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O ACORDO BRASIL-SANTA SÉ E A LIBERDADE RELIGIOSA

Luciano Campos do Amaral e Vasconcellos*

RESUMO
A República Federativa do Brasil celebrou com a Santa Sé, em 13 de novembro de 2008, o
chamado Acordo Brasil-Santa Sé, que teve por escopo realçar as relações jurídicas já
existentes entre as partes. Esse tratado internacional foi objeto de críticas durante o seu exame
na Câmara dos Deputados, em especial porque se estaria violando o direito fundamental à
liberdade religiosa e a laicidade estatal, previstos no art. 5º, inciso VI e art. 19, inciso I, todos
da CRFB. O presente estudo busca enfrentar essas críticas, apontando como a liberdade
religiosa é abordada tanto pelo Estado brasileiro e pela Santa Sé. Por fim, o estudo aborda a
compatibilidade do Acordo Brasil-Santa Sé com a liberdade religiosa prevista na ordem
constitucional brasileira.

PALAVRAS-CHAVES: Direito Público Internacional. Acordo Brasil-Santa Sé. Concordata.


Direito Público Eclesiástico. Direitos fundamentais. Estado laico. Liberdade religiosa.
* Advogado, Especialista em Direito Público pela Universidade Gama Filho, Especialista em Processo pela
Universidade do Sul de Santa Catarina, Mestrando em Direito Canônico pelo Instituto Superior de Direito
Canônico-Pontificia Università Gregoriana (Roma). Email: lvascon@gmail.com
1 INTRODUÇÃO

Com o advento da celebração do Acordo Brasil-Santa Sé, incorporado ao ordenamento


jurídico interno através do Decreto nº 7.107 de 11 de fevereiro de 2010, passou a vigorar o
chamado “Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil”.
Em apertada síntese, esse tratado internacional1 teve por escopo a consolidação “em
um único instrumento jurídico, [de] diversos aspectos da relação Brasil com a Santa Sé e da
presença da Igreja Católica no Brasil2”, evidenciando a íntima ligação histórica-pastoral entre
a Igreja Católica e o Brasil.
O acordo Brasil-Santa Sé, em suas considerações preliminares, deixa claro que a
liberdade religiosa serviu como diretriz central à sua elaboração, não havendo, a priori,
qualquer violação à laicidade do Estado, conforme dispõe o art. 5º, incisos VI e VIII e art. 19,
inciso I, todos da Constituição da República Federativa do Brasil.
Contudo, o Acordo, durante o seu exame na Câmara dos Deputados, foi alvo de
críticas, entre as quais a de que se estaria violando o direito fundamental de liberdade
religiosa e a laicidade estatal.
O presente estudo tem como objetivo analisar – ainda que de maneira não exaustiva –
essa problemática, ou seja, se o acordo Brasil-Santa Sé fere a Constituição da República
Federativa do Brasil, no tocante à liberdade religiosa de seus indivíduos.

2 O ACORDO ENTRE A REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL E A

SANTA SÉ

2.1 A personalidade jurídica internacional da Santa Sé

O tratado internacional entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé foi

1 O Professor Francisco Rezek conceitua tratado internacional como “acordo formal, concluído entre sujeitos de direito
internacional público, e destinado a produzir efeitos jurídicos”. (REZEK, 1984, p. 21)
2 Exposição de Motivos nº 471, de 12 de dezembro de 2008, do Ministro de Estado das Relações Exteriores.
celebrado em 13 de novembro de 2008, na Cidade do Vaticano, assinado, respectivamente,
pelo Ministro das Relações Exteriores Celso Amorim e o Arcebispo Dominique Mamberti,
Secretário para Relações com os Estados.
É certo que a Santa Sé atua no cenário político internacional há séculos, por conta do
seu poder espiritual e da influência do Papado sobre as questões internacionais que
envolviam, principalmente, os Estados Pontifícios (PORTELA, 2010, p. 144).
Em efeito, trata-se da única confissão religiosa a ter personalidade jurídica de Direito
Internacional Público. Isso se deve ao fato da Santa Sé estar dotada de uma organização
central, unitária, hierárquica e, principalmente, soberana (MARTÍN, 1998, p. 257). Não se
trata de privilégio (nem de discriminação3 com os demais cultos religiosos), mas sim de uma
situação ímpar, pois nenhuma outra confissão religiosa possui as tradições históricas da Santa
Sé ou a sua atuação no campo do Direito Internacional Público.
Com a celebração do Tratado de Latrão entre a República Italiana e a Santa Sé, esta
passou a ter o reconhecimento expresso de sua personalidade jurídica internacional, passando
o Papa a ser considerado como Chefe de Estado da Cidade-estado do Vaticano 4, além de
Suprema Autoridade da Igreja universal5.
Pelo exposto, é a Santa Sé que possui personalidade jurídica de direito público
externo, logo, apta a celebrar tratados internacionais com um Estado. O Estado-cidade do
Vaticano é o território onde a Santa Sé exerce a sua soberania.

2.2 As linhas gerais do Acordo Brasil-Santa Sé

O “Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil” consolida as diversas relações


jurídicas entre o Brasil e a Igreja Católica, que, inclusive, já se encontram contempladas em
diversas normas do ordenamento jurídico brasileiro.
Em apertada síntese, o Estatuto trata de: a) reconhecimento da personalidade jurídica e

3 “La discriminación es uma diferencia “injustificada”, y em este caso [Santa Sé] la diferencia está sobradamente
justificada. Porque si ninguna outra institución religiosa há pretendido un estatuto similar, no es culpa de la Santa Sede; si
la autocomprensión, la idea que tienen de sí mismas las otras religiones, no les mueve a solicitar este status, la de lá
Iglesia católica sí” (SOLER, 1996, p. 6).
4 “Il Trattato del 1929 (legge n. 810), per la creazione dello Stato Città del Vaticano, riconobbe alla Santa Sede ‘la piena
proprietà e la esclusiva ed assoluta potestà e giurisdizione sovrana sul Vaticano’ [...]” (FINOCCHIARO, 1988, p. 174).
Complementando o assunto, o Prof. Carlos García Martín ensina que o Estado da Cidade do Vaticano tem uma relação
“instrumental” com a Santa Sé, permitindo a esta exercer a sua soberania em um território e cumprir com a sua finalidade
espiritual e moral: “La Santa Sede no es un Estado, es el órgano del gobierno universal de uma confesión religiosa: La
Iglesia Católica. […] Mediante el Estado de la Ciudad del Vaticano se pretenden cubrir los servicios técnicos básicos de
un Estado de reducidas dimensiones. La Santa Sede, em el ejercicio del gobierno universal de la Iglesia católica, mira a
uma finalidad de orden espiritual y moral” (MARTÍN, 1998, p. 263).
5 Esta soberania também está prevista no cânon 331, do Código de Direito Canônico.
missão apostólica da Igreja; b) imunidades e isenções tributárias; c) proteção, conservação e
divulgação e acesso ao patrimônio histórico-cultural da Igreja no Brasil; d) proteção dos
lugares de culto da Igreja Católica e de suas liturgias; e) assistência religiosa aos enfermos e
presos; f) reconhecimento recíproco de diplomas de graduação e pós-graduação, com
observância do direito interno; g) criação de institutos de ensino e facultatividade do ensino
religioso; h) dar efeitos civis aos matrimônios celebrados à luz do ordenamento canônico; i)
garantir o segredo do ofício sacerdotal; j) inserção da Igreja nos instrumentos de planejamento
urbano; m) não-aplicabilidade da relação jurídica de emprego entre o clérigo e a Igreja, salvo
em caso de desvirtuamento da última e, por fim, n) solicitação à autoridade brasileira de vistos
diplomáticos para fiéis estrangeiros em atividade pastoral.
Como pode ser observado, os assuntos tratados no Estatuto já estão previstos no
ordenamento brasileiro. Dessa forma, com a celebração do Acordo, passam a constar
formalmente como fonte de direitos de ambas as partes (LOMBARDIA, 2008, p. 73).

