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RESUMO
A República Federativa do Brasil celebrou com a Santa Sé, em 13 de novembro de 2008, o
chamado Acordo Brasil-Santa Sé, que teve por escopo realçar as relações jurídicas já
existentes entre as partes. Esse tratado internacional foi objeto de críticas durante o seu exame
na Câmara dos Deputados, em especial porque se estaria violando o direito fundamental à
liberdade religiosa e a laicidade estatal, previstos no art. 5º, inciso VI e art. 19, inciso I, todos
da CRFB. O presente estudo busca enfrentar essas críticas, apontando como a liberdade
religiosa é abordada tanto pelo Estado brasileiro e pela Santa Sé. Por fim, o estudo aborda a
compatibilidade do Acordo Brasil-Santa Sé com a liberdade religiosa prevista na ordem
constitucional brasileira.
SANTA SÉ
1 O Professor Francisco Rezek conceitua tratado internacional como “acordo formal, concluído entre sujeitos de direito
internacional público, e destinado a produzir efeitos jurídicos”. (REZEK, 1984, p. 21)
2 Exposição de Motivos nº 471, de 12 de dezembro de 2008, do Ministro de Estado das Relações Exteriores.
celebrado em 13 de novembro de 2008, na Cidade do Vaticano, assinado, respectivamente,
pelo Ministro das Relações Exteriores Celso Amorim e o Arcebispo Dominique Mamberti,
Secretário para Relações com os Estados.
É certo que a Santa Sé atua no cenário político internacional há séculos, por conta do
seu poder espiritual e da influência do Papado sobre as questões internacionais que
envolviam, principalmente, os Estados Pontifícios (PORTELA, 2010, p. 144).
Em efeito, trata-se da única confissão religiosa a ter personalidade jurídica de Direito
Internacional Público. Isso se deve ao fato da Santa Sé estar dotada de uma organização
central, unitária, hierárquica e, principalmente, soberana (MARTÍN, 1998, p. 257). Não se
trata de privilégio (nem de discriminação3 com os demais cultos religiosos), mas sim de uma
situação ímpar, pois nenhuma outra confissão religiosa possui as tradições históricas da Santa
Sé ou a sua atuação no campo do Direito Internacional Público.
Com a celebração do Tratado de Latrão entre a República Italiana e a Santa Sé, esta
passou a ter o reconhecimento expresso de sua personalidade jurídica internacional, passando
o Papa a ser considerado como Chefe de Estado da Cidade-estado do Vaticano 4, além de
Suprema Autoridade da Igreja universal5.
Pelo exposto, é a Santa Sé que possui personalidade jurídica de direito público
externo, logo, apta a celebrar tratados internacionais com um Estado. O Estado-cidade do
Vaticano é o território onde a Santa Sé exerce a sua soberania.
3 “La discriminación es uma diferencia “injustificada”, y em este caso [Santa Sé] la diferencia está sobradamente
justificada. Porque si ninguna outra institución religiosa há pretendido un estatuto similar, no es culpa de la Santa Sede; si
la autocomprensión, la idea que tienen de sí mismas las otras religiones, no les mueve a solicitar este status, la de lá
Iglesia católica sí” (SOLER, 1996, p. 6).
4 “Il Trattato del 1929 (legge n. 810), per la creazione dello Stato Città del Vaticano, riconobbe alla Santa Sede ‘la piena
proprietà e la esclusiva ed assoluta potestà e giurisdizione sovrana sul Vaticano’ [...]” (FINOCCHIARO, 1988, p. 174).
