Sunteți pe pagina 1din 200

LEI “MARIA DA PENHA”

LEI DE DROGAS

São Paulo, 2007

Ano 1 - Volume 1, nº 1, janeiro/junho 2007


LOGO
GOV. DO
ESTADO

ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO


PÚBLICO DE SÃO PAULO

Diretor Nélson Gonzaga de Oliveira


Assessores Adriano Ricardo Claro
Arthur Pinto Filho
Maria Amélia Nardy Pereira
Patrícia Moraes Aude
Coordenador Editorial Arthur Pinto Filho
Jornalista Responsável Rosana Sanches (MTb 17.993)
Capa Luís Antônio Alves dos Santos

LOGO DA
IMESP IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO DE SÃO PAULO

Diretor--presidente Hubert Alquéres


Diretor Vice-presidente Luiz Carlos Frigerio
Diretor Industrial Teiji Tomioka
Diretor Financeiro e Administrativo Richard Vainberg
Núcleo de Projetos institucionais Emerson Bento Pereira
Projetos Editoriais Vera Lúcia Wey

“Revista da ESMP”, co-edição ESMP/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, é semestral, com tiragem de 3 mil exemplares.
REVISTA
REVISTA
DA ESMP

LOGO DA
IMESP

Revista da ESMP, São Paulo, v. 1, nº 1, 1-200, janeiro/junho 2007


Ficha catalográfica elaborada pela
Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

Revista Jurídica. São Paulo: Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, 2007

Semestral
ISBN: 85-7060-206-5 (Imprena Oficial do Estado de São Paulo)

1. Direito - periódicos I. Escola Superior do Ministério Público. de São Paulo

Escola Superior do Ministério Imprensa Oficial do Estado de São Paulo


Público do Estado de São Paulo R. da Mooca, 1.921 - Mooca
R. Minas Gerais, 316 - Higienópolis 03103-902 - São Paulo - SP - Brasil
01244-010 - São Paulo - SP - Brasil Tel. (0xx11) 6099-9800
Tel.: (0xx11) 3017-7776/3017-7777 Fax.: (0xx11) 6699-9674
Fax: (0xx11) 3017-7754 www.imprensaoficial.com.br
www.esmp.sp.gov.br livros@imprensaoficial.com.br
e-mail: esmp@esmp.sp.gov.br SAC 0800-123401
Apresentação.................................................................................... 5
Nelson Gonzaga de Oliveira

I PARTE: Lei “Maria da Penha”

Lei Maria da Penha: Acertos e Erros........................................ 11


Camilo Pileggi

Í Aspectos Polêmicos sobre a Lei n° 11.340,


de 7 de agosto de 2006............................................................. 57

N
Luis Paulo Sirvinskas

Algumas Considerações sobre a Lei de Violência

D
Doméstica.................................................................................. 75
Cesar Dario Mariano da Silva

I
Violência Doméstica: Possibilidade Jurídica da Nova Hipótese
de Prisão Preventiva à Luz do Princípio Constitucional da
Proporcionalidade................................................................... 83

C
Rodrigo Silva Perez Araújo

O Casal de Militares perante a Lei Maria da Penha


(Lei 11.340/06)............................................................................. 105

E
Murilo Salles Freua

II PARTE: Lei de Drogas

A Posse ou Porte de Droga para Uso Próprio Continuará a ser


Crime após a Vigência da Nova Lei Antitóxicos?.................... 117
Cesar Dario Mariano da Silva

Considerações sobre a Causa da Diminuição da Pena Prevista


no Art. 33, Parágrafo 4°, da Lei Antitóxicos.............................. 123
Cesar Dario Mariano da Silva e Pedro Ferreira Leite Neto
Associação Ocasional (Art. 18, III, da Lei n° 6.368/06)............... 129
Eloísa de Sousa Arruda e Cesar Dario Mariano da Silva

III PARTE: Temas Variados

República e Isonomia................................................................... 137


Eduardo Martines Júnior e Orlando Bastos Filho

Í Roteiro para Investigação Criminal no Crime de Lavagem de


Dinheiro..................................................................................... 189

N
Arthur Pinto Lemos Júnior

D
I
C
E
Após dois anos de interrupção, estamos de volta com uma nova

A
publicação da ESMP, agora no formato de uma revista semestral que
engloba o antigo Caderno Jurídico (com temas específicos) e a Revista
Jurídica (com temas variados), publicados até 2004. Uma vez vencido

P
o contrato com a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, unir essas
duas publicações em uma só foi a solução encontrada para baratearmos
o custo e mantermos a divulgação de tão importantes artigos para os

R
membros do Ministério Público.

Nesta edição, dividida em três partes, o promotor de Justiça

E
encontrará artigos sobre a nova Lei de Violência Doméstica (na primeira
parte) e sobre a nova Lei de Drogas (na segunda parte), que entraram
em vigor em 2006 e provocaram inúmeros debates e seminários na
Capital e no Interior, promovidos pela Escola Superior do Ministério

S
Público, em parceria com o CAO à Execução e das Promotorias de
Justiça Criminais e o CAO das Promotorias de Justiça Cíveis, de
Acidentes do Trabalho, do Idoso e da Pessoa Portadora de Deficiência.

E O interesse do público nesses encontros e seminários foi tão


vultoso que percebemos a necessidade de se produzir material escrito

N
relacionado às exposições, mercê da escassez de doutrina sobre os
temas abordados. Para atingirmos esse objetivo, contamos com a
colaboração de Vicente Greco Filho, Luiz Roberto Cicogna Faggioni,
Carmen Lúcia da Silva, Ana Luiza Schmidt Lourenço Rodrigues, Paulo

T
Sergio Puerta dos Santos, Arnaldo Hossepian Salles Lima Júnior,
Augusto Eduardo de Souza Rossini, Airton Buzzo Alves, Evelise
Pedroso Teixeira Prado Vieira, Jurandir José do Santos, Gilson Sidney

A
Amâncio de Souza, Lindson Gimenes de Almeida, Paulo César Correa
Borges nos debates e, ainda mais valiosa, a atenção de Camilo Pileggi,
César Dario Mariano, Eloísa de Sousa Arruda e Luis Paulo Sirvinskas

Ç
como participantes nos debates e autores do material impresso que
agora apresentamos.

Ã
Na terceira e última parte da publicação, os promotores de
Justiça Eduardo Martines Júnior e Orlando Bastos Filho, ambos
professores de Direito Constitucional, dão uma verdadeira aula sobre
o tema “República e isonomia – licitação e sua inexigibilidade na

O
contratação de serviços advocatícios pelo Poder Público” e Arthur Pinto
Lemos Júnior, promotor do Gaeco, ensina o caminho para quem
pretende investigar a lavagem de dinheiro no Brasil.
Nossos agradecimentos, ainda, aos autores dos demais

A
estudos que integram a presente publicação, cuja colaboração
espontânea mostrou-se essencial para o sucesso dos seminários
promovidos e sem a qual esta Revista Jurídica não existiria.

P Finalmente, esperando que a presente publicação tenha


utilidade para o desempenho funcional dos promotres e dos demais

R
profissionais do Direito, encerro com a certeza de poder contar com a
colaboração de todos os colegas em futuras edições de nossa revista.

E Nelson Gonzaga de Oliveira,


procurador de Justiça,
diretor da Escola Superior do Ministério Público

S
E
N
T
A
Ç
Ã
O
LEI
“MARIA
DA PENHA”
PENHA”
ACER
CERTTOS
E ERR OS
ERROS

Camilo Pileggi,
1º Promotor de Justiça
Criminal de Santana
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007 13

LEI MARIA DA PENHA:


ACERTOS E ERROS
Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006

A lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, denominada Lei Maria da Penha, muito


antes de entrar em vigor, trouxe e continua a trazer inúmeras controvérsias e perple-
xidades.
Muito se tem discorrido sobre a teoria das penas, sua evolução histórica e sua
finalidade.
Iniciando pelas teorias absolutas ou retribucionistas (Escola Clássica), onde ao
mal do crime, o mal da pena; as teorias relativas ou ecléticas (alguns a denominando
utilitaristas), onde a pena tem que possuir caráter educacional, mas retributivo-educa-
cional; e chegando no estágio atual, onde a ressocialização é parte intrínseca da pena.
Vivemos, ao mesmo tempo, o estágio do minimismo, com a mínima interven-
ção estatal, quando as forças da sociedade podem resolver as questões criminais de
menor complexidade. Vemos, assim, o surgimento dos juízos arbitrais, o envolvimento
de organizações não governamentais na ajuda destes pontos conflitantes sociais.
Por tais aspectos, a Constituição Federal, sem seu artigo 98 estabeleceu que:
“Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios,
e os Estados criarão:
I - juizados especiais, providos por juízes togados, ou
togados e leigos, competentes para a conciliação, o julga-
mento e a execução de causas cíveis de menor complexida-
de e infrações penais de menor potencial ofensivo, median-
te os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas
hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de
recursos por turmas de juízes de primeiro grau”
Visando à celeridade e a economia processual, adotando-se procedimento oral
e sumaríssimo, os juizados especiais cíveis e criminais foram criados para diminuir o
número de causas e coibição de sentimento de impunidade.
Os juizados especiais cíveis e criminais foram criados com a finalidade de di-
minuição do número de causas e coibição de sentimento de impunidade, sempre
visando os princípios da celeridade e economia processual através de um procedi-
mento oral e sumaríssimo.
14 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007

Registre-se o pioneirismo do Estado de Mato Grosso do Sul, através da Lei


Estadual nº 1.071, de 1990, e do Estado de Mato Grosso, pela Lei nº 6176, de 1993,
que regulamentaram o artigo 98 da Constituição Federal.
Com este espírito veio a Lei nº 9099/95, buscando a oralidade, informalidade,
economia processual, celeridade e, pela primeira vez, dando-se atenção à vítima,
com clara preferência pela aplicação de penas não privativas de liberdade.
Estes princípios vieram claramente realçados nos artigos 2º e 62 da apontada
Lei.
A vítima nunca mereceu atenção do Estado na persecução criminal. Ela servia
como “testemunha” privilegiada do evento criminoso, necessária para justa imposi-
ção de pena. Jamais era ouvida e seus interesses e prejuízos eram ignorados. Basta
a simples análise da atual Constituição Federal para perceber quantas vezes se dis-
põe sobre direitos e garantias dos presos e das vítimas.
Com pouco mais de 10 anos de vigência, a Lei 9099/95 não foi cumprida como
deveria ser.
No incio de sua vigência, as soluções encontradas foram simplistas ao extre-
mo, adotando-se meros depósitos ao fundo penitenciário nacional como forma de se
evitar um processo. Num segundo passo, viu-se uma torrencial onda de doações de
cestas básicas, homogeneizando as soluções quando os fatos que lhe deram origem
não são iguais. A banalização das cestas básicas, sem se ater aos necessários pro-
cedimentos, medidas adequadas e encaminhamentos que os fatos sociais levados
ao conhecimento do Estado exigiam, acabaram por provocar um “levante” contra
esta generalização infundada e desproporcional.
Houve completa banalização das cestas básicas, sem se ater aos necessários
procedimentos, medidas adequadas e encaminhamentos que os fatos sociais leva-
dos ao conhecimento do Estado exigiam, provocando um “levante” contra esta gene-
ralização infundada e desproporcional.
Esqueceu-se que não se pode ver um processo criminal como um ato isolado,
que pode ser resolvido com uma sentença, pois esta, às vezes, não resolve o litígio.
O processo nos traz o conhecimento de um fato, que necessita de solução
multidisciplinar.
Os operadores do Direito não vislumbraram esta particularidade, talvez por co-
modismo, mas mais por falta de condições mínimas para sua aplicabilidade.
A Lei nº 9099/95 não é ruim como se fala e nem as medidas que propõe são
inadequadas. O erro começa com a inadequação dos operadores do Direito ao não
entenderem suas diretrizes ou não terem condições de cumpri-las.
Muitas vezes a transação penal se fazia em cartório ou em uma ampla sala
com todos os autores presentes, ao lado de seus advogados, vítimas e familiares,
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007 15

onde se dizia simplesmente: “Vocês farão uma doação de cesta básica para não
serem processados e ao final condenados. Alguém discorda ?”
Para o leigo, não há argumentos para se discordar.
Outras vezes, durante audiência preliminar, um conciliador ou um estudante de
Direito, sem a necessária visão social do problema, induz a um acordo de efeito
fictício, irreal, que termina no comprometimento vazio da “paz” no lar, que seria que-
brado na primeira bebedeira.
Como conseqüência do acordo, extingue-se o processo. Extingue-se a possibi-
lidade de encaminhamento para a solução do problema com visão da multi-
disciplinariedade. Extingue-se a credibilidade do sistema.
Pior ainda, quando não se consegue o aparente acordo, o “processo se extin-
gue” com a doação de uma cesta básica, que pode ser feita, por exemplo pela espo-
sa, porque ela é a única que trabalha, pois o marido ou companheiro está desempre-
gado e é alcoólatra. Assim, ela é vítima de lesão corporal e de desfalque financeiro em
seu lar.
É esta miopia social que gerou uma revolta contra a cesta básica, preconizada
pela Lei nº 9099/95.
Adequar uma medida socialmente justa e útil ao fato criminoso cometido é o
diferencial que se põe ao operador do Direito.
Muitas vezes a sociedade civil organizada (nem tanto organizada assim) tem
vontade de integrar o sistema de recuperação social, mas não sabe qual o caminho a
ser adotado. Do mesmo modo, Juizes de Direito e Promotores de Justiça, angustia-
dos pela falta de condições de trabalho, excesso no volume de feitos a sua aprecia-
ção, não vislumbram que o trabalho harmônico e integrado com estas organizações
poderiam ser sua alternativa penal.
Como a Lei nº 9099/95 não mereceu a devida atenção dos operadores do Direi-
to, a Lei 11.340/06 veio trazendo uma imposição contrária ao movimento mundial de
ressocialização, de menor intervenção estatal e de conciliação, para impor, através
do Direito Criminal ou Penal, um freio ou um temor para conter a violência doméstica
ou familiar.
Buscou o legislador, de maneira equivocada, impor a repressão para conter a
violência doméstica ou familiar, quando o caminho, com certeza, não é este.
Certo que motivos tinha o legislador para intervir nesta área, mas, como se diz:
“matou-se o paciente com o excesso de remédio”.
Entre homens e mulheres temos uma igualdade formal, advinda da Constitui-
ção Federal. A igualdade real está longe de retratar a realidade como pretende a Lei
Magna. Neste e em outros aspectos, paremos pois de ter atitudes hipócritas ou sim-
plesmente teóricas.
16 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007

Os direitos fundamentais foram assentados a partir da Revolução Francesa,


estabelecendo-se os denominados direitos de primeira geração, dentre eles a igual-
dade. Decorrem destes outros direitos humanos, denominados de segunda geração.
Passa-se a exigir, então, comportamento positivo do Estado, ou seja, presta-
ção de serviços ou de deveres, como direito de trabalho, lazer, educação, dentre
outros. De nada adianta a proteção dos direitos de 1ª geração (liberdade, principal-
mente), se o homem não possui as mínimas condições de uma existência digna.
Ninguém há de negar que a mulher, no mundo, sofre de violência de toda a
espécie. No mais das vezes, o argumento correto de defesa de seus direitos são
solapados pela força física e truculência.
Dentre os delitos de menor potencial ofensivo, a violência doméstica e familiar
deve ser vista com melhor atenção. Destes comportamentos que ocorrem entre qua-
tro paredes, decorrem nefastas conseqüências aos demais membros da família, em
especial aos filhos. Bem por isso devem ser vistos com outros olhos e tratados de
maneira diferenciada.
“Somente através da ação integrada do Poder Publico, em
todas as suas instâncias e esferas, dos meios de comunica-
ção e da sociedade, poderá ter inicio o tratamento e a preven-
ção de um problema cuja resolução requer mudança de valo-
res culturais, para que se efetive o direito das mulheres à não
violência.”
(exposição de motivos de encaminhamento do Projeto de Lei ao Presi-
dente da República, pela Comissão de Trabalho Interministerial criado pelo
Decreto nº 5030, de 31 de março de 2004, publicado no Diário do Senado
Federal, em 4 de abril de 2006, página 10758).
Como já dito, optou o legislador em impor a mudança social pela coação do
Direito Penal, em contra-fluxo da tendência mundial. É o Direito Penal o meio de
“enforcement” da concretização ou realização de seus objetivos. A escolha é lógica e
comodista: o Direito Penal tem coação, seus custos são mínimos, pois toda a estru-
tura está montada, necessitando de pequenos ajustes. O correto seria a adoção do
sistema que a lei preconiza, mas que dificilmente será implantado a curto ou médio
prazos. É evidente uma visão imediatista e até uso eleitoral da questão, tão grave e
séria para a sociedade brasileira.
Entendemos que não é o meio mais adequado.
O sistema repressivo estatal clássico, complexo, com o seu moroso inquérito
policial e uma extensa e burocrática produção de prova, onde não se permite ouvir as
pessoas de maneira ampla, pois a fala deve ser centrada nos fatos narrados na de-
núncia, onde as questões pessoais, de inter-relacionamento, são relegadas a segun-
do plano, não atingirá os objetivos da lei.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007 17

Pior ainda, teme-se a volta das “inevitáveis prescrições”, da perda de objetivida-


de do sistema, pois o tempo esvairá a necessidade da intervenção do sistema protetivo
imaginado pela lei.
A própria denominação popular da Lei (Lei Maria da Penha) originada de um fato
criminoso no qual o Brasil recebeu recomendação da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos da OEA, apontava o caminho a ser seguido quando alertou no
sentido de intensificar o processo de reforma que evite a tolerância estatal e o trata-
mento discriminatório contra a mulher no Brasil e em especial recomendou “simplifi-
car os procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o tempo pro-
cessual sem afetar os direitos e garantias do devido processo” e “o estabelecimento
de formas alternativas às judiciais, rápidas e efetivas de solução de conflitos intra-
familiares, bem como de sensibilização com respeito à sua gravidade e às conseqü-
ências penais que gera.”
Como veremos, na esfera criminal, a lei aprovada vem na contra mão da dire-
ção apontada.
Certo, porém, que a violência na família é o nascedouro da violência social.
O problema reside na desigualdade social entre homens, mulheres, brancos,
índios e negros, todas geradoras de violência. Não surpreende a vinda de tantas ou-
tras leis que visem à coibição destas violências.
Cada parcela da população terá sua lei especial, como especiais serão todas e
todas serão comuns ao final.
Será novamente uma miopia social que estamos presenciando ?

A QUEM SE DESTINA A NOVA LEI

Ao se examinar o artigo 1º da referida lei, temos a primeira impressão que o


legislador ordinário peca por inconstitucionalidade “ab initio”.
Informa que: “Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência do-
méstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição
Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra
a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Fede-
rativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Fami-
liar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em
situação de violência doméstica e familiar.”
Examinando-se o artigo 226 da Constituição Federal, temos em seu caput que
“A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”, ampliando o concei-
to para entidade familiar, “aquela comunidade formada por qualquer dos pais e seus
18 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007

descendentes (§ 4º) repartindo os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal


são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher” (§ 5º) para, culminar o artigo,
impondo ao Estado o “dever de assegurar a assistência à família na pessoa de cada
um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de
suas relações” (§ 8º).
Numa primeira leitura, podemos incidir no erro de pensar que a nova lei, ao se
dirigir especificamente à mulher, estaria ferindo frontalmente a igualdade formal posta
na Constituição (artigo 5º e seus incisos).
A intenção do legislador foi forçar e provocar a mudança social (e da mentalida-
de de seus membros) por meio de uma lei, que contém aspectos administrativos,
civis, trabalhistas e especialmente penais.
É uma ação afirmativa em favor da mulher vítima de violência doméstica, como
também o é a reserva de vagas em universidade para negros e pobres, vagas desti-
nadas a deficientes em concursos públicos, dentre outras.
Uma superficial leitura da Convenção Interamericana Para Prevenir e Erradicar
a Violência contra a Mulher, conhecida como “Convenção de Belém do Pará”, realiza-
da em 09 de Junho de 1994, pode-se ver que todas as alterações realizadas no pro-
jeto de Lei original, que lhe desnaturaram e pioraram, tentaram introduzir os princípios
ali contidos, que são programáticos, metas de longo prazo, que respeitam a peculia-
ridade de cada país aderente.
Que a intenção do legislador vai provocar tratamentos desiguais, com certeza
teremos. Se estes tratamentos desiguais podem gerar inconstitucionalidade genéri-
ca, com o efeito de estirpar a Lei do ordenamento jurídico, acredito que não. Eventual
argüição de inconstitucionalidade no caso concreto é admissível.
A par desta intenção, continua a lei a discorrer dispositivos programáticos, que
mais se aplicariam a todos e não somente às mulheres, os quais poderiam ser evitados.
É o que se vislumbra no artigo 2º: “Toda mulher, independentemente de classe, raça,
etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos
fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilida-
des para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral,
intelectual e social.”
O mesmo se observa do artigo 6º (“A violência doméstica e familiar contra a mulher
constitui uma das formas de violação dos direitos humanos”), ou no artigo 3º (“Serão assegu-
radas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à
saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao
lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e
comunitária.”) impondo obrigações ao Estado de criar um sistema, políticas públicas
(de Estado e não de Governo) “que visem garantir os direitos humanos das mulheres no
âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007 19

Esta parte final é o grande mote da Lei: a criação de política pública, de um


sistema organizado e harmônico no trato da violência doméstica e familiar.
A redação original do projeto encaminhado à Câmara dos Deputados (PL nº
4559, de 2004) dava a abrangência destas obrigações: “Art. 3º - É dever da família, da
comunidade, da sociedade e do Poder Público, em especial, assegurar à mulher...”. Na Câma-
ra dos Deputados, a redação ainda continuava desta forma. Entretanto, a redação
final perdeu a força da eloqüência de suas palavras, ao vagamente dizer que “serão
asseguradas às mulheres...”.
Este é o grande desafio da lei. Este é o grande desafio dos administradores
públicos e dos operadores do Direito: ousarem fazer justiça. Não apenas a mecânica
aplicação da lei, como se tivéssemos balança de precisão ao medir componentes
químicos para um novo produto.
Só espero não assistir, novamente, a grita pela federalização (embasada no
artigo 6º) de determinados crimes sob argumentos falsos, com inescondíveis inten-
ções de atrair a mídia para casos certos e determinados. O Poder Judiciário Federal,
o Ministério Público Federal e a Polícia Federal não possuem condições humanas e
materiais de tratar destas questões em todo o País. A não ser que se pense em
atuação específica em determinado evento, o que foge ao sistema criado e me impõe
a pensar em mera atração pelo holofote, em detrimento de tão grave questão social.
Os elementos postos nesta fórmula são diferentes e exigem tratamento dife-
rente. Daí porque o artigo 4º da lei deve ser sempre lembrado:
“Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins so-
ciais a que ela se destina e, especialmente, as condições
peculiares das mulheres em situação de violência domésti-
ca e familiar.”
Assim, sujeito passivo é a mulher. O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa,
desde que inserida no conceito de violência domestica ou familiar. Insere-se o filho
que agride a mãe; marido que agride a mulher; neto que agride a avó; empregador
que agride a empregada doméstica; companheiro que agride a companheira. O im-
portante é que exista o requisito de existência previsto na lei: âmbito doméstico ou
familiar. O fato de vizinhas se agredirem em razão de desentendimento de vizinhança
não se enquadra na nova lei.
Vários incidentes processuais poderão ser resolvidos pelos institutos da cone-
xão e continência. Assim, muito se tem falado em tratamento diferenciado se um pai,
violentamente agride seus filhos, um casal de filhos, o que geraria tratamento diferen-
ciado. Tais questões podem ser resolvidas por estes institutos e por outros.
Argumentam que determinadas mulheres já possuem atenção legislativa espe-
cial, como a prevista no Estatuto do Idoso ou Estatuto da Criança e do Adolescente.
Nada impede que este sistema protetivo seja apreciado sob estes dois enfoques.
20 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007

O CONCEITO E AMPLITUDE DA VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

Em evidente interpretação autentica, o legislador definiu a “violência doméstica e


familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte,
lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.”
Assim, para que se configure delito, necessário que a conduta ou omissão te-
nha por base a relação de gênero, ou seja, o delito cometido sobrepondo-se à diferen-
ça entre homem e mulher, onde se vislumbra violência intra-familiar, com
contraposição de poder e afeto, de subordinação e dominação.
O Projeto de Lei original (PL nº 4559, de 2004), em seu artigo 5º, Parágrafo
Único, definia relações de gênero como “as relações desiguais e assimétricas de valor e
poder atribuídas às pessoas segundo o sexo.”
Neste aspecto, a primeira impressão que fica é que se está falando apenas do
relacionamento afetivo que existe ou existiu entre homem e mulher. Na verdade a lei
deu amplitude de garantia à mulher, e não somente à esposa, companheira, namora-
da ou noiva.
Tanto assim que prevê distinção entre violência doméstica e a familiar.
Definiu a “unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de
pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas” (inciso I do
artigo 5º), donde se conclui ser possível enquadrar nesta lei eventual violência sofrida
por empregada doméstica que tenha sido cometida por qualquer morador da residên-
cia que preste seus serviços.
De igual modo, no inciso II do artigo 5º, a família foi definida como “a comunidade
formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por
afinidade ou por vontade expressa”. Assim, eventual violência contra enteado se enqua-
draria nestas hipóteses.
Alargando ainda mais o campo de incidência da nova lei, o inciso III do artigo 5º
impõe que a novel norma se aplicará “em qualquer relação íntima de afeto, na qual o
agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação”. As-
sim, homem, separado judicialmente de sua ex-esposa há mais de 10 anos, pode ter
sua conduta analisada sob o aspecto desta lei.
Por fim, pela primeira vez, as disposições desta lei não se restringem apenas
no aspecto formal homem e mulher, mas alcança as relações homossexuais (Pará-
grafo Único do artigo 5º).
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007 21

DAS FORMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA


E FAMILIAR CONTRA A MULHER

A lei, além de dar o conceito e o alcance da violência, estipulou as formas da


violência contra a mulher.
A definição e a conceituação de violência como sendo física, sexual, psicológi-
ca, moral e patrimonial não é aleatória. Seguiu orientação da “Convenção de Belém
do Pará”, de 1994, que repetiu orientação contida no “Modelo de Leyes y Políticas
sobre Violência Intra-familiar contra las Mujeres”, publicado em abril de 2004 pela
Unidad,Género y Salud da Organização Mundial de Saúde – OPS/OMS, que reco-
mendou que toda legislação política e pública deve incluir estas definições.
Quanto aos incisos I, III e IV do artigo 7º, não se vê qualquer dificuldade em seu
entendimento:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que
ofenda sua integridade ou saúde corporal;
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que
a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação
sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação
ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de
qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qual-
quer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à
gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chan-
tagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o
exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer condu-
ta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou
total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos
pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos,
incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
O problema começa a exigir maiores cuidados na interpretação quando se ana-
lisa o inciso II:
II - a violência psicológica, entendida como qualquer con-
duta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-
estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvol-
vimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, com-
portamentos, crenças e decisões, mediante ameaça,
constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vi-
gilância constante, perseguição contumaz, insulto, chanta-
gem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir
e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saú-
de psicológica e à autodeterminação;
22 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007

A análise desta conduta deve ser cercada de sua seriedade, de sua constância
ou sua intenção. Nos conflitos familiares, invariavelmente, ofensas são proferidas.
Algumas são fruto de intempestividade verbal, outras de tanta insistência e reitera-
ção, podem incutir este dano emocional. Assim, a ponderação e o bom senso é o
caminho do operador do Direito neste campo.
Por fim, o inciso V, que define a violência moral, “como qualquer conduta que confi-
gure calúnia, difamação ou injúria.” Evidente que tal enumeração é apenas uma disposi-
ção sem qualquer utilidade, posto que o Código Penal já tipifica tais condutas.
Alguns podem considerar inútil a enumeração destas definições, mas a idéia
subjacente é o de cumprir as recomendações da Organização Mundial da Saúde.
Como se vê é mera enumeração exemplificativa e não “numerus clausus”.

DO SISTEMA DE ASSISTÊNCIA E PROTEÇÃO À MULHER


EM FACE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA OU FAMILIAR.

DAS MEDIDAS INTEGRADAS DE PREVENÇÃO.

O que não pode estar esquecido de todos é a dificuldade de se implantar o


esperado sistema de assistência e proteção, que deve se compor por ações integra-
das e harmônicas, envolvendo todos os órgãos governamentais (União, Estado, Mu-
nicípios, Distrito Federal, não apenas o Poder Executivo, mas o Poder Judiciário tam-
bém), atingindo ações não governamentais.
Estas medidas ou orientações programáticas estão previstas no artigo 8º.
A primeira medida ou diretriz preconiza a integração operacional de todos os
órgãos apontados no inciso I, Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Públi-
ca com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, traba-
lho e habitação.
A segunda diretriz é o necessário estudo científico da questão, que certamente
orientará futuras decisões (II - a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras
informações relevantes, com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia, concernentes às
causas, às conseqüências e à freqüência da violência doméstica e familiar contra a mulher,
para a sistematização de dados, a serem unificados nacionalmente, e a avaliação periódica dos
resultados das medidas adotadas).
A terceira diretriz é uma primeira incursão nos meios de comunicação social, que
devem ter como papel fundamental a solidificação de princípios básicos e salutares
para a sociedade. Os meios de comunicação, além de serem importantíssimos na
difusão da cultura e diversão, tem papel fundamental na educação do cidadão, em
todos os seus aspectos. Não se trata de indevida intromissão no domínio privado, pois
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007 23

a operação de meios de comunicação é uma concessão estatal. Para tanto, esta


orientação ou diretriz deveria ser estendida a diversas áreas e não somente a esta.
O inciso III faz expressa menção a dispositivos constitucionais que abrangem a
dignidade da pessoa humana, promoção do bem de todos, sem preconceitos de ori-
gem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação e ao respeito
aos valores éticos e sociais da pessoa e da família. (III - o respeito, nos meios de comu-
nicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis
estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar, de acordo com o
estabelecido no inciso III do art. 1º, no inciso IV do art. 3º e no inciso IV do art. 221 da Consti-
tuição Federal).
A quarta diretriz consiste na “implementação de atendimento policial especializado
para as mulheres, em particular nas Delegacias de Atendimento à Mulher” (inciso IV). O que
se espera é que esta Delegacia de Atendimento à Mulher, que em São Paulo são
chamadas de Delegacias de Defesa da Mulher, sejam dotadas de infra-estrutura mí-
nima, com apoio profissional multidisciplinar ou integrada em um Centro Integrado de
Atendimento à Mulher.
A quinta diretriz (inciso V) preconiza “a promoção e a realização de campanhas
educativas de prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, voltadas ao público
escolar e à sociedade em geral, e a difusão desta Lei e dos instrumentos de proteção aos
direitos humanos das mulheres.”
A sexta diretriz (inciso VI) prevê a “a celebração de convênios, protocolos, ajustes,
termos ou outros instrumentos de promoção de parceria entre órgãos governamentais ou entre
estes e entidades não-governamentais, tendo por objetivo a implementação de programas de
erradicação da violência doméstica e familiar contra a mulher.”
A sétima diretriz (inciso VII), determina “a capacitação permanente das Polícias Civil
e Militar, da Guarda Municipal, do Corpo de Bombeiros e dos profissionais pertencentes aos
órgãos e às áreas enunciados no inciso I quanto às questões de gênero e de raça ou etnia”, aí
estando incluídos o Poder Judiciário e o Ministério Público.
Indispensável que estes órgãos realizem cursos de capacitação visando além
da melhoria qualitativa e quantitativa do conhecimento, a sensibilização sobre este
problema social.
A oitava orientação programática (inciso VIII) prevê “a promoção de programas edu-
cacionais que disseminem valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana
com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia”.
Por fim, a nona orientação (inciso IX), recomenda “o destaque, nos currículos esco-
lares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à eqüidade
de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher”.
Como se vê, a lei determina uma série de ações conjugadas, em vários níveis,
visando a prevenção e a proteção da mulher em situação de violência doméstica e
familiar.
24 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007

Esta atenção, num primeiro momento, seria dada pela EQUIPE DE ATENDI-
MENTO MULTIDISCIPLINAR, integrada por profissionais especializados nas áreas
psicossocial, jurídica e de saúde, prevista nos artigos 29 a 32.
A equipe de atendimento multidisciplinar, entre outras atribuições que lhe forem
reservadas pela legislação local, deve “fornecer subsídios por escrito ao juiz, ao Ministério
Público e à Defensoria Pública, mediante laudos ou verbalmente em audiência, e desenvolver
trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltados para a ofendi-
da, o agressor e os familiares, com especial atenção às crianças e aos adolescentes”.
O que mais nos chama a atenção na atual disposição sobre a equipe
multidisciplinar é que atualmente os Juizados PODERÃO constituí-las, enquanto na
proposta original a sua existência era prevista e obrigatória (artigo 14 a 17).
O mesmo se observa com outras medidas que integrariam o sistema de aten-
dimento especial à mulher, como se vê dos artigos 34/36:

“Art. 34. A instituição dos Juizados de Violência Doméstica e


Familiar contra a Mulher poderá ser acompanhada pela im-
plantação das curadorias necessárias e do serviço de as-
sistência judiciária.”
“Art. 35. A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municí-
pios poderão criar e promover, no limite das respectivas
competências:
I - centros de atendimento integral e multidisciplinar para
mulheres e respectivos dependentes em situação de vio-
lência doméstica e familiar;
II - casas-abrigos para mulheres e respectivos dependen-
tes menores em situação de violência doméstica e familiar;
III - delegacias, núcleos de defensoria pública, serviços de
saúde e centros de perícia médico-legal especializados no
atendimento à mulher em situação de violência doméstica e
familiar;
IV - programas e campanhas de enfrentamento da violência
doméstica e familiar;
V - centros de educação e de reabilitação para os
agressores.”
“Art. 36. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municí-
pios promoverão a adaptação de seus órgãos e de seus pro-
gramas às diretrizes e aos princípios desta Lei.”
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007 25

Não há obrigatoriedade na criação e nem o estabelecimento de um prazo para


a conclusão destes órgãos, programas e adaptação. Tal permissividade gerará a não
realização destas metas, inviabilizando o sistema protetivo imaginado pelo legislador.
Pior ainda, quando a própria lei estabelece saídas políticas e jurídicas pelo não
cumprimento, ao dispor:
Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípi-
os, no limite de suas competências e nos termos das res-
pectivas leis de diretrizes orçamentárias, poderão estabe-
lecer dotações orçamentárias específicas, em cada exercí-
cio financeiro, para a implementação das medidas
estabelecidas nesta Lei.
Como todos os entes federativos e seus poderes estão premidos pela Lei de
Responsabilidade Fiscal, a não ser que haja uma vontade política ou uma forte
mobilização social, estas diretrizes não serão colocadas em prática em curto ou
médio tempo.
Argumenta-se que o legislador não poderia obrigar o Administrador Público a
implementar esta rede de atendimento, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade,
violando a discricionariedade administrativa dos entes federados.
Se assim é, somente a mobilização social poderá promover este quadro de
descaso com esta questão.
Mesmo o Ministério Público, que pode intentar uma ação civil pública para a
defesa destes interesses, se verá frustrado diante de decisão judicial que lhe negue
esta pretensão. Assim, o Ministério Público, mais do que nunca, deverá se aliar e agir
conjuntamente com diversas entidades de defesa dos direitos da mulher ou da soci-
edade civil de uma maneira ampla.
Infelizmente, foi suprimida uma importante diretriz.
No projeto de Lei da Câmara nº 37, de 2006 (encaminhado ao Senado), que em
seu inciso IV, do artigo 8º, previa:
“a implementação de centros de atendimento integral e
multidisciplinar para as mulheres vítimas de violência do-
méstica e familiar, bem como assistência especial para crian-
ças e adolescentes que convivam com tal violência nos res-
pectivos serviços especializados.”

Esta previsão seria de muita valia no atendimento multidisciplinar da violência


de gênero, como preconizado pela lei. As experiências no tratamento de delitos de
menor potencial ofensivo sob esta ótica demonstraram excelentes resultados, como
os vistos na Promotoria de Justiça Criminal de Santana, em São Paulo.
26 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007

DA ASSISTÊNCIA À MULHER EM SITUAÇÃO


DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR

A lei 11.340/06, em seu artigo 9º, prevê a coordenação de atendimento de áreas


distintas, o que exigirá uma rápida regulamentação, pois mescla atividades de Juiz
Criminal Especializado com área da Previdência Social, do Sistema Único de Saúde
e Segurança Pública.
Nem sempre o preconizado em uma lei pode ser facilmente cumprido, até por
falta de canais de comunicação e de previsão administrativa.
O artigo 9º diz que “a assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar
será prestada de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgâni-
ca da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública,
entre outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso”.
A Lei 8742/93 dispõe sobre a organização da Assistência Social. Os seus prin-
cípios estão enumerados nos artigos 1º a 4º. A lei nº 8.080, de 19 de Setembro de
1990, dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saú-
de, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes – SUS, cujos
princípios básicos norteadores estão nos artigos 2º a 4º. São disposições genéricas,
que podem ser aplicadas às relações de gênero.
Com isto, o regulamento destas leis tem que sofrer alterações para que possa
o Juiz de Direito determinar, por prazo certo, a inclusão da mulher em situação de
violência doméstica e familiar no cadastro de programas assistenciais do governo
federal, estadual e municipal. (§ 1º do artigo 9º).
De outro lado, certas medidas que são possíveis de serem adotadas pelo Po-
der Judiciário podem colocar em choque prerrogativas de poderes ou de princípios
constitucionais.
Quando o § 2º do artigo 9º permite que o “juiz assegurará à mulher em situação de
violência doméstica e familiar, para preservar sua integridade física e psicológica: (I) - acesso
prioritário à remoção quando servidora pública, integrante da administração direta ou indireta; ou
a (II) - manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de traba-
lho, por até seis meses” tais poderes necessitarão de regulamentação específica e
detalhada.
Por primeiro, o acesso prioritário à remoção, quando servidora pública, inte-
grante da administração direta, pode provocar colidência de interesses pessoais tam-
bém protegidos por supremacia legal. Imaginemos a hipótese de marido agressor de
sua esposa, Promotora de Justiça. Acaso haja esta determinação, alguns princípios
protegidos constitucionalmente poderão ser vulnerados. Problemática será a situa-
ção de servidora municipal, onde sua remoção não implicará necessariamente afas-
tamento territorial do problema.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007 27

Quanto ao segundo aspecto, a imposição de manutenção de vinculo trabalhis-


ta, decorre de imposição de medida a estranhos do contexto fático. O empregador
não guarda qualquer relação com a violência doméstica, por exemplo. Determinar o
Juiz Criminal que ele mantenha o vinculo trabalhista por até seis meses entendemos
haver impropriedade técnica (de competência).
A hipótese seria do Juiz de Direito Estadual comunicar ao empregador sua de-
cisão? Se o empregador não cumprir, qual medida de coerção (na esfera trabalhista)
que poderia ser imposta? Caberia uma reclamação trabalhista para, ai sim, um Juiz
Federal da Justiça do Trabalho determinar medidas atinentes? Se acatada a decisão,
qual a natureza da paralisação da jornada de trabalho: interrupção ou suspensão? Se
interrupção, os serviços não são prestados, mas o empregador permanece com as
obrigações acessórias decorrentes (férias, 13º salário, etc). Se suspensão, não con-
ta tempo de serviço, FGTS, recolhimento de contribuições ao INSS. Quem arcará
com o pagamento de todo o salário? Somente o INSS ou o empregador arcará com
os 15 primeiros dias? Qual o valor a ser pago, pois as leis acima indicadas apenas
prevêem o pagamento de um salário mínimo de forma continuada?
São questões de área jurídica específica, que demandam estudo e regulamen-
tação, que ainda não existem. Melhor explicando.
O artigo 9º remete aos princípios e diretrizes da LOAS, SUS e SUSP, como
disse, quanto a assistência da mulher em situação de violência.
Por outro lado, o § 2º, inciso II, do citado artigo, prevê a manutenção do vínculo
trabalhista quando houver necessidade de afastamento do local de trabalho, direito
este assegurado e declarado por um juiz de competência estadual.
Inicialmente há clara e direta intromissão de competência estadual na Justiça
do Trabalho, de natureza de competência federal, isto porque a declaração de manu-
tenção do vinculo viria de jurisdição diversa da trabalhista, o que poderia ensejar a
insurgência de sua eficácia por ausência de competência em razão da matéria.
Referida Lei interfere em matéria de direito material de ordem trabalhista, asse-
gurando uma garantia provisória de emprego por até 06 meses em casos de violên-
cia doméstica declarada pela jurisdição criminal.
Ademais, há previsão legal de competência do Poder Judiciário, cuja iniciativa
de lei não partiu do Presidente de Tribunal específico, o que poderia ensejar a argüi-
ção de inconstitucionalidade.
Ainda é nítido que a quantificação do período de manutenção é de caráter sub-
jetivo do Juízo Criminal.
Em que pese toda a interferência, é inegável que Lei Federal de natureza espe-
cífica previu manutenção de emprego, devendo ser admitida pelo ordenamento jurídi-
co, notadamente o Juízo Trabalhista, a quem produz os efeitos em todos os tipos de
contrato de trabalho subordinado.
28 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007

Tratando-se de benefício pecuniário prestado pelas diretrizes do LOAS, resta


claro que cabe ao Juiz Criminal comunicar a empresa, bem como o órgão
previdenciário, a quem cabe arcar com o valor salarial do período, sendo considerado
suspensão do contrato de trabalho.
Outrossim, a Lei não igualou a proteção da mulher em situação de violência com
a proteção da gestante, elevada a nível constitucional inserida no ADCT, art. 10, inciso II,
letra “b” , motivo pelo qual não receberia o valor integral salarial, mas o benefício do
LOAS, aplicando o art. 22 da Lei 8742/1993, ainda pendente de regulamentação.
O raciocínio encontra guarida na inserção da manutenção do emprego no art.
9º que remete à prestação pelo LOAS (Lei 8742/1993).
Não se pode onerar o empregador com o pagamento de salários e depósitos do
FGTS, além da ausência de prestação de serviços, a evento que não deu causa, sob
pena de discriminação contra a mulher no trabalho.
O máximo que se pode admitir é o pagamento, pelo empregador, do valor máxi-
mo previsto no LOAS, e compensação direta com as contribuições previdenciárias
devidas por este, igualando aos casos das prestações a título de salário-maternidade.
Em que pese todas as lacunas da Lei, temos que admitir a vigência da garantia
provisória de emprego fora de Lei de natureza trabalhista.
De qualquer forma, se houver a oneração do empregador em mais este aspec-
to, a mulher ficará sujeita a mais uma causa de discriminação. Como já ocorre com
a licença maternidade, em eventual desentendimento familiar que chegue ao conhe-
cimento do empregador, poderá ensejar sua demissão sem justa causa, antes que
este receba determinação judicial de manutenção do vinculo empregatício. Tal situa-
ção merece cuidado e reflexão.

DO ATENDIMENTO PELA AUTORIDADE POLICIAL

Prevê a lei um capítulo especial destinado ao atendimento pela autoridade policial.


Quando tomar conhecimento da iminência ou da prática de violência doméstica
e familiar, bem como o descumprimento de medida protetiva de urgência já deferida,
deve a autoridade policial adotar as providências já disciplinadas pelo Código de Pro-
cesso Penal, especialmente em seu artigo 6º. (artigo 10º da Lei).
O projeto original (PL 4559, de 2004) previa a ida da autoridade policial ao local:
“Art. 10 Nas hipóteses de violência familiar ou na iminência de serem praticadas contra mulhe-
res deverá ser imediatamente notificada a autoridade ou o agente policial para que possa com-
parecer ao local.”
Esta ida ao local decorreu da observação de que a informalidade no trato da
questão criminal, levada a escrito no termo circunstanciado impede uma visão mais
abrangente da situação fática posta em um plantão da autoridade policial.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007 29

Atendendo as peculiaridades tratadas na Lei, a autoridade policial tem algumas


outras providências a serem adotadas, sempre sob critério da necessidade, conveniên-
cia, bom senso e prudência.
Assim, é possível a proteção policial, o fornecimento de transporte para a ofen-
dida e seus dependentes para abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida; o
seu acompanhamento para assegurar a retirada de seus pertences (pessoais) do
local da ocorrência ou do domicílio familiar. Todas as medidas, como já dito, ante a
necessidade e conveniência, escoltadas pela prudência e bom senso (artigo 11).
Quanto às demais providências, como o encaminhamento da ofendida ao hos-
pital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal (inciso II do artigo 11), sua oitiva,
colheita de provas, requisições de exame, oitiva do apontado agressor e testemu-
nhas, prazos para conclusão e remessa dos autos de Inquérito Policial, são as nor-
mais e previstas no Código de Processo Penal (artigo 12 da Lei).
Uma destas providências consiste na oitiva do agressor e sua identificação.
Obviamente que esta identificação deve seguir os requisitos da Lei n. 10.054/00. Não
se justifica a identificação obrigatória se não paira dúvida sobre a identidade do agressor
e este for civilmente identificado.
Uma outra série de providências cabe à autoridade policial, que se não for bem
entendida ou mal executada, graves conseqüências poderão advir.
Trata-se de “informar à ofendida os direitos a ela conferidos nesta Lei e os serviços
disponíveis” (inciso V do artigo 11) e “remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expedi-
ente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de
urgência” (inciso III do artigo 12 da Lei).
Este pedido será tomado a termo pela autoridade policial, com a qualificação
das partes, dos dependentes e a “descrição sucinta do fato e das medidas protetivas solici-
tadas pela ofendida.” (§§ 1º e 2º do artigo 12), anexando cópia do BO e de todos os
documentos disponíveis em posse da ofendida. Atente-se que um documento de na-
tureza administrativa da polícia veio realçado pela lei, o boletim de ocorrência.
Há uma tendência de generalização deste pedido de medidas protetivas, com
distritos policiais elaborando uma planilha com várias medidas elencadas, bastando
apenas a marcação com um “X” em quadro adequado.
Como veremos a seguir, certas medidas protetivas são muito graves e não
podem ser solicitadas de maneira inadequada, sob pena de serem indeferidas e se
chegar a uma banalização e perda de credibilidade.
Há casos em que a mulher solicita todas as medidas protetivas previstas na lei,
como veremos a seguir, mas não “oferece” representação, outro tema tormentoso
que será também analisado. Ou seja, deseja as medidas protetivas de natureza civil,
mas nenhuma medida “protetiva” de natureza penal.
30 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007

De qualquer forma, estas incompatibilidades ou falhas poderão ser sanadas se


cumprido o disposto no artigo no art. 28, possibilitando à mulher, o acesso aos servi-
ços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita em sede judicial,
mediante atendimento específico e humanizado. Para tanto, estes serviços deverão
ser adequados para o rápido atendimento principalmente quando em sede policial,
que ainda não funciona.
É chegado o momento do Ministério Público manter contato com os Delegados
de Polícia para que sejam estabelecidos procedimentos conjuntos de colheita destes
elementos de prova, possibilitando a apreciação destes pedidos com maiores funda-
mentos fáticos e jurídicos. (artigo 8º, inciso I).
Poderia, por exemplo, a mulher receber devida orientação de quais documen-
tos e provas ela deve fornecer antes de comparecer em juízo, se necessário; pode-
ria, acaso necessário, ela ser imediatamente encaminhada ao Promotor de Justiça
para ser orientada quanto às medidas pleiteadas.
É indispensável que o sistema protetivo, preconizado pela lei, seja implementado
junto às Delegacias de Polícia. Por mais meritória que seja a atuação de algumas
Promotorias de Justiça e Fóruns, temos que entender que a Polícia é a porta de
entrada do sistema para estas questões. Este é o desejo programático do legislador
(artigo 8º, inciso IV).
Normalmente, as agressões ocorrem à noite, quando há o retorno ao lar depois
de um dia de trabalho. Para onde se dirigirá a mulher vítima às 22:00 horas de uma
quarta feira, por exemplo? Certamente será atendida pela polícia.
Por isto, o Ministério Público deve harmonizar suas ações e condutas com a
Polícia Civil, visando a criação da rede de proteção neste órgão público.
Mais ainda, deve envidar todos os esforços para que a Delegacia de Polícia
integre um Centro Integrado de Atenção à Mulher, onde esta será atendida pela Auto-
ridade Policial, mas também por Psicólogos, Assistentes Sociais, dentre outros. Que
neste centro, se possibilite seu acolhimento em casas abrigo (e não depósitos de
mulheres), com atenção aos seus filhos igualmente.
Certamente trata-se de um sonho, possível de ser alcançado por que não é
utópico. Basta percorrer, por exemplo, as faculdades que formam os profissionais
acima e verão as portas se abrirem, com alunos do último ano de formação se
predispondo a realizarem estágio supervisionado pelos Professores, sob fiscaliza-
ção dos respectivos Conselhos Regionais. Ao que se percebe, diversas entidades
buscam atender certas demandas, mas desconhecem a existência uma das ou-
tras ou se são conhecidas, parece que uma vai concorrer com a congênere. Inte-
ressante é a busca da união de esforços de todas as entidades e a sede da Promo-
toria de Justiça poderia ser o espaço adequado para a formação destas PARCERI-
AS (em letras maiúsculas propositadamente).
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007 31

DAS MEDIDAS DE NATUREZA CIVIL

Esta situação de colidência de interesses que deveriam andar umbilicalmente


atrelados, faz com que certas posturas da Lei sejam incongruentes.
Se o Juizado especial, que pode apreciar medidas cíveis e criminais, somente
pode ser acionado quando houver violência de gênero, portanto crime, inimaginável
solicitar-se estas medidas protetivas cíveis sem a existência de crime ou sem o inte-
resse em contribuir para que estes sejam apurados.
Por isto, a Lei, nos seus artigos 13 e 14, prevê a criação de Juizados de Violên-
cia Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com compe-
tência cível e criminal, para o processo, o julgamento e a execução das causas de-
correntes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Pode-se argumentar que não há incompatibilidade ao se desejar apenas medi-
das de natureza cível. Há sim, pois o crime nas relações de gênero é que deu compe-
tência a este novo Juizado. Se isto não for considerado, suprime-se juízo competente
para a questão: o Juízo da Família.
A regra geral de competência no Direito Penal é o local da infração. (Art. 70 do
CPP: A competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou,
no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução.)
Entretanto, o artigo 15 da norma nova dá à ofendida, a escolha do juízo compe-
tente para os processos cíveis, como se eles pudessem ser dissociados do fato
criminoso principal.
Assim está disposto o artigo :
Art. 15. É competente, por opção da ofendida, para os pro-
cessos cíveis regidos por esta Lei, o Juizado:
I - do seu domicílio ou de sua residência;
II - do lugar do fato em que se baseou a demanda;
III - do domicílio do agressor.
Esta possibilidade pode trazer infindáveis problemas. Imaginemos que um ca-
sal, num fim de semana prolongado, na cidade de Praia Grande/SP, tenham acirrada
discussão, em meio a qual o marido agride a mulher. A polícia é acionada, a vítima é
socorrida e todos são levados ao Distrito Policial da cidade. De retorno à cidade de
São Paulo, que dista 100 quilômetros aproximadamente, poderia a mulher solicitar as
medidas protetivas perante o juizado especial de que trata esta lei situado nas proxi-
midades de sua residência. Pelos termos literais do dispositivo, sim, mas a apuração
do fato delituoso está sendo levado em outro município, o que torna difícil a apuração
conjunta de todo o contexto.
32 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007

Ademais, viola-se princípio constitucional do Juiz Natural e não se pode alterar


regra consagrada de fixação de competência criminal.
Para se delimitar o alcance destas medidas protetivas e até que ponto elas
podem ter influência ou não, necessário um pequeno esboço sobre as mesmas.
A lei dividiu estas medidas em duas espécies ou destinadas a dois atores: dis-
ciplinou as medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor e as medidas
protetivas de urgência à ofendida
Qual a natureza destas medidas, sua eficácia, duração e alcance ?
O projeto original (PL 4559, de 2004) previu estas medidas dos artigos 22 a 29
denominando-as de MEDIDAS CAUTELARES.
Assim, corretamente se imaginou que estas providências são urgentes, gra-
ves, que colocam em riscos direitos da vítima, que se não houver imediata atuação
estatal, poderá sofrer danos irreparáveis, todas decorrentes de violência doméstica
e/ou familiar.
Há quem entenda que estas medidas, apesar de parecerem medidas cautelares,
são uma nova espécie, sui generis, que devem ser apreciadas com maior elasticida-
de e sem os rigorismos processuais impostos pelas cautelares já conhecidas.
Apesar de respeitar esta posição, não consigo vislumbrar característica própria
nestas medidas que exigiriam conduta diferente das já normalmente adotadas nas
cautelares.
Em todos os conflitos familiares ou domésticos se vislumbra o cometimento de
ameaças verbais, agressões ou a prática de vias de fato.
Na análise destas questões, o operador do Direito deve sopesar todos os ele-
mentos que implicam no pedido de uma medida de natureza cautelar. Deve sopesar
se estes elementos podem conduzir ao pedido de prisão preventiva, como se verá
mais adiante. Se tal análise não for realizada, inexoravelmente, perde sentido a exis-
tência de Varas de Família. Se assim se pensar, todos os processos de separação e
divórcio devem ser imediatamente remetidos a este novo Juizado, o que nos parece
um contrasenso e nem isto desejou a lei.
É esta a natureza primordial destas medidas protetivas de urgência, de cautelares,
onde se deve analisar o “fumus bonis iuris” e o “periculum in mora”. É dado ao juiz criminal
exercer o poder geral de cautela nas causas de natureza cível, limitadas por certo.
De resto e de maneira geral, as disposições não sofreram alteração.
O legislador apenas mudou o nome do instituto, devendo ser entendida sua
essência como cautelar.
Apesar de ser medida cautelar de natureza cível, ela guarda intima relação com
o fato criminoso, tanto que o caput do artigo 22 condiciona a constatação da prática
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007 33

de violência doméstica e familiar contra a mulher, daí porque se estranha a possibili-


dade da mulher optar por requerer medidas protetivas em juízo diferente do juízo
criminal que apura a infração penal.
O artigo 22. elenca as medidas protetivas de urgência (cautelares) que obrigam
o agressor, as quais podem ser acumuladas ou substituídas por outras (§ 1º do arti-
go), garantida sua efetividade até com o auxilio de força policial (§ 3º). Portanto, é uma
enumeração exemplificativa.
Algumas de razoável, lógica e imperiosa aplicação. Outras, nem tanto. Por exem-
plo, a suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao
órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, estabe-
lecendo ainda condições restritivas quando se tratar de policial ou militar; a outra
medida é o afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida,
parece-nos serem medidas plausíveis, reunidas as condições gerais de concessão
de uma medida cautelar, estremada, “inaudita et altera pars.”
Outras, entretanto, são discriminadas mas de duvidosa eficácia ou de difícil
fiscalização. O dispositivo discrimina a proibição de aproximação da ofendida, de
seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e
o agressor. Até se compreende a restrição quanto à ofendida, mas fixar uma distân-
cia torna-se impensável. Quanto aos familiares e testemunhas, acaso haja qualquer
coação, teríamos a incidência do artigo 344 do Código Penal, o que ensejaria sua
prisão preventiva (artigo 22, inciso III, letra “a”).
Quanto à distância, muitas vezes podemos nos deparar com a situação ser
provocada, pois não nos esqueçamos que estamos diante de conflitos familiares,
onde a emoção suplanta e sufoca a razão, o bom senso e a ponderação.
O mesmo raciocínio deve ser usado quanto à proibição de contato com a ofen-
dida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação (artigo 22,
inciso III, letra “b”).
A proibição de freqüentar determinados lugares a fim de preservar a integridade
física e psicológica da ofendida (artigo 22, inciso III, letra “c”) deve ser muito bem
analisada sob os requisitos necessários de uma cautelar. Imaginemos que durante a
tramitação de um procedimento desta natureza, haja a necessidade de se afastar o
marido de sua igreja.
A medida protetiva prevista no inciso IV, consistente na restrição ou suspensão
de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar
ou serviço similar, é salutar, mas melhor seria se a lei tivesse sido aprovada obrigan-
do e não possibilitando a instituição de equipes multidisciplinares, como o era no
projeto original. De outra parte, mesmo que exista a equipe, acaso seja necessária
sua prévia oitiva, deixa de ter a natureza urgente e necessária a medida pleiteada,
ensejadora de uma cautelar.
34 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007

Por fim, o inciso V prevê a prestação de alimentos provisionais ou provisórios.


