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FAMILIARES OU DESCONHECIDOS?

A relação entre os protagonistas


do estupro no fluxo do Sistema de
Justiça Criminal*

Joana Domingues Vargas

Introdução de ocorrências, da análise de processos e de pron-


tuários de medicina legal vêm derrubando alguns
Neste artigo, pretendo mostrar as vantagens, mitos até então predominantes no universo simbó-
para o estudo dos crimes e de seus protagonistas, lico em geral. Em relação ao crime de estupro, um
de se deslocar a análise das decisões tomadas em desses mitos consistia em acreditar que os agresso-
cada subsistema do Sistema de Justiça Criminal — res são desconhecidos da vítima (Souza et al.,
polícia, Ministério Público e varas criminais — para 1993).
a investigação do fluxo de procedimentos e da Os primeiros dados mais consistentes trazidos
clientela que atravessa essas diferentes organiza- a público (Azevedo e Azevedo Guerra, 1988; Co-
ções.1 Para tanto, focalizarei o crime de estupro, hen e Matsuda, 1990, apud Cohen, 1993) 3 relativos
tomando por objeto uma das características dos à violência sexual em geral (estupro, tentativa de
envolvidos: o relacionamento existente entre eles. estupro, atentado violento ao pudor) buscaram
O objetivo é investigar em que medida a natureza revelar o grau de parentesco existente entre as
e o grau do relacionamento entre agressor e vítima
determinam, neste tipo de crime, as decisões do * Uma parte dos dados da pesquisa que resultou neste
Sistema de Justiça Criminal, e se há diferenças no texto foi utilizada na elaboração de minha dissertação
tratamento dado a agressores conhecidos e desco- de mestrado, realizada sob a orientação da professora
Alba Zaluar. A outra parte encontra-se em fase de
nhecidos da vítima pelos três subsistemas, nas organização e análise e está sendo desenvolvida para o
várias fases do fluxo. doutorado, sob a orientação do professor Edmundo
Campos Coelho. Obtive financiamento da CAPES, da
Fundação João Pinheiro e, atualmente, do CNPq. Tam-
Estatísticas de crimes sexuais bém recebi bolsa da Anpocs e do FAEP/Unicamp.
Boa parte da literatura produzida sobre a Agradeço a colaboração de Selma Christien Rodrigues
violência contra a mulher, a criança e o adolescente (na fase da delegacia), Beatriz Caiubi Labate (na fase do
Fórum), Gustavo Aprile Rossi e Fábio Fonseca Duarte
no Brasil tem privilegiado, como fonte de pesquisa,
(na codificação dos dados e observação estatística), e as
documentos elaborados no Sistema de Justiça Cri- leituras de Patrícia Campos de Sousa e de Lea Carvalho
minal.2 Estatísticas produzidas a partir de boletins Rodrigues.