Complementando o assunto, o Prof. Carlos García Martín ensina que o Estado da Cidade do Vaticano tem uma relação
“instrumental” com a Santa Sé, permitindo a esta exercer a sua soberania em um território e cumprir com a sua finalidade
espiritual e moral: “La Santa Sede no es un Estado, es el órgano del gobierno universal de uma confesión religiosa: La
Iglesia Católica. […] Mediante el Estado de la Ciudad del Vaticano se pretenden cubrir los servicios técnicos básicos de
un Estado de reducidas dimensiones. La Santa Sede, em el ejercicio del gobierno universal de la Iglesia católica, mira a
uma finalidad de orden espiritual y moral” (MARTÍN, 1998, p. 263).
5 Esta soberania também está prevista no cânon 331, do Código de Direito Canônico.
missão apostólica da Igreja; b) imunidades e isenções tributárias; c) proteção, conservação e
divulgação e acesso ao patrimônio histórico-cultural da Igreja no Brasil; d) proteção dos
lugares de culto da Igreja Católica e de suas liturgias; e) assistência religiosa aos enfermos e
presos; f) reconhecimento recíproco de diplomas de graduação e pós-graduação, com
observância do direito interno; g) criação de institutos de ensino e facultatividade do ensino
religioso; h) dar efeitos civis aos matrimônios celebrados à luz do ordenamento canônico; i)
garantir o segredo do ofício sacerdotal; j) inserção da Igreja nos instrumentos de planejamento
urbano; m) não-aplicabilidade da relação jurídica de emprego entre o clérigo e a Igreja, salvo
em caso de desvirtuamento da última e, por fim, n) solicitação à autoridade brasileira de vistos
diplomáticos para fiéis estrangeiros em atividade pastoral.
Como pode ser observado, os assuntos tratados no Estatuto já estão previstos no
ordenamento brasileiro. Dessa forma, com a celebração do Acordo, passam a constar
formalmente como fonte de direitos de ambas as partes (LOMBARDIA, 2008, p. 73).
6 Para mais informações, confira o sítio da Divisão de Atos Internacionais do Ministério de Relações Exteriores.
Disponível em: <http://www2.mre.gov.br/dai/bisantase.htm>. Acesso em 28 de março de 2010.
7 Somente a título de nota, vale lembrar que o Estado brasileiro já foi confessional, conforme expressou o art. 5º da
Constituição brasileira de 1824, que constituiu a religião da Igreja Católica Apostólica Romana como estatal.
8 Merece destaque o apontamento do Professor Fernando Capez: “Laico não designa, portanto, algo não religioso, nem
contrário à fé, mas apenas aqueles que não exercitam como vocação, o ministério religioso. Estado laico não é Estado
sem fé, ateu ou que se antepõe a símbolos de convicções religiosas, mas tão somente Estado não confessional, sem
religião oficial ou obrigatória” (CAPEZ, Fernando. O Estado Laico e a Retirada de Símbolos Religiosos de Repartições
Públicas. Disponível em: <http://jusvi.com/artigos/41668>. Acesso em 28 de março de 2010.
Decreto 119-A, de 17 de janeiro de 18909. Significa dizer, não possui religião oficial ou
obrigatória, mas sim a obrigatoriedade de se manter neutro em relação às confissões
religiosas. Contudo, a palavra “laico” não corresponde a repúdio ou oposição à religião, mas
sim que, não havendo confissão oficial como política de Estado, as religiões devem coexistir
pacificamente com aquele, que deve se abster de molestá-las, coibi-las ou privilegiar uma em
detrimento das outras10. Mas isso não afasta a possibilidade do Estado atuar a fim de preservar
a ordem pública (como, por exemplo, culto com alto nível sonoro11).