Como bem expôs Carlos Alberto Álvaro de Oliveira, existem duas tutelas
jurisdicionais estruturalmente distintas, mas com a mesma função de prover
liminarmente a subsistência do alimentando. Regidos pela Lei nº 5.478/68 estão os
alimentos provisórios, que podem ser postulados quando se achem provadas a rela-
ção parental e a obrigação alimentar. Já os alimentos provisionais defluem da tutela
cautelar prevista no art. 852 e ss. do Código de Processo Civil e dependem dos pres-
supostos normais da tutela assecurativa, do fumus boni juris e do periculum in mora.
Interessante observar que os alimentos cautelares ou provisionais não clamam a
prova imediata do vínculo parental, embora também não signifique dizer que a sua
postulação judicial esteja restrita aos que não possuem prova antecipada de relação
de parentesco. (OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. A Tutela Cautelar Antecipatória e os
Alimentos Initio Litis. Revista de Processo, n. 49, São Paulo: RT, p. 99.)
Muita confusão existe a cerca destas duas modalidades de alimentos. Reina a
imprecisa idéia de que são sinônimos, mas como visto não o são.
Atento a esta precisão técnica e terminológica, há uma tendência em se fixar
somente os alimentos provisórios (regidos pela Lei 5.478/68 = art. 4º. Ao despachar o
pedido, o juiz fixará desde logo alimentos provisórios a serem pagos pelo devedor, salvo se o
credor expressamente declarar que deles não necessita.) e não os provisionais (regidos
pelo artigo 852 do CPC – “É lícito pedir alimentos provisionais: I - nas ações de desquite e de
anulação de casamento, desde que estejam separados os cônjuges; II - nas ações de alimen-
tos, desde o despacho da petição inicial; III - nos demais casos expressos em lei.”) Tal se
compreende pois os alimentos provisionais visam atendimento da necessidade bási-
ca e não o fornecimento de condições para processar alguém.
De qualquer forma, reina imensa confusão neste ponto, que pode ser suplanta-
do pelo artigo 4º da nova lei.
O parágrafo 4º do artigo 22 vem confirmar a natureza cautelar das medidas
protetivas de urgência.
Diz o referido parágrafo:

§ 4o Aplica-se às hipóteses previstas neste artigo, no que cou-


ber, o disposto no caput e nos §§ 5o e 6º do art. 461 da Lei no
5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil).

Este artigo se situa no Capítulo VIII, que trata Da Sentença e da Coisa Julgada,
na Seção I - Dos Requisitos e dos Efeitos da Sentença.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007 35

(Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obriga-


ção de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da
obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências
que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.
§ 5º Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do re-
sultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requeri-
mento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposi-
ção de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção
de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de
atividade nociva, se necessário com requisição de força policial.
§ 6º O juiz poderá, de ofício, modificar o valor ou a periodicidade da
multa, caso verifique que se tornou insuficiente ou excessiva.)

Há, ainda, um conjunto de Medidas Protetivas de Urgência à Ofendida, previsto


no artigo 23, onde o juiz poderá, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas:
I - encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa
oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento;
II - determinar a recondução da ofendida e a de seus depen-
dentes ao respectivo domicílio, após afastamento do
agressor;
III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem preju-
ízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e ali-
mentos;
IV - determinar a separação de corpos.

Importante, assim, salientar que a Lei prevê um sistema, uma rede de atendi-
mento. Com isto, todas as instituições e órgãos da Administração Pública devem
cumprir imediatamente o papel que lhe caiba, sob pena de se frustrar a intenção do
legislador.
Ainda visando a proteção da mulher, especialmente o seu patrimônio, a lei con-
fere ao Juiz poderes cautelares amplos, com reflexo em terceiros, o que, mais uma
vez, demanda cuidado e bom senso.
O art. 24 determina que para a proteção patrimonial dos bens da sociedade
conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar,
liminarmente a restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendi-
da (inciso I). Subentende-se que se tratam de bens particulares (pessoais) da vitima.
Mesmo aqueles que pertençam à sociedade conjugal, no momento em que se ultra-
passou a quota parte do agressor.
36 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007

Poderá o juiz proibir temporariamente a celebração de atos e contratos de com-


pra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial
(inciso II). No caso em estudo, a propriedade em comum é a imóvel. Por esta possibili-
dade, a mulher estaria sendo considerada incapaz, sem ter sido interditada e ter sido
nomeado um curador.
Poderá, ainda, suspender as procurações conferidas pela ofendida ao agressor
(inciso III). Neste aspecto, não há motivo do juiz se substituir à apontada vítima, sendo
esta novamente tratada como incapaz. Poderá a vítima revogar os poderes concedi-
dos, pois à evidência a procuração será pública. Ademais, direitos de terceiros poderão
ser atingidos acaso não haja a mais ampla e rápida publicidade do ato judicial. Daí a
providência ditada pelo parágrafo único, que obriga o juiz oficiar ao cartório competente.
No inciso IV, permite-se ao Juiz exigir a prestação de caução provisória, medi-
ante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violên-
cia doméstica e familiar contra a ofendida. À Evidência que se trata de violência do-
méstica ou familiar, de natureza patrimonial, como vimos no início desta exposição.
Esta medida tem natureza eminentemente cautelar. O Código de Processo Civil já
disciplina a questão, quando trata das Disposições Gerais das medidas cautelares
no processo cautelar.
“Art. 798. Além dos procedimentos cautelares específicos, que
este Código regula no Capítulo II deste Livro, poderá o juiz deter-
minar as medidas provisórias que julgar adequadas, quando hou-
ver fundado receio de que uma parte, antes do julgamento da
lide, cause ao direito da outra lesão grave e de difícil reparação.
Art. 799. No caso do artigo anterior, poderá o juiz, para evitar o
dano, autorizar ou vedar a prática de determinados atos, ordenar
a guarda judicial de pessoas e depósito de bens e impor a pres-
tação de caução.
Art. 800. As medidas cautelares serão requeridas ao juiz da cau-
sa; e, quando preparatórias, ao juiz competente para conhecer
da ação principal.”
A lei prevê ainda mais uma medida protetiva, prevista no artigo 21, pois “a ofendi-
da deverá ser notificada dos atos processuais relativos ao agressor, especialmente dos perti-
nentes ao ingresso e à saída da prisão, sem prejuízo da intimação do advogado constituído ou
do defensor público.” Trata-se de medida protetiva processual, com a intenção de alertar
a mulher para que se prepare e se previna de eventuais percalços que podem advir
da liberdade do agressor.
Por fim, a lei criou mais uma medida protetiva a mulher, prevista no artigo 9º,
quando prevê sua assistência no sistema previdenciário, bem como lhe garante pre-
ferência (quando em igualdade de condições) em eventual necessidade de remoção
no serviço público ou garantia de emprego quando na iniciativa privada, tema já abor-
dado anteriormente.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007 37

DO PROCEDIMENTO NOS PEDIDOS


DE MEDIDA PROTETIVA DE URGÊNCIA

Como vimos, a autoridade policial, assim que registrar o fato em boletim de ocor-
rência, deve tomar a termo o pedido de providências, juntar cópia do BO e todos os
documentos pertinentes que estão na posse da ofendida e imediatamente encaminhar
o expediente em apartado ao Juiz no prazo de 48 horas (artigo 12, inciso III e seu § 1º).
Insisto que este encaminhamento é crucial para a perfeita análise do requeri-
mento em sede Judicial. Daí porque o entendimento do Promotor de Justiça com o
Delegado de Polícia estabelecendo-se os requisitos que devem ser buscados para
aparelhar este pedido é primordial. Nada impede que a mulher seja orientada que
procure imediatamente o Promotor de Justiça, se se entender necessário.
Em igual prazo, deve o Juiz decidir o pedido sem a necessidade de se ouvir as
partes ou o Ministério Público (artigo 19, §1º), como se vê do artigo 18, além de adotar
outras medidas de caráter emergencial, como o encaminhamento da ofendida ao
órgão de assistência judiciária (vide artigo 27), quando for o caso e comunicar ao
Ministério Público para que adote as providências cabíveis, dando-lhe ciência das
medidas já adotadas. Além do réu e seu defensor, a ofendida deverá ser intimada de
todo ato processual, inclusive os atos processuais relativos ao agressor, especial-
mente os pertinentes ao ingresso e à saída da prisão.
Salutar seria a designação de audiência de justificação prevista no art. 804 do
CPC, para que a vítima, ou o Ministério Publico se requereu a medida, produzam
provas de sua pretensão. Esta audiência será necessária, pois a vítima normalmente
está procurando a Delegacia de Polícia, relata os fatos e o Delegado de Polícia ape-
nas reduz a termo a sua pretensão, encaminhando o pedido em 48 horas para o
Fórum. Este pedido não vem aparelhado com qualquer prova e mesmo a narrativa
dos fatos ainda é precária e sucinta.
Há quem argumente que se deve restringir a atuação preliminar judicial por
analogia ou nos moldes do artigo 130 do ECA (lei 8069/90 - Art. 130. Verificada a hipótese
de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsável, a autoridade
judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia
comum.). Tal postura não se compatibiliza com todos os poderes postos nas mãos do
Magistrado, com sua finalidade e abrangência, a qual pode ser vista nos artigos 22 a
24 da Lei.
Não se permite mais que a ofendida entregue a intimação ou notificação ao
agressor.
O Ministério Público tem legitimidade ativa para requerer medidas, mesmo que
não pleiteadas pela vítima diretamente, desde que estas sejam urgentes e necessá-
rias (artigo 19). A amplitude desta atuação deve ser muito bem balizada pela capaci-
dade e vontade da mulher. Ela não pode ser considerada incapaz porque a lei assim
38 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007

o diz. A incapacidade não se presume dos termos da lei e sim dos fatos postos à
análise do Promotor de Justiça, o qual deve verificar a sua vontade e a necessidade
de sua proteção. Esta substituição processual não pode acarretar a mulher mais
uma forma de subjugação e sim de proteção.
Nestes casos, a lei deixou mais do que evidente o poder geral de cautela do
Juiz, além de permitir que ele, de ofício, vele pela efetividade de suas decisões. Os §§
2º e 3º deixam claro que as medidas protetivas de urgência serão aplicadas isoladas
ou cumulativamente, e poderão ser substituídas a qualquer tempo por outras de mai-
or eficácia, sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou vio-
lados, podendo atingir não só a ofendida, mas seus familiares e seu patrimônio.
O Projeto de Lei da Câmara nº 37, de 2006, previa na fase inicial, após a deci-
são sobre as medidas protetivas pleiteadas, a designação de uma audiência prelimi-
nar (art. 18, inciso I – conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as medidas
protetivas, no prazo máximo de 48 h (quarenta e oito horas), designando, em segui-
da, audiência preliminar;)
Observe-se que a lei não estipulou prazo de duração ou eficácia da medida
cautelar deferida.
Há quem entenda tratar-se de medida cautelar própria, satisfativa, que perderá
sua eficácia ou sua validade quando decisão de juiz competente verter sobre a matéria.
Seus efeitos durarão enquanto estiverem presentes os seus requisitos de existência e
validade ou até a sobrevinda de provimento jurisdicional cível/família competente.
O grande cerne da questão é se esta medida for concedida “inaudita et altera
pars”, o agressor ficará tolhido de produzir sua defesa até que se intente medida
apropriada e definitiva no juízo civil ou de família competente.
Outra corrente entende que a eficácia da medida durará enquanto estiver em
tramitação a ação penal, já que esta vincula todo o Juizado.
Entretanto, não podemos esquecer que a medida tem caráter e efeitos civis,
vinculando-se a procedimento criminal que possui outra dimensão e outra objetivida-
de. Algumas medidas poderão afetar terceiros, alheios ao procedimento criminal, como
a revogação de procuração que interferirá em negócios jurídicos realizados, não se
permitindo, em princípio, o ingresso no processo criminal como um prejudicado ou
afetado. A questão criminal lhe é alheia. Certamente, o terceiro terá que se valer das
vias próprias para defender seus interesses.
Um ponto parece ser unânime: se o inquérito policial for arquivado, entende-se
que a medida deverá ser revogada dependendo da fundamentação do arquivamento.
Outros entendem que a medida perderá automaticamente sua vigência com o arqui-
vamento dos autos.
Por fim, à similitude com o processo civil, entende-se que a medida protetiva
terá eficácia por 30 dias, obrigando-se a vinda de uma ação principal.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007 39

Tal postura também não se coaduna. A fixação do prazo de trinta dias não pode
ser aceito, pois, por exemplo, a finalização do inquérito ou o trâmite da ação penal não
está colocada nas mãos da vítima. Daí se entende a posição que esta medida protetiva
seria sui generis e não meramente cautelar.
Toda medida cautelar, garantista ou protetiva, deve ser analisada de per si. A aná-
lise dos artigos 22 a 24 conduz ao raciocínio amplo, num pensar em rede de proteção.
Estamos diante de uma questão histórica e cultural, que exige o repensar de todos os
Operadores do Direito. Esta reavaliação, que passa por cursos de capacitação e
sensibilização pela questão de fundo, dará uma justa e ponderada decisão.
Fica evidente que o juizado especial tratará a matéria num primeiro momento
de urgência, preventivamente, visando evitar o perecimento de direito ou a ocorrência
de danos irreparáveis, evitando novos delitos.
Não se deu ao Juizado competência plena na área de família, podendo-se pro-
mover a separação, divórcio, regular alimentos e a guarda e a visita de filhos. As
medidas judiciais concedidas são provisórias, satisfativas por si mesmas, que
independem de uma ação principal naquele juízo (o criminal). A matéria de fundo deve
ser buscada e discutida em ação própria no juízo competente. Com isto, triste verifi-
car certas posturas de se remeter aos Juizados Criminais todo o acervo das Varas
de Família, ficando esta somente com as questões que não contenham litigiosidade.
A opção do legislador na criação dos Juizados de Violência Doméstica e Fami-
liar contra a Mulher, acometendo aos Juizados especiais provisoriamente estas fun-
ção, possui uma razão muito simples.
Os juizados especiais criminais, com o advento da Lei nº 9099/95, estão mais
afeitos a estas questões do que as Varas Criminais comuns, que sempre relegaram
a segundo ou terceiro plano, os delitos de menor potencial ofensivo, o que é um
grande erro, até Institucional, que permite que se desdenhe fatos sociais que ocor-
rem em mais de 95% das ocorrências infracionais. Os juizados especiais sempre
atentaram para estas questões, buscando soluções conciliadoras, mediadoras e
restaurativas das relações. É a sua vocação de origem.
Utilizou-se do argumento do menor volume de trabalho nos Juizados Especiais
em comparação ao realizado nas Varas Criminais o que não se justifica, pois o volu-
me de trabalho nos Juizados Especiais, quando executado no espírito norteador da
Lei 9099/95 acarreta volume expressivo.
Interessante observar que cada um procura esconder os seus, mas aponta os
defeitos dos outros. Faça-se uma auto-crítica e veja-se quem cumpre fielmente e na
medida de suas possibilidades, as suas funções profissionais.
Nesta quadra histórica, principalmente do Ministério Público, não é o momento
de empurrar o problema para o colega vizinho, mas meditar sobre suas funções cons-
titucionais, duramente conquistadas após décadas de intenso trabalho de gerações
de valorosos Promotores e Procuradores de Justiça que tiveram a visão de um Minis-
tério Público do futuro. Cabe às novas gerações não acreditarem que estas conquis-
tas são “cláusulas pétreas” constitucionais.
40 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007

Quanto ao prazo de duração destas medidas, não se concebe estabelecer 30


dias de prazo se a medida protetiva visa “suspensão da posse ou restrição do porte
de armas; o afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;
proibição de aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas”, pois
necessária a atuação da equipe multidisciplinar em alguns casos.
Também não pode ser indeterminada sua duração, pois a questão pode ficar
pendente de solução. Imagine-se a decisão judicial que determine a separação de
corpos (artigo 23, inciso IV).
De outro lado, efeitos prejudiciais poderão advir se não se fixar prazo quando a
medida protetiva versar sobre as possibilidades previstas no artigo 24.
Assim, a natureza do fato, a sua complexidade e a prudência de todos deverão
ser colocados à prova neste momento. Daí, talvez, o legislador não tenha se atrevido a
fixar prazo, pois impossível prever-se a necessidade em cada conflito deste gênero.

DAS MEDIDAS DE NATUREZA CRIMINAL

Antes da apreciação de todas as questões tormentosas que a lei traz para a


esfera criminal, uma tem que ser atacada em primeira mão, pois conduz o
equacionamento das demais.
Trata-se do artigo 41 da nova Lei, que assim está formulado:
“Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar
contra a mulher, independentemente da pena prevista, não
se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995.”
A repugnância do legislador à Lei 9099/95 já veio manifestada anteriormente,
quando enunciou o artigo 17 da lei:
“É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e
familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras
de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena
que implique o pagamento isolado de multa.”
Consideramos que esta foi a intenção do legislador: vedar o tratamento das
questões oriundas de relações de gênero com a aplicação banalizada de cestas bási-
cas. É um recado direto ao Ministério Público, que tinha a prerrogativa de oferecer
transação penal, e ao Poder Judiciário, quando da prolação de suas sentenças.
O próprio legislador permitiu a interpretação da lei conquanto se respeite seus
fins ou intenção, daí porque o artigo 4º da lei deve ser sempre lembrado:
“Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais
a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares
das mulheres em situação de violência doméstica e familiar.”
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007 41

Nos últimos tempos tenho ouvido que se o legislador foi tão claro no artigo 41, que
não cabe qualquer discussão, por qual razão insisto em dizer que a lei Maria da Penha
tem que ser salva, se foi exatamente a Lei 9099/95 que a colocou neste patamar?
Ledo engano, até histórico.
A mulher sempre foi vítima nas relações domésticas ou familiares.
Quando procurava a Delegacia de Polícia, registrava-se, se tanto, o fato em um
Boletim de Ocorrência e não se instaurava Inquérito Policial.
Sabia-se dos números da violência de gênero pela estatística paralela das enti-
dades que se debruçam sobre a questão.
Mesmo hoje não se faz o registro específico nas infrações penais desta nature-
za. Talvez iniciemos a tabulação destes dados, posto que a lei assim determinou,
como veremos adiante.
Com o advento da Lei 9099/95, não tendo mais que instaurar Inquéritos Polici-
ais, registrava-se o fato em um termo circunstanciado, parente próximo do boletim
de ocorrência, e se encaminhava as partes para o Fórum. Para a polícia, foi uma
grande solução.
Infelizmente, como já disse, o Ministério Público não soube aplicar a transação
penal (instituto que lhe é próprio), que deve ser adequada para cada fato social, indu-
zindo a aceitação de “cestas básicas”, apanágio das soluções de problemas e ícone
para a limpeza das pilhas de termos circunstanciados, inquéritos policiais e proces-
sos, pois temos a “síndrome do pilhismo”, síndrome da pilha de processos. Peço
vênia pela generalização.
Pior ainda quando a transação penal é realizada em um grande salão, anunci-
ando-se a doação de cesta básica para não se ver processar. Muito pior quando a
transação penal é realizada por estudante de último ano de direito ou conciliador sem
serem habilitados para tanto ou possuírem a sensibilização para o problema. Se tem
algo pior, temos quando não é o Ministério Público, (que não comparece às audiênci-
as), que formula a proposta de transação penal, ficando esta a cargo do conciliador.
São falhas na interpretação da lei. É descumprimento de atribuições funcionais
por comodismo, falta de condições para aplicabilidade ou de visão.
Daí porque houve a repugnância das entidades que defendem os interesses da
mulher em relação à lei 9099/95 e não sem razão. Mas não toda a razão.
Os Juizados especiais criminais lidam com a totalidade dos casos de violência de
gênero que lhe chegam ao conhecimento. Por óbvio que muitos não devem ser levados
ao seu conhecimento, daí a importância do controle externo da atividade policial.
Deste universo, uma pequena parcela resultou em uma desgraça, com a morte
da mulher depois de tanto apanhar ou com alguma necessidade de atendimento
especial.
42 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007

Sobre esta pequena parcela que se mobilizou a sociedade, mais especifica-


mente as entidades de defesa da mulher, lutando pela Lei Maria da Penha, cujo proje-
to original era de excepcional qualidade. O que foi aprovado pelo Congresso Nacional
e sancionado com pompa pela Presidência da República nem tanto.
Esta pequena parcela de casos que geraram desgraças pessoais serviram de
ícone ou de modelo para a adoção de medidas que pretendiam serem protetivas,
mas de longe está afastada deste desiderato.
Para a mulher que constantemente sofria agressões, a legislação existente era
suficiente, mas infelizmente não aplicada.
A própria lei 9099/95 previa a retirada do autor do lar (art. 69, Parágrafo único. Ao
autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao juizado ou
assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá
fiança. Em caso de violência doméstica, o juiz poderá determinar, como medida de cautela, seu
afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima. (Redação dada pela Lei nº
10.455, de 13.5.2002)). Nunca soube da aplicação deste dispositivo.
Diversas vezes presenciamos a mulher relatar que já havia sofrido com agres-
sões anteriormente, mas não promoveu o registro dos fatos em Boletim de Ocorrência.
Fazia-o naquele momento, por não suportar mais aquela situação, mas não oferecia
representação. Ante a ausência de representação, os autos ou não eram encaminha-
dos ao Fórum, sendo arquivados na Delegacia de Policia, ou se encaminhados, eram,
igualmente, sumariamente arquivados.
Faltava sensibilidade ou falta de condições aos Operadores do Direito em pro-
mover o adequado encaminhamento do problema, até com posterior arquivamento,
mas antes por uma prévia análise do ambiente familiar.
Daí insista-se e insistirei sempre, da necessidade da presença da equipe de aten-
dimento multidisciplinar em um Centro Integrado de Atenção ou Atendimento à Mulher.
Importante que esta indagação seja sempre feita: já foi agredida anteriormente?
Em que condições? Qual o histórico familiar, que de maneira sintética deve ser narrado.
Daí a necessidade de cursos de capacitação dos Operadores do Direito, pre-
vistos pela nova lei.
Assim, tendo como norte inspirador esta pequena parcela de violência de gêne-
ro é que a Lei Maria da Penha foi idealizada.
Entretanto, longe está a sua capacidade de proteger o universo das mulheres
em situação de violência de gênero.
Para a grande maioria (e sem medo de errar, 95% ou mais das mulheres) a Lei
9099/95, quando corretamente aplicada, atendia suas expectativas (grifos meus).
O que a mulher deseja é ser amparada, orientada e respeitada nesta fase. Não
deseja que o marido seja preso, processado e condenado. Sentença condenatória
não lhe resolverá o problema. Ao contrário, agravará o relacionamento. Ainda mais
uma sentença penal condenatória tardia.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007 43

Muitas vezes, a mulher procura socorro dizendo: “olha doutor, ele é um bom
marido, mas quando bebe vira um diabo.”
Ou seja, a questão de fundo não é a lesão corporal, mas o alcoolismo, a depen-
dência a drogas ou até a necessidade de atendimento especializado por um psicólo-
go ou psiquiatra.
No mínimo, bastaria a interferência benéfica da equipe multidisciplinar para
mostrar ao agressor que a mulher deve ser respeitada como ser humano e que ela
não é um objeto que lhe pertence e dele pode fazer o que quiser. Que, daquele mo-
mento em diante, as suas ações seriam acompanhadas.
Insisto, trata-se de questão cultural que uma lei mal aplicada ou uma sentença
penal condenatória não resolverá. A mudança da mentalidade se fará paulatinamente.
Mas ainda assim, alguém poderá argüir: mas a lei foi clara ao banir a lei 9099/95
para estes casos.
Respondo que há inúmeros casos em que a lei foi descumprida, por ótimos
argumentos ou por construção jurisprudencial e mesmo assim estava escrito na lei
(representação para vias de fato, por exemplo; delito de menor potencial ofensivo
previsto na lei 9099/95, cujo parâmetro foi alterado e adotado costumeiramente, ante
o limite fixado pela lei dos Juizados Especiais Federais, quando esta dizia claramente
que se aplicada somente aos fatos de sua competência).
Os Operadores do Direito devem seguir a lei, que é um texto, mas dentro de um
contexto (histórico e cultural). Não sejam escravos de texto legal, como rábulas mo-
dernos. Não utilizem a simplista e cômoda interpretação literal do texto para negar ou
impedir eficácia ao contexto. A História não nos perdoará se perdermos este momen-
to impulsionado pelo debate evocado, de iniciarmos a mudança de mentalidade, de
conceitos, de comportamento e de atitudes.
As mulheres não estão mais se dirigindo aos Distritos Policiais com medo da
eventual prisão dos maridos e companheiros. Em alguns locais, os registros policiais
estão diminuindo. Em outros casos, presenciamos mulheres fazerem uma enorme
peregrinação para soltarem os maridos presos em flagrante, arbitrando-se enorme
fiança, a qual não poderia ser paga.
A mulher e seus filhos necessitam de amparo, que pode ser propiciado pelo
sistema ou pela rede de proteção previsto pela Lei 11.340/06.
Para os casos patológicos, com os quais tanto se batem, e com muita razão,
as entidades de defesa das mulheres, todos os rigores da lei, cujos mecanismos já
existem.
Basta a capacitação de todos os agentes envolvidos na questão, que poderão
ministrar adequados mecanismos a cada caso concreto.
Como já disse, está se matando o paciente com o excesso de remédio.
44 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007

Em nenhum momento do processo legislativo se debateu com a necessária


profundidade a aplicação ou não da Lei nº 9099/95.
O projeto de lei encaminhado pelo Presidente da República ao Congresso Naci-
onal foi fruto do Grupo de Trabalho Interministerial criado pelo Decreto no. 5030, de 31
de março de 2004, integrado pela Secretaria Especial de Políticas Para as Mulheres
da Presidência da Republica; pela Casa Civil da Presidência da República, pela Advo-
cacia Geral da União, pelo Ministério da Saúde, pela Secretaria Especial dos Direitos
Humanos da Presidência da Republica, Secretaria Especial de Políticas de Promo-
ção da Igualdade Racial da Presidência da Republica, Ministério da Justiça e Secreta-
ria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça.
Para subsidiar as discussões, o grupo de trabalho contou com proposta de
anteprojeto de lei elaborado pelo Consórcio de Organizações Não Governamentais
Feministas.
Em diversos momentos, o Projeto de Lei nº 4559, de 2004, faz referência ex-
pressa a lei 9099/95:
“Artigo 12 – Em todos os casos de violência doméstica e familiar
contra a mulher, feito o registro do fato, deverá a autoridade poli-
cial adotar, de imediato, o seguinte procedimento, alem daqueles
já previstos no Código de Processo Penal e na Lei 9099, de 26
de setembro de 1995:”
“Artigo 13 – Ao processo, julgamento e execução das causa cíveis
e criminais em que esteja caracterizada a violência doméstica e
familiar contra a mulher, aplicar-se-ão os Códigos de Processo
Penal e Civil e a Lei 9099, de 28 de Setembro de 1995, no que
não conflitarem com o procedimento estabelecido nesta lei.”
“Artigo 29 – Ao processo, julgamento e execução dos crimes de
competência dos Juizados Especiais Criminais em que esteja
caracterizada violência domestica e familiar contra a mulher,
aplica-se a Lei 9099, de 26 de Setembro de 1995, no que não
conflitar com o estabelecido nesta lei.”
Evidente que, por exemplo, pela nova pena adotada nos delitos de lesão corpo-
ral dolosa leve (artigo 44 – detenção de 3 meses a 3 anos), modificando o artigo 129,
§ 9º do Código Penal, não se permite a transação penal.
Por conseqüência, não se permite a temida cesta básica, nem por via indireta.
Entretanto, proibindo-se a aplicação da lei nº 9099/95, algumas conseqüências
serão em curto prazo sentidas.
Deverão ser instaurados inquéritos policiais em todas as questões de relação
de gênero. Sabemos que num passado não muito distante não se instaurava inquéri-
to policial para estes delitos de “bagatela”. Somente com a adoção do termo circuns-
tanciado estas infrações chegaram ao conhecimento do Estado.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007 45

Por outro lado, o inquérito policial será moroso, como sempre se caracterizou
de maneira geral, onde o tempo faz perder sentido a apuração dos fatos desta natu-
reza. Que importa para a mulher a apuração de uma agressão física quando o inqué-
rito é concluído após um ano? Podem argumentar que a medida cautelar adotada
anteriormente tem este efeito de bloquear a ação do tempo. Alerta-se, porém, que a
medida cautelar não tem a finalidade de resolver o conflito, apenas de evitar um mal
maior ou o acontecimento de novos delitos.
Voltaremos a verificar que inquéritos policiais nestes “crimes de bagatela” (?)
não serão instaurados, pois estas “bobagens” atrapalham a apuração de crimes mais
importantes. Teremos, assim, a volta de estatísticas oficiais e extra-oficiais (divulgadas
por associações ou ONG), pois não se registravam todos os fatos.
As ações penais serão públicas incondicionadas, remanescendo poucas con-
dicionadas á representação, o que será abordado mais a frente.
Assim, o juiz só poderá impor alguma medida restaurativa ou mediadora na
sentença, pelo que se depreende do artigo 17 da referida lei.
Para tanto, a mulher deverá manter a firme disposição de ver seu marido, com-
panheiro, filho, neto ou noivo processado, ao final condenado.
Não é isto que a realidade nos mostra.
A mulher que comparece ao Distrito Policial e ao Fórum, normalmente é pobre,
com mais de 3 filhos, que veio para os grandes centros por falta de opção. Algumas
residem num mesmo quintal com os demais “primos” ou parentes por afinidade. O
primeiro que chega, providencia acomodação para os demais que virão.
Uma constante se presenciava nas audiências de instrução antes do advento
da Lei nº 9099/95: negativa de existência da agressão; negativa de autoria ou até a
admissão de fato inverídico como a vítima lesionou-se porque bateu a cabeça na
mesa, pois escorregara quando lavava a cozinha, dentre outras “histórias”. Acabava
o Magistrado absolvendo por falta de provas ou por “política criminal”.
Na Promotoria de Justiça Criminal de Santana (zona norte da capital paulista)
demorou-se vários anos para convencer as mulheres que o oferecimento de repre-
sentação não acarretaria a prisão do marido ou companheiro, mas somente com
esta manifestação se poderia aplicar medidas restaurativas ou mediadoras.
Na atual quadra econômica do País, se está muito difícil conseguir um empre-
go, estando com “ficha limpa”, que dirá com uma condenação?
Que condições pessoais terá a mulher para manter a disposição de ver seu
companheiro processado e, ao final condenado? Somente aquelas que efetivamente
necessitam de atendimento de urgência preconizado por esta lei.
As demais, que é a grande maioria, necessitam de amparo de equipe
multidisciplinar e não de sentença condenatória, que pode agravar a situação de seu
relacionamento doméstico ou familiar.
46 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007

Assim, a interpretação literal do artigo 41 não se compatibiliza com o seu artigo


4º. A vontade do legislador é a exposta no artigo 17, que recomenda que as condições
penais fixadas devem ser suficientes e eficientes, dirigidas ao cerne do problema.
Uma outra ótica pode ser levantada quanto a esta questão, a da inconstitucio-
nalidade. Como dito no início desta exposição, a Constituição Federal determinou a
criação de Juizados Especiais para delitos de menor potencial ofensivo, visando a
celeridade, a coibição de sentimento de impunidade e a adoção de medidas que
amparem a vítima.
É esta a intenção do legislador originário.
A nova lei, ao restringir a adoção de medidas despenalizadoras, mas também
as restaurativas e mediadoras da lei nº 9099/95, fere frontalmente o mandamento
constitucional.
Certo que nas lesões corporais dolosas leves não se permite mais a transação
penal, mas nada impede que se promova a suspensão processual (artigo 89 da lei
9099/95), estabelecendo-se requisitos de cumprimento, inclusive com o apoio da
equipe multidisciplinar.
Assim, a lei 9099/95 não pode ser aplicada naquilo que não conflitar com a
vontade do legislador específico.
Aqueles que interpretarem literalmente o artigo 41 poderão dizer que a lei foi
clara quanto à não aplicação da Lei nº 9099/95. Eu indago, sob o prisma do artigo 4º
e também da clara intenção do legislador: com o atual formato de persecução crimi-
nal, com os seus órgãos que não se comunicam, com inquéritos policiais morosos e
sem objetividade, sem qualquer possibilidade de atendimento a vitima, a não aplica-
ção das medidas restaurativas da Lei nº 9099/95 veremos a resolução de problemas
desta natureza com a prolação de sentenças condenatórias pelos Juizes de Direito?
Mais ainda, mesmo que o agressor seja condenado, sendo primário e de bons
antecedentes, quando muito o Magistrado fixará a pena em 6 meses de detenção.
Poderá impor-lhe como condição alternativa a freqüência a cursos, tratamentos, den-
tre outros, como pode ser feito pela adequação dos artigos 60, Par.xxx 2º. e 44 do
Código Penal e até artigo 45 da Lei 11340.06. Se o réu não cumprir esta condição
alternativa, ou qualquer outra condição imposta em suspensão condicional da pena
(sursis) resta-lhe cumprir a pena de 6 meses de detenção, em regime aberto. Ou
seja, nada. Não se esquecendo que ele já se encontra condenado.
Já o artigo 89 da Lei 9099/95, possibilita a imposição de medidas restaurativas
ou mediadoras, evitando-se o processo e a condenação. Esta será a conseqüência
da falta de cooperação e boa vontade do agressor.
Outra questão tormentosa, decorrente deste artigo, é a relativa à representação.
A Lei nº 9099/95 transformou em ação penal pública condicionada à representa-
ção as lesões corporais dolosas leves (artigo 88). Com a não aplicação da Lei nº
9099/95, como informa a lei número 11.340/06, somente através de inquérito policial
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007 47

se poderá apurar lesão corporal dolosa leve decorrente de relações de gênero. Por
construção doutrinária e jurisprudencial, exigia-se representação para as contraven-
ções penais de vias de fato (art. 21 da LCP).
Para estas também se acabou esta exigência? Entendemos que não. E ainda
se deve oferecer representação ao delito de ameaça (art. 147 do CP), não atingido
pela nova Lei.
Mais ainda, nos crimes de ameaça é possível audiência para tentativa de tran-
sação penal, respeitada a vedação do artigo 17. Para as contravenções penais, o
mencionado dispositivo legal não as alcança, pois a lei determinou a inaplicabilidade
da Lei 9099/95 quando se trata de crime. Idêntico raciocínio, ou seja, de proteção à
mulher, deve ser feito quanto aos delitos contra a honra (art. 138/140 do CP), invasão
de domicilio (art. 150 do CP), dano (art. 163 do CP), atentado ao pudor mediante
fraude (art. 216 do CP) e assédio sexual (art. 216 A do CP).
A confusão parece crescer com os termos do artigo 16:
“Nas ações penais públicas condicionadas à representação
da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renún-
cia à representação perante o juiz, em audiência especial-
mente designada com tal finalidade, antes do recebimento
da denúncia e ouvido o Ministério Público.”
A representação possibilita a conciliação civil, atendendo aos interesses da viti-
ma que podem estar na esfera da reparação civil por danos materiais e morais.
A própria lei admite a existência de representação, quando elenca as provi-
dências policiais que devem ser tomadas, em seu artigo 12. No inciso I especifica:
“ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo,
se apresentada.”
O projeto original (PL 4559, de 2004) era mais claro quanto à necessidade de
representação em todos os delitos decorrentes de relações de gênero:
“Art. 30 – nos casos de violência domestica e familiar contra a
mulher a ação penal será publica condicionada a representação.”
No caso do artigo 16, ocorreu, mais uma vez, uma impropriedade técnica.
A renúncia só pode ser exercida antes do oferecimento da representação. Quan-
do esta é oferecida, só é cabível a retratação da representação.
Pode ser entendido que interpretar renúncia como retratação seria “in malam
partem”, ante os reflexos penais imediatos, o que me parece sem fundamento.
Explica-se: o artigo 16 disciplina que a renúncia (ato unilateral sem condiciona-
mentos) ao direito de representação só poderia ser dada em Juízo antes do recebi-
mento da denúncia. A renúncia à representação só é cabível quando esta não foi
oferecida. Acaso esta já tenha sido oferecida, só cabe retratação. Se renúncia só
48 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007

existe antes da representação. Portanto, o Ministério Público não poderia ter ofereci-
do denúncia sem a antecedente representação, como claro está o artigo 25 do CPP
(“A representação será irretratável, depois de oferecida a denúncia”).
Não se entende conclusão diversa, pois se obrigaria o Promotor de Justiça
oferecer denúncia que fica condicionada o seu recebimento a eventual manifestação
da vítima, em uma produção inútil de trabalho deste Órgão Estatal.
Em suma, deve-se entender que o artigo 16 da nova lei refere-se à retratação e
não à renúncia, seguindo-se as regras do artigo 25 do CPP. Críticas podem surgir ao
formalismo exigido para esta retratação, com a designação de uma audiência so-
mente para esta finalidade, quando para o oferecimento de representação não se
requer qualquer documento especial, bastando a mera manifestação de vontade da
vítima em ver seu ofensor processado, perante o Delegado de Polícia, Promotor de
Justiça ou Juiz de Direito. Este formalismo deve ser entendido como uma forma de
proteção à mulher que perante um magistrado, consciente dos objetivos da nova lei,
vai questioná-la sobre a sua livre vontade em se retratar ou se está sendo coagida ou
até enganada quanto às conseqüências de seu ato. Se depois de devidamente
esclarecida, a mulher continuar a desejar a retratação, nada poderá ser feito, mas
pelo menos foi devida, correta e tecnicamente esclarecida. Entendo que esta é a
intenção do legislador.
Fica claro que o legislador não aboliu a representação. Esta continua a ser
exigida nos demais casos não abrangidos pela Lei 9099/95, especialmente aos deli-
tos de ameaça (artigo 147 do Código Penal) e na contravenção penal de vias de fato
(artigo 21 da LCP).
Nestes casos, entendemos ser possível a elaboração de termos circunstancia-
dos e a designação de audiência preliminar, inclusive com proposta de transação
penal, respeitada a vedação constante no artigo 17 da lei.
Saliente-se que não se deve aplicar a lei 9099/95 naquilo que ela conflitar com a
presente lei.
Tem que ser entendido que representação é uma das formas que propicia o
acordo. É instituto de natureza processual, privativo do ofendido, que se não ofereci-
do, impede a persecução criminal. Esta prerrogativa é forte aliada para a mediação e
conciliação quando bem e corretamente utilizada.
Designada audiência preliminar, comparecendo as partes, tenta-se a concilia-
ção civil. Se esta for bem sucedida, homologa-se o acordo e há renuncia ao direito de
oferecer representação (artigo 74, Parágrafo Único da Lei nº 9099/95), cumprindo-se,
assim, o disposto no artigo 16 da citada lei.
Em muitas destas audiências se consegue atender os reclamos das vítimas,
atentando-se ao seu norte balizado no artigo 4º já comentado.
Infrutífero o acordo, a transação penal pode ser oferecida, com a proposta de
prestação de serviços à comunidade e, principalmente e por analogia, a limitação de
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007 49

fim de semana, consistente “na obrigação de permanecer, aos sábados e domin-


gos, por 5 (cinco) horas diárias, em casa de albergado ou outro estabelecimen-
to adequado, podendo ser ministrados ao condenado cursos e palestras ou
atribuídas atividades educativas” (art. 48 do Código Penal).
Tal atividade em nada se diferencia do proposto pela nova lei, em seu artigo 45,
que alterou a lei de execução penal ao possibilitar a imposição de comparecimento
obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação.
Acaso for infrutífera a conciliação civil e o autor não faça jus ao benefício pro-
cessual, só caberá o oferecimento de denúncia. Antes de seu oferecimento, a vítima
será consultada quanto ao oferecimento de representação.
Por fim, deve-se esclarecer que a representação deve ser exigida ainda em
fase de Inquérito Policial, pois é condição de procedibilidade (artigo 5º, § 4º do CPP =
O inquérito, nos crimes em que a ação pública depender de representação,
não poderá sem ela ser iniciado).
Apesar de a representação não ser condição de procedibilidade em casos que
se pode registrar o fato mediante termo circunstanciado, que só será tomada após
tentativa de acordo entre as partes, (Art. 75 da Lei nº 9099/95 = Não obtida a compo-
sição dos danos civis, será dada imediatamente ao ofendido a oportunidade de
exercer o direito de representação verbal, que será reduzida a termo), nada
impede que a autoridade policial colha esta manifestação de vontade, mesmo porque
serve para balizar a adoção de medidas futuras, até a designação de audiência pre-
vista no artigo 16.
O Projeto Original (PL 4559, de 2004) adotava um procedimento extremamente
simples e salutar, previsto em seus artigos 35 a 37. Recebido o expediente, o Juiz
decidiria de plano as medidas cautelares pleiteadas e designava audiência de apre-
sentação. As partes eram regularmente intimadas e compareciam acompanhadas
de seus advogados. Acaso não comparecessem tecnicamente assistidas, a assis-
tência judiciária gratuita era designada. Iniciava-se a mediação, ouvindo-se primeiro a
vítima, conduzida por juiz ou mediador devidamente habilitado. Sob pena de
responsabilização, a mulher não poderia ser coagida direta ou indiretamente para
aceitar a conciliação. Se a medida obtiver sucesso, reduz-se a termo, sendo homolo-
gada. Acaso não se obtenha a conciliação, é dada a vitima a oportunidade de oferecer
representação. Se não desejar oferecer representação naquele momento, este direi-
to poderá ser exercido no prazo legal. Este prazo se inicia desta audiência de apre-
sentação. A retratação ou a renuncia são serão válidas após ratificação em audiên-
cia. Oferecendo representação, o juiz colhe o depoimento da ofendida e do agressor,
separadamente, encaminhando o caso à equipe de atendimento multidisciplinar ou
núcleo de atendimento congênere, podendo requisitar outros exames periciais.
Na seqüência, é designada uma nova audiência, agora denominada Audiência
de Instrução e julgamento, onde o Ministério Público, atento aos mesmos parâmetros
fixados pela Lei nº 9099/95, em seu artigo 76, acrescido de mais uma condição
50 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007

impeditiva consistente no descumprimento de medida cautelar aplicada, proporá a


aplicação imediata de pena restritiva de direitos, sendo vedada a prestação pecuniária,
cesta básica e multa. Poderá o Ministério Publico se valer dos subsídios apresenta-
dos pela equipe de atendimento multidisciplinar.
Não sendo possível a transação penal, denuncia oral será oferecida, prosse-
guindo-se em audiência de instrução e julgamento. Para tanto, o autor, no mandado
de citação para esta audiência deverá ser alertado da necessidade de arrolar suas
testemunhas até cinco dias antes da audiência acaso pretenda ouvi-las.
Nova audiência seria designada, com a oitiva de testemunhas de acusação e
defesa, debates e julgamento.
Era este o procedimento previsto no projeto de lei encaminhado ao Congresso
Nacional, que obrigava o Juiz de Direito encaminhar o caso à equipe multi-disciplinar
ou de atendimento, antes da audiência de transação penal.
Em resumo: deve ser exigida a representação para os delitos que antes era
exigida, como a ameaça, que mais comumente ocorre nestes casos.
Quanto às lesões corporais dolosas leves, impossível a transação penal e a
elaboração de termo circunstanciado. Há que se pensado um novo procedimento
administrativo, mais célere que o Inquérito Policial e mais aparelhado que o singelo
termo circunstanciado. Nada impede a suspensão processual prevista no art. 89 da
Lei nº 9099/95.
Quanto à contravenção penal de vias de fato, a representação continuará a ser
exigida, conforme construção doutrinária e jurisprudencial.
Quanto às lesões corporais dolosas graves (§ 1º, do art. 129 do CP), ante o
aumento de 1/3 da pena, previsto no artigo 129, § 10, do CP, que não foi alterado pela
Lei, não é permitida a suspensão processual.
Se a mulher, vítima de lesão corporal dolosa leve decorrente de violência de
gênero for portadora de deficiência, a pena será aumentada em 1/3 o que não retira a
possibilidade de suspensão processual, por si só. Se a lesão for de natureza grave
ou gravíssima, já não se podia conceder qualquer benefício processual previsto na
Lei nº 9099/95. Como se trata de duas causas de aumento de pena (uma por ser
mulher, outra por ser portadora de deficiência), uma funcionará como causa de au-
mento de pena e a outra como agravante, devendo o magistrado explicitar esta con-
dição quando da prolação da sentença.
Quanto aos demais delitos (principalmente ameaça e vias de fato) nada impede
a elaboração de termo circunstanciado e a designação de audiência preliminar, res-
peitada a restrição imposta no artigo 17 da lei.
O procedimento sumaríssimo previsto no artigo 77 da Lei 9099/95 é aplicável,
respeitando-se o limite da pena prevista. Caso não seja possível sua aplicação,
subsidiariamente subsiste o procedimento do CPP.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007 51

Em caso de continuidade delitiva, aplica-se a nova lei, mesmo que mais grave,
ante a súmula 711 do STF: “A lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado
ou ao crime permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da continui-
dade ou da permanência”.
Há, agora, uma nova possibilidade de decretação de prisão preventiva.
O artigo 20, copiando os mesmos termos do Código de Processo Penal, dis-
põe que “em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá
a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento
do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial.”
O parágrafo único informa que a medida pode ser revogada se esta não mais
seja necessária, bem como pode ser novamente decretada se novas razões justifi-
carem o ato, numa cópia do artigo 316 do CPP.
As condições para a decretação da prisão preventiva são as preconizadas no
Código de Processo Penal, em qualquer fase do inquérito policial ou do processo,
para garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução
criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existên-
cia do crime e indício suficiente de autoria. Ademais, o Código impunha outras condi-
ções, que não se encontravam nos delitos cometidos nas relações de gênero.
Esta inovação alarga as possibilidades desta medida processual restritiva da
liberdade, pois o Código de Processo Penal só a admite nos crimes dolosos, punidos
com reclusão ou punidos com detenção desde que haja indício que o indiciado seja
vadio ou paire dúvida sobre sua identidade e não se fornecer elementos para seu
esclarecimento, bem como houver sido condenado por crime doloso anteriormente
(art. 313 do CPP).
Por isso, apenas os termos do artigo 20 trariam incompatibilidade, ante a pena
determinada para os delitos cometidos nas relações de gênero.
O legislador, então, acrescentou o inciso IV ao artigo 313 do Código de Proces-
so Penal:
“IV - se o crime envolver violência doméstica e familiar con-
tra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a
execução das medidas protetivas de urgência.”
Como em todas as outras hipóteses, em sendo necessário, decreta-se a medi-
da restritiva. Acaso esta não mais seja necessária, deve ser revogada.
Entretanto, esta medida restritiva de liberdade foi adotada para “garantir a exe-
cução das medidas protetivas de urgência.”
Como as medidas protetivas são de natureza civil e cautelares, seria uma prisão
de natureza civil e não penal, em que pese estar inserida no Código de Processo Penal.
52 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007

DAS ALTERAÇOES DOS TIPOS PENAIS E AGRAVANTES

O art. 43 alterou a alínea f do inciso II do art. 61 Código Penal, que possuía a


seguinte redação:
“Art. 61 - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quan-
do não constituem ou qualificam o crime:
II - ter o agente cometido o crime:
f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações do-
mésticas, de coabitação ou de hospitalidade;”
A nova redação está assim disposta:
“f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de rela-
ções domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou
com violência contra a mulher na forma da lei específica;”
(grifos nossos)
Parece-me que a alteração é supérflua, pois o dispositivo anterior já permitia
esta agravante.
O art. 44 alterou a redação do § 9º do art. 129 do Código Penal, alterado pela Lei
nº 10.886, de 2004, com a seguinte alteração do limite da pena:
“§ 9º Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente,
irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha
convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações do-
mésticas, de coabitação ou de hospitalidade:”
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano.
A nova redação assim dispôs:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos.
A primeira observação incide na redução da pena mínima cominada ao tipo.
Sabemos que na fixação da pena, o patamar que dá base a todo o cálculo é a pena
mínima. Se a vontade do legislador era uma maior severidade, a diminuição da pena
mínima gerará o efeito oposto.
Talvez a alteração seja para uma adequação, pois o tipo se destina às lesões
corporais dolosas leves, que prevê esta pena mínima de 3 meses de detenção em sua
forma simples, no caput. Não haveria motivo para se manter duplicada a pena mínima.
Com isto, pode-se entender que a nova lei corrigiu uma impropriedade anterior.
Mais ainda, uma lei destinada exclusivamente a mulher como sujeito passivo
altera dispositivo penal que se aplica a todos, indistintamente. Bem provável que se
objete que referida alteração se aplica somente à mulher, o que não é possível se
estender, mesmo por esforço de interpretação.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007 53

Com o aumento da pena máxima, não se permite a transação penal. Se não


fosse esta alteração, a transação penal seria possível, principalmente a condição
prevista no artigo 45, consistente no comparecimento obrigatório do agressor a pro-
gramas de recuperação e reeducação.
Esta condição poderá ser inserida no rol das condições da suspensão condici-
onal do processo, prevista no artigo 89 da Lei 9099/95.
O mesmo artigo 44 acrescentou um parágrafo ao artigo 129 do Código Penal:
§ 11º Na hipótese do § 9º deste artigo, a pena será aumenta-
da de um terço se o crime for cometido contra pessoa por-
tadora de deficiência.
Esta causa de aumento de pena não impede a suspensão processual prevista
no artigo 89 da Lei nº 9099/95.
Por fim, o art. 45 acrescentou um parágrafo ao art. 152 da Lei no 7.210, de 11 de
julho de 1984 (Lei de Execução Penal), que possui a seguinte redação:
“Art. 152. Poderão ser ministrados ao condenado, durante o tempo
de permanência, cursos e palestras, ou atribuídas atividades
educativas.”
Com o novo parágrafo:
“Parágrafo único. Nos casos de violência doméstica contra a
mulher, o juiz poderá determinar o comparecimento obrigató-
rio do agressor a programas de recuperação e reeducação.”