RBCS Vol. 14 no 40 junho/99


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partes. Entretanto, os resultados apresentavam tal dos produzidos no sistema são o reflexo das ope-
disparidade que era impossível atribuí-la apenas às rações que este executa, dentre elas a de realizar
diferentes lógicas empregadas pelas organizações a subsunção da ocorrência à norma penal e a de
que os produziram;4 antes se devia às metodologi- classificá-la tendo por referência o conhecimento
as diversas utilizadas pelos pesquisadores. Azeve- da maneira típica como tais crimes são cometidos
do e Azevedo Guerra (1988), reproduzindo as (Sudnow, 1965). Esta orientação parte do pressu-
designações contidas nos boletins de ocorrências posto de que os procedimentos e decisões toma-
(BOs), que não contemplam nenhum registro sobre dos no Sistema de Justiça Criminal são ancorados
o relacionamento entre agressor e vítima, encontra- sobretudo em processos de rotulação e estereoti-
ram apenas 0,05% de casos de incesto. Já Cohen e pagem (Becker, 1963; Goffman, 1982), bem como
Matsuda (1990, apud Cohen, 1993), a partir de em tipificações acordadas entre todos os envolvi-
entrevistas realizadas com vítimas atendidas no dos (Cicourel, 1968; Paixão, 1982). Nesse sentido,
Instituto Médico Legal (IML), identificaram 21% de são os processos de elaboração dos dados e,
casos incestuosos.5 Uma análise e comparação sobretudo, as atividades rotineiras das quais eles
desses dados, realizadas posteriormente por Saffi- resultam que me interessa abordar. Ao verificar
otti (1994), apontam, além desta, uma outra razão como os dados foram construídos, somos infor-
para explicar essa diferença nas porcentagens: a mados sobre como crimes e criminosos são pro-
criação de delegacias especializadas no atendimen- duzidos (Cicourel, 1968).
to a esses crimes — as Delegacias de Defesa da
Mulher (DDMs) —, provável responsável pelo Crimes sexuais e o fluxo do Sistema de Justiça
aumento das queixas no período decorrido entre Criminal
uma e outra investigação. Neste mesmo estudo, A estas premissas soma-se a perspectiva de
após sanar a ausência de informação com respeito que, como já foi dito, a investigação dos crimes e de
ao relacionamento entre os envolvidos nos BOs das seus protagonistas deve se dar a partir da análise do
1ª e 8 ª DDMs de São Paulo, a autora encontrou, seu fluxo ao longo das diferentes fases de funciona-
para a primeira delegacia, 23,2% de estupros inces- mento do Sistema de Justiça Criminal — queixa,
tuosos em 1991 e 36% em 1992; já para a segunda, inquérito, denúncia e sentença. Elas me permitem
registrou 25% de estupros incestuosos em 1992.6 indagar se o relacionamento entre agressor e vítima
Em estudo mais recente, Pimentel et al. (1998), condiciona uma menor ou maior penalização do
analisando dados de estupros coletados em 50 crime de estupro, e se esta é uniforme ao longo de
processos referentes às cinco regiões brasileiras, todas as fases do fluxo.
concluíram que 70% dos envolvidos se conheciam Para fazer semelhante investigação, é necessá-
e, destes, 18% mantinham relacionamentos inces- rio considerar que, de acordo com os códigos e as ati-
tuosos.7 vidades práticas dos operadores do sistema, para cada
Três considerações a respeito desses dados. tipo de delito corresponde uma maneira singular de
A primeira, mais óbvia, é que eles se referem às tratamento dos casos. Em crimes de estupro, a primei-
denúncias absorvidas pelo Sistema de Justiça Cri- ra singularidade refere-se à sua tipificação no artigo
minal e não às manifestações efetivas desses cri- 213 do Código Penal Brasileiro como “constranger
mes na sociedade. Conforme observaram todos os mulher a conjunção carnal mediante violência e gra-
que estudaram esta modalidade de crime, há uma ve ameaça” — com pena de três a oito anos, aumen-
diferença entre a realidade e o que vem a público tada pela Lei dos Crimes Hediondos para de seis a dez
difícil de ser mensurada. A segunda consideração anos —, delimitando, portanto, a vítima-mulher ou a
é sobre a necessidade de se observar as opera- vítima-menina como o sujeito passivo desta ação. Já
ções de classificação e seleção empreendidas pe- as relações incestuosas cometidas por pai, padrasto ou
los pesquisadores, que, como vimos, podem gerar responsável legal não são tipificadas como crime en-
diferentes resultados. A terceira, que será particu- quanto tal no Código Penal, no qual o incesto figura
larmente explorada neste trabalho, é que os da- apenas como circunstância agravante do crime de es-
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tupro se a vítima for menor de 14 anos, o que configu- nidas nos códigos apresentam-se como uma das
ra também a violência presumida.8 Desse modo, in- instruções usadas pelos operadores do sistema para
teressa saber em que medida as disposições definidas orientá-los no seu trabalho prático e, nesse sentido,
em lei condicionam e explicam o comportamento do desempenham um papel importante na definição
fluxo do ponto de vista do relacionamento entre as do que deve ser considerado crime e do perfil dos
partes em todas as suas fases. envolvidos. No estudo em questão, por exemplo,
Uma outra singularidade do crime de estu- suponho que a ação penal independente da vonta-
pro é o caráter privado da ação penal, ou seja, a de dos queixosos quando a vítima é menor de 14
decisão de acionar o sistema é da vítima ou de anos e o pai, padrasto ou responsável legal é o
seu representante legal, exceção feita aos casos agressor deva refletir-se na concentração de rela-
em que o agressor é o próprio pai ou o responsá- ções incestuosas contra menores de 14 anos, sobre-
vel legal da vítima menor de 14 anos e àqueles tudo a partir da fase de inquérito.
que resultam em lesão grave ou morte, quando Mas, estas disposições nada dizem sobre
cabe ao promotor a incumbência de promo- como estabelecer a correspondência entre o que
ver a ação, independente da manifestação dos está estatuído e os casos em questão. Para aplicar a
queixosos. Isto confere aos queixosos deste tipo lei, os operadores devem lançar mão de um outro
de delito um papel crucial na definição de quais tipo de conhecimento, qual seja, de instruções
ocorrências e autores darão entrada no sistema. informadas pelo modo como esses crimes são
Desta perspectiva, parece essencial analisar como normalmente cometidos, e suas características
e em que medida a natureza da ação penal deter- típicas, dos quais os operadores tomam conheci-
mina o comportamento da variável em questão na mento por meio de sua socialização e experiência
fase inicial do fluxo. na profissão (Sudnow, 1965).9 São essas instruções
Uma terceira particularidade do crime de estu- que permitem caracterizar, reconhecer, classificar
pro, igualmente importante, é o fato de se contar com e diferenciar os estupros cometidos por desconhe-
poucas versões originais sobre o acontecimento (em cidos e conhecidos e o perfil dos envolvidos.
geral, apenas a versão da vítima e, com menor fre- Sobre este aspecto, é de conhecimento dos
qüência, as versões dela e do agressor) e de se apre- operadores (e não só deles) que a descrição mais
sentarem inúmeras dificuldades para a comprovação comum dos estupros cometidos por desconhecidos
de sua materialidade. A carência de provas e de teste- relata uma abordagem feita na rua, muitas vezes
munhos torna ainda mais patente o uso, pelos envol- com o uso de armas, por “indivíduos jovens, de
vidos e pelos operadores do sistema, de concepções estrato social mais baixo, que têm desvio de com-
estigmatizantes permanentemente negociadas entre portamento sexual, têm problema de timidez ou são
eles (Cicourel, 1968), relacionando a ocorrência à impotentes”.10 E o que eu procurarei argumentar
maneira típica como esses crimes ocorrem (Sudnow, neste artigo é que autores desconhecidos se encai-
1965). A carência de provas e testemunhos confere à xam melhor no estereótipo do estuprador, facilitan-
palavra da vítima o caráter de prova, reconhecida por do as decisões rotineiras dos operadores e a denún-
lei. Pode-se imaginar que, decorrente deste fato, haja cia dos queixosos.
uma preocupação constante dos operadores com a Já os agressores conhecidos são identificados
verossimilhança do depoimento dado pela vítima e principalmente como pais de meia idade, que agem
com a sua contaminação pelo caráter relacional. Nes- repetidamente em casa quando a mãe não está pre-
se sentido, interessa saber quais são as estratégias uti- sente. A queixa que envolve familiares também adqui-
lizadas pelos agentes do sistema para construir as evi- re uma caracterização que lhe é própria: “muitas ve-
dências do crime. Em que medida elas são informa- zes a mãe tenta retirar a queixa, por medo, por não
das pelo fato de as partes se conhecerem ou não? querer que o marido perca o emprego, então diz que
Encerro este conjunto de indagações com mentiu [...] são casos e mais casos em que é a palavra
algumas proposições que tentarei sustentar ao lon- da criança contra a família inteira”.11 Irei sustentar
go deste ensaio. Primeiro, que as disposições defi- que, ainda que o grau de relacionamento entre as par-
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tes seja fundamental para definir as estratégias dos ao caso, avaliada a hipótese de uma possível
operadores do Sistema de Justiça Criminal, já que se armação, desenhados os perfis morais dos envolvi-
pode constituir em circunstância agravante do estupro, dos, sobretudo o da vítima, e ponderadas as moti-
tal relação, por sua vez, acaba dificultando as decisões, vações. Quando se trata de acusações envolvendo
na medida em que congrega conflitos pessoais, de crianças, a verossimilhança de sua narrativa é
conteúdo emocional. reconhecida mediante a eleição de certos indícios,
Quanto às estratégias de construção de evi- tais como o seu conhecimento precoce de determi-
dências, partirei do pressuposto de que as situações nadas ocorrências do ato sexual, e são avaliadas as
em que inexiste relação entre as partes permitem conseqüências sociais do ato e de sua denúncia.
mais facilmente a elaboração de evidências para Nas próximas seções procurarei mostrar, com
determinar a culpa. Isto ocorre, em parte, por a apresentação e contextualização dos dados pro-
configurarem a necessidade de investigação. É a venientes de documentação produzida pelo Siste-
partir dos métodos empregados para realizar a ma de Justiça Criminal e por mim organizados, o
investigação (campana, interrogatório para se obter lugar conferido pela vítima (ou seu representante
a confissão, reconhecimento do autor, inquirição legal) e pelos operadores do sistema, ao longo de
da vítima etc.) e da confrontação de seus resultados todo o fluxo, aos agressores desconhecidos e àque-
com os casos característicos definidores desses les conhecidos da vítima. Buscarei argumentar que,
crimes que as evidências vão sendo construídas. Já no crime de estupro, o relacionamento entre as
nos casos de envolvidos conhecidos, vítima e partes envolvidas é um fator importante na tomada
acusado são colocados em suspeição: são reconsti- de decisões. Mas, antes, é necessária uma descrição
tuídos os elementos típicos que conferem sentido da representação do fluxo adotada:

Fluxo do Sistema de Justiça Criminal

BOLETIM DE OCORRÊNCIA
arquivo

INQUÉRITO POLICIAL Polícia

arquivo DENÚNCIA
Ministério
Público
PROCESSO Judiciário
SENTENÇA
Varas
Criminais

condenação absolvição

Prisões apelação

Tribunais de
2ª Instância
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O fluxo do Sistema de Justiça Criminal cons- Campinas (SP), apostando-se na definição de um


