há " m ã o s invisí-
veis" na História. A p a r t i r de um dado período, a classe
social ascendente torna-se consciente da existência de obstá-
culos à sua hegemonia. É o m o m e n t o em que elabora a ideo-
logia da " I d a d e das Trevas", no nosso caso. A luta ideoló-
gica é, p o r t a n t o , u m a forma de provocar a m o r t e do feuda-
lismo. Pelo menos no c a m p o das idéias, ou da teoria.

3. Qual o papel do comércio e da cidade na transição?


O capital comercial torna-se p a r t e do processo capita-
lista de transição. Perde a sua "independência" se p e n s a r m o s ,
p o r exemplo, no capital mercantil dos fenícios etc.
As cidades p a s s a m a integrar, intensamente, o processo
produtivo nuclear, ou seja, o industrial — daí as conseqüên-
cias sociais, econômicas e políticas que conhecemos, dentre
elas a concentração proletária e a politização das " m a s s a s " .

2
1. O que muda na história

Temos a convicção de que nossas instituições, ciências,


costumes, política etc. são, hoje, p r o f u n d a m e n t e diferentes
das instituições, ciências, costumes etc. de o u t r a s épocas.
Não basta, p o r é m , descrever e tentar situar, no tempo,
essas mudanças. Os antigos cronistas e gerações de historia-
dores a c u m u l a r a m fatos em grossos volumes, sem desemba-
raçar o enredo das transformações ocorridas em milênios de
história da h u m a n i d a d e .
As inquietações e, mais do que isso, a metódica reflexão
de investigadores surpreendidos com o dinamismo da época
contemporânea, época de revoluções burguesas e socialistas,
alteraram o r u m o m o d o r r e n t o das pesquisas e do discurso
histórico. A atenção deslocou-se da coleta de fatos p a r a os
fundamentos das m u d a n ç a s no c o m p o r t a m e n t o e na organi-
zação, quer de povos habitantes das mais distantes regiões
do globo, quer dos modos como os h o m e n s se organizam
para produzir a sua vida social. O que m u d a ? Como m u d a ?
Por que m u d a ?
Este conjunto de questões ocupa o palco da história, da
"nova história", e por si só desperta e n o r m e interesse e am-
plo debate, não apenas científico, mas político.
A história das mudanças, das transições, m e n s u r a n d o os
tempos longos e curtos, as conjunturas e as séries seculares
de preços, torna-se parte do nosso cotidiano. Sentimo-nos
obrigados a interpelar o passado p a r a compreender e, se
possível, entrever o futuro. A única resposta p a r a o que vai
3
acontecer está no que já aconteceu. Não temos outros parâ-
metros. A cada dia vivemos o nosso passado, como passado
histórico e como repertório das indagações que ele nos per-
mite p r o p o r p a r a o futuro.
Sabemos hoje que as sociedades m u d a m , estão m u d a n d o ,
e compreendemos que devem m u d a r .
O que m u d a ? O indivíduo ou a sociedade? Os idealistas,
entendida a palavra no sentido filosófico, privilegiam o papel
do indivíduo e suas idéias, deslocando-o p a r a o proscênio
dos acontecimentos. A c o r r e n t e materialista, p o r sua vez, não
descarta a relevância do indivíduo, m a s p r o c u r a situá-lo na
sociedade, de que é parte. O h o m e m m u d a , n ã o p o r q u e tenha
vontade de mudar, nem poder individual p a r a produzir a
mudança, mas p o r q u e a sociedade, onde atua, m u d a .
Se não é a consciência dos indivíduos que produz a mu-
dança, o que explica a certeza dessas m u d a n ç a s ? As respostas
dos historiadores são controvertidas, em qualquer campo
onde se queira classificá-los.
Neste livro o a u t o r t o m a partido p a r a afirmar: m u d a a
m a n e i r a como os homens produzem e reproduzem a sua vida
econômica, social, política etc. Por o u t r o lado, a vida mate-
rial, a produção cotidiana dos meios de sobrevivência, histo-
ricamente concretizada, revela como os h o m e n s se organizam
p a r a assegurá-la, despendendo energias no t r a b a l h o e nas
condições de emprego do trabalho, desta ou daquela forma,
deste ou daquele modo. Nessas relações, cristalizadas pelo
emprego da força de trabalho, residem os elementos subs-
tanciais quer das m u d a n ç a s nos "tempos de longa duração",
quer das "revoluções" que assinalam a transição acelerada
de um modo de p r o d u ç ã o p a r a outro.
A leitura das periodizações, propostas em o b r a s e cole-
ções famosas de história, permite perceber que entre a Idade
Média e a Época Contemporânea as diferenças residem es-
sencialmente na forma como, na primeira, o t r a b a l h o servil
assegura a reprodução da vida material e, na segunda, a pro-
dução de mercadorias e o trabalho assalariado constituem
aspectos decisivos p a r a compreender as profundas transfor-
mações que os a u m e n t o s de produtividade do t r a b a l h o pro-
piciaram nos últimos séculos. A história aí não se esgota; no
e n t a n t o , p a r t e daí.
4
Feudalismo e capitalismo definem os dois momentos
indicados por esta conceituação da história. Como ocorreram
as mudanças que a c a r r e t a r a m a transição do feudalismo p a r a
o capitalismo — eis o tema central deste trabalho, abordan-
do-se pelo menos alguns aspectos de m a t é r i a tão ampla,
complexa e polêmica da historiografia contemporânea.
2. roma

A formação social romana

Vejamos, inicialmente, como ocorreu a derrocada do


Império Romano e a emergência do feudalismo na Europa.
A formação social r o m a n a , em sua fase de m a i o r expan-
são, tendeu a polarizar-se entre duas classes sociais, a dos
h o m e n s livres e a dos escravos.
Isto ocorreu depois que a concentração da t e r r a em po-
der dos latifundiários enfraqueceu a pequena propriedade
camponesa, após contínuas lutas sociais e políticas. A resis-
tência dos pequenos proprietários rurais foi sendo minada,
quer nos conflitos denominados guerras civis, quer pela com-
petição da grande propriedade agrícola, alimentada pela
mão-de-obra escravizada nas guerras r o m a n a s p a r a dominar
a bacia do Mediterrâneo, p a r t e da Ásia, enfim, p a r a erigir o
Império. À medida que o imperialismo r o m a n o se expandia,
a imposição de tributos aos povos vencidos permitia consi-
derável importação de cereais, desestimulando a produção
interna. O imperialismo r o m a n o propiciou aos latifundiários
a atenuação das tensões sociais e o envio, p a r a as guerras
de conquista, dos proprietários arruinados. Os soldados-cam-
poneses constituíram as famosas legiões que i m p u s e r a m a
supremacia r o m a n a .
6
A concentração da terra em mãos dos latifundiários romanos
enfraqueceu a pequena propriedade camponesa.
Na foto, uma gravura existente em um manual de criação
e métodos agrícolas da Roma Antiga.

Tributos e escravos

Os r o m a n o s não m u d a v a m o modo de produção, as rela-


ções de trabalho e a vida política e cultural dos povos domi-
nados. Esse não era o propósito imediato. Obtinham tribu-
tos, em riquezas ou escravos, e compeliam os povos vencidos
a ceder p a r t e do que produziam. O imperialismo r o m a n o era
p r e d o m i n a n t e m e n t e militar, e o tributo u m a relação de for-
ça, conseqüência da conquista. Os r o m a n o s não foram comer-
ciantes nem colonizadores, e os tributos obtidos r a r a m e n t e
e r a m retirados sob a forma de moeda.
7
Num detalhe dos relevos do arco de Tito, soldados romanos,
carregados com um butim, atravessam o arco,
após debelarem a rebelião de 66 d.C. e destruírem Jerusalém.

Os camponeses livres, concomitantemente à expansão da


grande propriedade, abandonavam o campo, deslocando-se
p a r a as cidades, onde viviam dos favores do patriciado, ob-
tendo cereais a baixo preço, transformando-se em "clientes"
de seus benfeitores, dispostos a secundar a conduta política
p o r estes adotada nas lutas pelo poder.

A mão-de-obra escrava

A produção agrícola dependia, p o r t a n t o , cada vez mais


da mão-de-obra escrava. O imperialismo e a escravização de-
terioravam a situação dos trabalhadores livres, em virtude
de a mão-de-obra escrava e os tributos estreitarem o espaço
social e econômico dos camponeses.
As rebeliões escravas, nesse contexto, não a d q u i r i r a m
conotação revolucionária, mas levaram a classe dominante
ameaçada a intensificar a repressão, cimentando os apare-
lhos militar e burocrático. Esta centralização burocrática
8
beneficia, ainda mais, a crescente urbanização. As cidades,
nesse contexto, constituem centros de supervisão adminis-
trativa, de onde as classes agrárias dominantes exercem o
governo. Não há qualquer oposição entre cidade e campo. A
cidade é a expressão política do Império, sede da burocracia
e domicílio dos grandes latifundiários.

Os escravos aríesanais constituíam grande parte da mão-de-obra


urbana. Na foto, trabalhadores numa oficina de serralheria.
A produção agrícola e a artesanal dependeram, ainda
mais, após as conquistas, da mão-de-obra escrava. Evidente-
mente esta mão-de-obra não vendia sua força de trabalho,
nem adquiria, no mercado, os bens necessários à sua sub-
sistência. A produção manufatureira, escorada t a m b é m na
mão-de-obra escrava, alimentava um comércio de bens de
luxo. Nada de p r o d u ç ã o em massa ou de competição entre
empresas p a r a a u m e n t a r a produtividade e maximizar as
taxas de lucro. Por conseguinte, inútil pensar em revolução
científica e tecnológica.

Sem o Estado romano, seria inconcebível a sobrevivência


do Império. Cícero, cônsul, discursa
no Senado romano (quadro de Maccari, século XIX).

10
O exército romano

Os r o m a n o s não inventaram a r m a s m u i t o superiores às


dos povos p o r eles derrotados. Organizaram exércitos de
pequenos camponeses (evidentemente não havia um plano
para isto) — homens livres que p a s s a r a m a lutar contra os
povos vizinhos, mais tarde liberados de tarefas no c a m p o
pela mão-de-obra escrava que ajudavam a apresar nos cam-
pos de batalha e, finalmente, sem alternativas a não ser alis-
tar-se no exército ou engrossar a plebe u r b a n a .