O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Ferreira Mendes, ressalta que os
acordos que a Santa Sé celebra com Estados não são uma violação à laicidade destes,
conforme a doutrina a seguir:
A laicidade do Estado não significa, por certo, inimizade com a fé. Não impede a
colaboração com confissões religiosas, para o interesse público (CF, art. 19, I). A
sistemática constitucional acolhe, mesmo, expressamente, ação conjunta dos
Poderes Públicos no âmbito de cultos religiosos, como é o caso da extensão de
efeitos civis ao casamento religioso. Nesse sentido, não há embaraço – ao
contrário, parecem bem-vindas, como ocorre em tantos outros países – a
iniciativa como a celebração de concordata com a Santa Sé, para a fixação de
termos de relacionamento entre tal pessoa de direito internacional e o país,
tendo em vista a missão religiosa da Igreja de propiciar o bem integral do
indivíduo, coincidente com o objetivo da República de “promover o bem de
todos” (art. 3º, IV, da CF). Seria erro grosseiro confundir acordos dessa ordem, em
que se garantem meios eficazes para o desempenho da missão religiosa da Igreja,
com a aliança vedada pelo art. 19, I, da Constituição. A aliança que o constituinte
repudia é aquela que inviabiliza a própria liberdade de crença, assegurada no art. 5º,
VI, da Carta, por impedir que outras confissões religiosas atuem livremente no País.
Isto posto, verifica-se que o Estado brasileiro é laico, ou seja, exclui a existência de
uma religião estatal e adota uma postura de neutralidade em relação às confissões religiosas.
Com efeito, o juízo de valor sobre uma confissão religiosa é “patrimônio exclusivo”
(DIÉGUEZ, 2006, p. 383) dos cidadãos, não podendo o Estado assenhorar a liberdade de
consciência e religiosa dos membros da sociedade.
12 No mesmo sentido: “A liberdade religiosa consiste na liberdade para professar fé em Deus. Por isso, não cabe arguir a
liberdade religiosa para impedir a demonstração da fé de outrem ou em certos lugares, ainda que públicos. O Estado, que
não professa o ateísmo, pode conviver com símbolos os quais não somente correspondem a valores que informam a
sua história cultural, como remetem a bens encarecidos por parcela expressiva da sua população – por isso,
também, não é dado proibir a exibição de crucifixos ou de imagens sagradas em lugares públicos” (MENDES,
COELHO & BRANCO, op. cit., p. 410) (grifo nosso).
13 CNJ, Pedido de Providências nº 1334, 14ª Sessão Extraordinária, Relator Conselheiro Paulo Lôbo, 6 de junho de 2007.
A doutrina da Santa Sé sobre o Estado laico é um tema extremamente rico em detalhes
históricos, teológicos e jurídicos. Assim, o presente estudo apenas irá pincelar os principais
tópicos acerca deste tema, utilizando como norte a imprescindível obra do canonista e
professor Pedro Lombardía, catedrático da Universidade Complutense de Madrid.
Ao tratar das relações entre Igreja-Estado, surge à vista o chamado “dualismo cristão”,
que, em linhas gerais, é a distinção entre o poder temporal (exercido pelo Estado) e o poder
religioso (exercido pela Igreja). Por esse dualismo, cabe ao Estado exercer o seu potestad
sobre a ordem natural, enquanto à Igreja, sobre a ordem sobrenatural (espiritual).
Sob a perspectiva da Igreja, o seu poder sobre a ordem sobrenatural se dá pelo seu
próprio mistério, fundamentação e natureza divina14.
O Papa João XXIII convocou, em 25 de dezembro de 1961, o Concílio Vaticano II
(XXI Concílio Ecumênico da Igreja Católica), que, em dois documentos, deixou claro a
posição da Igreja sobre o princípio do dualismo.
O primeiro documento foi a Constituição15 dogmática Lumen Gentium, que em seu
número 36 expõe:
Sob este ponto de vista dogmático, o dualismo se afirma com a concepção de que os
fiéis são titulares de direitos e deveres em duas sociedades juridicamente distintas, quais
sejam: Igreja e Estado. Isso não significa que a pessoa humana, sendo cristão e cidadão,
assim, titular de direitos e deveres em dois ordenamentos jurídicos distintos, será objeto de
14 Na ótica de São Tomás de Aquino, a acepção do direito natural é fundado no direito divino, pois como a natureza é obra
de Deus, logo, decorrendo da promulgação divina o que foi estabelecido pelo direito natural. O direito divino positivo
não se confunde com o direito divino natural. Pois o primeiro é conhecido exclusivamente pela Revelação, sendo do
Magistério da Igreja o encargo de interpretá-la autenticamente. O segundo são coisas naturalmente justas e inerentes à
pessoa humana, que podem ou não ser do conhecimento do homem. Para um maior aprofundamento, recomenda-se o
estudo da obra Suma Teológica, de São Tomás de Aquino.