titui-se em torno do segmento Boletim de Ocorrên- quadro que pudesse ser generalizado ao menos
cia (BO)-Inquérito-Denúncia-Sentença. O BO, re- para as cidades de grande e médio porte da Região
gistro da queixa feita pela vítima ou seu represen- Sudeste. 16
tante legal, e o Inquérito Policial são produzidos Quanto ao aspecto metodológico, foram utili-
pela polícia. Queixas de crimes sexuais, desde zados basicamente dois tipos de abordagem: a
meados da década de 80, passaram a ser da antropológica, com o emprego das técnicas de
competência de delegacias especializadas — as observação participante e a realização de entrevis-
delegacias de atendimento a mulheres —, em tas, e o método quantitativo. Considerando o obje-
substituição às antigas delegacias de costumes.12 A tivo do presente artigo, darei, a seguir, maiores
Denúncia, em geral, é de responsabilidade do detalhes sobre o uso da abordagem quantitativa.
Ministério Público.13 Com ela encerra-se a fase que Insatisfeita com as estatísticas oficiais que me
antecede o Processo. Este desenrola-se nas Varas foram apresentadas durante o trabalho de campo
Criminais, através das atuações da Defesa e da na Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de
Acusação, dirigidas por um juiz que profere a Campinas, empenhei-me em ter acesso ao seu
Sentença, de condenação ou de absolvição.14 Em arquivo de registros de boletins de ocorrência e de
ambos os casos cabe a apelação do promotor, do livros de inquérito.17 Com base nesse arquivo, dei
querelante ou da Defesa. Se aceita, os autos são início à montagem de um banco de dados que,
julgados por um Tribunal de Segunda Instância. Por além das informações coletadas nos registros de
seu turno, os conflitos e os envolvidos não canali- ocorrências (BOs) e registros de inquéritos arquiva-
zados em algum desses procedimentos acabam dos na DDM, foi acrescido, posteriormente, daque-
tendo seus registros arquivados. las levantadas em fichas de cartórios do Fórum de
Uma das questões sobre o fluxo do Sistema Campinas. A partir daí foi iniciado o mapeamento
de Justiça Criminal a ser investigada, tendo por foco quantitativo dos dados, mediante o cruzamento das
o formato que ele assume, refere-se ao seu grau de variáveis selecionadas.
integração e/ou disjunção.15 Nesse sentido, será O universo recortado foi o dos quatro crimes
averiguado, a partir do comportamento dos dados sexuais de maior incidência nos boletins de ocor-
referentes ao relacionamento entre agressor e víti- rência da DDM: estupro, tentativa de estupro,
ma e ao grau deste relacionamento, se há coesão atentado violento ao pudor e sedução. O período
entre as decisões tomadas nas diferentes fases do abordado é de cinco anos, entre 1988, data de
fluxo ou se há também um certo antagonismo. criação desta delegacia, e 1992, ano anterior ao
Na próxima seção faço uma breve descrição início da pesquisa. Dada a natureza do objeto —
da pesquisa que deu origem aos dados apresenta- um processamento de informações em forma de
dos neste artigo. funil —, não foram utilizadas amostras, mas o
conjunto de informações referentes a esses crimes
coletadas em todos os boletins, registros de inqué-
A construção da pesquisa rito e fichas de processos. Ao todo foram analisados
911 BOs. A partir das informações ali obtidas
A pesquisa verificou-se seus desdobramentos nos outros docu-
A pesquisa a que este artigo se refere foi mentos.
realizada ao longo dos anos de 1993 e 1994. Seu Todas essas informações foram codificadas
objeto é a administração da Justiça Criminal para e organizadas em alguns itens temáticos. As vari-
crimes sexuais e o recorte estabelecido é a transfor- áveis que por ora nos interessam — o relaciona-
mação do acontecimento em fato jurídico, que se mento entre agressor e vítima e o grau deste
inicia no momento em que o cidadão faz a queixa relacionamento — referem-se à caracterização
e culmina com a sentença de condenação. Para destes crimes. Elas serão apresentadas e analisa-
efeito de recorte empírico foi escolhida a cidade de das, na fase do Boletim de Ocorrência, para os
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quatro crimes selecionados, de forma a permitir aqueles suspeitos que aparecem deste modo nos
uma comparação entre eles, e, posteriormente, relatos, mas cujo grau de relação com a vítima não é
apenas para o crime de estupro, dada a exigüida- explicitado. Patrão e colega de trabalho foram
de de espaço. Tratando-se do cruzamento de três reunidos em “relação de trabalho”. Finalmente,
variáveis (relação por crime por fase do fluxo), foram agrupados em “outros” algumas referências
sua representação será feita no formato de gráfico que não puderam ser encaixadas nas categorias
de barra.18 citadas.
Neste trabalho com os dados, pareceu-me É preciso ressaltar que as informações refe-
imprescindível medir a ausência de informação e rentes ao indiciado que constam dos boletins de
identificar a sua causa. Esta preocupação metodo- ocorrência apresentam um grande número de lacu-
lógica mostrou-se importante porque ajudou a nas. Isto se deve, fundamentalmente, a dois moti-
dimensionar o dado conhecido, tornando as inter- vos: à não identificação do suspeito, que ocorre
pretações sobre ele mais acuradas. Ao longo do principalmente em acusações de estupro, e ao fato
fluxo, a ausência de informação incorpora diferen- de ser a vítima, nesta como também em outras
tes configurações devido ao formato de funil que o modalidades de acusações de crimes sexuais,
sistema assume. Na fase do BO, ela significa ausên- aquela quem fornece tais informações, as quais,
cia da informação no formulário;19 na fase do conseqüentemente, são apresentadas não apenas
inquérito, “inquérito não instaurado”; nas fases de de seu ponto de vista, mas também de maneira
denúncia e de sentença (considerando que, à fragmentária.
medida que se avança no fluxo, as informações não Não obstante esta situação, que resulta em
acessadas vão sendo descartadas), ela significa dados com alto índice de ausência de informação,
“desfecho desconhecido”. ainda assim estou convencida de que eles devem
fornecer pistas interessantes sobre as características
Características e problemas dos dados sobre o dos crimes em estudo.
relacionamento entre agressor e vítima Ainda com relação a essas informações, é
As variáveis referentes à relação entre indicia- necessário enfatizar que, como as variáveis consi-
do e vítima e ao grau desta relação tiveram de ser deradas não remetem apenas ao agressor, mas
construídas, uma vez que não há uma classificação também à relação entre ele e a vítima, um mesmo
prévia neste sentido nos registros elaborados pela indivíduo pode ser indiciado em mais de um
polícia.20 Na maioria das vezes, foi partindo da boletim ou em mais de um inquérito, tornando-se,
leitura de cada BO, principalmente do exame do posteriormente, réu em mais de um processo.
histórico que expõe sinteticamente os fatos narrados Logo, se a unidade de análise for o boletim, o
por ocasião da queixa, mas também da comparação inquérito ou o processo, instaurados para cada
das informações contidas nos tópicos referentes aos vítima, haverá uma inflação artificial no número de
nomes do agressor e do pai da vítima, que vestígios indiciados ou processados. Para corrigir isso, consi-
de informação sobre a existência ou não de relacio- derei, em meu trabalho, apenas um boletim ou um
namento entre agressor e vítima e o grau desta inquérito por indiciado e, caso este seguisse no
relação foram encontrados. Em alguns casos, pude fluxo, apenas um processo (denúncia, sentença)
localizar estas informações ou confirmar aquelas por processado (denunciado, sentenciado). Mais
encontradas nos BOs nas fichas de processos. adiante serão apresentados os gráficos para todas
As classificações deduzidas dos registros fo- as fases do fluxo, considerando os agressores en-
ram codificadas e, em alguns casos, agrupadas para volvidos.
facilitar sua leitura. São elas: “pai”, “padrasto”, Finalmente, é importante dizer que a leitura
“namorado”, “marido”, “outro parente”, “vizinho”, dos dados apresentada neste artigo assumirá um
“conhecido”, “relação de trabalho”, “outros”. A clas- teor mais descritivo devido ao estágio em que se
sificação “outro parente” engloba tio, avô, irmão, encontra minha pesquisa. A verificação da existên-
cunhado etc. Já a classificação “conhecido” agrupa cia ou não de correlação entre as variáveis em
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estudo e outras tais como a idade da vítima, a idade dos, 1% contra desconhecidos e 6% sem informa-
do agressor, o estado civil destes, o local do fato e ção, conforme demonstra o Quadro 1.
outras, certamente produtiva para uma análise mais
Quadro 1
detalhada, não será possível no momento. Nesse
Crimes Sexuais: distribuição do indiciado a partir
sentido, previno o leitor de que as interpretações
do seu relacionamento com a vítima
sugeridas aqui têm caráter preliminar.
Sem informação Conhecido Desconhecido
Passo agora à exposição do comportamento
Estupro 20% 47% 33%
do fluxo no que diz respeito ao relacionamento
Tentativa de 11% 56% 31%
entre agressor e vítima e ao seu grau.
estupro
Atentado violento 16% 70% 14%
A representação do relacionamento ao pudor
entre agressor e vítima nas várias Sedução 6% 93% 1%
fases do fluxo Fonte: Dados de BOs referentes aos anos de 1988 a 1992,
DDM de Campinas.

O boletim de ocorrência Comparando a distribuição dos indiciados por


A partir do mapeamento dos dados relativos sua relação com a vítima de estupro com esta mesma
aos quatro crimes em foco, representado no Qua- distribuição nos outros crimes sexuais analisados, ob-
dro 1 e no Gráfico 1, observa-se, nos registros de serva-se que os indiciados conhecidos predominam
queixas de estupro, que 47% dos indiciados são nestes tipos de crimes, nos quais a freqüência de des-
conhecidos da vítima, 33% são desconhecidos e conhecidos é reduzida, exceção feita aos indiciados
para 20% deles não foi possível determinar a por crime de tentativa de estupro, cuja freqüência de
relação. Para as queixas de tentativa de estupro, desconhecidos aproxima-se daquela observada entre
56% são conhecidos da vítima, 31% são desconhe- os indiciados por crime de estupro.
cidos e para 11% não foi possível estabelecer a Os dados apresentados indicam também que
relação. Já em atentado violento ao pudor, são 70% há uma maior proporção de queixas de estupros
de queixas contra conhecidos, 14% contra desco- registradas, pela vítima ou por seu representante
nhecidos e 16% de queixas em que foi impossível legal, contra suspeitos conhecidos. De um lado,
estabelecer a relação entre as partes. Finalmente, eles corroboram o pressuposto assumido pelos
93% das queixas de sedução são contra conheci- estudos já citados de que o estupro cometido