A aristocracia

A aristocracia romana, cultivando o direito (o famoso


Direito Romano) e os assuntos da res publica, revelava a sua
posição central, nuclear, em relação à e s t r u t u r a de poder
que aglutinava a formação social r o m a n a . Sem o Estado ro-
mano seria inconcebível a sobrevivência do Império. R o m a
suportou u m a balança comercial deficitária p o r q u e o dese-
quilíbrio era suprido pelos ingressos extraídos de suas áreas
de dominação. Esta não seria tarefa realizável sem um Esta-
do centralizado, apto a coordenar os esforços militares e
impor u m a e s t r u t u r a administrativa complexa, p r e p a r a d a
para resolver, nos imensos espaços dominados, intrincados
problemas. Somente o Estado poderia empreender a conquis-
ta, mantê-la e assegurar a submissão dos escravos. A impor-
tância do Estado não foi desconhecida pelos juristas roma-
nos, que pela primeira vez, de maneira sistemática, discerni-
r a m o Direito Público do Direito Privado.

A decadência

A conquista, as instituições burocráticas, a organização


do exército, a formalização do Direito, e r a m instrumentos
que reproduziam a formação social romana. Porém, esse
complexo arcabouço não consegue subsistir indefinidamente.
Roma sucumbiu. Como ocorreu? Quais as fissuras do edifício,
m o n t a d o p a r a a conquista e a imposição de tributos, que o
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abalaram, a p o n t o de, na Europa ocidental, ao poderoso apa-
relho do Estado Romano seguir-se a dispersão do poder, en-
clausurado nos feudos, disperso nos particularismos locais
e enfraquecido diante das classes dominadas?
O balanço dos debates sobre as " c a u s a s " da decadência
de Roma exigiria cuidadosa apreciação de n u m e r o s a s corren-
tes de historiadores que se d e b r u ç a r a m sobre o assunto.
Examinaremos, apenas, algumas dessas orientações, sem a
preocupação de sistematizar o tema.

"O latifúndio perdeu a Itália"

A corrente que se apoia em Plínio, o Velho, sustenta que


o latifúndio e a escravidão constituíram as causas da deca-
dência e queda do Império Romano. Se a escravidão houves-
se sido abolida e u m a distribuição mais eqüitativa da t e r r a
houvesse estabelecido um regime de pequena e média pro-
priedade, provavelmente, infere-se deste raciocínio, o Império
teria superado as suas contradições internas.

A degeneração moral

M. Rostovtzeff exprime persistente orientação idealista,


que atribui a m u d a n ç a s espirituais das classes dominantes
romanas, agora desfibradas e desencorajadas pelas riquezas
e costumes orientais, as causas profundas da decadência da
"civilização antiga". O esplendor r o m a n o , e t a m b é m o grego,
deveu-se à energia e criatividade dessas classes; no entanto,
acentua esse autor, "a natureza aristocrática e exclusivista
destas civilizações" precipitou o seu declínio.

Por que não o capitalismo?

Outros a r g u m e n t a m com o pequeno desenvolvimento da


indústria e do comércio, afirmando ser o trabalho escravo
incompatível com um mercado interno suficientemente am-
plo p a r a estimular a produção de m e r c a d o r i a s . Em suma: o
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Império Romano fragmentou-se p o r q u e não evoluiu p a r a o ca-
pitalismo e o trabalho assalariado. Os romanos sabiam go-
vernar o Império, porém não e r a m capazes de administrar a
sua economia. O legado que deixaram ao m u n d o foi jurídico,
não científico.

A periferia insurgente

A pressão r o m a n a sobre os povos vencidos, obrigados a


fornecer excedentes de toda espécie, inclusive mão-de-obra,
alimenta a revolta contra Roma. O exército r o m a n o resiste
d u r a n t e séculos; no entanto, desta feita, os agressores não são
escravos lutando nos territórios controlados por Roma, mal
alimentados, sem instrução, querendo mais fugir de Roma do
que vencê-la, mas povos inteiros, c o m b a t e n d o por suas terras,
colheitas e cobiçando os férteis territórios que os r o m a n o s
ocuparam d u r a n t e séculos de conquistas e exações.
Essas rebeliões contra Roma foram constantes. Os maio-
res inimigos do Império p r o c u r a r a m aliar-se aos povos sub-
jugados, a fim de organizarem alianças contra a dominação
r o m a n a e se a p o d e r a r e m dos territórios dominados pelas
legiões.

A cena da coluna de Trajano ilustra um ataque romano


a um acampamento bárbaro.
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Por sua vez, o intercâmbio com R o m a propiciou a diver-
sificação social e política dos povos que reagiram contra o
Império, que p a s s a r a m a usar as m e s m a s a r m a s , estratégias
e táticas que c o n t r i b u í r a m para erigi-lo, transformando-o na
formidável m á q u i n a militar e burocrática sempre p r o n t a à
conquista pelas a r m a s ou pela diplomacia, ou por a m b a s ,
concomitantemente.
A disposição p a r a antagonizar o predomínio r o m a n o
incluía a luta direta, as infiltrações territoriais, alianças mi-
litares e políticas, n u m a palavra, todos os meios que propi-
ciaram aos povos desafiantes do poder r o m a n o instrumentos
p a r a escapar à opressão, alcançar a u t o n o m i a e espalhar-se
sobre os campos e cidades o u t r o r a dominados pelo Império.
Concluindo, não foi o latifúndio que " p e r d e u a Itália",
nem a degeneração dos costumes, m u i t o menos o insuficiente
desenvolvimento político, m a s a revolta da periferia r o m a n a
e o desgaste interno provocado pelas tensões sociais diante
da impotência militar p a r a conter os " b á r b a r o s " .
O imperialismo r o m a n o era u m a relação de força, de
violência b e m organizada. Quando esta violência enfrenta a
contraviolência da "periferia", a resistência pertinaz dos po-
vos, inicia-se a decadência. Enrijece-se a burocracia, desman-
tela-se a disciplina militar. O poder civil, que César houvera
aprimorado, sofre os embates dos líderes militares, do mili-
tarismo. Desarticula-se, finalmente, o a p a r a t o militar e buro-
crático. No ocidente europeu, o feudalismo está na linha do
horizonte. A periferia b á r b a r a , celta, germana, eslava, golpeia
o Império, m a s n ã o o reabilita. O feudalismo será o u t r a for-
mação social e política. O Império está m o r t o .

14
3. o feudalismo europeu

A fragmentação do poder

As formações sociais do feudalismo europeu ocidental


constituíram-se no interior das ruínas da formação imperial-
tributária r o m a n a . Esta transformação não foi provocada p o r
"profunda e súbita" revolução social e política, conduzida
por u m a classe social, mas decorreu da derrota do Império
Romano, incapaz de sustentar suas fronteiras e territórios
paulatinamente minados pelos povos invasores.
A extração de excedentes externos era vital p a r a Roma,
e o escravismo dependia do abastecimento constante da mão-
de-obra c a p t u r a d a ou obtida de o u t r a s maneiras, decorrentes
dos mecanismos jurídicos e políticos associados à escraviza-
ção. Quando esta ordem torna-se insustentável, R o m a n ã o
consegue reproduzir os seus exércitos e a sua burocracia de
Estado. E m b o r a a agonia imperial houvesse d u r a d o séculos,
com m a i o r ou m e n o r resistência à desagregação, o centra-
lismo estatal sucumbe.
O Império Romano não foi subjugado por um povo con-
quistador que houvesse assumido as instituições políticas
r o m a n a s p a r a renovar, a p a r t i r do seu interior, do seu âma-
go, a pujança da formação imperial-tributária. Não houve um
invasor, m a s diversos. As invasões, por sua vez, não ocorre-
ram subitamente, mas d u r a r a m séculos.
Nem p o r isso o feudalismo europeu é a anarquia, o iso-
lamento cultural, as trevas, enfim, u m a era de decadência,
como muitos historiadores, a p a r t i r do Renascimento, disso
nos p r o c u r a m convencer.
15
Por sua vez não é o feudalismo, t a m b é m , o herdeiro de
Roma. Nem sequer a Igreja Católica era a mesma; a Igreja
Romana tornou-se instituição feudal.

Os conflitos entre senhores feudais pelo domínio das


terras suscitavam as denominadas guerras privadas, tão co-
m u n s que a Igreja as tolerava a princípio, impondo, em de-
terminadas circunstâncias, as "tréguas de Deus". Vejamos
qual o alcance e o significado prático destas tréguas e o que
elas denotavam: u m a situação de p e r m a n e n t e antagonismo,
admitido e tolerado como regra para a solução dos conflitos
entre os senhores de terras. Prescrevendo p a r a determinados
dias a "trégua de Deus", sancionava pelo resto do tempo as
guerras privadas. A paz permanente, por o u t r o lado, era vista
como contrária à natureza humana, como certa feita afirmou,
energicamente, Gérard, bispo de Cambrai.

Georges Duby, famoso medievalista francês, afirma que


u m a "civilização nascida das grandes migrações dos povos
era u m a civilização da guerra e da agressão". As pequenas

Castelo francês, próximo a Bordéus, sitiado pelos ingleses em fins de 7377.

16
guerras privadas, no entanto, não significavam poderio das
formações sociais do feudalismo europeu, mas constituíam
indicador visível da sua fragilidade.

Produção, consumo e laços de dependência

A produção é limitada pelo consumo. Não se deve con-


siderar, porém, que não houvesse alguma planificação da
atividade econômica, pois era indispensável estabelecer as
condições p a r a u m a produção adequada às necessidades da
população, sem desperdício de trabalhos e terras.

Numa ilustração do Livro das horas, do duque de Berry,


servos trabalham numa plantação, enquanto outros realizam a tosquia
de ovelhas, nas imediações de um castelo medieval.

