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LEI DE DROGAS
LOGO DA
IMESP IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO DE SÃO PAULO
“Revista da ESMP”, co-edição ESMP/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, é semestral, com tiragem de 3 mil exemplares.
REVISTA
REVISTA
DA ESMP
LOGO DA
IMESP
Revista Jurídica. São Paulo: Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, 2007
Semestral
ISBN: 85-7060-206-5 (Imprena Oficial do Estado de São Paulo)
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Luis Paulo Sirvinskas
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Doméstica.................................................................................. 75
Cesar Dario Mariano da Silva
I
Violência Doméstica: Possibilidade Jurídica da Nova Hipótese
de Prisão Preventiva à Luz do Princípio Constitucional da
Proporcionalidade................................................................... 83
C
Rodrigo Silva Perez Araújo
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Murilo Salles Freua
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Arthur Pinto Lemos Júnior
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I
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Após dois anos de interrupção, estamos de volta com uma nova
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publicação da ESMP, agora no formato de uma revista semestral que
engloba o antigo Caderno Jurídico (com temas específicos) e a Revista
Jurídica (com temas variados), publicados até 2004. Uma vez vencido
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o contrato com a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, unir essas
duas publicações em uma só foi a solução encontrada para baratearmos
o custo e mantermos a divulgação de tão importantes artigos para os
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membros do Ministério Público.
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encontrará artigos sobre a nova Lei de Violência Doméstica (na primeira
parte) e sobre a nova Lei de Drogas (na segunda parte), que entraram
em vigor em 2006 e provocaram inúmeros debates e seminários na
Capital e no Interior, promovidos pela Escola Superior do Ministério
S
Público, em parceria com o CAO à Execução e das Promotorias de
Justiça Criminais e o CAO das Promotorias de Justiça Cíveis, de
Acidentes do Trabalho, do Idoso e da Pessoa Portadora de Deficiência.
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relacionado às exposições, mercê da escassez de doutrina sobre os
temas abordados. Para atingirmos esse objetivo, contamos com a
colaboração de Vicente Greco Filho, Luiz Roberto Cicogna Faggioni,
Carmen Lúcia da Silva, Ana Luiza Schmidt Lourenço Rodrigues, Paulo
T
Sergio Puerta dos Santos, Arnaldo Hossepian Salles Lima Júnior,
Augusto Eduardo de Souza Rossini, Airton Buzzo Alves, Evelise
Pedroso Teixeira Prado Vieira, Jurandir José do Santos, Gilson Sidney
A
Amâncio de Souza, Lindson Gimenes de Almeida, Paulo César Correa
Borges nos debates e, ainda mais valiosa, a atenção de Camilo Pileggi,
César Dario Mariano, Eloísa de Sousa Arruda e Luis Paulo Sirvinskas
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como participantes nos debates e autores do material impresso que
agora apresentamos.
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Na terceira e última parte da publicação, os promotores de
Justiça Eduardo Martines Júnior e Orlando Bastos Filho, ambos
professores de Direito Constitucional, dão uma verdadeira aula sobre
o tema “República e isonomia – licitação e sua inexigibilidade na
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contratação de serviços advocatícios pelo Poder Público” e Arthur Pinto
Lemos Júnior, promotor do Gaeco, ensina o caminho para quem
pretende investigar a lavagem de dinheiro no Brasil.
Nossos agradecimentos, ainda, aos autores dos demais
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estudos que integram a presente publicação, cuja colaboração
espontânea mostrou-se essencial para o sucesso dos seminários
promovidos e sem a qual esta Revista Jurídica não existiria.
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profissionais do Direito, encerro com a certeza de poder contar com a
colaboração de todos os colegas em futuras edições de nossa revista.
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LEI
“MARIA
DA PENHA”
PENHA”
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ERROS
Camilo Pileggi,
1º Promotor de Justiça
Criminal de Santana
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007 13
onde se dizia simplesmente: “Vocês farão uma doação de cesta básica para não
serem processados e ao final condenados. Alguém discorda ?”
Para o leigo, não há argumentos para se discordar.
Outras vezes, durante audiência preliminar, um conciliador ou um estudante de
Direito, sem a necessária visão social do problema, induz a um acordo de efeito
fictício, irreal, que termina no comprometimento vazio da “paz” no lar, que seria que-
brado na primeira bebedeira.
Como conseqüência do acordo, extingue-se o processo. Extingue-se a possibi-
lidade de encaminhamento para a solução do problema com visão da multi-
disciplinariedade. Extingue-se a credibilidade do sistema.
Pior ainda, quando não se consegue o aparente acordo, o “processo se extin-
gue” com a doação de uma cesta básica, que pode ser feita, por exemplo pela espo-
sa, porque ela é a única que trabalha, pois o marido ou companheiro está desempre-
gado e é alcoólatra. Assim, ela é vítima de lesão corporal e de desfalque financeiro em
seu lar.
É esta miopia social que gerou uma revolta contra a cesta básica, preconizada
pela Lei nº 9099/95.
Adequar uma medida socialmente justa e útil ao fato criminoso cometido é o
diferencial que se põe ao operador do Direito.
Muitas vezes a sociedade civil organizada (nem tanto organizada assim) tem
vontade de integrar o sistema de recuperação social, mas não sabe qual o caminho a
ser adotado. Do mesmo modo, Juizes de Direito e Promotores de Justiça, angustia-
dos pela falta de condições de trabalho, excesso no volume de feitos a sua aprecia-
ção, não vislumbram que o trabalho harmônico e integrado com estas organizações
poderiam ser sua alternativa penal.
Como a Lei nº 9099/95 não mereceu a devida atenção dos operadores do Direi-
to, a Lei 11.340/06 veio trazendo uma imposição contrária ao movimento mundial de
ressocialização, de menor intervenção estatal e de conciliação, para impor, através
do Direito Criminal ou Penal, um freio ou um temor para conter a violência doméstica
ou familiar.
Buscou o legislador, de maneira equivocada, impor a repressão para conter a
violência doméstica ou familiar, quando o caminho, com certeza, não é este.
Certo que motivos tinha o legislador para intervir nesta área, mas, como se diz:
“matou-se o paciente com o excesso de remédio”.
Entre homens e mulheres temos uma igualdade formal, advinda da Constitui-
ção Federal. A igualdade real está longe de retratar a realidade como pretende a Lei
Magna. Neste e em outros aspectos, paremos pois de ter atitudes hipócritas ou sim-
plesmente teóricas.
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A análise desta conduta deve ser cercada de sua seriedade, de sua constância
ou sua intenção. Nos conflitos familiares, invariavelmente, ofensas são proferidas.
Algumas são fruto de intempestividade verbal, outras de tanta insistência e reitera-
ção, podem incutir este dano emocional. Assim, a ponderação e o bom senso é o
caminho do operador do Direito neste campo.
Por fim, o inciso V, que define a violência moral, “como qualquer conduta que confi-
gure calúnia, difamação ou injúria.” Evidente que tal enumeração é apenas uma disposi-
ção sem qualquer utilidade, posto que o Código Penal já tipifica tais condutas.
Alguns podem considerar inútil a enumeração destas definições, mas a idéia
subjacente é o de cumprir as recomendações da Organização Mundial da Saúde.
Como se vê é mera enumeração exemplificativa e não “numerus clausus”.
Esta atenção, num primeiro momento, seria dada pela EQUIPE DE ATENDI-
MENTO MULTIDISCIPLINAR, integrada por profissionais especializados nas áreas
psicossocial, jurídica e de saúde, prevista nos artigos 29 a 32.
A equipe de atendimento multidisciplinar, entre outras atribuições que lhe forem
reservadas pela legislação local, deve “fornecer subsídios por escrito ao juiz, ao Ministério
Público e à Defensoria Pública, mediante laudos ou verbalmente em audiência, e desenvolver
trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltados para a ofendi-
da, o agressor e os familiares, com especial atenção às crianças e aos adolescentes”.
O que mais nos chama a atenção na atual disposição sobre a equipe
multidisciplinar é que atualmente os Juizados PODERÃO constituí-las, enquanto na
proposta original a sua existência era prevista e obrigatória (artigo 14 a 17).
O mesmo se observa com outras medidas que integrariam o sistema de aten-
dimento especial à mulher, como se vê dos artigos 34/36:
Este artigo se situa no Capítulo VIII, que trata Da Sentença e da Coisa Julgada,
na Seção I - Dos Requisitos e dos Efeitos da Sentença.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007 35
Importante, assim, salientar que a Lei prevê um sistema, uma rede de atendi-
mento. Com isto, todas as instituições e órgãos da Administração Pública devem
cumprir imediatamente o papel que lhe caiba, sob pena de se frustrar a intenção do
legislador.
Ainda visando a proteção da mulher, especialmente o seu patrimônio, a lei con-
fere ao Juiz poderes cautelares amplos, com reflexo em terceiros, o que, mais uma
vez, demanda cuidado e bom senso.
O art. 24 determina que para a proteção patrimonial dos bens da sociedade
conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar,
liminarmente a restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendi-
da (inciso I). Subentende-se que se tratam de bens particulares (pessoais) da vitima.
Mesmo aqueles que pertençam à sociedade conjugal, no momento em que se ultra-
passou a quota parte do agressor.
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Como vimos, a autoridade policial, assim que registrar o fato em boletim de ocor-
rência, deve tomar a termo o pedido de providências, juntar cópia do BO e todos os
documentos pertinentes que estão na posse da ofendida e imediatamente encaminhar
o expediente em apartado ao Juiz no prazo de 48 horas (artigo 12, inciso III e seu § 1º).
Insisto que este encaminhamento é crucial para a perfeita análise do requeri-
mento em sede Judicial. Daí porque o entendimento do Promotor de Justiça com o
Delegado de Polícia estabelecendo-se os requisitos que devem ser buscados para
aparelhar este pedido é primordial. Nada impede que a mulher seja orientada que
procure imediatamente o Promotor de Justiça, se se entender necessário.
Em igual prazo, deve o Juiz decidir o pedido sem a necessidade de se ouvir as
partes ou o Ministério Público (artigo 19, §1º), como se vê do artigo 18, além de adotar
outras medidas de caráter emergencial, como o encaminhamento da ofendida ao
órgão de assistência judiciária (vide artigo 27), quando for o caso e comunicar ao
Ministério Público para que adote as providências cabíveis, dando-lhe ciência das
medidas já adotadas. Além do réu e seu defensor, a ofendida deverá ser intimada de
todo ato processual, inclusive os atos processuais relativos ao agressor, especial-
mente os pertinentes ao ingresso e à saída da prisão.
Salutar seria a designação de audiência de justificação prevista no art. 804 do
CPC, para que a vítima, ou o Ministério Publico se requereu a medida, produzam
provas de sua pretensão. Esta audiência será necessária, pois a vítima normalmente
está procurando a Delegacia de Polícia, relata os fatos e o Delegado de Polícia ape-
nas reduz a termo a sua pretensão, encaminhando o pedido em 48 horas para o
Fórum. Este pedido não vem aparelhado com qualquer prova e mesmo a narrativa
dos fatos ainda é precária e sucinta.
Há quem argumente que se deve restringir a atuação preliminar judicial por
analogia ou nos moldes do artigo 130 do ECA (lei 8069/90 - Art. 130. Verificada a hipótese
de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsável, a autoridade
judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia
comum.). Tal postura não se compatibiliza com todos os poderes postos nas mãos do
Magistrado, com sua finalidade e abrangência, a qual pode ser vista nos artigos 22 a
24 da Lei.
Não se permite mais que a ofendida entregue a intimação ou notificação ao
agressor.
O Ministério Público tem legitimidade ativa para requerer medidas, mesmo que
não pleiteadas pela vítima diretamente, desde que estas sejam urgentes e necessá-
rias (artigo 19). A amplitude desta atuação deve ser muito bem balizada pela capaci-
dade e vontade da mulher. Ela não pode ser considerada incapaz porque a lei assim
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o diz. A incapacidade não se presume dos termos da lei e sim dos fatos postos à
análise do Promotor de Justiça, o qual deve verificar a sua vontade e a necessidade
de sua proteção. Esta substituição processual não pode acarretar a mulher mais
uma forma de subjugação e sim de proteção.
Nestes casos, a lei deixou mais do que evidente o poder geral de cautela do
Juiz, além de permitir que ele, de ofício, vele pela efetividade de suas decisões. Os §§
2º e 3º deixam claro que as medidas protetivas de urgência serão aplicadas isoladas
ou cumulativamente, e poderão ser substituídas a qualquer tempo por outras de mai-
or eficácia, sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou vio-
lados, podendo atingir não só a ofendida, mas seus familiares e seu patrimônio.
O Projeto de Lei da Câmara nº 37, de 2006, previa na fase inicial, após a deci-
são sobre as medidas protetivas pleiteadas, a designação de uma audiência prelimi-
nar (art. 18, inciso I – conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as medidas
protetivas, no prazo máximo de 48 h (quarenta e oito horas), designando, em segui-
da, audiência preliminar;)
Observe-se que a lei não estipulou prazo de duração ou eficácia da medida
cautelar deferida.
Há quem entenda tratar-se de medida cautelar própria, satisfativa, que perderá
sua eficácia ou sua validade quando decisão de juiz competente verter sobre a matéria.
Seus efeitos durarão enquanto estiverem presentes os seus requisitos de existência e
validade ou até a sobrevinda de provimento jurisdicional cível/família competente.
O grande cerne da questão é se esta medida for concedida “inaudita et altera
pars”, o agressor ficará tolhido de produzir sua defesa até que se intente medida
apropriada e definitiva no juízo civil ou de família competente.
Outra corrente entende que a eficácia da medida durará enquanto estiver em
tramitação a ação penal, já que esta vincula todo o Juizado.
Entretanto, não podemos esquecer que a medida tem caráter e efeitos civis,
vinculando-se a procedimento criminal que possui outra dimensão e outra objetivida-
de. Algumas medidas poderão afetar terceiros, alheios ao procedimento criminal, como
a revogação de procuração que interferirá em negócios jurídicos realizados, não se
permitindo, em princípio, o ingresso no processo criminal como um prejudicado ou
afetado. A questão criminal lhe é alheia. Certamente, o terceiro terá que se valer das
vias próprias para defender seus interesses.
Um ponto parece ser unânime: se o inquérito policial for arquivado, entende-se
que a medida deverá ser revogada dependendo da fundamentação do arquivamento.
Outros entendem que a medida perderá automaticamente sua vigência com o arqui-
vamento dos autos.
Por fim, à similitude com o processo civil, entende-se que a medida protetiva
terá eficácia por 30 dias, obrigando-se a vinda de uma ação principal.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007 39
Tal postura também não se coaduna. A fixação do prazo de trinta dias não pode
ser aceito, pois, por exemplo, a finalização do inquérito ou o trâmite da ação penal não
está colocada nas mãos da vítima. Daí se entende a posição que esta medida protetiva
seria sui generis e não meramente cautelar.
Toda medida cautelar, garantista ou protetiva, deve ser analisada de per si. A aná-
lise dos artigos 22 a 24 conduz ao raciocínio amplo, num pensar em rede de proteção.
Estamos diante de uma questão histórica e cultural, que exige o repensar de todos os
Operadores do Direito. Esta reavaliação, que passa por cursos de capacitação e
sensibilização pela questão de fundo, dará uma justa e ponderada decisão.
Fica evidente que o juizado especial tratará a matéria num primeiro momento
de urgência, preventivamente, visando evitar o perecimento de direito ou a ocorrência
de danos irreparáveis, evitando novos delitos.
Não se deu ao Juizado competência plena na área de família, podendo-se pro-
mover a separação, divórcio, regular alimentos e a guarda e a visita de filhos. As
medidas judiciais concedidas são provisórias, satisfativas por si mesmas, que
independem de uma ação principal naquele juízo (o criminal). A matéria de fundo deve
ser buscada e discutida em ação própria no juízo competente. Com isto, triste verifi-
car certas posturas de se remeter aos Juizados Criminais todo o acervo das Varas
de Família, ficando esta somente com as questões que não contenham litigiosidade.
A opção do legislador na criação dos Juizados de Violência Doméstica e Fami-
liar contra a Mulher, acometendo aos Juizados especiais provisoriamente estas fun-
ção, possui uma razão muito simples.
Os juizados especiais criminais, com o advento da Lei nº 9099/95, estão mais
afeitos a estas questões do que as Varas Criminais comuns, que sempre relegaram
a segundo ou terceiro plano, os delitos de menor potencial ofensivo, o que é um
grande erro, até Institucional, que permite que se desdenhe fatos sociais que ocor-
rem em mais de 95% das ocorrências infracionais. Os juizados especiais sempre
atentaram para estas questões, buscando soluções conciliadoras, mediadoras e
restaurativas das relações. É a sua vocação de origem.
Utilizou-se do argumento do menor volume de trabalho nos Juizados Especiais
em comparação ao realizado nas Varas Criminais o que não se justifica, pois o volu-
me de trabalho nos Juizados Especiais, quando executado no espírito norteador da
Lei 9099/95 acarreta volume expressivo.
Interessante observar que cada um procura esconder os seus, mas aponta os
defeitos dos outros. Faça-se uma auto-crítica e veja-se quem cumpre fielmente e na
medida de suas possibilidades, as suas funções profissionais.
Nesta quadra histórica, principalmente do Ministério Público, não é o momento
de empurrar o problema para o colega vizinho, mas meditar sobre suas funções cons-
titucionais, duramente conquistadas após décadas de intenso trabalho de gerações
de valorosos Promotores e Procuradores de Justiça que tiveram a visão de um Minis-
tério Público do futuro. Cabe às novas gerações não acreditarem que estas conquis-
tas são “cláusulas pétreas” constitucionais.
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Nos últimos tempos tenho ouvido que se o legislador foi tão claro no artigo 41, que
não cabe qualquer discussão, por qual razão insisto em dizer que a lei Maria da Penha
tem que ser salva, se foi exatamente a Lei 9099/95 que a colocou neste patamar?
Ledo engano, até histórico.
A mulher sempre foi vítima nas relações domésticas ou familiares.
Quando procurava a Delegacia de Polícia, registrava-se, se tanto, o fato em um
Boletim de Ocorrência e não se instaurava Inquérito Policial.
Sabia-se dos números da violência de gênero pela estatística paralela das enti-
dades que se debruçam sobre a questão.
Mesmo hoje não se faz o registro específico nas infrações penais desta nature-
za. Talvez iniciemos a tabulação destes dados, posto que a lei assim determinou,
como veremos adiante.
Com o advento da Lei 9099/95, não tendo mais que instaurar Inquéritos Polici-
ais, registrava-se o fato em um termo circunstanciado, parente próximo do boletim
de ocorrência, e se encaminhava as partes para o Fórum. Para a polícia, foi uma
grande solução.