DO MINISTÉRIO PÚBLICO

A Lei cuidou da atuação do Ministério Público em um capítulo, obrigando sua


intervenção em todas as causas, sejam elas de natureza cível ou criminal, quando
não for parte (artigo 25), podendo requisitar força policial e serviços públicos de saú-
de, de educação, de assistência social e de segurança, entre outros. Poderá, ainda,
fiscalizar os estabelecimentos públicos e particulares de atendimento à mulher em
situação de violência doméstica e familiar, e adotar, de imediato, as medidas adminis-
trativas ou judiciais cabíveis no tocante a quaisquer irregularidades constatadas.
Por fim, atribuiu ao Ministério Público a incumbência de “cadastrar os casos
de violência doméstica e familiar contra a mulher”.
Estranha-se esta atribuição ao Ministério Publico, pois inicialmente estava afeta
as Varas Criminais e Juizados Especiais Criminais (artigo 43 do PL 4559, de 2004).
Este cadastro era de conhecimento reservado aos Juizes e Ministério Público.
Após, estes dados deveriam integrar as bases de dados dos órgãos oficiais do
Sistema de Justiça e Segurança, a fim de subsidiar o sistema nacional de dados e
54 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007

informações relativo às mulheres. Para tanto, as Secretarias de Segurança Pública


dos Estados deveriam repassar esta base de dados ao Ministério da Justiça (artigo
39 do Projeto de Lei da Câmara número 37, de 2006) ou como dispôs a Lei:
“Art. 38- As estatísticas sobre a violência doméstica e familiar
contra a mulher serão incluídas nas bases de dados dos ór-
gãos oficiais do Sistema de Justiça e Segurança a fim de sub-
sidiar o sistema nacional de dados e informações relativo às
mulheres.
Parágrafo único. As Secretarias de Segurança Pública dos
Estados e do Distrito Federal poderão remeter suas informa-
ções criminais para a base de dados do Ministério da Justiça.”
Esta atribuição gerará graves problemas administrativos para sua implantação,
pois o Ministério Público não faz parte e nem participa de nenhum banco de dados
desta espécie.
O banco de dados da Secretaria de Segurança Publica são alimentados espe-
cialmente pela Polícia Civil. O do Poder Judiciário pelo próprio Poder.
Há que se ressaltar que os bancos de dados não se comunicam, não interagem
e há extrema dificuldade em se obter acesso a alguns dados, que dirá integrar o
sistema.
De outro lado, não se compreende que um fato social criminoso receba trata-
mento estatístico pela Polícia Militar, integrando sua base de dados. Ao ser encami-
nhado à Polícia Civil sofra outro procedimento de cadastramento. Remetidos os au-
tos de inquérito policial ou termo circunstanciado ao Poder judiciário, novamente é
submetido a um outro sistema de cadastramento e inserção de dados. Ao mesmo
tempo, quando remetidos ao Ministério Público, é submetido a um novo cadastramento.
É o que se observa em São Paulo.
Uma pequena observação, mesmo de um leigo, não pode deixar de ser feita: o
sistema ou banco de dados não obriga re-tarefas, em enorme dispêndio de esforço
humano e gastos financeiros? Não seria possível integrá-los?
Voltando ao tema: agora, o Ministério Público, depois fato criminoso ser subme-
tido a dois procedimentos de registro e estatística da Secretaria de Segurança Públi-
ca, na seqüência passar pelo mesmo tratamento no Poder Judiciário, terá que ser
submetido a um novo cadastramento?
Será uma medida contraproducente, que gerará difíceis entraves administrati-
vos para sua realização.
De outro lado, em que momento o Ministério Público faria este cadastramento.
Seria conveniente se pensar na remessa dos autos pela Polícia ao Ministério Público
antes de encaminhá-los ao Poder Judiciário ou promover a alteração ou adequação
deste artigo.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007 55

Uma outra tarefa é cometida ao Ministério Público, no art. 37, qual seja, a defesa
dos interesses e direitos transindividuais previstos nesta Lei, atuando concorrentemente
com associação de atuação na área, regularmente constituída há pelo menos um ano,
nos termos da legislação civil (em similitude à Lei nº 7347/85 - Ação Civil Pública, em
seu artigo 5º), cujo lapso temporal poderá ser dispensado pelo juiz quando entender
que não há outra entidade com representatividade adequada para o ajuizamento da
demanda coletiva.
A lei previu em suas Disposições Transitórias a acumulação de competência
civil e criminal das varas criminais para o processo e julgamento das causas decor-
rentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, enquanto não
estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, garan-
tindo o direito de preferência destas causas (artigo 33).
Nem é necessário ressaltar que estes Juizados de Violência Doméstica e Fa-
miliar contra a Mulher não serão criados de maneira genérica. O que acontecerá,
como já se fez no Estado de São Paulo, é alterar a competência das Varas Criminais,
com adequação da denominação, evitando-se gastos.
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por seu Órgão Especial, no dia
04 de Outubro de 2006, editou a resolução nº 286/06, ante a necessidade de
redistribuição das competências nas Varas Criminais dos Foros Regionais, com a
criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, por força do
disposto na Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006, alterando a competência destas
varas e alterando sua denominação, passando a chamar-se Vara Criminal e do
Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Foro Regional.
Urge que tenhamos a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher, devidamente integrados por profissionais de diversas áreas (equipe
multidisciplinar), pois enquanto houver a acumulação de competência com as Varas
Criminais ou com os Juizados Especiais Criminais, sem sua integração ao sistema
ou rede de proteção, nada de mais concreto visualizaremos, a não ser experiências
isoladas mas que não traduzem a realidade (Art. 33. Enquanto não estruturados os Juizados
de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as compe-
tências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência
doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada
pela legislação processual pertinente.).
Quanto ao direito de preferência para o processo e o julgamento que estas
causas possuem, por força do Parágrafo Único do artigo 33, nas varas criminais, terá
que ser adequado ante a existência de outras preferências legais, como os proces-
sos dos Idosos, além dos processos de réus presos.
À evidência que este texto não encerra verdades absolutas, mas pretende que
a violência nas relações de gênero seja discutida com amplitude e profundidade.
Não pode encerrar debate circunscrito a apenas uma parcela do universo esco-
lhido pelo legislador, mas deve abranger-lhe o seu máximo possível.
56 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007

Não pode considerar que apenas um setor da sociedade pode manietar as va-
riáveis da questão para resolvê-las com mecanismos ultrapassados e desfocados
de seu cerne. O inquérito policial da Polícia Judiciária, a denúncia do Ministério Públi-
co e a sentença penal condenatória do Poder Judiciário não guardam o poder alquímico
almejado. Eles têm sua importância, que é grande, quando coordenados com outros
mecanismos e quando utilizados no momento oportuno. Em certos casos, somente
estes mecanismos devam ser utilizados, mas não de maneira generalizante.
A violência nas relações de gênero é histórica, cultural e mundial. No Brasil,
alie-se o gravame da desigualdade social, em todos os sentidos. O Direito Penal, em
que pese aparecer no natural movimento pendular que envolve o debate, não pode
ser utilizado como meio de pressão e terror para mudanças desta magnitude.
A questão atinge a todos da sociedade e nos obriga.

Camilo Pileggi,
1º Promotor de Justiça Criminal de Santana
ASPECT OS
ASPECTOS
POLÊMICOS

Luis Paulo Sirvinskas,


4º Promotor de Justiça
Criminal da Penha de França
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.57-73, janeiro/junho-2007 59

ASPECTOS POLÊMICOS
SOBRE A LEI N. 11.340,
DE 7 DE AGOSTO DE 2006
(que cria mecanismos para coibir a
violência doméstica e familiar contra a mulher)

Sumário: 1. Fundamento internacional e constitucional da prote-


ção da mulher. 2. Formas de violência doméstica e familiar. 3.
Programa de assistência à mulher. 4. Procedimentos cíveis e
criminais. 4.1. Competência. 4.2. Representação da ofendida. 4.3.
Medidas Protetivas de Urgência. 4.4. Prisão Preventiva. 5. O Mi-
nistério Público e a violência doméstica. 6. A Assistência Judiciá-
ria e a violência doméstica. 7. Juizados de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher. 8. Agravamento do delito de lesões cor-
porais. 9. Inaplicabilidade da Lei n. 9.099, de 26 de setembro de
1995. 10. Conclusão. 11. Referências bibliográficas.

1. FUNDAMENTO INTERNACIONAL E CONSTITUCIONAL


DA PROTEÇÃO DA MULHER

As normas são criadas para estabelecer regras com a finalidade de disciplinar,


via de regra, as condutas humanas conflituosas. Só quando surge o conflito é que
Poder Público intervém na sociedade com a finalidade de regulamentar condutas
socialmente reprováveis. As pessoas precisam aprender a viver em sociedade e res-
peitar tais regras sob pena de se impor algum tipo de sanção. Assim, norma sem
sanção é ineficaz e sanção sem regra é abuso. É através da educação que a criança
cresce com esse sentimento de que a lei é importante e deve ser respeitada para se
procurar viver em harmonia na sociedade.
As pessoas nascem com características genéticas diferentes uma das outras
e apesar de serem igualmente educadas, respeitadas suas peculiaridades, elas cres-
cem com personalidades completamente diversas. A mulher passa a ser a primeira
educadora dos filhos. E esse instinto maternal faz com que a mulher se torne cada
vez mais submissa ao amor fraternal, dedicando-se completamente a família.
60 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.57-73, janeiro/junho-2007

Historicamente, a mulher sempre esteve numa situação de inferioridade em


relação ao homem. Até pouco tempo atrás ele era o chefe familiar e possuía o contro-
le do lar. A luta da mulher foi longa e sua conquista foi reconhecida internacionalmente
pelos inúmeros tratados, convenções e declarações que foram sendo inseridos na
legislação interna de cada País.
Um dos princípios mais importante foi o da igualdade, ou seja, todos são iguais
perante a lei (art. 5º, caput), tanto os homens como as mulheres são iguais em direi-
tos e obrigações (art. 5º, I, da CF). Essa igualmente não é absoluta. É uma igualdade
formal – legal. Pretende-se, com isso, transformá-la numa igualdade material – real,
na exata medida de sua desigualdade.
A proteção da mulher é um dos objetivos a ser alcançado pelo Poder Público.
Pretende-se criar um subsistema jurídico para sua proteção, à semelhança do Esta-
tuto do Idoso, dos Portadores de Necessidades Especiais e da Criança e do Adoles-
cente, devido sua situação de inferioridade na sociedade, pois nem todas as mulhe-
res possuem ainda uma situação de independência em relação ao homem. No Bra-
sil, a maioria absoluta das mulheres depende do homem e, às vezes, são obrigadas
a se submeter à situação de toda ordem para poder manter a relação familiar.
Respaldado na Declaração dos Direitos Humanos (1948), na Convenção sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher (1980 e 1984), na Con-
venção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1995)
e no art. 226, § 8º, da Constituição Federal, o legislador instituiu a Lei n. 11.340, de 7 de
agosto de 2006, visando combater a violência doméstica e familiar contra a mulher.
Trouxe, citada lei, um conjunto de regras penais e extrapenais, princípios, objetivos e
diretrizes com vistas à prevenção de eventuais violências no seio doméstico e familiar,
protegendo-se especialmente a mulher - vítima das mais diversas formas de violência.
Trata-se de um programa que deverá ser gradativamente implantado pelos Poderes
Públicos constituídos ao longo do tempo sob pena de torná-la ineficaz.
Houve, além disso, um movimento muito forte surgido na sociedade por causa da
situação de Maria da Penha Maia que sofreu todo tipo de violência durante muito tempo
nas mãos de seu marido, ficando, por causa disso, paraplégica. Foi, por essa razão, que
se criou a lei, denominando-a simplesmente de Lei Maria da Penha, eis que a legislação
até então não era suficiente para coibir a violência doméstica, pois a Lei. 9.099/95, que
trata dos Juizados Especial Criminais, não mais atendia aos anseios da mulher. Esta lei
pretendia facilitar o acesso da população à justiça e desafogar o judiciário que estava
abarrotado de processos de infração de menor potencial ofensivo. Com isso pretendia-se
ainda: a) reduzir a morosidade judicial; b) propor medidas despenalizadoras; e c) diminuir
a impunidade. A lei, como se vê, objetivava assegurar, fundamentado no Direito Penal
Mínimo, a mínima intervenção estatal com máximas garantias.
A finalidade da Lei n. 9.099/95 foi alcançada, pois a justiça tornou-se mais rápi-
da apesar de a pena ser mais branda. Mas, no que tange a proteção da mulher contra
a violência doméstica, as medidas adotadas (pagamentos de multa e entregas de
cestas básicas de alimentos destinadas às entidades de caridade, por exemplo) não
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.57-73, janeiro/junho-2007 61

eram suficientes para punir o agressor adequadamente e nem servia como efeito
pedagógico, razão pela qual se criou a presente lei com o fim de aumentar a pena e
afastar a aplicabilidade da Lei n. 9.099/95.
Com o advento desta lei, não mais prevalece à velha máxima: “Em briga de
marido e mulher não se mete a colher”.

2. FORMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR

Os documentos internacionais protetivos da mulher procura estabelecer meca-


nismos efetivos para a sua proteção contra a violência doméstica no seio familiar. Essa
necessidade se dá por ser um problema mundial e não só brasileiro. A lei brasileira, no
entanto, delimitou as formas de violência doméstica e familiar, como sendo “qualquer
ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico,
sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial” (art. 5º). Gênero é a diferença entre
homem e mulher. É a relação de gênero - diferença sexual, cujo dispositivo (art. 5º.)
deverá ser interpretado conjuntamente com o art. 4º da citada Lei. Denomina-se tam-
bém de Direito Penal de Gênero1. A unidade doméstica é o espaço de convívio perma-
nente ou esporádico de pessoas, com ou sem vínculo familiar (art. 5º, I). A família, por
sua vez, é a união de pessoas constituídas por laços naturais, por afinidade ou por
vontade expressa (art. 5º, II). A união íntima de afeto entre pessoas do mesmo sexo ou
não com quem conviva ou tenha convivido, independente da coabitação (art. 5º. III).
Não há dúvida que a violência doméstica e familiar abrange, não somente aque-
les que vivem sob o mesmo teto, mas também aqueles que coabitavam antes da
separação, os quais continuam a manter o vínculo familiar ou doméstico, especial-
mente se dessa coabitação advieram filhos. Essa proteção abrange somente a mu-
lher, na qualidade de esposa, amásia, filha, sogra, avó, neta, nora, namorada, inclusi-
ve relações homosexuais afetivas feminina.
Vê-se, pois, que o bem jurídico protegido é a mulher que sofre todo e qualquer
tipo de violência doméstica ou familiar.
São cinco as formas de violência contra a mulher: a) física – quando o agressor
ofende a integridade ou a saúde corporal da mulher; b) psicológica – quando o agressor
causa dano emocional e diminuição da auto-estima ou que vise prejudicar e perturbar o
pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos,
crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação,
1
. Renato de Mello Jorge Silveira ensina que o “cuidado específico é, sempre, no sentido de se evitar um Direito
Penal orientado pelo gênero, mostrando-se, indistintamente, válido a homens e mulheres. Ainda que estas venham
a ser as principais destinatárias de proteções específicas, não podem ser as únicas, sob pena odiosa de uma
discriminação que só pode vir a reforçar, nunca combater, anos e séculos de segregação social e de tolerância
de violência em ambientes internos. Aspectos morais desse jaez nunca co
ntribuíram, senão só reforçaram o que, hoje, se pretende combater, justificando, dessa forma, todo o cuidado em
reformas legislativas atuais e futuras” (Direito penal simbólico e lei de combate à violência doméstica e familiar
contra a mulher, Boletim do IBCCRIM n. 167, ano 14, outubro/2006, p. 8).
62 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.57-73, janeiro/junho-2007

isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem,


ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que
lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; c) sexual – quando o
agressor constrange a mulher a presenciar, a manter ou a participar de relação sexu-
al não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; induza a
comercialização ou a utilização, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça
de usar qualquer método contraceptivo ou que a force a matrimônio, à gravidez ao
aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou
que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; d) patrimonial
– quando o agressor retém, subtrai, destrói parcial ou total seus objetos, instrumen-
tos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômi-
cos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; e e) moral – quando o
agressor ofende a honra da mulher (calúnia, difamação ou injúria).
Nem todas as condutas descritas constituem crime tipificado no Código Penal
ou em legislação penal especial. Há a necessidade de se amoldar tais condutas em
tipos penais existentes.
Ressalte-se, além disso, que nem todas as condutas tipificadas penalmente são
condicionadas a representação, afastando, portanto, a competência do Juizado de Vio-
lência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Nesses casos, não pode ser objeto de
renúncia (art. 16), cujas condutas delituosas serão processadas na Vara Comum.

3. PROGRAMA DE ASSISTÊNCIA À MULHER

A lei instituiu um programa de assistência à mulher, abrangendo a participação


articulada dos Poderes Públicos (Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria
Pública, Equipe Multidisciplinar etc), da família, da sociedade e da OGN(s). Ao Poder
Público (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) compete a implantação efetiva
da política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar, facilitando a integração
operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública com as
áreas da segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habita-
ção, celebrando-se convênios, protocolos ajustes termos ou outros instrumentos de
promoção de parceria entre eles e também com entidades não-governamentais.
Essa integração deve proporcionar condições para promoção de estudos e pes-
quisas, estatísticas e outras informações sociológicas sobre as várias etnias com a
finalidade de analisar a violência doméstica para sistematização de dados, divulgando-
os pelos meios de comunicação os valores éticos e sociais da pessoa e da família.
Deve ainda o Poder Público capacitar pessoas voluntárias para a divulgação nas
escolas de campanha educativas de prevenção da violência doméstica e familiar con-
tra a mulher, bem como funcionários públicos, policiais civis e militares, guarda munici-
pal e corpo de bombeiros que tenham a responsabilidade no atendimento da mulher.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.57-73, janeiro/junho-2007 63

Há a necessidade de se inserir nos currículos escolares de todos os níveis de


ensino conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou
etnia e os problemas da violência doméstica e familiar contra a mulher.
É também de competência do Poder Público proporcionar assistência à mu-
lher, devendo dar prioridade ao seu atendimento, quando o juiz assim determinar,
fixando prazo certo, para a inclusão da mulher em situação de violência doméstica no
cadastro de programas assistenciais do governo federal, estadual e municipal, visan-
do à proteção de sua integridade física e psicológica.
Cabe, deste modo, não só ao Poder Público, mas também a família e a socie-
dade criar condições necessárias para o efetivo exercício dos direitos contidos na lei
(art. 1º, § 2º).

4. PROCEDIMENTOS CÍVEIS E CRIMINAIS

Havendo a ocorrência de um crime proveniente de violência doméstica e fa-


miliar contra a mulher, a notitia criminis deverá ser levada ao conhecimento da au-
toridade policial pela mulher para a lavratura do Boletim de Ocorrência, adotando-
se as seguintes providências: a) garantir a integridade física da mulher, no tempo
que for necessário para que não venha a ser novamente agredida; b) encaminhar a
mulher para tratamento médico, se o caso; c) em havendo risco de vida, deverá ser
proporcionado transporte à mulher e aos seus familiares a abrigo ou local seguro;
d) proporcionar segurança policial para a mulher retirar seus pertences da residên-
cia, garantindo-lhe segurança inclusive dentro da residência; e e) informar a mulher
dos seus direitos contidos na lei.
Esclareça-se que recentemente foi criada, na esfera estadual paulista, a Lei n.
12.256/2006, que instituiu Programa de Prevenção à Violência Doméstica contra Cri-
anças e Adolescentes, bem como o seu atendimento quanto vítimas desta violência.
E a Lei Complementar n. 119/2005, incluiu no art. 3º da Lei Complementar n. 79/94, a
manutenção de casas de abrigo para vítimas de violência doméstica, podendo ser
utilizada para a mulher vítima dessa violência.
A autoridade policial, após colher o depoimento da mulher, deverá também to-
mar sua representação. Após a produção das provas necessárias, o delegado de
polícia remeterá, no prazo de quarenta e oito horas, o expediente ao juiz com o pedido
da ofendida, para a concessão das medidas protetivas de urgência.
Trata-se, como se vê, de um procedimento administrativo preliminar que deverá
ser remetido ao juiz para a concessão ou não das medidas de urgência. Tal expediente
deverá vir com todos os documentos e provas produzidas até aquele momento. Em
sendo o caso, o juiz, ouvido o órgão ministerial, deferirá ou não a concessão das medi-
das de urgência. Concedidas tais medidas, os autos permanecerão em cartório até a
vinda do inquérito policial concluído, apensando-os em seguida. Caso contrário, o juiz
64 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.57-73, janeiro/junho-2007

poderá designar audiência preliminar de justificação para a oitiva das partes e, eventu-
almente, colher a desistência ou a retratação da representação colhida na delegacia de
polícia ou a renúncia caso não tenha sido apresentada na época (art. 12, I).
As medidas protetivas de urgência têm caráter provisório e não definitivo. E
uma vez deferidas as medidas solicitadas, os autos permanecerão em apartados ao
inquérito policial, podendo a ofendida propor a ação principal no seu domicílio ou de
sua residência, no lugar do fato em que se baseou a demanda ou do domicílio do
agressor (art. 15). É importante ressaltar que a Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006,
não transformou o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher em
Vara de Família. Ao revés, permitiu que o juiz criminal pudesse conceder certas me-
didas, em caráter de urgência, de natureza cível, tão somente. Caso não fosse as-
sim, não haveria possibilidade de se proteger a mulher eficazmente, pois tais medi-
das só poderiam ser concedidas através do devido processo de separação judicial,
nos termos do Código Civil (Título IV – Do Direito de Família, tais como, alimentos
definitivos, separações judiciais, divórcios, anulação de atos jurídicos etc.).
De observar-se que a lei ampliou a competência do Juizado de Violência Do-
méstica e Familiar contra a Mulher somente para a concessão das medidas de ur-
gência. Aliás, cessadas tais medidas, prossegue-se o inquérito policial, o qual pode-
rá, inclusive, ser arquivado. Nesse caso, perdem-se os efeitos das medidas eventu-
almente concedidas.
Somente a Lei de Organização Judiciária poderia, ad argumentantum tantum,
ampliar a competência ratione materiae das Varas Criminais. Acredito que dificilmen-
te o Tribunal de Justiça manteria a Vara da Família e o Juizado de Violência Familiar
contra a Mulher com competência para processar, julgar e executar o mesmo tipo de
matéria. Caso isso ocorresse as Varas de Família perderiam a razão de ser pelo
esvaziamento dos processos, eis que a maioria das ações decorre de violência do-
méstica. Suponha-se que a vítima comunique a violência doméstica sofrida à autori-
dade policial, dando-se início ao investigatório. Na audiência preliminar, ela afirma que
não quer processar criminalmente o agressor e desiste ou se retrata da representa-
ção. O Juizado ficará prevento para apreciar a ação civil de separação judicial? E se
houver litígio, o Juizado deverá produzir as provas e, ao final, decretar a separação
nos termos da legislação específica civil, servindo a decisão como título executivo
passível de averbação no cartório competente? Isso significa em transformar o Juizado
em Vara de Família. Não foi este o objetivo da lei.
A título ilustrativo, trouxemos decisão prolatada no dia 25 de outubro de 2006,
em que o MM. Juiz da 2ª. Vara Criminal e do Juizado de Violência Doméstica e Fami-
liar contra a Mulher do Foro Regional de Penha de França, Dr. Jorge Carlos de
Araújo, suscitou conflito de competência porque o MM. Juiz da 1ª. Vara da Família e
Sucessões deste Foro Regional, havia remetido os autos de uma Ação Cautelar de
Separação de Corpos para nova distribuição a 2ª. Vara Criminal, por entender inci-
dente o art. 33 da Lei n. 11.340/06. Em sua decisão, o Juiz da 1ª. Vara Criminal alega
que: “com todo o respeito que este Juízo tem pelo r. Juízo da 1ª Vara da Família e
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.57-73, janeiro/junho-2007 65

Sucessões deste Foro Regional, não se vê lógica e amparo jurídico, para que o R.
JUÍZO CONSTITUCIONALMENTE NATURAL, que é o citado JUÍZO DA FAMÍLIA E
SUCESSÕES, a quem, diga-se de passagem, originalmente foi distribuído o feito,
JUÍZO A QUEM INCUMBIRÁ DECIDIR AS CAUSAS PRINCIPAIS, SE DÊ POR IN-
COMPETENTE, com determinação de remessa a este Juízo Criminal, que detém,
como já sobejamente referido acima, mera competência, emergencial e supletiva”
(Autos de processo n. 006.06.4127-2, controle 535, 2ª. Vara Criminal e do Juizado de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – Foro Regional Penha de França.
De observar-se que essa lei procura apenas viabilizar as necessidades imedi-
atas da mulher - vítima de violência doméstica e familiar -, dando-se prioridade no
cumprimento das medidas de urgência e permitir a aplicação eficaz das penalidades
sócio-educativas ao agressor. Vê-se, ainda, que a lei garante o direito de preferência,
nas varas criminais, para o processo e o julgamento das causas decorrentes de
violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 33, parágrafo único).
Os arts. 13 e 14, da Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006, foram redigidos de
maneira confusa, podendo levar o interprete a erro insanável. A interpretação dos dispo-
sitivos não pode ser feita isoladamente, mas de maneira sistemática, ou seja, deve ser
conjugado com outros artigos da lei e do ordenamento jurídico vigente com vistas aos
fins sociais e as condições peculiares da mulher (art. 4º). Referida lei procura conciliar
as medidas de natureza civil com as de caráter criminal, tão somente, para atender as
necessidades imediatas da mulher – vítima dessa violência. Uma vez cessados os
motivos que levaram a concessão dessas medidas de urgência, encerra-se também a
competência civil, cuja questão deverá se deslocar para o foro competente.

4.1. Competência

A competência para processar, julgar e executar as causas cíveis e criminais


relacionadas à violência doméstica e familiar contra a mulher fica a critério da ofendi-
da. Ela poderá escolher qual juízo pretende propor a ação cível: a) no seu domicilio ou
de sua residência; b) do lugar do fato em que se baseou a demanda; e d) do domicílio
do agressor (art. 15).
Este artigo não altera a competência prevista no Código de Processo Penal,
pois se eventualmente a violência ocorrer em Comarca diversa da residência da ofen-
dida, por exemplo, na Cidade de Bertioga, ela poderá optar em propor a ação cível em
sua residência situada na Capital de São Paulo, por exemplo, enquanto o inquérito
policial prosseguirá no Juízo de Comarca da Bertioga.
No nosso entender, aplicam-se as regras do Código de Processo Penal, no que
tange ao inquérito policial e do Código de Processo Civil, no que tange ao processo civil.
Tudo isso depende do devido processo civil ou penal. Cada Juízo tem suas
peculiaridades que devem ser observadas dentro da competência da Vara Criminal
(Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra Mulher) ou da Vara Cível (Vara de
66 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.57-73, janeiro/junho-2007

Família e Sucessões), a qual está bem mais estruturada para apreciar as questões
cíveis. Caso contrário, poderá causar uma confusão na aplicação da legislação sem
precedentes, podendo haver, por via de conseqüência, uma enxurrada de recursos
ora com fundamento na legislação penal ora na cível.
Como já afirmamos anteriormente, somente a Lei de Organização Judiciária
poderia estabelecer critérios objetivos de competência (ou distribuição de proces-
sos) para a atuação do Juizado que acumularão atribuições na esfera cível e criminal
sem ferir as regras da legislação pertinente.

4.2. Representação da ofendida

Outra questão também controvertida é a renúncia da ofendida à representação


que só poderá ser feita na audiência e perante o juiz (art. 16).
Essa exigência se deu por causa da “banalização da violência doméstica e
familiar e a falta de credibilidade à palavra da vítima, que se via forçada a desistir da
representação e fazer acordo, revelava a absoluta falta de consciência de que a vio-
lência intrafamiliar merece um tratamento diferenciado. A vítima, ao veicular a queixa,
nem sempre quer separar-se do agressor”2. Para se evitar a impunidade, a lei deter-
minou que a desistência ou retratação fosse feita pela vítima perante o juiz em audi-
ência previamente marcada para essa finalidade.
Registre-se, além disso, que nem todas as condutas descritas no art. 7º da lei
encontram supedâneo na legislação penal, mas aquelas que tiverem previsão na norma
penal (e condicionadas a representação), deverão ser colhidas à manifestação da
ofendida por ocasião da lavratura do Boletim de Ocorrência.
Aplicam-se, in casu, as regras do Código de Processo Penal. E o prazo para
representação é de seis meses (art. 38 do CPP) e a desistência ou retratação só
poderá ocorrer dentro desse prazo, caso contrário poderá ocorrer à decadência do
direito da ofendida.
Colhida a representação da ofendida, a desistência ou retratação só poderá ocor-
rer em audiência previamente designada para essa providência após ouvir o Ministério
Público. A renúncia, por sua vez, só ocorrerá caso não tenha sido colhida sua represen-
tação na delegacia de polícia (art. 12, I). Trata-se de uma causa extintiva de punibilidade.
O Promotor de Justiça deverá ofertar denúncia antes da audiência especialmen-
te designada para eventual desistência ou retratação? Tal medida não será possível
caso não tenha sido colhida à representação. Caso a ofendida, depois de se conciliar
com o agressor, resolva desistir da representação, qual seria o destino da eventual
denúncia ofertada? Seria simplesmente rejeitada ou esquecida? E as medidas protetivas

2
. Maria Berenice Dias, Nova lei coíbe violência doméstica e familiar contra mulher, Consultor Jurídico, 8 de
agosto de 2006.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.57-73, janeiro/junho-2007 67

de urgência seriam revogadas? Quais seriam os efeitos dessa revogação? Há pra-


zos preestabelecidos para a duração das medidas?
A Promotoria de Justiça, no nosso entender, não deverá ofertar denúncia antes
da audiência designada, sabendo-se que a ofendida poderia desistir ou se retratar da
representação. Somente após a realização da audiência de ratificação da represen-
tação é que a Promotoria de Justiça poderá ofertar denúncia. Esta não pode servir de
barganha entre a ofendida e o agressor.
Vê-se, por outro lado, que haverá praticamente duas audiências, caso ocorra à
ratificação da representação, ou seja, uma nos autos do expediente para constatar
na audiência preliminar de justificação a eventual pertinência das medidas solicitadas
pela ofendida e outra nos autos principais por ocasião do oferecimento da denúncia.
Isso poderá abarrotar a pauta do Juizado.

4.4. Medidas protetivas de urgência

Constatada a violência doméstica e familiar contra a mulher, o juiz poderá conce-


der, em conjunto ou separadamente, as seguintes Medidas Protetivas de Urgência que
Obrigam o Agressor previamente arroladas no art. 22 da Lei n. 11.340, de 7 de agosto de
2006, quais sejam: I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, como comu-
nicação ao órgão competente, nos termos da Lei n. 10.826, de 22 de dezembro de 2003;
II – afastar do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida (esta medida havia sido
inserida no art. 69, parágrafo único, da Lei n. 9.099/95, com redação dada pela Lei n.
10.455/2002); III - proibição de determinadas condutas, entre as quais: a) aproximação da
ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância
entre estes e o agressor; b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por
qualquer meio de comunicação; c) freqüentação de determinados lugares a fim de pre-
servar a integridade física e psicológica da ofendida; IV - restrição ou suspensão de visitas
aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço
similar; e V – prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
Há também as Medidas Protetivas de Urgência à Ofendida que estão arroladas
no art. 23 da Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2005, que também poderão ser conce-
didas: I – encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitá-
rio de proteção ou de atendimento; II – determinar a recondução da ofendida e a de
seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor; III – deter-
minar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens,
guarda dos filhos e alimentos; e IV – determinar a separação de corpos.
Ainda para proteger o patrimônio dos bens da sociedade conjugal ou daqueles
de propriedade particular da ofendida, poderão ser concedidas as seguintes medi-
das: I – restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida; II –
proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e loca-
ção de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial, oficiando-se o
68 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.57-73, janeiro/junho-2007

cartório competente; III – suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao


agressor, oficiando-se o cartório competente; e IV – prestação de caução provisória,
mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de
violência doméstica e familiar contra a ofendida.
O Juiz deverá, no nosso entender, fixar prazo para a duração das medidas
preventivas de urgência, as quais não poderão ser, no nosso entender, superior a
seis meses ou, ao menos, até o térmico do inquérito policial. A ofendida deverá ainda
propor ação cível o mais rápido possível sob pena de serem revogadas as medidas
que não poderão durar eternamente.
Visando a proteção da ofendida, o juiz poderá, sempre que necessário, requisi-
tar força policial para dar cumprimento às medidas de urgência, além de conceder
novas medidas previstas na legislação em vigor ou rever aquelas já concedidas, ou-
vido sempre o Ministério Público.
Dificilmente o juiz concederá tais medidas de imediato à ofendida sem antes
realizar audiência preliminar de justificação, pois são medidas graves que devem ser
adredememnte comprovadas, sob pena de cometer injustiça contra o suposto
agressor. Nesta audiência, o juiz poderá colher a desistência ou retratação da repre-
sentação ou a renúncia, caso não haja representação.
Por fim, recebido o expediente, o juiz deverá, no prazo de quarenta e oito horas,
decidir sobre as medidas protetivas de urgência requerida pela ofendida, sem ouvir o
agressor, ou designar audiência de justificação, caso não esteja convencido da ne-
cessidade das medidas.

4.5. Prisão preventiva

A prisão preventiva segue as regras do Código de Processo Penal e seus requi-


sitos estão contidos no art. 312, quais sejam: a) para garantir a ordem pública; b) por
conveniência da instrução criminal; e c) para assegurar a aplicação da lei penal.
Além das hipóteses contidas no art. 313, a Lei n. 11.340, de 7 de agosto de
2006, acrescentou mais um requisito para a prisão preventiva no inciso IV que diz: “se
o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei
específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência”.
A prisão preventiva, como se vê, é para garantir a execução das medidas
protetivas de urgência, podendo o juiz requisitar, inclusive, força policial para tanto. Tal
inciso deveria ter sido inserido no art. 312, como mais um requisito para a prisão
preventiva e não no art. 313, que trata das hipóteses de prisão.
Assim, a prisão do agressor poderá ser decretara a qualquer momento do inqué-
rito policial ou na instrução criminal, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou
mediante representação da autoridade policial (art. 20).
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.57-73, janeiro/junho-2007 69

Essa medida drástica será decretada para garantir a execução de uma ou de


várias medidas de urgência descritas na lei, podendo ainda ser revogada no curso do
processo, se não mais persistir as causas que levaram a prisão do agressor, ou
decretá-la novamente se sobrevier razões que a justifiquem.
A ofendida deverá ser intimada ou notificada, sem prejuízo da intimação do seu
advogado, de todos os atos processuais, especialmente da prisão do agressor ou de
sua saída. Isso é necessário para que a ofendida possa se precaver de eventuais
atos violentos do agressor. Trata-se de uma exigência da vítima que comumente tem
reclamado da falta de informações sobre o andamento do processo.
Não será mais possível permitir que a ofendida entregue pessoalmente
intimações ou notificações ao agressor. Era muito comum o cartório ou o Promotor
de Justiça solicitar à ofendida que entregasse tais intimações e notificações ao
agressor, pois, muitas vezes, ela tornava a ser agredida.

5. O MINISTÉRIO PÚBLICO E A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

O Ministério Público é sempre parte nas causas criminais e, com mais razão, na-
quelas relacionadas com a violência doméstica e familiar contra a mulher. Na esfera civil,
o Ministério Público atua como mero fiscal da lei, ou seja, como custos legis (art. 25).
Esta lei trouxe maior responsabilidade ao órgão ministerial, atribuindo-lhe as
seguintes incumbências: a) requisitar força policial e serviços públicos de saúde, e
educação, de assistência social e de segurança, entre outros; b) fiscalizar os estabe-
lecimentos públicos e particulares de atendimento à mulher em situação de violência
doméstica e familiar, e adotar, de imediato, as medidas administrativas ou judiciais
cabíveis no tocante a quaisquer irregularidades constatadas; e c) cadastrar os casos
de violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 26).
Este dispositivo realmente ampliou as atribuições do Ministério Público na esfe-
ra administrativa. Assim, ao atender a ofendida em seu gabinete, o Promotor de Jus-
tiça poderá também requisitar força policial para fazer cumprir as medidas, além
daquelas arroladas na lei, ou quaisquer outras que reputar importante para atender as
necessidades da ofendida.
Deverá também fiscalizar as entidades criadas para o atendimento à mulher
em situação de violência, que deverá ser criadas pelo Poder Público. Para isso será
necessário ter na Promotoria de Justiça livro próprio para registrar as visitas e, cons-
tatadas irregularidades, deverá propor as medidas administrativas ou ações cabíveis.
Por fim, o Ministério Público deverá manter um arquivo e nele registrar todos os
casos, cadastrando-os para posterior análise e pesquisa ou medidas que poderão
ser adotadas na órbita externa como políticas públicas a serem implementadas pelo
Poder Público.
70 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.57-73, janeiro/junho-2007

6. A ASSISTÊNCIA JUDICÁRIA E A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Com exceção das hipóteses previstas no art. 19, o advogado deverá estar pre-
sente em todos os atos processuais cíveis ou criminais relacionados à violência do-
méstica ou familiar contra a mulher (art. 27).
A mulher deverá, nesta lei, ter um tratamento diferenciado (humanizado) por parte
de todos aqueles que atuarem em seu favor, especialmente os funcionários públicos.
Será ainda garantida a mulher, vítima dessa violência, o acesso aos serviços da Defensoria
Pública e de Assistência Judiciária Gratuita, em sede policial ou judicial (art. 28).
Não se discute mais sobre a situação econômica da mulher, pois esta violên-
cia, via de regra, ocorre em todos os níveis e classes sociais. E se a separação
ocorrer, será, via de regra, litigiosa.

7. JUIZADOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, através da Resolução n. 286, de


04 de outubro de 2006, transformou as Varas Criminais dos Foros Regionais da Ca-
pital em Varas Criminais e dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra
Mulher e a 39ª Vara Criminal do Foro Central em Vara do Juizado de Violência Domés-
tica e Familiar contra Mulher do Foro Central com atribuições nas esferas cível e
criminal decorrentes de práticas de violência doméstica e familiar contra a mulher,
nos termos do Título IV e da legislação pertinente (art. 33). Esta Resolução entrará
em vigor trinta dias depois de sua publicação.
O Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher poderá criar equi-
pe de atendimento multidisciplinar a ser integrada por profissionais especializados
nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde com o objetivo de dar assistência à ofen-
dida e seus familiares e fornecer subsídios, por escrito, ao juiz, ao Ministério Público
e a Defensoria Pública por meio de pareceres e laudos (art. 29).
O Poder Judiciário, além disso, deverá se apressar em criar a equipe multidis-
ciplinar com a finalidade de atender os objetivos desta lei, reservando recursos ne-
cessários em seu orçamento para a manutenção dessa equipe sob pena de se tor-
nar letra morta (art. 32).

8. AGRAVAMENTO DO DELITO DE LESÕES CORPORAIS

O art. 44, da Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006, alterou novamente o art. 129,
§ 9º, do CP, agravando a pena que era de 6 (seis) meses a 1 (um) ano para 3 (três)
meses a 3 (três) anos, com a finalidade de se evitar a aplicabilidade de transação
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.57-73, janeiro/junho-2007 71

penal. Assim ficou a nova redação: “Se a lesão for praticada contra ascendente, des-
cendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido,
ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de
hospitalidade: Pena – detenção de 3 (três) meses a 3 (três) anos”. Citado dispositivo
acrescentou também o § 11, com a seguinte redação: “Na hipótese do § 9º deste
artigo, a pena será aumentada de um terço se o crime for cometido contra pessoa
portadora de deficiência” (art. 44).
Registre-se que citado artigo havia sido alterado anteriormente através da Lei n.
10.866, de 17 de junho de 2004, que teve curta duração.
Referido dispositivo acrescentou ainda uma modalidade de agravante contida
na parte geral do CP, em seu art. 61, com a seguinte redação, caso o delito tenha sido
cometido: “f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas,
de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei
específica” (art. 44).
A questão que fica é: por que o legislador diminuiu a pena mínima e aumentou a
máxima se o objetivo da lei visava o seu endurecimento? É sabido que o juiz costuma
aplicar a pena no seu mínimo legal? Em tese, retornou a pena mínima prevista no
caput do art. 129 do CP de 1940.
A Lei também alterou o art. 152, parágrafo único, da Lei de Execução Penal (Lei
n. 7.210, de 11 de julho de 1984), com a seguinte redação: “Parágrafo único. Nos
casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz poderá determinar o compareci-
mento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação” (art. 44).
Todas estas alterações tiveram por objetivo agravar a tipificação penal quando
se tratar de violência doméstica e familiar cometido contra a mulher.
Não há, como se vê, qualquer dúvida na sua aplicabilidade.

9. INAPLICABILIDADE DA LEI N. 9.099, DE 26 DE SETEMBRO DE 1995

Questão de difícil resolução é a proibição da aplicação da Lei n. 9.099, de 26 de


setembro de 1995, que impediu a possibilidade de composição civil (art. 76), transa-
ção penal (art. 76) e suspensão do processo (art. 89).
Assim, independente da pena fixada no tipo penal é inadmissível aplicação da
citada lei na hipótese de violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 41).
Esta proibição fere, no nosso entender, o princípio da igualdade. Imagine-se que o
marido pratique violência contra a mulher. Em tal hipótese, não se aplicará a Lei n. 9.099/
95, mas se, ao contrário, for à mulher quem tenha cometido o crime contra o marido, ela
será beneficiada pela Lei n. 9.099/95 (composição civil, transação penal e eventual sus-
pensão do processo). Dois fatos praticados no seio familiar haverá duas regras jurídicas
distintas aplicáveis (art. 129, caput, do CP, para a ofendida – pena de três meses a um
ano e art. 129, § 9º, do CP, para o agressor – pena de três meses a três anos).
72 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.57-73, janeiro/junho-2007

Isso faz-nos reportar a controvérsia que surgiu com o advento da Lei n. 10.259/
2001, que ampliou o conceito de infração de menor potencial ofensivo para abranger
a pena máxima não superior a dois anos, cuja aplicação estava restrita somente na
esfera federal. Já a Lei n. 9.099/95, permitia a transação penal desde que a pena
máxima não fosse superior a um ano, aplicando-se somente na esfera estadual. A Lei
n. 10.259/01 também impedia sua aplicação na esfera estadual, razão pelas quais
muitas ações foram propostas pelo Ministério Público, pois alguns membros eram
manifestamente favoráveis à aplicação da Lei n. 10.259/2001 na esfera estadual e
outros entendiam que não se aplicavam por expressa determinação legal. Prevale-
cendo, ao final, o entendimento jurisprudencial no sentido da aplicação da lei federal
na esfera estadual pelos Tribunais de todo o Brasil. Nesse meio tempo, adveio Lei n.
11.313, de 28 de junho de 2006, restabelecendo a normalidade jurídica.
Não podemos permitir tamanha injustiça, mesmo porque seria inconcebível que
a interpretação da lei fosse feita de maneira isolada. A interpretação da lei deve ser
sistemática, observando-se os fins sociais pelas quais ela foi criada e as peculiarida-
des das condições da mulher.
Partindo-se do princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, entendemos
que seria admissível, ao menos, a aplicação da suspensão do processo, pois mes-
mo que se consiga a punição do agressor, a pena não seria diferente daquela contida
na Lei n. 9.099/95, aplicando-se os benefícios do sursis - suspensão condicional da
pena (art. 77 do CP).
Trata-se de uma medida perfeitamente admissível e conforme com os objetivos
da lei. Não se admitiria, no entanto, a transação penal consistente na concessão de
cestas básicas – prestação pecuniária – ou a substituição de pena que implique o
pagamento isolado de multa (art. 17).

10. CONCLUSÃO

A Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006, tem por escopo coibir a violência doméstica
e familiar contra a mulher. No entanto, muitos dispositivos foram redigidos de maneira
confusa e assistemática, contrariando vários princípios e algumas normas específicas.
No entanto, a lei procurou dar cumprimento aos documentos internacionais e
normas constitucionais. A sociedade ansiava pela sua criação. Comprovou-se, nos
dias de hoje, que a mulher continua sendo vítima dentro da sua casa e também fora
dela. A mulher, além disso, ainda hoje sofre discriminação no trabalho e na sociedade.
A lei não vai resolver outros problemas de cunho social e cultural, mas poderá
ser o primeiro passo para o convívio harmonioso da mulher com seus familiares,
dando-lhe a segurança de que o poder público lhe atenderá quando forem solicitadas
as medidas nela contidas.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.57-73, janeiro/junho-2007 73

Nesse sentido, esclarece Fernando Vernice dos Anjos que o combate à violência
contra a mulher depende, fundamentalmente, de amplas medidas sociais e profundas
mudanças estruturais da sociedade (sobretudo extrapenais). Como afirmamos, a nova
lei acena nesta direção, o que já é um bom começo. Esperamos que o poder público e
a própria sociedade concretizem as almejadas mudanças necessárias para que pos-
samos edificar uma sociedade mais justa para todos, independentemente do gênero.
Desta forma, o caráter simbólico das novas medidas penais da Lei n. 11.340/06 não
terá sido em vão, e sim terá incentivado ideologicamente medidas efetivas para solu-
cionamos o grave problema da discriminação contra a mulher”3.
As questões levantadas neste trabalho estão longe de serem resolvidas. Há
muitos pontos polêmicos que só serão solucionados pelo Poder Judiciário. No entan-
to, deixamos aqui um canal aberto, dando-se início aos debates.

Luis Paulo Sirvinskas


4º Promotor de Justiça Criminal
da Penha de França,
mestre em Direito Penal e doutor em
Direito Ambiental pela PUC-SP

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANJOS, Fernando Vernice dos. Direito penal simbólico e lei de combate à violência doméstica
e familiar contra a mulher. Boletim do IBCCRIM n. 167, ano 14, outubro/2006, p. 10.
BARROS, Marco Antonio de. A nova lei que coíbe a violência doméstica e familiar contra a
mulher: um novo retrocesso. Biblioteca LEX – Legislação e Jurisprudência Consolidada 20/10/
2006, site: http://www.lex.com.br/noticias/artigos/default.asp?artigo_id=258
DIAS, Maria Berenice. Nova lei coíbe violência doméstica e familiar contra mulher, Consultor
Jurídico, 8 de agosto de 2006
PASINATO, Wânia. Justiça para todos: os Juizados Especiais Criminais e a violência de gêne-
ro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 53, mar-abr/2005, p.201/239.
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Tipificação criminal da violência de gênero: paternalismo
legal ou moralismo penal? Boletim do IBCCRIM n. 166, ano 14, setembro/2006.

3
. Direito Penal simbólico e lei de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, IBCCRIM n. 167,ano 14,
outubro/2006, p. 10).
AL GUMAS
ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES

Cesar Dario Mariano da Silva,


8° Promotor de Justiça do
II Tribunal do Júri
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.75-82, janeiro/junho-2007 77

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
SOBRE A LEI DE
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Não é de hoje que leis inaplicáveis em sua integralidade vêm sendo elaboradas.
Em 1.995 foi publicada a Lei do Crime Organizado (Lei nº 9.034/95), que em
muitos de seus aspectos não vingou, como se fosse da natureza da lei “pegar” ou
não. No entanto, a figura do Juiz investigador certamente não poderia ser aceita pela
comunidade jurídica.
Mais recentemente foi sancionada a Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2.006,
que trata da violência doméstica e familiar contra a mulher.
O artigo 5º da Lei diz que configura violência doméstica e familiar contra a mu-
lher qualquer ação ou omissão que propicie a morte, lesão, sofrimento físico, sexual
ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espa-
ço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo fa-
miliar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade for-
mada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, uni-
dos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor con-
viva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de
coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo
independem de orientação sexual.
O artigo 7º, por sua vez, diz que são formas de violência doméstica e familiar
contra a mulher, dentre outras:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofen-
da sua integridade ou saúde corporal;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que
lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que
lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise
degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e
decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação,
78 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.75-82, janeiro/junho-2007

manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contu-


maz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação
do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo
à saúde psicológica e à autodeterminação;
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a
constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação se-
xual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou
uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qual-
quer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer
método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez,
ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, su-
borno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus
direitos sexuais e reprodutivos;
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que
configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus
objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens,
valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destina-
dos a satisfazer suas necessidades;
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que con-
figure calúnia, difamação ou injúria.
Depreende-se do texto legal que são várias as formas de violência doméstica ou
familiar contra a mulher. E a norma diz expressamente que essas formas são meramen-
te exemplificativas, haja vista que podem existir outras não previstas na lei especial.
Com efeito, da conjugação dos artigos 5º e 7º, podemos chegar a algumas
conclusões:
1) a violência doméstica e familiar somente pode ter como vítima a mulher,
independente de sua condição pessoal ou preferência sexual;
2) pode ocorrer em qualquer local em que a ofendida resida, ou mesmo fora
dele, desde que praticada por pessoa que consigo conviva ou conviveu, com ou sem
vínculo familiar, por familiares, por pessoas unidas por laços naturais, de afinidade ou
por vontade expressa, ou, ainda, em qualquer relação íntima de afeto, na qual o
agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independente de coabitação e
de orientação sexual;
3) as formas de agressão podem ser de índole corporal, psicológica, moral,
patrimonial ou sexual em qualquer situação retratada no item 2 tendo como vítima
apenas a mulher.
Dessa forma, o crime pode ser praticado pelo marido ou companheiro contra a
esposa ou companheira, pelo namorado contra a namorada, pela mãe ou pai contra a
filha, ou mesmo por pessoas que apenas convivam sob mesmo teto sem qualquer
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.75-82, janeiro/junho-2007 79

laço de parentesco, desde que a vítima seja mulher. Disso decorre que até a mulher
pode ser sujeito ativo, mas a vítima será sempre a mulher.
Os crimes podem ser desde uma simples lesão corporal leve ou ameaça até
um estupro ou homicídio, além de delitos patrimoniais como o furto.
Constatada a violência doméstica ou familiar, o juiz, sem a necessidade de
ouvir o Ministério Público, no prazo de até 48 horas, poderá aplicar, dentre outras,
liminarmente, qualquer das medidas protetivas de urgência previstas no artigo 22 da
Lei, conjunta ou separadamente. São elas:
I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com
comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei no 10.826,
de 22 de dezembro de 2003;
II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a
ofendida;
III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das tes-
temunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes
e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas
por qualquer meio de comunicação;
c) freqüentação de determinados lugares a fim de preser-
var a integridade física e psicológica da ofendida;
IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores,
ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;
V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
§ 1o As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação
de outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segu-
rança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a
providência ser comunicada ao Ministério Público.
Para fazer valer as referidas medidas poderá o Magistrado requisitar auxílio
policial (art. 22, § 3º) e, em qualquer fase do inquérito ou processo, decretar a prisão
preventiva do agressor (art. 20 c.c. o art. 313, IV, do CPP com a nova redação dada
pelo artigo 42 da Lei nº 11.340/2006).
O legislador criou uma espécie de prisão preventiva satisfativa, ou seja, que não
visa assegurar a eficácia de um provimento jurisdicional. A prisão preventiva tem e sempre
terá caráter cautelar e tem por função o bom andamento do processo e a aplicação de
uma sentença penal condenatória. Ela visa apenas garantir a ordem pública ou econô-
mica, assegurar a aplicação da lei penal ou para a conveniência da instrução criminal.
80 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.75-82, janeiro/junho-2007

Não pode ser criada uma espécie de prisão preventiva que tenha por finalidade
não o processo em si, mas a garantia da execução das medidas protetivas de urgên-
cia, que poderão não interferir no normal andamento processual.
Somente a título de argumentação, suponhamos que o marido agressor não
aceite parar de freqüentar um clube em comum com a ofendida. A Lei, no caso, pos-
sibilita ao Magistrado decretar a prisão preventiva do marido. Além de o marido
estar sendo tolhido de freqüentar um lugar público ou privado, violando sua liberdade
de ir e vir, está sendo preso por não cumprir uma ordem judicial sem que tenha sido
processado e condenado por crime de desobediência, que é de pequeno potencial
ofensivo e dificilmente redundaria em condenação à pena privativa de liberdade.
Além disso, não é possível ao agressor ser beneficiado pelos institutos
despenalizadores do Juizado Especial Criminal, ou seja, responderá a processo cri-
minal que poderá levar a uma condenação com todas as suas conseqüências penais
(art. 41). E na mesma situação, caso o agressor fosse a mulher, e a vítima homem,
poderia ser beneficiada pela transação penal ou suspensão condicional do processo.
A lei penal, que sempre foi genérica e impessoal, está sendo empregada para
beneficiar uma classe de pessoas (mulheres) e prejudicar outra (homens).
A nova Lei viola fragrantemente o princípio da isonomia, uma vez que homens e
mulheres estão sendo tratados de maneira totalmente diferente em situações iguais.
Embora não seja comum, há casos em que as agressões domésticas ou familiares
têm como vítimas homens e agressores mulheres.
Suponhamos o seguinte caso: o marido ameaça a esposa. Ela se dirige ao
Distrito Policial e narra os fatos ao Delegado, que representa ao Juiz solicitando a
adoção de medidas protetivas. O Juiz as defere, determinando o afastamento do
marido do lar conjugal e fixa alimentos provisórios. Determina, ainda, que o marido
não se aproxime da esposa e nem dos filhos, ficando proibido qualquer tipo de comu-
nicação com sua família e a freqüência a lugares em que esposa costuma ir, sob
pena de decretação da prisão preventiva. Além disso, embora o crime seja punido
com pena inferior a dois anos, o agressor deverá ser julgado de acordo com o proce-
dimento comum, não se lhe aplicando os dispositivos da Lei nº 9.099/95. Por outro
lado, se a ameaça partisse da mulher, o máximo que poderia ocorrer é ela ser sub-
metida ao procedimento previsto na Lei nº 9.099/95.
Além das medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor (art. 22), a
Lei prevê medidas de proteção à pessoa da ofendida que poderão ser aplicadas pelo
Magistrado sem prejuízo de outras (art. 23). São elas:
I - encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial
ou comunitário de proteção ou de atendimento;
II - determinar a recondução da ofendida e a de seus dependen-
tes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor;
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.75-82, janeiro/junho-2007 81

III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo


dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;
IV - determinar a separação de corpos.
Para a proteção dos bens da sociedade conjugal ou de propriedade particular
da mulher, o Juiz poderá determinar liminarmente as medidas seguintes, além de
outras (art. 24):
I - restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à
ofendida;
II - proibição temporária para a celebração de atos e contratos de
compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo ex-
pressa autorização judicial;
III - suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao
agressor;
IV - prestação de caução provisória, mediante depósito judicial,
por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência
doméstica e familiar contra a ofendida.
Parágrafo único. Deverá o juiz oficiar ao cartório competente
para os fins previstos nos incisos II e III deste artigo.
Os artigos 23 e 24 trazem medidas cautelares de natureza civil, que serão
determinadas por juiz com competência criminal, ao menos até a criação dos Juizados
de Violência Doméstica e Familiar. Esses juízes, nos casos de violência doméstica e
familiar contra a mulher, acumularão as competências cível e criminal. Aliás, será
garantido o direito de preferência nas varas criminais para o processo e julgamento
dessas causas (art. 33). O dispositivo causa espécie, uma vez que será dada prefe-
rência de julgamento até sobre processos que envolvam réus presos em que se
discute o direito à liberdade de alguém.
Trata-se de medidas que serão extremamente úteis para a proteção pessoal e
do patrimônio da mulher, que muitas vezes acaba sendo dilapidado por seu marido
ou companheiro.
Não há como negar que houve boa intenção por parte do Legislador. Entretanto,
perdeu uma grande oportunidade de criar uma lei que protegesse todos os compo-
nentes de uma unidade familiar, sejam homens ou mulheres.
Várias das medidas protetivas violam bens jurídicos extremamente importantes
e temos sérias dúvidas acerca de sua constitucionalidade. Não vemos como alguém
possa ser proibido de freqüentar determinados lugares a pretexto de proteger a inte-
gridade física ou mental da mulher. Como será medida a distância que o agressor
não poderá se aproximar da ofendida?
82 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.75-82, janeiro/junho-2007

Essas situações e outras análogas, embora interessantes do ponto de vista


teórico, são de difícil aplicação e fiscalização na prática.
Para que a Lei possa subsistir caberá ao Magistrado ter bom senso ao decidir e
cercar-se de todos os cuidados para não ser enganado. Somente em situações gra-
ves e devidamente comprovadas poderá ser concedida uma medida protetiva
liminamente, como já ocorre com as medidas cautelares, que exigem o “fumus boni
iuris” e o “periculum in mora”.
Não vemos, também, como negar os benefícios da Lei nº 9.099/95 aos homens
e possibilita-los para as mulheres na mesma situação fática. Assim, tanto para o
agressor quanto para a agressora deverão ser possibilitados os institutos
despenalizadores previstos na Lei nº 9.099/95. É uma forma de contornar a grave
violação ao princípio da isonomia.
Acreditamos que a nova Lei não será aplicada em sua integralidade ou acabará
sendo interpretada de modo a não ser considerada inconstitucional em vários pontos.
O agressor da mulher terá direito a ser julgado pelo Juizado Especial Criminal
em homenagem ao princípio da isonomia.
A prisão preventiva somente será decretada quando presentes os requisitos
previstos nos artigos 311 a 313 do CPP, e não para simplesmente garantir a eficácia
das medidas protetivas de urgência.
Além disso, caberá ao Magistrado cercar-se de cautelas para não ferir desne-
cessariamente bens jurídicos de extrema valia no intuito de proteger a mulher. Certa-
mente existirão situações montadas e fantasiosas criadas para beneficiar a parte
que, em regra, é a mais fraca fisicamente, em detrimento do agressor, que, como já
dito, pode ser homem ou mulher.
O melhor, na realidade, é que o Legislador reveja a lei e a modifique para prote-
ger qualquer forma de violência doméstica ou familiar que tenha como vítima o ho-
mem ou a mulher.