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Dessa forma o feudalismo, ou melhor, as formações so-
ciais de natureza feudal, constituídas após a decadência do
Império Romano em várias regiões da E u r o p a ocidental e
oriental, compõem o u t r a maneira de organizar a produção,
extrair excedentes e distribuí-los.
O desmantelamento do Império R o m a n o acarreta a des-
centralização do p o d e r político que, agora, irá recompor-se
a p a r t i r do feudo, onde o domínio dos senhores apresta-se
p a r a garantir a segurança dos povos. Envolvido pelas amea-
ças externas, o feudo se constitui, m a s deve c o n t a r com as
próprias forças, q u e r p a r a enfrentar os inimigos, quer p a r a
auto-sustentar-se, produzindo o que necessita.
Os laços de dependência que u n e m os servos ao senhor
feudal resultam dessa descentralização política e econômica.
A situação dos servos deve ser examinada em relação aos
problemas de constituição e reprodução das relações feudais.
O papel da p r o d u ç ã o é, assim, a chave p a r a desvendar a na-
tureza dessas relações. A produção agrícola, sem mencionar
o pequeno artesanato doméstico, não poderia ser estocada
p o r m u i t o t e m p o , n e m era indispensável que o fosse, pois
não havia mercados suficientes p a r a absorvê-la. A pressão
sobre os p r o d u t o r e s diretos, dessa maneira, não era intensa
e, se aliarmos a esta circunstância a relativa escassez de
mão-de-obra, verificaremos que os laços de dependência não
e r a m da mesma natureza da escravidão; ao contrário, a si-
tuação dos servos era m u i t o superior, sob todos os aspectos,
à escravidão r o m a n a .
A fixação dos camponeses à terra, p o r t a n t o , não decorre
de pressão senhorial absoluta, mas de ajustes recíprocos que,
embora constituídos em situação desigual de poder, permi-
tem aos camponeses adquirir condições n a s quais direitos e
deveres t e n d e r a m a se consolidar nos costumes.
Teria ocorrido situação melhor p a r a os camponeses, a
p o n t o de incentivar a produtividade, m e l h o r a r o cultivo e
propiciar dieta mais adequada p a r a as populações? A res-
posta pode, em sentido geral, ser afirmativa. Hodjett, que
estudou o assunto, p o n d e r a : " E m conclusão, a despeito da
lentidão do progresso na agropecuária, dos fracassos desas-
trosos nas lavouras, dos ataques de enfermidades nos reba-
nhos e da ausência de qualquer invenção tecnológica de
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grande alcance, a agricultura medieval conseguiu — u m a vez
terminada a explosão demográfica dos séculos XI, XII e X I I I
— assegurar melhor p a d r ã o de vida p a r a proporção m a i o r
da população em fins do século XIV e no século XV. Até
certo p o n t o a riqueza estava distribuída com maior eqüidade.
Esse feito da agricultura medieval foi alcançado através do
cultivo laborioso do solo, pois a agricultura medieval era de
utilização intensiva de mão-de-obra e não de capital e estava
auxiliada p o r administração eficiente, da qual os t r a t a d o s
sobre contabilidade são indício".
Verifica-se, p o r t a n t o , que o a u m e n t o da produtividade,
quando as circunstâncias que i m p u n h a m o contingenciamen-
to mencionado não se manifestavam, era real, dado o interes-
se do p r o d u t o r direto em reter p a r t e do excedente produzido.

A Igreja feudal

A feudalização da Igreja resultou em grande p a r t e da


sua riqueza fundiária. Sem dúvida a Igreja tenta, alcançando
privilégios, libertar-se o quanto pode do direito comum, m a s
alguns dos privilégios solicitados feudalizam-na ainda mais.
Essa feudalização teve conseqüências políticas e sociais de
amplo alcance. Como no ambiente feudal t u d o decorre da
posse da terra, o prelado torna-se senhor feudal. Capacete
na cabeça, vemo-lo combater nos campos de batalha. Terá a
sua justiça. Perceberá direitos feudais e senhoriais.
A p r o p r i e d a d e feudal da Igreja Católica sobre as t e r r a s
constituiu empecilho ao desenvolvimento das relações capi-
talistas de produção. Marx, no célebre capítulo de O capital
sobre "A c h a m a d a acumulação primitiva", descreve a forma
como e n o r m e parcela da população camponesa foi desapos-
sada das suas terras e t a m b é m o que aconteceu com as pro-
priedades territoriais da Igreja Católica: "O processo violen-
to de expropriação do povo recebeu terrível impulso, no
século XVI, com a Reforma e o imenso saque dos bens da
Igreja que a acompanhou. À época da Reforma, a Igreja Ca-
tólica era proprietária feudal de grande p a r t e do solo inglês.
A supressão dos conventos etc. enxotou os habitantes de suas
terras, os quais p a s s a r a m a engrossar o proletariado. Os bens
19
Miniaturas de um manuscrito francês de princípios do século XII,
mostrando o trabalho de padres nos campos eclesiásticos.
20
eclesiásticos foram a m p l a m e n t e doados a vorazes favoritos
da Corte ou vendidos a preço ridículo a especuladores, agri-
cultores ou burgueses, os quais expulsaram, em massa, os
velhos m o r a d o r e s hereditários e incorporaram as suas pro-
p r i e d a d e s . . . A propriedade da Igreja constituía b a l u a r t e re-
ligioso das antigas relações de propriedade. Ao cair aquela,
estas não mais se poderiam m a n t e r " . Por outro lado, a ex-
propriação das terras comuns, na órbita da Igreja, pelos
avanços do capitalismo, empobrecia os camponeses, deixan-
do-os em situação inferior à desfrutada no feudalismo, ou
seja, sem terras comuns onde pudessem levar os seus ani-
mais, o b t e r as sobras das colheitas para alimentação do
gado, aproveitamento de lenha etc.
Vale a pena mencionar que esta apropriação capitalista
dos bens da Igreja obedece a ritmos e tempos diversos e su-
blinha a transição do feudalismo p a r a o capitalismo, em di-
versos países.
Em Portugal, por exemplo, a dissolução dos laços feu-
dais na agricultura processou-se m u i t o mais lentamente, e
não foi tão adiantada e radical, se c o m p a r a d a à da Inglater-
ra; nem sequer o tempo do processo coincide, pois a apro-
priação privada das terras comuns inicia-se no século XVII,
intensifica-se no século XVIII e prossegue século X I X aden-
tro. Em Portugal, como era de se esperar, dada a pujança da
Igreja Católica, a transferência das terras p a r a a burguesia
não podia amparar-se no movimento religioso da Reforma;
no e n t a n t o , com o tempo, a predominância dos interesses
capitalistas manifestou-se, principalmente após o triunfo do
liberalismo, em 1835.

A usura, o justo preço, os tribunais

Por o u t r o lado, a ideologia religiosa era feudal à medida


que, à sua maneira, contribuía p a r a reproduzir as relações
sociais de produção do tipo feudal. Os obstáculos criados
por essa ideologia p r o p u n h a m preservar o feudalismo, den-
tre eles a doutrina do j u s t o preço, a condenação da u s u r a etc.
21
Dessa forma um travo de insegurança e de dúvida per-
turbava os negócios, pois o burguês não era indiferente à
ideologia e ao prestígio da doutrina religiosa e sofria na alma
e na carne o assédio da Igreja contra as transações mercan-
tis e a lógica do lucro capitalista, que se insinuava à m e d i d a
que crescia a atividade comercial e bancária.
Os preceitos da moral religiosa produziam o efeito pre-
ciso de p a u t a r conduta específica diante dos "bens da vida",
da m a n e i r a de apropriá-los e do lugar de cada pessoa nesse
processo.
Basta verificar que, como dissemos, como instituição
feudal, a Igreja participava da o r d e m jurídica. Possuía jus-
tiça p r ó p r i a e tribunais. Combatia os heréticos, os usurários,
os comerciantes desviados dos preceitos do j u s t o preço etc.
Não será a ideologia religiosa, p o r é m , o maior adversário
do capitalismo, m a s o direito medieval, consubstanciado nos
costumes, que teciam as relações de produção e de poder, no
interior dos feudos e nas cidades.
A ideologia religiosa feudal resistirá menos aos a t a q u e s
dos reformistas e às transformações da Igreja r u m o a novas
alianças de classe do que os costumes. Estes justificarão as
lutas e revoltas de senhores e servos, quer entre si (quando
os senhores feudais pretendem o b t e r mais trabalho, r e n d a s
e t c ) , quer diante do inimigo c o m u m , o capitalista, e n t r a v a d o
pelas relações feudais que impedem a liberação das t e r r a s
e, sobretudo, dos braços, p a r a o t r a b a l h o "livre".

A o r d e m jurídica: os costumes

A o r d e m jurídica feudal era de formação consuetudiná-


ria. Isto significava a ausência de fonte formal do direito, ao
contrário do que ocorria em Roma, onde o Estado burocra-
tizado e centralizado impunha normatização geral e a b s t r a t a ,
válida p a r a todos os que estivessem submetidos ao seu regi-
me jurídico. Constitui equívoco afirmar que os textos roma-
nos desapareceram, submergidos nas " t r e v a s " feudais. Os
tratados, as institutas, as compilações, tornaram-se inúteis,
22
embora conhecidos. O direito feudal europeu ocidental era de
formação consuetudinária, direito costumeiro, constituído no
dia-a-dia, no face-a-face das classes sociais. Não havia leis no
sentido de n o r m a posta pelo Estado, poder central, legisla-
dor único, constitucional. A Revolução Francesa, no século
XVIII, permitiu à burguesia ascendente elaborar a legislação
correspondente ao seu papel político, social e econômico.

O direito feudal europeu ocidental era consuetudinário. Em uma miniatura


de manuscrito medieval, um cavaleiro recebe sua espada das mãos do rei.