15 O termo “constituição” empregado pelo Concílio Vaticano II não se confunde com uma “Constituição” de um Estado, ou
seja, lei fundamental que organiza os Poderes e estruturas do Estado.
conflito. O Concílio orientou os fiéis a conciliar os direitos de que são titulares em ambas as
sociedades16.
Outro documento que evidencia o princípio do dualismo é a Constituição Gaudium et
Spes, também no número 36:
Para que a cooperação responsável dos cidadãos leve a felizes resultados na vida
pública de todos os dias, é necessário que haja uma ordem jurídica positiva, que
estabeleça convenientemente divisão das funções e dos orgãos da autoridade pública
e ao mesmo tempo protecção do direito eficaz e plenamente independente de quem
quer que seja. (n. 75)
16 “[…] se devem guiar em todas as coisas temporais pela consciência cristã”. Lumen gentium, n. 36.
Contudo, isso não impossibilita a Igreja de se pronunciar sobre as questões sociais que
interessam à sociedade17 a fim de estipular a conquista de um bem-estar social pleno.
Significa dizer, à luz dos documentos do Concílio Vaticano II, bem como da Encíclica Deus
Caritas Est18, a condução política do Estado não pode (e nem deve) ter interferência direta da
Igreja, contudo, é missão desta apresentar sua doutrina social para servir como auxílio à
perseguição do bem-estar social.
Pelo exposto acima, a Igreja não busca se projetar diretamente nas questões políticas e
de governo do Estado, mas tão somente às questões da ordem espiritual19. Ademais, merece
nota que o Concílio Vaticano II, na Declaração Dignitatis Humanae, defende o direito
fundamental à liberdade religiosa mesmo no caso em que o Estado seja confessional, ou seja,
que tenha uma determinada confissão como religião oficial20.
Importante apresentar as conclusões do professor Lombardía sobre os textos
apresentados:
A Igreja Católica faz a advertência de que o laicismo não pode ser utilizado para
afastar Deus de todos os âmbitos da sociedade. O Estado laico não deve calar o
17 A título de exemplo, o documento “Eleições 2006: Orientações da CNBB”, que apresenta sugestões de projetos nacionais
e a exigência de ética nas relações políticas.
18 “Deve inserir-se nela pela via da argumentação racional e deve despertar as forças espirituais, sem as quais a justiça, que
sempre requer renúncias também, não poderá afirmar-se nem prosperar. A sociedade justa não pode ser obra da Igreja;
deve ser realizada pela política. Mas toca à Igreja, e profundamente, o empenhar-se pela justiça trabalhando para a
abertura da inteligência e da vontade às exigências do bem” (Encíclica Deus Caritas Est, 28).
19 “La misión de la Iglesia es exclusivamente religiosa, sobrenatural; no pretende un dominio de carácter político,
económico o social[...]” (MARTÍN DE AGAR, 1986).
20 “Se, em razão das circunstâncias particulares dos diferentes povos, se atribui a determinado grupo religioso um
reconhecimento civil especial na ordem jurídica, é necessário que, ao mesmo tempo, se reconheça e assegure a todos os
cidadãos e comunidades religiosas o direito à liberdade em matéria religiosa” (DH, 6).
pronunciamento da comunidade cristã ou de qualquer outra crença, sobre os problemas
sociais, culturais e os costumes da sociedade, a defesa da dignidade da pessoa humana e o
destino político do Estado.