Infelizmente, como já disse, o Ministério Público não soube aplicar a transação
penal (instituto que lhe é próprio), que deve ser adequada para cada fato social, indu-
zindo a aceitação de “cestas básicas”, apanágio das soluções de problemas e ícone
para a limpeza das pilhas de termos circunstanciados, inquéritos policiais e proces-
sos, pois temos a “síndrome do pilhismo”, síndrome da pilha de processos. Peço
vênia pela generalização.
Pior ainda quando a transação penal é realizada em um grande salão, anunci-
ando-se a doação de cesta básica para não se ver processar. Muito pior quando a
transação penal é realizada por estudante de último ano de direito ou conciliador sem
serem habilitados para tanto ou possuírem a sensibilização para o problema. Se tem
algo pior, temos quando não é o Ministério Público, (que não comparece às audiênci-
as), que formula a proposta de transação penal, ficando esta a cargo do conciliador.
São falhas na interpretação da lei. É descumprimento de atribuições funcionais
por comodismo, falta de condições para aplicabilidade ou de visão.
Daí porque houve a repugnância das entidades que defendem os interesses da
mulher em relação à lei 9099/95 e não sem razão. Mas não toda a razão.
Os Juizados especiais criminais lidam com a totalidade dos casos de violência de
gênero que lhe chegam ao conhecimento. Por óbvio que muitos não devem ser levados
ao seu conhecimento, daí a importância do controle externo da atividade policial.
Deste universo, uma pequena parcela resultou em uma desgraça, com a morte
da mulher depois de tanto apanhar ou com alguma necessidade de atendimento
especial.
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Muitas vezes, a mulher procura socorro dizendo: “olha doutor, ele é um bom
marido, mas quando bebe vira um diabo.”
Ou seja, a questão de fundo não é a lesão corporal, mas o alcoolismo, a depen-
dência a drogas ou até a necessidade de atendimento especializado por um psicólo-
go ou psiquiatra.
No mínimo, bastaria a interferência benéfica da equipe multidisciplinar para
mostrar ao agressor que a mulher deve ser respeitada como ser humano e que ela
não é um objeto que lhe pertence e dele pode fazer o que quiser. Que, daquele mo-
mento em diante, as suas ações seriam acompanhadas.
Insisto, trata-se de questão cultural que uma lei mal aplicada ou uma sentença
penal condenatória não resolverá. A mudança da mentalidade se fará paulatinamente.
Mas ainda assim, alguém poderá argüir: mas a lei foi clara ao banir a lei 9099/95
para estes casos.
Respondo que há inúmeros casos em que a lei foi descumprida, por ótimos
argumentos ou por construção jurisprudencial e mesmo assim estava escrito na lei
(representação para vias de fato, por exemplo; delito de menor potencial ofensivo
previsto na lei 9099/95, cujo parâmetro foi alterado e adotado costumeiramente, ante
o limite fixado pela lei dos Juizados Especiais Federais, quando esta dizia claramente
que se aplicada somente aos fatos de sua competência).
Os Operadores do Direito devem seguir a lei, que é um texto, mas dentro de um
contexto (histórico e cultural). Não sejam escravos de texto legal, como rábulas mo-
dernos. Não utilizem a simplista e cômoda interpretação literal do texto para negar ou
impedir eficácia ao contexto. A História não nos perdoará se perdermos este momen-
to impulsionado pelo debate evocado, de iniciarmos a mudança de mentalidade, de
conceitos, de comportamento e de atitudes.
As mulheres não estão mais se dirigindo aos Distritos Policiais com medo da
eventual prisão dos maridos e companheiros. Em alguns locais, os registros policiais
estão diminuindo. Em outros casos, presenciamos mulheres fazerem uma enorme
peregrinação para soltarem os maridos presos em flagrante, arbitrando-se enorme
fiança, a qual não poderia ser paga.
A mulher e seus filhos necessitam de amparo, que pode ser propiciado pelo
sistema ou pela rede de proteção previsto pela Lei 11.340/06.
Para os casos patológicos, com os quais tanto se batem, e com muita razão,
as entidades de defesa das mulheres, todos os rigores da lei, cujos mecanismos já
existem.
Basta a capacitação de todos os agentes envolvidos na questão, que poderão
ministrar adequados mecanismos a cada caso concreto.
Como já disse, está se matando o paciente com o excesso de remédio.
44 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007
Por outro lado, o inquérito policial será moroso, como sempre se caracterizou
de maneira geral, onde o tempo faz perder sentido a apuração dos fatos desta natu-
reza. Que importa para a mulher a apuração de uma agressão física quando o inqué-
rito é concluído após um ano? Podem argumentar que a medida cautelar adotada
anteriormente tem este efeito de bloquear a ação do tempo. Alerta-se, porém, que a
medida cautelar não tem a finalidade de resolver o conflito, apenas de evitar um mal
maior ou o acontecimento de novos delitos.
Voltaremos a verificar que inquéritos policiais nestes “crimes de bagatela” (?)
não serão instaurados, pois estas “bobagens” atrapalham a apuração de crimes mais
importantes. Teremos, assim, a volta de estatísticas oficiais e extra-oficiais (divulgadas
por associações ou ONG), pois não se registravam todos os fatos.
As ações penais serão públicas incondicionadas, remanescendo poucas con-
dicionadas á representação, o que será abordado mais a frente.
Assim, o juiz só poderá impor alguma medida restaurativa ou mediadora na
sentença, pelo que se depreende do artigo 17 da referida lei.
Para tanto, a mulher deverá manter a firme disposição de ver seu marido, com-
panheiro, filho, neto ou noivo processado, ao final condenado.
Não é isto que a realidade nos mostra.
A mulher que comparece ao Distrito Policial e ao Fórum, normalmente é pobre,
com mais de 3 filhos, que veio para os grandes centros por falta de opção. Algumas
residem num mesmo quintal com os demais “primos” ou parentes por afinidade. O
primeiro que chega, providencia acomodação para os demais que virão.
Uma constante se presenciava nas audiências de instrução antes do advento
da Lei nº 9099/95: negativa de existência da agressão; negativa de autoria ou até a
admissão de fato inverídico como a vítima lesionou-se porque bateu a cabeça na
mesa, pois escorregara quando lavava a cozinha, dentre outras “histórias”. Acabava
o Magistrado absolvendo por falta de provas ou por “política criminal”.
Na Promotoria de Justiça Criminal de Santana (zona norte da capital paulista)
demorou-se vários anos para convencer as mulheres que o oferecimento de repre-
sentação não acarretaria a prisão do marido ou companheiro, mas somente com
esta manifestação se poderia aplicar medidas restaurativas ou mediadoras.
Na atual quadra econômica do País, se está muito difícil conseguir um empre-
go, estando com “ficha limpa”, que dirá com uma condenação?
Que condições pessoais terá a mulher para manter a disposição de ver seu
companheiro processado e, ao final condenado? Somente aquelas que efetivamente
necessitam de atendimento de urgência preconizado por esta lei.
As demais, que é a grande maioria, necessitam de amparo de equipe
multidisciplinar e não de sentença condenatória, que pode agravar a situação de seu
relacionamento doméstico ou familiar.
46 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007
se poderá apurar lesão corporal dolosa leve decorrente de relações de gênero. Por
construção doutrinária e jurisprudencial, exigia-se representação para as contraven-
ções penais de vias de fato (art. 21 da LCP).
Para estas também se acabou esta exigência? Entendemos que não. E ainda
se deve oferecer representação ao delito de ameaça (art. 147 do CP), não atingido
pela nova Lei.
Mais ainda, nos crimes de ameaça é possível audiência para tentativa de tran-
sação penal, respeitada a vedação do artigo 17. Para as contravenções penais, o
mencionado dispositivo legal não as alcança, pois a lei determinou a inaplicabilidade
da Lei 9099/95 quando se trata de crime. Idêntico raciocínio, ou seja, de proteção à
mulher, deve ser feito quanto aos delitos contra a honra (art. 138/140 do CP), invasão
de domicilio (art. 150 do CP), dano (art. 163 do CP), atentado ao pudor mediante
fraude (art. 216 do CP) e assédio sexual (art. 216 A do CP).
A confusão parece crescer com os termos do artigo 16:
“Nas ações penais públicas condicionadas à representação
da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renún-
cia à representação perante o juiz, em audiência especial-
mente designada com tal finalidade, antes do recebimento
da denúncia e ouvido o Ministério Público.”
A representação possibilita a conciliação civil, atendendo aos interesses da viti-
ma que podem estar na esfera da reparação civil por danos materiais e morais.
A própria lei admite a existência de representação, quando elenca as provi-
dências policiais que devem ser tomadas, em seu artigo 12. No inciso I especifica:
“ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo,
se apresentada.”
O projeto original (PL 4559, de 2004) era mais claro quanto à necessidade de
representação em todos os delitos decorrentes de relações de gênero:
“Art. 30 – nos casos de violência domestica e familiar contra a
mulher a ação penal será publica condicionada a representação.”
No caso do artigo 16, ocorreu, mais uma vez, uma impropriedade técnica.
A renúncia só pode ser exercida antes do oferecimento da representação. Quan-
do esta é oferecida, só é cabível a retratação da representação.
Pode ser entendido que interpretar renúncia como retratação seria “in malam
partem”, ante os reflexos penais imediatos, o que me parece sem fundamento.
Explica-se: o artigo 16 disciplina que a renúncia (ato unilateral sem condiciona-
mentos) ao direito de representação só poderia ser dada em Juízo antes do recebi-
mento da denúncia. A renúncia à representação só é cabível quando esta não foi
oferecida. Acaso esta já tenha sido oferecida, só cabe retratação. Se renúncia só
48 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007
existe antes da representação. Portanto, o Ministério Público não poderia ter ofereci-
do denúncia sem a antecedente representação, como claro está o artigo 25 do CPP
(“A representação será irretratável, depois de oferecida a denúncia”).
Não se entende conclusão diversa, pois se obrigaria o Promotor de Justiça
oferecer denúncia que fica condicionada o seu recebimento a eventual manifestação
da vítima, em uma produção inútil de trabalho deste Órgão Estatal.
Em suma, deve-se entender que o artigo 16 da nova lei refere-se à retratação e
não à renúncia, seguindo-se as regras do artigo 25 do CPP. Críticas podem surgir ao
formalismo exigido para esta retratação, com a designação de uma audiência so-
mente para esta finalidade, quando para o oferecimento de representação não se
requer qualquer documento especial, bastando a mera manifestação de vontade da
vítima em ver seu ofensor processado, perante o Delegado de Polícia, Promotor de
Justiça ou Juiz de Direito. Este formalismo deve ser entendido como uma forma de
proteção à mulher que perante um magistrado, consciente dos objetivos da nova lei,
vai questioná-la sobre a sua livre vontade em se retratar ou se está sendo coagida ou
até enganada quanto às conseqüências de seu ato. Se depois de devidamente
esclarecida, a mulher continuar a desejar a retratação, nada poderá ser feito, mas
pelo menos foi devida, correta e tecnicamente esclarecida. Entendo que esta é a
intenção do legislador.
Fica claro que o legislador não aboliu a representação. Esta continua a ser
exigida nos demais casos não abrangidos pela Lei 9099/95, especialmente aos deli-
tos de ameaça (artigo 147 do Código Penal) e na contravenção penal de vias de fato
(artigo 21 da LCP).
Nestes casos, entendemos ser possível a elaboração de termos circunstancia-
dos e a designação de audiência preliminar, inclusive com proposta de transação
penal, respeitada a vedação constante no artigo 17 da lei.
Saliente-se que não se deve aplicar a lei 9099/95 naquilo que ela conflitar com a
presente lei.
Tem que ser entendido que representação é uma das formas que propicia o
acordo. É instituto de natureza processual, privativo do ofendido, que se não ofereci-
do, impede a persecução criminal. Esta prerrogativa é forte aliada para a mediação e
conciliação quando bem e corretamente utilizada.
Designada audiência preliminar, comparecendo as partes, tenta-se a concilia-
ção civil. Se esta for bem sucedida, homologa-se o acordo e há renuncia ao direito de
oferecer representação (artigo 74, Parágrafo Único da Lei nº 9099/95), cumprindo-se,
assim, o disposto no artigo 16 da citada lei.
Em muitas destas audiências se consegue atender os reclamos das vítimas,
atentando-se ao seu norte balizado no artigo 4º já comentado.
Infrutífero o acordo, a transação penal pode ser oferecida, com a proposta de
prestação de serviços à comunidade e, principalmente e por analogia, a limitação de
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007 49
Em caso de continuidade delitiva, aplica-se a nova lei, mesmo que mais grave,
ante a súmula 711 do STF: “A lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado
ou ao crime permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da continui-
dade ou da permanência”.
Há, agora, uma nova possibilidade de decretação de prisão preventiva.
O artigo 20, copiando os mesmos termos do Código de Processo Penal, dis-
põe que “em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá
a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento
do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial.”
O parágrafo único informa que a medida pode ser revogada se esta não mais
seja necessária, bem como pode ser novamente decretada se novas razões justifi-
carem o ato, numa cópia do artigo 316 do CPP.
As condições para a decretação da prisão preventiva são as preconizadas no
Código de Processo Penal, em qualquer fase do inquérito policial ou do processo,
para garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução
criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existên-
cia do crime e indício suficiente de autoria. Ademais, o Código impunha outras condi-
ções, que não se encontravam nos delitos cometidos nas relações de gênero.
Esta inovação alarga as possibilidades desta medida processual restritiva da
liberdade, pois o Código de Processo Penal só a admite nos crimes dolosos, punidos
com reclusão ou punidos com detenção desde que haja indício que o indiciado seja
vadio ou paire dúvida sobre sua identidade e não se fornecer elementos para seu
esclarecimento, bem como houver sido condenado por crime doloso anteriormente
(art. 313 do CPP).
Por isso, apenas os termos do artigo 20 trariam incompatibilidade, ante a pena
determinada para os delitos cometidos nas relações de gênero.
O legislador, então, acrescentou o inciso IV ao artigo 313 do Código de Proces-
so Penal:
“IV - se o crime envolver violência doméstica e familiar con-
tra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a
execução das medidas protetivas de urgência.”
Como em todas as outras hipóteses, em sendo necessário, decreta-se a medi-
da restritiva. Acaso esta não mais seja necessária, deve ser revogada.
Entretanto, esta medida restritiva de liberdade foi adotada para “garantir a exe-
cução das medidas protetivas de urgência.”
Como as medidas protetivas são de natureza civil e cautelares, seria uma prisão
de natureza civil e não penal, em que pese estar inserida no Código de Processo Penal.
52 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007
DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Uma outra tarefa é cometida ao Ministério Público, no art. 37, qual seja, a defesa
dos interesses e direitos transindividuais previstos nesta Lei, atuando concorrentemente
com associação de atuação na área, regularmente constituída há pelo menos um ano,
nos termos da legislação civil (em similitude à Lei nº 7347/85 - Ação Civil Pública, em
seu artigo 5º), cujo lapso temporal poderá ser dispensado pelo juiz quando entender
que não há outra entidade com representatividade adequada para o ajuizamento da
demanda coletiva.
A lei previu em suas Disposições Transitórias a acumulação de competência
civil e criminal das varas criminais para o processo e julgamento das causas decor-
rentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, enquanto não
estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, garan-
tindo o direito de preferência destas causas (artigo 33).
Nem é necessário ressaltar que estes Juizados de Violência Doméstica e Fa-
miliar contra a Mulher não serão criados de maneira genérica. O que acontecerá,
como já se fez no Estado de São Paulo, é alterar a competência das Varas Criminais,
com adequação da denominação, evitando-se gastos.
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por seu Órgão Especial, no dia
04 de Outubro de 2006, editou a resolução nº 286/06, ante a necessidade de
redistribuição das competências nas Varas Criminais dos Foros Regionais, com a
criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, por força do
disposto na Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006, alterando a competência destas
varas e alterando sua denominação, passando a chamar-se Vara Criminal e do
Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Foro Regional.
Urge que tenhamos a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher, devidamente integrados por profissionais de diversas áreas (equipe
multidisciplinar), pois enquanto houver a acumulação de competência com as Varas
Criminais ou com os Juizados Especiais Criminais, sem sua integração ao sistema
ou rede de proteção, nada de mais concreto visualizaremos, a não ser experiências
isoladas mas que não traduzem a realidade (Art. 33. Enquanto não estruturados os Juizados
de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as compe-
tências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência
doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada
pela legislação processual pertinente.).
Quanto ao direito de preferência para o processo e o julgamento que estas
causas possuem, por força do Parágrafo Único do artigo 33, nas varas criminais, terá
que ser adequado ante a existência de outras preferências legais, como os proces-
sos dos Idosos, além dos processos de réus presos.
À evidência que este texto não encerra verdades absolutas, mas pretende que
a violência nas relações de gênero seja discutida com amplitude e profundidade.
Não pode encerrar debate circunscrito a apenas uma parcela do universo esco-
lhido pelo legislador, mas deve abranger-lhe o seu máximo possível.
56 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.11-56, janeiro/junho-2007
Não pode considerar que apenas um setor da sociedade pode manietar as va-
riáveis da questão para resolvê-las com mecanismos ultrapassados e desfocados
de seu cerne. O inquérito policial da Polícia Judiciária, a denúncia do Ministério Públi-
co e a sentença penal condenatória do Poder Judiciário não guardam o poder alquímico
almejado. Eles têm sua importância, que é grande, quando coordenados com outros
mecanismos e quando utilizados no momento oportuno. Em certos casos, somente
estes mecanismos devam ser utilizados, mas não de maneira generalizante.
A violência nas relações de gênero é histórica, cultural e mundial. No Brasil,
alie-se o gravame da desigualdade social, em todos os sentidos. O Direito Penal, em
que pese aparecer no natural movimento pendular que envolve o debate, não pode
ser utilizado como meio de pressão e terror para mudanças desta magnitude.
A questão atinge a todos da sociedade e nos obriga.
Camilo Pileggi,
1º Promotor de Justiça Criminal de Santana
ASPECT OS
ASPECTOS
POLÊMICOS
ASPECTOS POLÊMICOS
SOBRE A LEI N. 11.340,
DE 7 DE AGOSTO DE 2006
(que cria mecanismos para coibir a
violência doméstica e familiar contra a mulher)
eram suficientes para punir o agressor adequadamente e nem servia como efeito
pedagógico, razão pela qual se criou a presente lei com o fim de aumentar a pena e
afastar a aplicabilidade da Lei n. 9.099/95.
Com o advento desta lei, não mais prevalece à velha máxima: “Em briga de
marido e mulher não se mete a colher”.
poderá designar audiência preliminar de justificação para a oitiva das partes e, eventu-
almente, colher a desistência ou a retratação da representação colhida na delegacia de
polícia ou a renúncia caso não tenha sido apresentada na época (art. 12, I).