A Revolução Francesa desaguou no famoso Código de


Napoleão, que consolidou os aspectos sociais e o regime de
p r o p r i e d a d e vigentes até hoje, no m u n d o capitalista, dada a
enorme influência exercida na legislação de quase toda a
E u r o p a e América Latina.
23
O Estado moderno

Para compreendermos a d e q u a d a m e n t e as diferenças en-


tre feudalismo e capitalismo neste aspecto, ou seja, em rela-
ção ao direito, basta examinar a formação do Estado moder-
no, nos séculos XVI e XVII, principalmente neste último, o
século do Absolutismo. A homogeneização do espaço econô-
mico, liberando a circulação das mercadorias, restringindo
os particularismos locais, c o m b a t e n d o a multiplicação de
poderes fragmentados que constituíam obstáculos à realiza-
ção dos negócios, era indispensável à burguesia. A b u r o c r a t i -
zação, p o r seu lado, p a r a desempenhar este papel, exige
direito formal, certo, capaz de ser compreendido por toda
p a r t e e executado p o r especialistas devotados ao seu estudo
e prática. No E s t a d o romano, por exemplo, o conhecimento
do direito, a certeza da sua vigência e a uniformidade da
sua aplicação constituíam pilares do poder estatal, encarre-
gado de a d m i n i s t r a r amplo império, socialmente diversifi-
cado, m a s unido, fundamentalmente, pelas legiões e leis
r o m a n a s . A unificação legislativa, conseqüentemente admi-
nistrativa e política, do Estado m o d e r n o burguês não é da
m e s m a natureza da que ocorreu em R o m a . Entretanto, sob
muitos aspectos a herança r o m a n a , e m b o r a destinada a
c u m p r i r o u t r o s objetivos, foi de grande utilidade p a r a a
construção dos m o d e r n o s institutos jurídicos.

Nas formações sociais do feudalismo esta centralização


da ordem jurídica era desconhecida, inútil p a r a ordenar re-
lações que se travavam no interior dos feudos. Não havia um
império, nem legiões, mas o senhorio e monarquias enfra-
quecidas, onde o poder não era absoluto, nem sobre as ter-
ras, n e m sobre os homens.

A autonomia camponesa

E m b o r a os senhores feudais houvessem tentado i m p o r


a regra de que toda terra deve ter seu senhor, na prática isto
não ocorreu. As terras comuns, pastos, p r a d o s e florestas,
24
além de pequenas propriedades, subsistiram como importan-
tes aspectos da autonomia camponesa e condições de resis-
tência às imposições feudais. Esta resistência camponesa ma-
nifesta-se de forma variada, incluindo a sustentação intran-
sigente de seus direitos contra as tentativas dos senhores feu-
dais de interpretá-los unilateralmente e contra o aniquilamen-
to de conquistas, já consolidadas, da população camponesa.
Era comum a recusa coletiva de cumprir obrigações de tra-
balho — as "proto-greves" — e freqüentes as pressões para
obter redução nas rendas e até chicana sobre o peso dos
produtos entregues ao senhor feudal.
No feudalismo, o direito, como vimos, era costumeiro e
os costumes (entendidos no sentido jurídico) de formação

As transformações dos direitos de propriedade da terra realizavam-se


em detrimento dos camponeses pobres, Na foto, um quadro de Bosch
retratando um camponês alemão abandonando a terra arruinada.

25
local, daí a sua grande diversidade. E r a m iníquos p a r a u n s
e altamente vantajosos p a r a outros? Sem dúvida, m a s u r g e
precavermo-nos de u m a ótica contemporânea, extrapolada
p a r a um q u a d r o social e político diferente do nosso. Os cam-
poneses não e r a m livres, mas os senhores t a m b é m não dis-
p u n h a m de poder absoluto. Os costumes, dada a sua forma-
ção, p e r m i t i a m aos camponeses espaço de luta e reivindica-
ções, como já assinalamos. Os autores a p o n t a m este apego
dos camponeses aos direitos coletivos, principalmente dos
camponeses mais pobres. A exploração tradicional do solo
permitia, em certa medida, aos camponeses pobres compen-
sarem a sua falta de terra. As comunidades aldeãs m a n t i -
nham-se ativas. Os bens das comunidades — tais como
pastagens e florestas — e os direitos de uso neles implícitos
ofereciam recursos aos camponeses. E m b o r a os camponeses
ricos fossem hostis a esses direitos coletivos, que lhes res-
tringiam a liberdade de exploração e o direito de proprieda-
de, os pobres, em compensação, a eles se apegavam. Os
esforços dessas camadas camponesas propunham-se limitar
o direito de propriedade individual, e defender os direitos
coletivos, opondo-se ao individualismo agrário, caracterizado
pelos cercamentos de terras e transformação da agricultura
em exploração capitalista da t e r r a . Razões por que o p e q u e n o
camponês não tinha a mesma concepção da p r o p r i e d a d e
agrícola, p r ó p r i a dos nobres ou da burguesia r u r a l . Sua
perspectiva da propriedade coletiva opunha-se à noção bur-
guesa de direito absoluto do p r o p r i e t á r i o em relação ao b e m
imóvel.

A posse da terra

A agricultura p a r a consumo era, no feudalismo, a ativi-


dade principal. O comércio, m u i t o reduzido. As terras não
t i n h a m valor de troca, de mercado, p o r q u e , geralmente, n ã o
se a d q u i r i a m t e r r a s comprando-as no mercado, mas m e d i a n t e
princípios peculiares à enfeudação.
A posse da terra, p a r a os senhores feudais, era indispen-
sável, quer p a r a assegurar a subsistência do feudo, quer p a r a
m a n t e r o seu poderio, sempre dependente da obtenção de
26
Castelo medieval pertencente ao feudo do duque de Berry em fins
do século XIV, em uma das iluminuras pintadas
pelos irmãos de Limburgo para o Livro das horas.
27
maiores parcelas de território. A terra, enfim, era riqueza
decisiva, p o r q u e permitia abrigar h o m e n s , reforçar o feudo
com soldados em potencial, aptos a secundar a força e o
poder dos senhores feudais. "Nós queremos terras", disseram
os senhores n o r m a n d o s , recusando os presentes em jóias, ar-
mas, cavalos etc. ofertados pelo seu duque, e acrescentavam
entre si: "Com as terras será possível m a n t e r numerosos ca-
valeiros e o d u q u e não terá maior poder".
Em geral as terras eram divididas em três porções; o
domínio retido era reservado pelo senhor p a r a abrigar o cas-
telo e os estabelecimentos principais. Nas terras comuns es-
tão as águas, os bosques, os pastos, submetidos a direito de
uso b e m amplo, em proveito dos h a b i t a n t e s : pastagens de
gado, direito de colher os frutos, direito de obter m a d e i r a
p a r a combustível e construção, direito de reunir palha p a r a
os estábulos, direito de obter material p a r a aquecimento etc.
Todo este conjunto constituía os direitos costumeiros que,
como vimos, e r a m defendidos pelos camponeses. Esses direi-
tos de uso e r a m formas coletivas fixadas pelos costumes e
p e r m i t i r a m aos camponeses t o m a r consciência da sua comu-
nidade em relação ao senhor feudal. Freqüentemente os ha-
bitantes dessas comunidades p r e t e n d e r a m que esses direitos
de uso tivessem sido, realmente, p r o p r i e d a d e coletiva antiga.

Miséria feudal?

Estas questões levam-nos a indagar: era o feudalismo


ocidental o reino da pobreza e da miséria? Pobreza e miséria
são meras palavras, dependentes, p a r a serem b e m entendidas,
de tantas explicações que corremos o risco de não p o d e r m o s
empregá-las com propriedade q u a n d o nos referimos à histó-
ria. Em termos de equipamentos variados e abundância de
bens de consumo, certamente o h o m e m feudal não dispunha
de t a n t a variedade q u a n t o a média dos habitantes dos gran-
des centros u r b a n o s de hoje, no e n t a n t o t a m b é m não estava
submetido aos n u m e r o s o s desconfortos da vida contempo-
rânea. Os dias santificados eram n u m e r o s o s e as atividades
religiosas propiciavam entretenimento, recreação e oportuni-
dade p a r a manifestações artísticas. As grandes catedrais
28
A ilustração, que se encontra em um manuscrito francês de 1448
retrata o trabalho na construção das igrejas medievais.
testemunham a existência de excedentes disponíveis p a r a
sustentar artesãos e artífices. O t r a b a l h o era árduo, mas en-
tremeado de lazeres, definidos pela religião, que suavizavam
os rigores da labuta no campo e nas cidades. As cerimônias
religiosas agrupavam os fiéis — e quem não o era? — pro-
piciando encontros e oportunidades de congregação.

Na Idade Média, as festividades religiosas e os dias santificados


eram numerosos. Na ilustração, camponeses dançam,
tendo ao fundo as muralhas de uma cidade medieval.

30
4. o capitalismo

O espírito burguês

Como ocorreu a transição do feudalismo p a r a o capita-


lismo? As teorias se multiplicam, m a s o debate fixou-se em
torno de algumas orientações fundamentais. Será o capita-
lismo a manifestação de nova mentalidade do h o m e m mo-
derno, conjunto de atributos psíquicos apto a desencadear
o processo de liquidação do feudalismo e i m p l a n t a r a eco-
nomia de p r o d u ç ã o p a r a o m e r c a d o ? Quais seriam as carac-
terísticas desse h o m e m novo, dinâmico e disposto a t u d o re-
formular? Alguns autores a c r e d i t a m que as formações sociais
capitalistas decorreram do espírito empreendedor do burguês.
Werner S o m b a r t afirma que, na época do capitalismo inci-
piente, era o empresário quem fazia o capitalismo, e n q u a n t o
na época do capitalismo pleno é o capitalismo q u e m faz o
empresário.
S o m b a r t , em seus primeiros trabalhos, atribuíra o capi-
talismo emergente à independência dos judeus em relação
às proibições católicas da u s u r a e ganhos do capital, o que
assegurava a eles liberdade de iniciativa na manipulação de
operações financeiras e bancárias, capaz de constituir em-
brião da nova mentalidade empresarial que desencadeou o
capitalismo. Em obras subseqüentes, S o m b a r t modificaria
31
essa interpretação dos fenômenos sociais ligados ao apareci-
mento do capitalismo, e concederia ao espírito burguês —
"em todo empresário capitalista se esconde um b u r g u ê s " —
a mola dinamizadora das novas formações sociais. A aspira-
ção suprema desse burguês inovador é poupar. Para S o m b a r t
a economia do senhor feudal havia sido u m a economia de
dispêndios, p o r t a n t o os seus ingressos variavam conforme
as suas necessidades. Pois bem, esta economia converte-se,
no capitalismo, em economia de poupança. Referindo-se a
Leon Batista Alberti, o famoso a u t o r do I libri della famiglia,
considerado o burguês mais representativo da época renas-
centista italiana, diz Sombart que o credo do bom burguês,
estampado na obra de Alberti, o lema da nova era, "que ago-
ra amanhece, a quintessência da concepção universal desta

Cena pintada em Gênova, no final da Idade Média, mostrando


alguns banqueiros e as arcas do banco da cidade.