Gráfico 1
Crimes sexuais: relação entre indiciado e vítima a partir de dados de BO
200
indiciado ( nº absoluto)

180
160
140
120 s/informação
100
80 desconhecido
60 conhecido
40
20
0
estupro tentativa de atentado viol. sedução
estupro pudor
crime
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primordialmente por autor desconhecido é um marido (6%), do padrasto (4%), daquele que tem
mito que não se sustenta quando confrontado com relação de trabalho com a vítima (5%), do namora-
os registros de queixas desses crimes. Mas, de outro do (3%) e “outros” (2%). Para o crime de atentado
lado, a presença significativa de autores desconhe- violento ao pudor, “sem informação” e “pai” repre-
cidos nas queixas de estupro e de tentativa de sentam as duas maiores freqüências, seguidas de
estupro indica que esses crimes também se caracte- perto por “outro parente” (18%). A terceira maior
rizam pela ação de autores desconhecidos e que freqüência é representada pelo padrasto (12%),
isto os distingue dos demais crimes sexuais. vindo em seguida os agressores apenas identifica-
Passando agora à descrição do grau da relação dos como conhecidos (10%), os maridos (9%), os
existente entre agressor e vítima na fase de registro vizinhos (7%), aqueles que tinham, na ocasião dos
da queixa, observa-se, conforme mostra o Gráfico 2, fatos, relação de trabalho com a vítima (4%), os
que para as queixas de estupro o número de dados enquadrados na classificação “outros” (2%) e, final-
sem informação é o mais expressivo (30%). Isto se mente, para a categoria “namorado” não foi encon-
deve, como vimos, às lacunas das informações trado registro nenhum. Estes, em contrapartida,
referentes aos indiciados por estupro e à procedên- representam a grande maioria dos indiciados em
cia dessas informações, agravadas pela necessidade crime de sedução (78%).
de detalhamento que esta variável exige. Certamen- Quando detalhamos o grau de relacionamen-
te em decorrência deste último fato, a segunda to entre agressor e vítima, verificamos que as
classificação mais freqüente é “conhecido” (20%). queixas de estupro, tentativa de estupro e atentado
Os pais, a terceira classificação que mais aparece, violento ao pudor assemelham-se quanto à maior
representam 14% dos agressores conhecidos, segui- freqüência das classificações pai e outros parentes.
dos de outros parentes (11%), namorados (8%), Essas classificações, somadas, representam 25%
vizinhos (6%), padrastos (4%), relação de trabalho dos suspeitos de crimes de estupro conhecidos,
(3%), marido (2%) e outros (2%). 34% dos suspeitos de tentativa de estupro e 37%
Mapeando a distribuição do grau de relação dos suspeitos de atentado violento ao pudor. Elas
entre agressor e vítima nos outros crimes em configuram o que foi denominado de incesto lato
estudo, é possível observar, para tentativa de estu- sensu, ou seja, o abuso sexual perpetrado na
pro, que os pais aparecem com a maior freqüência família por consangüíneos (Cohen, 1993).
(20%). Seguem, em segundo lugar, os registros Isto nos leva a indagar sobre a semelhança entre
“sem informação” e “conhecido” (16%). Os vizi- os dados aqui apresentados e aqueles levantados pe-
nhos e os outros parentes representam a terceira los autores que estudaram o incesto, citados anterior-
maior freqüência (14%) e são seguidos do agressor mente. Mas, para efetuar uma comparação dos dados

Gráfico 2
Crimes sexuais: grau de relação entre indiciado e vítima a partir de dados de BO
120 s/informação
indiciado (nº absoluto)

100 pai
80 padrasto
60 namorado
40 marido
20 outro parente
0 vizinho
estupro tent. de atent. v. sedução
conhecido
estupro pudor
trabalho
crim e
outro
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de Cohen e Matsuda (1990, apud Cohen,1993) com são cometidos (Sudnow, 1965), quero sugerir que os
aqueles por mim organizados, é preciso considerar vestígios de informação sobre o relacionamento entre
(como eles o fazem) somente os crimes que envolvem agressor e vítima presentes nos registros de ocorrên-
violência sexual, ou seja, o total das queixas de estu- cia indicam que os suspeitos reconhecidos como au-
pro, tentativa de estupro e atentado violento ao pudor, tores de crimes sexuais violentos (estupro, tentativa de
e conceituar o incesto no sentido amplo, isto é, acres- estupro, atentado violento ao pudor) são freqüente-
centando os abusos nas relações padrasto-enteada e mente conhecidos da vítima e não poucas vezes têm
madrasta-enteado ao abuso perpetrado por consangü- com esta vínculo familiar, sobretudo paterno. Já sus-
íneos. Deste modo, no total das queixas de crimes se- peitos sem relacionamento algum com a vítima são
xuais violentos, foram encontrados 25% de casos de identificados sobretudo como autores de estupros e
incesto, o que não constitui uma diferença significati- também de tentativa de estupro.
va dos 21% de casos de incesto encontrados por Co- Assim, na fase de queixa, antes de os casos re-
hen e Matsuda (1990, apud Cohen,1993). gistrados serem submetidos ao processo de seleção e
Partindo das mesmas classificações que definem de decisão do que deve ou não ser apreciado como
o incesto e tendo por referência o total das queixas de “caso de polícia” pela delegada titular e à decisão dos
estupro, é possível uma comparação também com os queixosos de acionar ou não o Sistema de Justiça, são
dados apresentados por Saffiotti (1994). Neste sentido, apontados como autores de estupros pessoas de diver-
pode-se dizer que os 19% de estupros incestuosos en- sas formas conhecidas da vítima, embora possam ser
contrados na minha pesquisa igualmente não apresen- destacadas as relações intrafamiliares e, em menor
tam diferença significativa quando cotejados à propor- medida, mas ainda significativamente representados,
ção de estupros incestuosos (23%) encontrados pela os suspeitos desconhecidos.
autora nos registros da 1ª DDM de São Paulo, no ano
de 1991. Mas essa diferença aumenta se comparamos O inquérito policial
estes dados aos 25% de estupros incestuosos encontra- Na fase de instauração de inquérito policial,
dos por Saffiotti na 8ª DDM em 1992, e torna-se signifi- como mostra o Gráfico 3, as relações entre indiciado e
cativa quando os confrontamos com os 36% de casos vítima de crime de estupro apresentam-se nas seguin-
similares encontrados na 1ª DDM no ano de 1992. tes proporções: entre os conhecidos, 28% tiveram in-
Partindo dos pressupostos de que a elaboração quéritos instaurados, contra 69% que tiveram inquéri-
do registro de ocorrência demanda uma compreen- tos não instaurados, e para 3% o desfecho é desconhe-
são mútua, da queixosa e da atendente policial, sobre cido. Entre os indiciados desconhecidos, 8% tiveram
o que aconteceu, com base no senso comum que am- inquéritos instaurados, contra 89% não instaurados, e
bas possam admitir sobre o evento (Cicourel, 1968), e para 3% o desfecho é desconhecido. Vale lembrar que
de que este conhecimento de senso comum tem por a ausência de informação sobre a natureza da relação
referência a forma como esses crimes normalmente é bastante expressiva.