As medidas protetivas de urgência têm caráter provisório e não definitivo. E
uma vez deferidas as medidas solicitadas, os autos permanecerão em apartados ao
inquérito policial, podendo a ofendida propor a ação principal no seu domicílio ou de
sua residência, no lugar do fato em que se baseou a demanda ou do domicílio do
agressor (art. 15). É importante ressaltar que a Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006,
não transformou o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher em
Vara de Família. Ao revés, permitiu que o juiz criminal pudesse conceder certas me-
didas, em caráter de urgência, de natureza cível, tão somente. Caso não fosse as-
sim, não haveria possibilidade de se proteger a mulher eficazmente, pois tais medi-
das só poderiam ser concedidas através do devido processo de separação judicial,
nos termos do Código Civil (Título IV – Do Direito de Família, tais como, alimentos
definitivos, separações judiciais, divórcios, anulação de atos jurídicos etc.).
De observar-se que a lei ampliou a competência do Juizado de Violência Do-
méstica e Familiar contra a Mulher somente para a concessão das medidas de ur-
gência. Aliás, cessadas tais medidas, prossegue-se o inquérito policial, o qual pode-
rá, inclusive, ser arquivado. Nesse caso, perdem-se os efeitos das medidas eventu-
almente concedidas.
Somente a Lei de Organização Judiciária poderia, ad argumentantum tantum,
ampliar a competência ratione materiae das Varas Criminais. Acredito que dificilmen-
te o Tribunal de Justiça manteria a Vara da Família e o Juizado de Violência Familiar
contra a Mulher com competência para processar, julgar e executar o mesmo tipo de
matéria. Caso isso ocorresse as Varas de Família perderiam a razão de ser pelo
esvaziamento dos processos, eis que a maioria das ações decorre de violência do-
méstica. Suponha-se que a vítima comunique a violência doméstica sofrida à autori-
dade policial, dando-se início ao investigatório. Na audiência preliminar, ela afirma que
não quer processar criminalmente o agressor e desiste ou se retrata da representa-
ção. O Juizado ficará prevento para apreciar a ação civil de separação judicial? E se
houver litígio, o Juizado deverá produzir as provas e, ao final, decretar a separação
nos termos da legislação específica civil, servindo a decisão como título executivo
passível de averbação no cartório competente? Isso significa em transformar o Juizado
em Vara de Família. Não foi este o objetivo da lei.
A título ilustrativo, trouxemos decisão prolatada no dia 25 de outubro de 2006,
em que o MM. Juiz da 2ª. Vara Criminal e do Juizado de Violência Doméstica e Fami-
liar contra a Mulher do Foro Regional de Penha de França, Dr. Jorge Carlos de
Araújo, suscitou conflito de competência porque o MM. Juiz da 1ª. Vara da Família e
Sucessões deste Foro Regional, havia remetido os autos de uma Ação Cautelar de
Separação de Corpos para nova distribuição a 2ª. Vara Criminal, por entender inci-
dente o art. 33 da Lei n. 11.340/06. Em sua decisão, o Juiz da 1ª. Vara Criminal alega
que: “com todo o respeito que este Juízo tem pelo r. Juízo da 1ª Vara da Família e
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.57-73, janeiro/junho-2007 65
Sucessões deste Foro Regional, não se vê lógica e amparo jurídico, para que o R.
JUÍZO CONSTITUCIONALMENTE NATURAL, que é o citado JUÍZO DA FAMÍLIA E
SUCESSÕES, a quem, diga-se de passagem, originalmente foi distribuído o feito,
JUÍZO A QUEM INCUMBIRÁ DECIDIR AS CAUSAS PRINCIPAIS, SE DÊ POR IN-
COMPETENTE, com determinação de remessa a este Juízo Criminal, que detém,
como já sobejamente referido acima, mera competência, emergencial e supletiva”
(Autos de processo n. 006.06.4127-2, controle 535, 2ª. Vara Criminal e do Juizado de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – Foro Regional Penha de França.
De observar-se que essa lei procura apenas viabilizar as necessidades imedi-
atas da mulher - vítima de violência doméstica e familiar -, dando-se prioridade no
cumprimento das medidas de urgência e permitir a aplicação eficaz das penalidades
sócio-educativas ao agressor. Vê-se, ainda, que a lei garante o direito de preferência,
nas varas criminais, para o processo e o julgamento das causas decorrentes de
violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 33, parágrafo único).
Os arts. 13 e 14, da Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006, foram redigidos de
maneira confusa, podendo levar o interprete a erro insanável. A interpretação dos dispo-
sitivos não pode ser feita isoladamente, mas de maneira sistemática, ou seja, deve ser
conjugado com outros artigos da lei e do ordenamento jurídico vigente com vistas aos
fins sociais e as condições peculiares da mulher (art. 4º). Referida lei procura conciliar
as medidas de natureza civil com as de caráter criminal, tão somente, para atender as
necessidades imediatas da mulher – vítima dessa violência. Uma vez cessados os
motivos que levaram a concessão dessas medidas de urgência, encerra-se também a
competência civil, cuja questão deverá se deslocar para o foro competente.
4.1. Competência
Família e Sucessões), a qual está bem mais estruturada para apreciar as questões
cíveis. Caso contrário, poderá causar uma confusão na aplicação da legislação sem
precedentes, podendo haver, por via de conseqüência, uma enxurrada de recursos
ora com fundamento na legislação penal ora na cível.
Como já afirmamos anteriormente, somente a Lei de Organização Judiciária
poderia estabelecer critérios objetivos de competência (ou distribuição de proces-
sos) para a atuação do Juizado que acumularão atribuições na esfera cível e criminal
sem ferir as regras da legislação pertinente.
2
. Maria Berenice Dias, Nova lei coíbe violência doméstica e familiar contra mulher, Consultor Jurídico, 8 de
agosto de 2006.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.57-73, janeiro/junho-2007 67
O Ministério Público é sempre parte nas causas criminais e, com mais razão, na-
quelas relacionadas com a violência doméstica e familiar contra a mulher. Na esfera civil,
o Ministério Público atua como mero fiscal da lei, ou seja, como custos legis (art. 25).
Esta lei trouxe maior responsabilidade ao órgão ministerial, atribuindo-lhe as
seguintes incumbências: a) requisitar força policial e serviços públicos de saúde, e
educação, de assistência social e de segurança, entre outros; b) fiscalizar os estabe-
lecimentos públicos e particulares de atendimento à mulher em situação de violência
doméstica e familiar, e adotar, de imediato, as medidas administrativas ou judiciais
cabíveis no tocante a quaisquer irregularidades constatadas; e c) cadastrar os casos
de violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 26).
Este dispositivo realmente ampliou as atribuições do Ministério Público na esfe-
ra administrativa. Assim, ao atender a ofendida em seu gabinete, o Promotor de Jus-
tiça poderá também requisitar força policial para fazer cumprir as medidas, além
daquelas arroladas na lei, ou quaisquer outras que reputar importante para atender as
necessidades da ofendida.
Deverá também fiscalizar as entidades criadas para o atendimento à mulher
em situação de violência, que deverá ser criadas pelo Poder Público. Para isso será
necessário ter na Promotoria de Justiça livro próprio para registrar as visitas e, cons-
tatadas irregularidades, deverá propor as medidas administrativas ou ações cabíveis.
Por fim, o Ministério Público deverá manter um arquivo e nele registrar todos os
casos, cadastrando-os para posterior análise e pesquisa ou medidas que poderão
ser adotadas na órbita externa como políticas públicas a serem implementadas pelo
Poder Público.
70 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.57-73, janeiro/junho-2007
Com exceção das hipóteses previstas no art. 19, o advogado deverá estar pre-
sente em todos os atos processuais cíveis ou criminais relacionados à violência do-
méstica ou familiar contra a mulher (art. 27).
A mulher deverá, nesta lei, ter um tratamento diferenciado (humanizado) por parte
de todos aqueles que atuarem em seu favor, especialmente os funcionários públicos.
Será ainda garantida a mulher, vítima dessa violência, o acesso aos serviços da Defensoria
Pública e de Assistência Judiciária Gratuita, em sede policial ou judicial (art. 28).
Não se discute mais sobre a situação econômica da mulher, pois esta violên-
cia, via de regra, ocorre em todos os níveis e classes sociais. E se a separação
ocorrer, será, via de regra, litigiosa.
O art. 44, da Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006, alterou novamente o art. 129,
§ 9º, do CP, agravando a pena que era de 6 (seis) meses a 1 (um) ano para 3 (três)
meses a 3 (três) anos, com a finalidade de se evitar a aplicabilidade de transação
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.57-73, janeiro/junho-2007 71
penal. Assim ficou a nova redação: “Se a lesão for praticada contra ascendente, des-
cendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido,
ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de
hospitalidade: Pena – detenção de 3 (três) meses a 3 (três) anos”. Citado dispositivo
acrescentou também o § 11, com a seguinte redação: “Na hipótese do § 9º deste
artigo, a pena será aumentada de um terço se o crime for cometido contra pessoa
portadora de deficiência” (art. 44).
Registre-se que citado artigo havia sido alterado anteriormente através da Lei n.
10.866, de 17 de junho de 2004, que teve curta duração.
Referido dispositivo acrescentou ainda uma modalidade de agravante contida
na parte geral do CP, em seu art. 61, com a seguinte redação, caso o delito tenha sido
cometido: “f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas,
de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei
específica” (art. 44).
A questão que fica é: por que o legislador diminuiu a pena mínima e aumentou a
máxima se o objetivo da lei visava o seu endurecimento? É sabido que o juiz costuma
aplicar a pena no seu mínimo legal? Em tese, retornou a pena mínima prevista no
caput do art. 129 do CP de 1940.
A Lei também alterou o art. 152, parágrafo único, da Lei de Execução Penal (Lei
n. 7.210, de 11 de julho de 1984), com a seguinte redação: “Parágrafo único. Nos
casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz poderá determinar o compareci-
mento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação” (art. 44).
Todas estas alterações tiveram por objetivo agravar a tipificação penal quando
se tratar de violência doméstica e familiar cometido contra a mulher.
Não há, como se vê, qualquer dúvida na sua aplicabilidade.
Isso faz-nos reportar a controvérsia que surgiu com o advento da Lei n. 10.259/
2001, que ampliou o conceito de infração de menor potencial ofensivo para abranger
a pena máxima não superior a dois anos, cuja aplicação estava restrita somente na
esfera federal. Já a Lei n. 9.099/95, permitia a transação penal desde que a pena
máxima não fosse superior a um ano, aplicando-se somente na esfera estadual. A Lei
n. 10.259/01 também impedia sua aplicação na esfera estadual, razão pelas quais
muitas ações foram propostas pelo Ministério Público, pois alguns membros eram
manifestamente favoráveis à aplicação da Lei n. 10.259/2001 na esfera estadual e
outros entendiam que não se aplicavam por expressa determinação legal. Prevale-
cendo, ao final, o entendimento jurisprudencial no sentido da aplicação da lei federal
na esfera estadual pelos Tribunais de todo o Brasil. Nesse meio tempo, adveio Lei n.
11.313, de 28 de junho de 2006, restabelecendo a normalidade jurídica.
Não podemos permitir tamanha injustiça, mesmo porque seria inconcebível que
a interpretação da lei fosse feita de maneira isolada. A interpretação da lei deve ser
sistemática, observando-se os fins sociais pelas quais ela foi criada e as peculiarida-
des das condições da mulher.
Partindo-se do princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, entendemos
que seria admissível, ao menos, a aplicação da suspensão do processo, pois mes-
mo que se consiga a punição do agressor, a pena não seria diferente daquela contida
na Lei n. 9.099/95, aplicando-se os benefícios do sursis - suspensão condicional da
pena (art. 77 do CP).
Trata-se de uma medida perfeitamente admissível e conforme com os objetivos
da lei. Não se admitiria, no entanto, a transação penal consistente na concessão de
cestas básicas – prestação pecuniária – ou a substituição de pena que implique o
pagamento isolado de multa (art. 17).
10. CONCLUSÃO
A Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006, tem por escopo coibir a violência doméstica
e familiar contra a mulher. No entanto, muitos dispositivos foram redigidos de maneira
confusa e assistemática, contrariando vários princípios e algumas normas específicas.
No entanto, a lei procurou dar cumprimento aos documentos internacionais e
normas constitucionais. A sociedade ansiava pela sua criação. Comprovou-se, nos
dias de hoje, que a mulher continua sendo vítima dentro da sua casa e também fora
dela. A mulher, além disso, ainda hoje sofre discriminação no trabalho e na sociedade.
A lei não vai resolver outros problemas de cunho social e cultural, mas poderá
ser o primeiro passo para o convívio harmonioso da mulher com seus familiares,
dando-lhe a segurança de que o poder público lhe atenderá quando forem solicitadas
as medidas nela contidas.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.57-73, janeiro/junho-2007 73
Nesse sentido, esclarece Fernando Vernice dos Anjos que o combate à violência
contra a mulher depende, fundamentalmente, de amplas medidas sociais e profundas
mudanças estruturais da sociedade (sobretudo extrapenais). Como afirmamos, a nova
lei acena nesta direção, o que já é um bom começo. Esperamos que o poder público e
a própria sociedade concretizem as almejadas mudanças necessárias para que pos-
samos edificar uma sociedade mais justa para todos, independentemente do gênero.
Desta forma, o caráter simbólico das novas medidas penais da Lei n. 11.340/06 não
terá sido em vão, e sim terá incentivado ideologicamente medidas efetivas para solu-
cionamos o grave problema da discriminação contra a mulher”3.
As questões levantadas neste trabalho estão longe de serem resolvidas. Há
muitos pontos polêmicos que só serão solucionados pelo Poder Judiciário. No entan-
to, deixamos aqui um canal aberto, dando-se início aos debates.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANJOS, Fernando Vernice dos. Direito penal simbólico e lei de combate à violência doméstica
e familiar contra a mulher. Boletim do IBCCRIM n. 167, ano 14, outubro/2006, p. 10.
BARROS, Marco Antonio de. A nova lei que coíbe a violência doméstica e familiar contra a
mulher: um novo retrocesso. Biblioteca LEX – Legislação e Jurisprudência Consolidada 20/10/
2006, site: http://www.lex.com.br/noticias/artigos/default.asp?artigo_id=258
DIAS, Maria Berenice. Nova lei coíbe violência doméstica e familiar contra mulher, Consultor
Jurídico, 8 de agosto de 2006
PASINATO, Wânia. Justiça para todos: os Juizados Especiais Criminais e a violência de gêne-
ro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 53, mar-abr/2005, p.201/239.
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Tipificação criminal da violência de gênero: paternalismo
legal ou moralismo penal? Boletim do IBCCRIM n. 166, ano 14, setembro/2006.
3
. Direito Penal simbólico e lei de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, IBCCRIM n. 167,ano 14,
outubro/2006, p. 10).
AL GUMAS
ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
SOBRE A LEI DE
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Não é de hoje que leis inaplicáveis em sua integralidade vêm sendo elaboradas.
Em 1.995 foi publicada a Lei do Crime Organizado (Lei nº 9.034/95), que em
muitos de seus aspectos não vingou, como se fosse da natureza da lei “pegar” ou
não. No entanto, a figura do Juiz investigador certamente não poderia ser aceita pela
comunidade jurídica.
Mais recentemente foi sancionada a Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2.006,
que trata da violência doméstica e familiar contra a mulher.
O artigo 5º da Lei diz que configura violência doméstica e familiar contra a mu-
lher qualquer ação ou omissão que propicie a morte, lesão, sofrimento físico, sexual
ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espa-
ço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo fa-
miliar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade for-
mada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, uni-
dos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor con-
viva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de
coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo
independem de orientação sexual.
O artigo 7º, por sua vez, diz que são formas de violência doméstica e familiar
contra a mulher, dentre outras:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofen-
da sua integridade ou saúde corporal;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que
lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que
lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise
degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e
decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação,
78 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.75-82, janeiro/junho-2007
laço de parentesco, desde que a vítima seja mulher. Disso decorre que até a mulher
pode ser sujeito ativo, mas a vítima será sempre a mulher.
Os crimes podem ser desde uma simples lesão corporal leve ou ameaça até
um estupro ou homicídio, além de delitos patrimoniais como o furto.
Constatada a violência doméstica ou familiar, o juiz, sem a necessidade de
ouvir o Ministério Público, no prazo de até 48 horas, poderá aplicar, dentre outras,
liminarmente, qualquer das medidas protetivas de urgência previstas no artigo 22 da
Lei, conjunta ou separadamente. São elas:
I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com
comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei no 10.826,
de 22 de dezembro de 2003;
II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a
ofendida;
III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das tes-
temunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes
e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas
por qualquer meio de comunicação;
c) freqüentação de determinados lugares a fim de preser-
var a integridade física e psicológica da ofendida;
IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores,
ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;
V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
§ 1o As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação
de outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segu-
rança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a
providência ser comunicada ao Ministério Público.
Para fazer valer as referidas medidas poderá o Magistrado requisitar auxílio
policial (art. 22, § 3º) e, em qualquer fase do inquérito ou processo, decretar a prisão
preventiva do agressor (art. 20 c.c. o art. 313, IV, do CPP com a nova redação dada
pelo artigo 42 da Lei nº 11.340/2006).
O legislador criou uma espécie de prisão preventiva satisfativa, ou seja, que não
visa assegurar a eficácia de um provimento jurisdicional. A prisão preventiva tem e sempre
terá caráter cautelar e tem por função o bom andamento do processo e a aplicação de
uma sentença penal condenatória. Ela visa apenas garantir a ordem pública ou econô-
mica, assegurar a aplicação da lei penal ou para a conveniência da instrução criminal.
80 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.75-82, janeiro/junho-2007
Não pode ser criada uma espécie de prisão preventiva que tenha por finalidade
não o processo em si, mas a garantia da execução das medidas protetivas de urgên-
cia, que poderão não interferir no normal andamento processual.
Somente a título de argumentação, suponhamos que o marido agressor não
aceite parar de freqüentar um clube em comum com a ofendida. A Lei, no caso, pos-
sibilita ao Magistrado decretar a prisão preventiva do marido. Além de o marido
estar sendo tolhido de freqüentar um lugar público ou privado, violando sua liberdade
de ir e vir, está sendo preso por não cumprir uma ordem judicial sem que tenha sido
processado e condenado por crime de desobediência, que é de pequeno potencial
ofensivo e dificilmente redundaria em condenação à pena privativa de liberdade.
Além disso, não é possível ao agressor ser beneficiado pelos institutos
despenalizadores do Juizado Especial Criminal, ou seja, responderá a processo cri-
minal que poderá levar a uma condenação com todas as suas conseqüências penais
(art. 41). E na mesma situação, caso o agressor fosse a mulher, e a vítima homem,
poderia ser beneficiada pela transação penal ou suspensão condicional do processo.
A lei penal, que sempre foi genérica e impessoal, está sendo empregada para
beneficiar uma classe de pessoas (mulheres) e prejudicar outra (homens).