3 O ESTADO LAICO E A LIBERDADE RELIGIOSA

3.1 A República Federativa do Brasil como Estado laico

Antes da análise do tema, é preciso lembrar que a celebração do Acordo Brasil-Santa


Sé sequer foi inédita. O Estado brasileiro já reconhecia, de longa data, a personalidade
jurídica internacional da Santa Sé, bem como já havia celebrado outros tratados internacionais
com esta parte. Em 2 de outubro de 1935, o Estado brasileiro celebrou com a Santa Sé um
tratado internacional, que foi denominado de “Acordo Administrativo para a Troca de
Correspondência Diplomática em Malas Especiais”. Outro acordo celebrado com a Santa Sé
foi o “Acordo sobre Assistência Religiosa às Forças Armadas”, em 3 de outubro de 19896.
Noutro giro, o Estado brasileiro7 é laico8 desde o início da República, através do

6 Para mais informações, confira o sítio da Divisão de Atos Internacionais do Ministério de Relações Exteriores.
Disponível em: <http://www2.mre.gov.br/dai/bisantase.htm>. Acesso em 28 de março de 2010.
7 Somente a título de nota, vale lembrar que o Estado brasileiro já foi confessional, conforme expressou o art. 5º da
Constituição brasileira de 1824, que constituiu a religião da Igreja Católica Apostólica Romana como estatal.
8 Merece destaque o apontamento do Professor Fernando Capez: “Laico não designa, portanto, algo não religioso, nem
contrário à fé, mas apenas aqueles que não exercitam como vocação, o ministério religioso. Estado laico não é Estado
sem fé, ateu ou que se antepõe a símbolos de convicções religiosas, mas tão somente Estado não confessional, sem
religião oficial ou obrigatória” (CAPEZ, Fernando. O Estado Laico e a Retirada de Símbolos Religiosos de Repartições
Públicas. Disponível em: <http://jusvi.com/artigos/41668>. Acesso em 28 de março de 2010.
Decreto 119-A, de 17 de janeiro de 18909. Significa dizer, não possui religião oficial ou
obrigatória, mas sim a obrigatoriedade de se manter neutro em relação às confissões
religiosas. Contudo, a palavra “laico” não corresponde a repúdio ou oposição à religião, mas
sim que, não havendo confissão oficial como política de Estado, as religiões devem coexistir
pacificamente com aquele, que deve se abster de molestá-las, coibi-las ou privilegiar uma em
detrimento das outras10. Mas isso não afasta a possibilidade do Estado atuar a fim de preservar
a ordem pública (como, por exemplo, culto com alto nível sonoro11).
O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Ferreira Mendes, ressalta que os
acordos que a Santa Sé celebra com Estados não são uma violação à laicidade destes,
conforme a doutrina a seguir:

A laicidade do Estado não significa, por certo, inimizade com a fé. Não impede a
colaboração com confissões religiosas, para o interesse público (CF, art. 19, I). A
sistemática constitucional acolhe, mesmo, expressamente, ação conjunta dos
Poderes Públicos no âmbito de cultos religiosos, como é o caso da extensão de
efeitos civis ao casamento religioso. Nesse sentido, não há embaraço – ao
contrário, parecem bem-vindas, como ocorre em tantos outros países – a
iniciativa como a celebração de concordata com a Santa Sé, para a fixação de
termos de relacionamento entre tal pessoa de direito internacional e o país,
tendo em vista a missão religiosa da Igreja de propiciar o bem integral do
indivíduo, coincidente com o objetivo da República de “promover o bem de
todos” (art. 3º, IV, da CF). Seria erro grosseiro confundir acordos dessa ordem, em
que se garantem meios eficazes para o desempenho da missão religiosa da Igreja,
com a aliança vedada pelo art. 19, I, da Constituição. A aliança que o constituinte
repudia é aquela que inviabiliza a própria liberdade de crença, assegurada no art. 5º,
VI, da Carta, por impedir que outras confissões religiosas atuem livremente no País.

9 Para consultar o texto do decreto, acesse: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/D119-A.htm>. O


saudoso professor Celso Ribeiro Bastos ensina que “a liberdade de organização religiosa tem uma dimensão muito
importante no seu relacionamento com o Estado. o Estado. Três modelos são possíveis: fusão, união e separação. O
Brasil enquadra-se inequivocadamente neste último desde o advento da República, com a edição do Decreto 119-A, de
17 de janeiro de 1890, que instaurou a separação entre a Igreja e o Estado. O Estado brasileiro tornou-se desde
então laico” (BASTOS, 1996, p.178).
10 Art. 19, inciso I, Constituição da República Federativa do Brasil.
11 “AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TEMPLO RELIGIOSO. ABSTENÇÃ DE ATO. POLUIÇÃO SONORA. DANO
AMBIENTAL. Apelação Cível. Ação Civil Publica. Sentença que condenou a Comunidade Evangélica Projeto Vida a se
abster de realizar qualquer culto religioso no estabelecimento situado na rua Newton Prado, n. 80, Vila Suíça, Município
de Barra do Piraí. Os direitos protegidos constitucionalmente devem ser interpretados sistematicamente, assim, a sentença
não viola o direito de liberdade de culto, apenas protege outros direitos constitucionais também merecedores de amparo,
como a ordem publica, o ordenamento urbano e o meio ambiente saudável. Utilização do solo pela apelante configurado
uso institucional principal, conforme art. 14, II da Lei Municipal n. 275/95, inadequado para a zona habitacional onde se
situa. Reconhecimento de ofensa as normas ambientais em razão do alto nível sonoro produzido, em desconformidade
com o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano do Município (Lei n. 273/95). Provimento parcial do recurso apenas
para que se condicione o dever de abster-se de realizar celebração religiosa a ausência de alvará de funcionamento.
(TJRJ; AC 6574/2005; Barra do Piraí; Décima Câmara Cível; Relª Desª Jose Carlos Varanda dos Santos; Julg.
13/09/2005)”. No mesmo sentido a decisão da Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
“ACAO CIVIL PUBLICA. DEFERIMENTO DE LIMINAR PARA VEDAR O USO, DURANTE CULTO
RELIGIOSO, DE INSTRUMENTO DE AMPLIACAO SONORA, CAUSADORA DE PERTURBACAO E
POLUICAO AO AMBIENTE. INEXISTENCIA DE OFENSA AO DIREITO AO CULTO. O ESTADO, COMO TEM
OBRIGACAO DE TUTELAR PELA LIBERDADE DE CULTO, DEVE TAMBEM PROTEGER O MEIO
AMBIENTE DA POLUICAO SONORA, CAUSADA POR INSTRUMENTOS AMPLIFICADORES DE SONS.
DENEGACAO DO WRIT. (Mandado de Segurança Nº 593156896, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS,
Relator: Celeste Vicente Rovani, Julgado em 01/03/1994)”.
(MENDES, COELHO & BRANCO, 2007, p. 409, grifo nosso).