Gráfico 3
Estupro: relação entre indiciado e vítima a partir de dados de Inquérito
indiciado (nºabsoluto)

160
140
120
100 desfecho desconhecido
80 inquérito instaurado
60
40 inquérito não instaurado
20
0
s/informação desconhecido conhecido
relação
72 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 14 N o 40

Uma primeira leitura desses dados demons- Como esses procedimentos são geralmente
tra que a proporção de inquérito instaurado/in- anotados no alto do formulário de registro, foi
quérito não instaurado contra indiciados desco- possível codificá-los e agrupá-los. Cabe dizer que,
nhecidos é significativamente menor do que por não serem sempre manifestos, ou por se
aquela observada para os indiciados conhecidos. referirem a uma série de situações que a própria
Para melhor analisar esta situação, é necessário polícia considerou indefinidas, encontrei uma alta
contextualizar esses dados a partir da reconstitui- porcentagem de lacunas. Assim, se considerarmos
ção dos próprios procedimentos adotados para a apenas os dados de solução conhecida (com a
instauração dos inquéritos. ressalva de que os de desfecho desconhecido, aqui,
A instauração de um inquérito policial em foram distribuídos na mesma proporção para cada
caso de estupro resulta de um conjunto de deci- categoria, o que não deve ocorrer de fato), é
sões tomadas em diferentes instâncias. A primeira possível observar que, na categoria “inquérito não
delas é a identificação da ocorrência criminal pela instaurado”, a solução mais encontrada foi a desis-
autoridade policial, com base, inicialmente, nas tência da vítima, ou de seu representante legal, de
informações do BO, no laudo do exame de con- acionar o Estado para a resolução do conflito
junção carnal e, posteriormente, nos depoimentos (35%), seguida da solução “suspeito não identifica-
dos envolvidos. O procedimento seguinte consis- do” (28%) e, por último, dos casos arquivados por
te em submeter a vítima ou seu representante à determinação da autoridade policial (6%). Já na
decisão de iniciar a ação penal, pois, do ponto de categoria “inquérito instaurado”, as ações de natu-
vista penal, como vimos, tal decisão é considera- reza privada (22%) predominam sobre as ações
da de foro pessoal e configura uma ação penal públicas (9%). É o que mostram os dados do
privada, excetuando-se os casos em que a vítima Gráfico 4, organizados a partir das anotações dos
é filha e menor de 14 anos, ou se encontra sob a BOs sobre procedimentos e soluções dadas às
responsabilidade do réu, e aqueles em que a queixas de estupro.
agressão resulta em morte ou lesão grave, situa- Nas situações que envolvem autores desco-
ções em que o Estado é obrigado a dar início a nhecidos, é comum que estes não venham a ser
uma ação pública através do Ministério Público, identificados, uma vez que a prática das policiais da
independente da vontade dos queixosos. Nas DDM de Campinas (que se enquadra no comporta-
ocorrências em que não existem indícios suficien- mento das DDMs em geral, conforme o diagnóstico
tes de autoria, ou em que não há elementos para sobre estas instituições realizado em 1992 pela
justificar uma denúncia, a queixa acaba sendo America’s Watch) é, na maioria dos casos, a de não
arquivada. proceder à investigação. Embora a atividade por

Gráfico 4
Estupro - Soluções conhecidas dos BOs

9% Arquivapor
Arquiva porvontade
vontadeda
davítima
vítima

35% Arquiva pela


Arquiva pela autoridade
autoridade
22%

Arquiva suspeito
Arquiva suspeito não
identificado
identificado
Representação/Açãoprivada
representação/acão privada

6% Ação
Ação pública
28%
FAMILIARES OU DESCONHECIDOS? 73

excelência da polícia em geral seja aquela desen- Já a proporção de inquérito instaurado/in-


volvida pela linha de frente (Bittner, 1990), nas quérito não instaurado para indiciados conhecidos
DDMs as investigadoras não possuem preparo nem acompanha o mesmo padrão para os quatro crimes
foram treinadas na atividade de investigação. Sem em estudo: cerca de 30% dos inquéritos foram
qualificação e mal equipadas para enfrentarem instaurados e mais de 65% das queixas foram
criminosos nas ruas, estas acabam realizando tare- arquivadas (Vargas, 1997). É possível detalhar me-
fas mais burocráticas, como cumprir ordens de lhor o perfil do indiciado conhecido a partir da
serviços (encaminhar intimações, verificar endere- descrição da variável “grau de relação entre indici-
ços etc.).21 Contudo, naqueles casos considerados ado e vítima”, mas antes é necessário enfatizar o
muito graves, quando, por exemplo, são identifica- alto índice de dados sem informação — a maior
das várias ações perpetradas com um mesmo mo- freqüência —, cuja causa foi referida anteriormen-
dus operandi ou, em outros termos, nos casos de te. A segunda maior freqüência, destacando-se em
estupros cometidos em série, recorre-se ao auxílio relação às outras, é a da classificação “pai”; descon-
de outras delegacias, e então procede-se à investi- siderando a freqüência “sem informação”, ela re-
gação, geralmente a partir da “lógica do inverso”, presenta 46% dos conhecidos. Também é possível
ou seja, prende-se primeiro o suspeito para depois observar, a partir do Gráfico 5, que a menor
reconstituir sua culpa (Paixão,1982). proporção de inquéritos instaurados em relação
Deste modo, a leitura que coloca os dados em aos não instaurados encontra-se na classificação
contexto sugere que o reduzido número de suspei- “conhecido”, seguida das classificações “namora-
tos desconhecidos da vítima na altura do inquérito do”, “marido” e “outro parente”.
deve-se, em boa parte, à não identificação destes a Chama a atenção, na classificação “pai”, o
partir do trabalho de investigação. Por outro lado, número de inquéritos não instaurados, tendo em
pode-se supor uma forte probabilidade de que vista a obrigatoriedade da ação penal pública para
certos suspeitos desconhecidos indiciados em in- essas situações. Uma primeira possibilidade a ser
quéritos sejam presos durante as investigações, considerada é a de não retorno e/ou não localiza-
tendo em vista a hipótese de prisão temporária ção da vítima e do agressor após a elaboração do
prevista em lei, cuja finalidade é assegurar o suces- BO, tornando irrealizável a instauração de inquéri-
so das investigações policiais.22 to. Mas também foi possível observar a prática, não

Gráfico 5
Estupro: grau de relação entre indiciado e vítima a partir de dados de Inquérito
55
50
indiciado ( nº absoluto)

45
40 desfecho
35 desconhecido
30
inquérito
25
instaurado
20
15 inquérito não
10 instaurado
5
0
s/ins/in p pa n m oo viz c t
s/ifnofro paai padra naamo marid uotuurotro v in ocn rabt oou
fomrm i dra sto m rad ari o troppaar izinhho onhhecid rablhao uttrroo
rmaaçção sto orad o do e
pa rennte o ec o lho
a ão
çã o re te ido
o nte

grau de relação
grau de relação
74 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 14 N o 40

rara, nesses casos, da desqualificação da queixa de por referência várias tipificações policiais ativadas
estupro após uma primeira apreciação feita pela para interpretar falas e cenas, tipificações alimenta-
delegada (o que configura o poder discricionário das por crenças relacionadas às sexualidades infan-
da polícia). Segundo as policiais, são recorrentes as til, masculina e feminina (Souza et al., 1993) — em
situações em que qualquer aproximação de nature- se tratando da sexualidade feminina, observei que
za sexual é considerada pelos autores da queixa essas crenças não foram necessariamente suplanta-
como um estupro 23 ou, ainda, os casos de queixas das nas DDMs. Quando a esta característica do
falsas motivadas por conflitos intrafamiliares, as crime sexual é acrescentada a da proximidade
quais acabam sendo desmentidas logo nos primei- entre os protagonistas, menor credibilidade é con-
ros depoimentos, devido à presença de narrativas ferida à narrativa da vítima, sendo ponderadas as
contraditórias. Mas há, também, uma outra possi- suas motivações, a existência de conflitos etc.
bilidade a ser considerada: a de que as vítimas Talvez por esta razão, quando a vítima conhece o
filhas tinham mais de 14 anos por ocasião do fato, agressor, por laços de amizade, namoro, casamento
o que as exclui da ação penal pública, ficando a ou outros, ela se sinta desmotivada a prosseguir
decisão de acionar a justiça a seu encargo ou a com a queixa.
cargo de seu representante legal. Busquei argumentar, nesta seção, que a
Dados sobre a idade da vítima e seu cruza- relação existente entre agressor e vítima condicio-
mento com as variáveis em estudo devem fornecer na, de diferentes maneiras, a instauração ou não do
melhores indicações sobre este aspecto. Como essas inquérito policial. Como vimos, quando o autor é
informações ainda não puderam ser correlaciona- desconhecido, verifica-se um alto índice de desis-
dos, devido ao estágio em que se encontra minha tência da vítima em acionar a justiça, em boa
pesquisa, para interpretar o comportamento dos medida devido à não identificação do suspeito pela
dados referentes à não instauração de inquérito para polícia. Já quando o agressor é conhecido, o alto
o agressor pai, para outros parentes e também para índice se explica pelas relações preestabelecidas.
o agressor marido, tomarei por base a observação A denúncia significa a quebra de tais relações, e
feita em campo e a literatura mais citada a este quando cabe à vítima ou aos seus familiares decidi-
respeito. Minha experiência no campo sugere que, rem sobre mantê-la, muitas vezes eles optam pela
nos casos envolvendo familiares, sobretudo pais, a retirada da queixa.25 Por outro lado, relações pre-
desqualificação, quando possível, é feita pela pró- estabelecidas diminuem a validade da acusação
pria vítima ou por sua mãe. Cabe notar, contudo, (Boltanski, 1990), e o ceticismo decorrente deste
que em casos envolvendo pais e padrastos, uma vez fato acaba por desestimular a vítima de prosseguir
iniciado o inquérito, mesmo que as queixosas vol- com a queixa.
tem atrás na denúncia, é praxe os autos serem
encaminhados ao promotor assim mesmo. Já a A denúncia
literatura aponta que uma denúncia põe em perigo Na fase de denúncia, 57% dos réus são
não só o indivíduo, mas também a comunidade à conhecidos da vítima, 12% são desconhecidos e
qual pertencem o acusador e o agressor, tornando para 31% não foi possível estabelecer o grau de
difícil a sustentação de uma denúncia envolvendo relação. Observa-se, a partir do Gráfico 6, um
pessoas próximas, sobretudo da mesma família baixo índice de desconhecidos não denunciados,
(Malinowski, 1982; Boltanski, 1990). principalmente se comparado aos não denuncia-
Nas denúncias de crimes sexuais, são raros os dos conhecidos. Por outro lado, há uma freqüên-
exames de perícia médica conclusivos,24 o que cia significativa de desfechos desconhecidos tanto
torna a palavra da vítima um elemento fundamen- para os réus conhecidos (39%) como para os
tal a ser trabalhado na construção de evidências; desconhecidos (45,5%), em razão do tempo de
conseqüentemente, seu perfil identitário e compor- duração dos inquéritos. Ora, essa duração parece
tamental acaba sendo reconstituído. Pude observar ser decisiva para a interpretação do comporta-
que esses perfis são elaborados na interação, tendo mento dos dados.
FAMILIARES OU DESCONHECIDOS? 75