É a “sã laicidade”, que deve ser abraçada pelo Estado, ao invés da impressão de que
laicidade significa “inimigo da fé”, permitindo ao Estado pautar sua política na perseguição e
supressão da liberdade religiosa.
O Papa Bento XVI, em discurso proferido aos participantes do LVI Congresso
Nacional da União dos Juristas Católicos Italianos em 12 de dezembro de 2006, recordou que:
[...] a Igreja não pode indicar que ordenamento político e social deve ser preferido,
mas é o povo que deve decidir livremente os melhores e mais adequados modos de
organizar a vida política. Qualquer intervenção direta da Igreja neste campo seria
uma ingerência indevida.21
Como dito, a dignidade da pessoa humana também irradia deveres, que, quanto às
liberdades, traduzem em uma abstenção. Para o exercício da liberdade religiosa, é
indispensável que o Estado se posicione de forma a não impedir esta liberdade.
Com efeito, a liberdade religiosa demanda por uma prestação negativa por parte do
Estado e da sociedade (Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais25). Nesse sentido, a
liberdade religiosa não pode ser imposta, condicionada ou suprimida pelo Poder Público, bem
como pelos membros da sociedade civil.
A liberdade religiosa está prevista no art. 5º, inciso VI da CRFB, que consigna:
Apesar do inciso ser curto, trata-se de uma norma jurídica complexa, pois na redação
pode-se extrair três aspectos de liberdades fundamentais: a) liberdade de consciência; b)
liberdade de crença e, c) liberdade de culto.
Porém, cabe uma advertência: essas liberdades não podem ser observadas
isoladamente, ou seja, separadas uma das outras, pois cada uma é corolário lógico para
assegurar o exercício da outra.
A liberdade de consciência não se restringe somente à questão religiosa. Na verdade, o
exercício da liberdade de consciência na seara religiosa traduz a liberdade de crença. Assim,
percebe-se que aquela é mais ampla do que esta.
Em linhas gerais, a liberdade de consciência permite a faculdade do indivíduo de agir
25 Para não haver um prolongamento demasiado sobre o tema, remete-se o leitor à excelente obra jurídica do Professor
Daniel Sarmento em Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004.
de acordo com as suas convicções íntimas26. Nesse sentido, não deve o Estado intervir no foro
íntimo da consciência do indivíduo, porém, poderá haver limitações à essa liberdade por força
de normas estatais que visam garantir o interesse público primário e uma coexistência pacífica
entre os membros da sociedade.
O Professor José Afonso da Silva (SILVA, 2001, p. 251-253) ensina que a liberdade de
crença tem como eixo central a “liberdade de escolha”. Significa dizer, o indivíduo tem a
liberdade (direito) de aderir, não aderir, trocar de religião, bem como a liberdade de ser ateu
ou exprimir o agnosticismo.
A religião não se manifesta apenas no consciente da pessoa humana, como um
sentimento sagrado e puro. A religião impõe, necessariamente, a exteriorização desse
sentimento, seja através de um rito, culto, reunião, imagem, procissão ou tradição. Para tanto,
é indispensável a guarida da liberdade de culto, que se traduz no direito de exteriorizar em
casa ou em público o sentimento sagrado da religião27.
Por fim, a liberdade religiosa, apesar de ser um direito fundamental previsto na
Constituição Federal, não pode ser exercida sem qualquer limite ou controle. O próprio
Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de que não existem “direitos
absolutos”28.
26 É precisa a lição do Ministro Gilmar Ferreira Mendes: “A liberdade de consciência ou de pensamento tem a ver com a
faculdade de o indivíduo formular juízos e idéias sobre si mesmo e sobre o meio externo que o circunda. (MENDES,
COELHO & BRANCO, op. cit., p. 403)”.
27 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti, Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1 de 1969, 2ª ed.,
São Paulo, Editora RT, 1970.