Mostra-se oportuno fazer um parênteses para abordar, em apertada síntese, a questão


sobre a presença de crucifixos em órgãos públicos. A conclusão do Conselho Nacional de
Justiça foi no sentido de que não fere o art. 19, I da CRFB, ou seja, a laicidade do Estado
brasileiro. Pelo contrário, a retirada desses símbolos religiosos seria um ataque direto às
culturas e tradições da sociedade brasileira, que devem ser respeitadas e não violadas12.
Merece transcrição o arguto voto do Conselheiro Oscar Argollo13, por ocasião do
Pedido de Providências nº 1344, em 6 de junho de 2007:

O costume de expor, eventualmente, em dependências ou ambiente de órgão


público a imagem de um crucifixo corresponde, sem embargos, a uma necessidade
jurídica, de acordo com as homenagens devidas a Justiça. Trata-se de
representação, ainda que religiosa, do respeito devido aquele local. O crucifixo é
um símbolo que homenageia princípios éticos e representa, especialmente, a
paz. Afinal, a luta pelo Direito é o meio para alcançar a Paz, conforme ensinou
Ihering em seu famoso opúsculo proferido em Viena em 1872.
[...]
Assim é que, o indivíduo, no Estado laico, tem absoluta autonomia, ou seja: pode
ser ateu, agnóstico, ou optar por uma religião, ou não. Há, portanto, plena
autonomia privada, cabendo ao Estado proibir a coação: a chamada imunidade
de coação. Estado não tem o direito de se imiscuir nos costumes e tradições
reconhecidos moralmente pela sociedade. Portanto, se costume é a palavra
chave para a compreensão dos conceitos de ética e moral, a tradição se insere no
mesmo contexto, uma vez que deve ser vista como um conjunto de padrões de
comportamentos socialmente condicionados e permitidos. E não podemos ignorar
a manifestação cultural da religião nas tradições brasileiras, que hoje não
representa qualquer submissão ao Poder clerical. (grifo nosso)

Isto posto, verifica-se que o Estado brasileiro é laico, ou seja, exclui a existência de
uma religião estatal e adota uma postura de neutralidade em relação às confissões religiosas.
Com efeito, o juízo de valor sobre uma confissão religiosa é “patrimônio exclusivo”
(DIÉGUEZ, 2006, p. 383) dos cidadãos, não podendo o Estado assenhorar a liberdade de
consciência e religiosa dos membros da sociedade.

3.2 A Santa Sé e a laicidade estatal

12 No mesmo sentido: “A liberdade religiosa consiste na liberdade para professar fé em Deus. Por isso, não cabe arguir a
liberdade religiosa para impedir a demonstração da fé de outrem ou em certos lugares, ainda que públicos. O Estado, que
não professa o ateísmo, pode conviver com símbolos os quais não somente correspondem a valores que informam a
sua história cultural, como remetem a bens encarecidos por parcela expressiva da sua população – por isso,
também, não é dado proibir a exibição de crucifixos ou de imagens sagradas em lugares públicos” (MENDES,
COELHO & BRANCO, op. cit., p. 410) (grifo nosso).
13 CNJ, Pedido de Providências nº 1334, 14ª Sessão Extraordinária, Relator Conselheiro Paulo Lôbo, 6 de junho de 2007.
A doutrina da Santa Sé sobre o Estado laico é um tema extremamente rico em detalhes
históricos, teológicos e jurídicos. Assim, o presente estudo apenas irá pincelar os principais
tópicos acerca deste tema, utilizando como norte a imprescindível obra do canonista e
professor Pedro Lombardía, catedrático da Universidade Complutense de Madrid.
Ao tratar das relações entre Igreja-Estado, surge à vista o chamado “dualismo cristão”,
que, em linhas gerais, é a distinção entre o poder temporal (exercido pelo Estado) e o poder
religioso (exercido pela Igreja). Por esse dualismo, cabe ao Estado exercer o seu potestad
sobre a ordem natural, enquanto à Igreja, sobre a ordem sobrenatural (espiritual).
Sob a perspectiva da Igreja, o seu poder sobre a ordem sobrenatural se dá pelo seu
próprio mistério, fundamentação e natureza divina14.
O Papa João XXIII convocou, em 25 de dezembro de 1961, o Concílio Vaticano II
(XXI Concílio Ecumênico da Igreja Católica), que, em dois documentos, deixou claro a
posição da Igreja sobre o princípio do dualismo.
O primeiro documento foi a Constituição15 dogmática Lumen Gentium, que em seu
número 36 expõe:

Devido à própria economia da salvação, devem os fiéis aprender a distinguir


cuidadosamente entre os direitos e deveres que lhes competem como membros
da Igreja e os que lhes dizem respeito enquanto fazem parte da sociedade
humana. Procurem harmonizar entre si uns e outros, lembrando-se que se devem
guiar em todas as coisas temporais pela consciência cristã, já que nenhuma
actividade humana, nem mesmo em assuntos temporais, se pode subtrair ao domínio
de Deus. É muito necessário em nossos dias que esta distinção e harmonia se
manifestem claramente nas atitudes dos fiéis, que a missão da Igreja possa
corresponder mais plenamente às condições particulares do mundo actual. Assim
como se deve reconhecer que a cidade terrena se consagra a justo título aos
assuntos temporais e se rege por princípios próprios, assim com razão se deve
rejeitar a nefasta doutrina que pretende construir a sociedade sem ter para
nada em conta a religião, atacando e destruindo a liberdade religiosa dos
cidadãos. (grifo nosso).

Sob este ponto de vista dogmático, o dualismo se afirma com a concepção de que os
fiéis são titulares de direitos e deveres em duas sociedades juridicamente distintas, quais
sejam: Igreja e Estado. Isso não significa que a pessoa humana, sendo cristão e cidadão,
assim, titular de direitos e deveres em dois ordenamentos jurídicos distintos, será objeto de
14 Na ótica de São Tomás de Aquino, a acepção do direito natural é fundado no direito divino, pois como a natureza é obra
de Deus, logo, decorrendo da promulgação divina o que foi estabelecido pelo direito natural. O direito divino positivo
não se confunde com o direito divino natural. Pois o primeiro é conhecido exclusivamente pela Revelação, sendo do
Magistério da Igreja o encargo de interpretá-la autenticamente. O segundo são coisas naturalmente justas e inerentes à
pessoa humana, que podem ou não ser do conhecimento do homem. Para um maior aprofundamento, recomenda-se o
estudo da obra Suma Teológica, de São Tomás de Aquino.
15 O termo “constituição” empregado pelo Concílio Vaticano II não se confunde com uma “Constituição” de um Estado, ou
seja, lei fundamental que organiza os Poderes e estruturas do Estado.
conflito. O Concílio orientou os fiéis a conciliar os direitos de que são titulares em ambas as
sociedades16.
Outro documento que evidencia o princípio do dualismo é a Constituição Gaudium et
Spes, também no número 36:

Se por autonomia das realidades terrenas se entende que as coisas criadas e as


próprias sociedades têm leis e valores próprios, que o homem irá gradualmente
descobrindo, utilizando e organizando, é perfeitamente legítimo exigir tal
autonomia. Para além de ser uma exigência dos homens do nosso tempo, trata-se de
algo inteiramente de acordo com a vontade do Criador. Pois, em virtude do
próprio facto da criação, todas as coisas possuem consistência, verdade, bondade e
leis próprias, que o homem deve respeitar, reconhecendo os métodos peculiares de
cada ciência e arte. (grifo nosso).