A nova Lei viola fragrantemente o princípio da isonomia, uma vez que homens e
mulheres estão sendo tratados de maneira totalmente diferente em situações iguais.
Embora não seja comum, há casos em que as agressões domésticas ou familiares
têm como vítimas homens e agressores mulheres.
Suponhamos o seguinte caso: o marido ameaça a esposa. Ela se dirige ao
Distrito Policial e narra os fatos ao Delegado, que representa ao Juiz solicitando a
adoção de medidas protetivas. O Juiz as defere, determinando o afastamento do
marido do lar conjugal e fixa alimentos provisórios. Determina, ainda, que o marido
não se aproxime da esposa e nem dos filhos, ficando proibido qualquer tipo de comu-
nicação com sua família e a freqüência a lugares em que esposa costuma ir, sob
pena de decretação da prisão preventiva. Além disso, embora o crime seja punido
com pena inferior a dois anos, o agressor deverá ser julgado de acordo com o proce-
dimento comum, não se lhe aplicando os dispositivos da Lei nº 9.099/95. Por outro
lado, se a ameaça partisse da mulher, o máximo que poderia ocorrer é ela ser sub-
metida ao procedimento previsto na Lei nº 9.099/95.
Além das medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor (art. 22), a
Lei prevê medidas de proteção à pessoa da ofendida que poderão ser aplicadas pelo
Magistrado sem prejuízo de outras (art. 23). São elas:
I - encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial
ou comunitário de proteção ou de atendimento;
II - determinar a recondução da ofendida e a de seus dependen-
tes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor;
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.75-82, janeiro/junho-2007 81
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA:
POSSIBILIDADE JURÍDICA DA
NOVA HIPÓTESE DE PRISÃO
PREVENTIVA À LUZ DO
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL
DA PROPORCIONALIDADE
RESUMO
A nova hipótese de prisão preventiva estabelecida pela Lei 11.340/06 não en-
contra reprovação no arcabouço legal capitaneado pelo artigo 312 do Código de Pro-
cesso Penal, nem na Constituição Federal.
Houve adequação sistemática da prisão ante tempus.
O estágio técnico-jurídico e social atuais indicam a adequação da prisão – con-
dicionada temporalmente ao tempo mínimo de prisão cominada à conduta optada –
como medida idônea a garantir efetividade às medidas de proteção instituídas pela
Lei Maria da Penha.
Ademais, não há em nosso ordenamento outro meio idôneo a garantir a digni-
dade da mulher em situação de violência doméstica, de modo que se deve atribuir
maior peso a seu direito à integridade, à vida mesmo, em detrimento da episódica
restrição da liberdade do agressor.
Palavras-chave: violência doméstica. Prisão preventiva. Possibilidade jurídica.
Princípio constitucional da proporcionalidade: adequação dos meios aos fins e menor
restrição possível.
1. INTRODUÇÃO
2. COLOCAÇÃO E DEBATE
1
Art. 20. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor,
decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade
policial.
Parágrafo único. O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no curso do processo, verificar a falta de motivo
para que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.
2
Recasens Siches foi haurir no Iluminismo do século XVIII, no racionalismo de Kant, a expressão hoje tão
difundida: “A lógica do Direito é a lógica do razoável”: in Razoabilidade versus proporcionalidade. Disponível em:
. Acesso em: 11 dez. 2006.
3
Como leciona CHAIM PERELMAN.
4
Teoria do ordenamento jurídico. 9ª ed.. Brasília: Editora UNB; 1997; pp. 71/74.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007 87
das fontes autorizadas, mas será necessário também mostrar que ela
não é incompatível com outras normas. Nesse sentido, nem todas as
normas produzidas pelas fontes autorizadas seriam normas válidas,
mas somente aquelas compatíveis com as outras”.
Mais adiante, após apresentar com clareza impar as antinomias jurídicas, sali-
enta a insuficiência dos critérios tradicionais de interpretação: verificação da
contemporaneidade das normas, bem como de sua hierarquia e de se tratar de nor-
mas gerais ou especiais, pois são possíveis, sem prejuízo de qualquer natureza,
contradições valorativas intestinas.
Acrescenta, em lição pertinente, que o dever de coerência, portanto, não é con-
dição de validade, mas de justiça do ordenamento 5.
Justiça é daquelas definições altamente controvertidas em Direito. Entretanto,
sem maiores digressões, por exemplo, a respeito de sua coincidência com a moral,
como quis KELSEN 6, é possível entendê-la, ao menos de um ponto de vista prático,
como atenção aos princípios gerais do Direito. Essa é a lição de OTFRIED HÖFFE,
professor honoris causa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul:
Em estilo claro e sintetizado de modo aforístico, como que talhado em
pedra, eles declaram: ‘As prescrições do direito são estas: viver ho-
nestamente, não lesar ninguém, dar a cada um o que é seu’.
(...)
De acordo com entendimento convencional, os três princípios afirmam
essencialmente a mesma coisa. O primeiro, ‘vive honestamente’ (honeste
vive), ordena uma probidade que consiste, em sua determinação nega-
tiva, na proibição ‘não leses ninguém” (neminem laede) e, positivamen-
te, no imperativo ‘dá a cada um o que é seu’ (suum cuique tribue)” 7.
5
Teoria do ordenamento jurídico. 9ª ed.. Brasília: Editora UNB; 1997; pp. 71/114, notadamente p. 113.
6
Teoria pura do Direito, Martins Fontes, São Paulo: 2000, p. 71.
7
O que é Justiça?, tradução de Peter Naumann, Coleção Filosofia, nº 155, Editora EDIPUCRS, Porto Alegre: 2003, p. 57.
88 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007
8
ENGISH, Karl; Introdução ao pensamento jurídico. Edição Fundação Calouste Gulbenkian, tradução do original
em alemão. Lisboa: 2001; p. 316.
9
BRAGA, Valeska e Silva; Princípios da proporcionalidade e da razoabildade.Curitiba: Juruá; 2004; p. 49 e 55/57.
10
Roteiro de lógica jurídica, 4ª ed., Saraiva: São Paulo, 2001, p. 85.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007 89
11
A liminar do Ministro Marco Aurélio que permitiu o aborto de fetos anencefálicos. Jus Navigandi, Teresina, ano
8, n. 413, 24 ago. 2004. Disponível em: . Acesso em: 11 dez. 2006.
12
Mirava-se a proteção do patrimônio – motivo que animou a vedação à separação judicial e ao divórcio, bem como
era o móvel das classificações discriminatórias dos filhos.
13
Elemento que não pode ser suprimido sem acarretar alteração substancial no seu conteúdo e em sua estrutura.
Ou melhor, razão de ser da previsão do direito.
14
Constituição Federal, art. 1º, inc. III (Fundamento da República) e art. 226, caput e respectivo §7º
90 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007
15
CHAVES DE FARIAS, Cristiano e ROSENVALD, Nelson. Direito Civil – teoria geral. 4ª ed., Rio de Janeiro: Lúmen
Júris; 2006; pp. 91/93. No mesmo sentido, LUIZ RÉGIS PRAZO, que leciona que a dignidade da pessoa humana
“não se trata de simples criação legislativa, porquanto apenas se reconhece no texto constitucional a eminência
da dignidade como valor (ou princípio) básico, cuja existência, bem como o próprio conceito de pessoa humana,
são dados anteriormente, aferidos de modo prévio à normação jurídica. Como postulado fundamental, peculiar ao
Estado de Direito democrático, a dignidade da pessoa humana há de plasmar todo o ordenamento jurídico positivo
– como dado imanente e limite mínimo vital à intervenção jurídica. Trata-se de um princípio de justiça substancial,
de validade a priori, positivado jurídico-constitucionalmente” (Curso de direito penal brasileiro. 3ª ed., São Paulo:
RT; 2002, pp. 115/116).
16
Única razão possível para admitir-se a desequiparação feita pela lei entre mulher vítima e o homem eventualmen-
te na mesma situação.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007 91
17
Súmula 09: exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de
inocência.
92 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007
(C) A sistemática legal da prisão cautelar indica que são óbices a sua
admissibilidade: (i) tratar-se de crime culposo ou não punido com reclusão (CPP, art.
313); (ii) que a pena de reclusão cominada seja de tal monta que, tendo em vista o
regime prisional a ser aplicado, a prisão cautelar seja mais grave que a sanção eleita
pelo legislador, o que faz incidir a reprovação do princípio da proporcionalidade, pois o
meio empregado – prisão – é inadequado aos fins da Jurisdição, uma vez que o
convívio social do agente não foi considerado pernicioso, em abstrato.
Pois bem, não vemos incompatibilidade entre a nova possibilidade de prisão
cautelar para assegurar o cumprimento e efetividade das medidas de proteção descri-
tas na Lei Maria da Penha e a sistemática legal e constitucional da prisão ante tempus.
Veja-se a redação do art. 42 da citada Lei:
Art. 42. O art. 313 do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de
1941 (Código de Processo Penal), passa a vigorar acrescido do se-
guinte inciso IV:
”Art. 313.... . .............................................
................................................................
IV - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a
mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das
medidas protetivas de urgência.” (NR)
Decorre da subordinação do teor das partes do artigo ao contido em sua cabe-
ça, como impõe o art. 10 da Lei Complementar 95/98, que nos crimes dolosos puni-
dos com detenção, como, v.g., a lesão corporal leve perpetrada em situação de vio-
lência doméstica – hipótese estatisticamente mais relevante – a sistemática
infraconstitucional foi adaptada às pertinentes críticas da doutrina quanto à improprie-
dade das medidas despenalizadoras da Lei 9.099/95 no caso 19, e que o rito ainda
18
RHC 202/SP, Rel. Ministro EDSON VIDIGAL, QUINTA TURMA, julgado em 18.09.1989, DJ 21.05.1990 p. 4435.
19
GOMES, Luiz Flávio. Violência Doméstica: mais uma lei puramente simbólica, Revista Síntese de Direito Penal
e Processual Penal, ano V, nº 27 – ago-set 2004, pp. 7/8. No mesmo sentido EVANGELISTA DE JESUS, Damásio.
Violência contra a mulher, Suplemento Direito & Justiça do Jornal Correio Brasiliense de 08 de maio de 2006.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007 93
teria aplicação, haja vista a celeridade que propicia, sem prejuízo da correção da
prestação jurisdicional e da garantia constitucional ampla defesa.
Apesar de aviltante e comprometedora da integridade deste caro ser que é a
mulher (mãe, esposa, irmã etc.), a realidade da violência doméstica, apesar dos di-
versos Tratados e Convenções Internacionais ratificadas pelo Brasil, somente em
tempos recentes tem merecido atenção.
(D) A evolução legal do tema revela, com o devido respeito, certo descompro-
misso e assistematicidade legislativa: (i) primeiramente a pena mínima cominada
foi aumentada, o que foi desinfluente, pois continuava a incidir a Lei 9.099/95 e a
malsinada pena de pagamento de cesta-básica que, além de não servir como pre-
venção, seja geral ou especial, incentivava o desrespeito, haja vista a impunidade
decorrente do tratamento da questão como infração de menor potencial ofensivo 20;
(ii) a Lei 11.340/06 afasta, de modo ambíguo e questionável em certos aspectos a
aplicação da Lei 9.099/95 21.
Pesquisa realizada pelo Senado Federal 22 transparece a violência doméstica
como agir tradicional que tem como âmbito comum a família, e que não é incomum a
reiterada prática dessa modalidade de desrespeito – a pesquisa revelou que 50% das
mulheres inquiridas já tinham sido violentadas por 04 ou mais vezes.
Há mais.
Outra pesquisa, dessa vez realizada pelo IBOPE neste ano de 2006, estarrece
ao constatar que “Em cada quatro entrevistados, três consideram que as penas apli-
cadas nos casos de violência contra a mulher são irrelevantes e que a justiça trata
este drama vivido pelas mulheres como um assunto pouco importante” 23.
A interpretação sistemático-teleológica do marco legal da prisão cautelar não
deixa dúvidas sobre o cabimento, em tese e conforme as vicissitudes do caso con-
creto, da prisão em testilha:
20
Reflexão pessoal do tema faz ver o desvio de perspectiva com que tratamos relevantes fatos sociais. Não nos
damos conta de que neste caso e em muitos outros a lesão extrapola a subjetividade da vítima. Fato semelhante
ocorre com os crimes que lesam bens jurídicos transindividuais, como o crime contra o meio ambiente e contra as
finanças do Estado, para citar apenas dois exemplos. Neste último caso, a admissão inclusive pela Fazenda
Pública – que admite não ajuizar procedimentos judiciais tendo em vista o reduzido valor sonegado, por exemplo
– da incidência do princípio da insignificância revela a percepção equivocada dos custos da tutela do direto
lesado e da repercussão desta mesma tutela.
21
Ambíguo e questionável porque suscita uma série infindável de debates, por exemplo: (a) sobre se o crime de
lesões corporais leves continua sendo de ação penal pública condicionada à representação, ou se a
indisponibilidade da dignidade humana imporia tratar-se de ação incondicionada; (b) sobre o procedimento a ser
aplicado, notadamente neste E. TJDFT, que por ato normativo regular determinou ao Juizados Especiais Criminais
a competência para processar e julgar aqueles casos submetidos às disposições da Lei 11.340/06; etc.
22
, acesso em 11 de dezembro de 2006.
23
, acesso em 11 de dezembro de 2006.
94 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007
24
MARCELO LESSA BASTOS. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Lei “Maria da Penha”. Alguns
comentários. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1189, 3 out. 2006. Disponível em: . Acesso em: 11 dez. 2006.
25
Curso de direito penal brasileiro, 3ª ed., RT: São Paulo, 2002, p. 118, com destaques nossos.
26
Políticas públicas de educação e construção da ética necessária à fruição da moderna família plural e democrá-
tica, afastado que tem sido o patriarcado e o casamento como único escol da família legítima.
96 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007
Mas é urgente a adoção de alguma postura idônea, tal como a fuga da presa
que sente seu predador a rondá-la. Ou, em outra imagem, da mulher que, dadas as
circunstâncias, se vê dormindo com o inimigo.
27
Da intervenção do Estado na questão da violência conjugal em Portugal. Coimbra: Almedina; 2005; pp. 61/136.
28
“Aliás, do aspecto substantivo do devido processo legal, decorre a obrigatoriedade de que as leis reflitam o
consenso público, significando, essa satisfação, a obediência ao princípio da razoabilidade” (BRAGA, Valeska e
Silva; Princípios da proporcionalidade e da razoabildade.Curitiba: Juruá; 2004; p. 44).
29
Ainda que a atividade interpretativa consista fundamentalmente em atribuir significado aos significantes consi-
derados, sendo por esta operação que a lei se amolda ao fato social e sua constante evolução.
30
A Constituição Federal não assegura a integridade física como direito fundamental, mas é lógico estar implícita
na proteção dispensada à vida.
31
A ponderação de interesses da constituição federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris; 2000; p. 128.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007 97
(I) Noutro giro, não há equivalência material entre as situações de quem opte
por lesar o patrimônio mediante violência ou grave ameaça superiores ao necessário
à incidência da norma penal incriminadora, ou em relação àquele já imerso no mundo
dos crimes graves, e o homem que, abusando da relação de amor, hospitalidade ou
32
Curso de Processo Penal, 8ª ed. São Paulo: Saraiva; 2002; p. 239.
33
Direito Processual Penal. 9ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris; 2005; p. 628.
34
Código de Processo Penal Comentado, 4ª ed. São Paulo: Saraiva; 1999; p. 543.
35
Mas veja que o caso concreto pode revelar um dano moral como fato concreto ensejador de uma medida de
proteção, haja vista a abrangência da definição legal de ato de violência doméstica.
98 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007
afetividade, enfim, da intimidade com a mulher vítima, lesione sua personalidade nos
mais diversos aspectos, tal como disciplinado na Lei Maria da Penha.
Apesar disso e ainda assim, há diferenciado juízo de reprovação da conduta
que, cada exemplo a seu modo e consoante as possibilidades legais, importa em
elevada desaprovação da conduta e de seu resultado.
Em sede de criminalização primária já foi prevista pena maior para a lesão corporal
leve praticada em situação de violência doméstica, de modo que, no mais das vezes, não
se poderá bradar a periculosidade do agente como móvel da prisão preventiva.
Mas a lei, atenta, talvez, a isso e à disciplina da proteção dos
direitos humanos, elegeu paradigma diferente para a aferição da ne-
cessidade da prisão cautelar: a efetividade das medidas de proteção.
(J) A ponderação entre a sanção eleita para a conduta optada e os rigores da
medida cautelar – por obra do princípio da proporcionalidade ou, na visão de PAULO
RANGEL, também do princípio da homogeneidade – deve ser mitigada à vista da
ponderação entre a dignidade da mulher (e seus filhos 36) – expressamente referida
na Lei 11.340/06, na Constituição Federal e em diversos diplomas de Direito Interna-
cional ratificados pelo Brasil –, a dignidade do agressor eventualmente levado à pri-
são e o efetivo acesso à Jurisdição.
Pois bem, a “nova lei fundamenta-se em normas diretivas consagradas na Cons-
tituição Federal (art. 226, § 8º), na Convenção da ONU sobre Eliminação de Todas as
Formas de Violência contra a Mulher e na Convenção Interamericana para Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher (Preâmbulo e art. 1º). Seu fundamento político-
jurídico, portanto, é admirável e difícil de ser contestado” 37.
Fato que avulta em pertinência e relevância quando se observa que é direito
fundamental até então implícito 38 a integridade físico-psíquica da mulher. Tal integrida-
de, elemento do fundamento da República positivado no inciso III do art. 1º da Consti-
tuição Federal, é direito fundamental no aspecto formal e material também, conforme
lição de INGO WOLFGANG SARLET 39.
Consoante esse entendimento é a lição de LUIZ VICENTE CERNICCHIARO:
A Constituição de 1988, a exemplo das anteriores, relacionou di-
reitos e garantias. A atual faz questão de arrolar direitos individuais e
sociais. Em seguida, acrescentou que a especificação não excluía ou-
tros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios adotados.
36
Sim porque não há dúvidas de que a personalidade é formada a partir do exemplo do masculino e do feminino que
é dado, ainda que no mais das vezes de modo inconsciente, por pai e mãe.
37
LEAL, João José. Violência doméstica contra a mulher: breves comentários à Lei nº 11.340/2006. Jus Navigandi,
Teresina, ano 10, n. 1214, 28 out. 2006. Disponível em: . Acesso em: 11 dez. 2006.
38
Hoje determinado pelo artigo 6º da Lei 11.340/06.
39
A eficácia dos direitos fundamentais, 2ª ed., Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2001, pp. 80 e seguintes.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007 99
40
Direito penal na Constituição, 3ª ed. São Paulo: RT; 1995; pp. 213/215.
41
O Poder Judiciário e a efetividade da nova Constituição, Revista Forense 304:151, 1988, p. 152.