Cesar Dario Mariano da Silva,


8º PJ do II Tribunal do Júri
V iolência
doméstica

Rodrigo da Silva Perez Araújo,


assessor jurídico do Ministério
Público do Distrito Federal e
Territórios
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007 85

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA:
POSSIBILIDADE JURÍDICA DA
NOVA HIPÓTESE DE PRISÃO
PREVENTIVA À LUZ DO
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL
DA PROPORCIONALIDADE
RESUMO

A nova hipótese de prisão preventiva estabelecida pela Lei 11.340/06 não en-
contra reprovação no arcabouço legal capitaneado pelo artigo 312 do Código de Pro-
cesso Penal, nem na Constituição Federal.
Houve adequação sistemática da prisão ante tempus.
O estágio técnico-jurídico e social atuais indicam a adequação da prisão – con-
dicionada temporalmente ao tempo mínimo de prisão cominada à conduta optada –
como medida idônea a garantir efetividade às medidas de proteção instituídas pela
Lei Maria da Penha.
Ademais, não há em nosso ordenamento outro meio idôneo a garantir a digni-
dade da mulher em situação de violência doméstica, de modo que se deve atribuir
maior peso a seu direito à integridade, à vida mesmo, em detrimento da episódica
restrição da liberdade do agressor.
Palavras-chave: violência doméstica. Prisão preventiva. Possibilidade jurídica.
Princípio constitucional da proporcionalidade: adequação dos meios aos fins e menor
restrição possível.

1. INTRODUÇÃO

A Lei 11.340/06 introduziu nova possibilidade de prisão preventiva – para asse-


gurar a efetividade das medidas de proteção nela previstas –, oportunidade em que
acrescentou o inciso IV ao art. 313 do Código de Processo Penal. Compatibilização
relevante porque a lesão corporal leve é, estatisticamente, a violência doméstica mais
significativa contra a mulher.
86 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007

Entretanto, permanece a controvérsia acerca da constitucionalidade desta pri-


são cautelar, pois o princípio da proporcionalidade indica a que a prisão ante tempus
não poderia ser mais severa que a pena ao final aplicada ao acusado.

2. COLOCAÇÃO E DEBATE

Antes de nos posicionarmos propriamente a respeito da possibilidade constitu-


cional e legal, em tese e conforme art. 20 da Lei 11.340/06 1, da prisão preventiva nos
casos de violência doméstica, faz-se pertinente considerar a sede adequada para a
discussão da questão, o resultado admissível da ponderação entre os valores e prin-
cípios envolvidos, (sem vírgula) e a inexistência de incompatibilidade dessa nova pos-
sibilidade com as disposições legais pertinentes à prisão ante tempus.
(A) O Direito tem pretensões sistemáticas, pois impõe ao Legislador e ao intér-
prete, por lógica, ainda que não a formal – própria das ciências naturais -, mas a do
razoável 2, calcada nos valores eleitos e na adesão do auditório 3, o princípio da não-
contradição, ou melhor, um dever de coerência.
Esse sistema pode ser lido, como fez KELSEN, de um ponto de vista estático,
dando ênfase à Constituição, fundamento de validade das normas, ou de um ponto
de vista dinâmico, assim entendido como aquele que, por indução, procura fazer
prevalecer o valor eleito como parâmetro deôntico, do dever-ser. Essa é a lição de
NORBERTO BOBBIO 4.
O Mestre, após assentar que o sistema jurídico seria um tertius genus resultan-
te dessas duas modalidades de sistema, aduz que:
”... confrontando com um sistema dedutivo, o sistema jurídico é
alguma coisa menos; confrontando com o sistema dinâmico do qual
falamos no parágrafo anterior, é algo de mais: de fato, se se admitir o
princípio de compatibilidade, para se considerar o enquadramento de
uma norma no sistema não bastará mostrar a sua derivação de uma

1
Art. 20. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor,
decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade
policial.
Parágrafo único. O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no curso do processo, verificar a falta de motivo
para que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.
2
Recasens Siches foi haurir no Iluminismo do século XVIII, no racionalismo de Kant, a expressão hoje tão
difundida: “A lógica do Direito é a lógica do razoável”: in Razoabilidade versus proporcionalidade. Disponível em:
. Acesso em: 11 dez. 2006.
3
Como leciona CHAIM PERELMAN.
4
Teoria do ordenamento jurídico. 9ª ed.. Brasília: Editora UNB; 1997; pp. 71/74.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007 87

das fontes autorizadas, mas será necessário também mostrar que ela
não é incompatível com outras normas. Nesse sentido, nem todas as
normas produzidas pelas fontes autorizadas seriam normas válidas,
mas somente aquelas compatíveis com as outras”.

Mais adiante, após apresentar com clareza impar as antinomias jurídicas, sali-
enta a insuficiência dos critérios tradicionais de interpretação: verificação da
contemporaneidade das normas, bem como de sua hierarquia e de se tratar de nor-
mas gerais ou especiais, pois são possíveis, sem prejuízo de qualquer natureza,
contradições valorativas intestinas.
Acrescenta, em lição pertinente, que o dever de coerência, portanto, não é con-
dição de validade, mas de justiça do ordenamento 5.
Justiça é daquelas definições altamente controvertidas em Direito. Entretanto,
sem maiores digressões, por exemplo, a respeito de sua coincidência com a moral,
como quis KELSEN 6, é possível entendê-la, ao menos de um ponto de vista prático,
como atenção aos princípios gerais do Direito. Essa é a lição de OTFRIED HÖFFE,
professor honoris causa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul:
Em estilo claro e sintetizado de modo aforístico, como que talhado em
pedra, eles declaram: ‘As prescrições do direito são estas: viver ho-
nestamente, não lesar ninguém, dar a cada um o que é seu’.
(...)
De acordo com entendimento convencional, os três princípios afirmam
essencialmente a mesma coisa. O primeiro, ‘vive honestamente’ (honeste
vive), ordena uma probidade que consiste, em sua determinação nega-
tiva, na proibição ‘não leses ninguém” (neminem laede) e, positivamen-
te, no imperativo ‘dá a cada um o que é seu’ (suum cuique tribue)” 7.

Sabe-se que a Constituição é o primeiro fato jurídico do fenômeno político –


evidência próxima disso é nossa Carta Constitucional e os embates que se deram na
Assembléia Constituinte.

5
Teoria do ordenamento jurídico. 9ª ed.. Brasília: Editora UNB; 1997; pp. 71/114, notadamente p. 113.
6
Teoria pura do Direito, Martins Fontes, São Paulo: 2000, p. 71.
7
O que é Justiça?, tradução de Peter Naumann, Coleção Filosofia, nº 155, Editora EDIPUCRS, Porto Alegre: 2003, p. 57.
88 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007

Logo, podemos dizer que:


... o legislador [inclusive o infraconstitucional] se põe em conflito com
as suas próprias valorações, e que, portanto, a contradição valorativa
é uma contradição imanente. (...) Diferentemente das contradições
normativas, que de forma alguma podemos deixar subsistir, as contra-
dições valorativas têm em geral que ser aceitas 8.

Tal confronto, que se dúvida também se dá em sede infraconstitucional, é solvi-


do pelo princípio da proporcionalidade, com sede no princípio do devido processo
legal substantivo, e seus conhecidos subprincípios da adequação do meio-fim, da
necessidade e da menor restrição possível. Adensa o princípio da razoabilidade, pelo
qual “...o intérprete/aplicador avalia a lógica do razoável (...) tenta compatibilizar inte-
resses com razões e não a causa com o efeito. (...) Enquanto a lógica formal busca
referenciar causa e efeito, a lógica do razoável define a decisão que melhor
compatibiliza interesses e razões que são apenas experimentalmente referenciáveis,
sujeitos a valorações subjetivas. (...) Essa lógica do razoável se caracteriza, resumi-
damente, por estar: a) condicionada à realidade concreta do mundo histórico-social
para o qual estão voltadas as normas jurídicas; b) repleta de postulados axiológicos,
valores que devem se relacionar com as possibilidades e limitações do mundo real e
que constituem o objetivo que define as escolhas dos fins almejados pelo intérprete.
(...) CHAIM PERELMAN... leciona que os direitos concedidos a um indivíduo não po-
dem ser exercidos de forma desarrazoada, ou seja, de forma abusiva, inaceitável
pela comunidade num dado momento. Assim, o desarrazoado ocorreria quando, da
aplicação concreta de determinada lei, decorressem conseqüências injustas, ridícu-
las ou opostas ao normal funcionamento do Estado” 9.
A razoabilidade diz respeito, portanto, aos anseios da sociedade.
Oportuno é o esclarecimento de FÁBIO ULHOA COELHO:
O aplicador do direito, para fazer uso da lógica do razoável, deve
investigar algumas relações de congruência. Especificamente, ele deve
se indagar: quais são os valores apropriados à disciplina de determi-
nada realidade (congruência entre realidade social e os valores)? Quais
são os propósitos concretamente factíveis com os valores prestigiados
(congruência entre os fins e a realidade social)? Quais são os meios
convenientes, eticamente admissíveis e eficazes, para a realização
dos fins (congruência entre meios e fins)? 10

8
ENGISH, Karl; Introdução ao pensamento jurídico. Edição Fundação Calouste Gulbenkian, tradução do original
em alemão. Lisboa: 2001; p. 316.
9
BRAGA, Valeska e Silva; Princípios da proporcionalidade e da razoabildade.Curitiba: Juruá; 2004; p. 49 e 55/57.
10
Roteiro de lógica jurídica, 4ª ed., Saraiva: São Paulo, 2001, p. 85.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007 89

Pois bem, exemplo legislado no Código Penal da convivência de proteções


conflitantes dispensadas a valores significativos e da aplicação da lógica do razoá-
vel é, para mencionar apenas um, o seguinte: estatui o art. 128, inc. II, dessa
codificação que não se pune o aborto praticado por médico se a gravidez resulta de
estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz,
de seu representante legal.
É o que se convencionou chamar de aborto sentimental.
Não vemos como deixar de perceber aí uma ponderação do legislador – em
norma cuja constitucionalidade jamais foi questionada – entre o direito à vida daquele
ser em formação – cujos interesses são resguardados na esfera cível (Código Civil,
art. 2º, in fine) – e o direito da gestante a uma sobrevida digna, sem os percalços
psicológicos que aquela vida, produto de conjunção carnal não consentida, obvia-
mente, lhe traria.
Tema atual, aliás, haja vista a ainda não pacificada possibilidade ou não de aborto
de anencéfalo, tendo havido inclusive medida liminar no Supremo Tribunal Federal
admitindo essa possibilidade, apesar de digladiarem diversos setores sociais, cada
um buscando ver preponderar seu ponto de vista.
O Ministro Marco Aurélio afirmou, quando da análise da questão, que “A vida é
um bem a ser preservado a qualquer custo, mas, quando a vida se torna inviável, não
é justo condenar a mãe a meses de sofrimento, de angústia, de desespero” 11.
Avulta, nessa quadra, a significação que se deve dar ao interesse preponderan-
te, ou de maior peso, no confronto do direito à liberdade do agressor em face do
direito, em última análise, à vida da mulher vitimada; o que se deve fazer pela lente da
insuficiência dos meios e métodos postos pelo ramo meta-penal do Direito para a
solução da violência doméstica.
Seguindo esta linha de raciocínio, a família é a menor unidade social – célula
mater –, hoje funcionalizada, ou melhor, concebida não mais como um fim em si
mesma 12, mas reconhecida como locus privilegiado para o mais amplo e completo
possível desenvolvimento da personalidade, núcleo 13 do princípio da dignidade da
pessoa humana 14.

11
A liminar do Ministro Marco Aurélio que permitiu o aborto de fetos anencefálicos. Jus Navigandi, Teresina, ano
8, n. 413, 24 ago. 2004. Disponível em: . Acesso em: 11 dez. 2006.
12
Mirava-se a proteção do patrimônio – motivo que animou a vedação à separação judicial e ao divórcio, bem como
era o móvel das classificações discriminatórias dos filhos.
13
Elemento que não pode ser suprimido sem acarretar alteração substancial no seu conteúdo e em sua estrutura.
Ou melhor, razão de ser da previsão do direito.
14
Constituição Federal, art. 1º, inc. III (Fundamento da República) e art. 226, caput e respectivo §7º
90 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007

Ao resguardar expressamente a dignidade humana no contexto da proteção


dispensada à família, a Constituição Federal está a impor o respeito a “todos os valo-
res e direitos que podem ser reconhecidos à pessoa humana, englobando a afirma-
ção de sua integridade física, psíquica e intelectual, além de garantia a sua autonomia
e livre desenvolvimento da personalidade [veja a semelhança entre estes aspectos e
as formas de violência contra a mulher, tipificadas no capítulo II do título II, art. 7º da
Lei Maria da Penha].
”A dignidade da pessoa humana, pois, serve como mola propul-
sora da intangibilidade da vida humana, dela defluindo como
consectários naturais: i) o respeito à integridade física e psíquica das
pessoas; ii) a admissão da existência de pressupostos materiais
(patrimoniais inclusive) mínimos para que se possa viver; e iii) o res-
peito pelas condições fundamentais de liberdade e igualdade.
”A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que
se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e res-
ponsável da própria vida e que leva consigo a pretensão ao respeito
por parte dos demais” 15.
Essas considerações são lugares comuns, mas nem por isso desinfluentes,
na interpretação e cotidiana aplicação do direito. É o que nos revela a consulta à
jurisprudência deste E. TJDFT.
(B) Nesta senda, ambos os atores do tristemente afamado episódio de violên-
cia doméstica e familiar são dotados dessa intrínseca qualidade de ser, de modo
que aqui se revela (i) a insuficiência dos métodos ortodoxos de compreensão e
aplicação do Direito legislado e (ii) campo fértil para a ponderação dos confrontantes
valores: (ii.i) necessidade contrafática de afastar o agressor da mulher –
hipossuficiente no aspecto físico, no mais das vezes 16 –, assim compreendido nos
termos da Lei 11.340/06, respeitando, portanto, a dignidade da mulher e, em conse-
qüência, de seus filhos, cujos modelos (a serem seguidos ou jamais o ser) para
toda a vida são ambos os pais – merecedores de proteção integral (Constituição
Federal, art. 227); (ii.ii) necessidade de resguardar a dignidade do agressor, que
não pode ter sua liberdade cerceada senão nas excepcionais hipóteses legais, haja

15
CHAVES DE FARIAS, Cristiano e ROSENVALD, Nelson. Direito Civil – teoria geral. 4ª ed., Rio de Janeiro: Lúmen
Júris; 2006; pp. 91/93. No mesmo sentido, LUIZ RÉGIS PRAZO, que leciona que a dignidade da pessoa humana
“não se trata de simples criação legislativa, porquanto apenas se reconhece no texto constitucional a eminência
da dignidade como valor (ou princípio) básico, cuja existência, bem como o próprio conceito de pessoa humana,
são dados anteriormente, aferidos de modo prévio à normação jurídica. Como postulado fundamental, peculiar ao
Estado de Direito democrático, a dignidade da pessoa humana há de plasmar todo o ordenamento jurídico positivo
– como dado imanente e limite mínimo vital à intervenção jurídica. Trata-se de um princípio de justiça substancial,
de validade a priori, positivado jurídico-constitucionalmente” (Curso de direito penal brasileiro. 3ª ed., São Paulo:
RT; 2002, pp. 115/116).
16
Única razão possível para admitir-se a desequiparação feita pela lei entre mulher vítima e o homem eventualmen-
te na mesma situação.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007 91

vista o direito/garantia constitucional da presunção de não-culpabilidade (Constitui-


ção Federal, art. 5º, inc. LVII) a impor, por critério de justiça procedimental, que a ele
não seja dispensado tratamento de culpado, senão após o trânsito em julgado de
sentença penal condenatória.
A questão, portanto, que subjaz à possibilidade jurídica de decretação da prisão
preventiva para os casos de violência doméstica (Lei 11.340/06, art. 20), se apresen-
ta mais em termos principiológicos do que de conformidade infraconstitucional ou
coerência legal. Não é decorrência de eventual conflituosidade entre a nova possibili-
dade de prisão ante tempus, com o arcabouço normativo capitaneado pelo art. 312 do
Código de Processo Penal.
Trata-se de antinomia apenas aparente, pois a novatio legis é lei especial poste-
rior e da mesma hierarquia do Código de Processo Penal (Lei de Introdução ao Códi-
go Civil, art. 2º), reformando-o, inclusive, ao acrescentar mais um inciso ao art. 313
dessa codificação.
Assim é que, apesar do respeito que temos às opiniões em contrário e das
limitações intrínsecas a uma primeira aproximação do tema, não há incompatibilida-
de entre a nova possibilidade de prisão preventiva e os artigos do Código de Proces-
so Penal sobre o tema.
Pertinente é considerar que há Súmula do Superior Tribunal de Justiça
compatibilizando, em tese, entre (tirar) o teor do inciso LVII do art. 5º da Constituição
Federal e a prisão cautelar. Calha, assim, tendo em vista a relevância e repercussão
do tema, a leitura do precendente mais moderno desse consagrado Enunciado 17,
desde já pedindo vênia pela extensão do excerto:
Com o devido respeito ao Professor Frederico Marques, entendo que seu pare-
cer está equivocado. Isto porque, quando a Constituição Federal estabelece que ‘nin-
guém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória’ nada mais está fazendo do que elevar, a nível constitucional, velho e
conhecido princípio geral de direito penal. Neste sentido foi o julgamento do HC...
Em verdade, como tem sido reiteradamente decidido pelo Tribunal recorrido
[TJSP], o dispositivo constitucional deve ser interpretado em consonância com os
demais textos que disciplinam a prisão, não sendo correto sustentar somente ser
possível, depois da vigência da nova Constituição da República, a prisão de quem já
tenha sido definitivamente condenado.
Com efeito, como salientou o Desembargador Canguçu de Almeida, acolhendo
parecer deste Procurador de Justiça, ‘o preceito constitucional obsta a conceituação
como culpado, mas não veda a imposição provisória da prisão, quando decorra esta
de determinação legal (como no caso do art. 35 da Lei 6.368/76) ou o prudente arbítrio

17
Súmula 09: exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de
inocência.
92 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007

do juiz (como em casos de prisão preventiva); proíbe, como ressaltado no parecer de


fls. 47/49, a reprovação social, mas não impede que, em nome da garantia da ordem
pública, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei
penal, se imponha a prisão cautelar do agente’...
Assim é que ‘não há novidade neste preceito e nem possui qualquer influência
sobre as formas de prisão preventiva, que continuam existentes... “ 18 (destaques
nossos).
Tais ponderações são atuais, pois é recorrente o brado pela presunção de inocência.

(C) A sistemática legal da prisão cautelar indica que são óbices a sua
admissibilidade: (i) tratar-se de crime culposo ou não punido com reclusão (CPP, art.
313); (ii) que a pena de reclusão cominada seja de tal monta que, tendo em vista o
regime prisional a ser aplicado, a prisão cautelar seja mais grave que a sanção eleita
pelo legislador, o que faz incidir a reprovação do princípio da proporcionalidade, pois o
meio empregado – prisão – é inadequado aos fins da Jurisdição, uma vez que o
convívio social do agente não foi considerado pernicioso, em abstrato.
Pois bem, não vemos incompatibilidade entre a nova possibilidade de prisão
cautelar para assegurar o cumprimento e efetividade das medidas de proteção descri-
tas na Lei Maria da Penha e a sistemática legal e constitucional da prisão ante tempus.
Veja-se a redação do art. 42 da citada Lei:
Art. 42. O art. 313 do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de
1941 (Código de Processo Penal), passa a vigorar acrescido do se-
guinte inciso IV:
”Art. 313.... . .............................................
................................................................
IV - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a
mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das
medidas protetivas de urgência.” (NR)
Decorre da subordinação do teor das partes do artigo ao contido em sua cabe-
ça, como impõe o art. 10 da Lei Complementar 95/98, que nos crimes dolosos puni-
dos com detenção, como, v.g., a lesão corporal leve perpetrada em situação de vio-
lência doméstica – hipótese estatisticamente mais relevante – a sistemática
infraconstitucional foi adaptada às pertinentes críticas da doutrina quanto à improprie-
dade das medidas despenalizadoras da Lei 9.099/95 no caso 19, e que o rito ainda

18
RHC 202/SP, Rel. Ministro EDSON VIDIGAL, QUINTA TURMA, julgado em 18.09.1989, DJ 21.05.1990 p. 4435.
19
GOMES, Luiz Flávio. Violência Doméstica: mais uma lei puramente simbólica, Revista Síntese de Direito Penal
e Processual Penal, ano V, nº 27 – ago-set 2004, pp. 7/8. No mesmo sentido EVANGELISTA DE JESUS, Damásio.
Violência contra a mulher, Suplemento Direito & Justiça do Jornal Correio Brasiliense de 08 de maio de 2006.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007 93

teria aplicação, haja vista a celeridade que propicia, sem prejuízo da correção da
prestação jurisdicional e da garantia constitucional ampla defesa.
Apesar de aviltante e comprometedora da integridade deste caro ser que é a
mulher (mãe, esposa, irmã etc.), a realidade da violência doméstica, apesar dos di-
versos Tratados e Convenções Internacionais ratificadas pelo Brasil, somente em
tempos recentes tem merecido atenção.

(D) A evolução legal do tema revela, com o devido respeito, certo descompro-
misso e assistematicidade legislativa: (i) primeiramente a pena mínima cominada
foi aumentada, o que foi desinfluente, pois continuava a incidir a Lei 9.099/95 e a
malsinada pena de pagamento de cesta-básica que, além de não servir como pre-
venção, seja geral ou especial, incentivava o desrespeito, haja vista a impunidade
decorrente do tratamento da questão como infração de menor potencial ofensivo 20;
(ii) a Lei 11.340/06 afasta, de modo ambíguo e questionável em certos aspectos a
aplicação da Lei 9.099/95 21.
Pesquisa realizada pelo Senado Federal 22 transparece a violência doméstica
como agir tradicional que tem como âmbito comum a família, e que não é incomum a
reiterada prática dessa modalidade de desrespeito – a pesquisa revelou que 50% das
mulheres inquiridas já tinham sido violentadas por 04 ou mais vezes.
Há mais.
Outra pesquisa, dessa vez realizada pelo IBOPE neste ano de 2006, estarrece
ao constatar que “Em cada quatro entrevistados, três consideram que as penas apli-
cadas nos casos de violência contra a mulher são irrelevantes e que a justiça trata
este drama vivido pelas mulheres como um assunto pouco importante” 23.
A interpretação sistemático-teleológica do marco legal da prisão cautelar não
deixa dúvidas sobre o cabimento, em tese e conforme as vicissitudes do caso con-
creto, da prisão em testilha:

20
Reflexão pessoal do tema faz ver o desvio de perspectiva com que tratamos relevantes fatos sociais. Não nos
damos conta de que neste caso e em muitos outros a lesão extrapola a subjetividade da vítima. Fato semelhante
ocorre com os crimes que lesam bens jurídicos transindividuais, como o crime contra o meio ambiente e contra as
finanças do Estado, para citar apenas dois exemplos. Neste último caso, a admissão inclusive pela Fazenda
Pública – que admite não ajuizar procedimentos judiciais tendo em vista o reduzido valor sonegado, por exemplo
– da incidência do princípio da insignificância revela a percepção equivocada dos custos da tutela do direto
lesado e da repercussão desta mesma tutela.
21
Ambíguo e questionável porque suscita uma série infindável de debates, por exemplo: (a) sobre se o crime de
lesões corporais leves continua sendo de ação penal pública condicionada à representação, ou se a
indisponibilidade da dignidade humana imporia tratar-se de ação incondicionada; (b) sobre o procedimento a ser
aplicado, notadamente neste E. TJDFT, que por ato normativo regular determinou ao Juizados Especiais Criminais
a competência para processar e julgar aqueles casos submetidos às disposições da Lei 11.340/06; etc.
22
, acesso em 11 de dezembro de 2006.
23
, acesso em 11 de dezembro de 2006.
94 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007

Da interpretação sistemática do dispositivo acima transcrito, po-


dem-se extrair as seguintes conclusões: 1 – a prisão preventiva cogita-
da na Lei “Maria da Penha” continua cabendo apenas diante de crimes
dolosos, a uma porque o novel inciso IV do art. 313 do Código de Pro-
cesso Penal se subordina ao seu caput, onde, na parte final, se estabe-
lece que a medida excepcional só cabe em crimes dolosos, estando,
por conseguinte, excluídas de sua incidência as contravenções e os cri-
mes culposos. A duas porque em sede de crime culposo não se cogita
de “violência” doméstica e familiar contra a mulher; 2 – o inciso IV pode
abranger qualquer crime doloso, independente da pena ou das condi-
ções pessoais do criminoso, desde que praticado com violência domés-
tica e familiar contra a mulher, com a identificação conceitual estabelecida
nos arts. 5o e 7o da Lei em exame; 3 – neste caso específico de prisão
preventiva do inciso IV, a medida será ainda mais excepcional e, neces-
sariamente, subsidiária às outras medidas cautelares, definidas como
protetivas de urgência, estabelecidas nos arts. 22, 23 e 24 da Lei “Maria
da Penha”. Só caberá a prisão preventiva, nas hipóteses de violência
doméstica e familiar contra a mulher aventadas exclusivamente no inciso
IV do art. 313 para assegurar a eficácia daquelas medidas protetivas de
urgência, se as mesmas, por si só, se revelarem ineficazes para a tute-
la da mulher; 4 – tal restrição, no entanto, se torna desimportante na
hipótese do caso se enquadrar nas demais situações estabelecidas nos
arts. 313, I, II e III do Código de Processo Penal, os pressupostos clássi-
cos da prisão preventiva, ou seja, crime doloso punido com reclusão,
punido com detenção quando o réu é vadio ou há dúvidas sobre sua
identificação, ou, independente da pena cominada, se o réu já foi conde-
nado por outro crime doloso. Presentes algum dos outros três pressu-
postos da prisão preventiva, ainda que o crime seja resultado de violên-
cia doméstica e familiar contra a mulher, não se precisará recorrer ao
inciso IV, cabendo a prisão preventiva, independente da eficácia ou não
das outras medidas protetivas de urgência, pelas simples hipóteses
estabelecidas nos incisos I, II e III.
O inciso IV do art. 313 do Código de Processo Penal, como visto,
alarga sobremaneira as hipóteses de cabimento de prisão preventiva,
passando a comportá-la, em tese, qualquer crime doloso, independente
da pena cominada (injúria, ameaça, lesão corporal etc.), desde que re-
sultado de violência doméstica e familiar contra a mulher, em sua con-
cepção conceitual, e que as medidas protetivas de urgência previstas
na Lei “Maria da Penha” não sejam suficientes para a tutela da vítima. É
preciso, portanto, principalmente nos crimes ditos de menor potencial
ofensivo, como os acima mencionados, em virtude da pequena quanti-
dade de pena privativa de liberdade cominada, que o Juiz aja com bas-
tante prudência na hora de decidir pela prisão do agressor, medida que
só pode ser reservada a ultima ratio e, em nenhuma hipótese, pode
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007 95

exceder, em tempo de duração, à projeção de aplicação da pena pri-


vativa de liberdade cominada, em caso de condenação, o que faria
com que perdesse o contorno de cautelaridade que se deve exigir da
prisão preventiva 24.

(E) Esta última observação é extremamente importante, pois a Constituição


reprova, no inciso XLVII do art. 5º, as penas de caráter perpétuo.

(F) Noutro giro, não há lesão ao princípio da proporcionalidade, apesar de ser


inegável a mora legislativa em dar correto tratamento ao tema, tanto em seus aspec-
tos meta-penais – talvez os mais pertinentes – quanto em relação às penas cominadas.
E isso mesmo em face do princípio da intervenção mínima.
Este princípio – valor condensado, se preferirmos uma imagem – determina,
nas palavras de LUIZ RÉGIS PRADO que o Direito Penal “só deve atuar na esfera dos
bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens e que não podem
ser eficazmente protegidos de forma menos gravosa” 25.
Pois bem, é induvidoso que nosso ordenamento está equipado com outros meios
tendentes a dar cobro à violência doméstica.
Todos ineficazes, entretanto.
Há a medida cautelar de separação de corpos; de afastamento do cônjuge do
lar conjugal; de alimentos provisionais; a punibilidade da ameaça; já havia a lesão
corporal, independentemente de quem seja a vítima e de seu relacionamento com o
agressor; etc.
Mas a realidade nos informa que nenhuma dessas medidas foi ou têm sido
eficazes para evitar ou fazer cessar a violência doméstica e familiar baseada no gê-
nero – incluindo-se mesmo a violência contra a criança ou contra o idoso. Lembre-
mos que, nos termos do art. 5º da Lei 11.340/06, os bens jurídicos tutelados são: a
integridade física, sexual, psicológica, moral e patrimonial. É materialmente típico até
mesmo o sofrimento relevante decorrente da mácula a tais bens.
Talvez a seara penal não seja a mais adequada ao tratamento do tema 26.

24
MARCELO LESSA BASTOS. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Lei “Maria da Penha”. Alguns
comentários. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1189, 3 out. 2006. Disponível em: . Acesso em: 11 dez. 2006.
25
Curso de direito penal brasileiro, 3ª ed., RT: São Paulo, 2002, p. 118, com destaques nossos.
26
Políticas públicas de educação e construção da ética necessária à fruição da moderna família plural e democrá-
tica, afastado que tem sido o patriarcado e o casamento como único escol da família legítima.
96 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007

Mas é urgente a adoção de alguma postura idônea, tal como a fuga da presa
que sente seu predador a rondá-la. Ou, em outra imagem, da mulher que, dadas as
circunstâncias, se vê dormindo com o inimigo.

(G) O direito comparado nos apresenta significativos exemplos no sentido de


que a via extrema deva ser empregada na falência dos demais mecanismos à dispo-
sição do julgador.
MARIA ELISABETE FERREIRA 27, dissertando sobre o ordenamento jurídico
português, informa que apesar de a solução penal não ser suficiente para erradicar o
problema da violência conjugal, tem sido adotada diante da insuficiência dos outros
instrumentos disponibilizados por aquele ordenamento jurídico – situação em tudo
semelhante ao que ocorre entre nós.
O fato concreto, que sangra aos olhos, é vivermos em um Estado de Direito
democrático que tem na legislação – assim entendida como fruto do processo
legislativo constitucional e, portanto, veiculadora do interesse público 28 – o limite da
atividade do aplicador do Direito 29 cotejado com a urgência de livrarmos nossas mu-
lheres desta odiosa faceta da violência: a perpetrada em casa e pelo ente amado – o
que foi amado em outros tempos.
A realidade demonstra não haver meio menos gravoso de limitar a ação do
agressor em favor da integridade – do direito à vida mesmo 30 – da mulher vítima,
forçoso convir que a prisão preventiva, revelada no caso concreto como necessária,
meio idôneo à garantia de não reiteração da violência e da efetividade das medidas
integradas de prevenção e proteção é a medida cautelar que se impõe.

(H) Oportuna é a lição de DANIEL SARMENTO, indicativa da relevância do pro-


blema e das soluções possíveis para o caso concreto:
A partir do caso concreto, o operador do direito deve buscar a solução mais
justa, através de um procedimento circular, por intermédio do qual são testados os
diversos topoi (pontos de vista), para verificar qual deles acena com a melhor respos-
ta para o problema enfrentado 31.

27
Da intervenção do Estado na questão da violência conjugal em Portugal. Coimbra: Almedina; 2005; pp. 61/136.
28
“Aliás, do aspecto substantivo do devido processo legal, decorre a obrigatoriedade de que as leis reflitam o
consenso público, significando, essa satisfação, a obediência ao princípio da razoabilidade” (BRAGA, Valeska e
Silva; Princípios da proporcionalidade e da razoabildade.Curitiba: Juruá; 2004; p. 44).
29
Ainda que a atividade interpretativa consista fundamentalmente em atribuir significado aos significantes consi-
derados, sendo por esta operação que a lei se amolda ao fato social e sua constante evolução.
30
A Constituição Federal não assegura a integridade física como direito fundamental, mas é lógico estar implícita
na proteção dispensada à vida.
31
A ponderação de interesses da constituição federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris; 2000; p. 128.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007 97

Nesta esteira, também não há incompatibilidade com a nova previsão de prisão


preventiva com os expressos termos do art. 312 do CPP que em seu primeiro inciso
permite a prisão preventiva para garantia da ordem pública.
Este conceito – ordem pública – é dos mais controvertidos em Direito, mas não
há dúvidas em definir a prisão preventiva para garantia da ordem pública como aquela
“decretada com a finalidade de impedir que o agente, solto, continue a delinqüir”,
como sintetiza FERNANDO CAPEZ, haja vista o “evidente perigo social decorrente
na demora em se aguardar o provimento definitivo, porque até o trânsito em julgado
da decisão condenatória o sujeito terá cometido inúmeros delitos. Os maus antece-
dentes ou a reincidência são circunstâncias que evidenciam a provável prática de
novos delitos e, portanto, autorizam a decretação da prisão preventiva com base
nesta hipótese” 32.
O mesmo entendimento, acolhido sem divergência significativa pela Jurispru-
dência, é exarado pelo garantista PAULO RANGEL, ao lecionar que “Por ordem públi-
ca, deve-se entender a paz e tranqüilidade social, que deve existir no seio da comuni-
dade, com todas as pessoas vivendo em perfeita harmonia, sem que haja qualquer
comportamento divorciado do modus vivendi em sociedade” 33.
Mesmo o advogado FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO atesta idêntico
entendimento em sua doutrina:
A lei fala em ‘garantia da ordem pública’. Segundo De Plácido e
Silva, entende-se por ordem pública a situação e o estado de legalida-
de normal em que as autoridades exercem suas precípuas atribuições
e os cidadãos as respeitam e acatam, sem constrangimento ou pro-
testo (Vocabulário Jurídico, Rio de Janeiro, Forense, v. 3, p. 1101). Or-
dem pública é a paz, a tranqüilidade no meio social 34.

Logo, a prática de crimes contra a mulher em situação de violência doméstica é


suporte fático suficiente à incidência do inc. I do art. 312 do CPP 35.

(I) Noutro giro, não há equivalência material entre as situações de quem opte
por lesar o patrimônio mediante violência ou grave ameaça superiores ao necessário
à incidência da norma penal incriminadora, ou em relação àquele já imerso no mundo
dos crimes graves, e o homem que, abusando da relação de amor, hospitalidade ou

32
Curso de Processo Penal, 8ª ed. São Paulo: Saraiva; 2002; p. 239.
33
Direito Processual Penal. 9ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris; 2005; p. 628.
34
Código de Processo Penal Comentado, 4ª ed. São Paulo: Saraiva; 1999; p. 543.
35
Mas veja que o caso concreto pode revelar um dano moral como fato concreto ensejador de uma medida de
proteção, haja vista a abrangência da definição legal de ato de violência doméstica.
98 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007

afetividade, enfim, da intimidade com a mulher vítima, lesione sua personalidade nos
mais diversos aspectos, tal como disciplinado na Lei Maria da Penha.
Apesar disso e ainda assim, há diferenciado juízo de reprovação da conduta
que, cada exemplo a seu modo e consoante as possibilidades legais, importa em
elevada desaprovação da conduta e de seu resultado.
Em sede de criminalização primária já foi prevista pena maior para a lesão corporal
leve praticada em situação de violência doméstica, de modo que, no mais das vezes, não
se poderá bradar a periculosidade do agente como móvel da prisão preventiva.
Mas a lei, atenta, talvez, a isso e à disciplina da proteção dos
direitos humanos, elegeu paradigma diferente para a aferição da ne-
cessidade da prisão cautelar: a efetividade das medidas de proteção.
(J) A ponderação entre a sanção eleita para a conduta optada e os rigores da
medida cautelar – por obra do princípio da proporcionalidade ou, na visão de PAULO
RANGEL, também do princípio da homogeneidade – deve ser mitigada à vista da
ponderação entre a dignidade da mulher (e seus filhos 36) – expressamente referida
na Lei 11.340/06, na Constituição Federal e em diversos diplomas de Direito Interna-
cional ratificados pelo Brasil –, a dignidade do agressor eventualmente levado à pri-
são e o efetivo acesso à Jurisdição.
Pois bem, a “nova lei fundamenta-se em normas diretivas consagradas na Cons-
tituição Federal (art. 226, § 8º), na Convenção da ONU sobre Eliminação de Todas as
Formas de Violência contra a Mulher e na Convenção Interamericana para Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher (Preâmbulo e art. 1º). Seu fundamento político-
jurídico, portanto, é admirável e difícil de ser contestado” 37.
Fato que avulta em pertinência e relevância quando se observa que é direito
fundamental até então implícito 38 a integridade físico-psíquica da mulher. Tal integrida-
de, elemento do fundamento da República positivado no inciso III do art. 1º da Consti-
tuição Federal, é direito fundamental no aspecto formal e material também, conforme
lição de INGO WOLFGANG SARLET 39.
Consoante esse entendimento é a lição de LUIZ VICENTE CERNICCHIARO:
A Constituição de 1988, a exemplo das anteriores, relacionou di-
reitos e garantias. A atual faz questão de arrolar direitos individuais e
sociais. Em seguida, acrescentou que a especificação não excluía ou-
tros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios adotados.

36
Sim porque não há dúvidas de que a personalidade é formada a partir do exemplo do masculino e do feminino que
é dado, ainda que no mais das vezes de modo inconsciente, por pai e mãe.
37
LEAL, João José. Violência doméstica contra a mulher: breves comentários à Lei nº 11.340/2006. Jus Navigandi,
Teresina, ano 10, n. 1214, 28 out. 2006. Disponível em: . Acesso em: 11 dez. 2006.
38
Hoje determinado pelo artigo 6º da Lei 11.340/06.
39
A eficácia dos direitos fundamentais, 2ª ed., Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2001, pp. 80 e seguintes.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007 99

A doutrina classifica-os, respectivamente, direitos ou poderes explícitos


e direitos ou poderes implícitos. Melhor chamar os últimos de ‘inonimados’.

Pontes de Miranda noticia que a inspiração foi a Emenda IX à Constituição dos


Estados Unidos da América, fonte também do art. 33 da Constituição da República
Argentina e, através da Constituição brasileira de 1891, da Constituição de Portugal.
O que se diz é que – os termos são os da Constituição americana – a enumeração de
alguns direitos na Constituição não pode ser interpretada no sentido de excluir ou
enfraquecer outros direitos que tem o povo.
A Constituição garante o direito à vida (art. 5º). Não menciona, expressamente, o
direito à integridade corporal [e moral, pois o que se assegura, para além da vida, e uma
vida digna]. Todavia, o resguardo é o mesmo. A vida é preservada em atenção ao homem.
Não se pode pensar o homem sem integridade anatômica e funcionamento fisiológico 40.
Assim é que, ao consagrar a tutela dos direitos humanos da mulher em situa-
ção de violência doméstica e ao prever a prisão cautelar do agressor como medida
apta a possibilitar a efetividade das medidas de proteção, a Lei 11.340/06 positivou
ação afirmativa absolutamente necessária ante a insuficiência dos instrumentos
disponibilizados pelos demais ramos do Direito.
A experiência nazista revelou a insuficiência da previsão de direitos, evidencian-
do, a um só tempo, a necessidade de garantias e a conveniência, necessidade mes-
mo, de uma liga de nações e de um instrumental internacional apto a por termo às
pretensões totalitárias dos Estados Nacionais e aos desrespeitos à vida humana,
única, por isso, digna.
Mas de nada vale as amarras postas ao Poder Legislativo e a percepção da
transcendência do princípio da razoabilidade, se o julgador, o intérprete de uma forma
geral, pautar sua atuação, nas palavras de MOREIRA ALVES, por uma percepção e
interpretação fantasmagórica do Direito, pela qual:
Põe-se ênfase nas semelhanças, corre-se um véu sobre as dife-
renças e conclui-se que, à luz daquelas, e a despeito destas, a disciplina
da matéria, afinal de contas, mudou pouco, se é que na verdade mudou.
É um tipo de interpretação (...) em que o olhar do intérprete dirige-se
antes ao passado que ao presente, e a imagem que ele capta é menos
a representação da realidade que uma sombra fantasmagórica 41.

40
Direito penal na Constituição, 3ª ed. São Paulo: RT; 1995; pp. 213/215.
41
O Poder Judiciário e a efetividade da nova Constituição, Revista Forense 304:151, 1988, p. 152.
100 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007

É de se considerar, portanto, existir “garantia sempre em face de um interesse


que demanda proteção e de um perigo que se deve conjurar”, como leciona PAULO
BONAVIDES.
A garantia não se confunde com o direito subjetivo, pois, em relação ao sujeito,
consiste em “estabelecer uma proteção direta e imediata aos direitos fundamentais,
por meio de remédios jurisdicionais próprios e eficazes” 42.
Disso entendemos possível concluir não haver óbice lógico-jurídico em asse-
gurar direito subjetivo a um determinado grupo de indivíduos garantido pela restrição
de direito correlato, atribuído a outro grupamento de sujeitos.
Pois bem, a prisão cautelar do agressor é, sem dúvida, garantia do direito funda-
mental da mulher vitimada em sua integridade – implícita ao direito fundamental à vida.
E não há reprovação que se possa fazer por se estar a comprimir o direito a
liberdade do agente. A opção do Legislador é voz legítima do interesse público e do
povo, de que emana o Poder, e, portanto, deve preponderar.
Nesse sentido é a abalizada lição de DANIEL SARMENTO 43, que nos indica que
ao Poder Judiciário – deficitário em legitimidade, como sabemos – somente é permi-
tido ponderar valores caso perceba eventual inconstitucionalidade ou vazio legislativo:
O uso do método de ponderação pressupõe a inexistência de
regra legislativa específica, resolvendo o conflito entre princípios cons-
titucionais. A presença de norma infraconstitucional deste teor ini-
be o juiz de efetuar a ponderação, uma vez que ele terá de acatar
aquela realizada de antemão pelo legislador, a não se quer a considere
inconstitucional 44.

No caso, não há vazio legal, a norma está ai clamando, assim como a realida-
de, as vítimas da violência e suas famílias, por aplicação.
E não há inconstitucionalidade. Caso assim fosse, incidiria o art. 481 do CPC a
determinar a análise da questão, no caso desse E. TJDFT, pelo Órgão Especial, pois não
há precedente a informar ser inconstitucional a nova possibilidade de prisão preventiva:
PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO NÃO EMBARGADA.
HONORÁRIOS. ART. 1º-D DA LEI 9.994/97. MP Nº 2.180-35.
INCONSTITUCIONALIDADE. QUESTÃO NÃO SUBMETIDA À
APRECIAÇÃO DO ÓRGÃO ESPECIAL. NULIDADE DO ACÓRDÃO.

42
Curso de direito constitucional, 16ª ed. São Paulo: Malheiros; 2005; p. 531.
43
A ponderação de interesses da constituição federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris; 2000.
44
P. 148.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007 101

1. Os Tribunais, no exercício do controle difuso de constitucio-


nalidade, devem observar a norma dos arts. 97 da Constituição e 480-
482 do CPC, que determinam a remessa da questão constitucional à
apreciação do Órgão Especial, salvo se a respeito dela já houver pro-
nunciamento deste órgão ou do Supremo Tribunal Federal.
2. (...)
3. Recurso especial a que se dá provimento.
(REsp 676.725/RS, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI,
PRIMEIRA TURMA, julgado em 19.09.2006, DJ 28.09.2006 p. 198).

(L) De outra parte, a Emenda Constitucional 45, concessa venia, afastou a re-
levância da lição de FLÁVIA PIOVESAN 45 a respeito de que a Constituição Federal
teria adotado sistema misto de integração dos Tratados Internacionais ao ordenamento
interno: em se tratando de tratados sobre direitos humanos teríamos adotado teoria
monista, segundo a qual a internalização seria automática; quanto às demais avenças
internacionais ter-se-ia adotado a teoria dualista.
Fez-se opção por essa última construção teórica, pois mesmo os tratados que
versem sobre direitos humanos não têm aplicabilidade imediata, como entendia aquela
autora ser decorrência dos §§ 1º e 2º do art. 5º da Constituição Federal, haja vista
tratar-se de direitos fundamentais, pois devem submeter-se a procedimento legislativo
próprio das emendas constitucionais para, após isso, adquirirem tal status.
Entretanto, o tema não perdeu sua relevância, haja vista julgamento ainda em
andamento perante o Supremo Tribunal Federal da possibilidade jurídica – que, junta-
mente com o STJ, não admitimos – de prisão civil do depositário infiel 46, em que o
Ministro Gilmar Mendes, não meramente à guisa de obter dictum, mas como ratio
decidendi, salientou não se equiparar à legislação ordinária aquela proveniente de
tratados e convenções internacionais, tais como os compromissos assumidos pelo
Brasil perante a ordem internacional:
Em seguida, o Min. Gilmar Mendes acompanhou o voto do relator,
acrescentando aos seus fundamentos que os tratados internacionais
de direitos humanos subscritos pelo Brasil possuem status normativo
supralegal, o que torna inaplicável a legislação infraconstitucional com
eles conflitantes, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação e
que, desde a ratificação, pelo Brasil, sem qualquer reserva, do Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção

45
Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad; 1998; pp. 34/47; e O sistema interamericano de proteção
dos direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo: RT; 2000; pp. 159/179.
46
Informativo 449, de dezembro de 2006.
102 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007

Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa


Rica (art. 7º, 7), não há mais base legal para a prisão civil do depositá-
rio infiel. Aduziu, ainda, que a prisão civil do devedor-fiduciante viola o
princípio da proporcionalidade, porque o ordenamento jurídico prevê
outros meios processuais-executórios postos à disposição do credor-
fiduciário para a garantia do crédito, bem como em razão de o DL 911/
69, na linha do que já considerado pelo relator, ter instituído uma ficção
jurídica ao equiparar o devedor-fiduciante ao depositário, em ofensa ao
princípio da reserva legal proporcional. Após os votos dos Ministros
Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Carlos Britto
e Marco Aurélio, que também acompanhavam o voto do relator, pediu
vista dos autos o Min. Celso de Mello. RE 466343/SP, rel. Min. Cezar
Peluso, 22.11.2006. (RE-466343).

Disso emana a extrema relevância, no âmbito do sistema global de proteção


dos direitos humanos, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, a
assegurar a dignidade de todos, inclusive da mulher.
Na seara do sistema especial de proteção – a partir do qual se debruça sobre
as particularidades e vicissitudes de grupos especialmente afligidos –, da Convenção
sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, aprovada
pelas Nações Unidas em 1979.
Destaca-se, ainda, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar
a Violência contra a Mulher (“Convenção de Belém do Pará”).
Todos esses instrumentos foram ratificados pelo Brasil e denotam a necessi-
dade de um olhar atualizado acerca da violência contra a mulher, bem como das
medidas cautelares previstas para assegurar sua integridade e efetividade das medi-
das positivas de proteção.
(M) Mais do que isso, a Lei 11.340/06 está inserida no consagrado e almejado
contexto de valorização da vítima.

(N) Os direitos humanos são um construído ético-social necessário à convivên-


cia. Quem seria capaz de negar que o fenômeno da violência hoje infelizmente tão em
voga não tem seu embrião na vivência familiar, no exemplo que damos ou recebemos.
Os direitos humanos:
Compõem um construído axiológico, fruto de nossa história, de
nosso pensamento, de nosso presente, a partir de um espaço simbó-
lico de luta e ação social. (...) os direitos humanos compõem a nossa
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007 103

racionalidade de resistência, na medida em que traduzem processos


que abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade humana 47.

Ficam expostos (i) a espinha dorsal da questão e o caráter prospectivo do Di-


reito, que, como se sabe, para além de ser ordem regulatória do agir em sociedade,
legitimando o emprego da força, procura imprimir pauta valorativa e de condutas prá-
ticas, tudo a fim de que tenhamos vida, e vida em abundância; (ii) que não há ilegali-
dade ou inconstitucionalidade da nova modalidade de prisão cautelar instituída pela
Lei 11.340/06.

Rodrigo da Silva Perez Araújo,


assessor jurídico do Ministério Público
do Distrito Federal e Territórios,
pós-graduado em Direito pela Escola da Magistratura do TJDFT
e pela Fundação Escola do MPDFT

3. BIBLIOGRAFIA

Razoabilidade versus proporcionalidade. Disponível em: < http://www.nagib.net/


artigos_texto.asp?tipo=4&area=1&id=75>. Acesso em: 11 dez. 2006.
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 9ª ed.. Brasília: Editora UNB; 1997.
KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes; 2000.
HÖFFE, Otfried. O que é Justiça?, tradução de Peter Naumann, Coleção Filosofia, nº 155,
Editora EDIPUCRS, Porto Alegre: 2003.
ENGISH, Karl; Introdução ao pensamento jurídico. Edição Fundação Calouste Gulbenkian, tra-
dução do original em alemão. Lisboa: 2001.
BRAGA, Valeska e Silva; Princípios da proporcionalidade e da razoabildade.Curitiba: Juruá;
2004.
COELHO, Fábio Ulhoa. Roteiro de lógica jurídica. 4ª ed. São Paulo: Saraiva; 2001.
A liminar do Ministro Marco Aurélio que permitiu o aborto de fetos anencefálicos. Jus Navigandi,
Teresina, ano 8, n. 413, 24 ago. 2004. Disponível em: . Acesso em: 11 dez. 2006.
CHAVES DE FARIAS, Cristiano e ROSENVALD, Nelson. Direito Civil – teoria geral. 4ª ed., Rio
de Janeiro: Lúmen Júris; 2006.
PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro. 3ª ed. RT : São Paulo; 2002..
GOMES, Luiz Flávio. Violência Doméstica: mais uma lei puramente simbólica, Revista Síntese
de Direito Penal e Processual Penal, ano V, nº 27 – ago-set 2004.