Os números 73-76, da mesma Constituição, trazem à evidência que não cabe às


autoridades eclesiásticas exercer qualquer função sobre o governo temporal (ou poder político
estatal).

A consciência mais sentida da dignidade humana dá origem em diversas regiões do


mundo ao desejo de instaurar uma ordem político-jurídica em que os direitos da
pessoa na vida pública sejam melhor assegurados, tais como os direitos de livre
reunião e associação, de expressão das próprias opiniões e de profissão privada e
pública da religião. A salvaguarda dos direitos da pessoa é, com efeito, uma
condição necessária para que os cidadãos, quer individualmente quer em grupo,
possam participar activamente na vida e gestão da coisa pública. (n. 73)

Para que a cooperação responsável dos cidadãos leve a felizes resultados na vida
pública de todos os dias, é necessário que haja uma ordem jurídica positiva, que
estabeleça convenientemente divisão das funções e dos orgãos da autoridade pública
e ao mesmo tempo protecção do direito eficaz e plenamente independente de quem
quer que seja. (n. 75)

A Igreja que, em razão da sua missão e competência, de modo algum se confunde


com a sociedade nem está ligada a qualquer sistema político determinado, é ao
mesmo tempo o sinal e salvaguarda da transcendência da pessoa humana.
No domínio próprio de cada uma, comunidade política e Igreja são
independentes e autónomas. Mas, embora por títulos diversos, ambas servem a
vocação pessoal e social dos mesmos homens. E tanto mais eficazmente
exercitarão este serviço para bem de todos, quanto melhor cultivarem entre si
uma sã cooperação, tendo igualmente em conta as circunstâncias de lugar e
tempo. Porque o homem não se limita à ordem temporal sòmente; vivendo na
história humana, fundada sobre o amor do Redentor, ela contribui para que se
difundam mais amplamente, nas nações e entre as nações, a justiça e a
caridade. Pregando a verdade evangélica e iluminando com a sua doutrina e o
testemunho dos cristãos todos os campos da actividade humana, ela respeita e
promove também a liberdade e responsabilidade política dos cidadãos. (n. 76 e grifo
nosso).

16 “[…] se devem guiar em todas as coisas temporais pela consciência cristã”. Lumen gentium, n. 36.
Contudo, isso não impossibilita a Igreja de se pronunciar sobre as questões sociais que
interessam à sociedade17 a fim de estipular a conquista de um bem-estar social pleno.
Significa dizer, à luz dos documentos do Concílio Vaticano II, bem como da Encíclica Deus
Caritas Est18, a condução política do Estado não pode (e nem deve) ter interferência direta da
Igreja, contudo, é missão desta apresentar sua doutrina social para servir como auxílio à
perseguição do bem-estar social.
Pelo exposto acima, a Igreja não busca se projetar diretamente nas questões políticas e
de governo do Estado, mas tão somente às questões da ordem espiritual19. Ademais, merece
nota que o Concílio Vaticano II, na Declaração Dignitatis Humanae, defende o direito
fundamental à liberdade religiosa mesmo no caso em que o Estado seja confessional, ou seja,
que tenha uma determinada confissão como religião oficial20.
Importante apresentar as conclusões do professor Lombardía sobre os textos
apresentados:

a) A Igreja reafirma seu tradicional dualismo enquanto considera ela própria e o


Estado como sociedades independentes e autônomas.
b) Esta autonomia se baseia em sua natureza distinta, já que a Igreja é uma
sociedade de ordem sobrenatural e tem como fim a salvação das almas, ao passo que
a comunidade política é de ordem natural e tem como fim o bem temporal comum.
c) Embora de natureza distinta, não estão em uma situação de incomunicação que
justifique um desconhecimento mútuo.
d) A hierarquia da Igreja, ajudada pela luz da Revelação ensina a vontade de Deus,
acerca tanto da ordem sobrenatural como da natural. Com relação ao sobrenatural,
não só ensina, mas, além disso, exerce um poder social no âmbito da comunidade
dos crentes. Quanto à ordem natural, expõe princípios gerais e pode dar juízos
morais concretos, porém não é competente para gerir os assuntos que afetam o bem
comum temporal.
e) A missão comum a serviço do homem, que a Igreja tem consciência de que lhe
incumbe juntamente com o Estado, podem ser formalizadas segundo a práxis da
Igreja e de muitos Estados, podem ser formalizados em acordos concordatários, que
são ao mesmo tempo fontes de direito canônico e fontes do direito do Estado
signatário. (LOMBARDIA, 2008, p. 72-73).

A Igreja Católica faz a advertência de que o laicismo não pode ser utilizado para
afastar Deus de todos os âmbitos da sociedade. O Estado laico não deve calar o

17 A título de exemplo, o documento “Eleições 2006: Orientações da CNBB”, que apresenta sugestões de projetos nacionais
e a exigência de ética nas relações políticas.
18 “Deve inserir-se nela pela via da argumentação racional e deve despertar as forças espirituais, sem as quais a justiça, que
sempre requer renúncias também, não poderá afirmar-se nem prosperar. A sociedade justa não pode ser obra da Igreja;
deve ser realizada pela política. Mas toca à Igreja, e profundamente, o empenhar-se pela justiça trabalhando para a
abertura da inteligência e da vontade às exigências do bem” (Encíclica Deus Caritas Est, 28).
19 “La misión de la Iglesia es exclusivamente religiosa, sobrenatural; no pretende un dominio de carácter político,
económico o social[...]” (MARTÍN DE AGAR, 1986).
20 “Se, em razão das circunstâncias particulares dos diferentes povos, se atribui a determinado grupo religioso um
reconhecimento civil especial na ordem jurídica, é necessário que, ao mesmo tempo, se reconheça e assegure a todos os
cidadãos e comunidades religiosas o direito à liberdade em matéria religiosa” (DH, 6).
pronunciamento da comunidade cristã ou de qualquer outra crença, sobre os problemas
sociais, culturais e os costumes da sociedade, a defesa da dignidade da pessoa humana e o
destino político do Estado.
É a “sã laicidade”, que deve ser abraçada pelo Estado, ao invés da impressão de que
laicidade significa “inimigo da fé”, permitindo ao Estado pautar sua política na perseguição e
supressão da liberdade religiosa.
O Papa Bento XVI, em discurso proferido aos participantes do LVI Congresso
Nacional da União dos Juristas Católicos Italianos em 12 de dezembro de 2006, recordou que:

[...] a Igreja não pode indicar que ordenamento político e social deve ser preferido,
mas é o povo que deve decidir livremente os melhores e mais adequados modos de
organizar a vida política. Qualquer intervenção direta da Igreja neste campo seria
uma ingerência indevida.21

O Santo Padre concluiu seu discurso afirmando que:

A religião, mesmo quando organizada em estruturas visíveis, como acontece com a


Igreja, deve ser reconhecida como presença comunitária pública. Isto comporta que
se garanta a cada Confissão religiosa (que não esteja em contraste com a ordem
moral e não seja perigosa para a ordem pública) o exercício livre da liberdade das
atividades de culto – espirituais, culturais, educativas e caritativas – da comunidade
dos crentes.22

O Romano Pontífice também abordou o assunto em seu discurso inaugural23 na V


Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe, na sala de conferências do
Santuário de Aparecida, São Paulo, em 13 de maio de 2007. O Santo Padre reafirmou que a
“sã laicidade” não deve ser ditada por atuação política da Igreja, mas sim a partir da própria
sociedade.