28 A invocação da liberdade religiosa não afastou o ilícito penal do curandeirismo. A propósito, RHC 62240, RTJ, 114/1038,
Relator Francisco Rezek.
religiosa na Encíclica Pacem in terris29, que foi uma manifestação clara da Igreja sobre o
tema. Com efeito, o texto foi inovador, pois pela primeira vez a Igreja aborda a liberdade
religiosa como direito fundamental da pessoa humana. Vale dizer, a liberdade religiosa é
apresentada à luz do direito natural, permitindo, dessa maneira, um diálogo entre a Igreja e o
mundo sobre os direitos humanos.
Nesse sentido ensina o Prof. Martín de Agar:
In verità, anche qui, l’affermazione che la natura umana è fonte di diritti personali, la
cui esistenza perciò non dipende da una loro concessione o accettazione da parte del
potere, non è nuova nel magistero ecclesiastico. Esso ha persino anticipato gli
ordinamenti civili, specie per quanto riguarda i diritti degli operai e delle loro
famiglie. Eppure non si erano tratte fino in fondo le conseguenze di questa
affermazione della dignità della persona umana.
[…]
È la prima volta che la libertà religiosa viene proclamata da un testo magisteriale in
un senso e con una ampiezza pari a quella delle dichiarazioni secolari di diritti
fondamentali.
Questa è una delle novità più significative dell’enciclica, poiché la dichiarazione di
questo diritto non poteva essere fatta se non nella prospettiva di diritto naturale in
cui si situa l’intero documento. Prospettiva nella quale è possibile un dialogo tra la
Chiesa e il mondo circa i diritti dell’uomo. (MARTÍN DE AGAR, 2003)
De harmonia com própria dignidade, todos os homens, que são pessoas dotadas de
29 11 de abril de 1963.
30 “Se la Chiesa è una voce autorevole dinnanzi all’umanità; se a suo nome la Santa Sede è presente nei fori internazionali
per richiamare attenzione sulle esigenze etiche della dignità di ogni uomo, mi sembra che in non piccola parte si debba al
modo di affrontare i problemi della convivenza inaugurato dalla Pacem in terris. Essa ha aperto una porta sino a allora
appena socchiusa, dato che la distinzione fra i cattolici e ‘gli altri’ incombeva ancora in modo determinante su ambiti
dove è invece la comune natura ad accostare tutte le persone. C’è un noi, un ognuno, un tutti, un ogni persona, che da
allora, come non prima, associa la Chiesa con tutti coloro che sono impegnati nella lotta per il rispetto e il benessere
integrale degli uomini. La Pacem in terris ha messo in pieno i cristiani nella battaglia per la libertà e la giustizia nel
rispetto dei diritti dell’uomo. Oggi la Chiesa è l’istituzione che si può considerare guida nella promozione della dignità
umana, sia per universalità e varietà della sua presenza attiva sia per la continuità e ragionevolezza della dottrina che è
alla base di questo impegno” (MARTÍN DE AGAR, 2003).
razão e de vontade livre e por isso mesmo com responsabilidade pessoal, são
levados pela própria natureza e também moralmente a procurar a verdade, antes de
mais a que diz respeito à religião. Têm também a obrigação de aderir à verdade
conhecida e de ordenar toda a sua vida segundo as suas exigências. Ora, os homens
não podem satisfazer a esta obrigação de modo conforme com a própria natureza, a
não ser que gozem ao mesmo tempo de liberdade psicológica e imunidade de coação
externa. O direito à liberdade religiosa não se funda, pois, na disposição subjectiva
da pessoa, mas na sua própria natureza. Por esta razão, o direito a esta imunidade
permanece ainda naqueles que não satisfazem à obrigação de buscar e aderir à
verdade; e, desde que se guarde a justa ordem pública, o seu exercício não pode ser
impedido.31
A liberdade religiosa é um meio necessário para a pessoa humana chegar a Deus, seja
através da religião católica ou outra confissão. À luz da Declaração, o homem tem a obrigação
de buscar a verdade e dirigir a sua vida de acordo com esta, mas sem ser coagido para isso. O
próprio texto conciliar ensina que a imunidade decorrente da liberdade religiosa permanece
com aqueles que não buscam ou querem um encontro com a Verdade.