32
gente", condensa-se nesta frase: "Recordai sempre isto, meus
filhos, n u n c a permitais que vossos gastos superem vossos
ingressos".

Max Weber

Max Weber distancia-se do pensamento de S o m b a r t ,


e m b o r a t a m b é m para ele o capitalismo resulte da projeção
espiritual do h o m e m m o d e r n o . Já não se trata de p o u p a r por
um princípio intrinsecamente burguês, ou seja, decorrente de
considerações m e r a m e n t e econômicas, mas o espírito do ca-
pitalismo, p a r a Weber, condensa determinada ética religiosa,
como afirma no seu famoso livro A ética protestante e o
espírito do capitalismo. Na verdade o que aqui é pregado,
diz ele, referindo-se à religião, n ã o é u m a simples técnica de
vida, m a s sim u m a ética peculiar, cuja infração não é t r a t a d a
como u m a tolice, mas como um esquecimento do dever. Essa
é a essência do problema. "O que é aqui preconizado não é
m e r o b o m senso comercial: o que não seria nada de original,
mas sim um ethos."
Essa ética é peculiar à concepção puritana da vocação
religiosa e à exigência de c o m p o r t a m e n t o ascético diante da
vida. Com esse c o m p o r t a m e n t o sóbrio, frugal, e operosidade
constante, o fiel evitava usufruir das riquezas e restringia o
consumo, voluntariamente. Por outro lado essa ética n ã o
condenava a acumulação proveniente do trabalho e a sua
inevitável conseqüência: a acumulação da riqueza. Enrique-
cer sem ostentação não era considerado desobediência aos
princípios religiosos.
Por sua vez, como observa Max Weber, o poder de ascese
religiosa produzia e colocava à disposição dos parcimoniosos
burgueses " t r a b a l h a d o r e s sóbrios", conscientes e incompara-
velmente industriosos, que se aferravam ao trabalho " c o m o
a u m a finalidade desejada p o r Deus". Acrescenta Weber que
Calvino já tivera a opinião " m u i t a s vezes citada" de que so-
m e n t e q u a n d o o povo, isto é, a maioria dos operários e ar-
tesãos, fosse mantido pobre, é que se conservaria obediente
a Deus.
A história, nesse ponto, é o cenário das aparições de um
33
espírito que, em suas múltiplas emergências, engendra as
formas de convivência h u m a n a . P a r a Weber a ética protes-
tante é u m a dessas aparições, " p r o n t a a m u d a r a alma das
pessoas e a trajetória da razão h u m a n a " .

A escravidão do salário

Vimos que os camponeses e t a m b é m os servos não foram


desapossados dos instrumentos de p r o d u ç ã o , e os "direitos"
sobre a terra não excluíam participação m a i o r destas classes
e frações de classe no excedente produzido. As classes domi-
nantes feudais, privadas do Estado e seus aparelhos, não dis-
põem de meios de dominação semelhantes aos que permiti-
ram, no Império Romano, a verdadeira expulsão, dos cam-
pos, do campesinato livre, do pequeno proprietário, constran-
gido a vegetar nos centros urbanos, engrossando a camada
do que hoje denominaríamos l u m p e m p r o l e t a r i a d o e quase
integralmente substituído pela mão-de-obra escrava, na agri-
cultura.
No feudalismo europeu surge u m a fração de classe, a dos
camponeses proprietários, que contracena com os senhores
feudais e a burguesia urbana. A especificidade do feudalismo
europeu não é só a fraqueza das classes dominantes, m a s a
existência de frações de classes d o m i n a d a s que resistem e
impedem a sua total dominação pelos senhores feudais. É
nesse espaço, nesse campo das lutas de classes e frações de
classe que a burguesia vinga e o pequeno p r o d u t o r sobrevive
quer mercantilizando os excedentes, q u e r conduzindo o pro-
cesso de industrialização doméstica, ou c o m p o n d o alianças
políticas que solapam o poder feudal. Nesse espaço, através
de combinações sociais diversas, ressalta a fragilidade dos se-
nhores feudais, que ora se aliam aos burgueses, ora resistem
e enfrentam revoluções. Os camponeses, p o r sua vez, ora se
aproximam dos senhores feudais (independentemente dos
conflitos entre essas classes), ora os enfrentam, auxiliados
pela burguesia. De qualquer maneira, os camponeses, futuros
proletários, serão os grandes perdedores, saindo de u m a ser-
vidão p a r a outra, m u i t o mais cruel, principalmente p a r a as
primeiras e n u m e r o s a s gerações — a escravidão do salário.
34
O feudalismo cede caminho

As linhas de investigação sobre a transição feudalismo—


capitalismo convergem para a especificidade das formações
sociais do feudalismo europeu, ou seja, do conjunto de
condições que, inegavelmente, favoreceu o desenvolvimen-
to do comércio e a acumulação de dinheiro nas mãos de
comerciantes que, estrategicamente, ocupavam posições pri-
vilegiadas p a r a concentrar tais recursos.
Discussão que se impõe, de imediato, decorre da natu-
reza das lutas de classe travadas no interior das formações
sociais feudais e do papel que cada u m a dessas classes de-
sempenha no aparecimento de condições propícias à acumu-
lação de capital-dinheiro, em p o d e r da burguesia mercantil.
O feudalismo europeu ocidental, como p r o c u r a m o s de-
m o n s t r a r no capítulo anterior, é entremeado por lutas e
disputas entre os produtores diretos, os camponeses, e os
detentores da posse da terra, os senhores. O p r o d u t o r di-
reto não é, invariavelmente, um desvalido, que produz ex-
cedentes p a r a o senhor de terras, n a d a conservando p a r a si.
A situação do servo, embora n ã o tenha sido invejável, n ã o
o reduzia à escassez permanente. Parte da produção perma-
necia com o p r o d u t o r direto, deixando de ser transferida ao
senhor feudal. A disputa por melhores condições, pela posse
dos i n s t r u m e n t o s de produção, pelo aproveitamento coletivo
dos campos, pelas sobras das colheitas, pela lenha colhida
nos bosques, pelas pastagens etc. denota, examinados os
costumes locais que dispunham sobre estes assuntos, u m a
sutil luta de classes, e m p e n h a d a s em verdadeiro jogo de
paciência e habilidade, p a r a conquistar e conservar posi-
ções, luta em que a violência desempenhou, como em mui-
tos o u t r o s m o m e n t o s da história, papel ambíguo. Nem sem-
p r e a força logra compelir ao t r a b a l h o , sobretudo q u a n d o
os p r o d u t o r e s diretos podem se esquivar, d e s a r m a n d o o
poder m e d i a n t e resistência obstinada em defesa de t o d a e
qualquer pequena conquista. A força, p o r sua vez, é contida
pelas exigências da produção. Nos limites e fissuras da sua
ingerência insinuam-se as relações sociais de produção que
seguem de p e r t o os equilíbrios alcançados ao longo do per-
fil t r a ç a d o pelas lutas a que nos vimos referindo.

35
O campo revitaliza o mercado

Conservando a posse da t e r r a e dos instrumentos de


trabalho, o p r o d u t o r direto não está inteiramente subme-
tido ao nível de subsistência, d a d a s as condições de e n t ã o ,
mas a perspectiva de dispor de excedentes depende das pe-
culiaridades regionais das lutas de classe, acirradas em de-
corrência da pulverização do p o d e r no feudalismo.
A presença de excedentes no m e r c a d o , p o r t a n t o , n ã o é
privilégio exclusivo de bens disponíveis pelos senhores feu-
dais. Efetiva e potencialmente, o p r o d u t o r direto assegura
a sua participação no mercado, quer como produtor, q u e r
como consumidor.
Desta m a n e i r a o campo oferece u m a gama de potencia-
lidades revitalizadoras do m e r c a d o , criando condições p a r a
o desenvolvimento do comércio, o qual, p o r sua vez, a p a r t i r
da esfera da circulação interna, ingressa na atividade pro-
dutora, aproveitando o excesso de mão-de-obra, ou o t e m p o
livre desta mão-de-obra, e compelindo-a a trabalhar p a r a o
comerciante, no campo mesmo, sistema conhecido p o r tra-
balho a domicílio. Aos poucos o comerciante domina e co-
m a n d a esta mão-de-obra, assenhoreando-se, t a m b é m , do
processo produtivo. A m a n u f a t u r a e, posteriormente, o
trabalho nas fábricas complementam este processo em q u e
o capital mercantil (não me refiro ao conceito equivocado
de capitalismo mercantil) exerceu significativo papel. I n e -
xistindo as disponibilidades de t e m p o e os excedentes do
camponês feudal, o capital comercial não teria meios p a r a
ingressar no processo produtivo. Em Roma, onde d o m i n a v a m
o t r a b a l h o escravo no campo e a obtenção de excedentes
pelos mecanismos da conquista, n ã o vingou o capital mer-
cantil, confinado aos grandes circuitos internacionais sem,
porém, p e n e t r a r na capilaridade do território italiano.

As teses sobre o papel exclusivo do comércio na tran-


sição feudalismo—capitalismo t ê m sido m u i t o combatidas.
Para expressiva maioria dos autores, n ã o é o comércio a ma-
triz do capitalismo. Quer seja ele o de grande curso, deno-
m i n a d o comércio externo, quer o p e q u e n o intercâmbio local.
36
É comumente citada a frase do economista fisiocrata F r a n -
çois Quesnay, autor do Tableau Êconomique: "Os negocian-
tes n ã o fazem nem os preços, n e m a possibilidade do comér-
cio, m a s é a possibilidade do comércio que faz surgir o
comerciante".

Através do sistema conhecido por "trabalho a domicílio", o comerciante


manufatureiro, aos poucos, assenhora-se do processo
produtivo. Na ilustração, uma família trabalha na tecelagem manual.