O trabalho político “não é de competência imediata da Igreja”, pois se deve respeitar


uma “sã laicidade”. Do contrário, a Igreja “perderia sua independência”, em sua
“vocação fundamental” de “formar as consciências” e de ser “advogada da justiça e
da verdade”. Também não esquecer que “as estruturas jamais serão completas de
modo definitivo; pela constante evolução da história, devem ser sempre renovadas e
atualizadas, animadas por um ethos político e humano”, à luz da Palavra encarnada.
Neste campo, os leigos, os movimentos têm um amplo campo de ação, pois destaca-
21 Discurso do Papa Bento XVI por ocasião do LVI Congresso Nacional da União dos Juristas Católicos Italianos, em 12 de
dezembro de 2006. Disponível em: <http://www.cliturgica.org/artigo.php?
id=630&PHPSESSID=4f89583ea54a9a5259ced79508f1ee6d>. Acesso em 28 de março de 2010.
22 Papa Bento XVI, op. cit.
23 Discurso do Papa Bento XVI na V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe, em 13 de maio de
2007. Disponível em: <http://www.paulinas.org.br/ciberteologia/wp-content/plugins/download-monitor/download.php?
id=127>. Acesso em 29 de março de 2010.
se “a notável ausência de líderes católicos.

Portanto, restou fortificada a visão do dualismo, que prescreve que os âmbitos de


influências e de competências da Igreja e do Estado, apesar de captarem membros do mesmo
grupo social, estão em planos distintos, quais sejam: ao Estado compete a ordem natural e à
Igreja, a ordem sobrenatural. Com isso, a Santa Sé não vê o Estado laico como imoral ou
contrário aos ditames do Magistério, ao revés, reconhece que a laicidade é um instrumento
necessário para permitir o exercício da liberdade religiosa, bem como garantir a
independência e autonomia da Igreja sobre as questões políticas da sociedade civil temporal.

3.3 O direito fundamental à liberdade religiosa

A liberdade religiosa é uma decorrência da liberdade do pensamento, pois a partir da


exteriorização da consciência e opinião do indivíduo, a manifestação de sua crença e
divulgação de sua fé era o caminho natural a ser seguido. Ademais, a liberdade religiosa vai
além, pois também é direito essencial do indivíduo não exteriorizar nenhuma crença, caso seja
essa a sua consciência.
O reconhecimento do direito essencial à liberdade religiosa se deu ao longo dos
séculos e impulsionado, em regra, por movimentos da sociedade.
A Declaração de Direitos de Virgínia, de 1776, é um exemplo. Com clara influência
iluminista, o documento assegurava “que todo homem deve gozar de inteira liberdade na
forma do culto ditado por sua consciência”. A primeira emenda à Constituição dos Estados
Unidos da América também deu guarida à liberdade religiosa. Deve-se salientar, ademais,
outros textos históricos também garantiram o direito essencial à liberdade religiosa, tais
como: Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e a Declaração Universal dos
Direitos Humanos24 (1948).
Ao fim da Segunda Guerra Mundial, os direitos humanos passaram a ser o centro do
debate da comunidade internacional, restando evidente a necessidade de sua tutela
internacional. Com efeito, o princípio da dignidade da pessoa humana é um centro axiológico
24 “A Declaração Universal de 1948 objetiva delinear uma ordem pública mundial fundada no respeito à dignidade humana,
ao consagrar valores básicos universais. Desde o seu preâmbulo, é afirmada a dignidade inerente a toda pessoa humana,
titular de direitos iguais e inalienáveis. Para a Declaração Universal, a condição de pessoa é o requisito único e exclusivo
para a titularidade de direitos. A universalidade dos direitos humanos traduz a absoluta ruptura com o legado nazista, que
condicionava a titularidade de direitos à pertinência à determinada raça (a raça pura ariana). A dignidade humana como
fundamento dos direitos humanos é concepção que, posteriormente, vem a ser incorporada por todos os tratados e
declarações de direitos humanos, que passam a integrar o chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos”
(PIOVESAN, 2008, p. 20).
de onde irradiam direitos e deveres universais, invioláveis e inalienáveis – inerentes à pessoa
humana – sendo a liberdade religiosa um deles.
Significa dizer, a liberdade religiosa é um direito essencial germinado a partir da
dignidade da pessoa humana, que fundamenta a liberdade do indivíduo de buscar a Verdade a
partir de sua própria consciência, conforme ensina o Professor José T. Martín de Agar, da
Pontificia Università della Santa Croce (Roma):

Es bien sabido que la doctrina católica ha progresado en esta materia, pasando de la


doctrina de la tolerancia a afirmar que la libertad religiosa, de todos los hombres y
de las confesiones, debe ser reconocida en la sociedad civil sin otros límites que los
exigidos por el orden público.
En la base de esta evolución se encuentra la consideración de la dignidad natural de
la persona y de su vocación trascendente, que hace de la conciencia el criterio último
por el que cada hombre debe guiarse en la búsqueda de la verdad sobre Dios y sobre
sus relaciones con Él, por encima de cualquier consideración de orden político o
social. (MARTÍN DE AGAR, 1999, p. 931-939).

Como dito, a dignidade da pessoa humana também irradia deveres, que, quanto às
liberdades, traduzem em uma abstenção. Para o exercício da liberdade religiosa, é
indispensável que o Estado se posicione de forma a não impedir esta liberdade.

La laicidad o neutralidad del Estado en materia religiosa, que implica su separación,


más o menos explícita, de las instituciones religiosas, surge-ya lo vimos como
reacción frente a la intolerancia confesional que la historia lamenta y, en definitiva,
como mecanismo de tutela de la libertad religiosa para todos. El Estado no hace
suya ni se hace él de ninguna confesión, precisamente para jugar el papel que le
corresponde de promotor y garante de la libertad religiosa de todos sin diferencias,
interesándose por la religión en cuanto dimensión humana que exige libertad en la
intimidad y en sus manifestaciones prácticas, individuales y colectivas. (MARTÍN
DE AGAR, 2003, p. 103-112).

Possuindo o indivíduo o direito de professar ou não uma crença, estamos diante de


uma verdadeira liberdade. Pela doutrina clássica dos direitos fundamentais, a liberdade
religiosa pertence à 1ª geração (ou dimensão) dos direitos humanos, possuindo como matriz
axiológica o valor “liberdade”.
O constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho caracteriza a “liberdade” como
uma verdadeira defesa, por demandar uma ação negativa, ou seja, um “não fazer”. Destaca-se
a seguir:

As liberdades (liberdade de expressão, liberdade de informação, liberdade de


consciência, religião e culto, liberdade de criação cultural, liberdade de associação)
costumam ser caracterizadas como posições fundamentais subjectivas de natureza
defensiva. Neste sentido, as liberdade identificam-se com direitos a acções
negativas; seriam Abwehrrechte (direitos de defesa). Resulta logo do enunciado
constitucional que, distinguindo-se entre “direitos, liberdades e garantias”, tem que
haver algum traço específico, típico das posições subjectivas identificadas como
liberdades. Esse traço específico é o da alternativa de comportamentos, ou seja, a
possibilidade de escolha de um comportamento. Assim, como vimos, o direito à vida
é um direito (de natureza defensiva perante o Estado) mas não é uma liberdade (o
titular não pode escolher entre “viver e morrer”). A componente negativa das
liberdades constitui também uma dimensão fundamental (ex: ter ou não religião,
fazer ou não fazer parte de uma associação, escolher uma ou outra profissão).
(CANOTILHO, 2003).