100 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007
No caso, não há vazio legal, a norma está ai clamando, assim como a realida-
de, as vítimas da violência e suas famílias, por aplicação.
E não há inconstitucionalidade. Caso assim fosse, incidiria o art. 481 do CPC a
determinar a análise da questão, no caso desse E. TJDFT, pelo Órgão Especial, pois não
há precedente a informar ser inconstitucional a nova possibilidade de prisão preventiva:
PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO NÃO EMBARGADA.
HONORÁRIOS. ART. 1º-D DA LEI 9.994/97. MP Nº 2.180-35.
INCONSTITUCIONALIDADE. QUESTÃO NÃO SUBMETIDA À
APRECIAÇÃO DO ÓRGÃO ESPECIAL. NULIDADE DO ACÓRDÃO.
42
Curso de direito constitucional, 16ª ed. São Paulo: Malheiros; 2005; p. 531.
43
A ponderação de interesses da constituição federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris; 2000.
44
P. 148.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007 101
(L) De outra parte, a Emenda Constitucional 45, concessa venia, afastou a re-
levância da lição de FLÁVIA PIOVESAN 45 a respeito de que a Constituição Federal
teria adotado sistema misto de integração dos Tratados Internacionais ao ordenamento
interno: em se tratando de tratados sobre direitos humanos teríamos adotado teoria
monista, segundo a qual a internalização seria automática; quanto às demais avenças
internacionais ter-se-ia adotado a teoria dualista.
Fez-se opção por essa última construção teórica, pois mesmo os tratados que
versem sobre direitos humanos não têm aplicabilidade imediata, como entendia aquela
autora ser decorrência dos §§ 1º e 2º do art. 5º da Constituição Federal, haja vista
tratar-se de direitos fundamentais, pois devem submeter-se a procedimento legislativo
próprio das emendas constitucionais para, após isso, adquirirem tal status.
Entretanto, o tema não perdeu sua relevância, haja vista julgamento ainda em
andamento perante o Supremo Tribunal Federal da possibilidade jurídica – que, junta-
mente com o STJ, não admitimos – de prisão civil do depositário infiel 46, em que o
Ministro Gilmar Mendes, não meramente à guisa de obter dictum, mas como ratio
decidendi, salientou não se equiparar à legislação ordinária aquela proveniente de
tratados e convenções internacionais, tais como os compromissos assumidos pelo
Brasil perante a ordem internacional:
Em seguida, o Min. Gilmar Mendes acompanhou o voto do relator,
acrescentando aos seus fundamentos que os tratados internacionais
de direitos humanos subscritos pelo Brasil possuem status normativo
supralegal, o que torna inaplicável a legislação infraconstitucional com
eles conflitantes, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação e
que, desde a ratificação, pelo Brasil, sem qualquer reserva, do Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção
45
Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad; 1998; pp. 34/47; e O sistema interamericano de proteção
dos direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo: RT; 2000; pp. 159/179.
46
Informativo 449, de dezembro de 2006.
102 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007
3. BIBLIOGRAFIA
47
PIOVESAN Flávia. Direitos Humanos, vol. I. Curitiba: Juruá; 2006; p. 16.
104 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.83-104, janeiro/junho-2007
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do Jornal Correio Brasiliense de 08 de maio de 2006.
, acesso em 11 de dezembro de 2006.
, acesso em 11 de dezembro de 2006.
BASTOS, Marcelo Lessa. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Lei “Maria da Penha”.
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PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos, vol. I. Curitiba: Juruá; 2006; p. 16.
O casal de militar es
militares
per ante a Lei
perante
Maria da P enha
Penha
O CASAL DE MILITARES
PERANTE A LEI MARIA
DA PENHA (LEI 11.340/06)
1 – INTRODUÇÃO
A Lei 11.340/06, mais conhecida como Lei Maria da Penha, que trata da violên-
cia doméstica contra a mulher, recentemente vigorando em nosso ordenamento jurí-
dico, vem gerando muitas discussões na esfera jurídica. Muitos entendem ser uma
lei inconstitucional, pois fere o princípio da isonomia e há invasão de competência,
além de outras imperfeições legais. Mas enquanto não há solução legislativa,
jurisprudencial e doutrinária, a Lei Maria da Penha está vigorando e tendo que ser
aplicada no caso concreto quando do cometimento de violência doméstica. Não só
aumentou a pena para tal tipo de crime, como também trouxe medidas de urgência
de proteção à mulher.
É conhecida como Lei Maria da Penha por homenagear uma mulher que foi
vítima de violência doméstica, muito conhecida na mídia pela constante luta por Jus-
tiça, ainda que condenada a uma cadeira de rodas devido a um tiro dado por seu
companheiro – que ficou impune por mais de uma década, resultando repúdio de
organizações nacionais e internacionais.
O artigo 1º da Lei Maria da Penha deixa bem nítida a intenção do legislador de
proteger a mulher na esfera familiar, seja qual for o nível social, econômico, racial,
religioso, ou mesmo profissional: “Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a
violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da
Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados
pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violên-
cia Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e
proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar” (artigo 1º da Lei
11.340/06).
Já o Código Penal Militar considera crime militar o praticado por militar em situ-
ação de atividade contra militar na mesma situação (art. 9º, inc. II, alínea “a” CPM).
Como o CPM dita que certos atos de violência contra a mulher militar sejam
considerados como crime militar, e a Lei Maria da Penha preceitua sua aplicação
108 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.105-113, janeiro/junho-2007
quando da violência doméstica, surge então a dúvida de qual legislação a ser aplica-
da no caso concreto de uma mulher militar ser vítima de violência doméstica perpe-
trada por seu companheiro também militar.
2 – A MULHER MILITAR
A história demonstra que a mulher vem ocupando cada vez mais espaço nas
forças militares. A mulher no universo militar, atualmente, além de fazer serviços an-
tes exercidos apenas por homem, já pode até comandá-lo. Futuramente encontrare-
mos a mulher com maior freqüência nos mais altos graus da hierarquia militar. A título
de exemplo, na esfera estadual, o Coronel Feminino PM Angelina Ramirez chegou a
Comandante Geral da Polícia Militar de Rondônia, e em São Paulo o Coronel Femini-
no PM Fátima Ramos Dutra chegou ao comando da Casa Militar do Governo do Esta-
do. Na esfera federal a mulher já pode até chegar a oficial-general.
As conquistas perante a legislação e a sociedade e as mudanças na filosofia de
trabalho das forças militares garantiram à mulher ocupar postos inimagináveis no
passado.
3 – O CASAL DE MILITARES
também militar. Seria inocência demasiada acreditarmos que a mulher militar não
sofre violência dentro do seio familiar, já que a sua qualidade de militar não influencia
na violência do seu companheiro quando do cometimento de violência doméstica.
Caso a intimidade do casal de militares não seja levada em consideração, os
mais variados crimes militares poderiam ocorrer entre um casal de militares. Seria
necessário analisar a qual força pertencem os militares, que fato ocorreu, qual a gradu-
ação ou posto dos envolvidos, o lugar, o motivo, entre outros. Para isso seria necessá-
rio fazer uma construção jurídica fundamentada na legislação, na jurisprudência e na
doutrina, analisando caso a caso para se chegar à conclusão da existência de crime,
qual crime ocorreu e se é ou não crime militar. Havendo entendimento que a Justiça
castrense não tem competência para julgar a violência doméstica envolvendo casal
de militares, descartando a aplicação do CPM e do CPPM, pouco vai importar que
sejam militares estaduais, federais, ou mesmo um estadual e outro federal, tampouco
se é um casal militar heterossexual ou homossexual, já que a Justiça comum seria
competente para processar e julgar crimes de violência doméstica envolvendo milita-
res na liberdade conjugal. Caso contrário haveria violação à Constituição Federal,
como prescreve Fernando Capez: “A casa, como asilo inviolável, compreende o di-
reito de vida doméstica livre de intromissão alheia (liberdade das relações familia-
res, intimidade sexual etc.)” (CAPEZ, 2005: 246) (grifo nosso).
6 – CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
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CAPEZ, Fernando. Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Damásio de Jesus, 2005.
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SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. rev. e atual. São Paulo:
Malheiros, 2004.
mero usuário, ou, como defendiam alguns, de ser o fato atípico. A nova lei, por outro
lado, traz dispositivo específico que pune a aludida conduta quando o objeto material
for destinado ao tráfico (art. 33, § 1º, II).
Caso o condenado por um desses delitos (art. 28, “caput” e § 1º) se negue a
cumprir a pena restritiva de direitos, o Juiz poderá adverti-lo ou aplicar-lhe multa, cuja
quantidade e valor são fixados pelo artigo 29. Não existe possibilidade da conversão
das penas restritivas de direitos em privativa de liberdade por falta de previsão legal.
As penas previstas para os delitos do artigo 28, “caput” e § 1º (imposição e
execução) prescrevem em dois anos, observando-se os prazos interruptivos do lap-
so prescricional previstos no art. 107 e seguintes do Código Penal (art. 30). O julga-
mento desses delitos é de competência do Juizado Especial Criminal, salvo se hou-
ver concurso com qualquer dos crimes previstos nos artigos 33 a 37, quando seguirá
o procedimento previsto nos artigos 54 e seguintes (art. 48, § 1º).
Com efeito, a nova lei traz salutares modificações, mas também preocupa-
ções. Uma delas é que o usuário de drogas não poderá ser obrigado a cumprir as
penas restritivas de direitos. O máximo que o Juiz poderá fazer é aplicar-lhe uma
multa, que acreditamos não ser suficiente para obrigar alguém a cumprir as restri-
ções de direitos. Aliás, quem não puder pagar a multa e quem quiser quitá-la não
cumprirá a restrição de direitos.
CONSIDERAÇÕES SOBRE
A CAUSA DE DIMINUIÇÃO
DE PENA PREVISTA NO
ART. 33, § 4º, DA LEI ANTITÓXICOS
fixação da pena base ou de alguma forma a diminuírem por outro motivo, é que poderão
ser considerados para a maior ou menor diminuição da pena.
Observamos, ainda, que o artigo 42 traz circunstâncias que preponderarão sobre
as judiciais do artigo 59 do Código Penal, ou seja, a natureza e a quantidade da
substância ou do produto, a personalidade e a conduta social do agente. No que é
pertinente às duas últimas, já se encontram descritas no art. 59 do Código Penal,
mas passarão a preponderar sobre as demais lá constantes.
Porém, parece-nos que não haverá dupla valoração quando ocorrer o aumento
e depois a diminuição da pena pelo mesmo fundamento. Isto é, resultando o aumento
da pena em virtude das circunstâncias descritas no artigo 42, a pena poderá ser
diminuída com fundamento no § 4º do art. 33 por esses mesmos fatos, haja vista a
diversidade de incidência (aumento e depois diminuição).
Com efeito, pensamos que as circunstâncias descritas no artigo 42 da Lei
Antitóxicos poderão servir de parâmetro para o Julgador quando da diminuição da
pena (art. 33, § 4). Assim, v.g., quanto mais potente a droga ou maior a sua quantidade,
menor será a diminuição da pena e vice-versa. O que não se faz possível é a dupla
diminuição pelo mesmo fato. Destarte, nada impede que o Juiz, a fim de que não haja
dupla valoração, deixe de aplicar essas causas por ocasião da fixação da pena base
e as faça incidir na terceira fase da dosimetria para a maior diminuição da pena,
sempre verificando o que será melhor para o acusado.
Como a norma penal em estudo é mais benéfica para o acusado, retroagirá e
alcançará os processos em andamento e os já definitivamente julgados (art. 5º, inciso
XL, da CF, e art. 2º, parágrafo único, do CP). A diminuição da pena poderá ser pleiteada
ao juiz da instrução, no caso de processos em andamento, ou ao juiz da execução,
no que é pertinente aos processos com sentença condenatória transitada em julgado.
Estando o processo em grau de recurso, o benefício deverá ser pleiteado ao relator.
A questão que surge é a seguinte: sobre qual norma incidirá a diminuição da
pena no caso de retroatividade? A da lei revogada (nº 6.368/1976) ou da lei em vigor?
Não nos parece correto que a diminuição se opere sobre a pena fixada com
fulcro na Lei nº 6.368/1976, que tinha como patamar mínimo três anos de reclusão. O
dispositivo determina a diminuição da pena dos delitos previstos no art. 33, “caput”, e
§ 1º, da nova lei, cuja pena mínima cominada é de cinco anos de reclusão, ou seja,
superior ao mínimo legal cominado na legislação anterior.
Embora haja controvérsia sobre o assunto, não entendemos possível aplicar
esse dispositivo sobre tipos penais já revogados, ou seja, conjugando normas de
uma lei revogada com normas de uma lei em vigor. Isso porque não cabe ao Judiciário
a função de legislar e criar uma terceira lei, que conjugue dispositivos de lei revogada
com lei em vigor. Nelson Hungria, com a sapiência que lhe era peculiar, assim aduziu:
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.123 a 128, janeiro/junho-2007 127
um dos delitos previstos nos arts. 33, “caput”, e § 1º, e 34 a 37, independentemente
da pena aplicada. Com efeito, mesmo que preenchidos os requisitos objetivos e
subjetivos previstos no artigo 44 do Código Penal, a substituição não será possível.
Bruno, Aníbal, Direito Penal, v.1, tomo 1, Editora Nacional de Direito, 1956.
Filho, Vicente Greco, Tóxicos, Saraiva, 1992.
Hungria, Nélson. Comentários ao Código Penal, vol. I, 4ª ed., Forense, 1958.
Mariano da Silva, César Dario, Manual de Direito Penal, parte geral, Rio de Janeiro, 4ª ed.,
Forense, 2006.
ASSOCIAÇÃO
OCASIONAL
ASSOCIAÇÃO OCASIONAL
(ART. 18, III, DA LEI Nº. 6.368/06)
Com o advento da nova Lei de Drogas (Lei 11.343/06) uma questão interessante
está sendo levantada no mundo jurídico: a causa de aumento de pena da associação
ocasional que era prevista no artigo 18, III, da Lei nº. 6.368/76 ainda pode ser aplicada
aos fatos ocorridos sob a égide desta última?
Antes de adentrar o tema é necessário fazer uma análise do artigo 35, “caput”,
da atual Lei de Drogas, que era tipificado de maneira semelhante no artigo 14 da
revogada Lei Antitóxicos.
A conduta típica consiste em associarem-se duas ou mais pessoas com o
objetivo de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos artigos
33, “caput” e § 1o, e 34 da Lei de Drogas.
O verbo “associarem-se” significa a reunião com vínculo estável e permanente
(tempo indeterminado), no caso, de duas ou mais pessoas.
Como já ocorria no regime anterior, há necessidade de vínculo psicológico para
a prática dos delitos por tempo indeterminado. Faltando esse elemento, o crime não
estará caracterizado.
A expressão “reiteradamente” significa repetidamente, ou seja, com continuidade.
Na associação para o tráfico pode existir, ou não, o propósito de praticar os delitos
(artigos 33, ”caput”, § 1º ou 34) reiteradamente. No entanto, não há necessidade de
que os crimes sejam cometidos, mas que a associação se dê com esse propósito.
Com efeito, são elementos desse crime:
1) reunião de duas ou mais pessoas;
2) vínculo psicológico para o tráfico de drogas (artigos 33, “caput”, § 1º,
ou 34) por tempo indeterminado.
Como ocorria na legislação anterior (artigo 14), não basta simplesmente o dolo
de agir em concurso para a prática de tráfico de drogas, mas a especial intenção
associativa de forma estável por tempo indeterminado. Assim, não configura esse
delito a associação ocasional para o tráfico de drogas, mesmo que um ou mais crimes
sejam cometidos, mas sem o animus associativo. Se na traficância houver o
envolvimento de duas ou mais pessoas, mas sem o vínculo associativo, ocorrerá
mero concurso de agentes.
O crime de associação para o tráfico, do mesmo modo que o de quadrilha ou
bando, é autônomo em relação aos demais delitos praticados. Dessa forma, havendo
132 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.129-133, janeiro/junho-2007
o cometimento dos crimes para o qual houve a associação, ocorrerá concurso material
de delitos, haja vista nova violação à objetividade jurídica.
Como já visto, o delito em questão exige vínculo psicológico para o tráfico de
drogas (artigos 33, “caput”, § 1º, ou 34) por tempo indeterminado. A reunião ocasional
e esporádica, sem o vínculo associativo, não o enseja. Pela Lei nº. 6.368/76, havendo
a mera associação ocasional, justificava a aplicação da causa de aumento de pena
prevista no artigo 18, III. No entanto, a lei nova não mais contempla essa majorante,
ocorrendo o fenômeno da novatio legis in mellius.
Surge, portanto, a seguinte indagação: é possível aplicar o artigo 383 do Código
de Processo Penal e reconhecer o crime autônomo (artigo 14) hoje previsto no
artigo 35, “caput”, da Lei nº. 11.343/06 para aquela pessoa que está sendo processada
ou já foi condenada em primeiro grau por tráfico de drogas com a majorante da
associação ocasional?
Poder-se-ia argumentar que, como a associação está descrita na denúncia, o
Magistrado estaria autorizado a condenar o agente por tráfico de drogas em concurso
com a associação para o tráfico de drogas (artigo 14, da Lei nº. 6.368/76).
Não nos parece correto esse entendimento. É certo que o Juiz analisa os fatos
descritos na inicial acusatória e não a classificação jurídica a eles dada. Isso porque o
acusado se defende da conduta a ele imputada e não da tipificação legal. O Juiz, por
força do artigo 383 do Código de Processo Penal, poderá dar ao fato definição jurídica
diversa da capitulada na denúncia, mesmo que tenha de aplicar pena mais grave.
Contudo, o réu foi acusado de delito com uma causa de aumento de pena. Não
houve imputação de dois crimes, mas de apenas um agravado. Assim, haveria violação
do contraditório e da ampla defesa caso fosse o réu condenado por uma infração da
qual não foi formalmente acusado.
E se não bastasse esse argumento, quando há imputação da causa de aumento
de pena e não do crime de associação para o tráfico de drogas, é porque o
representante do Ministério Público entendeu não estar presente o vínculo psicológico
para o tráfico por tempo indeterminado, ou seja, que ocorreu apenas uma associação
ocasional, que se confunde com o concurso de pessoas.
Com efeito, o acusado não se defendeu do crime de associação para o tráfico,
mas da imputação de delito com uma causa de aumento de pena, que não possui os
mesmos requisitos do crime autônomo, que era previsto no artigo 14 da revogada Lei
de Tóxicos e no artigo 35 da atual. Inadmissível, desse modo, que se utilizando da
chamada emendatio libelli, o juiz termine condenando o réu por um fato do qual não
foi denunciado.