47
PIOVESAN Flávia. Direitos Humanos, vol. I. Curitiba: Juruá; 2006; p. 16.
104 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007

EVANGELISTA DE JESUS, Damásio. Violência contra a mulher, Suplemento Direito & Justiça
do Jornal Correio Brasiliense de 08 de maio de 2006.
, acesso em 11 de dezembro de 2006.
, acesso em 11 de dezembro de 2006.
BASTOS, Marcelo Lessa. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Lei “Maria da Penha”.
Alguns comentários. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1189, 3 out. 2006. Disponível em: .
Acesso em: 11 dez. 2006.
FERREIRA, Maria Elisabete. Da intervenção do Estado na questão da violência conjugal em
Portugal. Coimbra: Almedina; 2005.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado, 4ª ed. São
Paulo: Saraiva; 1999.
LEAL, João José. Violência doméstica contra a mulher: breves comentários à Lei nº 11.340/
2006. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1214, 28 out. 2006. Disponível em: . Acesso em: 11
dez. 2006.
CERNICHIARO, Luiz Vicente. Direito penal na Constituição, 3ª ed. São Paulo: RT; 1995.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, 16ª ed. São Paulo: Malheiros; 2005.
SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses da constituição federal. Rio de Janeiro: Lumen
Juris; 2000.
PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad; 1998; pp. 34/47; e
O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo:
RT; 2000.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos, vol. I. Curitiba: Juruá; 2006; p. 16.
O casal de militar es
militares
per ante a Lei
perante
Maria da P enha
Penha

Murilo Salles Freua,


policial civil do Estado de São
Paulo, bacharel em Direito
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.105 a 113, janeiro/junho-2007 107

O CASAL DE MILITARES
PERANTE A LEI MARIA
DA PENHA (LEI 11.340/06)
1 – INTRODUÇÃO

A Lei 11.340/06, mais conhecida como Lei Maria da Penha, que trata da violên-
cia doméstica contra a mulher, recentemente vigorando em nosso ordenamento jurí-
dico, vem gerando muitas discussões na esfera jurídica. Muitos entendem ser uma
lei inconstitucional, pois fere o princípio da isonomia e há invasão de competência,
além de outras imperfeições legais. Mas enquanto não há solução legislativa,
jurisprudencial e doutrinária, a Lei Maria da Penha está vigorando e tendo que ser
aplicada no caso concreto quando do cometimento de violência doméstica. Não só
aumentou a pena para tal tipo de crime, como também trouxe medidas de urgência
de proteção à mulher.
É conhecida como Lei Maria da Penha por homenagear uma mulher que foi
vítima de violência doméstica, muito conhecida na mídia pela constante luta por Jus-
tiça, ainda que condenada a uma cadeira de rodas devido a um tiro dado por seu
companheiro – que ficou impune por mais de uma década, resultando repúdio de
organizações nacionais e internacionais.
O artigo 1º da Lei Maria da Penha deixa bem nítida a intenção do legislador de
proteger a mulher na esfera familiar, seja qual for o nível social, econômico, racial,
religioso, ou mesmo profissional: “Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a
violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da
Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados
pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violên-
cia Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e
proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar” (artigo 1º da Lei
11.340/06).
Já o Código Penal Militar considera crime militar o praticado por militar em situ-
ação de atividade contra militar na mesma situação (art. 9º, inc. II, alínea “a” CPM).
Como o CPM dita que certos atos de violência contra a mulher militar sejam
considerados como crime militar, e a Lei Maria da Penha preceitua sua aplicação
108 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.105-113, janeiro/junho-2007

quando da violência doméstica, surge então a dúvida de qual legislação a ser aplica-
da no caso concreto de uma mulher militar ser vítima de violência doméstica perpe-
trada por seu companheiro também militar.

2 – A MULHER MILITAR

A história demonstra que a mulher vem ocupando cada vez mais espaço nas
forças militares. A mulher no universo militar, atualmente, além de fazer serviços an-
tes exercidos apenas por homem, já pode até comandá-lo. Futuramente encontrare-
mos a mulher com maior freqüência nos mais altos graus da hierarquia militar. A título
de exemplo, na esfera estadual, o Coronel Feminino PM Angelina Ramirez chegou a
Comandante Geral da Polícia Militar de Rondônia, e em São Paulo o Coronel Femini-
no PM Fátima Ramos Dutra chegou ao comando da Casa Militar do Governo do Esta-
do. Na esfera federal a mulher já pode até chegar a oficial-general.
As conquistas perante a legislação e a sociedade e as mudanças na filosofia de
trabalho das forças militares garantiram à mulher ocupar postos inimagináveis no
passado.

3 – O CASAL DE MILITARES

Com a inclusão da mulher nas instituições militares criou-se a figura do casal


de militares, já que é no círculo do trabalho onde começam muitas relações amoro-
sas, desde um simples romance até um casamento. É muito comum encontrarmos
casais de militares, seja de militares estaduais ou de militares federais, e até mesmo
de militar estadual com militar federal, apesar de ser menos comum.
Ao citar casal, não podemos nos ater apenas ao instituto do casamento, já que
nossa Lei Máxima, no artigo 226, parágrafo 3º, reconhece o instituto da união estável
como entidade familiar. Também não podemos esquecer a existência do casal ho-
mossexual, pois devido a uma evidente liberdade sexual – ainda que exista muito
preconceito –, o Brasil caminha para reconhecer a união homossexual. Basta acom-
panharmos as notícias de vitórias judiciais referentes a direitos entre casal homosse-
xual ou mesmo de projetos de leis visando reconhecer esse tipo de união.

4 – O CASAL DE MILITARES E A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Com a existência do casal de militares, surgiu um novo fenômeno social, que é


a mulher militar como vítima de violência doméstica por parte de seu companheiro
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.105 a 113, janeiro/junho-2007 109

também militar. Seria inocência demasiada acreditarmos que a mulher militar não
sofre violência dentro do seio familiar, já que a sua qualidade de militar não influencia
na violência do seu companheiro quando do cometimento de violência doméstica.
Caso a intimidade do casal de militares não seja levada em consideração, os
mais variados crimes militares poderiam ocorrer entre um casal de militares. Seria
necessário analisar a qual força pertencem os militares, que fato ocorreu, qual a gradu-
ação ou posto dos envolvidos, o lugar, o motivo, entre outros. Para isso seria necessá-
rio fazer uma construção jurídica fundamentada na legislação, na jurisprudência e na
doutrina, analisando caso a caso para se chegar à conclusão da existência de crime,
qual crime ocorreu e se é ou não crime militar. Havendo entendimento que a Justiça
castrense não tem competência para julgar a violência doméstica envolvendo casal
de militares, descartando a aplicação do CPM e do CPPM, pouco vai importar que
sejam militares estaduais, federais, ou mesmo um estadual e outro federal, tampouco
se é um casal militar heterossexual ou homossexual, já que a Justiça comum seria
competente para processar e julgar crimes de violência doméstica envolvendo milita-
res na liberdade conjugal. Caso contrário haveria violação à Constituição Federal,
como prescreve Fernando Capez: “A casa, como asilo inviolável, compreende o di-
reito de vida doméstica livre de intromissão alheia (liberdade das relações familia-
res, intimidade sexual etc.)” (CAPEZ, 2005: 246) (grifo nosso).

5 – O CASAL DE MILITARES FRENTE À LEGISLAÇÃO

As inovações na legislação penal ocorreram com mais freqüência na comum e


menos na militar. A Lei 9.099/95 visou menor intervenção penal em certas infrações
intituladas “de menor potencial ofensivo”, havendo ainda mais benevolência com a
Lei 10.259/01.
No caso concreto, salvo raríssimas exceções, estas leis geraram mais impuni-
dade do que Justiça. A não aplicação da Lei 9.099/95 na Justiça Militar, prevista no
artigo 90-A foi acertada pelo legislador, pois seria incoerente transacionar penalmente
e beneficiar aquele que descumpre preceitos fundamentais das forças militares (a
disciplina e a hierarquia), evitando assim instabilidade na caserna. Os doutrinadores
Cícero Robson Coimbra Neves e Marcello Streifinger, de forma sábia, ensinam: “Não
há como transacionar a disciplina e a hierarquia, valores supremos no militarismo, o
que depõe em favor da não-aplicabilidade das Leis dos Juizados Especiais Crimi-
nais” (NEVES; STREIFINGER, 2005: 269).
A Lei Maria da Penha no artigo 41 proibiu também o emprego da Lei 9.099/95
nos crimes de violência doméstica contra a mulher, demonstrando que o legislador
concordou que a Lei 9.099/95 gera mais impunidade do que Justiça, pois o “paga-
mento de cestas básicas” para instituições de caridade, ao invés de pena, só sana
momentaneamente a fome de alguns coitados, mas não coíbe a violência.
110 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.105-113, janeiro/junho-2007

A Lei 9.099/95 visou também diminuir os problemas do Poder Judiciário, que ao


invés de investimentos necessários e urgentes, recebeu um instrumento para dimi-
nuir a intervenção penal na tão conturbada sociedade. Afastando a aplicação da Lei
9.099/95 na Justiça Militar e recentemente na Lei Maria da Penha, o legislador garantiu
maior reprimenda ao criminoso.
A simples leitura do artigo 9º, inciso II, alínea “a” do CPM, poderia levar à conclu-
são precipitada de que quando um militar da ativa comete contra outro militar na mes-
ma situação algum ato passível de ser tipificado como crime no CPM, ainda que numa
relação íntima, estaríamos diante de um crime militar. Nesse sentido, os acontecimen-
tos da vida privada e da intimidade do casal de militares seriam resolvidos com fulcro
na legislação militar, afastando outras leis, inclusive as medidas protetivas e inovadoras
da Lei Maria da Penha. Demonstrando que a intimidade familiar é protegida pela Carta
Magna, afirma o ilustre Alexandre de Moraes: “No restrito âmbito familiar, os direitos à
intimidade e vida privada devem ser interpretados de uma forma mais ampla, levando-
se em conta as delicadas, sentimentais e importantes relações familiares, devendo
haver maior cuidado em qualquer intromissão externa” (MORAES, 2001:74).
O Código Penal Militar, ainda que proteja outros bens, sempre protegerá direta
ou indiretamente a disciplina e a hierarquia, ou seja, visa proteger a regularidade das
forças militares. Nesse sentido, seguem as palavras do admirável Jorge César de
Assis: “Vale trazer a lume, que a vida militar é repleta de situações peculiares. À
Justiça Militar cabe não só o processar e julgar os crimes militares mas também
velar pela integridade das instituições militares, cujas vigas mestras são a disciplina
e a hierarquia” (ASSIS, 2006: 271).
Aceitar que o CPM e o CPPM devem ser aplicados para resolver problemas da
intimidade e da vida privada do militar, sem nenhuma relação com a regularidade militar,
pode gerar danos irreparáveis à regularidade da instituição familiar. Além de certos
crimes militares, estaria o militar também sujeito às transgressões disciplinares, que
são bem rígidas, pois também visam à regularidade militar. Sendo assim, seria impos-
sível viver um relacionamento íntimo ou mesmo familiar, caso levássemos a legislação
militar para dentro da intimidade do militar, sem dar ao menos certa liberdade na sua
vida pessoal. Como os crimes militares são em regra de ação pública incondicionada,
por qualquer deslize dentro da relação pessoal o militar seria preso e levado a julga-
mento, mesmo se o ofendido não quisesse a ação. Como exemplo: um homem, Capi-
tão PM, casado com uma mulher, Coronel Feminino PM, teria que tratá-la sempre como
seu superior mesmo na intimidade do casal, pois caso contrário poderia ter inúmeras
complicações perante a Justiça Militar, inclusive problemas administrativos perante a
sua instituição no caso de transgressões disciplinares. Com a aplicação da legislação
comum, a vítima tem a faculdade de não representar ou de renunciar à representação,
dando maior liberdade à intimidade do casal de militares.
O Código Penal Militar não pode invadir a intimidade do casal de militares a
pretexto de garantir a regularidade das forças militares, pois estaria ultrapassando os
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.105 a 113, janeiro/junho-2007 111

limites impostos pela Constituição Federal, violando direitos fundamentais à intimida-


de e à vida privada (inciso X, do artigo 5º da C.F.), bem como o direito de formar uma
família com a especial proteção do Estado (artigo 226 da C.F.), demonstrando assim
que o legislador constituinte não permitiu intromissões no instituto família sem a devi-
da legalidade, salvo para coibir a violência contra a própria estrutura familiar, confor-
me o parágrafo 8º, do artigo 226 da Lei Maior: “O Estado assegurará a assistência à
família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir
a violência no âmbito de suas relações” (grifo nosso).
Fundamentado na Lei Máxima e em tratados internacionais de que o Brasil foi
signatário, o legislador atual criou a Lei Maria da Penha como instrumento para coibir a
violência doméstica contra a mulher. Além de maior punição, a lei Maria da Penha prevê
também atendimento multidisciplinar a vítima, parentes e até mesmo para o agressor.
Apesar de discutíveis, a Lei Maria da Penha trouxe inovações para o Direito pátrio, já
que abrange os campos penal, cível, trabalhista, administrativo e processual.
Cria inclusive os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher,
que enquanto não existirem, serão acumulados pelas varas criminais, conforme arti-
go 33 da Lei 11.340/06. A referida Lei combate a violência doméstica contra a mulher
utilizando-se de meios jurídicos, médicos e educacionais.
Não pode a legislação castrense tirar da mulher militar e de sua família as ino-
vações e garantias trazidas pela Lei Maria da Penha, instrumento este que veio para
atender à instituição familiar, seja ela formada ou não por militares, mesmo porque tal
intromissão viola preceitos constitucionais.
Muito antes do advento da Lei Maria da Penha, o notável Célio Lobão já doutrinava
que a Justiça castrense não deveria interferir na esfera pessoal do casal de militares:
“Com a incorporação de mulheres às Forças Armadas, à Polícia Militar e ao Corpo de
Bombeiros Militares, surge o problema relativo à competência da Justiça Militar para
conhecer do delito cometido por um cônjuge ou companheiro contra outro. Se a ocor-
rência diz respeito à vida em comum, permanecendo nos limites da relação conjugal ou
de companheiros, sem reflexos na disciplina e na hierarquia militar, permanecerá no
âmbito da jurisdição comum. Tem pertinência com a matéria a decisão da Corte Supre-
ma, segundo a qual a administração militar ‘não interfere na privacidade do lar conjugal,
máxime no relacionamento do casal’. É questão a ser decidida pelo juiz diante do fato
concreto” (LOBÃO, 2006: 121,122). Tal ensinamento reforça a tese da importância da
privacidade dos militares no convívio íntimo e familiar.

6 – CONCLUSÃO

A Carta Magna recepcionou o Código Penal Militar e o Código de Processo


Penal Militar, dando-lhes roupagem de legalidade, coibindo os abusos contidos quan-
112 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.105-113, janeiro/junho-2007

do de suas decretações, dando ao militar direitos que não detinha na plenitude.


Enaltecendo a democracia o sábio José Afonso da Silva ensina: “Quanto mais o pro-
cesso de democratização avança, mais o homem se vai libertando dos obstáculos
que o constrangem, mais liberdade conquista” (SILVA, 2004: 233).
Seguindo o avanço democrático, o militar adquiriu mais liberdade diante do rígi-
do ordenamento jurídico militar – tal rigidez faz-se necessária apenas para manter a
regularidade das forças militares, mas desnecessária na intimidade e na vida privada
do militar. Caso o militar desrespeite essa liberdade e venha a cometer violência do-
méstica contra sua companheira também militar, e esta requerer intervenção estatal,
deverá então ser aplicada a Lei Maria da Penha, sendo o caso processado e julgado
pela Justiça comum que, além de punição, proporciona outras restrições ao agressor,
bem como garante à mulher militar vítima e a seus familiares um conjunto de atendi-
mentos e medidas protetivas indispensáveis para coibir a violência doméstica.
A violência doméstica envolvendo casal de militares deve ser processada e
julgada pela Justiça comum, conforme a Constituição Federal e a Lei Maria da Penha,
já que atinge a regularidade da instituição familiar – que tem como base os senti-
mentos e os atos mais íntimos do ser humano, tais como o amor, o carinho e o sexo.
Já a Justiça Militar detém o mister constitucional de processar e julgar os crimes milita-
res, ou seja, aqueles que afrontam a regularidade das instituições militares – que
tem como base a hierarquia e a disciplina. Temos também de considerar que na rela-
ção íntima dos militares quando um agride fisicamente ou verbalmente o outro, preten-
de o agressor tão somente agredir seu familiar e não um militar ou sua instituição.
Sendo aplicada a Lei Maria da Penha no caso de violência doméstica envolven-
do casal de militares, a mulher militar estará sendo protegida como qualquer outra
mulher, pois o status de militar não lhe retira a qualidade de mulher, do contrário
estaríamos diante de uma inconstitucionalidade gritante, já que a mulher militar esta-
ria sendo segregada por um entendimento jurídico limitador de direitos conquistados
ao longo do tempo em prol da entidade familiar e da sociedade como um todo.
Por tudo que foi visto até aqui, somente nos resta afirmar que a mulher militar
deve ser amplamente amparada pela Lei Maria da Penha quando for vítima de
violência doméstica por parte de seu companheiro também militar.

Murillo Salles Freua,


policial civil do Estado de São Paulo,
bacharel em Direito,
pós-graduando lato sensu em Direito Militar
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.177-222, janeiro/junho-2007 113

BIBLIOGRAFIA

ASSIS, Jorge César de. Comentários ao Código Penal Militar – Parte Geral. 5. ed. rev. e atual.
Curitiba: Juruá, 2006.
CAPEZ, Fernando. Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Damásio de Jesus, 2005.
LAZZARINI, Álvaro (Organizador). Constituição Federal, Estatuto dos Militares, Código Penal
Militar, Código de Processo Penal Militar, 6. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005.
LOBÃO, Célio. Direito Penal Militar. 3. ed. atual. Brasília: Brasília Jurídica, 2006.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 9. ed. atual. São Paulo: Atlas, 2001.
NEVES, Cícero Robson Coimbra, STREIFINGER, Marcello. Apontamentos de Direito Penal
Militar, volume 1: (parte geral). São Paulo: Saraiva, 2005.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. rev. e atual. São Paulo:
Malheiros, 2004.

*Artigo apresentado em novembro de 2006 ao Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em


Direito Militar da Universidade Cruzeiro do Sul, como avaliação final do módulo 2, onde obteve
nota máxima. Foi publicado no site jurídico Jus Militaris (www.jusmilitaris.com.br) em 19 de abril
de 2007, em doutrina, Direito Penal Militar.
LEI DE
DR OGAS
DROGAS
POSSE OU
PORTE P
PORTE ARA
PARA
USO PRÓPRIO

Cesar Dario Mariano da Silva,


8° Promotor de Justiça do
II Tribunal do Júri
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.117 a 121, janeiro/junho-2007 119

A POSSE OU PORTE DE DROGA


PARA USO PRÓPRIO CONTINUARÁ
A SER CRIME APÓS A VIGÊNCIA
DA NOVA LEI ANTITÓXICOS?

A Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2.006, mais conhecida como Lei Antitóxicos,


trouxe significativas modificações no que é pertinente a crimes relacionados a dro-
gas. A nova lei entrará em vigor quarenta e cinco dias após sua publicação, ou seja,
em 08 de outubro de 2.006.
Uma das principais mudanças é que ao usuário de drogas será dado tratamen-
to especial. Inovando nosso ordenamento jurídico, a essa pessoa poderão ser impos-
tas penas restritivas de direitos cominadas abstratamente no tipo penal (art. 28). Não
mais será possível a aplicação de pena privativa de liberdade para o usuário de dro-
gas, mas a conduta de possuir ou portar droga para seu próprio uso continua sendo
tipificada como crime.
As penas restritivas de direitos elencadas no Código Penal são aplicadas autono-
mamente, não possuindo qualquer relação com as penas privativas de liberdade. Elas
não são cominadas abstratamente no tipo penal. Há a substituição das penas privativas
de liberdade pelas restritivas de direitos, desde que preenchidos os requisitos previstos
no art. 44 do Código Penal. Essa substituição dar-se-á quando da imposição da pena
pelo Juiz na sentença, que fará uma análise da viabilidade da substituição.
Todavia, nada obstante o caráter substitutivo das penas restritivas de direitos
descritas no Código Penal, já podemos encontrar no Código de Trânsito Brasileiro
algumas restrições de direitos que serão aplicadas cumulativamente com a pena
privativa de liberdade. Exemplos: arts. 302 e 303 do CTB.
O artigo 28, “caput”, e § 1º da nova Lei Antitóxicos diz que:
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou
trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autoriza-
ção ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar
será submetido às seguintes penas:
I - advertência sobre os efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade;
III - medida educativa de comparecimento a programa ou
curso educativo.
120 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.117-121, janeiro/junho-2007

§ 1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo


pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à prepara-
ção de pequena quantidade de substância ou produto capaz de
causar dependência física ou psíquica.
Não nos convence o argumento defendido por alguns doutrinadores de que a
posse ou porte de drogas para uso próprio, bem como a semeadura, cultivo ou colheita
de plantas destinadas à preparação de drogas para uso do agente (art. 28, “caput”, e §
1º), não mais são consideradas crimes, mas infrações “sui generis”, haja vista que a
Lei de Introdução ao Código Penal – Decreto-lei nº 3.914/1941 - considera como crime
a infração penal a que a lei comine pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamen-
te, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa (art. 1º).
A Lei de Introdução ao Código Penal, como o próprio nome já diz, traz conside-
rações acerca do Código Penal de 1.940. Sabemos que a parte geral do Código Pe-
nal foi totalmente modificada pela reforma de 1.984. A antiga parte geral do Código
Penal sequer previa penas restritivas de direitos. Eram consideradas penas princi-
pais apenas a reclusão, a detenção e a multa (art. 28). Havia penas acessórias
elencadas no artigo 67, mas não existia previsão de penas restritivas de direitos como
conhecemos hoje.
Por esse motivo, a Lei de Introdução ao Código Penal não fez menção às penas
restritivas de direitos, que são consideradas espécies de penas pelo artigo 32 do
atual Código Penal.
O artigo 28 está inserido no capítulo III, do Título III da lei. E esse capítulo trata
dos crimes e das penas. Ou seja, a própria lei diz que essas condutas são crimes.
Aliás, o artigo 12 do Código Penal reza expressamente que as suas regras gerais
serão aplicadas à legislação penal especial quando esta não dispuser de modo diver-
so. E isso não ocorre com a nova Lei Antitóxicos, que traz tipos penais específicos e
inova ao definir crimes em que há cominação isolada de penas restritivas de direitos.
Dessa forma, como as condutas são tipificadas como crime e a lei é especial, não há
como aceitar que houve descriminalização.
E saber se essas condutas são, ou não, crime é extremamente importante,
pois traz conseqüências penais quanto à reincidência. O artigo 63 do Código Penal
diz que será considerado reincidente aquele que cometer novo crime, depois do trân-
sito em julgado da sentença que o houver condenado, no Brasil ou no exterior, pela
prática de crime anterior. Assim, como essas condutas são consideradas como cri-
mes, poderão gerar a reincidência.
Também é importante ressaltar que o cultivo, semeadura ou colheita de plantas
destinadas à preparação de droga, em pequena quantidade e para uso próprio do
agente, é crime específico previsto no artigo 28, § 1º. A pena é a mesma do delito de
posse ou porte de droga para uso próprio. Acabou-se, portanto, a discussão até então
existente sobre a natureza do crime praticado, ou seja, se o agente seria traficante ou
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.117 a 121, janeiro/junho-2007 121

mero usuário, ou, como defendiam alguns, de ser o fato atípico. A nova lei, por outro
lado, traz dispositivo específico que pune a aludida conduta quando o objeto material
for destinado ao tráfico (art. 33, § 1º, II).
Caso o condenado por um desses delitos (art. 28, “caput” e § 1º) se negue a
cumprir a pena restritiva de direitos, o Juiz poderá adverti-lo ou aplicar-lhe multa, cuja
quantidade e valor são fixados pelo artigo 29. Não existe possibilidade da conversão
das penas restritivas de direitos em privativa de liberdade por falta de previsão legal.
As penas previstas para os delitos do artigo 28, “caput” e § 1º (imposição e
execução) prescrevem em dois anos, observando-se os prazos interruptivos do lap-
so prescricional previstos no art. 107 e seguintes do Código Penal (art. 30). O julga-
mento desses delitos é de competência do Juizado Especial Criminal, salvo se hou-
ver concurso com qualquer dos crimes previstos nos artigos 33 a 37, quando seguirá
o procedimento previsto nos artigos 54 e seguintes (art. 48, § 1º).
Com efeito, a nova lei traz salutares modificações, mas também preocupa-
ções. Uma delas é que o usuário de drogas não poderá ser obrigado a cumprir as
penas restritivas de direitos. O máximo que o Juiz poderá fazer é aplicar-lhe uma
multa, que acreditamos não ser suficiente para obrigar alguém a cumprir as restri-
ções de direitos. Aliás, quem não puder pagar a multa e quem quiser quitá-la não
cumprirá a restrição de direitos.

Cesar Dario Mariano da Silva,


8º PJ do II Tribunal do Júri
ARTIGO 33,
PARÁGRAFO 4

Cesar Dario Mariano da Silva,


8° Promotor de Justiça do
II Tribunal do Júri

Pedro Ferreira Leite Neto,


26° Promotor de Justiça da Capital
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.123 a 128, janeiro/junho-2007 125

CONSIDERAÇÕES SOBRE
A CAUSA DE DIMINUIÇÃO
DE PENA PREVISTA NO
ART. 33, § 4º, DA LEI ANTITÓXICOS

Logo após a publicação da nova lei antitóxicos algumas questões controvertidas


começaram a surgir. Uma delas é sobre os parâmetros que devem ser observados
por ocasião da aplicação da nova causa de diminuição de pena.
O § 4º do artigo 33 prevê a redução da pena dos crimes previstos no seu
“caput” e § 1º quando o agente for primário, possuir bons antecedentes, não se
dedicar às atividades criminosas e nem integrar organização criminosa. Faltando
qualquer um desses requisitos, a diminuição da pena, que pode ser de um sexto a
dois terços, não deverá ser aplicada. Cuida-se de dispositivo que visa beneficiar o
pequeno e eventual traficante. O profissional do tráfico e o que teima em delinqüir
não merece atenuação da pena.
Presentes os requisitos previstos na norma a diminuição da pena é obrigatória,
não ficando ao alvedrio do Juiz operar a redução ou não. Embora a norma empregue
a expressão “as penas poderão ser reduzidas”, não se trata de atividade discricionária
do Juízo, mas de direito subjetivo do acusado.
Aliás, a primariedade e bons antecedentes deverão ser demonstrados pelo
acusado, ao passo que caberá ao Ministério Público o ônus de provar que o réu se
dedica à atividade criminosa ou que pertença à organização criminosa. Não cabe ao
réu a prova de fatos negativos, mas a quem alega, no caso, o Ministério Público.
A grande celeuma quanto a esse dispositivo é saber qual o critério que será
empregado pelo juiz para a maior ou menor diminuição da pena. Não nos parece correto
defender que as circunstâncias judiciais (art. 59 do CP) poderão ser aplicadas para
mensurar a maior ou menor diminuição. Isso porque elas são analisadas na primeira
fase de fixação da pena e as causas de diminuição na terceira fase, em obediência ao
critério trifásico (art. 68 do CP). Isso levaria o juiz à quase sempre diminuir a pena no
máximo (dois terços), uma vez que a primariedade e bons antecedentes são elementos
indispensáveis para o reconhecimento da minorante. Além disso, não é cabível diminuir
ou aumentar a pena duas vezes pelo mesmo fato (princípio da proibição da dupla
valoração – no bis in idem). Assim, apenas outros elementos, que não incidirem na
126 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.123-128, janeiro/junho-2007

fixação da pena base ou de alguma forma a diminuírem por outro motivo, é que poderão
ser considerados para a maior ou menor diminuição da pena.
Observamos, ainda, que o artigo 42 traz circunstâncias que preponderarão sobre
as judiciais do artigo 59 do Código Penal, ou seja, a natureza e a quantidade da
substância ou do produto, a personalidade e a conduta social do agente. No que é
pertinente às duas últimas, já se encontram descritas no art. 59 do Código Penal,
mas passarão a preponderar sobre as demais lá constantes.
Porém, parece-nos que não haverá dupla valoração quando ocorrer o aumento
e depois a diminuição da pena pelo mesmo fundamento. Isto é, resultando o aumento
da pena em virtude das circunstâncias descritas no artigo 42, a pena poderá ser
diminuída com fundamento no § 4º do art. 33 por esses mesmos fatos, haja vista a
diversidade de incidência (aumento e depois diminuição).
Com efeito, pensamos que as circunstâncias descritas no artigo 42 da Lei
Antitóxicos poderão servir de parâmetro para o Julgador quando da diminuição da
pena (art. 33, § 4). Assim, v.g., quanto mais potente a droga ou maior a sua quantidade,
menor será a diminuição da pena e vice-versa. O que não se faz possível é a dupla
diminuição pelo mesmo fato. Destarte, nada impede que o Juiz, a fim de que não haja
dupla valoração, deixe de aplicar essas causas por ocasião da fixação da pena base
e as faça incidir na terceira fase da dosimetria para a maior diminuição da pena,
sempre verificando o que será melhor para o acusado.
Como a norma penal em estudo é mais benéfica para o acusado, retroagirá e
alcançará os processos em andamento e os já definitivamente julgados (art. 5º, inciso
XL, da CF, e art. 2º, parágrafo único, do CP). A diminuição da pena poderá ser pleiteada
ao juiz da instrução, no caso de processos em andamento, ou ao juiz da execução,
no que é pertinente aos processos com sentença condenatória transitada em julgado.
Estando o processo em grau de recurso, o benefício deverá ser pleiteado ao relator.
A questão que surge é a seguinte: sobre qual norma incidirá a diminuição da
pena no caso de retroatividade? A da lei revogada (nº 6.368/1976) ou da lei em vigor?
Não nos parece correto que a diminuição se opere sobre a pena fixada com
fulcro na Lei nº 6.368/1976, que tinha como patamar mínimo três anos de reclusão. O
dispositivo determina a diminuição da pena dos delitos previstos no art. 33, “caput”, e
§ 1º, da nova lei, cuja pena mínima cominada é de cinco anos de reclusão, ou seja,
superior ao mínimo legal cominado na legislação anterior.
Embora haja controvérsia sobre o assunto, não entendemos possível aplicar
esse dispositivo sobre tipos penais já revogados, ou seja, conjugando normas de
uma lei revogada com normas de uma lei em vigor. Isso porque não cabe ao Judiciário
a função de legislar e criar uma terceira lei, que conjugue dispositivos de lei revogada
com lei em vigor. Nelson Hungria, com a sapiência que lhe era peculiar, assim aduziu:
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.123 a 128, janeiro/junho-2007 127

“[...] preliminarmente, cumpre advertir que não podem ser entrosados


os dispositivos mais favoráveis da lex nova com os da lei antiga, pois, de
outro modo, estaria o juiz arvorado em legislador, formando uma terceira lei,
dissonante, no seu hibridismo, de qualquer das leis em jogo. Trata-se de um
princípio prevalente em doutrina: não pode haver aplicação combinada das
duas leis” (Comentários ao Código Penal, v.1, p. 112).

Compartilha desse mesmo entendimento Aníbal Bruno:


“Mas não é lícito tomarem-se na decisão elementos de leis diversas.
Não se pode fazer uma combinação de leis de modo a tomar de cada uma
delas o que pareça mais benigno. A lei considerada mais benévola será aplicada
em sua totalidade. Note-se que se trata exclusivamente de aplicar uma ou
outra das leis existentes, no seu integral conteúdo, não sendo lícito ao juiz
compor, por assim dizer, uma lei nova com os elementos mais favoráveis
das que realmente existem”. (Direito Penal, v.1, tomo 1, p. 263-264).

Como a norma mais benévola deve necessariamente retroagir para beneficiar


o acusado, que seja por inteiro, i.e., a causa de diminuição de pena deverá incidir
sobre a pena mínima cominada aos delitos previstos nos artigos 33, “caput”, e § 1º.
Com efeito, caso a pena fixada com base na lei anterior seja inferior ao mínimo
cominado no tipo penal em vigor (cinco anos de reclusão), será sobre esse montante
(cinco anos) que deverá incidir a diminuição. Por outro lado, superado o limite mínimo
de cinco anos, será sobre a maior pena que deverá incidir a diminuição, haja vista
estar dentro dos limites estabelecidos pela lei nova.
No caso de ser procedida a diminuição com fulcro na lei nova e a pena superar
a fixada com base na lei revogada, esta última é que deverá prevalecer, deixando-
se de aplicar a lei nova, que passou a ser prejudicial ao acusado. Assim, a lei
revogada, mais benéfica, é que será aplicada em sua integralidade aos fatos
ocorridos durante a sua vigência.
Antes do advento da nova Lei Antitóxicos havia divergência doutrinária e
jurisprudencial sobre a possibilidade, ou não, da substituição da pena privativa de
liberdade por restritivas de direitos para o condenado por tráfico de drogas, haja vista
não haver norma proibitiva expressa. Com a nova lei essa questão restou superada,
uma vez que o dispositivo em estudo veda expressamente a substituição quando
ocorrer a diminuição da pena.
Observamos, ainda, que o artigo 44, “caput”, da nova lei igualmente veda a
substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos ao condenado por
128 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.123-128, janeiro/junho-2007

um dos delitos previstos nos arts. 33, “caput”, e § 1º, e 34 a 37, independentemente
da pena aplicada. Com efeito, mesmo que preenchidos os requisitos objetivos e
subjetivos previstos no artigo 44 do Código Penal, a substituição não será possível.

Cesar Dario Mariano da Silva,


8º PJ do II Tribunal do Júri

Pedro Ferreira Leite Neto,


26º PJ da Capital
BIBLIOGRAFIA

Bruno, Aníbal, Direito Penal, v.1, tomo 1, Editora Nacional de Direito, 1956.
Filho, Vicente Greco, Tóxicos, Saraiva, 1992.
Hungria, Nélson. Comentários ao Código Penal, vol. I, 4ª ed., Forense, 1958.
Mariano da Silva, César Dario, Manual de Direito Penal, parte geral, Rio de Janeiro, 4ª ed.,
Forense, 2006.
ASSOCIAÇÃO
OCASIONAL

Eloísa de Sousa Arruda,


Procuradora de Justiça
Cesar Dario Mariano da Silva,
8° Promotor de Justiça do
II Tribunal do Júri
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.129 a 133, janeiro/junho-2007 131

ASSOCIAÇÃO OCASIONAL
(ART. 18, III, DA LEI Nº. 6.368/06)
Com o advento da nova Lei de Drogas (Lei 11.343/06) uma questão interessante
está sendo levantada no mundo jurídico: a causa de aumento de pena da associação
ocasional que era prevista no artigo 18, III, da Lei nº. 6.368/76 ainda pode ser aplicada
aos fatos ocorridos sob a égide desta última?
Antes de adentrar o tema é necessário fazer uma análise do artigo 35, “caput”,
da atual Lei de Drogas, que era tipificado de maneira semelhante no artigo 14 da
revogada Lei Antitóxicos.
A conduta típica consiste em associarem-se duas ou mais pessoas com o
objetivo de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos artigos
33, “caput” e § 1o, e 34 da Lei de Drogas.
O verbo “associarem-se” significa a reunião com vínculo estável e permanente
(tempo indeterminado), no caso, de duas ou mais pessoas.
Como já ocorria no regime anterior, há necessidade de vínculo psicológico para
a prática dos delitos por tempo indeterminado. Faltando esse elemento, o crime não
estará caracterizado.
A expressão “reiteradamente” significa repetidamente, ou seja, com continuidade.
Na associação para o tráfico pode existir, ou não, o propósito de praticar os delitos
(artigos 33, ”caput”, § 1º ou 34) reiteradamente. No entanto, não há necessidade de
que os crimes sejam cometidos, mas que a associação se dê com esse propósito.
Com efeito, são elementos desse crime:
1) reunião de duas ou mais pessoas;
2) vínculo psicológico para o tráfico de drogas (artigos 33, “caput”, § 1º,
ou 34) por tempo indeterminado.
Como ocorria na legislação anterior (artigo 14), não basta simplesmente o dolo
de agir em concurso para a prática de tráfico de drogas, mas a especial intenção
associativa de forma estável por tempo indeterminado. Assim, não configura esse
delito a associação ocasional para o tráfico de drogas, mesmo que um ou mais crimes
sejam cometidos, mas sem o animus associativo. Se na traficância houver o
envolvimento de duas ou mais pessoas, mas sem o vínculo associativo, ocorrerá
mero concurso de agentes.
O crime de associação para o tráfico, do mesmo modo que o de quadrilha ou
bando, é autônomo em relação aos demais delitos praticados. Dessa forma, havendo
132 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.129-133, janeiro/junho-2007

o cometimento dos crimes para o qual houve a associação, ocorrerá concurso material
de delitos, haja vista nova violação à objetividade jurídica.
Como já visto, o delito em questão exige vínculo psicológico para o tráfico de
drogas (artigos 33, “caput”, § 1º, ou 34) por tempo indeterminado. A reunião ocasional
e esporádica, sem o vínculo associativo, não o enseja. Pela Lei nº. 6.368/76, havendo
a mera associação ocasional, justificava a aplicação da causa de aumento de pena
prevista no artigo 18, III. No entanto, a lei nova não mais contempla essa majorante,
ocorrendo o fenômeno da novatio legis in mellius.
Surge, portanto, a seguinte indagação: é possível aplicar o artigo 383 do Código
de Processo Penal e reconhecer o crime autônomo (artigo 14) hoje previsto no
artigo 35, “caput”, da Lei nº. 11.343/06 para aquela pessoa que está sendo processada
ou já foi condenada em primeiro grau por tráfico de drogas com a majorante da
associação ocasional?
Poder-se-ia argumentar que, como a associação está descrita na denúncia, o
Magistrado estaria autorizado a condenar o agente por tráfico de drogas em concurso
com a associação para o tráfico de drogas (artigo 14, da Lei nº. 6.368/76).
Não nos parece correto esse entendimento. É certo que o Juiz analisa os fatos
descritos na inicial acusatória e não a classificação jurídica a eles dada. Isso porque o
acusado se defende da conduta a ele imputada e não da tipificação legal. O Juiz, por
força do artigo 383 do Código de Processo Penal, poderá dar ao fato definição jurídica
diversa da capitulada na denúncia, mesmo que tenha de aplicar pena mais grave.
Contudo, o réu foi acusado de delito com uma causa de aumento de pena. Não
houve imputação de dois crimes, mas de apenas um agravado. Assim, haveria violação
do contraditório e da ampla defesa caso fosse o réu condenado por uma infração da
qual não foi formalmente acusado.
E se não bastasse esse argumento, quando há imputação da causa de aumento
de pena e não do crime de associação para o tráfico de drogas, é porque o
representante do Ministério Público entendeu não estar presente o vínculo psicológico
para o tráfico por tempo indeterminado, ou seja, que ocorreu apenas uma associação
ocasional, que se confunde com o concurso de pessoas.
Com efeito, o acusado não se defendeu do crime de associação para o tráfico,
mas da imputação de delito com uma causa de aumento de pena, que não possui os
mesmos requisitos do crime autônomo, que era previsto no artigo 14 da revogada Lei
de Tóxicos e no artigo 35 da atual. Inadmissível, desse modo, que se utilizando da
chamada emendatio libelli, o juiz termine condenando o réu por um fato do qual não
foi denunciado.
E nem seria o caso de aplicação do disposto no artigo 384, parágrafo único do
Código de Processo Penal, utilizável quando o mesmo fato ganha contornos jurídicos
mais graves do que aqueles constantes da inicial acusatória. Surgindo circunstância
elementar capaz de alterar a modalidade delituosa, a fim de que se cumpra o princípio
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.129 a 133, janeiro/junho-2007 133

da correlação entre a imputação e a sentença, o Ministério Público é chamado a


aditar a denúncia e a defesa a produzir provas se quiser. Mas aqui estamos falando
de um mesmo fato que, por força de novas circunstâncias surgidas no curso da
instrução e até então desconhecidas, tornou-se mais grave, podendo resultar para o
réu uma condenação mais severa do que a inicialmente pretendida pelo acusador.
Inviável, todavia, se proceda mutatio libelli objetivando condenar o réu pela conduta
dos artigos 12 ou 13 e também do art.14 da revogada Lei de Tóxicos, pois desse
último crime, o réu nem ao menos foi acusado.
Estando o processo em grau de recurso, maiores as restrições, haja vista não
ser viável o aditamento da denúncia e a aplicação do artigo 384 do Código de Processo
Penal em segundo grau (Súmula 453 do STF).
É outra a solução caso tenha sido ofertada denúncia com base na revogada Lei
6368/76, imputando a alguém a conduta prevista nos artigos 12 ou 13 com a causa
de aumento de pena do artigo 18, III, e surjam, no curso da instrução, indicativos de
que os agentes mantinham especial intenção associativa de forma estável por tempo
indeterminado para a prática de tráfico de drogas. Nessa hipótese, a denúncia poderá
ser aditada para inclusão do crime do qual agora se apurou indícios. Dependendo do
andamento da ação penal original, nada obsta que, aplicada a regra do artigo 80 do
Código de Processo Penal, proceda-se a separação dos processos, passando a
tramitar contra o réu ou os réus, duas ações penais, uma pela acusação de tráfico e
outra pela acusação de associação para o tráfico. É importante salientar que, a fim de
evitar dupla valoração (bis in idem), havendo aditamento da denúncia para inclusão
do artigo 14 da revogada Lei de Tóxicos, por fato ocorrido durante sua vigência, deverá
ser afastada a causa de aumento de pena da associação ocasional (artigo 18, III).
No caso de ação penal na qual o Promotor de Justiça ofertou denúncia imputando
ao agente as condutas dos artigos 12 ou 13 e 14 da Lei 6368/76, tendo sido proferida
sentença condenatória afastando esta última figura, mas reconhecendo a causa de
aumento do artigo 18, III da Lei 6368/76, ainda é possível que o acusado reste
condenado pela acusação inicial. Se houve recurso do Ministério Público se insurgindo
contra a desclassificação, nada impede que o Tribunal, no julgamento da apelação,
reconheça sua procedência condenando o apelado pelas condutas descritas na inicial
acusatória. Mas, se o recurso é exclusivo da defesa, não restará ao Tribunal outra
solução que não seja afastar a figura do artigo 18, III da Lei 6368/76, mesmo no caso
de julgar improcedente o apelo. Como a nova lei não mais contempla a figura da
associação ocasional para o tráfico de drogas, essa deverá ser afastada da
condenação, com a conseqüente redução da pena.

Eloísa de Sousa Arruda,


Procuradora de Justiça

Cesar Dario Mariano da Silva,


8° Promotor de Justiça do II Tribunal do Júri
TEMAS
VARIADOS
REPÚBLICA
E
ISONOMIA

Eduardo Martines Júnior,


Promotor de Justiça da
4° Procuradoria

Orlando Bastos Filho,


15° Promotor de Justiça
de Sorocaba
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 139

REPÚBLICA E ISONOMIA
– licitação e sua inexigibilidade na contratação
de serviços advocatícios pelo Poder Público.

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Princípios: 2.1 Princípios político-consti-


tucionais; 2.2. Princípios jurídico-constitucionais – 3. Princípio repu-
blicano e isonomia: 3.1 A República; 3.2. Isonomia: 3.2.1. Igualdade
na lei e perante a lei; 3.2.2. O critério de Celso Antônio; 3.3 Princípio da
impessoalidade na Administração Pública e licitação; 3.3.1. Licitação
- 4. Normas de ordem pública - 5. Dispensa e inexigibilidade de
licitação: 5.1. Serviços técnicos profissionais especializados; 5.2. Sin-
gularidade do objeto; 5.3. Notória especialização; 5.4. Providências
formais posteriores - 6. A contratação direta de serviços advocatícios
e precedentes - 7. A desobediência à Lei de Licitações. 8. Improbidade
administrativa: definição, natureza, caracterização, elemento subjeti-
vo, dano e legitimidade. 9. Conclusão - Referências bibliográficas.

1. Introdução

A primeira palavra do artigo 1º da Constituição Federal, não por acaso, é Repúbli-


ca, abrindo o Título I que trata dos Princípios Fundamentais ou, por outra, os alicerces
sobre os quais edificou-se o Estado brasileiro. O significado jurídico da República vai
muito além do que aparenta, pois, muito mais que dar a forma do Estado, contrapondo-
o à monarquia, implica no reconhecimento de que as diferenças existentes entre os
indivíduos não pode traduzir castas, privilégios ou tratamentos diferenciados.
A adoção da res publica leva ao princípio da isonomia, expressamente adotado
como direito fundamental do ser humano, preconizado no caput do artigo 5º da Cons-
tituição Federal, também não sem uma razão. Esse relevante princípio por nós adota-
do, está reafirmado em distintas passagens do texto constitucional, como se houves-
se necessidade de insistir de outras maneiras e por distintos institutos, que os iguais
devem ser tratados igualmente e os desiguais desigualmente, na medida em que se
desigualam. A leitura atenta da Constituição Federal leva à conclusão, segundo a qual
o constituinte parecia imbuído do propósito de marcar indelevelmente que todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, como se a adoção do princí-
pio republicano já não fosse o bastante.
140 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007

De toda forma, é disposição expressa do artigo 37 da Constituição Federal a


impessoalidade na Administração Pública, direta e indireta, e de qualquer dos Pode-
res das pessoas políticas, restando ainda fixado o princípio da acessibilidade a car-
gos, empregos e funções públicas a todos os brasileiros que preencham os requisi-
tos da lei, princípio da investidura em cargo ou emprego público apenas mediante
concurso e princípio da licitação. Em relação a este, o inciso XXI do artigo 37 da Lei
Maior estabelece a obrigatoriedade de realização de certame licitatório, realizado de
tal modo que assegure igualdade de condições a todos os participantes, ressalva-
dos, todavia, os casos especificados na legislação.
Uma leitura menos profunda, ou isolada do conjunto constitucional, poderia levar ao
equivocado entendimento segundo o qual a legislação ordinária poderia excepcionar a
seu bem prazer o princípio da licitação, tão cuidadosamente traçado pelo constituinte,
chegando ao preciosismo de afirmar ser o próprio texto do inciso XXI, que inicia com
“ressalvados os casos especificados na legislação...”. Óbvio, nos parece, que essa leitu-
ra levada ao extremo, implicaria em negar o princípio da impessoalidade determinado no
caput do artigo 37, o princípio da isonomia inscrito no artigo 5º e, por fim, e mais relevante,
negaria o próprio princípio republicano fixado no artigo 1º do Texto Maior.
A legislação ordinária atinente às licitações e contratos administrativos – Lei Fede-
ral nº 8.666/93 – de fato, estabelece a dispensa e a inexigibilidade de licitação em alguns
casos. O exame dos artigos 24 e 25, dentre outros, não deixa margem a dúvida, tudo
revelando que as ressalvas mencionadas no Texto Maior foram efetivamente feitas. Ocor-
re que o legislador não excepcionou as situações que livremente escolheu, senão apenas
e tão-somente aqueles casos em que a licitação se mostra desnecessária ou logicamente
inviável. Na realidade, o constituinte não deu ao legislador ordinário uma “carta-branca” a
lhe permitir escolha aleatória. Antes, as ressalvas mencionadas no inciso XXI do artigo 37
da Constituição Federal só podem ser compreendidas como aquelas que respeitem os
princípios da impessoalidade, da isonomia e o republicano.
Pois bem. Se nem mesmo o legislador poderia excepcionar o princípio da licita-
ção, exceto, é óbvio, nas hipóteses mencionadas, menos ainda o administrador público
o pode, obrigado que é a aplicar a lei por força da própria Constituição. Nesse contexto
é que inserimos o tema de fundo deste trabalho, nos propondo a enfrentar a espinhosa
questão da contratação direta de serviços de advogados pelo Poder Público, é dizer,
com base na inexigibilidade de licitação, calcada, sobretudo, na notória especialização.
Sobre esse tema a jurisprudência e a doutrina não encontraram pacificação, encon-
trando-se decisões e lições em ambos os sentidos, no que, de certo modo, estariam
realmente corretas, na medida em que, adiantamos, não é possível concluir no sentido
da possibilidade ou da negativa dela, sem o exame do caso concreto.
Essa a razão pela qual procuramos partir do estudo da significação da Repúbli-
ca, passando pela isonomia, impessoalidade e licitação, para somente depois in-
gressarmos no exame da Lei de Licitações (nos tópicos ligados ao tema), procuran-
do desenvolver uma base jurídica mínima, necessária ao estudo de qualquer caso
concreto que se apresente. Notamos, todavia, que a despeito de não ser possível
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 141

concluir pela possibilidade ou impossibilidade das contratações referidas, julgadores


e doutrinadores tem adotado soluções apriorísticas, num ou noutro sentido, indepen-
dentemente da hipótese examinada, nos parecendo isso bastante equivocado.
Por outra parte, a advocacia1 não se pode deixar levar pelo caminho fácil do
privilégio, tão combatido pela classe dos advogados, máxime agora que elevada à
relevante condição de função essencial à Justiça e indispensável à administração
dela, por obra do mesmo constituinte que exigiu respeito à igualdade e estabeleceu
como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a construção
de uma sociedade livre, justa e solidária. Com o devido respeito, não vislumbramos
nenhuma razão para que o Poder Público deixe de observar o princípio republicano, o
princípio da isonomia, o princípio da impessoalidade na Administração Pública e, fi-
nalmente, o princípio da obrigatoriedade da licitação, na contratação de serviços de
advocacia, porquanto está rigidamente jungido a eles (princípios), seja qual for a natu-
reza dos serviços, exceto se, presentes os requisitos da lei, ressalva normativa de-
terminada na própria Constituição Federal e não no desejo de alguns. Os serviços de
advocacia (e os advogados) devem ser iguais a todos, na lei e perante a lei.

2. Princípios

A compreensão do conteúdo jurídico dos princípios é condição sine qua non para
o entendimento do Direito, pois este é constituído na forma de sistema, “um conjunto
bem estruturado de disposições que, interligando-se por coordenação e subordinação,
ocupam, cada qual, um lugar próprio no ordenamento jurídico. É precisamente sob este
imenso arcabouço, onde sobrelevam os princípios, que as normas jurídicas devem ser
consideradas.”2 Os princípios são as idéias centrais de um sistema, ao qual dão senti-
do lógico, harmonioso, racional, permitindo a compreensão de seu modo de organizar-
se.3 Não se pode falar em princípios sem referência ao conceito de Celso Antônio,
segundo o qual: “Princípio (...) é, por definição, mandamento nuclear de um sistema,
verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes nor-
mas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e
inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no
que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. (...) Violar um princípio é muito
mais grave que transgredir uma norma. (...) Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as
vigas que o sustém e alui-se toda a estrutura neles esforçada”.4

1
A Ordem dos Advogados do Brasil – Seção de São Paulo teve indeferido pedido de admissão nos autos da AC nº
070.764.5/1-00 – 1ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, mantida pelo desprovimento do
Agravo Regimental interposto, ficando assentado que não há interesse jurídico da Instituição em hipótese na qual
sociedade de advogados foi contratada diretamente por Prefeitura Municipal, com inexigibilidade de licitação, e
que está sendo por isso demandada em sede de ação civil pública.
2
Carrazza. R.A., Curso de direito constitucional tributário, p. 33.
3
Sundfeld, C.A., Fundamentos de direito público, p. 143.
4
Mello, C.A.B., Elementos de direito administrativo, p.230.
142 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007

Os princípios não se encontram apenas na Constituição Federal, estando por toda


a pirâmide jurídica, por isso se podendo falar em princípios constitucionais, legais e
infralegais.5 Parece-nos claro, todavia, que os princípios constitucionais têm maior rele-
vância sobre os demais, pairando acima deles e ditando o norte da boa interpretação.
A distinção não pára aí, porque mesmo entre os princípios constitucionais encon-
tramos uns mais relevantes que outros,6 ainda que tenham berço na mesma Lei Maior.
Não se trata dos chamados princípios explícitos e implícitos, pois em relação a estes, o
importante é saber se estão ou não presentes na Constituição. Isso verificado, o jurista
utilizar-se-á do “instrumental teórico que a Ciência do Direito coloca à sua disposição”7
para discerni-lo, dependendo da abrangência de cada um. Dessa maneira, pouco im-
porta se estão explicitados ou apenas decorrem do todo representado pela Constitui-
ção. Retomando, falávamos sim, sobre os princípios político-constitucionais vis-à-vis
os princípios jurídico-constitucionais, na dicção de Canotilho, como se verá.

2.1 Princípios político-constitucionais

José Afonso da Silva,8 com base nas lições de Canotilho, divide os princípios
constitucionais em duas categorias: os político-constitucionais e os jurídico-constituci-
onais. Diz ele que os princípios político-constitucionais são fundamentais decisões po-
líticas da nação ou, no dizer de Canotilho: “Nestes princípios se condensam as opções
políticas nucleares e se reflecte a ideologia inspiradora da constituição. Expressando
as concepções políticas triunfantes ou dominantes numa assembléia constituinte, os
princípios político-constitucionais são o cerne político de uma constituição política (...).”9
É nessa categoria de princípios que se encontram os princípios republicano, da
federação, do Estado democrático de direito, da separação de poderes, o princípio da
dignidade da pessoa humana, do pluralismo político, dentre outros estabelecidos nos
artigos 1° a 4° da Constituição Federal, sob o título de Princípios Fundamentais. Muito
embora não possa servir como critério de identificação, a simples colocação desses
princípios já nos primeiros artigos, abrindo o Texto, indica a importância que o consti-
tuinte a eles atribuiu, dedicando o Título I à fixação das decisões políticas fundamen-
tais da República Federativa do Brasil. Os princípios fundamentais ali dispostos
sobrepairam por todo o ordenamento jurídico, direcionando a interpretação das de-
mais normas constitucionais e infraconstitucionais.

5
Carrazza, R.A., op. cit., p. 33.
6
Não se trata de hierarquizar normas constitucionais, conscientes da advertência de Thomas Cooley (In: O
controle da constitucionalidade das leis, p. 58). Todavia, é certo que algumas disposições, embora constitucio-
nais, certamente encerram menor relevância que outras. Tome-se o exemplo do § 2º do Art. 242 em comparação
com a norma do inciso III do Art. 1º da Constituição Federal.
7
Carrazza, R.A., op. cit. p. 32.
8
Silva, J.A. Curso de direito constitucional positivo, p. 94.
9
Canotilho, J.J.G., Direito constitucional, p. 172.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 143

2.2. Princípios jurídico-constitucionais

Uma segunda categoria é referida por José Afonso, a dos princípios jurídico-
constitucionais, possuidores de caráter geral, informando toda a ordem jurídica pá-
tria. Ainda segundo ele, não raro decorrem dos princípios fundamentais acima referi-
dos.10 Na precisa lição de Canotilho, esses “princípios constitucionais impositivos
subsumem-se todos os princípios que, sobretudo no âmbito da constituição dirigente,
impõem aos órgãos do estado, sobretudo ao legislador, a realização de fins e a exe-
cução de tarefas. São, portanto, princípios dinâmicos, prospectivamente orientados.”11
Em relação à nossa Carta Política, poderiam ser citados como exemplos os
princípios da legalidade, da isonomia, da proteção social aos trabalhadores, proteção
à família, da autonomia municipal, do devido processo legal, do juiz natural, dentre
outros, explícitos ou implícitos.
Com isso, possível afirmar que os princípios político-constitucionais, encerram
maior importância no mundo jurídico que os princípios jurídico-constitucionais. O prin-
cípio republicano ou o federativo ou o da separação dos poderes, dos artigos 1° e 2°,
respectivamente, têm maior relevância que o princípio da proteção à família, por exem-
plo, embora todos tenham assento constitucional. Os primeiros, todavia, revelam
decisões políticas fundamentais do Estado, impondo observância mais acurada na
aplicação.
Afirmado isso, podemos avançar considerando os princípios fundamentais es-
tabelecidos na Constituição Federal e que se relacionam com o tema proposto.