As cidades e o campo

O crescimento demográfico das cidades, e m b o r a com


altos e baixos em alguns séculos, foi permanente. Por que
isto ocorreu? Quais foram os agentes desse crescimento?
Segundo Pirenne, a razão teria sido o renascimento do co-
mércio a longa distância. Autores de recentes monografias
de história u r b a n a acreditam em outras explicações, pelas
37
A ilustração, proveniente de um manuscrito de Hamburgo
século XV, retraia o movimento de navios,
mercadorias e comerciantes no porto.
38
quais a prosperidade dos campos circundantes às cidades
teria sido decisiva. As perspectivas parecem, hoje, inverti-
das: o que suscitou o desenvolvimento foi a demanda de
produtos provenientes de mercados distantes, conforme
Pirenne; foi a oferta de excedentes agrícolas, provenientes
dos mercados locais, estimam numerosos economistas, que,
por sua vez, admitem o papel acelerador do processo susci-

Para muitos historiadores, a propriedade dos campos próximos


às cidades foi decisiva para o desenvolvimento do comércio.
Na foto, o mercado de gado do centro comercial de Hamburgo;
observa-se, ao fundo, o tribunal do mercado durante uma sessão.

39
tado pela d e m a n d a de mercadorias importadas de mercados
distantes, m a s recusam-lhe a condição de fator decisivo p a r a
o predomínio do capitalismo no ocidente europeu.
Quanto aos agentes do crescimento, Pirenne julgava
tê-los descoberto nos mercadores itinerantes (as primeiras
jurisdições comerciantes na Inglaterra chamavam-se cortes
dos pés-poeirentos, alusão aos comerciantes regionais), os
quais teriam se fixado j u n t o de um castelo ou de u m a anti-
ga cidade. Seus entrepostos e habitações (portus) ficaram
conhecidos como "burgo de fora" (foris-burgus, de onde
"falso-burgo"). Este, por sua vez, cercado de muralhas, inte-
grar-se-ia nos limites da cidade ampliada.
Sem negar a importância desempenhada pelos comer-
ciantes de longo curso, destaca-se, atualmente, o papel de-
senvolvido pelos mercadores locais e pelos artesãos, tanto
do setor têxtil q u a n t o da metalurgia, no crescimento de
n u m e r o s a s cidades.

Aspectos da vida urbana numa cidade medieval.


40
Comércio e capitalismo

Vimos que há discordância entre os autores q u a n t o ao


papel do comércio no desenvolvimento de relações capita-
listas. Nem sequer o papel das cidades é tratado sem dis-
putas acaloradas. Quanto ao comércio a longa distância,
afirma-se que sempre existiu na Antigüidade — grandes
cidades e r a m centros mercantis, e nem por isso o capita-
lismo nelas vingou.
A questão remete a u m a precisa indagação: qual a
especificidade do caso europeu ocidental?
O feudalismo europeu ocidental não foi impermeável
ao comércio, quer desencadeado pelos mercadores de longo
curso, quer pela atividade incessante dos bufarinheiros.
Como vimos, a penetração do m e r c a d o r só foi possível, no
grau e intensidade capazes de incentivar a produção p a r a o
mercado, p o r q u e as populações dispunham de excedentes

No feudalismo europeu ocidental, a atividade comercial não se resumia


às transações de longa distância, mas penetrava nos poros das
malhas feudais. A foto mostra o comércio em Paris no século XIV;
observa-se um descarregamento de carvão, enquanto
trabalhadores empurram toneis de vinho pela ponte.
41
p a r a vender ou trocar. Este é o aspecto crucial. O comércio
não se reduzia às transações de grande curso, mas penetra-
va nos interstícios, nos poros das frouxas malhas feudais.
Era, nesse caso, a atividade comercial que tinha de se ajustar
aos preços e fatores locais, ou seja, não dependia intensa-
mente de circunstâncias aleatórias, ligadas às transações
entre formações sociais diferentes, onde os preços manti-
n h a m pouca ou quase nenhuma relação com o mercado. Não
se t r a t a do comércio aventureiro das caravanas asiáticas ou
dos périplos indianos, mas de p r o d u ç ã o local e de intercâm-
bio sensível aos valores de troca e preços dos m e r c a d o s
próximos.

O valor de troca

Esse comércio é beneficiado pela expansão agrícola


do ocidente feudal. Por seu lado, o desenvolvimento do co-
mércio age no sentido de estender, p o r toda parte, o valor
de troca, diversificando a p r o d u ç ã o de mercadorias e trans-
formando o dinheiro em moeda universal. Dessa m a n e i r a o
comércio contribuiu para dissolver o modo de p r o d u ç ã o
feudal.
Este papel do comércio depende, antes de mais n a d a ,
da solidez e e s t r u t u r a do antigo m o d o de produção. Na hi-
pótese q u e estamos examinando, a fragilidade política e
econômica do m o d o de produção feudal abre perspectivas
para o comércio interagir com o m e r c a d o local e voltar-se
p a r a a p r o d u ç ã o de mercadorias, com possibilidade de o b t e r
resultados e incrementar a atividade em geral.
No m u n d o antigo, a atuação do comércio e o desenvol-
vimento do capital mercantil resultavam em economia escra-
vista, ou, de acordo com o p o n t o de partida, ocasionavam,
apenas, a transformação de um sistema escravista patriarcal,
baseado na produção de meios de subsistência imediatos,
n u m sistema voltado para a p r o d u ç ã o de excedentes apro-
priados pelas classes dominantes. No m u n d o moderno, ao
contrário, levam ao modo capitalista de produção. Infere-se
daí que o u t r a s circunstâncias, além do desenvolvimento
mercantil, provocam esses resultados.
42
Comércio: Antigüidade, feudalismo

O comércio, embora relevante nas formações sociais da


Antigüidade, não lograva desagregar essas formações, u m a
vez que o poder das classes dominantes concentrava, pro-
fundamente, o excedente produzido, reduzindo o p r o d u t o r
direto a e n o r m e dependência.
No ocidente feudal, o excedente agrícola, e n q u a n t o não
é todo absorvido pelos senhores, é destinado ao comércio
local. Se acrescentarmos que os produtores diretos r e t ê m
p a r t e da sua força de t r a b a l h o e dispõem de parcelas de ter-
ras de seu próprio uso, depreende-se que a possibilidade de
comercialização de excedentes estimula a produtividade. A
p r o d u ç ã o já tem endereço mercantil, e os bens produzidos
a d q u i r e m o caráter de mercadoria.

Importância do mercado interno

A criação de um m e r c a d o interno europeu ocidental


p e r m i t i r á a introdução de novas matérias-primas e de o u t r o s
p r o d u t o s e r a m o s de p r o d u ç ã o até então inexistentes. Mer-
cado interno e mercado externo tendem a se integrar e,
q u a n d o os continentes americanos são conquistados, acelera-
se todo o processo, ampliando-se consideravelmente o merca-
do p a r a os novos ramos da construção naval, do abasteci-
m e n t o das colônias etc.
A suposição de que o desenvolvimento das condições
p a r a o aparecimento de formações sociais capitalistas decor-
ra da ampliação do comércio de bens de luxo não é confir-
m a d a pela historiografia contemporânea. Os bens de luxo,
destinados às camadas privilegiadas do feudalismo europeu
ocidental, nunca foram produzidos em grande escala; resul-
tavam oferecidos ao m e r c a d o restrito destas c a m a d a s pelas
importações, a princípio da Ásia; mais tarde, alguns p r o d u t o s
americanos também seduziram os consumidores europeus
de largas posses.
43
O capitalismo não é filho do luxo dessas classes domi-
nantes, m a s da presença, no m e r c a d o local, de excedentes
produzidos por camponeses e artesãos urbanos e da sua
disponibilidade de tempo livre p a r a vender a força de
trabalho.

O capitalismo é fruto da presença, no mercado local,


de excedentes produzidos por camponeses e artesãos urbanos.
44
A "segunda servidão"

As reações feudais ao capitalismo foram t a r d i a s e em


alguns lugares corresponderam a tentativas, a l g u m a s bem-
sucedidas, de extrair mais t r a b a l h o dos servos, n ã o afastada
a possibilidade de se t r a t a r de empreendimento destinado a
satisfazer as novas necessidades de consumo, induzidas p o r
esta ampliação dos mercados, t a n t o no aspecto qualitativo
como no quantitativo. As resistências dos servos e das popu-
lações camponesas e a fuga p a r a as cidades o p u s e r a m obstá-
culos a esta "segunda servidão", contribuindo p a r a a u m e n t a r
a mão-de-obra disponível nas cidades.

Lutas e alianças de classes

A transição feudalismo—capitalismo está inscrita, por-


t a n t o , no espaço das lutas de classes que se t r a v a m no univer-
so feudal. Não se cuida, somente, de um período de grandes
revoltas camponesas, rebeliões u r b a n a s , mas de profundas
disputas entre classes e frações de classe que n e m s e m p r e
t r a n s p a r e c e m , no embate s u r d o , m a s vigoroso, do enfrenta-
m e n t o cotidiano. Luta-se p a l m o a palmo pelas condições de
sobrevivência e garantia de conquistas milimétricas m a s de-
cisivas p a r a o processo de transformação do servo em "tra-
b a l h a d o r livre".
Neste intrincado m a s fecundo mosaico social, as alianças
se c r u z a m e entrecruzam, c o m p o n d o um q u a d r o n e m sempre
familiar ao observador.
O jogo das alianças de classes e frações de classe arti-
cula as combinações de forma complexa, por vezes de região
p a r a região. Na Inglaterra, p a r a exemplificar, este jogo cris-
taliza alianças entre a burguesia e a nobreza, d e s e m p e n h a n d o
este i m p o r t a n t e papel político. Na França, as lutas entre a
burguesia e a nobreza não associam combinações deste tipo
— o tecido social e político é mais complexo, se considerar-
m o s o papel desempenhado pelos camponeses, pequenos pro-
prietários rurais etc.
O feudalismo europeu n ã o engendrou u m a classe domi-
n a n t e suficientemente forte p a r a impor ao p r o d u t o r direto
45
submissão total e, dessa maneira, q u a n d o tem de enfrentar
a burguesia e o proletariado emergente, cede terreno e poder.
A burguesia, fortalecida pela contínua penetração no
a p a r e l h o produtivo (que ajuda a criar), m a n o b r a política e
ideologicamente entre as classes, firmando-se definitivamente
como expressão não só econômica, m a s política.
Desses embates o resultado é, invariavelmente, o enfra-
quecimento da nobreza fundiária, reduzida a fração no poder,
quase s e m p r e sob a hegemonia burguesa.