Gráfico 6
Estupro: relação entre réu e vítima a partir de dados de Denúncia
30

25 desfecho
réu (nº absoluto)

20
desfecho
desconhecido
desconhecido
15
denunciado
10 denunciado
5
não denunciado
0
s/informação conhecido
relação

Gráfico 7
Estupro: grau de relação entre réu e vítima a partir de dados de Denúncia
18

16

14
réu (nº absoluto)

12 desfecho
desfecho
desconhecido
10 desconhecido
8 denunciado
denunciado
6
não denunciado
4

0 s/in pa pa na ma ou viz con tra ou


i dra mo tro in ba tro
for
s/informação ma padrastosto radmarido rido pa vizinhoho he trabalho
cid lho
ção omarido revizinho
nte o
grau de relação
grau de relação

Por determinação do Código do Processo Pe- co com relação aos prazos estipulados pelo CPP:
nal (CPP), o inquérito com réu preso em flagrante em geral, segue-se o prazo para réus presos; com
ou preventivamente deve terminar em dez dias. Já relação aos réus soltos, é comum o não cumpri-
a denúncia, nesta circunstância, deve ser oferecida mento dos prazos.
em cinco dias. Quando o réu encontra-se solto, o Esta regra nos sugere que a agilidade na
prazo para a finalização do inquérito é de 30 dias e elaboração dos inquéritos e na instauração dos
o de apresentação da denúncia, de 15 dias. Caso processos é definida pela gravidade imputada ao
haja dificuldades para a elucidação do caso, o crime, muitas vezes justificando uma prisão. Em
Código prevê o alargamento do prazo, mediante a oposição, a morosidade pode estar associada ao
remessa dos autos ao Fórum para a obtenção de reconhecimento de que se tratam de casos não
novo prazo, a ser marcado pelo juiz. Contudo, graves, possuindo, assim, maiores chances de não
durante minha pesquisa de campo pude observar a serem denunciados, ou, então, à decisão dos ope-
prática cotidiana das policiais e do Ministério Públi- radores de não efetuar a prisão.
76 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 14 N o 40

Numa tentativa de contextualizar os dados da dos e para 11% não foi possível estabelecer a
denúncia, podemos supor, para os casos dos desco- relação. Conforme mostra o Gráfico 8, todos os réus
nhecidos denunciados, que estes foram considerados desconhecidos da vítima cujo destino é conhecido
graves, tendo em vista seu baixo índice de não denún- foram condenados, ao passo que 59% dos conheci-
cia, resultando na provável prisão dos réus. Uma pro- dos obtiveram a condenação.
porção maior de réus não denunciados entre os agres- Por se tratar de um fluxo em movimento, ou,
sores conhecidos sugere um outro desfecho. Uma me- melhor dizendo, de situações iniciadas em tempos
lhor descrição do desfecho dos casos envolvendo réus diferentes, a fase da sentença está representada por
conhecidos na altura da denúncia nos é fornecida pela um reduzido número de casos que alcançaram uma
variável “grau de relação entre indiciado e vítima”, re- decisão. Isto quer dizer que a configuração que os
presentada no Gráfico 7. dados assumem hoje deve, provavelmente, se alte-
Observa-se, a partir desta variável, que, des- rar à medida que os processos em andamento vão
contada a classificação “sem informação”, os pais, alcançando uma definição. Por isso, exercitar uma
padrastos e outros parentes são os mais denuncia- interpretação desta fase requer muito cuidado.
dos. Os primeiros representam 38% dos réus co- Nota-se que a configuração atual é construída
nhecidos da vítima. Já dentre os não denunciados, segundo um eixo temporal: são processos que
destacam-se os pais e vizinhos (27%), bem como os alcançaram a sentença devido à sua antigüidade ou
conhecidos (18%). A proporção dos desfechos à sua agilidade. Ocorre que os casos passados, que
desconhecidos para os pais é bastante alta, o que poderiam fornecer o desenho final mais provável
talvez indique que seus processos são demorados e do fluxo, fundem-se aos casos mais recentes que,
que boa parte deles não foram presos durante o por algumas razões, alcançaram rapidamente a
processo. 26 sentença. Uma forma de desfazer essa fusão é
Também chama a atenção o número de investigar essas razões, procurando os significados
denúncias não proferidas nas classificações “pai” e que elas possam trazer à leitura dos dados no
“padrasto”, devido, provavelmente, à desistência formato em que se apresentam no Gráfico 8.
da vítima maior de 14 anos, quando lhe é permitido Como vimos, casos que alcançam rapidamen-
decidir se quer ou não prosseguir com a acusação. te uma sentença podem referir-se a réus presos
durante o processo, pois os prazos estabelecidos
A sentença nos códigos costumam ser seguidos. Por outro
Na fase de sentença, 68% dos condenados são lado, já foi observado que réus presos preventiva-
conhecidos da vítima, 21% deles são desconheci- mente, durante o processo, ou já tendo cumprido

Gráfico 8
Estupro: relação entre réu e vítima a partir de dados de Sentença
14
12
desfecho
réu (nº absoluto)

10 desfecho
desconhecido
8 condenado
desconhecido
condenado
6
absolvido
4
2
0
s/informação desconhecido conhecido
relação
FAMILIARES OU DESCONHECIDOS? 77

Gráfico 9
Estupro: grau de relação entre réu e vítima a partir de dados de Sentença
7