3. Princípio republicano e isonomia

3.1 A República

Falamos da importância dos princípios e, fundados em Roque Carrazza,12 afir-


mamos serem eles a pedra angular da juntura de um sistema ou, no dizer de Celso
Antônio, princípio, por definição, é o mandamento nuclear de um sistema ou seu ali-
cerce.13 Um verdadeiro alicerce ou pedra angular do sistema jurídico por nós adotado,
é o princípio republicano, pois, “como princípio fundamental e básico, informador de
todo o nosso sistema jurídico, a idéia de república domina não só a legislação, como
o próprio Texto Magno, de modo inexorável, penetrando todos os seus institutos e
10
Silva, J.A., op. cit., p. 95.
11
Canotilho, J.J.G., op. cit. p. 173.
12
Carrazza. R.A. Curso de direito constitucional tributário, p. 30.
13
Bandeira de Mello. C.A. Elementos de direito administrativo, p. 230.
144 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007

esparramando seus efeitos sobre seus mais modestos escaninhos ou recônditos


meandros.”14 Estabelecido no artigo 1º da Constituição Federal, o princípio republica-
no informa todo o sistema, decorrendo dele, dentre outros, o princípio da igualdade ou
da isonomia, conforme ensina Roque Carrazza, para enfatizarmos desde logo, o
caminho que pretendemos trilhar.
Regime republicano é tipo de governo, fundado na igualdade formal das pesso-
as, em que os detentores do poder político exercem-no em caráter eletivo, represen-
tativo (de regra), transitório e com responsabilidade.15 Diferentemente das monarqui-
as, nas quais o poder político é exercido em nome próprio e, via de regra, é detido por
alguém que o conquista com base na hereditariedade, ou as ditaduras, nas quais o
uso da força das armas permite a alguém ou um grupo exercer o poder, na república
o exercício é conferido a alguém ou um grupo, que o faz em nome daquele que o
elegeu, tratando-se, pois, de mera representação político-jurídica. Esse é o manda-
mento do parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal.16
Ainda a respeito dos elementos da definição de República, avulta a responsabi-
lidade do governante. É que eles respondem pessoalmente pelas decisões que to-
marem, quer no campo político – pelo instituto do impeachment17 – quer sob o ponto
de vista civil.18 Aliás, república é essencialmente ligada à responsabilidade, como en-
sina Ataliba: “A simples menção ao termo república já evoca um universo de concei-
tos, intimamente relacionados entre si, sugerindo a noção do princípio jurídico que a
expressão quer designar. Dentre tais conceitos, o de responsabilidade é essencial.
Regime republicano é regime de responsabilidade. Os agentes públicos respondem
pelos seus atos. Todos são, assim, responsáveis. Michel Temer afirma: ‘Aquele que
exerce função política responde pelos seus atos. É responsável perante o povo, por-
que o agente público está cuidando da res publica. A responsabilidade é corolário do
regime republicano’ (Elementos de Direito Constitucional, p. 184).”19
A responsabilização do governante (e também de seus agentes), está ligado ao
exercício do poder por representação do verdadeiro detentor dele – o povo – nos
termos da Constituição Federal (parágrafo único do artigo 1º). O governante nada
mais é que mandatário do povo e por isso deve exercer seu mister estritamente den-
tro daquilo que estabelecido, no caso, pela própria Constituição e pelas leis.

14
Ataliba. G. República e Constituição, p. 32.
15
Carrazza. R.A. Curso de direito constitucional tributário, p. 44.
16
Art. 1º (...) Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição.
17
Art. 86 da Constituição Federal em relação ao Presidente da República
18
Art. 37, parágrafo 6º, in fine, da Constituição Federal.
19
Ataliba. G. República e constituição, p. 38.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 145

3.2. Isonomia

República vem de res publica, ou coisa do povo, de todos igualmente e para


todos da mesma forma. Daí se afirmar que do princípio republicano nasce a isonomia
e a igualdade de todos perante o Estado, desdobrando-se esta em outros princípios.
O princípio republicano, ainda com base nas lições de Carrazza, impede distinções
entre nobres e plebeus, ricos e pobres, poderosos e humildes.
A isonomia está na expressão “fundado na igualdade formal das pessoas”, por-
que todos são iguais perante a lei e na lei, sem distinção de qualquer natureza. Quan-
to à Lei Maior brasileira, está esse princípio estabelecido expressamente no caput do
artigo 5º, mas não só, pois, na realidade, a isonomia vem desdobrada em outras
passagens, como se se estivesse enfatizando a importância do princípio. Assim é
que, além da disposição mencionada, encontramos logo no inciso I daquele artigo,
norma segundo a qual homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações; ou
que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção
política. Também está proibida, a título de exemplos, a diferenciação de salários, de
exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou
estado civil, proibição de discriminação de salários e critérios de admissão do traba-
lhador portador de deficiência, igualdade de tratamento entre o trabalhador com vín-
culo empregatício permanente e o trabalhador avulso,20 dentre outros.
Ainda, igualdade como princípio vem repetida no artigo 150, inciso II, da Consti-
tuição Federal, vedando tratamento desigual de contribuintes em situação equivalen-
te.21 Note-se que, a rigor, tais disposições são até redundantes, na medida em que o
princípio republicano e depois, o próprio princípio da igualdade enunciado expressamente
no caput do artigo 5º da Constituição Federal, bastariam. Todavia, essa ênfase deixa
ainda mais claro o norte que o constituinte pretendeu dar ao legislador e ao aplicador da
lei, no que pertine ao tratamento isonômico a ser dispensado a todos os indivíduos.
Além dessas disposições, outras existem com o mesmo caráter, como o princípio
da impessoalidade do caput do artigo 37, se referindo à isonomia aplicada à Administra-
ção Pública. Depois, no mesmo artigo encontraremos o princípio da acessibilidade a
cargos ou funções públicas mediante concurso (inc. II) e o princípio da licitação, expres-
samente fixado no inciso XXI, sobre o qual trataremos de forma mais detalhada.

20
Art. 7º, incisos XXX, XXXI e XXXIV da Constituição Federal.
21
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao
Distrito Federal e aos Municípios: (...) II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em
situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida,
independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;
146 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007

3.2.1. Igualdade na lei e perante a lei

Tratar do princípio da isonomia leva à distinção entre a igualdade perante a lei e a


igualdade na lei. A doutrina brasileira faz essa distinção, como em Celso de Mello, ao
afirmar que a igualdade perante a lei traduz exigência endereçada aos Poderes Execu-
tivo e Judiciário, relativamente à lei já elaborada, e que na sua aplicação não poderá
utilizar critérios discriminatórios. Por outro lado, a igualdade na lei é exigência destinada
ao legislador, pois em sua elaboração, não poderá nela incluir qualquer fator de discri-
minação.22 Trataram do tema Ataliba,23 Dallari,24 Ferreira Filho25 e Celso Bastos.26 José
Afonso critica a distinção dizendo que a igualdade perante a lei “corresponde à obriga-
ção de aplicar as normas jurídicas gerais aos casos concretos, na conformidade com
o que elas estabelecem, mesmo se delas resultar uma discriminação... ”.27 Segue di-
zendo que a igualdade perante a lei é uma exigência feita somente àqueles que aplicam
as normas aos casos concretos. Relativamente à igualdade na lei “exige que, nas nor-
mas jurídicas, não haja distinções que não sejam autorizadas pela própria constitui-
ção”.28 Finalizando, afirma que essa exigência é dirigida tanto aos que criam as normas
jurídicas, como àqueles que as aplicam nos casos concretos.
Na verdade, diz José Afonso, essa distinção é desnecessária entre nós, porque
tanto a doutrina como a jurisprudência já firmaram, há muito, a orientação de que a
igualdade perante a lei tem o sentido que, no exterior, se dá à expressão igualdade na
lei, ou seja: o princípio tem como destinatários tanto o legislador como os aplicadores
da lei.29 Essa doutrina estrangeira referida por José Afonso realmente distingue a igual-
dade perante a lei e na lei. Kelsen, depois de afirmar que a regra segundo a qual os
iguais devem ser tratados de maneira igual, e os que são desiguais devem ter trata-
mento desigual, diz que isso decorre menos de uma exigência da justiça, mas muito
mais em face da lógica;30 conclui ser esta a igualdade perante a lei, distinta da igualda-
de na lei. Diz: “a igualdade perante a lei pode existir mesmo quando não exista qualquer
igualdade na lei, quer dizer, quando a lei não prescreva qualquer tratamento igualitá-
rio”.31 E, arrematando continua: “Com efeito, a chamada ‘igualdade’ perante a lei não
significa qualquer outra coisa que não seja a aplicação legal, isto é, correcta, da lei,
mesmo que ela não prescreva um tratamento igualitário mas um tratamento desigual”.32

22
Mello Filho. J.C. Constituição federal anotada, p. 427.
23
Ataliba. G. República e constituição, p. 136.
24
Dallari. D.A. Elementos de teoria geral do Estado, p. 267.
25
Ferreira Filho. M.G. Curso de direito constitucional, p. 242 e seguintes.
26
Bastos. C.R. Curso de direito constitucional, p. 166.
27
Silva. J.A. Curso de direito constitucional positivo, p.210.
28
Ibidem, mesma página.
29
Ibidem, mesma página.
30
Kelsen. H. A Justiça e o direito natural, p. 73.
31
Ibidem, p. 78.
32
Ibidem, p. 79.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 147

Para Kelsen, a igualdade na lei somente pode ser garantida se a Constituição,


relativamente às diferenças entre os indivíduos, determinar que diploma legal al-
gum poderá fazer acepção a tais distinções, sob pena de inconstitucionalidade,
“quer dizer: que as leis em que forem feitas tais distinções poderão ser anuladas
como inconstitucionais”.33
Rivero, na obra Les libertés publiques, dedica uma seção ao estudo dos te-
mas maiores da Declaração dos Direitos do Homem, tratando nela da igualdade
(parágrafo 4 da Seção III, Capítulo Primeiro da Primeira Parte). Afirma que esse
princípio embasa o direito público francês, dando a tônica de seu significado, se-
gundo ele, traduzindo-se em igualdade diante da lei e diante dos cargos públicos,
com igual possibilidade de acesso a eles.34 Em nosso direito, essa tradução estaria
na igualdade perante a lei e no princípio previsto no artigo 37, inciso II da Constitui-
ção Federal. Ainda entre os franceses,35 Duguit ensina que a igualdade é regra de
direito público positivo, impositiva ao legislador no sentido de ser inconstitucional
toda lei que violentar tal princípio. Diz que esse princípio significa que todos os ho-
mens são igualmente protegidos pela lei, não numa perspectiva aritmética mas sim
proporcionalmente, jamais pretendendo estabelecer uma igualdade matemática entre
os homens, que em realidade significaria desigualdade.36
Por seu turno, Canotilho37 se refere à igualdade na aplicação do direito e igual-
dade quanto à criação do direito, de forma muito próxima às expressões consagra-
das na doutrina nacional, assemelhando-se à igualdade perante e na lei, respectiva-
mente. O mais importante na lição de Canotilho, contudo, são as respostas que ele
mesmo oferece para a pergunta: “Mas o que significa ‘criação de direito igual’?”.38 É
dizer: qual o significado da igualdade perante a lei? Afirma que a resposta desdobra-
se na compreensão da criação de direito igual como princípio da universalidade ou
princípio da justiça pessoal. O significado é de igualdade em sentido formal, acaban-
do por “se traduzir num simples princípio de prevalência da lei em face da jurisdição e
da administração”.39 Referindo-se ao artigo 13º, 1. da Constituição Portuguesa,40 con-
tinua o raciocínio ao tratar da criação de direito igual como exigência de igualdade
material através da lei, devendo tratar-se por “igual o que é igual e desigualmente o
que é desigual”.41 Segue dizendo que essa afirmativa, todavia, não resolve a questão
porquanto a igualdade justa pressupõe um juízo e um critério de valoração.
33
Idem, Teoria pura do direito, p. 154.
34
Rivero. J. Les libertés publiques, p. 41.
35
Também trataram do tema igualdade Emmanuel Joseph Sieyès. In: A constituinte burguesa – Que é o Terceiro
Estado?, p. 80 e seguintes e, Montesquieu. In: O espírito das leis, nos Livros quinto e sexto.
36
Duguit. L. Traité de droit constitutionnel, v. III, p. 593.
37
Canotilho. J.J.G. Direito constitucional, p. 563.
38
Ibidem, mesma página.
39
Ibidem, p. 564.
40
Artigo 13. (Princípio da igualdade) 1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer
dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideoló-
gicas, instrução, situação econômica ou condição social.
41
Ibidem, mesma página.
148 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007

Essa, em verdade, é a grande questão que se coloca em relação à isonomia,


pois é necessário encontrar um critério jurídico que permita identificar, em cada espe-
cífica situação, se o princípio da igualdade está ou não preservado.

3.2.2. O critério de Celso Antônio

Essa questão tem sido estudada por grandes juristas e todos confessam as
dificuldades encontradas. Como falávamos no item anterior, Canotilho pergunta o
que nos leva a afirmar que uma lei trata dois indivíduos de maneira igualmente justa?
E mais: qual o critério de valoração para a relação de igualdade? Sugere que para
alguns a resposta estaria na proibição do arbítrio, é dizer, verifica-se a observância do
princípio da igualdade na hipótese em que indivíduos ou situações não são arbitraria-
mente tratados como desiguais. Por outra: a igualdade é violada quando a desigual-
dade de tratamento surge como arbitrária. Todavia, entende insuficiente a utilização
desse princípio limite, se não se utilizar critérios permitidores da valoração das rela-
ções de igualdade ou desigualdade. Esse critério material objetivo pode ser assim
sintetizado: “existe uma violação arbitrária da igualdade jurídica quando a disciplina
jurídica não se basear num: (i) fundamento sério; (ii) não tiver um sentido legítimo; (iii)
estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável”.42
Com base nessas lições podemos dizer que o importante para compreender o
significado da isonomia é verificar a relatividade de conceitos de igualdade e desigual-
dade, devendo-se aferi-las em cada caso concreto. É possível, v.g., que alguém seja
igual ao outro em relação ao sexo, mas absolutamente diferente em relação à rique-
za. Por outro lado, dois indivíduos abastados podem ter iguais patrimônios, mas se-
rem desiguais quanto ao sexo. Assim, por exemplo, não seria possível dizer que uma
regra de concurso que só admita candidatas mulheres afronta o princípio da isonomia,
se o intuito é preencher vagas de carcereiras em presídio feminino. Em outro caso, “a
igualdade formal deve ser quebrada diante de situações que, logicamente, autorizem
tal ruptura. Assim, é razoável entender-se que a pessoa portadora de deficiência tem,
pela sua própria condição, direito à quebra da igualdade, em situações das quais
participe com pessoas sem deficiência.”43
Todavia, como afirma Celso Bastos “...o cerne do problema remanesce
irresolvido, qual seja, saber quem são os iguais e quem são os desiguais”,44 fazendo
necessário o uso de um critério de diferenciação. Também fizeram essa pergunta

42
Canotilho. J.J.G. Direito constitucional, p. 565.
43
Araújo. L.A.D. A proteção constitucional das pessoas portadoras de deficiência, p. 52.
44
Bastos. C.R. Curso de direito constitucional, p. 167.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 149

Canotilho45 e, entre nós, Celso Antônio,46 que estabeleceu um critério para reconhe-
cer as situações em que se verifique a quebra da isonomia, apresentando-o sob a
forma de três questões: “a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de
desigualação; b) a segunda reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o
fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento ju-
rídico diversificado; c) a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os
interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados.”47
A primeira questão do critério, segundo Celso Antônio, diz respeito com o ele-
mento tomado como fator de desigualação, impondo à norma dois requisitos a saber:
“...a lei não pode erigir em critério diferencial um traço tão específico que singularize
no presente e definitivamente, de modo absoluto, um sujeito a ser colhido pelo regime
peculiar;...” além de “...o traço diferencial adotado, necessariamente há de residir na
pessoa, coisa ou situação a ser discriminada; ou seja: elemento algum que não exis-
ta nelas mesmas poderá servir de base para assujeitá-las a regimes diferentes.”48
A segunda questão, por outro lado, é considerada como o ponto nodular para
a verificação do atendimento ao princípio da isonomia por determinada regra. Esse
ponto está na “existência ou não de correlação lógica entre o fator erigido em critério
de discrímen e a discriminação legal decidida em função dele”.49 De fato, ao homem
médio soa fácil e de certa forma, até independentemente de aprofundados conheci-
mentos da Ciência do Direito, o reconhecimento da necessária correlação lógica en-
tre o fator de discrímen e a própria discriminação. Para se saber se há ofensa à
isonomia, basta perquirir se o fator diferencial eleito para discriminar, guarda relação
de pertinência lógica com a inclusão ou exclusão com o benefício ou, com a inserção
ou afastamento do ônus impingido. Para melhor compreensão, Celso Antônio traz o
exemplo de hipotética lei que autorizasse servidores gordos a afastarem-se sem pre-
juízo da remuneração, para assistir congresso religioso, vedando aos magros o mes-
mo tratamento. Continua dizendo que superficial exame revela que a compleição físi-
ca não poderia ser eleita como critério diferenciador, para o tratamento jurídico adota-
do em razão da utilização dele. Isso porque é inadmissível que a obesidade, ou a
esbeltez, seja tomado como critério discriminatório a tratar diferentemente os servi-
dores, com o fim de ser autorizada a participação, ou não, em congresso religioso.

45
Canotilho. J.J.G. Direito constitucional, p. 564.
46
Bandeira de Mello. C.A. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p. 11.
47
Ibidem, p. 21. Ressaltamos que na página 41 dessa obra, o mesmo tema é tratado de forma mais explicativa pelo
autor, que desdobrou a primeira questão, restando quatro elementos a saber: “(a) que a desequiparação não
atinja de modo atual e absoluto, um só indivíduo; b) que as situações ou pessoas desequiparadas pela regra de
direito sejam efetivamente distintas entre si, vale dizer, possuam características, traços, nelas residentes,
diferençados; c) que exista, em abstrato, uma correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a
distinção de regime jurídico em função deles, estabelecida pela norma jurídica; d) que, in concreto, o vínculo de
correlação supra-referido seja pertinente em função dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é,
resulte em diferenciação de tratamento jurídico fundada em razão valiosa – ao lume do texto constitucional – para
o bem público”.
48
Ibidem, p. 23.
49
Bandeira de Mello. C.A. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p. 38.
150 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007

Todavia, segue ele dizendo, seria esse critério tolerável se somente os esbeltos pu-
dessem exercer, no serviço militar, “funções que reclamem presença imponente”.50
Para rematar a idéia, Celso Antônio resume essa fundamental questão dizendo: “é
agredida a igualdade quando o fator diferencial adotado para qualificar os atingidos
pela regra não guarda relação de pertinência lógica com a inclusão ou exclusão no
benefício deferido ou com a inserção ou arrendamento do gravame imposto.”51
Por fim, relativamente à terceira questão Celso Antônio afirma que “... as van-
tagens calçadas em alguma peculiaridade distintiva hão de ser conferidas prestigiando
situações conotadas positivamente ou, quando menos, compatíveis com os interes-
ses acolhidos no sistema constitucional”.52 Por outras palavras, deve estar de acordo
com aquilo que prestigia o aparato normativo, sobretudo a Constituição Federal.
Esse critério é reconhecidamente o mais apropriado para verificação da pre-
sença – ou não – da isonomia em determinado caso concreto. Faremos o exame da
questão proposta – inexigibilidade de licitação para contratação de advogados pelo
Estado – mais adiante.

3.3 Princípio da impessoalidade na Administração Pública e licitação

O princípio republicano, fundamental decisão política do constituinte, a impor


regime de não diferenciação entre indivíduos, de exercício do poder por representa-
ção e com responsabilização dos governantes, induz desdobramentos vários como
vimos e, inclusive, especificamente à própria Administração Pública. A igualdade for-
mal entre os indivíduos leva à isonomia, princípio que se espraia por todo o texto
constitucional não se limitando ao caput do artigo 5º, pois, desta, partem outras dis-
posições. A impessoalidade é uma dessas formas, embora possa ser considerada
desnecessária sua menção na Lei Maior, chegando a causar espécie a Celso Bas-
tos: “É de certa forma surpreendente a inclusão da impessoalidade no rol dos princí-
pios informadores da Administração. Isso porque é difícil configurar a sua autonomia
em face de outros princípios, tais como o da finalidade, o da igualdade e mesmo da
própria legalidade.”53
Sem embargo e entendendo-o como relevante desdobramento do princípio
republicano e da isonomia, a impessoalidade está prevista como princípio expresso
da administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, Esta-
dos, Distrito Federal e Municípios, como afirmado no caput do artigo 37 da Constitui-
ção Federal. “Nele se traduz a idéia de que a Administração tem que tratar a todos os

50
Ibidem, mesma página.
51
Ibidem, mesma página.
52
Ibidem, p. 42.
53
Bastos. C. R. Curso de direito administrativo, p. 55.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 151

administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismos


nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas ou
ideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interesses
sectários, de facções ou grupos de qualquer espécie. O princípio em causa não é
senão o próprio princípio da igualdade ou isonomia.”54
Segundo José Afonso, o princípio da impessoalidade significa que os atos e
provimentos administrativos devem ser imputáveis ao órgão ou entidade administra-
tiva a que pertence o servidor que o praticou, e nunca ao próprio agente da Adminis-
tração, pois ele apenas manifesta formalmente a vontade estatal. Os atos, pois, são
da entidade em nome de quem ele as produziu.55 A partir disso podemos afirmar que
a Administração Pública, e de resto, o Estado como um todo, deve ser tomada como
um ente sem vontade pessoal, tendo aqueles que ocupam cargos ou funções, se
pautar em condutas desprovidas de interesses, que não apenas os públicos. Nin-
guém pode ocupar cargos ou funções na Administração e gerir a res, que é pública,
como se sua fosse. Ensina Benoit: “Com esse regime, todos os indivíduos são trata-
dos da mesma maneira aos olhos dos serviços públicos. Existe igualdade diante dos
serviços públicos como existe igualdade diante da lei, sendo que a primeira não é
nada além do que um aspecto da segunda, visto que é a lei que rege os serviços
públicos. Não existe então nenhum favor ou vantagens possíveis. O regime de pres-
tação de serviços públicos é o mesmo para todos.”56(tradução livre nossa)
Em lição sempre atualizada, Hely afirma que o princípio da impessoalidade
“...nada mais é que o clássico princípio da finalidade, o qual impõe ao administrador
público que só pratique o ato para o seu fim legal. E o fim legal é unicamente aquele
que a norma de Direito indica expressa ou virtualmente como objetivo do ato, de
forma impessoal.”57 No mesmo sentido de Hely está Morais,58 merecendo ser ressal-
tada a advertência de Celso Bastos: “o campo por excelência em que medra o aten-
tado à impessoalidade é o da discricionariedade. Aqui, ao moldar o seu comporta-
mento, cabe a prática da escolha de um ato que melhor atenda à finalidade legal.
Nesta ocasião é que o administrador pode ser tentado a substituir o interesse coletivo
por considerações de ordem pessoal (favorecimento ou perseguição) (...) O primado
da lei cede diante da conveniência do administrador.”59
O princípio da impessoalidade, em resumo, veda o tratamento desigual de
administrados em semelhante situação. Ainda, impede o administrador – seja de que
nível hierárquico for e de qualquer dos Poderes – utilizar critérios pessoais para con-
ceder qualquer benefício, privilégio, concessão, proibição ou discriminação.

54
Bandeira de Mello. C.A. Curso de direito administrativo, p. 58.
55
Silva. J.A. Curso de direito constitucional positivo, p. 615.
56
Benoit. F.P. Le droit administratif français, p. 837.
57
Meirelles. H.L. Direito administrativo brasileiro, p. 85.
58
Morais. A. Direito constitucional administrativo, p. 100.
59
Bastos. C.R. Curso de direito administrativo, p. 56.
152 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007

3.3.1. Licitação

O princípio da licitação, igualmente, é desdobramento da impessoalidade, sendo


este, por sua vez, decorrente da isonomia60 e do princípio republicano. A impessoalidade
também se desdobra no princípio da acessibilidade a cargos e funções públicas por
concurso ou na proibição da publicidade estatal caracterizadora de promoção pessoal
da autoridade. Esse o ensinamento de Carlos Ary: “Além de, como se viu, o princípio da
isonomia interditar ao legislador a enunciação de discriminações específicas, está na
base de inúmeros institutos e regras de direito público. São exemplos a exigência de
licitação para contratação, pelo Estado, de particulares (CF, art. 37, XXI); a obrigatoriedade
do concurso público (...).”61 A licitação, dada sua relevância, vem expressamente
estabelecida no inciso XXI do artigo 37 da Constituição Federal, revelando a preocupa-
ção do constituinte em mostrar que a regra é a realização de licitação pública que
assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, para todas as contratações
da Administração Pública, podendo, contudo, haver exceções, nos termos da lei, que
deve dar execução e estar adequada ao prescrito na norma superior. Ensina Canotilho:
“O ‘pensamento de execução’ considera que, em termos gerais, a posição da lei relati-
vamente à constituição não é diferente da relação hierárquico-normativa entre a lei e o
acto administrativo, executor da mesma. Conseqüentemente, tal como a
discricionariedade administrativa é a execução de uma norma legal, também a
discricionariedade legislativa se circunscreve a um problema de execução, pelo legis-
lador, dos preceitos mais ou menos detalhados da lei constitucional.”62
A norma referida é a Lei de Licitações – nº 8.666/93 – substituidora do Decreto-
lei nº 2.300/86. Esse texto foi severamente criticado por Carlos Ary no prefácio de seu
“Licitação e contrato administrativo” – não sem razão – mas, de toda forma, é essa a
lei que temos. Nessa obra a licitação é conceituada como “o procedimento adminis-
trativo destinado à escolha de pessoa a ser contratada pela Administração ou a ser
beneficiada por ato administrativo singular, no qual são assegurados tanto o direito
dos interessados à disputa como a seleção do beneficiário mais adequado ao inte-
resse público.”63 Bielsa conceitua a licitação como sendo “...un procedimiento legal y
técnico que permite a la Administración pública conocer quiénes pueden – en mejores
condiciones de idoneidad y conveniencia – prestar servicios públicos o realizar obras.”64
Semelhante é o conceito de Hely,65 para quem a licitação “é o procedimento adminis-
trativo mediante o qual a Administração Pública seleciona a proposta mais vantajosa

60
Sundfeld. C.A. Licitação e contrato administrativo de acordo com as leis 8.666/93 e 8.883/94, p. 40.
61
Sundfeld. C.A. Fundamentos de direito público, p. 171.
62
Canotilho. J.J.G. Constituição dirigente e vinculação do legislador, p. 216.
63
Sundfeld. C.A. Licitação e contrato administrativo de acordo com as leis 8.666/93 e 8.883/94, p. 15.
64
Bielsa. R. Derecho administrativo, p. 167.
65
Meirelles. H.L. Direito administrativo brasileiro, p. 247 e Licitação e contrato administrativo, p. 17.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 153

para o contrato de seu interesse.” Pode-se dizer também que a licitação “...é um
certame que as entidades governamentais devem promover e no qual abrem disputa
entre os interessados em com elas travar determinadas relações de conteúdo
patrimonial, para escolher a proposta mais vantajosa às conveniências públicas.
Estriba-se na idéia de competição, a ser travada isonomicamente entre os que pre-
encham os atributos e aptidões necessárias ao bom cumprimento das obrigações
que se propõem assumir.”66 Outros autores trataram de conceituar a licitação, a exem-
plo de Celso Bastos,67 Moraes,68 Justen Filho,69 Figueiredo,70 todos em sentido bas-
tante parecido. “En suma: la licitación es un requisito legal respecto de los contratos
administrativos, instituido por motivos de conveniencia y de moralidad administrati-
va. La falta de licitación, si ella es obligatoria, determina la nulidad del acto, pues la
licitación es esencial. En tal caso - es decir, de omisión – la Administración pública no
tiene que demandar la anulación de contratos realizados sin licitación previa, puesto
que se parte del supuesto de que no hay contrato.”71
A obrigação de licitar está determinada na Constituição Federal e a Lei 8.666/93
estabelece no artigo 1º que os três Poderes da União, dos Estados, do Distrito Fede-
ral e dos Municípios estão submetidos ao seu regime, incluindo ainda os órgãos da
administração indireta, como os fundos especiais, autarquias, fundações públicas,
empresas públicas, sociedades de economia mista e demais entidades controladas.
Em seguida, a Lei de Licitações expressa a finalidade do instituto, deixando claro que
a obediência ao princípio da isonomia e a vantajosidade da proposta estão no seu
âmago, além da obrigação de se adequar aos princípios da legalidade, impessoalidade,
moralidade, igualdade, publicidade, probidade administrativa, vinculação ao instrumento
convocatório, do julgamento objetivo e dos demais que lhes são correlatos. Essas
disposições poderiam ser consideradas desnecessárias, já que a observância aos
princípios mencionados advém do regime constitucional por nós adotado. Todavia,
estamos com Justen Filho72 que enxerga excepcional relevância ao dispositivo, pois
consagra – expressamente – os princípios norteadores da licitação, devendo os agen-
tes públicos, se por mais não fosse, se pautarem por eles na atividade administrativa
específica. Desse modo, não basta o mero cumprimento burocrático das normas
impostas pela Lei nº 8.666/93, devendo o agente buscar o atendimento aos princípios
norteadores da licitação.
À expressa determinação de observância dos princípios mencionados, adere
o fato da Lei de Licitações ser norma de direito público, não tolerando desvios ao
alvitre de quem quer que seja, devendo ser aplicada de modo que o interesse público
66
Bandeira de Mello. C.A., op. cit. P. 265.
67
Curso de direito administrativo, p. 173.
68
Direito constitucional administrativo, p. 164.
69
Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, p. 18.
70
Direitos dos licitantes, p. 15 e Curso de direito administrativo, p. 301.
71
Bielsa. R. Derecho administrativo, p. 171.
72
Op. cit. p. 24.
154 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007

de ter um procedimento licitatório de acordo com o previamente estabelecido, seja


sempre resguardado. Desse modo, mesmo que em um ou outro caso, fosse possí-
vel contratar diretamente a preço mais vantajoso, imprescindível realizar o processo
licitatório, pois assegurar a isonomia, impessoalidade ou a moralidade administrativa,
é, sem nenhuma dúvida, o interesse público maior a ser resguardado. Essa observa-
ção se torna necessária porque alguns críticos da licitação (via de regra, agentes
políticos ou servidores provenientes da chamada iniciativa privada), enxergam nela
um obstáculo à melhor condução da Administração. A natureza da Lei de Licitações,
todavia, impede o afastamento de sua aplicação, por se tratar de norma de ordem
pública, como veremos.

4. Normas de ordem pública

É muito comum vermos e ouvirmos a afirmação segundo a qual, as disposi-


ções legais de ordem pública, sejam elas atinentes ao processo (legislativo, admi-
nistrativo ou judicial) ou relativas à Administração Pública de forma mais ampla, de-
vem ser rigorosamente obedecidas. Todavia, o contrário também é verdadeiro, se
encontrando aqui ou acolá um burocrata ou mesmo um operador do Direito, defender
a inaplicabilidade em um ou outro caso, porque naquela específica situação, signifi-
caria caminho mais tormentoso para alcançar o objetivo.
A exata compreensão da natureza das normas de ordem pública exige volta à
discussão sobre a atividade estatal e seu regime, claramente ligados ao direito públi-
co. Antes, porém, necessário lembrar a advertência de Carlos Ary: “...o que define a
incidência de um ou outro ramo jurídico é a atividade, não a pessoa envolvida. O
direito público não é o direito do Estado, aplicável exclusivamente às relações das
quais participem as entidades governamentais. Também o direito privado não é o
conjunto de normas incidentes apenas e sempre nos vínculos travados entre parti-
culares. O público é o direito das atividades estatais, enquanto o privado é o direito
das atividades dos particulares.”73
Com seu reconhecido poder de síntese, diz Carlos Ary74 que a vida social –
conjunto de atividades desenvolvidas em uma sociedade – vem formada pelos dois
setores mencionados, perfeitamente delimitados pela Constituição Federal, a saber:
o estatal e o privado, acrescentando que este é o reservado aos particulares: “as
atribuídas a eles pela Constituição como um direito subjetivo e as que, não tendo sido
reservadas ao Estado, lhes são facultadas.”
Daí a assertiva de todos conhecida, segundo a qual, pelo menos em tese, os
particulares podem realizar todas as ações cuja exclusividade não tenha sido dada

73
Sundfeld. C.A. Fundamentos de direito público, p. 76.
74
Ibidem, p. 77.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 155

ao Estado, significando esta uma proibição da atuação privada. Isso, todavia, não
esgota o rol de possibilidades de ação dos indivíduos, cabendo lembrar dos direitos
fundamentais fixados no artigo 5º da Constituição Federal (direitos de locomoção, de
trabalho, de manifestação de pensamento, etc).
E, se o particular pode fazer tudo aquilo que a lei não veda, de forma contrária
se desenvolve a atividade estatal, pois ele – o Estado – só pode fazer aquilo que a
ordem jurídica lhe atribui e da forma como atribuída, ficando vedado fazer aquilo que
a Constituição Federal ou as leis não lhe autorizem expressamente. Esse o valo que
separa as atividades estatais das privadas.
Dentre o rol de atividades estatais, como dissemos, determinadas na Constitui-
ção Federal ou em leis, estão aquelas atinentes à tutela social, objetivando o controle
da vida em sociedade, inclusive utilizando o poder de coerção para impor um com-
portamento ao indivíduo de modo que não prejudique os interesses da coletivida-
de. A mais importante atividade estatal é, sem dúvida, a edição de leis, de molde a
regular o exercício de direitos e o cumprimento de deveres, tanto pelos particulares
quanto pelo próprio Estado, que a elas se sujeita, caracterizando-se assim o Estado
de Direito. Também a tarefa de executar as leis se reveste de fundamental importân-
cia, pois é aí que o Estado, pelo Poder Executivo, acaba por gerir o dia-a-dia dos
indivíduos. Na execução das leis aprovados no Parlamento, o governante não o faz
em nome próprio, senão por delegação ou como mandatário do povo, como já afirma-
mos. Na aplicação dessas leis deve haver rigor quanto ao que foi prescrito, a forma e
os limites. Assim, “cuando una ley dispone que las concesiones, por ejemplo, deben
realizarse previa licitación y ésta no se cumple hay exceso de poder o de mandato, y
en cualquier momento puede demandarse su nulidad. Se trata de grandes princípios
aplicados también em el derecho público por nuestros más altos tribunales.”75 A Lei nº
8.666/93, se por mais não fosse, traz expressa disposição quanto à natureza dos
contratos administrativos dela decorrentes, inclusive com preceito separado para
aqueles decorrentes de dispensa ou inexigibilidade de licitação.76
Seguindo a linha de raciocínio estabelecida, a atividade jurisdicional é outra es-
pécie do gênero atividade estatal, compreendendo a atuação do Judiciário na solu-
ção de conflitos, na defesa de direitos, controle da constitucionalidade das leis, impo-
sição de sanções, seja com privação da liberdade ou da propriedade e, finalmente,
execução de suas próprias decisões. Importa é que a atividade judicial “é desenvolvi-
da sempre para aplicação de normas jurídicas superiores, no que se assemelha à
administrativa.”77

75
Bielsa. R. Derecho administrativo, p. 168.
76
Art. 54. Os contratos administrativos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de
direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de
direito privado. (...) § 2º Os contratos decorrentes de dispensa ou de inexigibilidade de licitação devem atender
aos termos do ato que os autorizou e da respectiva proposta.
77
Sundfeld. C.A. Fundamentos de direito público, p. 77.
156 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007

A atividade legislativa, administrativa ou judicial se faz por fatos ou atos jurídicos,


caracterizando-se este como uma prescrição, uma norma destinada a regular com-
portamentos humanos. Releva é que o ato jurídico (lei, ato administrativo ou sentença)
reflete sempre uma declaração destinada a reger comportamentos, se regulando por
um cabedal de princípios e regras próprias desse ramo do direito – o público – e que
diferem de maneira aguda daqueles que delineiam a produção de atos privados (con-
tratos, v.g.). É em Carlos Ary, uma vez mais, que nos apoiamos: “Os atos jurídicos
devem ser produzidos com observância da norma superior. Isso não impede, contudo,
o surgimento de atos inválidos (leis inconstitucionais, sentenças e atos administrativos
ilegais). Embora inválidos, acabam sendo aplicados e produzindo efeitos. Para retira-
los do mundo jurídico, desfazendo os efeitos produzidos, o Ordenamento prevê formas
adequadas para sua invalidação (também chamada de anulação).”78
Repisando a diferenciação entre a produção de atos jurídicos regidos pelo direi-
to privado e público, possível afirmar que a lei – de modo geral – não determina o
modo, o procedimento pelo qual os atos privados são produzidos, permitindo aos
indivíduos que contratem livremente. Esse afastamento da lei quanto ao proceder só
vigora, contudo, enquanto as vontades estão se formando, podendo cada um esco-
lher, por exemplo, o que comprar, onde comprar, de que forma comprar; cada um
podendo escolher livremente o caminho a percorrer. No que diz respeito ao direito
público, exatamente o contrário se verifica.
No Estado de Direito, como se disse, tanto os particulares quanto o próprio
Estado ficam obrigados às normas produzidas, impondo que as funções estatais
(legislativa, administrativa e judicial) sejam exercidas com observância a um proces-
so detalhadamente regulado a priori. O processo é o modo pelo qual o Estado cum-
pre suas funções, em qualquer de suas espécies. É curial que a produção de leis se
faça em estrita obediência ao processo legislativo, cabendo eventual mandado de
segurança caso isso não se verifique (MS 22.972-DF, rel. Min. Néri da Silveira, Diário
da Justiça de 02/02/98; MS 23.914-DF, rel. Min. Maurício Correa, Diário da Justiça de
24/08/01; AGRMS 22.629-DF, rel. Min. Ilmar Galvão, Diário da Justiça de 26/09/97).
Relativamente ao processo administrativo, igualmente se afirma que deve obede-
cer ao devido processo legal, sob pena de nulidade. São, por outro lado, inúmeros os
exemplos de decisões judiciais, tanto dos Tribunais regionais quanto no Superior Tribunal
de Justiça e no Supremo, enfatizando a necessidade de obediência ao processo. No
caso do processo administrativo, por ser demasiadamente conhecida a posição
jurisprudencial, deixamos de citar algum julgado em especial, enfatizando, contudo, que a
licitação – ou inexigibilidade dela – se resume num processo, por tudo devendo ser obser-
vado o prescrito na lei de regência, não só quanto à subsunção dos fatos (presença da
singularidade e notória especialização), quanto às providências de ordem formal.
No âmbito da função judicial, não é diferente. Com efeito, a título exemplificativo,
o processo – inserido no contexto do direito público – deve obedecer aos princípios

78
Op. cit. p. 88.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 157

próprios, à Constituição Federal e se realizar dentro daquilo que prescrito em lei,


justamente como determinado, é dizer, sem espaço para inovações ou supressões
de mandamentos. Uma vez que a decisão política de estabelecer a regra já foi toma-
da por quem de direito – o Legislativo – cabendo ao Judiciário a tarefa de aplicar a
norma por ocasião do exercício da sua função.
“Importante perceber a razão da exigência de que os atos estatais sejam fruto de
processo. Os agentes públicos exercitam poderes em nome de finalidade que lhes é
estranha; desempenham função. Função é o poder outorgado a alguém para o obriga-
tório atingimento de bem jurídico disposto na norma. (...) O legislador, o juiz, o adminis-
trador, não dispõem de poderes para realizar seus próprios interesses ou vontades.”79
Em conclusão, mister afirmar que a formação da vontade do Estado é distinta
da formação do querer dos particulares. A do Estado é submetida à normas e se dá
pelo processo, pouco importando a vontade do agente, mas sim a vontade da lei,
obrigando à estrita obediência daquilo que foi previamente definido como o caminho a
trilhar, na busca da realização da função jurisdicional.
Sabido, ainda, que os princípios fixados na Constituição Federal relativos à Admi-
nistração Pública, não se limitam ao Executivo, mas se aplicam a todo o Estado. No
artigo 37 está claramente estabelecido o princípio da legalidade, devendo qualquer
agente do Estado pautar-se pela estrita observância dos comandos normativos, sob
pena de infringir tão importante princípio. Esse o corolário de tudo quanto foi afirmado
acima: na formação da vontade do Estado, não pode o agente fazer da maneira como
entender mais correta, mas somente obedecer àquilo que disposto na lei, pressupon-
do-se que o legislador, ao editar a norma, já previu a melhor forma de atuação e a
adotou. Ainda que em determinado caso concreto, face às suas peculiaridades, uma
melhor solução tenha sido aventada, não pode o agente estatal deixar de cumprir a
lei, pois ele (agente) atua em nome da sociedade e por expressa autorização da
Constituição Federal e das leis, que não lhe autorizam a procurar um melhor caminho
que não o da própria norma, mas tão somente se pautar pelo comando legal.

5. Dispensa e inexigibilidade de licitação

A realização de licitação é obrigatória e está determinada pela Constituição Fe-


deral80 e Lei nº 8.666/93. 81 Todavia, há hipóteses nas quais o procedimento licitatório

79
Ibidem, p. 92.
80
Art. 37. (...) XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações
serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os
concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da
proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispen-
sáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
81
Art. 2º. As obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e locações
da Administração Pública, quando contratadas com terceiros, serão necessariamente precedidas de licitação,
ressalvadas as hipóteses previstas nesta Lei.
158 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007

é dispensável e, em outras, inexigível. O artigo 24 da lei de regência elenca as hipóte-


ses nas quais a licitação é dispensável, exigindo apenas a comunicação à autoridade
superior, assim mesmo ressalvando os casos nos quais os valores são inferiores a um
patamar e nos casos de guerra ou grave perturbação da ordem, para os quais não há
obrigatoriedade de comunicação imediata. De todo modo, a providência é exigida justa-
mente porque a regra geral da realização de licitação foi excepcionada, impondo maior
controle. As hipóteses descritas no artigo 24 da Lei nº 8.666/93 são exaustivas e estão
em função da economicidade, em função da pessoa, da ineficácia ou desnecessidade
do próprio certame ou de acordo internacional, impondo a dispensa.
Já a inexigibilidade tem fundamento diverso – a inviabilidade da licitação – con-
forme reza o artigo 25 da Lei de Licitações,82 cabendo ressaltar que nos fixaremos
naquilo que ligado – diretamente – com o tema proposto. Assim, a licitação é inexigível
para a contração de serviços técnicos, desde que estejam entre os enumerados no
artigo 13 do mesmo diploma,83 condicionando-o, todavia, à dois outros requisitos: a
natureza singular e a notória especialização. Até aqui, possível dizer que a inexigibilidade
de licitação não fica ao talante do administrador, somente sendo aplicável naqueles
casos em que o certame é impossível ou quando não, desnecessário, por razões de
ordem lógica. Esse o significado da lei: “quando houver inviabilidade de competição.”
Por outro lado, viu-se que a lei também exige, naquilo que relacionado ao tema pro-
posto, a presença de três requisitos a saber: I) os serviços técnicos sejam os enume-
rados no artigo 13; II) que tenham natureza singular e; III) que o contratado detenha
notória especialização.

82
Art. 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial:
(...)
II – para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissi-
onais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação;
III – para contratação de profissional de qualquer setor artístico, diretamente ou através de empresário exclusivo,
desde que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública.
§ 1º.. Considera-se de notória especialização o profissional ou empresa cujo conceito no campo de sua especi-
alidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento,
equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é
essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.
§ 2º.. Na hipótese deste artigo e em qualquer dos casos de dispensa, se comprovado superfaturamento, respon-
dem solidariamente pelo dano causado à Fazenda Pública o fornecedor ou o prestador de serviços e o agente
público responsável, sem prejuízo de outras sanções legais cabíveis.
83
Art. 13. Para os fins desta Lei, consideram-se serviços técnicos profissionais especializados os trabalhos
relativos a:
(...)
II – pareceres, perícias e avaliações em geral;
III – assessorias ou consultorias técnicas e auditorias financeiras ou tributárias;
(...)
V – patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas;
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 159

Um outro aspecto a ser explora em relação à dispensa ou inexigibilidade de


licitação, é a eventual afronta ao princípio da isonomia, tendo em conta que, de toda
forma, o contratado está recebendo um tratamento diferenciado por parte do Estado-
contratante. Necessário verificar, em primeiro lugar, se a própria Lei de Licitações,
nesse particular, é inconstitucional por não se adequar ao caput do artigo 5º e ao
artigo 37, ambos da Constituição Federal, relativamente à igualdade na lei. Para exa-
minarmos essa questão, cabível e recomendável a utilização do critério de Celso
Antônio, já mencionado neste trabalho. Realizado o exercício, será verificado que o
elemento tomado como fator de desigualação – a inviabilidade ou desnecessariedade
da realização da licitação – está perfeitamente adequado à desigualação determina-
da na lei, estando sim em consonância com os interesses absorvidos no sistema
constitucional, permitindo concluir que não há ofensa à Constituição Federal, antes,
pelo contrário, a lei confere tratamento desigual aos que desiguais são, na medida de
suas desigualdades. Pensamos, todavia, que o problema não reside na igualdade na
lei, mas sim, perante a lei. A eventual ofensa ao princípio da isonomia ocorrerá no
momento da escolha do profissional a ser contratado, obviamente se não atendidos
os requisitos legais, como se verá.

5.1. Serviços técnicos profissionais especializados

É relevante ressaltar desde logo, que o conceito de “serviços técnicos profissi-


onais especializados” pode gerar dúvida quanto ao seu alcance. Todavia, o tema pro-
posto se encerra na contratação de advogados, quer para exarar parecer quer para
patrocínio de defesas, judicial ou administrativa, ou ainda prestar assessoria ou
consultoria técnicas, conforme rezam os incisos II, III e V do artigo 13, limitando a
discussão, pois, nos termos do artigo 1º e seus incisos da Lei nº 8.906/94 (Estatuto
da OAB), as atividades mencionadas são privativas de advocacia. Daí não ingressar-
mos, deliberadamente, na discussão sobre o significado da expressão “serviços téc-
nicos profissionais especializados” em relação aos demais itens referidos nos incisos
do artigo 13 da Lei de Licitações. Todavia, mesmo no que diz respeito às atividades
privativas de advogados, mister relacioná-las com os serviços técnicos profissionais
especializados de que fala a lei. Para Hely, referindo-se ao artigo 12 do Decreto-lei nº
2.300/86, então lei de regência das licitações e contratos, os “serviços técnicos pro-
fissionais especializados, no consenso doutrinário, são os prestados por quem, além
da habilitação técnica e profissional – exigida para os serviços técnicos profissionais
em geral – aprofundou-se nos estudos, no exercício da profissão, na pesquisa cien-
tífica, ou através de cursos de pós-graduação ou de estágios de aperfeiçoamento.”84
Justem Filho expressa posicionamento um tanto diverso, já sobre o artigo 13 da Lei
nº 8.666/93: “O art. 13 não conceituou ‘serviços técnico profissional especializado’,

84
Meirelles. H.L. Licitação e contrato administrativo, p. 105.
160 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007

optando por fornecer um elenco de situações. A conceituação de um certo serviço


como técnico importa investigação extranormativa. A lei não pode (nem o quis, no
caso) definir o que seria ‘técnico’, pois somente as ciências poderiam fazê-lo. Seria
improfícua e inconveniente a opção legislativa de substituir-se ao conhecimento
científico, pretendendo definir exaustivamente a natureza dos serviços técnicos.”85
A par dessa afirmação, adverte o autor em seguida, que não se trata, todavia, de
livre escolha do administrador sobre o que seria ou não um serviço técnico, deven-
do ele examinar a sua natureza e contemplá-lo com aquilo que diz as ciências,
aquilatando se se configura como tal.
Pois bem. Partindo da conceituação legal de serviço como sendo toda atividade
destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administração, tais como:
demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adap-
tação, manutenção, transporte, locação de bens, publicidade, seguro ou trabalhos
técnico-profissionais, nos exatos termos do inciso II do artigo 6º da Lei nº 8.666/93
(grifamos), necessário buscar o significado de serviços técnicos profissionais
especializados, à evidência distintos daqueles referidos na conceituação geral men-
cionada, por conta da deliberada inclusão do vocábulo especializados. Uma vez
mais nos socorremos de Justen Filho,86 que conceitua “serviço técnico” para acres-
centar o vocábulo “profissional” e depois o “especializado”. Diz o autor que serviço
técnico é aquele assim qualificável segundo o conhecimento técnico-científico, ca-
racterizando-se por envolverem a aplicação de rigorosa metodologia ou formal pro-
cedimento para atingir determinado fim. Segue dizendo que essa técnica permite
aplicações práticas para uma teoria, obtendo-se alteração no universo circundante,
atingindo o resultado preordenado que perseguia. Afirma ainda que as ciências é que
dirão se um serviço é técnico.
Num passo seguinte, diz que serviço técnico profissional é aquele constituidor
do objeto de uma determinada profissão, caracterizando-se quando uma atividade
apresentar um objeto próprio e se desenvolver segundo regras inconfundíveis. E mais,
diz que “há profissionalidade quando o serviço adquire uma identidade própria que o
torna distinto frente outras espécies de atuação humana, exigindo uma habilitação
específica para sua prestação.”87 Finalmente, como exige a lei, os serviços técnicos
profissionais precisam ser especializados, entendida esta como a capacitação para
exercício de uma atividade com habilidades não disponíveis para qualquer profissio-
nal, senão para aquele que possui capacitação mais elevada que a comum ou usual;
ou aquela produzida pelo domínio de uma restrita área, com aprofundamento que vai
além do conhecimento médio.88 Anotamos que ao conceito esposado, deve ser acres-
centado que o “especializado” denota ser serviço, cujo nível de complexidade é mais

85
Justen Filho. M. Comentários á lei de licitações e contratos administrativos, p. 75.
86
Ibidem, p. 76.
87
Ibidem, mesma página.
88
Justen Filho. M. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, p. 76.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 161

elevado que o normal, pelas dificuldades que apresenta, razão pela qual se exige
profissional gabaritado para enfrentá-lo e solucioná-lo a contento. Mas uma observa-
ção é fundamental: o serviço técnico profissional especializado é que é mais comple-
xo, nenhuma relação guardando com o prestador desse mesmo serviço. Uma coisa
é o serviço técnico profissional especializado e sua complexidade; outra, bem distin-
ta, é o prestador do serviço e sua capacidade para executá-lo.
Com se afirmou, a própria Lei de Licitações tratou de elencar um rol que conside-
ra serviços técnicos profissionais especializados, incluindo assessorias ou consultorias
técnicas, auditorias financeiras ou tributárias (inciso III) e patrocínio ou defesa de cau-
sas judiciais ou administrativas (inciso V). Portanto, a lei afirmou que esses serviços
envolvem a aplicação de rigorosa metodologia (técnicos); possuem identidade própria
que os torna distintos em relação a outras espécies de atuação humana, exigindo habi-
litação específica para sua prestação (profissional); e exigem capacitação para o exer-
cício com habilidades não disponíveis para a média dos profissionais, exigindo o domí-
nio de uma área restrita do conhecimento, com aprofundamento que ultrapassa o co-
nhecimento normal. O artigo 13 da Lei nº 8.666/93 é expresso ao considerar como
serviços técnicos profissionais especializados aqueles constantes do seu rol, que, com
Justen Filho,89 é exemplificativo, pese embora entendermos que a norma não definiu o
que vem a ser os tais serviços, mas simplesmente considerou para os seus próprios
fins os trabalhos a eles relativos. Importa é que esses serviços, por presunção legal,
são considerados técnicos – profissionais – especializados, denotando complexidade
ab initio, é dizer, neles residentes.
De toda forma, esses são serviços (em sentido lato) passíveis de, em tese,
contratação direta ou para os quais é inexigível a licitação, isso não bastando, todavia,
porque esse dispositivo somente pode ser lido com toda a norma do artigo 25 da
mesma Lei de Licitações, é dizer, dele (serviço) se exige a natureza singular e do
prestador contratado a notória especialização, indissociavelmente. Com isso, muito
embora a lei fale em patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas, v.g.,
mister que tenham a característica da singularidade, ou seja, devem ser diferencia-
das, além de o prestador do serviço deter notória especialização.
Convém notar que as conseqüências jurídicas da consideração legal não pa-
ram na possibilidade, ao menos em tese, de contratação direta. O parágrafo 1º do
artigo 13 já traz importante determinação ao agente público, no sentido de haver pre-
ferência para realização de certame na modalidade concurso, com estipulação pré-
via de prêmio ou remuneração, nos casos de contratação de prestação dos serviços
técnicos profissionais especializados. Nos parece que o legislador previu a dificulda-
de de confrontação de preços de honorários, v.g., caso fosse a contratação de patro-
cínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas antecedida de licitação, p. ex.,
na modalidade concorrência. Além disso, aplicável no que couber, é necessário que o

89
Ibidem, p. 77.
162 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007

autor intelectual do serviço técnico profissional especializado ceda os direitos


patrimoniais a ele relativo, nos termos do parágrafo 2º do mesmo artigo 13, combina-
do com o artigo 111 da Lei de Licitações. Por fim, obrigação imposta às empresas
que se disponham a contratar a prestação desses especiais serviços, descrita no
parágrafo 3º, será posteriormente examinada. De toda forma, importante ressaltar
que tais empresas podem ser, à evidência, a sociedade civil de prestação de serviço
de advocacia, disciplinada no artigo 15 da Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994 – Esta-
tuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB.