A burguesia firma-se como expressão econômica e política.


Na foto, um quadro de Quentin Massys,
intitulado "O banqueiro e sua esposa", 1514, Paris, Louvre.
46
Todos são iguais . . . perante a lei

O declínio do feudalismo não melhoraria a sorte dos


p r o d u t o r e s diretos. O cercamento dos campos, a p e r d a dos
direitos consolidados nos costumes, despojaria m a i s do que
beneficiaria o trabalhador, a tal ponto que d o r a v a n t e só lhe
restaria vender, no mercado que ajudara a consolidar e criar,
a sua força de trabalho. Livres dos laços feudais, m a s prole-
tários — eis a situação que caracteriza o assalariado no capi-
talismo.
Por o u t r o lado, o poder político e militar dos senhores
feudais foi constantemente reduzido. No feudalismo n ã o ha-
via um poder central, u m a burocracia reguladora de t o d o s os
aspectos da vida social, da política e da economia que repro-
duzisse o modo de produção feudal em todas as instâncias.

Livres dos laços feudais, mas proletários — eis a situação


que caracteriza o assalariado no capitalismo.
47
A unificação capitalista dos m e r c a d o s arruinaria defini-
tivamente o feudalismo, m i n a n d o o poderio dos senhores,
centralizando o poder dos estados absolutistas, abolindo os
costumes e substituindo-os por u m a legislação unitária que
desaguaria na codificação napoleônica. Os costumes, o di-
reito consuetudinário, eram de lenta elaboração, no face-a-
face, como vimos, dos agentes sociais. A lei codificada é agora
geral, a b s t r a t a , formal. No feudalismo a desigualdade era
visível, estava em toda parte. Havia um direito dos n o b r e s
e o u t r o dos comerciantes; um direito de uso dos rios e o u t r o
de uso das florestas. Estes costumes ou direitos variavam de
região p a r a região, conforme o destino das lutas que se tra-
vavam p a r a o b t e r vantagens específicas. Agora, com a mo-
derna codificação, todos são iguais p e r a n t e a lei. Uma liber-
dade que t e m exigido a maior concentração de força que a
história já conheceu.

48
5.américa latina: capitalismo
mercantil, feudalismo

Numerosos historiadores e cientistas sociais insistem em


considerar a expansão européia nas Américas um fenômeno
peculiar do capitalismo mercantil. A fase de transição feu-
dalismo—capitalismo teria sido dominada pelo capitalismo
mercantil, gerado, diretamente, no processo de circulação de
mercadorias e agente dinamizador de toda a vida econômica
subseqüente.
Em princípio sabemos q u e a circulação ou a troca n ã o
criam valor. O ciclo do comércio não produz m e r c a d o r i a s ,
m a s , p o r ocasião do antigo comércio a longa distância e n t r e
continentes, beneficia-se dos preços relativos das m e r c a d o r i a s ,
das diferenças culturais e n t r e os povos e t c , obtendo fartos
lucros. Trata-se, como vimos, de acumulação estéril. Capita-
lismo é, substancialmente, p r o d u ç ã o de mercadorias. Nesta
linha, q u a n d o o comércio n ã o está unido à realização da
m e r c a d o r i a produzida, m a s limita-se a especular com a pro-
dução, não se pode falar, impunemente, da existência de ca-
pitalismo mercantil. No capitalismo, u m a p a r t e do capital
total é empregada na esfera da circulação. Na transição
feudalismo—capitalismo, p a r t e do capital comercial aban-
dona o caráter m e r a m e n t e especulativo, ingressa no circuito
da p r o d u ç ã o ou realização de mercadorias e se dedica à
tarefa de realizar o valor nelas contido, dadas as condições
sociais e econômicas favoráveis, acima descritas.

49
Capitalismo tardio

O u t r o equívoco consiste em supor a existência de capi-


talismo tardio na América Latina (a expressão foi c u n h a d a
p o r S o m b a r t ) . O capital comercial, em nosso continente, n ã o
se limitou a explorar os m o d o s de produção preexistentes
— afirmam os epígonos desta tese — m a s teria d e s d o b r a d o o
â m b i t o da circulação, que lhe é p r ó p r i o , e invadido a esfera
da p r o d u ç ã o , constituindo a economia colonial.
E s t a hipótese não suporta algumas observações, d e n t r e
elas a de q u e os conquistadores não dispunham de capitais
expressivos, n e m de experiência no r a m o comercial. O capital
comercial da época não se interessava pelos espaços vazios,
m u i t o m e n o s pela modesta e exótica produção artesanal de
astecas e incas. Não havia o q u e explorar nesse sentido. A
conquista, em semelhantes circunstâncias, não é e m p r e s a
mercantil. Os primeiros conquistadores, sobretudo na Nova
E s p a n h a (México), tiveram de organizar a produção, a princí-
pio p a r a subsistência própria, posteriormente, descobertas as
minas de p r a t a , surgem pólos de desenvolvimento u r b a n o
com p r o d u ç ã o mais diversificada. A mão-de-obra indígena foi
empregada na mineração, em g r a n d e escala no Peru, em me-
n o r n ú m e r o no México. A atividade agrícola, quer de subsis-
tência, q u e r de exportação, serviu-se do celeiro de mão-de-
o b r a indígena. Os comerciantes, nestas regiões, não se empe-
n h a r a m na atividade produtiva, q u e r na agricultura, q u e r na
mineração, a não ser de m a n e i r a esporádica.

Os comerciantes se interessavam por essas atividades,


no e n t a n t o não foram os seus iniciadores. Viriam mais t a r d e ,
p a r a i n t e r m e d i a r as transações, financiar a produção (forne-
cendo a d i a n t a m e n t o em víveres, implementos etc. aos minei-
ros, p o r exemplo), abastecer os m e r c a d o s incipientes e esta-
belecer o intercâmbio europeu-americano, à p r o p o r ç ã o q u e
a u m e n t a v a a demanda americana p o r produtos europeus de-
corrente da expansão da fronteira agrícola e do setor m i n e i r o .
O capital mercantil, dessa maneira, não invadiu a produ-
ção americana, mas dela foi complemento e interagiu c o m
ela em alguns ramos, r a r a m e n t e a b a n d o n a n d o a esfera da
circulação, q u e lhe é própria.
50
Na América, a atividade agrícola, quer de subsistência, quer de
exportação, serviu-se do celeiro de mão-de-obra indígena.
Detalhe do mural "História da Independência Mexicana", mostrando a
subjugação de trabalhadores indígenas no período colonial.

51
Feudalismo colonial?

A hipótese da existência de feudalismo nas formações


sociais do denominado colonialismo americano t e m susci-
tado polêmicas infindáveis. Os seus partidários afirmam que
o feudalismo era o modo de p r o d u ç ã o dominante no período
colonial e além dele. Argumentam com a existência de gran-
des latifúndios, operando mão-de-obra escrava ou em regime
de semi-servidão. Os t r a b a l h a d o r e s , acrescentam, estavam
submetidos ao sistema de b a r r a c ã o , ou seja, e r a m obrigados
a c o m p r a r o pouco de que necessitavam nesses barracões,
de p r o p r i e d a d e de latifundiários, a preços de tal m o n t a que
acabavam, pelas dívidas contraídas, obtendo recursos apenas
suficientes p a r a reproduzir p r e c a r i a m e n t e a sua força de
trabalho.
O regime das grandes fazendas, das plantações, c o n t u d o ,
não foi idêntico em toda a América Latina.
A força de trabalho escrava, nessas empresas agrícolas,
era m e r c a d o r i a adquirida por custo determinado e entrava
no cálculo da produtividade que já dominava o m e r c a d o
mundial (evidentemente estamos nos referindo às explorações
agrícolas e industriais voltadas p a r a este tipo de p r o d u ç ã o ) .
O t r a b a l h a d o r livre das fazendas não era servo da gleba.
F o r m a l m e n t e podia a b a n d o n a r as fazendas e isto acontecia
freqüentemente.

As Américas e o mercado mundial

As Américas, a partir da conquista e da colonização,


integraram o conjunto de m u d a n ç a s estruturais que sepulta-
r a m o feudalismo europeu e consolidaram o caminho p a r a a
hegemonia do capitalismo.
A contribuição americana p a r a este processo consistiu
na ampliação do comércio europeu-americano e, conseqüen-
temente, intra-europeu, no desenvolvimento da indústria, da
tecnologia, da construção naval etc. A produção em m a s s a
de p a n o s de qualidade inferior, em p a r t e destinada a abas-
tecer os novos mercados americanos, constituiu o alicerce
52
da indústria têxtil inglesa. A integração americana no merca-
do internacional concorreu p a r a compor esta economia mun-
dial capitalista e as sucessivas hegemonias dos grandes paí-
ses industrializados.

A contribuição americana para a hegemonia capitalista consistiu na


ampliação do comércio euroamericano. A ilustração mostra a
atividade comercial no importante porto inglês de Bristol.

As Américas e a acumulação capitalista

A acumulação de capital dá-se no que se convencionou


c h a m a r de economias centrais. Na transição feudalismo—
capitalismo esta acumulação ocorre nas áreas européias que
ingressavam na produção intensiva de bens de consumo, com
produtividade crescente p a r a a época. A Inglaterra assumiu
53
a dianteira da industrialização em massa e a sua indústria
d o m i n a r i a os séculos XVII a XIX, declinando no século XX.
As Américas, principalmente a América Latina, b e m como
a periferia européia, não e s c a p a r a m à hegemonia exercida
pelos países industrializados; entretanto, esta nova articula-
ção n a d a tem a ver com feudalismo. Ao contrário, a nova
divisão do trabalho, a nível internacional, não só reduzia os
vestígios de formações sociais pré-colombianas como acele-
rava a participação americana no mercado de matérias-pri-
m a s , produzidas nas fazendas, plantações e áreas m i n e r a -
doras.
P a r a as regiões latino-americanas as grandes fazendas
ofereciam duas faces ao observador. Uma, voltada à produ-
ção de excedentes para o m e r c a d o interno e, substancialmen-
te, p a r a o mercado externo. Outra, revelando a c e n t u a d a
tendência p a r a a autarcização. E s t e último fenômeno ocorre
d u r a n t e o período de queda nas atividades de algumas regiões
européias no século XVII (menciona-se até a "crise do século
XVII"), caso da acentuada decadência do Império Espanhol.
Nem s e m p r e isto significou queda nas atividades latino-ame-

As Américas tornaram-se fornecedoras de matérias-primas e consumidoras


dos produtos industrializados, particularmente ingleses. Na foto,
uma plantação de algodão para exportação, no vale do Mississippi, EUA.