Com efeito, a liberdade religiosa demanda por uma prestação negativa por parte do
Estado e da sociedade (Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais25). Nesse sentido, a
liberdade religiosa não pode ser imposta, condicionada ou suprimida pelo Poder Público, bem
como pelos membros da sociedade civil.

3.3.1 A liberdade religiosa na Constituição da República Federativa do Brasil

A liberdade religiosa está prevista no art. 5º, inciso VI da CRFB, que consigna:

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre


exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de
culto e a suas liturgias.

Apesar do inciso ser curto, trata-se de uma norma jurídica complexa, pois na redação
pode-se extrair três aspectos de liberdades fundamentais: a) liberdade de consciência; b)
liberdade de crença e, c) liberdade de culto.
Porém, cabe uma advertência: essas liberdades não podem ser observadas
isoladamente, ou seja, separadas uma das outras, pois cada uma é corolário lógico para
assegurar o exercício da outra.
A liberdade de consciência não se restringe somente à questão religiosa. Na verdade, o
exercício da liberdade de consciência na seara religiosa traduz a liberdade de crença. Assim,
percebe-se que aquela é mais ampla do que esta.
Em linhas gerais, a liberdade de consciência permite a faculdade do indivíduo de agir

25 Para não haver um prolongamento demasiado sobre o tema, remete-se o leitor à excelente obra jurídica do Professor
Daniel Sarmento em Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004.
de acordo com as suas convicções íntimas26. Nesse sentido, não deve o Estado intervir no foro
íntimo da consciência do indivíduo, porém, poderá haver limitações à essa liberdade por força
de normas estatais que visam garantir o interesse público primário e uma coexistência pacífica
entre os membros da sociedade.
O Professor José Afonso da Silva (SILVA, 2001, p. 251-253) ensina que a liberdade de
crença tem como eixo central a “liberdade de escolha”. Significa dizer, o indivíduo tem a
liberdade (direito) de aderir, não aderir, trocar de religião, bem como a liberdade de ser ateu
ou exprimir o agnosticismo.
A religião não se manifesta apenas no consciente da pessoa humana, como um
sentimento sagrado e puro. A religião impõe, necessariamente, a exteriorização desse
sentimento, seja através de um rito, culto, reunião, imagem, procissão ou tradição. Para tanto,
é indispensável a guarida da liberdade de culto, que se traduz no direito de exteriorizar em
casa ou em público o sentimento sagrado da religião27.
Por fim, a liberdade religiosa, apesar de ser um direito fundamental previsto na
Constituição Federal, não pode ser exercida sem qualquer limite ou controle. O próprio
Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de que não existem “direitos
absolutos”28.

3.3.2 A liberdade religiosa à luz da Declaração Dignitatis Humanae

Já foi abordado, no presente estudo, o enquadramento da laicidade estatal à luz da


doutrina da Santa Sé, em especial através das Constituições Lumen Gentium e Gaudium et
Spes. Sobre a liberdade religiosa, o Concílio Vaticano II produziu um documento específico,
denominado Declaração Dignitatis Humanae.
Por ocasião do Concílio Vaticano II, a Santa Sé declarou que o direito à liberdade
religiosa tem como fundamento a dignidade da pessoa humana, sendo indispensável o seu
reconhecimento pela sociedade civil e pelo Estado.
Antes do Concílio, o Papa João XXIII já havia abordado o direito de liberdade

26 É precisa a lição do Ministro Gilmar Ferreira Mendes: “A liberdade de consciência ou de pensamento tem a ver com a
faculdade de o indivíduo formular juízos e idéias sobre si mesmo e sobre o meio externo que o circunda. (MENDES,
COELHO & BRANCO, op. cit., p. 403)”.
27 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti, Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1 de 1969, 2ª ed.,
São Paulo, Editora RT, 1970.
28 A invocação da liberdade religiosa não afastou o ilícito penal do curandeirismo. A propósito, RHC 62240, RTJ, 114/1038,
Relator Francisco Rezek.
religiosa na Encíclica Pacem in terris29, que foi uma manifestação clara da Igreja sobre o
tema. Com efeito, o texto foi inovador, pois pela primeira vez a Igreja aborda a liberdade
religiosa como direito fundamental da pessoa humana. Vale dizer, a liberdade religiosa é
apresentada à luz do direito natural, permitindo, dessa maneira, um diálogo entre a Igreja e o
mundo sobre os direitos humanos.
Nesse sentido ensina o Prof. Martín de Agar:

In verità, anche qui, l’affermazione che la natura umana è fonte di diritti personali, la
cui esistenza perciò non dipende da una loro concessione o accettazione da parte del
potere, non è nuova nel magistero ecclesiastico. Esso ha persino anticipato gli
ordinamenti civili, specie per quanto riguarda i diritti degli operai e delle loro
famiglie. Eppure non si erano tratte fino in fondo le conseguenze di questa
affermazione della dignità della persona umana.
[…]
È la prima volta che la libertà religiosa viene proclamata da un testo magisteriale in
un senso e con una ampiezza pari a quella delle dichiarazioni secolari di diritti
fondamentali.
Questa è una delle novità più significative dell’enciclica, poiché la dichiarazione di
questo diritto non poteva essere fatta se non nella prospettiva di diritto naturale in
cui si situa l’intero documento. Prospettiva nella quale è possibile un dialogo tra la
Chiesa e il mondo circa i diritti dell’uomo. (MARTÍN DE AGAR, 2003)

O catedrático professor da Pontificia Università della Santa Croce identifica outro


marco da importância da Encíclica. Com a exteriorização do pensamento da Santa Sé sobre a
liberdade religiosa, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, a Igreja Católica
reafirmou o seu compromisso de luta pelo integral bem-estar do homem e promoção da
dignidade da pessoa humana30.
O constrangimento, pelo Estado ou sociedade civil, a professar determinado culto fere
a essência da dignidade da pessoa humana, pois ataca um dos seus aspectos mais importantes,
qual seja, a sua própria consciência.
Merece destaque a declaração do Concílio sobre o tema:

De harmonia com própria dignidade, todos os homens, que são pessoas dotadas de

29 11 de abril de 1963.
30 “Se la Chiesa è una voce autorevole dinnanzi all’umanità; se a suo nome la Santa Sede è presente nei fori internazionali
per richiamare attenzione sulle esigenze etiche della dignità di ogni uomo, mi sembra che in non piccola parte si debba al
modo di affrontare i problemi della convivenza inaugurato dalla Pacem in terris. Essa ha aperto una porta sino a allora
appena socchiusa, dato che la distinzione fra i cattolici e ‘gli altri’ incombeva ancora in modo determinante su ambiti
dove è invece la comune natura ad accostare tutte le persone. C’è un noi, un ognuno, un tutti, un ogni persona, che da
allora, come non prima, associa la Chiesa con tutti coloro che sono impegnati nella lotta per il rispetto e il benessere
integrale degli uomini. La Pacem in terris ha messo in pieno i cristiani nella battaglia per la libertà e la giustizia nel
rispetto dei diritti dell’uomo. Oggi la Chiesa è l’istituzione che si può considerare guida nella promozione della dignità
umana, sia per universalità e varietà della sua presenza attiva sia per la continuità e ragionevolezza della dottrina che è
alla base di questo impegno” (MARTÍN DE AGAR, 2003).
razão e de vontade livre e por isso mesmo com responsabilidade pessoal, são
levados pela própria natureza e também moralmente a procurar a verdade, antes de
mais a que diz respeito à religião. Têm também a obrigação de aderir à verdade
conhecida e de ordenar toda a sua vida segundo as suas exigências. Ora, os homens
não podem satisfazer a esta obrigação de modo conforme com a própria natureza, a
não ser que gozem ao mesmo tempo de liberdade psicológica e imunidade de coação
externa. O direito à liberdade religiosa não se funda, pois, na disposição subjectiva
da pessoa, mas na sua própria natureza. Por esta razão, o direito a esta imunidade
permanece ainda naqueles que não satisfazem à obrigação de buscar e aderir à
verdade; e, desde que se guarde a justa ordem pública, o seu exercício não pode ser
impedido.31