5
réu (nº absoluto)

desfecho
desfecho
desconhecido
4 condenado
desconhecido
condenado
3
absolvido
2

0
s/in pa pa n m ou viz con tra ou
s/informação
for i dra amo arid outro
padrasto tro inh conhecido
he ba
lho
tro
outro
ma sto rad o pa o cid
ção o parente ren o
te
grau de relação

pena tendem mais a obter uma sentença de conde- não podendo ser tomados como provas no proces-
nação (Cesdip, 1995). Este é possivelmente o caso so, nem tampouco servir ao convencimento do juiz.
dos réus desconhecidos, para os quais se verifica a Assim, a investigação deve ser novamente realiza-
inexistência de sentença absolutória. da na fase de juízo, ocasião em que se volta a
O detalhamento do grau da relação entre os repetir as provas produzidas na polícia (Grinover,
envolvidos pode ajudar a esclarecer melhor como 1994). No estudo em foco, o desmentido da queixa
se distribui a sentença para os réus que tinham dada na polícia durante a instrução criminal na
relacionamento com a vítima. A partir do Gráfico 9, justiça impede a construção daquela que é conside-
verifica-se que, descontados os casos sem informa- rada a principal prova nesses crimes: o testemunho
ção, os mais condenados são os pais (50%), os da vítima. Quando isto ocorre, a sentença é de
outros parentes (25%) e os padrastos (17%). Por absolvição.
outro lado, os pais e os padrastos são também os Portanto, uma interpretação possível para o
mais absolvidos. comportamento dos dados referentes ao relaciona-
Suponho que uma explicação plausível para mento entre agressor e vítima na fase de sentença
o comportamento dos dados na fase da sentença é a de que autores de crimes considerados graves,
deve ser centrada em dois eixos. Um deles refere- provavelmente crimes em série, representam a
se ao conhecimento, partilhado pelos operadores e maioria dos condenados desconhecidos da vítima.
certamente utilizado pelos advogados como estra- Quanto aos autores conhecidos, excluídas as possi-
tégia para conseguir a absolvição de seus clientes, bilidades de armação e, sobretudo, de obstrução da
de que não é rara a ocorrência de trama, motivada prova testemunhal em juízo, pais, principalmente,
por vingança, por interesse etc., em que a vítima é mas também padrastos e outros parentes represen-
instruída a mentir. Um outro eixo diz respeito ao tam a grande maioria dos condenados.
fato de que, na altura do processo, é comum o
arrependimento da queixa nos casos em que a
O relacionamento entre as partes no
vítima é filha ou enteada. Ora, de acordo com o
fluxo do Sistema de Justiça Criminal
modelo acusatório em vigor no Brasil, os elementos
colhidos na fase investigatória prévia, realizada Nesta seção, tentarei desenvolver, a partir
pela polícia, servem exclusivamente para formar a da apresentação dos dados do fluxo do Sistema
convicção do acusador — o Ministério Público —, de Justiça Criminal, o argumento de que a ima-
78 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 14 N o 40

gem do estuprador típico quanto à característica ções efetuadas entre os protagonistas e as policiais,
relacionamento existente entre agressor e vítima provenientes da aplicação de certas regras estatuí-
vai sendo construída ao longo do fluxo, a partir das, tais como a natureza da ação penal, a prisão
da associação das disposições e procedimentos durante o processo, a investigação dos crimes de
definidos nos códigos com os casos concretos autoria desconhecida etc. Assim, na fase de inquéri-
considerados característicos, negociada e manipu- to, o modelo caracteriza-se pela predominância de
lada por todos os envolvidos — protagonistas e agressores conhecidos da vítima, sobretudo de pais,
operadores do sistema. e pela freqüência reduzida de desconhecidos, pro-
Conforme mostram os Gráficos 10 e 11, da vavelmente autores de crimes considerados graves.
interação entre queixosos e atendentes, por ocasião Tal modelo não se altera na fase de denúncia,
da queixa, resulta um modelo de agressor que se sofrendo apenas um pequeno rearranjo quanto ao
caracteriza tanto por seu relacionamento com a grau de relacionamento entre agressor e vítima, com
vítima como pela falta deste. Queixas de estupros a diminuição da proporção de pais em favor de
intrafamiliares, mas também contra suspeitos ape- outras classificações tais como padrasto, outro pa-
nas conhecidos ou que mantêm um relacionamento rente etc. É possível que, na altura da sentença, o
mais íntimo com a vítima constituem o universo dos modelo de agressor esteja condicionado pela aplica-
BOs. Na altura do inquérito, este modelo de relacio- ção de certas disposições definidas nos códigos
namento é filtrado em conseqüência de negocia- referentes à duração dos processos. Contudo, vimos

Gráfico 10
Estupro: relação entre réu e vítima a partir do comportamento do fluxo

90%
80%
70%
60%
50% desconhecido
40% conhecido
30%
20%
10%
0%
BO Inquérito Denúncia Sentença

Gráfico 11
Estupro: grau de relação entre réu e vítima a partir do comportamento do fluxo

pai
60%
padrasto
50%
namorado
40%
marido
30%
outro parente
20%
vizinho
10%
conhecido
0%
de trabalho
BO Inquérito Denúncia Sentença
outro
FAMILIARES OU DESCONHECIDOS? 79

que elas permitem apontar, com respeito ao relacio- incesto, pelo menos no que se refere àquele come-
namento entre agressor e vítima, o perfil daqueles tido contra vítimas menores de 14 anos. Procurei
que costumam ser condenados como estupradores. sugerir que a absolvição, nestes casos, é decorrente
Este é basicamente o mesmo que se desenha no sobretudo da atitude das vítimas de desmentir a
fluxo a partir do inquérito: desconhecidos envolvi- queixa, com o intuito de inocentar autores pais e
dos em casos graves, possivelmente seriais, e co- padrastos ou, em menor medida, de culpabilizá-los
nhecidos intrafamiliares, pais, sobretudo, mas tam- falsamente, motivadas ou instruídas por conflitos
bém outros parentes e padrastos. na família. É nesse sentido que as decisões sobre
Enfim, ao longo do funcionamento do fluxo, casos envolvendo familiares são consideradas difí-
a classificação da relação entre agressor e vítima e ceis, principalmente se comparadas àquelas que
de seu grau apresenta uma mesma configuração envolvem desconhecidos.
que se desenha a partir da fase do inquérito, Quanto ao grau de integração e/ou disjunção
quando conhecidos, principalmente pais, padras- do sistema com respeito a esta variável, considero
tos e outros parentes, mas também certos desco- que a uniformidade apresentada pela configuração
nhecidos, prováveis acusados de casos graves, do fluxo a partir da fase de inquérito indica que as
tornam-se os suspeitos e, posteriormente, os auto- decisões tomadas pelos operadores dos diferentes
res privilegiados do crime de estupro. Com referên- subsistemas tendo por referente o relacionamento
cia à relação de conhecimento entre agressor e entre as partes encontram-se bastante articuladas
vítima, pode-se dizer que, ao longo do fluxo, ela entre si.
vai sendo associada às caracterizações típicas usa- Para terminar, quero afirmar que o Sistema
das pelos agentes policiais e judiciais para defini- de Justiça Criminal foi aqui entendido como locus
rem o crime de estupro. de implementação de controle social, exercido
em vários níveis e pelos diferentes atores do
sistema — queixosa, policial, testemunha, promo-
Conclusão tor, juiz etc. —, tendo por referência suas concep-
Ao longo deste artigo procurei argumentar ções acerca de quebra de regra, transgressão,
que o relacionamento entre agressor e vítima é uma anormalidade e sobre como elas devem ser solu-
caracterização importante do crime de estupro, cionadas. A disjunção entre as soluções oferecidas
considerada nos códigos e utilizada pelos operado- pelo sistema e aquelas solicitadas pelas queixosas
res do Sistema de Justiça Criminal e pelas queixosas incita-nos a uma reflexão sobre a adequação do
para conferir significado a este crime. Sistema de Justiça Criminal para atender às de-
Interessada em investigar em que medida o mandas de resolução de conflitos feitas por aque-
fato de o suspeito ser ou não conhecido da vítima les que a ele recorrem.
condiciona as decisões no Sistema de Justiça Crimi-
nal, reconstituí quantitativamente o fluxo que este
sistema produz tendo por referência o relaciona-
NOTAS
mento entre as partes, bem como o seu grau. Desse
modo, foi possível demonstrar que, a partir da fase
de inquérito, os suspeitos conhecidos, principal- 1 O estudo sobre o Sistema de Justiça Criminal realizado
mente familiares — e, destes, sobretudo os pais —, por Coelho (1986) e o diagnóstico Indicadores sociais
de criminalidade elaborado pela Fundação João Pi-
são os mais culpabilizados pelo sistema. Também nheiro (1987) chamam a atenção para a necessidade de
indiquei que os autores desconhecidos parecem só se privilegiar o fluxo de processamento de pessoas e
ser penalizados quando cometem estupros conside- papéis entre os diversos subsistemas que compõem o
Sistema de Justiça Criminal, deslocando, assim, a inves-
rados graves, geralmente em série. tigação dos processos de decisão de cada um desses
A descrição do comportamento, ao longo do subsistemas para a análise do fluxo.
fluxo, das variáveis em estudo torna visível a 2 Dentre esses estudos vale destacar: Correa (1983), Fausto
predisposição, por parte do sistema, em punir o (1984), Feiguin et al. (1987), Ardaillon e Debert (1987),
80 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 14 No 40