5.2. Singularidade do objeto

Segundo o inciso II do artigo 25 da Lei de Licitações, é inexigível a licitação


quando houver inviabilidade de competição e, em especial, para a contratação de
serviços técnicos enumerados no artigo 13 do diploma legal, desde que sejam de
natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização. Por ora,
examinemos a expressão “de natureza singular”, somando-o à inviabilidade de com-
petição e aos serviços técnicos enumerados no artigo 13, em continuidade na busca
de solução para o problema colocado.
Segundo o Aurélio90 singularidade é qualidade do que é singular e, por seu turno,
singular é o pertencente ou relativo a um; único, particular, individual; que não é vulgar;
especial, raro, extraordinário; diferente, distinto, notável. Diz-se do número que se apli-
ca a um só sujeito. A palavra singularidade é ligada a particular ou individual; algo raro ou
extraordinário. Para o direito singular “não somente traduz a idéia do que é simples,
unitário; mas, conduz a idéia de tudo que se distingue ou se individualiza de per si,
mesmo que seja resultante de uma composição. (...) Em distinguindo ou qualificando a
Lei, ou o Direito, possui sentido de especial, ou particular. Direito singular é o que é
especial, ou particular a certa classe, ou a certas coisas.”91 Também aqui, a singulari-
dade diz respeito àquilo que é especial ou que se distingue.
Rigolin assim se posiciona: “Natureza singular de um serviço, um trabalho,
uma obra autoral, uma qualquer produção, é a característica de personalismo incon-
fundível que possua; é a qualidade autoral que a distingue de qualquer outra; é a sua
feição própria, particular, peculiar, dada por uma e apenas uma pessoa – física ou
jurídica -, impossível de substituição pelo serviço de outra pessoa. É o serviço assi-
nalado pelo cunho ou a chancela pessoal de alguém, marcado pelo seu timbre incon-
fundível, dotado, por isso, de características que lhe emprestem natureza de singula-
ridade, de inconfundibilidade com outro serviço de quem quer que seja.”92 De outro

90
Ferreira. A.B.H. Novo dicionário da língua portuguesa, p. 1591.
91
Silva. D.P. Vocabulário jurídico, vol. IV, p. 240.
92
Rigolin. I.B. Manual prático das licitações: Lei n. 8.666/93, p. 120.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 163

lado, Lúcia Valle Figueiredo93 explica a singularidade do objeto com exemplos, situan-
do-a, primeiramente, como relacionada ao fator pessoal, de modo a impedir a con-
frontação entre o trabalho de um artista e de outro. Segue se reportando à singularida-
de do objeto na hipótese de se ligar às suas próprias peculiaridades e não as de seu
executor, caso típico, diz a autora, de um imóvel destinado ao serviço público. Termi-
na exemplificando com um parecer de Direito, em relação ao qual, igualmente, have-
ria impossibilidade de confrontação dos trabalhos de juristas.
Carlos Ary,94 fundado em Celso Antônio, em relação aos serviços diz que são
singulares, tornando inviável a licitação nas seguintes hipóteses: “a) sua prestação é
monopolizada, seja por determinação normativa (ex.: o serviço público de Correios e
Telégrafos), seja por razões de fato (ex.: serviço cuja prestação depende da titularidade
de direito autoral); b) caracterizando-se como serviço técnico profissional especializa-
do (produções intelectuais, científicas, etc.) ou como produção artística, deva, neces-
sariamente, trazer a marca pessoal de seu executor.”95 Seguindo, no que diz respeito
aos serviços técnicos afirma: “Porém, não basta dado serviço enquadrar-se no concei-
to de técnico profissional especializado para ensejar a inexigibilidade de licitação. Ne-
cessário tratar-se, diz o art. 25-II, de ‘serviço de natureza singular’. Se o serviço, embo-
ra encaixando-se entre os mencionados no art. 13, não for singular (é dizer: não de-
mandar um cunho pessoal, que o individualize absolutamente) deverá ser contratado
por licitação...”96 Celso Antônio ensina a respeito dos serviços singulares (aqueles que
nos interessam), que são os que “se revestem de análogas características. De modo
geral são singulares todas as produções intelectuais isolada ou conjuntamente – por
equipe – sempre que o trabalho a ser produzido se defina pela marca pessoal (ou
coletiva), expressada em características científicas, técnicas ou artísticas importantes
para o preenchimento da necessidade administrativa a ser suportada.”97
Para nós, a singularidade do objeto mencionada no inciso II do artigo 25 da Lei
nº 8.666/93, não pode ser vista senão pelo ângulo intrínseco, é dizer, pelas caracterís-
ticas e qualidades que lhe são próprias – do objeto – afastando da análise as qualida-
des pessoais do prestador do serviço, estas consideradas em outras circunstâncias,
conforme se demonstrará.
O artigo 25 declara ser inexigível a licitação quando houver inviabilidade de com-
petição e, em especial, menciona três ordens de circunstâncias, tratando de bens,
serviços e pessoas. A primeira delas (inc. I) diz respeito à aquisição de bens (materi-
ais, equipamentos ou gêneros) que só possam ser fornecidos por produtor, empresa
ou representante comercial exclusivo. É evidente que a licitação é inviável nesse caso,

93
Figueiredo. L.V. Direitos dos licitantes, p. 26.
94
Sundfeld. C.A. Licitação e contrato administrativo de acordo com as leis 8.666/93 e 8.883/94, p. 44.
95
Ibidem, p. 45.
96
Ibidem, mesma página.
97
Mello. C.A.B. Curso de direito administrativo, p. 276.
164 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007

ante a ausência de qualquer possibilidade de confrontação de ofertas. Todavia, a lei


impõe o modo como se faz o reconhecimento da exclusividade, vedando a preferên-
cia por uma marca.
Depois de tratar da aquisição de bens, o inciso II fala na contratação de servi-
ços técnicos – não todos, só os enumerados no art. 13 – impondo ainda que possu-
am uma qualificação: a natureza singular. Esse vocábulo está intimamente ligado ao
serviço técnico, ou seja, ele que precisa ter natureza singular, pouco importando nes-
se momento, quem seja o prestador do serviço. A colocação gramatical na forma de
aposto leva a essa interpretação, dado que é essa a sua função na oração. O aposto
acrescenta algo ou explica aquilo que vem imediatamente antes. Não há sentido, data
venia, na afirmação segundo a qual o qualificativo “natureza singular” guarda relação
com o prestador do serviço, cujas qualidades serão exigidas em seguida pela letra da
lei. A natureza singular é o requisito objetivo imposto pela lei e a subjetividade está em
relação ao prestador dos serviços, de quem se exige, seja qual for o serviço técnico
de natureza singular, a notória especialização (que será examinada no tópico seguin-
te). A natureza singular do serviço técnico, e não do prestador, insistimos, é que é
exigida pela lei, isso podendo ser afirmado pela simples leitura do inciso II do artigo
25. E nem poderia ser diferente, pois, como afirmamos, outra importante exigência
se faz, de natureza subjetiva ou relativa às qualidades do prestador dos serviços, a
de que tenha notória especialização.
Além dessas, e como terceira situação a ensejar a inexigibilidade de licitação,
trata o inciso III do artigo 25 da lei de regência, reportando-se às contratações de profis-
sionais de qualquer setor artístico, desde que consagrado pela crítica especializada ou
pela opinião pública. Nesse caso, a qualidade pessoal do contratado é que é fundamen-
tal, pois é ela que autoriza a inexigibilidade de licitação. Note-se, e isso é fundamental, a
lei exige apenas que o profissional do setor artístico seja consagrado pela crítica espe-
cializada ou pela opinião pública, nada falando sobre a natureza do trabalho que fará.
Nem poderia ser diferente, pois a contratação de um pintor famoso, um cantor, um
bailarino, um comediante, enfim, esses sim valem por suas próprias características
(pessoais), bem por isso inviabilizando o certame. Como comparar o trabalho de dois
pintores famosos? Ou dois cantores para animação de festa popular?
Diferente; bem diferente, é a contratação de serviços técnicos profissionais
especializados com inexigibilidade de licitação, pois o fundamento somente poderá
ser o do inciso II do artigo 25 e nunca o inciso III. Infelizmente, têm ocorrido equívocos
na interpretação do dispositivo, levando à conclusão de que a singularidade do objeto
estaria na qualidade da pessoa do prestador do serviço. Entendemos inadmissível
isso, porquanto não encontramos nenhuma função para o vocábulo “de natureza sin-
gular” se não em relação ao próprio serviço técnico. Note-se que se fosse o prestador
do serviço que, por suas qualidades intelectuais, desse a conotação de singularidade
ao objeto, todo e qualquer serviço técnico por ele prestado seria singular. E chegaría-
mos ao absurdo de estarmos frente à singularidade determinada por mais de um
prestador do serviço e, via de conseqüência, duas ou mais “singularidades”, o que
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 165

contraria o próprio sentido do termo. Singular é o exclusivo, extraordinário, o diferente,


o único. Poderíamos estar frente à situação igualmente absurda, na qual existente a
singularidade do objeto se o prestador do serviço for um famoso e competente inte-
lectual detentor de notória especialização, mas não existir se o prestador do serviço
for um profissional habilitado, mas que não detenha a qualidade de notória especiali-
zação. Isso encontra óbice na lógica porque um mesmo serviço técnico não pode ser
singular para um profissional e não ser para outro! O serviço técnico tem ou não
natureza singular; é ou não individual, único, particular; não podendo ser para um e
não sê-lo para outro profissional. Daí afirmarmos que a natureza singular referida
pela lei está ligada ao próprio serviço técnico, independentemente de quem o preste.
Todavia, se o serviço é técnico e está dentre os enumerados no artigo 13, além de
possuir a natureza singular, inexigível será a licitação, se o prestador possuir notória
especialização. Seria possível afirmar que defesa judicial da administração pública,
numa ação de reparação de danos causados por um seu motorista, condutor de
veículo em serviço, possui natureza singular? A resposta é negativa, dado que ações
como essa fazem parte do dia-a-dia de qualquer procuradoria da menor Prefeitura. E
a defesa da administração numa ação na qual servidor cobra diferença de pagamen-
to de vencimentos? E a cobrança de obrigações tributárias não adimplidas, com ou
sem possibilidade de propositura da ação de execução fiscal? Em nenhum desses
casos, igualmente, nos parece que a resposta deva ser negativa, pela razão desse
tipo de ações ou atividades fazer parte do conjunto corriqueiro referido, e para as
quais um procurador sem grande experiência poderia patrocinar a contento o interes-
se público envolvido. Algo mudaria se fosse contratado grande jurista de renome na-
cional para defender essa Prefeitura? Ou para propor uma simples ação de execu-
ção fiscal? Nada mudaria na natureza do serviço, que não tinha e nem passou a ter
natureza singular, pelo fato do ilustre profissional ter assumido o patrocínio.
Por outro lado, e se dois Estados da Federação estivessem litigando pela
divisa entre eles, com repercussões sobre a exata localização de uma plataforma
de extração de petróleo no mar, com as sabidas conseqüências econômico-finan-
ceiras? Nesse caso, difícil dizer que situação como essa seria corriqueira. Talvez,
nunca tenha ocorrido e não mais ocorra entre aquelas pessoas. Essa individualida-
de, excepcionalidade ou exclusividade, é que permite dizer que presente está a
natureza singular. Outros exemplos poderiam ser dados, como na área da enge-
nharia: o gerenciamento da construção de uma pequena ponte, serviço técnico enu-
merado no inciso IV do artigo 13 da Lei de Licitações, é tarefa comezinha em qual-
quer Prefeitura, fazendo parte do dia-a-dia do setor de engenharia por não deman-
dar maiores conhecimentos para tanto. Certamente ninguém ousaria dizer que esse
serviço técnico, embora constante do artigo 13, possui natureza singular. Mas, e o
gerenciamento da construção da Ponte Rio-Niterói? À evidência que ambos os ser-
viços são técnicos, o último possuindo natureza singular e o primeiro não, indepen-
dentemente de quem seja contratado para executá-lo. Aliás, em nenhum dos dois
casos há impedimento dos serviços serem prestados por engenheiros pertencen-
tes ao quadro próprio de servidores de Prefeitura, Secretaria ou Ministério, ou ainda
166 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007

de autarquias ou empresas públicas encarregadas legalmente dessa função, ainda


que houvesse a necessidade de contratação de novos profissionais, à evidência, por
concurso público. A diferença é que o primeiro dos serviços é corriqueiro, enquanto o
segundo é único. Desse modo, a discussão sobre a natureza singular do serviço
técnico, se coloca muito antes de ser aventada a possibilidade de contratação de
profissional não pertencente aos quadros do serviço público para realizá-lo. Há um
hiato entre o momento de constatação da natureza singular do serviço técnico e a –
eventual – contratação de profissional para executá-lo. São, portanto, distintos e in-
confundíveis, podendo ou não ocorrer a contratação de profissional, dependendo das
circunstâncias. Somente depois de vencida essa etapa é que se pode falar na notória
especialização, essa sim sempre atinente ao prestador (ou prestadores) do serviço.
Desse tema passaremos a tratar.

5.3. Notória especialização

Vimos que o artigo 25, inciso II da Lei nº 8.666/93, prevê a inexigibilidade de


licitação para a contratação de serviços técnicos (do artigo 13), de natureza singular,
desde que com profissionais ou empresas de notória especialização, vedando, con-
tudo, para os serviços de publicidade e divulgação, assim afastando - expressamen-
te - a inexigibilidade para a sua contratação. Também é a própria Lei de Licitações, no
parágrafo 1º do mesmo artigo 25, que diz aquilo que deve ser considerado como
notória especialização, impedindo o agente público, seja quem for, de criar suas pró-
prias exigências, para mais ou para menos. O rol de requisitos é meramente
exemplificativo, podendo isso se afirmar pois fechado com a usual fórmula do “...ou
de outros requisitos...”, impondo ao aplicador da lei, no campo administrativo ou
jurisdicional, mais a observância do sentido da norma, que a fria letra da lei. Isso
contudo, como veremos, não permite ao aplicador afastar-se da disposição, que por
sua relevância, merece ser transcrito, in verbis: § 1º. Considera-se de notória especia-
lização o profissional ou empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, de-
corrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organiza-
ção, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas
atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais
adequado à plena satisfação do objeto do contrato.
A lei adjetivou a especialização com a notória, exigindo assim, um plus do pro-
fissional contratado (ou da empresa, inclusive pelos profissionais que a compõe).
Note-se que ao tratarmos do serviço profissional técnico especializado, afirmamos
que, de maneira geral, especializado é aquele complexo serviço, dentre outras consi-
derações. Segundo o artigo 25 da lei, exige-se que o contratado seja especializado, é
dizer, tenha gabarito para enfrentar e solucionar a contento o desafio colocado. Espe-
cialista, segundo o Aurélio, é a pessoa que se consagra com particular interesse e
cuidado a certo estudo ou ainda, pessoa que se dedica a um ramo de sua profissão;
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 167

pessoa que tem habilidade ou prática especial em determinada coisa, ou, conhece-
dor, perito.98
Exige-se, na dicção da lei, que o profissional especialista seja notoriamente
especializado, trazendo a norma, de forma expressa e em interpretação autêntica,
aquilo que considera notoriamente especializado. Releva notar que a lei parte daquilo
que é do conhecimento geral, de todos, pelo menos no campo de sua especializa-
ção, não se exigindo, contudo, que o seja do público de maneira generalizada. De
fato, o conhecimento exigido em relação a um determinado profissional do Direito,
v.g., deve ser, no mínimo, nesse campo do saber, nenhuma relevância tendo o fato de
não ser ele conhecido entre os engenheiros ou médicos.
Fala a lei em notória, impondo ao intérprete a tarefa de atribuir um significado ao
vocábulo. Notório, segundo o Aurélio, é o conhecido de todos, público, manifesto.
Exemplifica: professor de notório saber.99 Sob o aspecto jurídico, notório, que vem do
latim notorius, de noscere (saber, conhecer), “...é o que é sabido ou conhecido pelo
público. É o que é do conhecimento de todos ou de conhecimento generalizado. E por
ser de conhecimento público, de conhecimento geral, exprime sempre o que se tem
como certo e verdadeiro, não precisando de ser provado, porque já preexistente por
si mesmo.”100 A lei processual também tratou do que é notório, eximindo as partes do
dever de provar os fatos notórios, conforme determina o inciso I do artigo 334 do
Código de Processo Civil, justamente porque de todos conhecido. Nessa seara, ensi-
na Carnelli, contudo, que “a notoriedade, adverte-o CALAMANDREI, é um ‘conceito
essencialmente relativo’. O fato notório não tem que sê-lo, forçosamente, a todos os
homens ‘sem limitação de tempo e espaço’. A sua importância qualitativa não depen-
de, também, do maior ou menor número de pessoas que compõe o núcleo social. O
que define e caracteriza o fato notório e, qual se tem repisado, o valor demonstrativo
de ‘pacífica e desinteressada certeza’ que o conhecimento adquire em seu meio...”101
Mas a lei não se contenta com o conceito102 detido pelo profissional ou empresa,
de todos conhecido; exige que esse conceito seja decorrente de desempenho anterior,
afastando desde logo os iniciantes ou aprendizes, e exigindo experiências passadas.
Continua o exemplificativo rol falando de estudos, experiências, publicações, organiza-
ção, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas
atividades, tudo de modo a permitir inferência que o seu trabalho é essencial e indiscu-
tivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.
É possível afirmar, então, que a lei exige do profissional contratado (ou empre-
sa), seja não só especializado, mas que essa especialização seja notória, de todos

98
Ferreira. A. B.H. Novo dicionário da língua portuguesa, p. 701.
99
Ferreira. A. B.H. Novo dicionário da língua portuguesa, p. 1201.
100
Silva. D.P. Vocabulário jurídico, p. 254.
101
Carnelli. L. O fato notório, p. 211.
102
Conceito, segundo o Aurélio (op. cit. p. 445), é pensamento, idéia, opinião; é apreciação, julgamento, avaliação
ou opinião; ou ainda, pode ser reputação ou fama.
168 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007

conhecida, exigindo, ainda, a norma, que essa notória especialização seja decorren-
te de seu conceito no campo de sua especialidade, este em função de desempenho
anterior, estudos, publicações, organização, etc, tudo de molde a permitir uma
inferência: a de que seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado á
plena satisfação do objeto do contrato. Por outras palavras, a lei exige que para o
reconhecimento da notória especialização, é mister que o conceito do profissional no
seu campo de especialidade seja tão patente, em função das atividades (lato sensu)
desenvolvidas, que permita concluir ser o seu trabalho essencial, indispensável ou
fundamental, e além disso, indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do
objeto do contrato. Quer a lei que sobre a capacidade do contratado, a julgar pelo seu
passado profissional, seja fundamental e indiscutivelmente a mais adequada para
aquele determinado objeto contratual.
Portanto, parece-nos claro que essa é uma discussão que se coloca antes da
contratação e independe do efetivo resultado do trabalho, caso seja ele contratado.
As qualidades exigidas do profissional, para que se possa dizer que detém notória
especialização, devem ser colocadas a priori, de modo que dúvida alguma paire so-
bre a superior capacidade do contratado, naquela certa especialidade. Não fala a lei
em profissional que amealhou conhecimentos substanciosos, mas gerais sobre um
campo do saber. Refere-se sim à especialização conseguida ao longo do tempo e
comprovada da forma que ela própria determina. Essa exigência afasta, logicamente,
aqueles que não atuaram (ou pouco atuaram) na área para a qual se pretende a
contração sem licitação, sendo possível afirmar que a tal especialização diz respeito
à especialidade profissional, como por exemplo nas Ciências Médicas, cuja regula-
mentação se faz pela Lei nº 6.932/81. Essa norma regulamenta a chamada residên-
cia médica, uma das espécies de pós-graduação (anteriormente denominada lato
sensu), conferindo o título de especialista. A anterior lei que tratava da residência
médica havia sido regulamentada pelo Decreto nº 80.281, de 05 de setembro de 1977
e este, modificado por sucessivos decretos posteriores, continua regulamentado o
tema, trazendo em seu primeiro artigo as preferenciais áreas de especialização na
Medicina, mencionando a Clínica Médica, Cirurgia Geral, Pediatria, Obstetrícia e Gi-
necologia, e Medicina Preventiva e Social. Hoje, outras áreas são oferecidas, como a
Anestesiologia, Cirurgia Plástica, a Reumatologia, a Cardiologia, chegando à Medici-
na Nuclear. Em relação à Engenharia, pode-se exemplificar com a Civil, Elétrica, de
Produção, Eletrônica, Engenharia Naval, havendo inclusive obrigatoriedade do profis-
sional anotar a responsabilidade técnica formalmente, aceita apenas no campo de
sua especialidade.103 A Engenharia de Segurança no Trabalho, por sua vez, é especia-
lidade regida pela Lei nº 7.410/85.
No campo do Direito, embora não exista lei expressa, se fala na especialidade
em Tributário, Civil, Constitucional, Penal, Processual Civil Processual Penal, Admi-
nistrativo, Internacional, dentre outros, correspondendo aos ramos do Direito e às

103
Conforme a Lei nº 5.194/66, a qual prevê inclusive a possibilidade de registro temporário de engenheiros estran-
geiros, no caso de “escassez de profissionais de determinada especialidade...”, conforme a alínea “c” do Art. 2º.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 169

disciplinas profissionalizantes que estão expressas no inciso II do artigo 6º da Porta-


ria MEC nº 1886/94, de 30 de dezembro de 1994, publicada no DO de 04 de janeiro de
1995, até hoje a norma regulamentadora dos cursos de Direito no Brasil.
A lei processual civil em vigor também fala na especialidade do perito na maté-
ria sobre a qual opinará, cuja comprovação se dará mediante certidão do órgão pro-
fissional em que estiverem inscritos, nos termos do § 2º do artigo 145 do Código de
Processo Civil.
Por tudo isso, nos parece claro que a lei permite a inexigibilidade de licitação
em determinado caso, mas o conjunto de requisitos indica ser absoluta exceção, de
resto, de maneira consentânea com os princípios antes mencionados. O atendimen-
to às exigências legais é fundamental, pois essa norma excepciona a regra geral,
impondo interpretação sempre restritiva, como sói acontecer em todos os demais
casos excepcionais. Com efeito. A inexigibilidade de licitação destoa de mandamen-
tos constitucionais e legais, fazendo com que o aplicador da lei evite sua utilização ao
máximo, reservando-a àquelas excepcionais situações nas quais a licitação se reve-
la inviável mesmo. As contratações diretas, pela natureza excepcional de que se re-
vestem, impõe ainda outras providências que veremos.

5.4. Providências formais posteriores

É incontestável o caráter excepcional da inexigibilidade de licitação, como vi-


mos. Isso também se comprova por disposições legais complementares aos artigos
24 e 25, além dos parágrafos 2º e 4º do artigo 17 da Lei de Licitações, se tratando de
medidas justificadoras das exceções. Já o artigo 26 da lei de regência impõe a
obrigatoriedade de comunicação da dispensa ou inexigibilidade de licitação, em três
dias, à autoridade superior, para ratificação e publicação na imprensa oficial, esta em
cinco dias, ditando isso tudo ser condição para eficácia dos atos. O legislador, atento
à excepcionalidade da situação, determinou que o superior hierárquico da autoridade
que decidiu pela dispensa ou inexigibilidade de licitação, deva ser comunicado do ato
e o ratifique, publicando tudo na imprensa oficial.
Tal comunicação deverá ser instruída com elementos que caracterizem a situ-
ação emergencial, a razão da escolha de determinado fornecedor ou executante e a
justificativa do preço, tudo conforme os incisos I a III do parágrafo único do artigo 26
da Lei de Licitações. Esses elementos são, em verdade, a motivação do ato adminis-
trativo, como, de resto, devem ser todos os atos da administração e também do
Judiciário, inclusive ao decidir matéria administrativa, em atendimento ao artigo 93,
incisos IX e X da Constituição Federal.
Importa é que essa comunicação é condição para eficácia dos atos administra-
tivos praticados, é dizer, sem que tenha sido realizada, com a ratificação pela autori-
dade superior e publicação na imprensa oficial, nenhum ato subseqüente poderá ser
170 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007

realizado. Essa disposição, por outro lado, acaba por imputar responsabilidade direta
à autoridade superior, fazendo-o igualmente responsável pela estrita observância da
lei. Essa condição de eficácia do ato administrativo que dispensou ou inexigiu a licita-
ção não é única no Direito, bastando lembrar que até mesmo na atividade jurisdicional
o agente político é obrigado a submeter sua decisão ao superior, no caso o Tribunal
competente, como no duplo grau de jurisdição previsto no artigo 475, incisos I e II do
Código de Processo Civil, aplicáveis às hipóteses nas quais a sentença tenha sido
proferida contra os entes federados ou que tenha julgado procedentes os embargos à
execução de dívida ativa da Fazenda Pública. O chamado reexame necessário visa,
grosso modo, resguardar o interesse público, não se contentado a lei com apenas a
sentença judicial. Também podem ser citados os casos de sentença concessiva de
habeas corpus e da que absolver sumariamente o réu no rito do júri, como determina
os incisos I e II do artigo 574 do Código de Processo Penal.
Pensamos que, se na hipótese de uma sentença contrária à União, Estados,
Distrito Federal ou Municípios, a título de exemplo, o juiz está obrigado a submeter
sua decisão à superior instância, como condição de validade da decisão, muito mais
relevância tem a comunicação à autoridade superior prevista no artigo 26 da Lei nº
8.666/93, porquanto indisputável que o servidor público responsável pela decisão, no
mais das vezes, sequer agente político é, sendo mero executor de ordens superiores.
As contratações diretas, via de regra, ficam a cargo dos servidores subalternos e,
insistimos, o caráter de absoluta excepcionalidade da dispensa ou inexigibilidade de
licitação, impõe efetivo controle por parte da administração superior, inclusive com
necessidade de ratificação do ato por esta, e a conseqüente co-responsabilidade.
Por fim, uma palavra sobre o contrato administrativo. Embora até desnecessário,
o legislador expressamente dispôs no parágrafo 2º do artigo 54 da lei de regência que
os contratos decorrentes de dispensa ou inexigibilidade de licitação devem atender aos
termos do ato que os autorizou e da respectiva proposta. À evidência que nesses ca-
sos não se fala em licitação – propriamente dita – e muito menos em edital, todavia, os
princípios elencados no artigo 3º da Lei nº 8.666/93 encontram aplicação na hipótese,
sobretudo a finalidade da licitação e o modo como será processada e julgada. O princí-
pio da motivação do ato administrativo, dentre outros, igualmente, tem obrigatória apli-
cação. Por derradeiro, o inciso XI do artigo 55 da norma referida, manda inserir cláusula
estabelecendo a vinculação ao termo que dispensou ou inexigiu a licitação.

6. A contratação direta de serviços advocatícios e precedentes

Sem descurar que engenheiros, médicos, ou consultorias técnico-contábeis


ou administrativas, em tese poderiam ser diretamente contratados para prestar servi-
ços ao Estado, com base na inexigibilidade de licitação, nos propusemos a examinar
a específica hipótese de contratação de advogados (ou sociedades deles), para pres-
tação de serviços próprios. Essas contratações vem sendo objeto de questionamentos
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 171

nas Cortes de Contas e no Judiciário, tanto pelo Ministério Público (por ações civis
públicas por ato de improbidade administrativa), como também por cidadãos utilizan-
do a ação popular. Todavia, a jurisprudência não se firmou num ou noutro sentido,
inclusive a administrativa, pois decisões existem de Tribunais de Contas, de Estados
ou da União, em ambos os sentidos.
Pensamos ser compreensível essa dissonância por inerente à natureza da ques-
tão tratada. É que, conquanto não se possa afirmar, a priori, ser ilegal a contratação
direta de advogados pelo Estado, com inexigibilidade de licitação, não se pode, da
mesma forma, dizer que sejam sempre possíveis. Explicamos.
Os serviços advocatícios são passíveis, em tese, de contratação direta mas
desde que a hipótese se amolde aos requisitos da Lei nº 8.666/93 – à evidência – em
tudo aquilo que por ela exigido. Coerente com o defendido neste trabalho, já tivemos
oportunidade de sustentar a possibilidade, atuando pelo Ministério Público de 2ª ins-
tância, nos autos da AC nº 207.349.5/0-00, da 6ª Câmara de Direito Público do Tribu-
nal de Justiça do Estado de São Paulo, dentre outros. Tratava-se da contratação de
sociedade de advogados notoriamente especializados em Direito Bancário, para
ajuizamento de ações de repetição de indébito por pagamento de juros excessivos
em operações de antecipação de receita orçamentária (ARO), providência adotada
por recomendação do Egrégio Tribunal de Contas. Bem examinada a hipótese, verifi-
cou-se a presença da singularidade do objeto e a notória especialização da socieda-
de de advogados contratada. Assim, como nesse, em outro seria possível a
contratação direta, desde que o Poder Público envolvido possa verificar que os servi-
ços enfocados são técnico-profissional-especializados, igualmente presente a sin-
gularidade do objeto. Isso verificado, possível passar à etapa seguinte, de identifica-
ção de profissional que detenha notória especialização, a tudo se seguindo a comuni-
cação da autoridade superior que, em ratificando o processo, dará publicidade,
permitindo a eficácia desejada, máxime a própria contratação, obviamente observan-
do-se o § 2º do artigo 54 e o inciso XI do artigo 55, ambos da lei de regência. Como
dissemos, para nós, a comunicação e ratificação têm o efeito da homologação e
adjudicação previstas no inciso VI do artigo 43 da mesma lei. Não há possibilidade de
contratação antes da adjudicação, igualmente não se podendo falar em contratação
sem a ratificação e publicação, no caso de inexigibilidade de licitação.
É necessário enfatizar a relevância da singularidade do objeto, sobretudo por-
que em se tratando de serviços de advocacia, nem sempre ela estará presente, sen-
do comumente desprezada. Em parecer de Mirto Fraga, datado de 26.06.95, publica-
do na RDA 201/283, a Consultoria da União assim se posicionou: “Empresa Estatal -
Advogado – Licitação. Admissível a contratação de serviços particulares de advoca-
cia com inexigibilidade de licitação quando o serviço for de natureza singular. Se o
serviço não for singular, a contratação deve ser precedida de pré-qualificação com
adjudicação equalitária entre os advogados pré-selecionados.”
Nem poderia ser outro o entendimento, pois, se ausente a singularidade do
objeto, vedada está a contratação direta, sem licitação. Também Geraldo Ataliba teve
172 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007

oportunidade de responder consulta sobre o tema específico, exarando parecer que


foi juntado aos autos da Apelação Cível nº 165.432.5/4-00, da Colenda 3ª Câmara de
Direito Público do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no qual são
citadas lições de eméritos juristas sobre a possibilidade de contratação de advoga-
dos sob o pálio da inexigibilidade de licitação. Citou-se Maria Sylvia Zanella Di Pietro,
Celso Antonio Bandeira de Mello, Hely Lopes Meirelles e Lúcia Valle Figueiredo, ex-
pondo seu pensamento: “Assim, consultoria jurídica e auditorias contábeis poderiam,
em princípio, ser contratadas sem licitação, caso tratassem de serviços singulares,
desempenhados por profissionais de notória especialização. O mesmo não se pode
dizer, todavia, de consultorias jurídicas e auditorias contábeis de caráter permanente.
De fato, na contratação de um jurista, ou de um auditor contábil para tais serviços,
ainda que profissionais de notória especialização, descaracterizado estaria o pressu-
posto do serviço singular (único). Em uma consultoria jurídica permanente, o serviço
a ser realizado conteria também serviços não singulares, serviços esses comuns,
rotineiros. Serviços permanentes excluem a conotação de serviço singular. Exige-
se, pois, licitação para a contratação de tais serviços.”
Do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, dentre outros julgados, pode-se
citar a AC 156.748.5/5-00, julgado na 3ª Câmara de Direito Público, relatado pelo
Desembargador Laerte Sampaio. Por maioria de votos foi reconhecida a ilegalidade
da contratação de serviços advocatícios com base na inexigibilidade de licitação. Em
seguida, tanto o Ministério Público quanto os requeridos na ação civil pública, impug-
naram o acórdão pela via dos embargos infringentes, ambos rejeitados.
A questão da singularidade do objeto (além da notória especialização) como
autorizador da inexigibilidade de licitação, foi apreciada na Apelação Cível APC 38.192/
95-DF, julgado em 13/05/96, relatado pela Desembargadora Lia Fanuck, da 5ª Tur-
ma Cível do Egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal, publicado no Diário da
Justiça da União de 07 de agosto de 1996, página 13.118, Seção 3, cuja ementa
está assim redigida:
“Ação popular – Contrato advocatício celebrado sem prévia licitação. Ausência
de pressupostos autorizadores da sua dispensa ou inexigibilidade – Natureza dos
serviços contratados não marcada pela singularidade ou notória especialização. De-
mandas trabalhistas rotineiras – Relativas a reposições salariais decorrentes dos
sucessivos planos econômicos – Temática de domínio comum. Configurada lesão
aos cofres públicos e à moralidade administrativa. Recurso provido – Condenações
dos responsáveis e beneficiários do ato anulado ao pagamento das perdas e danos.”
O v.Acórdão afirma: “A atuação profissional requisitada não se revestia de
natureza singular, nem considerados os serviços, em si, nem considerados os
prestadores, de quem não se requeria notória especialização, visto tratar-se de de-
mandas plúrimas, com temática rotineira, ou seja, cobrança de reposição salarial,
em face das perdas sofridas pelos servidores públicos, a cada e sucessivo plano
econômico.”
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 173

Nos parece que a questão foi bem examinada e apreendido o ponto fulcral, é
dizer, as defesas nas demandas judiciais para as quais foi contratado advogado, sem
licitação, não se revestia da singularidade necessária. Também o Superior Tribunal de
Justiça debateu o tema, no RMS 5.532/PR, relatado pelo Min. Peçanha Martins, publica-
do no DJ de 23 de abril de 2001, p. 123, do qual se extrai: “por outro lado, não conven-
cem os argumentos expendidos pelo recorrente quanto à singularidade dos serviços
profissionais a serem executados, nem que não pudessem ser atendidos pelos inte-
grantes do serviço jurídico da APPA.” Nesse caso, o Tribunal de Contas do Paraná
impugnou a contratação de advogado trabalhista por órgão público, para acompanhar
processos em curso no Tribunal Regional do Trabalho. O administrador público cujo ato
foi impugnado, impetrou mandado de segurança junto ao Tribunal de Justiça do Paraná,
tendo sido denegada a ordem. Recorreu ao Superior Tribunal de Justiça e teve improvido
seu Recurso Ordinário em Mandado de Segurança. Desse aresto se extrai: “Sem qual-
quer demérito para os ilustres advogados que militam na Justiça do Trabalho, não exi-
ge o requisito da ‘singularidade’, capaz de justificar a dispensa da licitação, o acompa-
nhamento de processos na segunda instância cujo avultado número denuncia disputas
corriqueiras da relação de emprego. É certo que naquela Corte ocorrem casos
intrincados a demandar um serviço mais aprimorado e por quem posso desenvolve-lo
com ‘singularidade’ não me parecendo, porém, que sejam na quantidade afirmada pelo
impetrante.” Conquanto se note posição diversa da nossa em relação à singularidade,
é certo que os serviços, para os quais contratado o advogado, não se revestiam da
característica autorizadora da inexigibilidade de licitação.
Na realidade, difícil sustentar que defesas rotineiras, em processos judiciais
ou administrativos, possam se caracterizar como singulares, ainda que traduzam
grandes dificuldades para o profissional, pois não é esta (a dificuldade) que dá nota à
singularidade como já dissemos. Singular, para lembrarmos, é o que não se repete.
À evidência que a dificuldade da demanda pode indicar ser prudente a
contratação de profissional mais qualificado. A Administração Pública, concluindo por
não dispor de profissionais do Direito à altura que se faz necessário, sem dúvida
pode decidir pela contratação de profissional gabaritado, ao menos em princípio. Não
pode, todavia, deixar de promover a necessária licitação. O mesmo ocorre em rela-
ção às chamadas consultorias, pelas quais determinado advogado, ou sociedade
deles, é contratado para se manifestar em relação aos mais variados temas jurídicos,
presentes ou futuros. Óbvio, nos parece, que jamais se poderá detectar aí a singula-
ridade do objeto, simplesmente porque não se sabe qual ou quais temas serão apre-
ciados pelo consultor. Nesses casos, da mesma forma, não está vedada, em princí-
pio, a contratação de profissionais gabaritados para fazer frente à demanda; proibida
está, por imperativo constitucional e legal, a contratação direta, com base na
inexigibilidade de licitação.
Por outro lado, a presença do requisito da singularidade do objeto não autori-
za, por si só, a inexigibilidade de licitação na contratação. É mister, como se viu, a
notória especialização do contratado, podendo ser chamado de requisito subjetivo,
174 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007

trazendo dificuldades de toda ordem, a começar pela resistência dos próprios profis-
sionais advogados em se exporem às licitações. Essa dificuldade (pelo menos essa)
não existe entre os engenheiros ou arquitetos, habituados a participarem de licita-
ções públicas, expondo sua qualificação, seus projetos e trabalhos anteriores ao co-
tejo da Administração. A notória especialização, como se viu, tem na lei de regência o
caminho a ser trilhado e dele não pode se desviar, sob pena de arbítrio não tolerado.
Com efeito, o § 1º do Art. 25 da Lei nº 8.666/93 elenca uma série de requisitos, a
começar pelo conceito do prestador do serviço, passando pelo histórico profissional,
tudo devendo desaguar na inferência de ser aquele trabalho essencial e indiscutivel-
mente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato. Bem verdade que o
rol justificador do conceito é meramente exemplificativo, contudo, suficiente para ex-
cluir o reconhecimento da notória especialização de profissionais ou sociedade de
advogados que, efetivamente, não possam encerrar eventuais especulações sobre a
essencialidade e indiscutibilidade da adequação mencionada pela norma. Importa que
esse tipo de contratação deve, sempre, ser excepcional, como adverte Lúcia Valle
Figueiredo: “Ao abordarmos o segundo problema, verificamos, de logo, que a notória
especialização deve servir, apenas, às contratações excepcionais, como exceção a
uma regra e, mais do que isto, como exceção a um princípio.”104
Pensamos que contratar profissional do Direito que não preencha os requisitos
da notória especialização, como exige a lei, ou profissional que detenha essa qualida-
de, mas que seja contratado para prestação de serviços cujo objeto não atende à
exigência da singularidade, por certo estaria em desacordo não só com a lei de re-
gência, como também a própria Constituição Federal, que determina a realização de
licitação, além de obrigar à observância dos princípios da impessoalidade e da igual-
dade. Também aqui, presente se mostra ao aplicador da lei concretizar o critério
produzido por Celso Antônio, permitindo aquilatar, no caso concreto, se o elemento
tomado como fator de desigualação daquele profissional vis-à-vis os demais advoga-
dos ou sociedade deles, guarda uma correlação lógica com o tratamento jurídico
diferenciado. Por fim, deve ser verificado se o tratamento diferenciado está em con-
sonância com os interesses absorvidos no sistema constitucional. Merece ainda ser
relembrada a lição de Canotilho mencionada no item 3.2.2: “existe uma violação arbi-
trária da igualdade jurídica quando a disciplina jurídica não se basear num: (i) funda-
mento sério; (ii) não tiver um sentido legítimo; (iii) estabelecer diferenciação jurídica
sem um fundamento razoável.” Se mostra prudente realizar a análise em cada caso
concreto, de modo a aferir se há ou não ofensa ao princípio da igualdade.
Em vista da dificuldade de caracterização, tanto da singularidade do objeto quanto
da notória especialização do prestador, a lei tratou de indicar ao administrador público
a providência que atende aos ditames constitucionais, sendo ainda a mais razoável
sob o aspecto prático. Trata-se da realização da licitação na modalidade de concur-
so, na forma do § 4º e inc. IV do Art. 22 da Lei nº 8.666/93, indicada no § 1º do Art. 13.

104
In RDP nºs. 43-44, p. 110.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 175

Com efeito, estabelecendo-se a remuneração a priori, venceria aquele que oferecer a


melhor proposta de trabalho técnico, bem assim a melhor qualificação profissional.
No conjunto oferecido, a título meramente exemplificativo, poderiam figurar, dentre
outros, a titulação do profissional (ou profissionais componentes da sociedade de
advogados), inclusive pós-graduação, trabalhos acadêmicos, publicações, anterio-
res trabalhos técnicos correlatos, experiência anterior na área, permitindo ao admi-
nistrador escolher aquele que melhor se amolda às necessidades. Essa solução tra-
ria, ainda, o benefício de não expor os advogados à possibilidade de aviltamento de
honorários, tão combatida pela Ordem dos Advogados do Brasil, embora deva ser
ressaltado, data venia, que o Art. 41 do Código de Ética e Disciplina da OAB de modo
algum, impede a participação desses profissionais em licitação. De resto, não pode-
ria mesmo uma regulamentação interna da OAB, que sequer lei é, sobrepor-se à
Constituição Federal determinadora da realização de licitação.
Não obstante tudo isso, não se pode deixar de enfatizar que a contratação dire-
ta de advogados, baseada na inexigibilidade de licitação, em tese será possível, des-
de que presentes – todas – as exigências da lei de regência. Tudo verificado e justifi-
cado (sempre a priori, como determina o Art. 26), deve o administrador comunicar a
autoridade superior em três dias, para ratificação e publicação na imprensa oficial,
como condição para eficácia dos atos, é dizer, possibilidade de continuidade do pro-
cesso, se observando, ademais, as exigências contidas nos incisos I a III do parágra-
fo único do artigo 26 da Lei nº 8.666/93. Como se vê, a inexigibilidade de licitação na
contração de advogados pelo Poder Público é, certamente, exceção à regra, exigindo
especial cuidado por parte do administrador.

7. A desobediência à Lei de Licitações

Depois de fixados os conceitos de trabalho técnico especializado, singularida-


de do objeto e notória especialização, partiremos para um tópico que tem gerado
tanta controvérsia quanto os primeiros. Trata-se da desobediência aos comandos
legais da Lei de Licitações relativas à contratação direta, caso não estejam presentes
os requisitos legais. Poderíamos falar da atuação das Cortes de Contas, do Ministério
Público e também do cidadão, estes últimos levando a questão à apreciação do Po-
der Judiciário, quer pela ação civil pública por ato de improbidade administrativa, quer
pela ação popular. Todavia, focalizaremos apenas naquilo que disciplinado na Lei nº
8.666/93, coerente com a proposta inicial do trabalho.
Em primeiro lugar, está a regra fixada no artigo 49 e seus parágrafos da Lei de
Licitação. Diz a lei que a autoridade competente para a aprovação do procedimento,
de ofício ou por provocação de terceiros, deverá anulá-lo por ilegalidade, mediante
parecer escrito e fundamentado. Por outro lado, o parágrafo 3º assegura o contraditó-
rio e a ampla defesa, dizendo ainda o parágrafo seguinte que o estabelecido neste
artigo (o 49) e seus parágrafos, se aplica aos atos do procedimento de dispensa e de
176 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007

inexigibilidade de licitação. Todas essas regras devem ser interpretadas em conjunto


com o artigo 26 caput, in fine, pois ali está determinada a comunicação à autoridade
superior, para ratificação e publicação na imprensa oficial, em cinco dias, tudo como
condição para eficácia dos atos. Ora, se a ratificação é exigida como condição de
eficácia dos atos (dispensa ou inexigibilidade de licitação), óbvio, nos parece, que o
contrato não poderá ser firmado antes da ratificação, não se exigindo nesse momento,
o contraditório e a ampla defesa, pois não há contrato administrativo firmado, como
afirmamos em tópico anterior. Todavia, se firmado o contrato, permanece a
obrigatoriedade de anulação, no caso de constatada ilegalidade, respeitando o contra-
ditório e ampla defesa, como quer a lei no parágrafo 3º do artigo 49 da Lei nº 8.666/93.
De toda forma, importa é que a autoridade administrativa tem o dever de anular
a licitação, de ofício ou por provocação, não só em razão do determinado na lei, mas
também porque as Súmulas 346105 e 473,106 ambas do Supremo Tribunal Federal,
assim determinam. Além disso, a própria Constituição Federal impõe essa providên-
cia, na medida em que prevê a aplicação do princípio da legalidade a toda Administra-
ção Pública, direta e indireta, e dos três Poderes. Também vimos que a Lei nº 8.666/
93, norma de ordem pública que é, exige integral e obrigatória aplicação, não podendo
a agente se desviar de seus comandos, sob pena de nulidade do ato praticado em
desacordo com a regra prescrita.
De elevada importância para o tema, é o disposto no parágrafo 1º do artigo 49
da Lei de Licitações, prescrevendo que a anulação do procedimento licitatório por
motivo de ilegalidade não gera obrigação de indenizar, mas, de toda forma, ressalvan-
do o disposto no parágrafo único do artigo 59 da mesma lei, cabendo ressaltar que no
caso de anulação da licitação, induzida estará a do contrato administrativo, como
quer o parágrafo 2º do mesmo artigo. Bielsa vai além: “La falta de licitación, si ella es
obligatoria, determina la nulidad del acto, pues la licitación es esencial. En tal caso -
es decir, de omisión – la Administración pública no tiene que demandar la anulación
de contratos realizados sin licitación previa, puesto que se parte del supuesto de que
no hay contrato.”107
Além de tudo isso, como se o legislador necessitasse enfatizar o que já era
suficientemente claro, dispôs no artigo 59 da lei de regência que a declaração de
nulidade do contrato administrativo, opera retroativamente, impedindo os efeitos jurí-
dicos que ele, de ordinário, deveria produzir, além de desconstituir os já praticados.
Com isso, parece-nos que em nenhuma hipótese poderá ser realizado qualquer pa-
gamento por serviços prestados, caso a licitação tenha sido anulada por ilegalidade,
ou ainda, caso o contrato venha ser declarado nulo. Tal disposição, nas hipóteses de

105
STF – Súmula 346: A administração pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos.
106
STF – Súmula 473: A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam
ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade,
respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada em todos os casos a apreciação judicial.
107
Bielsa. R. Derecho administrativo, p. 171.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 177

contratação direta de serviços de advogados, com base na inexigibilidade de licita-


ção, é mera ênfase ao estabelecido no artigo 49 da Lei nº 8.666/93. Todavia, caso os
serviços tenham sido prestados e não seja imputada co-responsabilidade pela ilega-
lidade, deverá a Administração indenizar o contratado, promovendo-se a responsabi-
lidade de quem lhe deu causa. Tal hipótese, contudo, se nos afigura de difícil ocorrên-
cia, na medida em que tanto a Lei de Ação Popular108 quanto a Lei do Enriquecimento
Ilícito109 prevêem que o beneficiário ou aqueles que concorram para a prática do ato
ilegal, serão responsabilizados. Dessa maneira, por força da lei, será o contratado
responsabilizado, ao menos como beneficiário, impossibilitando qualquer pagamento
pelos serviços prestados, obviamente, na hipótese da contratação direta não ter obe-
decido aos requisitos da lei.
Cabe ressaltar que a jurisprudência corrobora esse entendimento. Do Supre-
mo Tribunal Federal, podemos citar o RE 160381-3 e seus embargos de declaração,
tratando-se de caso no qual houve contratação direta de empresa de consultoria,
inexigindo-se a licitação. Alegou-se que não haveria lesividade porquanto os serviços
foram efetivamente prestados, mas o v.Acórdão aponta: “Assim, os Embargantes,
data venia, postulam ‘a superação da contradição existente neste acórdão embargado
para declarar a inexistência de prova da lesividade, ou então que a lesividade poderá
ocorrer futuramente’(folha 2.195). Conforme depreende-se da ementa do acórdão
embargado, na maioria das vezes a lesividade ao erário público decorre da própria
ilegalidade do ato praticado. Assim o é quando dá-se a contratação, por município, de
serviços que poderiam ser prestados por servidores sem a feitura de licitação e sem
que o ato administrativo tenha sido procedido da necessária justificativa. Embora a
Turma não tenha conhecido do extraordinário, deixou assentada a referida tese, ou
seja, a que admite a lesividade tendo em conta a própria ilegalidade...”
Outro julgado aborda o tema, tratando-se do CRLC nº 70003832169-2002/Cível do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. É desse aresto: “Não se pode, portanto, como
tem sido sustentado em alguns processos, dizer que não havendo prejuízo algum ao
erário municipal, não há o que indenizar, e isso descaracteriza a própria ilicitude. Primeiro,
se à exclusão da improbidade basta a inexistência de prejuízo ao erário, consagrada
estará a fórmula de como fazer para as contratações diretas, pondo-se de lado a Lei e a
Constituição, transformando as obras públicas numa ‘ação entre amigos’. Dizer que a
inexistência de prejuízo ao erário descaracteriza a improbidade, é tese que serve àqueles
que na teoria combatem a impunidade, mas só para fins de prosa, uma vez que na
prática vivem abraçados a ela, com a farsa de que corrupto é sempre o outro.” Tratava-se
de caso de contratação direta com dispensa de licitação, ainda, sem observância do
procedimento previsto no artigo 26 e seu parágrafo único da Lei nº 8.666/93.

108
Lei nº 4.717/65 - Art. 6º. A ação será proposta contra as pessoas (...), e contra os beneficiários diretos do
mesmo.
109
Lei nº 8.429/92 – Art. 3º - As disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo
agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma
direta ou indireta.
178 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007

Por fim, mas não menos importante, é a sanção penal expressa para o caso de
dispensa ou inexigibilidade de licitação fora das hipóteses legais, ou ainda, a inobser-
vância das formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade, atingindo ainda
aquele que, comprovadamente, tenha concorrido para a consumação da ilegalidade
ou tenha se beneficiado, conforme reza o artigo 89 e seu parágrafo único da Lei nº
8.666/93, prevendo penas de detenção, de 3 a 5 anos e multa, muito graves, sem
dúvida, mas que demonstram o cuidado do legislador no tratamento da dispensa e
inexigibilidade de licitação.
Essas disposições não afastam as sanções próprias previstas na Lei nº 8.429/
92, igualmente graves, mas de natureza civil, por tudo se podendo afirmar que a
realização de licitação é a regra, sendo a dispensa e a inexigibilidade absoluta exce-
ção, devendo assim ser focalizada pelo prudente administrador público.

8. Improbidade administrativa: definição, natureza,


caracterização, elemento subjetivo, dano e legitimidade.