A liberdade religiosa é um meio necessário para a pessoa humana chegar a Deus, seja
através da religião católica ou outra confissão. À luz da Declaração, o homem tem a obrigação
de buscar a verdade e dirigir a sua vida de acordo com esta, mas sem ser coagido para isso. O
próprio texto conciliar ensina que a imunidade decorrente da liberdade religiosa permanece
com aqueles que não buscam ou querem um encontro com a Verdade.
Neste sentido, é possível concluir que a Declaração conciliar sobre a liberdade
religiosa acompanhou a mesma orientação de outros textos do Concílio Vaticano II, sendo
certo que na Dignitatis Humanae houve uma abordagem específica sobre o tema,
principalmente à luz da dignidade da pessoa humana.

4 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E O ACORDO BRASIL-SANTA SÉ:

RESPEITO À ORDEM CONSTITUCIONAL

4.1 A natureza jurídica do Acordo dentro do ordenamento jurídico interno

Para a incorporação do tratado internacional32 no ordenamento jurídico interno do


Estado brasileiro, é necessária a conjugação de “duas vontades”: a do Congresso Nacional33 e
a do Presidente da República34, sendo que este detém a competência para celebrar esse ato de

31 DIGNITATIS HUMANAE, 2.
32 Não estamos nos referindo aos tratados internacionais sobre direitos humanos, que possuem um trâmite próprio após o
advento da Emenda Constitucional nº45 (8 de dezembro de 2004). Com efeito, os tratados e convenções internacionais
que tratam sobre direitos humanos, ao serem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três
quintos dos votos dos respectivos membros, terão equivalência às emendas constitucionais.
33 Art. 49, inciso I e art. 84, inciso VIII, todos da CRFB.
34 Art. 84, incisos VII e VIII, CRFB.
direito internacional, enquanto que o primeiro detém a competência para aprová-lo35.
O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, ao relatar a ADI nº 1.480-
DF, apresentou uma verdadeira doutrina sobre o tema, como se observa a seguir:

É na Constituição da República - e não na controvérsia doutrinária que antagoniza


monistas e dualistas - que se deve buscar a solução normativa para a questão da
incorporação dos atos internacionais ao sistema de direito positivo interno brasileiro.
O exame da vigente Constituição Federal permite constatar que a execução dos
tratados internacionais e a sua incorporação à ordem jurídica interna decorrem, no
sistema adotado pelo Brasil, de um ato subjetivamente complexo, resultante da
conjugação de duas vontades homogêneas: a do Congresso Nacional, que resolve,
definitivamente, mediante decreto legislativo, sobre tratados, acordos ou atos
internacionais (CF, art. 49, I) e a do Presidente da República, que, além de poder
celebrar esses atos de direito internacional (CF, art. 84, VIII), também dispõe -
enquanto Chefe de Estado que é - da competência para promulgá-los mediante
decreto. O iter procedimental de incorporação dos tratados internacionais -
superadas as fases prévias da celebração da convenção internacional, de sua
aprovação congressional e da ratificação pelo Chefe de Estado - conclui-se com a
expedição, pelo Presidente da República, de decreto, de cuja edição derivam três
efeitos básicos que lhe são inerentes: (a) a promulgação do tratado internacional; (b)
a publicação oficial de seu texto; e (c) a executoriedade do ato internacional, que
passa, então, e somente então, a vincular e a obrigar no plano do direito positivo
interno. Precedentes.

Destarte, o Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil possui equivalência de lei


ordinária, devendo ser compatível, tanto no aspecto formal como material, com a Constituição
Federal de 1988. Isso porque a rigidez36 constitucional pressupõe um escalonamento
normativo dentro do ordenamento jurídico brasileiro. Nesse quadro, a Constituição está no
ápice desse ordenamento, servindo como pressuposto de validade para os demais atos
normativos – princípio da supremacia da Constituição. Caso não exista essa compatibilidade,
a norma infraconstitucional deverá ser retirada do ordenamento jurídico, por conta de sua
inconstitucionalidade.

4.2 Algumas críticas dos parlamentares do Congresso Nacional

Durante o trâmite do Projeto de Decreto Legislativo nº 1.736/09, perante a Câmara dos


Deputados, vários parlamentares levantaram a tese de que o texto do Acordo Brasil-Santa Sé

35 “Entretanto, é também necessário destacar que isso não significa que caiba ao parlamento brasileiro ratificar o tratado ou
dar a decisão final sobre a celebração ou não de um tratado pelo Estado brasileiro. Tal decisão definitiva tem lugar apenas
quando o Congresso rejeita o ato internacional. Tendo o tratado sido aprovado pelo Legislativo nacional, a decisão final
sobre a ratificação ou não do ato internacional cabe ao Presidente da República.” (PORTELA, 2010, p.123).
36 Art. 60, §2º, CRFB.
não poderia ser aprovado, sob pena de ser flagrantemente inconstitucional.
Para o estudo não se estender demasiadamente, serão selecionadas apenas algumas
críticas, em razão de sua fundamentação.
O Deputado federal André Zacharow, em seu voto-vista37 na Comissão de Relações
Exteriores e de Defesa Nacional, argumentou que a celebração do Acordo Brasil-Santa Sé
seria uma afronta ao art. 19, inciso I da Constituição Federal, ao passo que, para o nobre
parlamentar, o Acordo seria equivalente a uma “aliança”, logo, taxativamente
inconstitucional.
Próximo desse entendimento manifestou-se o Deputado federal Ivan Valente38, que
fundamenta a sua rejeição ao Acordo, dentre outras razões, por ter sido celebrado com um
“Estado Teocrático de natureza sui generis” e possuir a “natureza de acordo religioso”.
Ao que parece, um importante ponto de resistência sobre a celebração do Acordo é o
fato dele ser fruto de um um tratado internacional entre o Estado brasileiro e a Santa Sé.
Como já abordado no presente estudo, é indiscutível a personalidade jurídica de direito
externo da Santa Sé e, de fato, trata-se da única confissão religiosa a possuir essa posição no
plano internacional. Contudo, não se confunde o Acordo com a “aliança” mencionada no art.
19, inciso I do texto constitucional.
A “aliança” entre um ente federal e uma confissão religiosa que o constituinte vedou é
aquela que impede o próprio exercício da liberdade religiosa, impossibilitando, dessa maneira,
um regime livre e igualitário entre as confissões religiosas. Ademais, é importante destacar
que a missão espiritual da Igreja adere ao objetivo fundamental da República Federativa do
Brasil de promover o integral bem comum39, não violando, outrossim, a norma constitucional,
ao revés, torna-se um instrumento apto a auxiliar o Estado a perseguir o bem-estar social que
o constituinte de 1988 idealizou.
O Deputado federal Bispo Gê Tenuta40, em seu voto-vista41, defendeu a rejeição da
recepção do Acordo, contudo, apresentou uma ressalva se caso houvesse a aprovação do
Acordo, qual seja, de que se estendesse as garantias e prerrogativas do Acordo às demais
confissões religiosas. Com a devida venia, a ressalva não se faz necessária: a uma porque o
Acordo não criou nenhuma garantia ou prerrogativa nova; a duas, essa igualdade de