E nem seria o caso de aplicação do disposto no artigo 384, parágrafo único do
Código de Processo Penal, utilizável quando o mesmo fato ganha contornos jurídicos
mais graves do que aqueles constantes da inicial acusatória. Surgindo circunstância
elementar capaz de alterar a modalidade delituosa, a fim de que se cumpra o princípio
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.129 a 133, janeiro/junho-2007 133
REPÚBLICA E ISONOMIA
– licitação e sua inexigibilidade na contratação
de serviços advocatícios pelo Poder Público.
1. Introdução
2. Princípios
A compreensão do conteúdo jurídico dos princípios é condição sine qua non para
o entendimento do Direito, pois este é constituído na forma de sistema, “um conjunto
bem estruturado de disposições que, interligando-se por coordenação e subordinação,
ocupam, cada qual, um lugar próprio no ordenamento jurídico. É precisamente sob este
imenso arcabouço, onde sobrelevam os princípios, que as normas jurídicas devem ser
consideradas.”2 Os princípios são as idéias centrais de um sistema, ao qual dão senti-
do lógico, harmonioso, racional, permitindo a compreensão de seu modo de organizar-
se.3 Não se pode falar em princípios sem referência ao conceito de Celso Antônio,
segundo o qual: “Princípio (...) é, por definição, mandamento nuclear de um sistema,
verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes nor-
mas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e
inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no
que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. (...) Violar um princípio é muito
mais grave que transgredir uma norma. (...) Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as
vigas que o sustém e alui-se toda a estrutura neles esforçada”.4
1
A Ordem dos Advogados do Brasil – Seção de São Paulo teve indeferido pedido de admissão nos autos da AC nº
070.764.5/1-00 – 1ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, mantida pelo desprovimento do
Agravo Regimental interposto, ficando assentado que não há interesse jurídico da Instituição em hipótese na qual
sociedade de advogados foi contratada diretamente por Prefeitura Municipal, com inexigibilidade de licitação, e
que está sendo por isso demandada em sede de ação civil pública.
2
Carrazza. R.A., Curso de direito constitucional tributário, p. 33.
3
Sundfeld, C.A., Fundamentos de direito público, p. 143.
4
Mello, C.A.B., Elementos de direito administrativo, p.230.
142 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007
José Afonso da Silva,8 com base nas lições de Canotilho, divide os princípios
constitucionais em duas categorias: os político-constitucionais e os jurídico-constituci-
onais. Diz ele que os princípios político-constitucionais são fundamentais decisões po-
líticas da nação ou, no dizer de Canotilho: “Nestes princípios se condensam as opções
políticas nucleares e se reflecte a ideologia inspiradora da constituição. Expressando
as concepções políticas triunfantes ou dominantes numa assembléia constituinte, os
princípios político-constitucionais são o cerne político de uma constituição política (...).”9
É nessa categoria de princípios que se encontram os princípios republicano, da
federação, do Estado democrático de direito, da separação de poderes, o princípio da
dignidade da pessoa humana, do pluralismo político, dentre outros estabelecidos nos
artigos 1° a 4° da Constituição Federal, sob o título de Princípios Fundamentais. Muito
embora não possa servir como critério de identificação, a simples colocação desses
princípios já nos primeiros artigos, abrindo o Texto, indica a importância que o consti-
tuinte a eles atribuiu, dedicando o Título I à fixação das decisões políticas fundamen-
tais da República Federativa do Brasil. Os princípios fundamentais ali dispostos
sobrepairam por todo o ordenamento jurídico, direcionando a interpretação das de-
mais normas constitucionais e infraconstitucionais.
5
Carrazza, R.A., op. cit., p. 33.
6
Não se trata de hierarquizar normas constitucionais, conscientes da advertência de Thomas Cooley (In: O
controle da constitucionalidade das leis, p. 58). Todavia, é certo que algumas disposições, embora constitucio-
nais, certamente encerram menor relevância que outras. Tome-se o exemplo do § 2º do Art. 242 em comparação
com a norma do inciso III do Art. 1º da Constituição Federal.
7
Carrazza, R.A., op. cit. p. 32.
8
Silva, J.A. Curso de direito constitucional positivo, p. 94.
9
Canotilho, J.J.G., Direito constitucional, p. 172.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 143
Uma segunda categoria é referida por José Afonso, a dos princípios jurídico-
constitucionais, possuidores de caráter geral, informando toda a ordem jurídica pá-
tria. Ainda segundo ele, não raro decorrem dos princípios fundamentais acima referi-
dos.10 Na precisa lição de Canotilho, esses “princípios constitucionais impositivos
subsumem-se todos os princípios que, sobretudo no âmbito da constituição dirigente,
impõem aos órgãos do estado, sobretudo ao legislador, a realização de fins e a exe-
cução de tarefas. São, portanto, princípios dinâmicos, prospectivamente orientados.”11
Em relação à nossa Carta Política, poderiam ser citados como exemplos os
princípios da legalidade, da isonomia, da proteção social aos trabalhadores, proteção
à família, da autonomia municipal, do devido processo legal, do juiz natural, dentre
outros, explícitos ou implícitos.
Com isso, possível afirmar que os princípios político-constitucionais, encerram
maior importância no mundo jurídico que os princípios jurídico-constitucionais. O prin-
cípio republicano ou o federativo ou o da separação dos poderes, dos artigos 1° e 2°,
respectivamente, têm maior relevância que o princípio da proteção à família, por exem-
plo, embora todos tenham assento constitucional. Os primeiros, todavia, revelam
decisões políticas fundamentais do Estado, impondo observância mais acurada na
aplicação.
Afirmado isso, podemos avançar considerando os princípios fundamentais es-
tabelecidos na Constituição Federal e que se relacionam com o tema proposto.
3.1 A República
14
Ataliba. G. República e Constituição, p. 32.
15
Carrazza. R.A. Curso de direito constitucional tributário, p. 44.
16
Art. 1º (...) Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição.
17
Art. 86 da Constituição Federal em relação ao Presidente da República
18
Art. 37, parágrafo 6º, in fine, da Constituição Federal.
19
Ataliba. G. República e constituição, p. 38.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 145
3.2. Isonomia
20
Art. 7º, incisos XXX, XXXI e XXXIV da Constituição Federal.
21
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao
Distrito Federal e aos Municípios: (...) II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em
situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida,
independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;
146 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007
22
Mello Filho. J.C. Constituição federal anotada, p. 427.
23
Ataliba. G. República e constituição, p. 136.
24
Dallari. D.A. Elementos de teoria geral do Estado, p. 267.
25
Ferreira Filho. M.G. Curso de direito constitucional, p. 242 e seguintes.
26
Bastos. C.R. Curso de direito constitucional, p. 166.
27
Silva. J.A. Curso de direito constitucional positivo, p.210.
28
Ibidem, mesma página.
29
Ibidem, mesma página.
30
Kelsen. H. A Justiça e o direito natural, p. 73.
31
Ibidem, p. 78.
32
Ibidem, p. 79.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 147
Essa questão tem sido estudada por grandes juristas e todos confessam as
dificuldades encontradas. Como falávamos no item anterior, Canotilho pergunta o
que nos leva a afirmar que uma lei trata dois indivíduos de maneira igualmente justa?
E mais: qual o critério de valoração para a relação de igualdade? Sugere que para
alguns a resposta estaria na proibição do arbítrio, é dizer, verifica-se a observância do
princípio da igualdade na hipótese em que indivíduos ou situações não são arbitraria-
mente tratados como desiguais. Por outra: a igualdade é violada quando a desigual-
dade de tratamento surge como arbitrária. Todavia, entende insuficiente a utilização
desse princípio limite, se não se utilizar critérios permitidores da valoração das rela-
ções de igualdade ou desigualdade. Esse critério material objetivo pode ser assim
sintetizado: “existe uma violação arbitrária da igualdade jurídica quando a disciplina
jurídica não se basear num: (i) fundamento sério; (ii) não tiver um sentido legítimo; (iii)
estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável”.42
Com base nessas lições podemos dizer que o importante para compreender o
significado da isonomia é verificar a relatividade de conceitos de igualdade e desigual-
dade, devendo-se aferi-las em cada caso concreto. É possível, v.g., que alguém seja
igual ao outro em relação ao sexo, mas absolutamente diferente em relação à rique-
za. Por outro lado, dois indivíduos abastados podem ter iguais patrimônios, mas se-
rem desiguais quanto ao sexo. Assim, por exemplo, não seria possível dizer que uma
regra de concurso que só admita candidatas mulheres afronta o princípio da isonomia,
se o intuito é preencher vagas de carcereiras em presídio feminino. Em outro caso, “a
igualdade formal deve ser quebrada diante de situações que, logicamente, autorizem
tal ruptura. Assim, é razoável entender-se que a pessoa portadora de deficiência tem,
pela sua própria condição, direito à quebra da igualdade, em situações das quais
participe com pessoas sem deficiência.”43
Todavia, como afirma Celso Bastos “...o cerne do problema remanesce
irresolvido, qual seja, saber quem são os iguais e quem são os desiguais”,44 fazendo
necessário o uso de um critério de diferenciação. Também fizeram essa pergunta
42
Canotilho. J.J.G. Direito constitucional, p. 565.
43
Araújo. L.A.D. A proteção constitucional das pessoas portadoras de deficiência, p. 52.
44
Bastos. C.R. Curso de direito constitucional, p. 167.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 149
Canotilho45 e, entre nós, Celso Antônio,46 que estabeleceu um critério para reconhe-
cer as situações em que se verifique a quebra da isonomia, apresentando-o sob a
forma de três questões: “a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de
desigualação; b) a segunda reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o
fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento ju-
rídico diversificado; c) a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os
interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados.”47
A primeira questão do critério, segundo Celso Antônio, diz respeito com o ele-
mento tomado como fator de desigualação, impondo à norma dois requisitos a saber:
“...a lei não pode erigir em critério diferencial um traço tão específico que singularize
no presente e definitivamente, de modo absoluto, um sujeito a ser colhido pelo regime
peculiar;...” além de “...o traço diferencial adotado, necessariamente há de residir na
pessoa, coisa ou situação a ser discriminada; ou seja: elemento algum que não exis-
ta nelas mesmas poderá servir de base para assujeitá-las a regimes diferentes.”48
A segunda questão, por outro lado, é considerada como o ponto nodular para
a verificação do atendimento ao princípio da isonomia por determinada regra. Esse
ponto está na “existência ou não de correlação lógica entre o fator erigido em critério
de discrímen e a discriminação legal decidida em função dele”.49 De fato, ao homem
médio soa fácil e de certa forma, até independentemente de aprofundados conheci-
mentos da Ciência do Direito, o reconhecimento da necessária correlação lógica en-
tre o fator de discrímen e a própria discriminação. Para se saber se há ofensa à
isonomia, basta perquirir se o fator diferencial eleito para discriminar, guarda relação
de pertinência lógica com a inclusão ou exclusão com o benefício ou, com a inserção
ou afastamento do ônus impingido. Para melhor compreensão, Celso Antônio traz o
exemplo de hipotética lei que autorizasse servidores gordos a afastarem-se sem pre-
juízo da remuneração, para assistir congresso religioso, vedando aos magros o mes-
mo tratamento. Continua dizendo que superficial exame revela que a compleição físi-
ca não poderia ser eleita como critério diferenciador, para o tratamento jurídico adota-
do em razão da utilização dele. Isso porque é inadmissível que a obesidade, ou a
esbeltez, seja tomado como critério discriminatório a tratar diferentemente os servi-
dores, com o fim de ser autorizada a participação, ou não, em congresso religioso.
45
Canotilho. J.J.G. Direito constitucional, p. 564.
46
Bandeira de Mello. C.A. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p. 11.
47
Ibidem, p. 21. Ressaltamos que na página 41 dessa obra, o mesmo tema é tratado de forma mais explicativa pelo
autor, que desdobrou a primeira questão, restando quatro elementos a saber: “(a) que a desequiparação não
atinja de modo atual e absoluto, um só indivíduo; b) que as situações ou pessoas desequiparadas pela regra de
direito sejam efetivamente distintas entre si, vale dizer, possuam características, traços, nelas residentes,
diferençados; c) que exista, em abstrato, uma correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a
distinção de regime jurídico em função deles, estabelecida pela norma jurídica; d) que, in concreto, o vínculo de
correlação supra-referido seja pertinente em função dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é,
resulte em diferenciação de tratamento jurídico fundada em razão valiosa – ao lume do texto constitucional – para
o bem público”.
48
Ibidem, p. 23.
49
Bandeira de Mello. C.A. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p. 38.
150 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007
Todavia, segue ele dizendo, seria esse critério tolerável se somente os esbeltos pu-
dessem exercer, no serviço militar, “funções que reclamem presença imponente”.50
Para rematar a idéia, Celso Antônio resume essa fundamental questão dizendo: “é
agredida a igualdade quando o fator diferencial adotado para qualificar os atingidos
pela regra não guarda relação de pertinência lógica com a inclusão ou exclusão no
benefício deferido ou com a inserção ou arrendamento do gravame imposto.”51
Por fim, relativamente à terceira questão Celso Antônio afirma que “... as van-
tagens calçadas em alguma peculiaridade distintiva hão de ser conferidas prestigiando
situações conotadas positivamente ou, quando menos, compatíveis com os interes-
ses acolhidos no sistema constitucional”.52 Por outras palavras, deve estar de acordo
com aquilo que prestigia o aparato normativo, sobretudo a Constituição Federal.
Esse critério é reconhecidamente o mais apropriado para verificação da pre-
sença – ou não – da isonomia em determinado caso concreto. Faremos o exame da
questão proposta – inexigibilidade de licitação para contratação de advogados pelo
Estado – mais adiante.
50
Ibidem, mesma página.
51
Ibidem, mesma página.
52
Ibidem, p. 42.
53
Bastos. C. R. Curso de direito administrativo, p. 55.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 151
54
Bandeira de Mello. C.A. Curso de direito administrativo, p. 58.
55
Silva. J.A. Curso de direito constitucional positivo, p. 615.
56
Benoit. F.P. Le droit administratif français, p. 837.
57
Meirelles. H.L. Direito administrativo brasileiro, p. 85.
58
Morais. A. Direito constitucional administrativo, p. 100.
59
Bastos. C.R. Curso de direito administrativo, p. 56.
152 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007
3.3.1. Licitação
60
Sundfeld. C.A. Licitação e contrato administrativo de acordo com as leis 8.666/93 e 8.883/94, p. 40.
61
Sundfeld. C.A. Fundamentos de direito público, p. 171.
62
Canotilho. J.J.G. Constituição dirigente e vinculação do legislador, p. 216.
63
Sundfeld. C.A. Licitação e contrato administrativo de acordo com as leis 8.666/93 e 8.883/94, p. 15.
64
Bielsa. R. Derecho administrativo, p. 167.
65
Meirelles. H.L. Direito administrativo brasileiro, p. 247 e Licitação e contrato administrativo, p. 17.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 153
para o contrato de seu interesse.” Pode-se dizer também que a licitação “...é um
certame que as entidades governamentais devem promover e no qual abrem disputa
entre os interessados em com elas travar determinadas relações de conteúdo
patrimonial, para escolher a proposta mais vantajosa às conveniências públicas.
Estriba-se na idéia de competição, a ser travada isonomicamente entre os que pre-
encham os atributos e aptidões necessárias ao bom cumprimento das obrigações
que se propõem assumir.”66 Outros autores trataram de conceituar a licitação, a exem-
plo de Celso Bastos,67 Moraes,68 Justen Filho,69 Figueiredo,70 todos em sentido bas-
tante parecido. “En suma: la licitación es un requisito legal respecto de los contratos
administrativos, instituido por motivos de conveniencia y de moralidad administrati-
va. La falta de licitación, si ella es obligatoria, determina la nulidad del acto, pues la
licitación es esencial. En tal caso - es decir, de omisión – la Administración pública no
tiene que demandar la anulación de contratos realizados sin licitación previa, puesto
que se parte del supuesto de que no hay contrato.”71
A obrigação de licitar está determinada na Constituição Federal e a Lei 8.666/93
estabelece no artigo 1º que os três Poderes da União, dos Estados, do Distrito Fede-
ral e dos Municípios estão submetidos ao seu regime, incluindo ainda os órgãos da
administração indireta, como os fundos especiais, autarquias, fundações públicas,
empresas públicas, sociedades de economia mista e demais entidades controladas.
Em seguida, a Lei de Licitações expressa a finalidade do instituto, deixando claro que
a obediência ao princípio da isonomia e a vantajosidade da proposta estão no seu
âmago, além da obrigação de se adequar aos princípios da legalidade, impessoalidade,
moralidade, igualdade, publicidade, probidade administrativa, vinculação ao instrumento
convocatório, do julgamento objetivo e dos demais que lhes são correlatos. Essas
disposições poderiam ser consideradas desnecessárias, já que a observância aos
princípios mencionados advém do regime constitucional por nós adotado. Todavia,
estamos com Justen Filho72 que enxerga excepcional relevância ao dispositivo, pois
consagra – expressamente – os princípios norteadores da licitação, devendo os agen-
tes públicos, se por mais não fosse, se pautarem por eles na atividade administrativa
específica. Desse modo, não basta o mero cumprimento burocrático das normas
impostas pela Lei nº 8.666/93, devendo o agente buscar o atendimento aos princípios
norteadores da licitação.
À expressa determinação de observância dos princípios mencionados, adere
o fato da Lei de Licitações ser norma de direito público, não tolerando desvios ao
alvitre de quem quer que seja, devendo ser aplicada de modo que o interesse público
66
Bandeira de Mello. C.A., op. cit. P. 265.
67
Curso de direito administrativo, p. 173.
68
Direito constitucional administrativo, p. 164.
69
Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, p. 18.
70
Direitos dos licitantes, p. 15 e Curso de direito administrativo, p. 301.
71
Bielsa. R. Derecho administrativo, p. 171.
72
Op. cit. p. 24.
154 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007
73
Sundfeld. C.A. Fundamentos de direito público, p. 76.
74
Ibidem, p. 77.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 155
ao Estado, significando esta uma proibição da atuação privada. Isso, todavia, não
esgota o rol de possibilidades de ação dos indivíduos, cabendo lembrar dos direitos
fundamentais fixados no artigo 5º da Constituição Federal (direitos de locomoção, de
trabalho, de manifestação de pensamento, etc).
E, se o particular pode fazer tudo aquilo que a lei não veda, de forma contrária
se desenvolve a atividade estatal, pois ele – o Estado – só pode fazer aquilo que a
ordem jurídica lhe atribui e da forma como atribuída, ficando vedado fazer aquilo que
a Constituição Federal ou as leis não lhe autorizem expressamente. Esse o valo que
separa as atividades estatais das privadas.