Conforme o Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa,110 improbidade


significa “falta de probidade; mau caráter; maldade”. Ensina Fazzio Júnior111 que
“Improbidade é palavra derivada do latim improbitate, significando falta de probidade,
desonestidade e desonradez”. Para a definição de improbidade administrativa a idéia
central não é alterada.
Assim a definem Pazzaglini, Rosa e Fazzio Júnior112: “Numa primeira aproxi-
mação, improbidade administrativa é o designativo técnico para a chamada corrupção
administrativa, que, sob diversas formas, promove o desvirtuamento da Administra-
ção Pública e afronta os princípios nucleares da ordem jurídica (Estado de Direito,
Democrático e Republicano), revelando-se pela obtenção de vantagens patrimoniais
indevida às expensas do erário, pelo exercício nocivo de funções e empregos públi-
co, pelo “tráfico de influência” nas esferas da Administração Pública e pelo
favorecimento de poucos em detrimento dos interesses da sociedade, mediante a
concessão de obséquios e privilégios ilícitos”.
Fazzio Júnior113, agora em obra individual, com propriedade assevera que: “A
improbidade administrativa significa o exercício de função, cargo, mandato ou em-
prego público sem observância dos princípios administrativos da legalidade, da
impessoalidade, da publicidade, da moralidade e da eficiência. É o desvirtuamento do
exercício público, que tem como fonte a má-fé”. Célebre é a definição de José Afonso

110
Lima. H, Barroso, G. Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa.
111
Fazzio Júnior. W. Improbidade Administrativa e Crimes de Prefeitos, p. 50.
112
Pazzaglini Filho, M.; Rosa, M.R.E.; Fazzio Júnior, W. Improbidade Administrativa, p. 39.
113
Fazzio Júnior, W. op. cit. p. 50.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 179

da Silva114 para quem a improbidade administrativa é “...uma moralidade administrati-


va qualificada. A improbidade administrativa é uma imoralidade qualificada pelo dano
ao erário e correspondente vantagem ao ímprobo ou a outrem”.
Figueiredo115 também vê na improbidade uma forma de imoralidade administrati-
va: “Entendemos que a probidade é espécie do gênero “moralidade administrativa” a
que alude, v.g., o art. 37, caput, e seu § 4º, da CF. O núcleo da improbidade está asso-
ciado (deflui) ao princípio maior da moralidade administrativa; verdadeiro norte à Admi-
nistração em todas as suas manifestações. Se correta estiver a análise, podemos
associar, como faz a moderna doutrina do direito administrativo, os atos atentatórios à
probidade como também atentatórios à moralidade administrativa. Não estamos a afir-
mar que ambos os conceitos são idênticos. Ao contrário, a probidade é peculiar e espe-
cífico aspecto da moralidade administrativa. Assim, ofensas aos princípios da lealdade,
da boa-fé, da boa administração, estão igualmente contidas na lei, ao lado das situa-
ções lá descritas como ensejadoras de punição. É dizer, a lei, quando alude à “probida-
de”, determina ao intérprete sacar seu conteúdo da Constituição e da lei”.
Nesta compreensão não pode existir dúvida: a probidade é corolário do princí-
pio da moralidade administrativa, tendo sido a Constituição Federal de 1988 a primei-
ra a diretamente referir-se à improbidade administrativa, e o fez nos seguintes ter-
mos, no § 4º de seu art. 37, in verbis: (...) § 4º. Os atos de improbidade administrativa
importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a
indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previs-
tas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
Resta nítida do dispositivo a natureza jurídica que pretendeu o legislador
fundante outorgar aos atos de improbidade administrativa, sendo intuitiva, tendo em
vista a locução “sem prejuízo da ação penal cabível”, ao menos uma conclusão: não
apresenta natureza penal. O regramento constitucional pune os atos de improbidade
com sanções civis (indisponibilidade de bens e reparação ao erário), políticas (perda
da função e suspensão dos direitos políticos), sendo que, sua regulamentação
infraconstitucional, prevê também sanções administrativas (Lei 8.429/92), de onde
se retira que a natureza jurídica da responsabilidade pelos atos de improbidade admi-
nistrativa não é puramente civil. Parece-nos possível afirmar a natureza jurídica da
responsabilidade por ato de improbidade administrativa como sendo civil político-ad-
ministrativa. Sobre o tema vale destacar a lição de Fazzio Júnior116: “Primeiro, faz-se
necessário trazer à luz que a Constituição Federal, art. 37, § 4º, afasta, expressa e
completamente, qualquer conotação penal que se pretenda atribuir aos atos de
improbidade administrativa. Sem prejuízo da ação penal cabível, essa é a locução
final daquele mandamento maior, demonstrando, meridianamente, que as cominações

114
Silva. J..A. Curso de direito constitucional positivo, p. 646.
115
Figueiredo. M. Probidade Administrativa, p. 23.
116
Fazzio Júnior. W. op. cit. p. 46.
180 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007

nele declaradas não são substitutivas do conjunto de sanções penais fixado na legis-
lação para os crimes funcionais e contra a administração pública. Concorrem com
eles, sem substituí-los, nem excluí-los. Ou seja, o dispositivo remete à legislação
menor matéria não penal. Daí por que as sanções que a LIA, como norma regulado-
ra, estabelece são desprovidas de substrato criminal. As condutas descritas na LIA
podem, também, configurar ilícitos penais, mas estes serão apurados na ação penal
cabível, com sanções peculiares”.
A improbidade administrativa, assim, conduta humana comissiva ou omissiva
que produz efeitos jurídicos involuntários (fato jurídico), foi concebida como uma ilicitude
que acarreta sanções civis, políticas e administrativas, independentemente da res-
ponsabilidade penal, tratando-se de ilícito plurisubjetivo, por ofender a vários bens
jurídicos tutelados pelo Direito.
Em obediência ao comando constitucional, foi a improbidade administrativa re-
gulamentada pela Lei 8.429/92. Pela definição dessa lei é possível identificar três
categorias nas quais agrupados os atos considerados como sendo de improbidade
administrativa: os que importam enriquecimento ilícito ao agente público, indepen-
dentemente de eventual lesão ao erário (art. 9ª); os efetivamente lesivos ao erário
(art. 10); e aqueles que, mesmo não acarretando enriquecimento ilícito ou lesão ao
erário, atentam contra os princípios da Administração Pública (art. 11). Para cada
uma dessas situações, a penalidade respectiva (art. 12, incs. I, II e III).
Importa, neste momento, destacar a figura do ato de improbidade administrati-
va que redunda em lesão ao erário colocada no inciso VIII do art. 10 da lei de regência,
in verbis: Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário, qual-
quer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apro-
priação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referi-
das no art. 1º desta Lei, e notadamente: ...VIII – frustrar a licitude de processo licitatório
ou dispensá-lo indevidamente.
A previsão abrange duas modalidades de atos de improbidade com lesão ao erá-
rio relacionadas a procedimentos licitatórios: frustrar a licitude do procedimento; ou
dispensa indevida de licitação. Frustrar a licitude de processo licitatório é frauda-lo.
“Fraudar licitação é distrair o procedimento licitatório. O ato fraudulento é o que intenta
burlar a lei, frustrando sua execução. Consiste em subtrair ao domínio da lei o que lhe
deveria estar sujeito.117 Dispensar indevidamente licitação, “em qualquer de suas mo-
dalidades, é extrapolar os casos legais de dispensa, contratando diretamente obra ou
serviço, quando a lei exige a competição em busca do melhor negócio. É não promovê-
la, sem justa causa legal que derrogue a regrar geral de sua obrigatoriedade”.118

117
Ibidem, p. 132.
118
Ibidem, mesma página.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 181

O elemento subjetivo, como previsto na caput do dispositivo, tanto pode ser o


dolo quanto a culpa. Assim, responde por improbidade administrativa, desde aquele
que, intencionalmente, movido pela má-fé, com a direta intenção de ensejar perda
patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação, indevidamente dis-
pensa licitação, até aquele que o faz por negligência ou imprudência.
Não se esqueceu, pois, do agente que se entrega ao descaso, olvidando dos
princípios da moralidade, da eficiência, e da boa administração, e que, por desatenção,
por fala de zelo, de dedicação, não prevê o que lhe era previsível e promove dano ao
erário com a não observância do dever de licitar. Deixou claro, portanto, o legislador,
que os elementos subjetivos dolo e culpa são importantes e juridicamente relevantes,
tendo-se buscado alcançar tanto o administrador mal intencionado quanto o desidioso.
Contido, se para a caracterização do ato de improbidade dolo e culpa se encontram
no mesmo patamar, poderá existir tratamento diferenciado, no entanto, quando da
fixação e gradação das penas.
Para a figura da dispensa indevida de licitação, por outro lado, o dano ao erário,
indicado no caput do art. 10, é presumido. Ocorre que, a ausência de licitação, o fato
de se ter deixado de comparar preços, de promover o embate entre fornecedores,
por si só já será considerado danoso, até porque, com a ilegalidade, jamais se saberá
qual efetivamente teria sido o melhor negócio para a administração pública. Além do
mais, necessário destacar, que embora as figuras do art. 10 da Lei de Improbidade se
refiram a perda patrimonial, temos que compreender que aí também se encontra
inserida a questão da moralidade administrativa. A moralidade integra o “patrimônio
público”, e a sua ofensa o afeta, mesmo em situação onde inviável a mensuração
econômica da lesão. É também o pensar de Marcelo Figueiredo,119 para quem:”O
dispositivo alude a lesão que enseje perda patrimonial. Nele, por certo, está engloba-
da a noção de lesão moral, porque no conceito de perda patrimonial, cremos, está
englobada a idéia de prejuízo moral, dano moral. Ademais, a lesão ao patrimônio
moral sempre será dimensionada sob o aspecto econômico. Em suma, não existe
“perda patrimonial” apenas sob a ótica econômica, ainda que recomposta a partir
desse critério.” Por fim, sobre o dano, não se pode deixar de mencionar o que dispões
o art. 21 da Lei nº 8.429/92, in verbis: A aplicação das sanções previstas nesta Lei
independe: I – da efetiva ocorrência de dano ao patrimônio público (...).
A Lei 8.429/92, regulamentadora da disposição constitucional instituidora no
ordenamento da improbidade administrativa, indicou, também, os legitimados para
sua persecução. O fez em seu art. 17, in verbis: A ação principal, que terá o rito
ordinário, será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada,
dentro de trinta dias da efetivação da medida cautelar. As pessoas jurídicas interessa-
das, por sua vez, por certo, são aquelas que podem figurar como sujeitos passivos,

119
Figueiredo. M. Probidade Administrativa., p. 81.
182 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007

como vítimas dos atos de improbidade, que são aquelas elencadas no art. 1º da Lei
de Improbidade: União, Estados, Distrito Federal, Territórios e Municípios; autarquias,
empresas públicas, sociedades de economia mista; fundações instituídas pelo Po-
der público; empresas incorporadas ao patrimônio público; empresas com participa-
ção do erário; empresas subvencionadas ou incentivadas pelos cofres públicos. As-
sim, a par do Ministério Público, as pessoas jurídicas lesadas pela prática de ato de
improbidade administrativa também são legitimadas para a propositura da ação para
a imposição das penas respectivas.
A legitimidade do Ministério Público, por seu turno, independentemente da ex-
pressa previsão da lei mencionada já que anteriormente a ela, já havia manifesto
respaldo constitucional. Assim os termos dos incisos II e III do art. 129 da CF: São
funções institucionais do Ministério Público: ...II – zelar pelo efetivo respeito dos Po-
deres Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta
Constituição, promovendo as medidas necessárias para sua garantia; III – promover
o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social,
do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.
Com o advento da Constituição Federal de 1988 o campo de atuação do Minis-
tério Público foi alargado, com a inclusão sob sua tutela de qualquer interesse difuso
ou coletivo. Mais recentemente, o Código de Defesa do Consumidor, em seus artigos
81 a 110, além de disciplinar os conceitos de interesses difusos e coletivos, incluiu os
interesses individuais homogêneos no rol daqueles protegidos pela ação civil pública
e, acrescentando um inciso ao art. 1º da Lei 7.347/85, colocou sob o manto do institu-
to a defesa de “qualquer outro interesse difuso ou coletivo”. Como se percebe, por-
tanto, é o Ministério Público legitimado para a propositura de medidas para a tutela de
todos os interesses transindividuais, divisíveis ou não, previstos em lei. E, como não
poderia deixar de ser, estratificou o E. Superior Tribunal de Justiça entendimento nes-
se mesmo sentido: “Com a Constituição de 1988, o Ministério Público teve distendido
seu campo de atuação – art. 129, III – cabendo-lhe a promoção do inquérito civil e da
ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e
de outros interesses difusos e coletivos, sem a limitação imposta pelo art. 1º da Lei
7.347/85. (REsp. 137.101-MA, DJU, 14-9-98, p. 44, rel. Min. Adhemar Maciel, j. 4-6-
98, 2ª Turma STJ). Ao Ministério Público é reconhecida legitimação ativa para, por via
da ação civil pública, proteger danos cometidos contra o patrimônio público por meio
de ações ilícitas dos agentes públicos. Interpretação do art. 1º, IV, da Lei n. 7.347/85,
em combinação com o art. 25, IV, b, da Lei n. 8.625/93 e art. 129, III da CF. (REsp
166.848-MG, rel. Min. José Delgado, DJU, 3-8-98, p. 133, j. 12-5-98, 1ª T. STJ).
Possível neste momento, pois, afirmar, que a improbidade administrativa, ilicitude
de natureza não penal, pode ser caracteriza pela indevida dispensa de procedimento
licitatório, inclusive para contratação direta de advogado, que tenha se dado por dolo
ou culpa, independentemente de comprovação de efetiva lesão ao erário, cabendo
sua persecução à pessoa jurídica pública interessada ou ao Ministério Público.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 183

9. Conclusão

Ao final das considerações a que nos propusemos, sem nenhuma pretensão


de esgotar o tema, possível elencar alguns pontos julgados relevantes, a começar
pelos princípios e sua relevância na pirâmide normativa. São as idéias centrais de um
sistema, dando-lhe sentido lógico, harmonioso, racional e permitindo a compreensão
de seu particular modo de organização. Na esteira de Canotilho, pode-se falar em
princípios político-constitucionais, traduzindo-se nas fundamentais decisões políti-
cas da nação, ou ainda, opções políticas nucleares, refletindo a ideologia inspiradora
da Constituição. Fala-se, ainda, em princípios jurídico-constitucionais, possuindo ca-
ráter geral e informador de toda a ordem jurídica pátria, decorrendo dos princípios
político-constitucionais.
Dentre os princípios político-constitucionais de nossa Lei Maior está o republi-
cano. A República é tipo de governo fundado na igualdade formal das pessoas, em
que os detentores do poder político exercem-no em caráter eletivo, representativo,
transitório e com responsabilidade. República vem de res publica ou coisa do povo:
de todos e igualmente para todos. Dela decorre a isonomia, segundo a qual todos são
iguais perante a lei e na lei, sem distinção de qualquer natureza. Esse princípio não se
limita ao caput do artigo 5º, estando repetida em outras disposições da Constituição
Federal, a exemplo do Art. 150, inciso II, além do artigo 37, ao se referir aos princípios
da legalidade, impessoalidade e licitação, dentre outros.
As normas de ordem públicas impõem à Administração Pública o dever de rigoro-
sa obediência às suas prescrições. Tais normas se aplicam aos processos de forma-
ção da vontade do Estado, não podendo o agente impor a sua vontade, senão a da lei,
em estrita obediência, pressupondo-se que o legislador, por ocasião da elaboração da
lei, já previu a melhor forma de atuação e a adotou. A Lei nº 8.666/93, de regência das
licitações e contratos administrativos, é norma de ordem pública, tanto pelo conteúdo
de suas disposições, quanto por sua própria letra, conforme dispõe o artigo 54.
O princípio da licitação é cogente, devendo o certame ser realizado sempre,
como determina a Constituição Federal e a própria lei de regência. Todavia, como
prevê a Lei Maior, há casos em que a licitação pode/deve ser dispensada e outros em
que ela é inviável, se tratando das hipóteses de inexigibilidade de licitação, previstos
nos artigos 24 e 25 da Lei nº 8.666/93.
Os serviços de advocacia são considerados pela lei como “serviços técnicos
profissionais especializados”, constituindo-se este no primeiro requisito para a
contratação direta, com base na inexigibilidade de licitação. Segundo a lei, tais servi-
ços envolvem a aplicação de rigorosa metodologia e, via de conseqüência, podem
ser chamados de técnicos; possuem identidade própria que os torna distintos em
relação a outras espécies de atuação do ser humano, exigindo habilitação específica
184 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007

para a sua prestação, advindo daí o qualificativo de profissional; além disso, exigem
capacitação para o exercício com habilidades não disponíveis para a média das pes-
soas, exigindo o domínio de uma área restrita do conhecimento, com aprofundamento
que ultrapassa o conhecimento mediano. A presunção legal implica reconhecer que
há uma complexidade neles residentes, isso ocorrendo com qualquer serviço de ad-
vocacia, independentemente do caso concreto.
No que diz respeito à singularidade do objeto, é possível afirmar que se trata de
um dos requisitos da inexigibilidade de licitação. Singularidade quer dizer particular ou
individual, algo raro ou extraordinário. Traduz a idéia daquilo que se distingue ou se
individualiza de per si, é o especial ou o particular a certa classe ou a certas coisas. A
singularidade de que trata a lei, somente pode ser vista por seu ângulo intrínseco, ou
por outras palavras, pelas características e qualidades que lhe são próprias (do objeto),
de imediato afastando as qualidades pessoais do prestador de serviço. Na verdade,
singular é o objeto, jamais o prestador do serviço. As qualidades pessoais – tão somen-
te – são consideradas pelo legislador, apenas no caso de contratação de profissionais
de qualquer setor artístico, dos quais se exige apenas que sejam consagrados pela
crítica especializada ou pelo público, como dispõe o inciso III do artigo 25. Já o inciso II
do mesmo artigo 25 declara ser inexigível a licitação para a contratação dos serviços
técnicos enumerados no artigo 13 da Lei de Licitações, mas exige que o objeto tenha
natureza singular, pouco importando, até esse momento, quem será o prestador do
serviço. Assim, enfatizamos, não há se falar em “singularidade do prestador do servi-
ço”, senão na singularidade do objeto. Nesse sentido, a singularidade constitui-se em
requisito objetivo da inexigibilidade de licitação, ao lado dos serviços técnicos enumera-
dos no artigo 13, nos quais se subsumem os serviços advocatícios.
A notória especialização, por seu turno, é o requisito subjetivo da inexigibilidade
de licitação, é dizer, se liga ao prestador do serviço. É prevista como exigência no inciso
II do artigo 25 da Lei de Licitações, trazendo aquilo que deve ser considerado como
notória especialização, em rol exemplificativo, no parágrafo 1º do mesmo artigo. Espe-
cialista é a pessoa que se dedica a um ramo de sua profissão; ou pessoa que tem
habilidade ou prática especial em determinada coisa, ou ainda, conhecedor ou perito.
Notório, por outro lado, é o de conhecimento de todos, o público ou o manifesto. Em
razão de notório ser tomado como aquilo que é do conhecimento público ou de todos,
traduz o que se tem como certo e verdadeiro, prescindindo de ser provado. A lei proces-
sual também trata do fato notório, eximindo as partes do dever de provar. Na Lei de
Licitações, a notória especialização encontra um limite à conclusão do aplicador da
norma, na medida em que relaciona o conceito detido pelo profissional ou empresa, à
inferência de que seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena
satisfação do objeto do contrato. Com isso, o fato do profissional possuir um ótimo
conceito no campo de sua especialidade, por si só, não implica dizer que possua notó-
ria especialização de que fala a lei, pois essa é apenas a primeira parte da exigência
legal, devendo isso resultar na essencialidade e indiscutibilidade referidas.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 185

Cumpre ressaltar que ao teor do diploma legal de regência, não se pode falar
em reconhecimento da notória especialização, em função da probabilidade de su-
cesso na realização do trabalho ou, muito menos, confiança do agente contratador
no contratado. A notória especialização é requisito subjetivo que se coloca a priori,
como essencial para a satisfação do objeto contratado, de modo que nenhuma dúvi-
da deva pairar quanto à capacidade do profissional levar a bom termo a incumbência.
A especialização mencionada na lei diz respeito à especialidade profissional, obser-
vada nas Ciências Médicas, nas Jurídicas e nas Engenharias, a título exemplificativo.
Também a lei processual trata da especialidade do perito na matéria sobre a qual
opinará, tudo comprovado por certidão ou documento hábil.
Enfatizando o caráter excepcional da dispensa e da inexigibilidade de licitação, o
legislador determinou providências administrativas próprias, como a obrigatoriedade da
comunicação à autoridade superior, ratificação e publicação na imprensa oficial, como
condição de eficácia dos atos anteriores, a exemplo do reexame necessário das “sen-
tenças contra a Fazenda Pública”. Assim, se esta depende de reexame para ter eficá-
cia, mais ainda se exige da decisão administrativa que inexigiu a licitação na contratação
de serviços de advocacia, parecendo um contra-senso impor mais rigor ao processo
judicial que ao administrativo. Depois da ratificação e publicação – não antes – poder-
se-ia contratar, com cláusula de vinculação ao termo que inexigiu a licitação.
Na realidade, a conclusão mais importante é que a contratação direta de servi-
ços advocatícios, é dizer, inexigindo-se a licitação, é possível, ao menos em tese,
desde que o caso concreto assim o permita. Para tanto, mister a verificação da pre-
sença da singularidade do objeto e a notória especialização do escolhido, sempre de
acordo com as graves exigências da Lei de Licitações, por tudo mostrando que a
regra é a realização de certame, sendo absoluta exceção a dispensa ou inexigibilidade
da licitação. No caso de contratação de serviços de advocacia, conforme recomenda
a Lei nº 8.666/93, deve ser realizada licitação na modalidade de concurso, com a
vantagem de não causar o aviltamento de honorários combatido pela Ordem dos
Advogados do Brasil.
Por fim, no que diz respeito às conseqüências do desatendimento das prescri-
ções específicas da Lei nº 8.666/93, afirma-se que a Administração Pública tem o
dever de anular o contrato e os atos anteriores, operando-se retroativamente de modo
a impedir os efeitos jurídicos que ele, de ordinário, deveria produzir, desconstituindo
os já produzidos, inclusive o pagamento do contratado, podendo haver indenização
pelos serviços até então prestados, se não existir culpa deste. A previsão de figura
penal específica para a indevida dispensa ou inexigibilidade de licitação, com penas
graves, inclusive, associada ao disposto na Lei nº 8.429/92 sobre o assunto, uma vez
mais ressalta o caráter de exceção da dispensa e da inexigibilidade de licitação, po-
dendo ser utilizados, mas sempre dentro dos estreitos limites legais. Tratando-se de
ato de improbidade administrativa o Ministério Público é órgão constitucional e legal-
mente legitimado para buscar em juízo o reconhecimento da prática ímproba, com
186 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007

condenação dos responsáveis nos termos da lei de regência. O Parquet deve dar
especial atenção e atuar nesses casos, impedindo o locupletamento de alguns às
custas do combalido erário público.

Eduardo Martines Júnior,


promotor de Justiça designado na 4ª Procuradoria de Justiça do Ministé-
rio Público do Estado de São Paulo,
bacharel em Ciências Econômicas e em Ciências Jurídicas,
mestre e doutorando em Direito do Estado pela PUC/SP,
conselheiro do Conselho Estadual de Educação de São Paulo,
professor de Direito Constitucional e Fundamentos do Direito Público na
PUC/SP e da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo.

Orlando Bastos Filho,


15º promotor de Justiça de Sorocaba/SP,
curador dos Direitos Constitucionais do Cidadão e dos Consumidores,
pós-graduado em Direito Constitucional pelo IBDC/UNISO,
mestrando em Direito do Estado pela PUC/SP,
professor de Direito Constitucional na UNIP Sorocaba.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAÚJO, L.A.D. A proteção constitucional das pessoas portadoras de deficiência. Brasília:


Corde, 1994.
ATALIBA, G. República e Constituição. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2001.
BASTOS, C.R. Curso de direito constitucional. 14ª ed., São Paulo: Saraiva, 1992.
__________. Curso de direito administrativo. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2002.
BENOIT. F.P. Le droit administratif français. Paris: Librairie Dalloz, 1968.
BIELSA. R. Derecho administrativo. 5ª ed. Buenos Aires: Roque Depalma Editor, 1955.v. 2.
BORGES. A.G. Licitação para contratação de serviços profissionais de advocacia. Revista de
Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, vol. 206: 135-141, 1996.
CANOTILHO, J.J.G. Direito constitucional. 6ª ed., Coimbra: Almedina, 1993.
__________. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Coimbra: Coimbra Editora, 1994.
CARNELLI.L. O fato notório (Trad. Érico Maciel). Rio de Janeiro: José Konfino, 1957.
CARRAZZA, R.A. Curso de direito constitucional tributário. 12ª ed., São Paulo: Malheiros, 1999.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 187

COOLEY. T. O controle de constitucionalidade das leis (Trad. Lúcio Bittencourt). Rio de Janeiro:
Forense, 1968.
DALLARI, A.A. Aspectos jurídicos da licitação. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992.
__________. Contratação de serviços de advocacia pela Administração Pública. Revista de
Informação Legislativa. Brasília: Subsecretaria de Edições Técnicas do Senado Federal, Ano
35, nº 140: 49-57, 1998.
DALLARI. D.A. Elementos de teoria geral do Estado. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 1985.
DUGUIT. L. Traité de droit constitutionnel. 13ª ed. Paris: Ancienne Librairie Fontemoing, 1927.
5v.
FAZZIO JÚNIOR. W. Improbidade administrativa e crimes de prefeitos. São Paulo: Atlas, 2000.
FERREIRA FILHO. M.G. Curso de direito constitucional. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 1990.
FIGUEIREDO. L.V. Direitos dos licitantes. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 1994.
__________. Curso de direito administrativo. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1995.
__________. Notória especialização. Revista de Direito Público. São Paulo: Revista dos Tribu-
nais, Ano VIII , nº 43-44: 109-117.
FIGUEIREDO. M. Probidade administrativa. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
GARCIA. M. (coordenação), MARQUES NETO.F.A... (et al) . Estudos sobre a lei de licitações
e contratos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
GRAU.E.R. Licitação – Serviços técnicos especializados – Firma de notória especialização –
Conceitos. Cadernos de Direito Municipal. Revista de Direito Público. São Paulo: Revista dos
Tribunais, vol. 75: 237-245.
JUSTEN FILHO. M. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Aide, 1994.
KELSEN. H. Teoria pura do direito (Trad. João Baptista Machado). 3ª ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1991.
__________. A justiça e o direito natural (Trad. João Baptista Machado). 2ª ed. Coimbra: Armênio
Amado, 1979.
LIMA, H. (Coord); BARROSO. G (Coord.). Pequeno dicionário da língua portuguesa. 9ª ed. São
Paulo: Civilização Brasileira, 1957.
MEIRELLES. H.L. Direito administrativo brasileiro. 19ª ed. São Paulo: Malheiros, 1994.
__________. Licitação e contrato administrativo. 9ª ed. São Paulo : Revista dos Tribunais,
1990.
MELLO FILHO. J.C. Constituição federal anotada. São Paulo: Saraiva, 1986.
MELLO, C.A.B. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3ª ed. São Paulo: Malheiros,
1993.
__________. Elementos de direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987.
__________. Curso de direito administrativo. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 1994.
__________. Licitação e contrato administrativo. 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990.
__________. Licitação – Aplicação de normas do Decreto-Lei n. 200, de 1967, aos Municípios.
Revista de Direito Público. São Paulo: Revista dos Tribunais, Ano II, vol. 8: 93-100, 1969.
MORAES, A. Direito constitucional administrativo. São Paulo: Atlas, 2002.
188 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007

MOSTESQUIEU, C.L.S., Baron de la Bréde et de. O espírito das leis (Trad. Fernando Henrique
Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995.
OSÓRIO. F.M. Improbidade administrativa – observações sobre a Lei 8.429/92. 2ª ed. Porto
Alegre: Síntese, 1998.
PAZZAGLINI FILHO, M.; ROSA, M.F.E.; FAZZIO JÚNIOR, W. Improbidade administrativa. 4ª
ed. São Paulo: Atlas, 1999.
PIETRO, M.S.Z.D. RAMOS. D.M.O. SANTOS. M.W.B. et al. Temas polêmicos sobre licitações
e contratos. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1995.
RIGOLIN. I.B. Manual prático das licitações: Lei n. 8.666/93. São Paulo: Saraiva: 1995.
RIVERO. J. Les libertes publiques. Paris: Presses Universitaires de France, 1973.
ROCHA. F.A.D. Regime jurídico dos contratos da administração: atualizado de acordo com Lei
nº 8.987, de 13.02.95. Brasília: Livraria e Editora Brasília Jurídica, 1995.
SYEYÈS. E.J. A Constituinte Burguesa – Que é o Terceiro Estado? (Trad. Norma Azevedo). 3ª
ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1997.
SILVA. A.M. Contratações administrativas – Comentários à lei de obras, serviços, compras e
alienações da administração centralizada e autárquica do Estado de São Paulo (Lei n. 10.395,
de 17 de dezembro de 1970, com as alterações da Lei n. 10.408, de 5 de outubro de 1971). São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1971.
SILVA, D.P. Vocabulário jurídico. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986. 4v.
SILVA. J.A. Curso de direito constitucional positivo. 14ª e 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997.
SUNDFELD, C.A. Fundamentos de direito público. 4ª ed., São Paulo: Malheiros, 2002.
__________. Licitação e contrato administrativo de acordo com as leis 8.666/93 e 8.883/94.
São Paulo: Malheiros, 1994.
ROTEIR O P
TEIRO ARA
PARA
O COMB
COMBAATE
À LAVAGEM
LAV
DE DINHEIRO
DINHEIRO

Arthur Pinto Lemos Júnior,


promotor de Justiça,
designado para o Gaeco
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.189 a 199, janeiro/junho-2007 191

ROTEIRO PARA INVESTIGAÇÃO


CRIMINAL NO CRIME
DE LAVAGEM DE DINHEIRO

“O comércio ilícito rompeu as fronteiras e invadiu


nossas vidas. Nunca mais saberemos com certeza
a quem nossa compra beneficia, o que nossos
investimentos apóiam, que conexões materiais ou
financeiras podem ligar nosso próprio trabalho e
consumo a objetivos e práticas que abominamos”.
(Moisés Naím)

Durante as reuniões do Grupo de Trabalho sobre Lavagem de Dinheiro, ocorridas


no âmbito de GNCOC – Grupo Nacional de Combate às Organizações Criminosas,
surgiu a necessidade de se estabelecer um roteiro orientador para a investigação
criminal em torno do fenômeno da lavagem ou ocultação de bens, direito e valores.
Nos referidos encontros consideramos como pífios os índices de investigações e de
ações penais noticiando tal fenomenologia 1, enquanto “o dinheiro sujo é parte
fundamental da economia mundial” 2. De acordo com os dados do FMI, de 1996, o
capital lavado tem oscilado entre 2 e 5 % do produto mundial e estimativas mais
recentes “colocam os fluxos de lavagem de dinheiro próximos a 10% do PIB global” 3.
Às dificuldades encontradas na investigação criminal correspondem as
peculiares características do delito, sem uma vítima pontual, jamais praticado por um
único agente, de difícil visualização, por força de uma atuação opaca e resistente a
qualquer observação despretensiosa, que não é fruto de uma programação “artesanal,
mas antes de um projeto racionalmente elaborado” 4. As organizações criam perfeitas
“condições para a utilização lícita de bens ou produtos obtidos através de fatos ilícitos”5.

1
É comum a Polícia Judiciária investigar o crime, elucidar a autoria, a materialidade dos fatos e relegar para a
Magistratura deliberar sobre os bens auferidos com o delito, e ao Ministério Público a decisão de prosseguir, ou
não, na investigação sobre o destino dado ao capital obtido com os delitos.
2
NAÍM, Moisés, Ilícito,trad. Sérgio Lopes, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, p. 20.
3
Ibidem.
4
COSTA, José de Faria, “O fenómeno da globalização e o Direito Penal Económico”, in Boletim da Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra n° 61, 2001, p. 540.
5
CANAS, Vitalino, O crime de branqueamento: regime de prevenção e de repressão, Coimbra: Livraria Almedina,
2004, p. 21.
192 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.189-199, janeiro/junho-2007

Convém ainda reconhecer que o fenômeno da reciclagem de bens e valores


auferidos com o produto do crime costuma estar enraizado em fatores criminológicos
de altíssima rentabilidade, equiparadas ao modelo ou estrutura empresarial, bem
ajustadas à produtividade capitalista. Neste contexto integram-se organizações
criminosas complexas, caracterizadas pela sofisticada circulação do dinheiro ou bens,
num espaço extraterritorial, proveniente de crimes e pela infiltração de agentes
criminosos no aparelho do Estado.
Não será raro encontrarmos empresas economicamente sadias, cumpridoras
de seus deveres fiscais e, inclusive, que contam com a chancela de auditores fiscais.
Entretanto, o capital ali investido tem origem ilícita e seu lucro serve para alimentar e
incrementar a atividade criminosa da organização. “Os muitos caminhos seguidos
pela criminalidade organizada, no reinvestimento dos lucros ilicitamente obtidos, tornam
particularmente difícil um completo controle do fenômeno ‘reciclagem’” 6.
Em outras palavras, conquanto seja conhecida a prática do crime e o
enriquecimento auferido, não se sabe onde tal lucro foi integrado no sistema econômico,
porquanto sempre será possível realizar nova operação de ocultação, que permite o
distanciamento dos bens de sua origem criminosa 7 – contexto este que bem poderia
ser ilustrado pelas bonecas de madeiras russas, as matriushkas, que se encaixam
umas dentro das outras.
Tudo é favorável ao lavador de dinheiro. Não há grande dificuldade para se abrir
uma empresa fantasma, muitas vezes com um objeto social genérico e, uma vez
registrada a pessoa jurídica na Junta Comercial, autorizada pelo Estado estará para
gerir bens e atividades lícitas, não obstante o capital investido possa ser ilícito. A partir
de então, a empresa de fachada pode reciclar fundos conforme o bom desempenho
do contador contratado por ela: através de registros de elevados custos de transportes,
ou do subfaturamento, ou falsas ordens de compras junto a outras empresas de
fachadas e por meio da emissão de outros documentos legais.
Qualquer bem que possa ser adquirido à vista, normalmente em grandes
quantidades, com alto capital de giro e possa ser vendido com lucro, ou com um
pequeno prejuízo, pode ser alvo da reciclagem de bens e valores. Portanto,
determinados negócios têm sido eleitos como preferidos pelos especialistas em
lavagem de dinheiro, por movimentarem altos valores em dinheiro vivo. Vejamos alguns:
hotéis, bares, casas noturnas, postos de combustíveis, locadoras de vídeo, parques
de diversões, lojas de carros, estacionamento de veículos, lavanderias (atividade que
explica a origem da expressão lavagem de dinheiro), cavalos, bilhetes premiados de
loteria, dentre outros.

6
PELLEGRINI, Angiolo e JÚNIOR, Paulo José da Costa, Criminalidade organizada, São Paulo: Jurídica Brasileira,
1999, p. 55.
7
CAPARRÓS, Fabián, El delito de blanqueo de capitales, Madrid: Ed. Colex, 1998, p. 412.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.189 a 199, janeiro/junho-2007 193

Como forma de melhor entender como funciona esse esquema criminoso


estabeleceu o GAFI três diferentes fases para o processo de lavagem de dinheiro:
colocação, ocultação e integração. A experiência, no entanto, exige uma profunda
reflexão desse modelo descritivo. Isto porque a lavagem de dinheiro “é hoje uma
atividade que pode atingir um grau de sofisticação que só artificialmente se pode
reconduzir a um esquema único e mais ou menos linear” 8. Existe, de fato, uma
variedade de atividades e procedimentos difusos que poderão ser utilizados pelos
lavadores de dinheiro.
Impossível, daí, fixar um roteiro único a ser sempre seguido durante as
investigações criminais. Possível, porém, sugerir órgãos importantes para serem
consultados na busca do patrimônio ou atividade ilícita da organização criminosa, os
quais deverão ser priorizados de acordo com o perfil da organização criminosa
investigada e, sobretudo, de seu chefe ou líder. Poderíamos denominar estes
levantamentos como uma investigação criminal de gabinete ou burocrática, mas como
o crime de lavagem de dinheiro é derivado e sempre dependente de um delito
antecedente, não podemos prescindir das providências tradicionais de investigação
de campo, tradicionalmente executadas pela Polícia Judiciária.
Não se pretende, pois, nesta apresentação discorrer sobre seus aspectos
doutrinários, mas sim sugerir fontes de pesquisa que deverão auxiliar na investigação
criminal e revelar a existência de patrimônio ilícito, com aparência de lícito.

Fontes de pesquisas para investigação de patrimônio ilícito:

a) Cartórios de Registro de Imóveis da Comarca relacionada com o


Investigado, observando as estâncias turísticas mais procuradas no Estado; por
exemplo, em São Paulo, Guarujá (litoral) e Campos de Jordão (montanha). Não existe
concentração dos dados a nível nacional.
ANOREG – Associação dos Notários e Registradores do Brasil. Disponibiliza
consulta através do CPF de imóveis no Estado de São Paulo para saber em que
Cartório o investigado possui imóvel. Consultas mediante credenciamento:
www.anoreg.org.br .
b) COAF – Conselho de Controle de Operações Financeiras – Fornecimento
de Informações sobre Operações Suspeitas – Viável o cadastro de senha para consulta
on line: www.fazenda.gov.br/coaf. - Pesquisa banco de dados do CVM – Bolsa de
Valores. Endereço: SAS – quadra 3 – bloco O – 7° andar, Ed. Órgãos Regionais – M.F.
– Brasília/DF – CEP 70.070-100 – fones: (61) 3412.4755 e (fax) 3226.0641.

8
CANAS, Vitalino, O crime de branqueamento: regime de prevenção e de repressão, ob. cit., p. 22.
194 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.189-199, janeiro/junho-2007

c) Banco Central do Brasil – Acesso a movimentação financeira mediante


ordem judicial, além da possibilidade de acesso a gastos com cartões de créditos
nacionais e internacionais.
Departamento de Combate a Ilícitos Financeiros e de Supervisão de Câmbio e
Capitais Internacionais – Setor Bancário Sul, Quadra 3, Bloco “b”, Edifício Sede, Brasília
– DF, CEP 70074-900. Fone (61) 3414.1570, 3414.2410 (fax). Chefe do Departamento
: Dr. Fernando Celso Gomes de Souza
d) Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC - Aeroporto Internacional de
Brasília - Setor de Concessionárias, Lote 5, Brasília – DF – CEP 71608-900; Endereço
Eletrônico: www.anac.gov.br; Telefones: 61 3905 2679 / 3905 2649; Diretor-Presidente:
Dr. Milton Zuanazzi; Procurador-Geral: Dr. João Ilídio de Lima Filho.
e) DRCI – Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação
Internacional - Negocia acordos e coordenar a execução da cooperação jurídica
internacional. Exerce a função de autoridade central para a tramitação de pedidos de
cooperação jurídica internacional. E desenvolve e aperfeiçoa instrumentos normativos
de combate à lavagem de dinheiro, de recuperação de ativos e de cooperação jurídica
internacional, dentre outras atribuições.
Endereço: SCN Qd. 1 Bl. A Sala 101, Ed. Number One – Brasília.DF – 70.711-
900; Telefone: 55 .61.3310-7240; Fax: 61 3429-8910; Internet: www.mj.gov.br/drci;
Diretora: Dra. Maria Rosa Guimarães Loula.
f) Capitania dos Portos – Informações regionalizadas obtidas em cada Estado.
Informa dados sobre embarcações e seus proprietários.
g) Detran – Infoseg - Informações sobre propriedade de veículos, dados
cadastrais registrados para fins de Carteira Nacional de Habilitação e multas
relacionadas com os veículos.
h) Registro de Armas – Infoseg – Dispõe de cadastros dos proprietários de
armas de fogo informações do SINARM – Sistema Nacional de Armas.
i) Receita Federal. Através de autorização judicial, obtenção de dados da
evolução patrimonial e movimentação financeira, mediante análise do recolhimento
do CPMF.
j) Receita Estadual. Dados do recolhimento de Impostos Estaduais e do registro
da Inscrição Estadual. Possibilita o confronto entre a contribuição a título de ICMS
com a Declaração de Rendimentos à Receita Federal, bem como com os dados
constantes em contas correntes, como forma de verificar a existência de empresas
fantasmas.
k) Empresas de telefonia móvel e fixa. Obtenção de dados cadastrais e
valores dos gastos mensais com telefone das pessoas investigadas, além da
bilhetagem das ligações recebidas e efetuadas, mediante quebra de sigilo judicial.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.189 a 199, janeiro/junho-2007 195

Algumas empresas negam o fornecimento dos dados cadastrais ao Ministério Público,


por força de interpretação de decisão da Justiça Federal.
l) Junta Comercial – Disponibiliza dados sobre empresas e a evolução de
seus quadros societários.
m) Associações de Criadores de Cavalos. Cada associação abaixo citada
detém o registro de cavalos, com os dados de seus proprietários e características
dos animais. Trata-se de um registro que se assemelha aos Registros Gerais de
pessoas físicas mantidos por órgãos de segurança pública nos Estados.
- Associação Brasileira dos Criadores e Proprietários de Cavalos de Corrida
(ABCPCC). Presidente: Antônio Carlos Coutinho Nogueira. Avenida Lineu de Paula
Machado, 875. Jardim Everest – CEP 05601-001 - São Paulo-SP. Fone: (11) 3813-
5699 / 3813.5772 Fax: (11) 3814.3410. E-mail: diretoria@studbook.com.br - Site:
www.studbook.com.br.
- Associação Brasileira de Criadores do Cavalo Árabe (ABCCA). Presidente:
Luciano Cury; Avenida Francisco Matarazzo 455, Parque Água Branca, Fone: (11)
3674-1744 Fax: (11) 3674.1749, CEP 050010-900 - São Paulo-SP. E-mail:
presidencia@abcca.com.br; Site: www.abcca.com.br.
- Associação Brasileira do Cavalos da Raça Anglo-Árabe. Presidente: José
Sampaio Meirelles; Rua dos Arouche, 23 5º andar; Fone: (11) 3674.1744; CEP 01219-
001 - São Paulo - SP; E-mail: abcca@abcca.com.br.
- Associação Brasileira de Criadores do Cavalo Mangalarga Marchador
(ABCCMM). Presidente: Eduardo Costa Simões; Avenida Amazonas, 6020 - Parque
de Exposição Bolívar de Andrade - Gameleira; Fone: (31) 3379-6100 Fax: (31)
3379.6122; 30510-000 - Belo Horizonte - MG; E-mail: abccmm@abccmm.org.br; Site:
www.abccmm.org.br.
- Associação Brasileira de Criadores de Cavalos Crioulos (ABCCC). Presidente:
Henrique José Marim Teixeira; Avenida Fernando Osório, 1754 - A; Fone: (53) 3223.2122
Fax: (53) 3223.4774; Caixa Postal 571 - Três Vendas - 96055-000 - Pelotas - RS; E-
mail: abcc@abccc.com.br; Site: www.abccc.com.br.
- Associação Brasileira de Criadores de Cavalo Quarto de Milha (ABQM).
Presidente: Ovídio Vieira Ferreira; Avenida Francisco Matarazzo, 455, Parque Água
Branca - Pavilhão 11; Fone: (11) 3875-2617/ 3864.0800 Fax: (11) 3673.1087; CEP
05050-900 - São Paulo-SP; E-mail: diretoria@quartodemilha.com.br; Site:
www.quartodemilha.com.br
- Associação Brasileira de Criadores de Cavalos da Raça Mangalarga
(ABCCRM). Presidente: Mário Alves Brabosa; Avenida Francisco Matarazzo,
455,Parque Água Branca Pavilhão 04; Fone: (11) 3673-9400 (11) 3862.1864; CEP
05001-900 - São Paulo - SP; E-mail: diretor@cavalomangalarga.com.br; Site:
www.cavalomangalarga.com.br.
196 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.189-199, janeiro/junho-2007

- Associação Brasileira dos Criadores do Cavalo Campolina (ABCCC).


Presidente: Francisco de Azevedo Neto; Avenida Amazonas, 6020, Parque de
Exposição Bolívar de Andrade - Gameleira; Fone: (31) 3372-7478 Fax: (31) 3372.7479;
CEP 30510-000 - Belo Horizonte - MG; E-mail: campolina@campolina.org.br; Site:
www.campolina.org.br.
- Associação Brasileira de Criadores de Cavalo Appaloosa. Presidente: Francisco
Lopes; Avenida Francisco Matarazzo, 455, Parque Água Branca; Fone: (11) 3672-
7800; CEP 050031-900 - São Paulo - SP; E-mail: appaloosa@appaloosa.com.br; Site:
www.appaloosa.com.br.
- Associação Brasileira de Cavalo Pampa (ABCPAMPA). Presidente: Eduardo
Aparecido; Avenida Amazonas, 6020, Parque de Exposição Bolívar de Andrade -
Gameleira; Fone: (31) 3272-2415 Fax: (31) 3372-5460; CEP 30510-000 - Belo Horizonte
- MG; E-mail: abcpampa@abcpampa.org.br; Site: www.abcpampa.org.br.
- Associação Brasileira dos Criadores do Cavalo Paint (ABCPAINT). Presidente:
Orlando Lamônica Júnior; Av. Comendador José da Silva Martha, 36-01 - Jd. Shangrilla,
CEP 17053-340 - Bauru - SP; Fone: (14) 3236-3000; E-mail: abcpaint@abcpaint.com.br;
Site: www.abcpaint.com.br.
- Associação Brasileira de Criadores do Cavalo Puro Sangue Lusitano (ABPSL).
Presidente: Luís Ermírio de Moraes; Rua General Jardim, 618 Cj. 62 - Vila Buarque -
São Paulo; Fone: (11) 3259.5335 Fax: (11) 3257.6297; CEP 01.223-010; E-mail:
adm@associacaolusitano.org.br; Site: www.associacaolusitano.com.br.
- Associação Brasileira dos Criadores de Cavalos de Hipismo (ABCCH).
Presidente: Ênio Monte; Avenida Francisco Matarazzo, 455, Parque Água Branca;
Fone: (11) 3672.2866 Fax: (11)3865.8190; CEP 05001-900 - São Paulo - SP; E-mail:
abcch@brasileirodehipismo.com.br; Site: www.brasileirodehipismo.com.br.
- Associação Nacional de Criadores de “Herd Book Collares”. Presidente: José
Roberto Pires Weber; Rua Anchieta, 2043 - Centro; Caixa Postal 490; Fone: (53)
3222.4576/ 3225.2773 Fax: (53) 3225.2773; CEP 96015-420 - Pelotas - RS; E-mail:
herdbook@herdbook.org.br; Site: www.herdbook.org.br.
- Associação Brasileira de Criadores do Cavalo Pura Raça Espanhola (ABPRE).
Presidente: José Roberto Viviane; Rua Pascal, 882 ap. 151 Campo Belo; Fone:
(11) 3744.5252; CEP 04616-002 - São Paulo – SP.
- Associação Brasileira dos Criadores do Cavalo Pônei (ABCCPONEI).
Presidente: Fabrício Borges Santos; Avenida Amazonas, 6020 - Parque Bolívar de
Andrade - Gameleira; Fone: (31) 3371-3797; CEP 30510-000 - Belo Horizonte - MG;
E-mail: ponei@ponei.org.br; Site: www.ponei.org.br.
- Associação Brasileira de Criadores do Cavalo Pantaneiro (ABCCP). Presidente:
Gilson Gonçalo de Arruda; Avenida Joaquim Murtinho 1070 - Centro; Fone: (65)
3345.1436; CEP 78175-000 - Poconé - MT; E-mail: abccp@brturbo.com.br; Site:
www.abccp.com.br.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.189 a 199, janeiro/junho-2007 197

- Associação Nacional do Cavalo de Rédeas (ANCR). Presidente: Mauro Eduardo


Dias; Avenida Comendador José da Silva Marta - Quadra 36; Fone: (11) 3236.1244;
CEP 17053-340 - Bauru - SP; E-mail: ancr@terra.com.br; Site: www.ancr.org.br.
- Associação Brasileira dos Criadores de Cavalo Bretão. Presidente: Cláudio
Marcelo Borja de Almeida; Rua Oswaldo Cruz, 267; CEP: 13900-010 - Amparo - SP;
Fone (11) 3807.7974 Fax: (11) 3849-9061; E-mail: presidencia@cavalo-bretao.com.br;
Site: www.cavalo-bretao.com.br.
- Associação Brasileira dos Criadores do Cavalo Trotador (ABCCT). Presidente:
Valter da Silva Loureiro; Praça dos Trotadores, 01 - Vila Guilherme; Fone: (11) 6631-
7263; CEP 02000-000 - São Paulo - SP; E-mail: abcct@bol.com.br.
- Associação Brasileira de Criadores de Puruca (ARPP). Presidente: Zinda Nunes
Gouveia; Avenida Almirante Barroso, 5386, Parque de Exposições Presidente Médici,
Fone: (91) 3231.0339 / 3231.6917; CEP 66610-000 - Belém - PA; E-mail:
arpp@amazonline.com.br.
- Associação Brasileira dos Criadores da Raça Marajoara. Presidente: Mário
Antônio Martins; Avenida Almirante Barroso, 5386, Parque de Exposições Presidente
Médici, Fone: (91) 3231-6917; CEP 66600-000 - Belém - PA.
- Associação Brasileira dos Criadores de Cavalo Campeiro. Presidente:
Urmerindo Fernandes de Oliveira; Rua Marechal Floriano, 217; Fone: (49) 3241.0268;
CEP 89520-000 - Curitibanos - SC.

n) Aconselha-se ao Promotor de Justiça que provoque a nomeação de


Administrador Judicial para os bens eventualmente seqüestrados, como, por
exemplo, um Advogado com experiência em administrar massa falida perante a
Vara de Falências.

Principais dados internacionais disponíveis:

a) ENCCLA - Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e a Lavagem de


Dinheiro (Enccla) – Metas estabelecidas para o ano de 2007: www.mj.gov.br/drci/pdf/
Metas_e_recomendaçoes_ENCCLA
b) 40 Recomendações do GAFI (Grupo de Ação Financeira sobre a Lavagem
de Dinheiro) constantes do site: www.mj.gov.br/drci -
c) Lista dos países membros do GAFI: www.fatf-gafi.org?Membrs_en.htm
d) GAFISUD: países envolvidos Uruguai, Paraguai, Argentina e Brasil. Dados
sobre o Grupo e seu funcionamento podem ser obtidos junto ao DRCI e ao COAF já
citados.
198 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.189-199, janeiro/junho-2007

e) Acordos de Cooperação Internacional entre Brasil e outros países – principais


contatos – disponíveis em www.mj.gov.br/drci/default.asp :
· Estados Unidos: Decreto nº 3.810, de 2 de maio de 2001: Promulga o Acordo
de Assistência Judiciária em Matéria Penal;
· França: Decreto nº 3.324, de 30 de dezembro de 1999: Promulga o Acordo de
Cooperação Judiciárias em Matéria Penal;
· Itália: Decreto nº 2.649, de 01 de julho de 1998: Promulga o Acordo de
Cooperação na Luta Contra o Crime Organizado e o Tráfico de Entorpecentes e
Substâncias Psicotrópicas, celebrado entre o Governo da República Federativa do
Brasil e o Governo da República Italiana, em Roma, em 12 de fevereiro de 1997;
Decreto nº 862, de 09 de julho de 1993: Promulga o Tratado sobre Cooperação Judiciária
em Matéria Penal;
· Portugal: Decreto nº 1.320, de 30 de novembro de 1994: Promulga o Tratado
de Auxílio Mútuo em Matéria Penal;
· Colômbia – Decreto nº 3.895, de 23 de agosto de 2001: Promulga o Acordo de
Cooperação Judiciária e Assistência mútua em Matéria Penal;
f) A Rede Hemisférica de Intercâmbio de Informações para o Auxílio Jurídico
Mútuo em Matéria Penal e de Extradição, criada no âmbito da OEA, é a mais
desenvolvida dentre as redes de cooperação jurídica de que o Brasil faz parte, e foi
adotada pela Vª Reunião de Ministros da Justiça daquela Organização, realizada no
ano de 2004 em Washington: www.oas.org/juridico/mla;
g) Página de acesso ao Direito da União Européia: http://eur-lex.europa.eu.
Existem na página diversas Resoluções legislativas do Parlamento Europeu e
Pareceres do Comitê Econômico e Social Europeu sobre lavagem de dinheiro, as
quais abordam os principais temas e assuntos a serem observados pelos Estados
membros daquela Comunidade. Também diversas Decisões-Quadro do Conselho
Europeu, que tratam da mesma questão;
h) Recomendações especiais do GAFI/FATF sobre financiamento do terrorismo:
www.mj.gov.br/drci;
i) Instrução Normativa SRF nº 188, de 6 de agosto de 2002 - Relaciona países
ou dependências com tributação favorecida ou oponha sigilo relativo à composição
societária de pessoas jurídicas: www.receita.fazenda.gov.br/coaf.
j) COAF – já referido - detém acesso à rede internacional das Unidades de
Inteligência Financeira – UIF (sigla em inglês: FIU) – e ao Grupo Egmont. Auxilia,
portanto, na obtenção de dados sobre contas correntes e movimentações financeiras
no exterior. Maiores informações: www.fazenda.gov.br/coaf/portugues/
i_sobreocoaf.htm .
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.189 a 199, janeiro/junho-2007 199

k) Site internacional completo com várias informações sobre “Lavagem de


Dinheiro”, com citação sobre casos concretos, doutrina e legislação:
www.proximalconsulting.com (em inglês).

Arthur Pinto Lemos Júnior,


Promotor de Justiça
designado para o Gaeco
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO
Procurador-geral de Justiça Corregedor-geral do Ministério Público
Rodrigo César Rebello Pinho Antonio de Pádua Bertone Pereira

Conselho Superior do Ministério Público


Rodrigo César Rebello Pinho Fernando José Marques
(presidente) José Benedito Tarifa
Antonio de Pádua Bertone Pereira José Oswaldo Molineiro
Antonio Augusto Mello de Camargo Ferraz Marco Antonio Zanellato
Daniel Roberto Fink Paulo Afonso Garrido de Paula
Dráusio Lúcio Barreto Walter Paulo Sabella
Órgão Especial do Colégio de Procuradores de Justiça
Membros Natos Membros Eleitos

José Roberto Garcia Durand Airton Florentino de Barros


Luiz Cesar Gama Pellegrini Oswaldo Luiz Palu
Herberto Magalhães da Silveira Júnior Paulo Mário Spina
René Pereira de Carvalho Agenor Nakazone
Francisco Morais Sampaio Mário Pedro Paes
José Ricardo Peirão Rodrigues Adelina Bitelli Dias Campos
José Roberto Dealis Tucunduva José Reynaldo de Almeida
Oswaldo Hamilton Tavares Tiago Cintra Zarif
Fernando José Marques José Luis Alicke
Irineu Roberto da Costa Lopes Paulo do Amaral Souza
Regina Helena da Silva Simões Gilberto Martins Lopes
Roberto João Elias Ana Margarida Machado Junqueira Beneduce
Claus Paione Paulo Marcos Eduardo Reali Fernandes Nunes
José de Arruda Silveira Filho David Cury Júnior
Álvaro Augusto Fonseca de Arruda Sonia Etuko Oda
Pedro Franco de Campos Newton Silveira Simões
Gabriel Eduardo Scotti José Eduardo Diniz Rosa
José Luiz Abrantes Carlos Eduardo Fonseca da Matta
Antonio Visconti Mário Antonio de Campos Tebet
Arnaldo Gonçalves Aparecida Maria Valadares Costa Gonçalves
Conselho do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional
Rodrigo César Rebello Pinho Marcos Tadeu Gonçalves Teixeira
Antonio de Pádua Bertone Pereira marianí Atchabahian
David Cury Júnior Augusto Soares de Arruda Neto
Marco Antonio Zanellato Nelson Gonzaga de Oliveira
Congregação da ESMP
Adriano Ricardo Claro
Antonio Carlos da Ponte Maria Cristina Barreira de Oliveira
Arthur Pinto Filho Motauri Ciocchetti de Souza
Carolina Maria Matheus Marcovecchio Nelson Gonzaga de Oliveira
Célio Parisi Oswaldo Henrique Duek Marques
Eduardo Martines Júnior Oswaldo Luiz Palu
Eliana Passarelli Rita de Cássia Souza Barbosa de Barros
José Carlos Mascari Bonilha Ronaldo Porto Macedo Júnior
José Marcelo Menezes Vigliar Sérgio Seiji Shimura
Lídia Helena Ferreira da Costa Passos Suely Amici Pereira
Luiz Antonio de Souza Tânia Soraya Rodrigues Souza
Luiz Roberto Cicogna Faggioni Vidal Serrano Nunes Júnior
Maria Amélia Nardy Pereira Wallace Paiva Martins Júnior

S-ar putea să vă placă și