54
ricanas, mas provocou alterações no r i t m o de crescimento e
vinculações externas.
Retomadas as atividades em volume ascendente no sé-
culo da "Revolução Industrial", as Américas, sobretudo as
de expressão ibérica, especializaram as suas economias, tor-
nando-se fornecedoras de matérias-primas e importando,
primordialmente da Inglaterra, produtos industrializados.

O tesouro americano e o capitalismo

Há u m a teoria que atribui ao ouro e à p r a t a americanos


papel decisivo no processo de acumulação capitalista. Os
metais preciosos teriam acarretado a alta dos preços euro-
peus e esta, por sua vez, teria estimulado a indústria, o co-
mércio e a agricultura. É o fenômeno que o economista John
Maynard Keynes denominou de "inflação nos l u c r o s " (profit
inflation). Os salários, p o r sua vez, não a c o m p a n h a r a m os
preços e a mais-valia obtida permitiu reinvestimentos e
acumulação crescentes.
Historiadores, como Pierre Vilar, replicam que os preços
já estavam subindo q u a n d o os metais preciosos americanos
começaram a chegar na Europa, via Sevilha. A relação preços
—salários t a m b é m n ã o teria ocorrido de forma tão prejudi-
cial aos assalariados. A expansão capitalista do século XVI
é que incentivou a p r o d u ç ã o de metais preciosos, quer na
Europa, quer na América.
Em resumo, n ã o é a moeda que faz o capitalismo, mas
o capitalismo que faz a moeda. Cresce a p r o d u ç ã o de merca-
dorias e, entre elas, a da mercadoria dinheiro. Aumenta a
produção de metais preciosos, e esta atividade na América
alimenta e desenvolve pólos de crescimento demográfico,
econômico e t c . . .

55
6. observações finais

Preferi encerrar este breve tópico com o título de


"Observações Finais" p a r a evitar a tentação de denominá-lo
"Conclusão".
O t e m a do livro ofereceu a ocasião p a r a suscitar reno-
vadas indagações, nunca p a r a concluir p e r e m p t o r i a m e n t e .
O leitor paciente descobriu que o autor não recomenda,
como fazem alguns, soluções que esquivam a luta de classes
n u m específico contexto social, político e econômico e atri-
b u e m ao "Comércio", à Moeda, ao "Espírito", ao " E m p r e s á -
rio", a "gênese do capitalismo". Dentre estes adversários da
luta de classes como cenário da transição, o conceito de
"capitalismo mercantil" é o mais sutil e apto a seduzir mui-
tos historiadores. A produção de mercadorias é substituída
pela circulação e a mais-valia diluída n u m aspecto mais apra-
zível do processo global. É a diferença entre os preços das
m e r c a d o r i a s que, nessa concepção, ocupa o palco dos acon-
tecimentos. A natureza do preço, do valor nele contido, deixa
de constituir a questão decisiva. O capital mercantil, p a r t e
de um todo, é metamorfoseado em capitalismo mercantil,
ou seja, passa a representar o t o d o .
P r o c u r a m o s , ao contrário dessas teses, sustentar q u e o
capital mercantil não engendra a disponibilidade de mão-de-
o b r a e o embrião do m e r c a d o interno emergente no feuda-
lismo europeu, mas interage com essa mão-de-obra que
n ã o foi "escravizada" pelos senhores feudais. O " t r a b a l h o
livre" n ã o é resultado do capitalismo e de suas "revoluções
burguesas", m a s propicia requisitos p a r a o capitalismo, quer
p r o d u z i n d o p a r a o mercado, quer ofertando mão-de-obra p a r a
as m a n u f a t u r a s .
56
A oferta precede a procura, embora os ideólogos da
economia de mercado se refiram ao predomínio do "consumi-
dor". Esta oferta de mercadorias e t r a b a l h o , p o r sua vez,
ocorreu no ocidente europeu feudal pelas razões que nos
esforçamos por sintetizar nas páginas precedentes.
Não há simplicidade no processo histórico esboçado,
nem linearidade. Se o leitor tem a sensação de que este livro
é imperfeito, polêmico, inacabado, lembre-se de que o autor
caminhou sobre o fio de u m a navalha, entre os abismos da
teoria, de um lado, e da prática, de outro.

57
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cián dei esclavismo al feudalismo. Madrid, Akal Editor, 1974.
. Historia econômica general. México/Buenos Aires, Fondo de Cultu-
ra Econômica, 1961.

60
cronologia

Roma

230 — Invasões b á r b a r a s ; godos (a p a r t i r de 230); fran-


cos e alemães (a p a r t i r de 260); persas (a p a r t i r
de meados do século III).
306-337 — I m p e r a d o r Constantino. Transferência da capital
do Império p a r a o Oriente (330); aliança com a
igreja cristã através do Edito de Milão (331).
379-395 — I m p e r a d o r Teodósio I. D e s m e m b r a m e n t o do Im-
pério em I m p é r i o do Ocidente e I m p é r i o do
Oriente.
410 — Captura de R o m a por Alarico.
455 — Roma é saqueada pelos vândalos.
476 — Queda do I m p é r i o Romano do Ocidente.
493 — O rei dos ostrogodos, Teodorico, d o m i n a a Itália.

O Ocidente europeu — o feudalismo

496 — Conversão de Clóvis, rei dos francos, ao cristianismo.


653 — Os lombardos na Itália; em 653 convertem-se ao
cristianismo.
732 — Carlos Martel i m p e d e a invasão á r a b e da E u r o p a
ocidental.
771 — Carlos Magno é coroado rei dos francos.
800 — Carlos Magno é coroado Imperador.
814 — Morte de Carlos Magno e subseqüente desmembra-
mento do I m p é r i o — Tratado de V e r d u n (843).
Seguem-se invasões do Ocidente pelos n o r m a n d o s ,
húngaros e t c , independentemente da tentativa de
criação, por Oto, o Grande, do Santo I m p é r i o Roma-
no-Germânico.
61
Transição do feudalismo para o capitalismo

Século XI — Recuperação do comércio e da indústria. A


p r i m e i r a cruzada.
Século X I I — Consolida-se a m o n a r q u i a dos capetos na
França. Desenvolvimento u r b a n o . Arte gótica.
Século X I I I — Predomínio do P a p a d o . A q u a r t a cruzada e
a conquista de Constantinopla. Criação das Ordens
Mendicantes. Limitação do poder da realeza na Ingla-
terra, com a Magna Carta (1215). Desenvolvimento da
i n d ú s t r i a e do comércio. Crescimento demográfico.
Século XIV — A Guerra dos Cem Anos. 0 estabelecimento
dos turcos na Europa. O pré-Renascimento italiano.
Crises econômicas e sociais.
Século XV — A Guerra das Duas Rosas abate a aristocracia
inglesa. A Espanha expulsa os muçulmanos (1492) c o m -
a t o m a d a de Granada. Descoberta da América em 1492
p o r Colombo.
Século XVI — As grandes descobertas marítimas e a colo-
nização. A conquista do México e do Peru. O o u r o e a
p r a t a do Nova Mundo. A "Primeira Revolução Indus-
trial". As sociedades p o r ações. O Absolutismo.

62
discutindo o texto

1. Por que ocorreu a tendência romana de concentrar a


propriedade territorial em poucas mãos?
2. Como se caracterizava o imperialismo r o m a n o ?
3. O que ocorreu com os camponeses livres no Império
Romano?
4. Qual o papel da mão-de-obra escrava na atividade
produtiva dos r o m a n o s ?
5. A seu ver, qual a causa ou causas da decadência do
Império Romano?
6. P o r que o c o r r e r a m as revoltas dos " b á r b a r o s " contra
Roma?
7. O que se entende p o r fragmentação do p o d e r no feuda-
lismo europeu?
8. O feudalismo é u m a anarquia social, política e econô-
mica?
9. Por que, no feudalismo europeu, a p r o d u ç ã o é limitada
pelo consumo?
10. Qual a natureza da fixação dos camponeses à t e r r a no
feudalismo?
11. Indique as diferenças entre o servo feudal e o escravo
romano.
12. Caracterize a Igreja como instituição feudal.
13. Por que a p r o p r i e d a d e territorial da Igreja era obstáculo
ao capitalismo emergente?
14. Quais as razões da Igreja p a r a combater a u s u r a ?
63
15. A ordem jurídica feudal era d e f o r m a ç ã o consuetudiná-
ria. Explique os fundamentos desta afirmação.
16. Esclareça o papel do E s t a d o na formação do capitalismo.
17. Como se manifesta a resistência camponesa no feudalis-
mo?
18. Descreva o papel do comércio no feudalismo.
19. Você acha que o feudalismo europeu foi u m a I d a d e das
Trevas?
20. É o empresário q u e faz o capitalismo, ou o capitalismo
q u e faz o empresário?
2 1 . P a r a Max Weber a ética religiosa p r o t e s t a n t e está na base
do desenvolvimento capitalista. Examine e explique essa
conceituação.
22. O que você entende p o r "escravidão do salário"?
2 3 . Por que o feudalismo não resistiu ao capitalismo no
Ocidente europeu?
24. Discuta o papel da economia camponesa na formação de
u m mercado interno.
2 5 . Relacione o desenvolvimento do comércio com a expan-
são agrícola do ocidente feudal.
26. Caracterize as lutas sociais d u r a n t e a transição feudalis-
mo—capitalismo.
2 7 . Discuta o conceito de "capitalismo mercantil".
28. Você acha que houve feudalismo no período colonial
latino-americano ?
29. Qual a relação e n t r e o "tesouro a m e r i c a n o " e o capita-
lismo europeu?

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