Azevedo e Azevedo Guerra (1988) e, mais recentemente, 13 Ao receber o inquérito, o Ministério Público pode
Cohen (1993), Saffiotti (1994), Passetti (1995), Soares devolvê-lo à autoridade policial, solicitando novas dili-
(1996), Vargas (1997) e Pimentel et al. (1998). gências necessárias ao oferecimento da denúncia.
3 O trabalho de Azevedo e Azevedo Guerra (1988) sobre 14 O juiz dirige o processo no sentido de que, dentre
vitimização sexual de crianças e adolescentes foi reali- outras coisas, a ele cabe a condução do interrogatório
zado a partir de levantamento efetuado no Município de do réu e dos depoimentos das testemunhas e a
São Paulo, em documentos consultados na polícia, nas interpretação das respostas a serem registradas nos
varas de menores, na Fundação Estadual do Bem-Estar autos (Kant de Lima, 1997).
do Menor (FEBEM) e no Instituto Médico Legal (IML). 15 Na literatura acadêmica nacional, uma perspectiva insti-
Já o estudo de Cohen e Matsuda (1990, apud Co- gante para o estudo do Sistema de Justiça Criminal é
hen,1993) foi desenvolvido a partir de questionários aquela que sugere ser este formado de subsistemas
dirigidos às vítimas de violência sexual que comparece- frouxamente integrados, possuindo algum grau de coe-
ram ao IML de São Paulo durante seis meses do ano de são, mas também de disjunção (Coelho, 1986).
1992.
16 Campinas é o segundo aglomerado urbano do Estado
4 Estatísticas são produtos organizacionais; logo, a gera- de São Paulo, com uma população girando em torno de
ção de medidas diferentes reflete procedimentos distin- 1 milhão de habitantes. Como a maioria das cidades do
tos de registro de informações (Fundação João Pinheiro, interior paulista, Campinas viveu nos últimos anos
1987). profundas mudanças em sua estrutura produtiva, acom-
5 Cohen (1993) define o incesto como um abuso intrafa- panhando o ritmo de crescimento econômico da capital
miliar, com ou sem violência explícita, caracterizado do estado. Aparentemente, essas indicações credenci-
pela estimulação sexual intencional por parte de algum am-na como locus de ocorrência de criminalidade,
membro do grupo que possui um vínculo parental com tendo em vista a tendência, a partir dos anos 80, de
o (a) abusado (a) pelo qual lhe é proibido o matrimônio. aumento da criminalidade violenta nas grandes cidades
6 Trata-se de um trabalho mais abrangente sobre a violên- brasileiras.
cia contra crianças e adolescentes no Brasil, no qual a 17 Indivíduos e instituições, em geral, sabem o risco que
autora dedica um capítulo ao estudo da violência correm ao se exporem à observação (Besson, 1995).
sexual, apresentando os resultados da pesquisa por ela Ora, a polícia lida com esta questão de maneira particu-
realizada em duas DDMs de São Paulo em 1993. lar, visto que observar é justamente a parte principal de
7 Estes dados fazem parte de um estudo no qual as seu ofício. Por este motivo, o acesso aos dados registra-
autoras buscaram analisar processos judiciais e acór- dos pelas policiais só foi possível mais de seis meses
dãos de estupro no Brasil a partir de uma perspectiva de depois de iniciado o trabalho de campo, quando uma
gênero. certa relação de confiança já estava estabelecida.

8 A violência em crimes de estupro deve ser provada. Em 18 Os quadros com as tabulações dos dados e seus cruza-
certas circunstâncias enumeradas em lei (art. 224 do mentos não serão apresentados aqui, devido à falta de
CP), tais como (a) a menoridade da vítima (menos de 14 espaço, mas encontram-se à disposição dos interessa-
anos); (b) ser alienada ou débil mental e isto ser do dos.
conhecimento do agente; e (c) não poder por qualquer 19 Algumas informações ausentes dos BOs puderam ser
outra causa oferecer resistência, o legislador presume identificadas no Livro de Registro de Ocorrências. Anti-
que tenha havido violência. No caso da menoridade da gamente, as queixas eram registradas pela polícia em um
vítima, ainda que ocorra o consentimento desta, este livro denominado Livro de Queixas. Com o aumento das
não é considerado válido. denúncias e o aperfeiçoamento do caráter burocrático
9 Em um instigante artigo denominado “Normal crimes”, desta organização, a queixa passou a ser registrada em
Sudnow (1965) defende a tese de que a regra que um formulário específico, o BO. Entretanto, o uso do Li-
descreve a atribuição de status penal a um aconteci- vro de Queixas, desde então denominado Livro de Regis-
mento deve ser procurada nos crimes normais, ou seja, tro de Ocorrências, permaneceu como um indicador de
no conhecimento típico adquirido pelos operadores da referência dos registros. Deste modo, foi possível, du-
justiça sobre a forma como esses crimes são regularmen- rante o levantamento das informações, comparar a lista
te cometidos. dos BOs reproduzidos com a lista que consta no Livro.

10 Entrevista com delegada. 20 A ausência destas classificações deve-se ao fato de que


o BO se destina à anotação de toda e qualquer ocorrên-
11 Entrevista com promotor de justiça. cia criminal, desde acidentes de trânsito até homicídios.
12 Decorrente dos diversos movimentos sociais surgidos na 21 “Aqui, a função do investigador é localizar as partes que
década de 80, em particular do movimento feminista, a não comparecem, fazer os relatórios, e é só. Porque
criação de delegacias de atendimento a mulheres foi uma aqui, pela escassez de pessoal, não há uma equipe de
tentativa de superar uma das críticas mais contundentes investigação que pega um boletim de ocorrência de
feitas às delegacias de costumes: o descaso e o precon- autoria desconhecida e vai investigar. O serviço de
ceito com que as vítimas eram atendidas e, conseqüente- investigação nosso aqui é zero!”. Entrevista com inves-
mente, o baixo índice de denúncias verificado. tigadora.
FAMILIARES OU DESCONHECIDOS? 81

22 A Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8072/90) criou a CICOUREL, A.V. (1968), The social organization of
hipótese de prisão temporária de 30 dias, prorrogável juvenile justice. Nova York, John Wiley &
por mais 30, a ser aplicada em caso de extrema e Sons, Inc.
comprovada necessidade, para permitir a coleta de
provas quando são poucos os dados de convicção __________. (1974), “Police practices and officials
obtidos, ou quando o suspeito não tem residência fixa, records”, in R. Turner (ed.), Ethnomethodolo-
ou não forneceu elementos para o esclarecer sua iden- gy, Ontário, Penguin Books.
tidade, podendo eventualmente vir a fugir.
CÓDIGO DO PROCESSO PENAL ANOTADO. (1986).
23 “A maioria acha que qualquer coisa de conotação sexual
Org. Damásio E. de Jesus. São Paulo, Saraiva.
é estupro. Eu já tive vítima que sexo oral para ela é
estupro.” Entrevista com escrivã. CÓDIGO PENAL E SUA INTERPRETAÇÃO JURISPRU-
24 Seja em razão do tempo decorrido entre o ato e o DENCIAL. (1987). São Paulo, Editora Revista
exame, seja devido à atitude da vítima de tomar banho dos Tribunais.
logo após o estupro, seja pela dificuldade de detectar
vestígios inerentes ao ato (alguns casos de atentado COELHO, E.C. (1986), “A administração da justiça
violento ao pudor, ou de estupro de mulher não criminal no Rio de Janeiro: 1942-1967”. Dados
virgem), ou outros motivos. — Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro,
25 Isto não lhes garante a manutenção destes laços; ao Iuperj, 29, 1: 61-81.
contrário, é comum o desmembramento da família em __________. (1988), “A criminalidade urbana violen-
decorrência da queixa.
ta”. Dados — Revista de Ciências Sociais, Rio
26 Foi possível observar em campo que a prisão do de Janeiro, Iuperj, 31, 2: 145-83.
agressor pai é considerada uma decisão difícil, pois
leva-se em conta o seu papel de provedor da família. __________. (1993), “Censo penitenciário do Rio de
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