Neste sentido, é possível concluir que a Declaração conciliar sobre a liberdade
religiosa acompanhou a mesma orientação de outros textos do Concílio Vaticano II, sendo
certo que na Dignitatis Humanae houve uma abordagem específica sobre o tema,
principalmente à luz da dignidade da pessoa humana.
31 DIGNITATIS HUMANAE, 2.
32 Não estamos nos referindo aos tratados internacionais sobre direitos humanos, que possuem um trâmite próprio após o
advento da Emenda Constitucional nº45 (8 de dezembro de 2004). Com efeito, os tratados e convenções internacionais
que tratam sobre direitos humanos, ao serem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três
quintos dos votos dos respectivos membros, terão equivalência às emendas constitucionais.
33 Art. 49, inciso I e art. 84, inciso VIII, todos da CRFB.
34 Art. 84, incisos VII e VIII, CRFB.
direito internacional, enquanto que o primeiro detém a competência para aprová-lo35.
O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, ao relatar a ADI nº 1.480-
DF, apresentou uma verdadeira doutrina sobre o tema, como se observa a seguir:
35 “Entretanto, é também necessário destacar que isso não significa que caiba ao parlamento brasileiro ratificar o tratado ou
dar a decisão final sobre a celebração ou não de um tratado pelo Estado brasileiro. Tal decisão definitiva tem lugar apenas
quando o Congresso rejeita o ato internacional. Tendo o tratado sido aprovado pelo Legislativo nacional, a decisão final
sobre a ratificação ou não do ato internacional cabe ao Presidente da República.” (PORTELA, 2010, p.123).
36 Art. 60, §2º, CRFB.
não poderia ser aprovado, sob pena de ser flagrantemente inconstitucional.
Para o estudo não se estender demasiadamente, serão selecionadas apenas algumas
críticas, em razão de sua fundamentação.
O Deputado federal André Zacharow, em seu voto-vista37 na Comissão de Relações
Exteriores e de Defesa Nacional, argumentou que a celebração do Acordo Brasil-Santa Sé
seria uma afronta ao art. 19, inciso I da Constituição Federal, ao passo que, para o nobre
parlamentar, o Acordo seria equivalente a uma “aliança”, logo, taxativamente
inconstitucional.
Próximo desse entendimento manifestou-se o Deputado federal Ivan Valente38, que
fundamenta a sua rejeição ao Acordo, dentre outras razões, por ter sido celebrado com um
“Estado Teocrático de natureza sui generis” e possuir a “natureza de acordo religioso”.
Ao que parece, um importante ponto de resistência sobre a celebração do Acordo é o
fato dele ser fruto de um um tratado internacional entre o Estado brasileiro e a Santa Sé.
Como já abordado no presente estudo, é indiscutível a personalidade jurídica de direito
externo da Santa Sé e, de fato, trata-se da única confissão religiosa a possuir essa posição no
plano internacional. Contudo, não se confunde o Acordo com a “aliança” mencionada no art.
19, inciso I do texto constitucional.
A “aliança” entre um ente federal e uma confissão religiosa que o constituinte vedou é
aquela que impede o próprio exercício da liberdade religiosa, impossibilitando, dessa maneira,
um regime livre e igualitário entre as confissões religiosas. Ademais, é importante destacar
que a missão espiritual da Igreja adere ao objetivo fundamental da República Federativa do
Brasil de promover o integral bem comum39, não violando, outrossim, a norma constitucional,
ao revés, torna-se um instrumento apto a auxiliar o Estado a perseguir o bem-estar social que
o constituinte de 1988 idealizou.