Dentre o rol de atividades estatais, como dissemos, determinadas na Constitui-
ção Federal ou em leis, estão aquelas atinentes à tutela social, objetivando o controle
da vida em sociedade, inclusive utilizando o poder de coerção para impor um com-
portamento ao indivíduo de modo que não prejudique os interesses da coletivida-
de. A mais importante atividade estatal é, sem dúvida, a edição de leis, de molde a
regular o exercício de direitos e o cumprimento de deveres, tanto pelos particulares
quanto pelo próprio Estado, que a elas se sujeita, caracterizando-se assim o Estado
de Direito. Também a tarefa de executar as leis se reveste de fundamental importân-
cia, pois é aí que o Estado, pelo Poder Executivo, acaba por gerir o dia-a-dia dos
indivíduos. Na execução das leis aprovados no Parlamento, o governante não o faz
em nome próprio, senão por delegação ou como mandatário do povo, como já afirma-
mos. Na aplicação dessas leis deve haver rigor quanto ao que foi prescrito, a forma e
os limites. Assim, “cuando una ley dispone que las concesiones, por ejemplo, deben
realizarse previa licitación y ésta no se cumple hay exceso de poder o de mandato, y
en cualquier momento puede demandarse su nulidad. Se trata de grandes princípios
aplicados también em el derecho público por nuestros más altos tribunales.”75 A Lei nº
8.666/93, se por mais não fosse, traz expressa disposição quanto à natureza dos
contratos administrativos dela decorrentes, inclusive com preceito separado para
aqueles decorrentes de dispensa ou inexigibilidade de licitação.76
Seguindo a linha de raciocínio estabelecida, a atividade jurisdicional é outra es-
pécie do gênero atividade estatal, compreendendo a atuação do Judiciário na solu-
ção de conflitos, na defesa de direitos, controle da constitucionalidade das leis, impo-
sição de sanções, seja com privação da liberdade ou da propriedade e, finalmente,
execução de suas próprias decisões. Importa é que a atividade judicial “é desenvolvi-
da sempre para aplicação de normas jurídicas superiores, no que se assemelha à
administrativa.”77
75
Bielsa. R. Derecho administrativo, p. 168.
76
Art. 54. Os contratos administrativos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de
direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de
direito privado. (...) § 2º Os contratos decorrentes de dispensa ou de inexigibilidade de licitação devem atender
aos termos do ato que os autorizou e da respectiva proposta.
77
Sundfeld. C.A. Fundamentos de direito público, p. 77.
156 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007
78
Op. cit. p. 88.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 157
79
Ibidem, p. 92.
80
Art. 37. (...) XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações
serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os
concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da
proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispen-
sáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
81
Art. 2º. As obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e locações
da Administração Pública, quando contratadas com terceiros, serão necessariamente precedidas de licitação,
ressalvadas as hipóteses previstas nesta Lei.
158 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007
82
Art. 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial:
(...)
II – para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissi-
onais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação;
III – para contratação de profissional de qualquer setor artístico, diretamente ou através de empresário exclusivo,
desde que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública.
§ 1º.. Considera-se de notória especialização o profissional ou empresa cujo conceito no campo de sua especi-
alidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento,
equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é
essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.
§ 2º.. Na hipótese deste artigo e em qualquer dos casos de dispensa, se comprovado superfaturamento, respon-
dem solidariamente pelo dano causado à Fazenda Pública o fornecedor ou o prestador de serviços e o agente
público responsável, sem prejuízo de outras sanções legais cabíveis.
83
Art. 13. Para os fins desta Lei, consideram-se serviços técnicos profissionais especializados os trabalhos
relativos a:
(...)
II – pareceres, perícias e avaliações em geral;
III – assessorias ou consultorias técnicas e auditorias financeiras ou tributárias;
(...)
V – patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas;
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 159
84
Meirelles. H.L. Licitação e contrato administrativo, p. 105.
160 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007
85
Justen Filho. M. Comentários á lei de licitações e contratos administrativos, p. 75.
86
Ibidem, p. 76.
87
Ibidem, mesma página.
88
Justen Filho. M. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, p. 76.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 161
elevado que o normal, pelas dificuldades que apresenta, razão pela qual se exige
profissional gabaritado para enfrentá-lo e solucioná-lo a contento. Mas uma observa-
ção é fundamental: o serviço técnico profissional especializado é que é mais comple-
xo, nenhuma relação guardando com o prestador desse mesmo serviço. Uma coisa
é o serviço técnico profissional especializado e sua complexidade; outra, bem distin-
ta, é o prestador do serviço e sua capacidade para executá-lo.
Com se afirmou, a própria Lei de Licitações tratou de elencar um rol que conside-
ra serviços técnicos profissionais especializados, incluindo assessorias ou consultorias
técnicas, auditorias financeiras ou tributárias (inciso III) e patrocínio ou defesa de cau-
sas judiciais ou administrativas (inciso V). Portanto, a lei afirmou que esses serviços
envolvem a aplicação de rigorosa metodologia (técnicos); possuem identidade própria
que os torna distintos em relação a outras espécies de atuação humana, exigindo habi-
litação específica para sua prestação (profissional); e exigem capacitação para o exer-
cício com habilidades não disponíveis para a média dos profissionais, exigindo o domí-
nio de uma área restrita do conhecimento, com aprofundamento que ultrapassa o co-
nhecimento normal. O artigo 13 da Lei nº 8.666/93 é expresso ao considerar como
serviços técnicos profissionais especializados aqueles constantes do seu rol, que, com
Justen Filho,89 é exemplificativo, pese embora entendermos que a norma não definiu o
que vem a ser os tais serviços, mas simplesmente considerou para os seus próprios
fins os trabalhos a eles relativos. Importa é que esses serviços, por presunção legal,
são considerados técnicos – profissionais – especializados, denotando complexidade
ab initio, é dizer, neles residentes.
De toda forma, esses são serviços (em sentido lato) passíveis de, em tese,
contratação direta ou para os quais é inexigível a licitação, isso não bastando, todavia,
porque esse dispositivo somente pode ser lido com toda a norma do artigo 25 da
mesma Lei de Licitações, é dizer, dele (serviço) se exige a natureza singular e do
prestador contratado a notória especialização, indissociavelmente. Com isso, muito
embora a lei fale em patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas, v.g.,
mister que tenham a característica da singularidade, ou seja, devem ser diferencia-
das, além de o prestador do serviço deter notória especialização.
Convém notar que as conseqüências jurídicas da consideração legal não pa-
ram na possibilidade, ao menos em tese, de contratação direta. O parágrafo 1º do
artigo 13 já traz importante determinação ao agente público, no sentido de haver pre-
ferência para realização de certame na modalidade concurso, com estipulação pré-
via de prêmio ou remuneração, nos casos de contratação de prestação dos serviços
técnicos profissionais especializados. Nos parece que o legislador previu a dificulda-
de de confrontação de preços de honorários, v.g., caso fosse a contratação de patro-
cínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas antecedida de licitação, p. ex.,
na modalidade concorrência. Além disso, aplicável no que couber, é necessário que o
89
Ibidem, p. 77.
162 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007
90
Ferreira. A.B.H. Novo dicionário da língua portuguesa, p. 1591.
91
Silva. D.P. Vocabulário jurídico, vol. IV, p. 240.
92
Rigolin. I.B. Manual prático das licitações: Lei n. 8.666/93, p. 120.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 163
lado, Lúcia Valle Figueiredo93 explica a singularidade do objeto com exemplos, situan-
do-a, primeiramente, como relacionada ao fator pessoal, de modo a impedir a con-
frontação entre o trabalho de um artista e de outro. Segue se reportando à singularida-
de do objeto na hipótese de se ligar às suas próprias peculiaridades e não as de seu
executor, caso típico, diz a autora, de um imóvel destinado ao serviço público. Termi-
na exemplificando com um parecer de Direito, em relação ao qual, igualmente, have-
ria impossibilidade de confrontação dos trabalhos de juristas.
Carlos Ary,94 fundado em Celso Antônio, em relação aos serviços diz que são
singulares, tornando inviável a licitação nas seguintes hipóteses: “a) sua prestação é
monopolizada, seja por determinação normativa (ex.: o serviço público de Correios e
Telégrafos), seja por razões de fato (ex.: serviço cuja prestação depende da titularidade
de direito autoral); b) caracterizando-se como serviço técnico profissional especializa-
do (produções intelectuais, científicas, etc.) ou como produção artística, deva, neces-
sariamente, trazer a marca pessoal de seu executor.”95 Seguindo, no que diz respeito
aos serviços técnicos afirma: “Porém, não basta dado serviço enquadrar-se no concei-
to de técnico profissional especializado para ensejar a inexigibilidade de licitação. Ne-
cessário tratar-se, diz o art. 25-II, de ‘serviço de natureza singular’. Se o serviço, embo-
ra encaixando-se entre os mencionados no art. 13, não for singular (é dizer: não de-
mandar um cunho pessoal, que o individualize absolutamente) deverá ser contratado
por licitação...”96 Celso Antônio ensina a respeito dos serviços singulares (aqueles que
nos interessam), que são os que “se revestem de análogas características. De modo
geral são singulares todas as produções intelectuais isolada ou conjuntamente – por
equipe – sempre que o trabalho a ser produzido se defina pela marca pessoal (ou
coletiva), expressada em características científicas, técnicas ou artísticas importantes
para o preenchimento da necessidade administrativa a ser suportada.”97
Para nós, a singularidade do objeto mencionada no inciso II do artigo 25 da Lei
nº 8.666/93, não pode ser vista senão pelo ângulo intrínseco, é dizer, pelas caracterís-
ticas e qualidades que lhe são próprias – do objeto – afastando da análise as qualida-
des pessoais do prestador do serviço, estas consideradas em outras circunstâncias,
conforme se demonstrará.
O artigo 25 declara ser inexigível a licitação quando houver inviabilidade de com-
petição e, em especial, menciona três ordens de circunstâncias, tratando de bens,
serviços e pessoas. A primeira delas (inc. I) diz respeito à aquisição de bens (materi-
ais, equipamentos ou gêneros) que só possam ser fornecidos por produtor, empresa
ou representante comercial exclusivo. É evidente que a licitação é inviável nesse caso,
93
Figueiredo. L.V. Direitos dos licitantes, p. 26.
94
Sundfeld. C.A. Licitação e contrato administrativo de acordo com as leis 8.666/93 e 8.883/94, p. 44.
95
Ibidem, p. 45.
96
Ibidem, mesma página.
97
Mello. C.A.B. Curso de direito administrativo, p. 276.
164 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007
pessoa que tem habilidade ou prática especial em determinada coisa, ou, conhece-
dor, perito.98
Exige-se, na dicção da lei, que o profissional especialista seja notoriamente
especializado, trazendo a norma, de forma expressa e em interpretação autêntica,
aquilo que considera notoriamente especializado. Releva notar que a lei parte daquilo
que é do conhecimento geral, de todos, pelo menos no campo de sua especializa-
ção, não se exigindo, contudo, que o seja do público de maneira generalizada. De
fato, o conhecimento exigido em relação a um determinado profissional do Direito,
v.g., deve ser, no mínimo, nesse campo do saber, nenhuma relevância tendo o fato de
não ser ele conhecido entre os engenheiros ou médicos.
Fala a lei em notória, impondo ao intérprete a tarefa de atribuir um significado ao
vocábulo. Notório, segundo o Aurélio, é o conhecido de todos, público, manifesto.
Exemplifica: professor de notório saber.99 Sob o aspecto jurídico, notório, que vem do
latim notorius, de noscere (saber, conhecer), “...é o que é sabido ou conhecido pelo
público. É o que é do conhecimento de todos ou de conhecimento generalizado. E por
ser de conhecimento público, de conhecimento geral, exprime sempre o que se tem
como certo e verdadeiro, não precisando de ser provado, porque já preexistente por
si mesmo.”100 A lei processual também tratou do que é notório, eximindo as partes do
dever de provar os fatos notórios, conforme determina o inciso I do artigo 334 do
Código de Processo Civil, justamente porque de todos conhecido. Nessa seara, ensi-
na Carnelli, contudo, que “a notoriedade, adverte-o CALAMANDREI, é um ‘conceito
essencialmente relativo’. O fato notório não tem que sê-lo, forçosamente, a todos os
homens ‘sem limitação de tempo e espaço’. A sua importância qualitativa não depen-
de, também, do maior ou menor número de pessoas que compõe o núcleo social. O
que define e caracteriza o fato notório e, qual se tem repisado, o valor demonstrativo
de ‘pacífica e desinteressada certeza’ que o conhecimento adquire em seu meio...”101
Mas a lei não se contenta com o conceito102 detido pelo profissional ou empresa,
de todos conhecido; exige que esse conceito seja decorrente de desempenho anterior,
afastando desde logo os iniciantes ou aprendizes, e exigindo experiências passadas.
Continua o exemplificativo rol falando de estudos, experiências, publicações, organiza-
ção, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas
atividades, tudo de modo a permitir inferência que o seu trabalho é essencial e indiscu-
tivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.
É possível afirmar, então, que a lei exige do profissional contratado (ou empre-
sa), seja não só especializado, mas que essa especialização seja notória, de todos
98
Ferreira. A. B.H. Novo dicionário da língua portuguesa, p. 701.
99
Ferreira. A. B.H. Novo dicionário da língua portuguesa, p. 1201.
100
Silva. D.P. Vocabulário jurídico, p. 254.
101
Carnelli. L. O fato notório, p. 211.
102
Conceito, segundo o Aurélio (op. cit. p. 445), é pensamento, idéia, opinião; é apreciação, julgamento, avaliação
ou opinião; ou ainda, pode ser reputação ou fama.
168 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007
conhecida, exigindo, ainda, a norma, que essa notória especialização seja decorren-
te de seu conceito no campo de sua especialidade, este em função de desempenho
anterior, estudos, publicações, organização, etc, tudo de molde a permitir uma
inferência: a de que seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado á
plena satisfação do objeto do contrato. Por outras palavras, a lei exige que para o
reconhecimento da notória especialização, é mister que o conceito do profissional no
seu campo de especialidade seja tão patente, em função das atividades (lato sensu)
desenvolvidas, que permita concluir ser o seu trabalho essencial, indispensável ou
fundamental, e além disso, indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do
objeto do contrato. Quer a lei que sobre a capacidade do contratado, a julgar pelo seu
passado profissional, seja fundamental e indiscutivelmente a mais adequada para
aquele determinado objeto contratual.
Portanto, parece-nos claro que essa é uma discussão que se coloca antes da
contratação e independe do efetivo resultado do trabalho, caso seja ele contratado.
As qualidades exigidas do profissional, para que se possa dizer que detém notória
especialização, devem ser colocadas a priori, de modo que dúvida alguma paire so-
bre a superior capacidade do contratado, naquela certa especialidade. Não fala a lei
em profissional que amealhou conhecimentos substanciosos, mas gerais sobre um
campo do saber. Refere-se sim à especialização conseguida ao longo do tempo e
comprovada da forma que ela própria determina. Essa exigência afasta, logicamente,
aqueles que não atuaram (ou pouco atuaram) na área para a qual se pretende a
contração sem licitação, sendo possível afirmar que a tal especialização diz respeito
à especialidade profissional, como por exemplo nas Ciências Médicas, cuja regula-
mentação se faz pela Lei nº 6.932/81. Essa norma regulamenta a chamada residên-
cia médica, uma das espécies de pós-graduação (anteriormente denominada lato
sensu), conferindo o título de especialista. A anterior lei que tratava da residência
médica havia sido regulamentada pelo Decreto nº 80.281, de 05 de setembro de 1977
e este, modificado por sucessivos decretos posteriores, continua regulamentado o
tema, trazendo em seu primeiro artigo as preferenciais áreas de especialização na
Medicina, mencionando a Clínica Médica, Cirurgia Geral, Pediatria, Obstetrícia e Gi-
necologia, e Medicina Preventiva e Social. Hoje, outras áreas são oferecidas, como a
Anestesiologia, Cirurgia Plástica, a Reumatologia, a Cardiologia, chegando à Medici-
na Nuclear. Em relação à Engenharia, pode-se exemplificar com a Civil, Elétrica, de
Produção, Eletrônica, Engenharia Naval, havendo inclusive obrigatoriedade do profis-
sional anotar a responsabilidade técnica formalmente, aceita apenas no campo de
sua especialidade.103 A Engenharia de Segurança no Trabalho, por sua vez, é especia-
lidade regida pela Lei nº 7.410/85.
No campo do Direito, embora não exista lei expressa, se fala na especialidade
em Tributário, Civil, Constitucional, Penal, Processual Civil Processual Penal, Admi-
nistrativo, Internacional, dentre outros, correspondendo aos ramos do Direito e às
103
Conforme a Lei nº 5.194/66, a qual prevê inclusive a possibilidade de registro temporário de engenheiros estran-
geiros, no caso de “escassez de profissionais de determinada especialidade...”, conforme a alínea “c” do Art. 2º.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 169
realizado. Essa disposição, por outro lado, acaba por imputar responsabilidade direta
à autoridade superior, fazendo-o igualmente responsável pela estrita observância da
lei. Essa condição de eficácia do ato administrativo que dispensou ou inexigiu a licita-
ção não é única no Direito, bastando lembrar que até mesmo na atividade jurisdicional
o agente político é obrigado a submeter sua decisão ao superior, no caso o Tribunal
competente, como no duplo grau de jurisdição previsto no artigo 475, incisos I e II do
Código de Processo Civil, aplicáveis às hipóteses nas quais a sentença tenha sido
proferida contra os entes federados ou que tenha julgado procedentes os embargos à
execução de dívida ativa da Fazenda Pública. O chamado reexame necessário visa,
grosso modo, resguardar o interesse público, não se contentado a lei com apenas a
sentença judicial. Também podem ser citados os casos de sentença concessiva de
habeas corpus e da que absolver sumariamente o réu no rito do júri, como determina
os incisos I e II do artigo 574 do Código de Processo Penal.
Pensamos que, se na hipótese de uma sentença contrária à União, Estados,
Distrito Federal ou Municípios, a título de exemplo, o juiz está obrigado a submeter
sua decisão à superior instância, como condição de validade da decisão, muito mais
relevância tem a comunicação à autoridade superior prevista no artigo 26 da Lei nº
8.666/93, porquanto indisputável que o servidor público responsável pela decisão, no
mais das vezes, sequer agente político é, sendo mero executor de ordens superiores.
As contratações diretas, via de regra, ficam a cargo dos servidores subalternos e,
insistimos, o caráter de absoluta excepcionalidade da dispensa ou inexigibilidade de
licitação, impõe efetivo controle por parte da administração superior, inclusive com
necessidade de ratificação do ato por esta, e a conseqüente co-responsabilidade.