37 Voto em separado, VTS 1 CREDN, pelo Dep. Andre Zacharow, Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional,
07 de julho de 2009.
38 Voto em separado, VTS 4 CREDN, pelo Dep. Ivan Valente, Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional, 14
de julho de 2009.
39 Art. 3º, inciso IV, CRFB.
40 O Exmo. Sr. Dep. Gê Tenuta não é bispo da Igreja católica, mas sim da Igreja Renascer em Cristo.
41 Voto em separado, VTS 3 CREDN, pelo Dep. Bispo Gê Tenura, Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional,
14 de julho de 2009.
tratamento já ocorre por força da própria Constituição Federal, pois a neutralidade estatal
sobre a liberdade religiosa impõe uma isonomia entre as confissões religiosas.
Na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, a relatoria do voto acerca da
compatibilidade do Acordo com a ordem constitucional brasileira restou na arguta experiência
jurídica do Deputado federal Antônio Carlos Biscaia42. Em seu voto de dezessete páginas, o
relator abordou cada artigo do acordo, afastando minuciosamente as alegações de
inconstitucionalidade.
Merece destaque um argumento interessante do deputado relator43, qual seja, o Acordo
é um instrumento que visa reafirmar as relações jurídicas já existentes entre a Santa Sé e a
República Federativa do Brasil. Nessa linha, a Igreja católica (como qualquer outra confissão
religiosa) tem o direito de se manifestar sobre a formalização de seu padrão de convívio com
o Estado, que decorre exatamente da própria laicidade estatal e, portanto, não pode o Estado
impedir a formalização e sistematização das relações jurídicas com a Igreja, que, repisa-se não
inova em direitos e deveres e também não cria privilégios. Dito em outras palavras, o Acordo
estabelece uma “clareza jurídica sobre a sua existência e suas relações com a sociedade
brasileira”44.

4.3 Perfeita simetria entre o Acordo e a Constituição da República

Como já exposto, o simples fato da República Federativa do Brasil ser um Estado


laico não importa, por si só, em vedação à celebração de tratados internacionais com a Santa
Sé. Isso ocorre porque a Santa Sé é pessoa jurídica de direito público externo, como já
analisado.
Avançando sobre o tema, importante destacar que o Acordo Brasil-Santa Sé não
estabelece culto religioso, não subvenciona a Igreja Católica, não cria laços de dependência
com esta, bem como não embaraça o seu funcionamento e de nenhum outro culto, logo, não
há qualquer violação ao art. 19, inciso I da Constituição Cidadã.
42 Parecer proferido em Plenário, na Sessão do dia 26/08/2009), pelo Relator, Dep. Antonio Carlos Biscaia, pela Comissão
de Constituição e Justiça e de Cidadania, que concluiu pela constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa do
Acordo Brasil-Santa Sé.
43 “Colocando em outras palavras, como já afirmarmos anteriormente, qualquer confissão religiosa tem o direito de
manifestar-se pela formalização de padrões de convivência dentro dos estritos limites do ordenamento jurídico pátrio,
inclusive para facilitar a fiscalização e o acompanhamento de suas atividades no país. A manifestação expressa no Acordo
sob comento deve ser acolhida pelo Estado, justamente porque este é laico e, nessa condição, não pode favorecer credo de
qualquer natureza, mas também não pode reprimir a sua legítima atuação”. Recomendamos a leitura do voto do Relator
Deputado federal Antônio Carlos Biscaia, disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?
id=426554>. Acesso em: 12 de abril de 2010.
44 Cardeal D. Odilio Pedro Scherer, Arcebispo de São Paulo, em carta enviada ao Dep. Marco Aurélio Ubiali, por ocasião da
219ª Sessão da Câmara dos Deputados, em 26 de agosto de 2009.
Também não merece prosperar o argumento de que a Igreja Católica estaria sendo
“privilegiada” pelo Acordo Brasil-Santa Sé, tendo em vista que este apenas organiza direitos e
deveres já previstos no ordenamento jurídico pátrio, aliás, idênticos a todas as confissões
religiosas.
No preâmbulo45 do Acordo, verifica-se que o direito fundamental de liberdade
religiosa serve como norteador às Altas Partes Contratantes, que reafirmam “a adesão ao
princípio, internacionalmente reconhecido, de liberdade religiosa”.

5 CONCLUSÃO

Diante de todo o exposto, o direito de liberdade religiosa decorre da própria liberdade


de consciência, sendo o princípio da dignidade da pessoa humana a fonte axiológica destas
liberdades. Tanto a doutrina da Igreja como a Constituição Federal reconhecem o caráter
fundamental desse direito, inerente à pessoa humana, sendo tutelado pelos dois ordenamentos,
em cada um de seus planos – princípio do dualismo cristão.
A laicidade estatal não serve como obstáculo à prática religiosa, na verdade, é um
instrumento que permite o exercício da liberdade religiosa pelos cidadãos do Estado. Ao
contrário do que muitos pensam, a doutrina do Concílio Vaticano II não abomina o Estado
laico, apenas aponta que se deve adotar uma postura de neutralidade, ao invés de opressão e
repúdio à fé. É o que os documentos da Santa Sé chamam de “sã laicidade”. Ademais, a fé não
se demostra apenas na consciência da pessoa, mas também apresenta sinais exteriores de sua
manifestação. Significa dizer, não pode o Estado interferir nas estruturas da organização
religiosa, bem como nas atividades de culto dos fiéis, salvo para preservar a ordem pública.
O Acordo Brasil-Santa Sé buscou realçar as relações “já existentes” entre as partes.
Vale dizer, fica claro que o Acordo não criou novos direitos ou deveres à Igreja Católica, bem
como não a colocou em um “trono” no ordenamento jurídico brasileiro, em detrimento das
demais confissões religiosas. Apenas, repisa-se, sintetiza as relações jurídicas da Igreja-Estado
em um único documento, que servirá de fonte normativa à ambas as partes.

45 “[...] Baseando-se, a Santa Sé, nos documentos do Concílio Vaticano II e no Código de Direito Canônico, e a República
Federativa do Brasil, no seu ordenamento jurídico; Reafirmando a adesão ao princípio, internacionalmente reconhecido, de
liberdade religiosa; Reconhecendo que a Constituição brasileira garante o livre exercício dos cultos religiosos; Animados da
intenção de fortalecer e incentivar as mútuas relações já existentes”.
O preâmbulo do Acordo ressalta que a sua celebração ocorre com a devida
observância ao princípio de liberdade religiosa e livre exercício dos cultos. Ainda, cumpre
apontar que dos vinte artigos do Acordo, há manifestação expressa submetendo o seu texto à
compatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro46, ainda, outros artigos são enviados à
tutela de normas internacionais das quais o Estado brasileiro já é signatário47.
Dessa forma, o texto do Acordo prevê “mecanismos de remissão”, que remete a sua
matéria à observância das normas do ordenamento jurídico interno, consequentemente,
permitindo o seu acolhimento integral conforme os padrões jurídicos do Estado brasileiro.

46 Arts. 2º, 3º, 5º, 6º, 10 ao 12 e 15 ao 17, todos do Acordo Brasil-Santa Sé.
47 Art. 1º, que prevê a observância da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, de 18 de abril de 1961, sobre as
relações diplomáticas entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé.
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