O Deputado federal Bispo Gê Tenuta40, em seu voto-vista41, defendeu a rejeição da
recepção do Acordo, contudo, apresentou uma ressalva se caso houvesse a aprovação do
Acordo, qual seja, de que se estendesse as garantias e prerrogativas do Acordo às demais
confissões religiosas. Com a devida venia, a ressalva não se faz necessária: a uma porque o
Acordo não criou nenhuma garantia ou prerrogativa nova; a duas, essa igualdade de
37 Voto em separado, VTS 1 CREDN, pelo Dep. Andre Zacharow, Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional,
07 de julho de 2009.
38 Voto em separado, VTS 4 CREDN, pelo Dep. Ivan Valente, Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional, 14
de julho de 2009.
39 Art. 3º, inciso IV, CRFB.
40 O Exmo. Sr. Dep. Gê Tenuta não é bispo da Igreja católica, mas sim da Igreja Renascer em Cristo.
41 Voto em separado, VTS 3 CREDN, pelo Dep. Bispo Gê Tenura, Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional,
14 de julho de 2009.
tratamento já ocorre por força da própria Constituição Federal, pois a neutralidade estatal
sobre a liberdade religiosa impõe uma isonomia entre as confissões religiosas.
Na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, a relatoria do voto acerca da
compatibilidade do Acordo com a ordem constitucional brasileira restou na arguta experiência
jurídica do Deputado federal Antônio Carlos Biscaia42. Em seu voto de dezessete páginas, o
relator abordou cada artigo do acordo, afastando minuciosamente as alegações de
inconstitucionalidade.
Merece destaque um argumento interessante do deputado relator43, qual seja, o Acordo
é um instrumento que visa reafirmar as relações jurídicas já existentes entre a Santa Sé e a
República Federativa do Brasil. Nessa linha, a Igreja católica (como qualquer outra confissão
religiosa) tem o direito de se manifestar sobre a formalização de seu padrão de convívio com
o Estado, que decorre exatamente da própria laicidade estatal e, portanto, não pode o Estado
impedir a formalização e sistematização das relações jurídicas com a Igreja, que, repisa-se não
inova em direitos e deveres e também não cria privilégios. Dito em outras palavras, o Acordo
estabelece uma “clareza jurídica sobre a sua existência e suas relações com a sociedade
brasileira”44.
5 CONCLUSÃO
45 “[...] Baseando-se, a Santa Sé, nos documentos do Concílio Vaticano II e no Código de Direito Canônico, e a República
Federativa do Brasil, no seu ordenamento jurídico; Reafirmando a adesão ao princípio, internacionalmente reconhecido, de
liberdade religiosa; Reconhecendo que a Constituição brasileira garante o livre exercício dos cultos religiosos; Animados da
intenção de fortalecer e incentivar as mútuas relações já existentes”.
O preâmbulo do Acordo ressalta que a sua celebração ocorre com a devida
observância ao princípio de liberdade religiosa e livre exercício dos cultos. Ainda, cumpre
apontar que dos vinte artigos do Acordo, há manifestação expressa submetendo o seu texto à
compatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro46, ainda, outros artigos são enviados à
tutela de normas internacionais das quais o Estado brasileiro já é signatário47.
Dessa forma, o texto do Acordo prevê “mecanismos de remissão”, que remete a sua
matéria à observância das normas do ordenamento jurídico interno, consequentemente,
permitindo o seu acolhimento integral conforme os padrões jurídicos do Estado brasileiro.
46 Arts. 2º, 3º, 5º, 6º, 10 ao 12 e 15 ao 17, todos do Acordo Brasil-Santa Sé.
47 Art. 1º, que prevê a observância da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, de 18 de abril de 1961, sobre as
relações diplomáticas entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé.
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