Por fim, uma palavra sobre o contrato administrativo. Embora até desnecessário,
o legislador expressamente dispôs no parágrafo 2º do artigo 54 da lei de regência que
os contratos decorrentes de dispensa ou inexigibilidade de licitação devem atender aos
termos do ato que os autorizou e da respectiva proposta. À evidência que nesses ca-
sos não se fala em licitação – propriamente dita – e muito menos em edital, todavia, os
princípios elencados no artigo 3º da Lei nº 8.666/93 encontram aplicação na hipótese,
sobretudo a finalidade da licitação e o modo como será processada e julgada. O princí-
pio da motivação do ato administrativo, dentre outros, igualmente, tem obrigatória apli-
cação. Por derradeiro, o inciso XI do artigo 55 da norma referida, manda inserir cláusula
estabelecendo a vinculação ao termo que dispensou ou inexigiu a licitação.
nas Cortes de Contas e no Judiciário, tanto pelo Ministério Público (por ações civis
públicas por ato de improbidade administrativa), como também por cidadãos utilizan-
do a ação popular. Todavia, a jurisprudência não se firmou num ou noutro sentido,
inclusive a administrativa, pois decisões existem de Tribunais de Contas, de Estados
ou da União, em ambos os sentidos.
Pensamos ser compreensível essa dissonância por inerente à natureza da ques-
tão tratada. É que, conquanto não se possa afirmar, a priori, ser ilegal a contratação
direta de advogados pelo Estado, com inexigibilidade de licitação, não se pode, da
mesma forma, dizer que sejam sempre possíveis. Explicamos.
Os serviços advocatícios são passíveis, em tese, de contratação direta mas
desde que a hipótese se amolde aos requisitos da Lei nº 8.666/93 – à evidência – em
tudo aquilo que por ela exigido. Coerente com o defendido neste trabalho, já tivemos
oportunidade de sustentar a possibilidade, atuando pelo Ministério Público de 2ª ins-
tância, nos autos da AC nº 207.349.5/0-00, da 6ª Câmara de Direito Público do Tribu-
nal de Justiça do Estado de São Paulo, dentre outros. Tratava-se da contratação de
sociedade de advogados notoriamente especializados em Direito Bancário, para
ajuizamento de ações de repetição de indébito por pagamento de juros excessivos
em operações de antecipação de receita orçamentária (ARO), providência adotada
por recomendação do Egrégio Tribunal de Contas. Bem examinada a hipótese, verifi-
cou-se a presença da singularidade do objeto e a notória especialização da socieda-
de de advogados contratada. Assim, como nesse, em outro seria possível a
contratação direta, desde que o Poder Público envolvido possa verificar que os servi-
ços enfocados são técnico-profissional-especializados, igualmente presente a sin-
gularidade do objeto. Isso verificado, possível passar à etapa seguinte, de identifica-
ção de profissional que detenha notória especialização, a tudo se seguindo a comuni-
cação da autoridade superior que, em ratificando o processo, dará publicidade,
permitindo a eficácia desejada, máxime a própria contratação, obviamente observan-
do-se o § 2º do artigo 54 e o inciso XI do artigo 55, ambos da lei de regência. Como
dissemos, para nós, a comunicação e ratificação têm o efeito da homologação e
adjudicação previstas no inciso VI do artigo 43 da mesma lei. Não há possibilidade de
contratação antes da adjudicação, igualmente não se podendo falar em contratação
sem a ratificação e publicação, no caso de inexigibilidade de licitação.
É necessário enfatizar a relevância da singularidade do objeto, sobretudo por-
que em se tratando de serviços de advocacia, nem sempre ela estará presente, sen-
do comumente desprezada. Em parecer de Mirto Fraga, datado de 26.06.95, publica-
do na RDA 201/283, a Consultoria da União assim se posicionou: “Empresa Estatal -
Advogado – Licitação. Admissível a contratação de serviços particulares de advoca-
cia com inexigibilidade de licitação quando o serviço for de natureza singular. Se o
serviço não for singular, a contratação deve ser precedida de pré-qualificação com
adjudicação equalitária entre os advogados pré-selecionados.”
Nem poderia ser outro o entendimento, pois, se ausente a singularidade do
objeto, vedada está a contratação direta, sem licitação. Também Geraldo Ataliba teve
172 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007
Nos parece que a questão foi bem examinada e apreendido o ponto fulcral, é
dizer, as defesas nas demandas judiciais para as quais foi contratado advogado, sem
licitação, não se revestia da singularidade necessária. Também o Superior Tribunal de
Justiça debateu o tema, no RMS 5.532/PR, relatado pelo Min. Peçanha Martins, publica-
do no DJ de 23 de abril de 2001, p. 123, do qual se extrai: “por outro lado, não conven-
cem os argumentos expendidos pelo recorrente quanto à singularidade dos serviços
profissionais a serem executados, nem que não pudessem ser atendidos pelos inte-
grantes do serviço jurídico da APPA.” Nesse caso, o Tribunal de Contas do Paraná
impugnou a contratação de advogado trabalhista por órgão público, para acompanhar
processos em curso no Tribunal Regional do Trabalho. O administrador público cujo ato
foi impugnado, impetrou mandado de segurança junto ao Tribunal de Justiça do Paraná,
tendo sido denegada a ordem. Recorreu ao Superior Tribunal de Justiça e teve improvido
seu Recurso Ordinário em Mandado de Segurança. Desse aresto se extrai: “Sem qual-
quer demérito para os ilustres advogados que militam na Justiça do Trabalho, não exi-
ge o requisito da ‘singularidade’, capaz de justificar a dispensa da licitação, o acompa-
nhamento de processos na segunda instância cujo avultado número denuncia disputas
corriqueiras da relação de emprego. É certo que naquela Corte ocorrem casos
intrincados a demandar um serviço mais aprimorado e por quem posso desenvolve-lo
com ‘singularidade’ não me parecendo, porém, que sejam na quantidade afirmada pelo
impetrante.” Conquanto se note posição diversa da nossa em relação à singularidade,
é certo que os serviços, para os quais contratado o advogado, não se revestiam da
característica autorizadora da inexigibilidade de licitação.
Na realidade, difícil sustentar que defesas rotineiras, em processos judiciais
ou administrativos, possam se caracterizar como singulares, ainda que traduzam
grandes dificuldades para o profissional, pois não é esta (a dificuldade) que dá nota à
singularidade como já dissemos. Singular, para lembrarmos, é o que não se repete.
À evidência que a dificuldade da demanda pode indicar ser prudente a
contratação de profissional mais qualificado. A Administração Pública, concluindo por
não dispor de profissionais do Direito à altura que se faz necessário, sem dúvida
pode decidir pela contratação de profissional gabaritado, ao menos em princípio. Não
pode, todavia, deixar de promover a necessária licitação. O mesmo ocorre em rela-
ção às chamadas consultorias, pelas quais determinado advogado, ou sociedade
deles, é contratado para se manifestar em relação aos mais variados temas jurídicos,
presentes ou futuros. Óbvio, nos parece, que jamais se poderá detectar aí a singula-
ridade do objeto, simplesmente porque não se sabe qual ou quais temas serão apre-
ciados pelo consultor. Nesses casos, da mesma forma, não está vedada, em princí-
pio, a contratação de profissionais gabaritados para fazer frente à demanda; proibida
está, por imperativo constitucional e legal, a contratação direta, com base na
inexigibilidade de licitação.
Por outro lado, a presença do requisito da singularidade do objeto não autori-
za, por si só, a inexigibilidade de licitação na contratação. É mister, como se viu, a
notória especialização do contratado, podendo ser chamado de requisito subjetivo,
174 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007
trazendo dificuldades de toda ordem, a começar pela resistência dos próprios profis-
sionais advogados em se exporem às licitações. Essa dificuldade (pelo menos essa)
não existe entre os engenheiros ou arquitetos, habituados a participarem de licita-
ções públicas, expondo sua qualificação, seus projetos e trabalhos anteriores ao co-
tejo da Administração. A notória especialização, como se viu, tem na lei de regência o
caminho a ser trilhado e dele não pode se desviar, sob pena de arbítrio não tolerado.
Com efeito, o § 1º do Art. 25 da Lei nº 8.666/93 elenca uma série de requisitos, a
começar pelo conceito do prestador do serviço, passando pelo histórico profissional,
tudo devendo desaguar na inferência de ser aquele trabalho essencial e indiscutivel-
mente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato. Bem verdade que o
rol justificador do conceito é meramente exemplificativo, contudo, suficiente para ex-
cluir o reconhecimento da notória especialização de profissionais ou sociedade de
advogados que, efetivamente, não possam encerrar eventuais especulações sobre a
essencialidade e indiscutibilidade da adequação mencionada pela norma. Importa que
esse tipo de contratação deve, sempre, ser excepcional, como adverte Lúcia Valle
Figueiredo: “Ao abordarmos o segundo problema, verificamos, de logo, que a notória
especialização deve servir, apenas, às contratações excepcionais, como exceção a
uma regra e, mais do que isto, como exceção a um princípio.”104
Pensamos que contratar profissional do Direito que não preencha os requisitos
da notória especialização, como exige a lei, ou profissional que detenha essa qualida-
de, mas que seja contratado para prestação de serviços cujo objeto não atende à
exigência da singularidade, por certo estaria em desacordo não só com a lei de re-
gência, como também a própria Constituição Federal, que determina a realização de
licitação, além de obrigar à observância dos princípios da impessoalidade e da igual-
dade. Também aqui, presente se mostra ao aplicador da lei concretizar o critério
produzido por Celso Antônio, permitindo aquilatar, no caso concreto, se o elemento
tomado como fator de desigualação daquele profissional vis-à-vis os demais advoga-
dos ou sociedade deles, guarda uma correlação lógica com o tratamento jurídico
diferenciado. Por fim, deve ser verificado se o tratamento diferenciado está em con-
sonância com os interesses absorvidos no sistema constitucional. Merece ainda ser
relembrada a lição de Canotilho mencionada no item 3.2.2: “existe uma violação arbi-
trária da igualdade jurídica quando a disciplina jurídica não se basear num: (i) funda-
mento sério; (ii) não tiver um sentido legítimo; (iii) estabelecer diferenciação jurídica
sem um fundamento razoável.” Se mostra prudente realizar a análise em cada caso
concreto, de modo a aferir se há ou não ofensa ao princípio da igualdade.
Em vista da dificuldade de caracterização, tanto da singularidade do objeto quanto
da notória especialização do prestador, a lei tratou de indicar ao administrador público
a providência que atende aos ditames constitucionais, sendo ainda a mais razoável
sob o aspecto prático. Trata-se da realização da licitação na modalidade de concur-
so, na forma do § 4º e inc. IV do Art. 22 da Lei nº 8.666/93, indicada no § 1º do Art. 13.
104
In RDP nºs. 43-44, p. 110.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 175
105
STF – Súmula 346: A administração pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos.
106
STF – Súmula 473: A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam
ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade,
respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada em todos os casos a apreciação judicial.
107
Bielsa. R. Derecho administrativo, p. 171.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 177
108
Lei nº 4.717/65 - Art. 6º. A ação será proposta contra as pessoas (...), e contra os beneficiários diretos do
mesmo.
109
Lei nº 8.429/92 – Art. 3º - As disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo
agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma
direta ou indireta.
178 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007
Por fim, mas não menos importante, é a sanção penal expressa para o caso de
dispensa ou inexigibilidade de licitação fora das hipóteses legais, ou ainda, a inobser-
vância das formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade, atingindo ainda
aquele que, comprovadamente, tenha concorrido para a consumação da ilegalidade
ou tenha se beneficiado, conforme reza o artigo 89 e seu parágrafo único da Lei nº
8.666/93, prevendo penas de detenção, de 3 a 5 anos e multa, muito graves, sem
dúvida, mas que demonstram o cuidado do legislador no tratamento da dispensa e
inexigibilidade de licitação.
Essas disposições não afastam as sanções próprias previstas na Lei nº 8.429/
92, igualmente graves, mas de natureza civil, por tudo se podendo afirmar que a
realização de licitação é a regra, sendo a dispensa e a inexigibilidade absoluta exce-
ção, devendo assim ser focalizada pelo prudente administrador público.
110
Lima. H, Barroso, G. Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa.
111
Fazzio Júnior. W. Improbidade Administrativa e Crimes de Prefeitos, p. 50.
112
Pazzaglini Filho, M.; Rosa, M.R.E.; Fazzio Júnior, W. Improbidade Administrativa, p. 39.
113
Fazzio Júnior, W. op. cit. p. 50.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 179
114
Silva. J..A. Curso de direito constitucional positivo, p. 646.
115
Figueiredo. M. Probidade Administrativa, p. 23.
116
Fazzio Júnior. W. op. cit. p. 46.
180 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007
nele declaradas não são substitutivas do conjunto de sanções penais fixado na legis-
lação para os crimes funcionais e contra a administração pública. Concorrem com
eles, sem substituí-los, nem excluí-los. Ou seja, o dispositivo remete à legislação
menor matéria não penal. Daí por que as sanções que a LIA, como norma regulado-
ra, estabelece são desprovidas de substrato criminal. As condutas descritas na LIA
podem, também, configurar ilícitos penais, mas estes serão apurados na ação penal
cabível, com sanções peculiares”.
A improbidade administrativa, assim, conduta humana comissiva ou omissiva
que produz efeitos jurídicos involuntários (fato jurídico), foi concebida como uma ilicitude
que acarreta sanções civis, políticas e administrativas, independentemente da res-
ponsabilidade penal, tratando-se de ilícito plurisubjetivo, por ofender a vários bens
jurídicos tutelados pelo Direito.
Em obediência ao comando constitucional, foi a improbidade administrativa re-
gulamentada pela Lei 8.429/92. Pela definição dessa lei é possível identificar três
categorias nas quais agrupados os atos considerados como sendo de improbidade
administrativa: os que importam enriquecimento ilícito ao agente público, indepen-
dentemente de eventual lesão ao erário (art. 9ª); os efetivamente lesivos ao erário
(art. 10); e aqueles que, mesmo não acarretando enriquecimento ilícito ou lesão ao
erário, atentam contra os princípios da Administração Pública (art. 11). Para cada
uma dessas situações, a penalidade respectiva (art. 12, incs. I, II e III).
Importa, neste momento, destacar a figura do ato de improbidade administrati-
va que redunda em lesão ao erário colocada no inciso VIII do art. 10 da lei de regência,
in verbis: Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário, qual-
quer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apro-
priação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referi-
das no art. 1º desta Lei, e notadamente: ...VIII – frustrar a licitude de processo licitatório
ou dispensá-lo indevidamente.
A previsão abrange duas modalidades de atos de improbidade com lesão ao erá-
rio relacionadas a procedimentos licitatórios: frustrar a licitude do procedimento; ou
dispensa indevida de licitação. Frustrar a licitude de processo licitatório é frauda-lo.
“Fraudar licitação é distrair o procedimento licitatório. O ato fraudulento é o que intenta
burlar a lei, frustrando sua execução. Consiste em subtrair ao domínio da lei o que lhe
deveria estar sujeito.117 Dispensar indevidamente licitação, “em qualquer de suas mo-
dalidades, é extrapolar os casos legais de dispensa, contratando diretamente obra ou
serviço, quando a lei exige a competição em busca do melhor negócio. É não promovê-
la, sem justa causa legal que derrogue a regrar geral de sua obrigatoriedade”.118
117
Ibidem, p. 132.
118
Ibidem, mesma página.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 181
119
Figueiredo. M. Probidade Administrativa., p. 81.
182 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007
como vítimas dos atos de improbidade, que são aquelas elencadas no art. 1º da Lei
de Improbidade: União, Estados, Distrito Federal, Territórios e Municípios; autarquias,
empresas públicas, sociedades de economia mista; fundações instituídas pelo Po-
der público; empresas incorporadas ao patrimônio público; empresas com participa-
ção do erário; empresas subvencionadas ou incentivadas pelos cofres públicos. As-
sim, a par do Ministério Público, as pessoas jurídicas lesadas pela prática de ato de
improbidade administrativa também são legitimadas para a propositura da ação para
a imposição das penas respectivas.
A legitimidade do Ministério Público, por seu turno, independentemente da ex-
pressa previsão da lei mencionada já que anteriormente a ela, já havia manifesto
respaldo constitucional. Assim os termos dos incisos II e III do art. 129 da CF: São
funções institucionais do Ministério Público: ...II – zelar pelo efetivo respeito dos Po-
deres Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta
Constituição, promovendo as medidas necessárias para sua garantia; III – promover
o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social,
do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.
Com o advento da Constituição Federal de 1988 o campo de atuação do Minis-
tério Público foi alargado, com a inclusão sob sua tutela de qualquer interesse difuso
ou coletivo. Mais recentemente, o Código de Defesa do Consumidor, em seus artigos
81 a 110, além de disciplinar os conceitos de interesses difusos e coletivos, incluiu os
interesses individuais homogêneos no rol daqueles protegidos pela ação civil pública
e, acrescentando um inciso ao art. 1º da Lei 7.347/85, colocou sob o manto do institu-
to a defesa de “qualquer outro interesse difuso ou coletivo”. Como se percebe, por-
tanto, é o Ministério Público legitimado para a propositura de medidas para a tutela de
todos os interesses transindividuais, divisíveis ou não, previstos em lei. E, como não
poderia deixar de ser, estratificou o E. Superior Tribunal de Justiça entendimento nes-
se mesmo sentido: “Com a Constituição de 1988, o Ministério Público teve distendido
seu campo de atuação – art. 129, III – cabendo-lhe a promoção do inquérito civil e da
ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e
de outros interesses difusos e coletivos, sem a limitação imposta pelo art. 1º da Lei
7.347/85. (REsp. 137.101-MA, DJU, 14-9-98, p. 44, rel. Min. Adhemar Maciel, j. 4-6-
98, 2ª Turma STJ). Ao Ministério Público é reconhecida legitimação ativa para, por via
da ação civil pública, proteger danos cometidos contra o patrimônio público por meio
de ações ilícitas dos agentes públicos. Interpretação do art. 1º, IV, da Lei n. 7.347/85,
em combinação com o art. 25, IV, b, da Lei n. 8.625/93 e art. 129, III da CF. (REsp
166.848-MG, rel. Min. José Delgado, DJU, 3-8-98, p. 133, j. 12-5-98, 1ª T. STJ).
Possível neste momento, pois, afirmar, que a improbidade administrativa, ilicitude
de natureza não penal, pode ser caracteriza pela indevida dispensa de procedimento
licitatório, inclusive para contratação direta de advogado, que tenha se dado por dolo
ou culpa, independentemente de comprovação de efetiva lesão ao erário, cabendo
sua persecução à pessoa jurídica pública interessada ou ao Ministério Público.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 183
9. Conclusão
para a sua prestação, advindo daí o qualificativo de profissional; além disso, exigem
capacitação para o exercício com habilidades não disponíveis para a média das pes-
soas, exigindo o domínio de uma área restrita do conhecimento, com aprofundamento
que ultrapassa o conhecimento mediano. A presunção legal implica reconhecer que
há uma complexidade neles residentes, isso ocorrendo com qualquer serviço de ad-
vocacia, independentemente do caso concreto.
No que diz respeito à singularidade do objeto, é possível afirmar que se trata de
um dos requisitos da inexigibilidade de licitação. Singularidade quer dizer particular ou
individual, algo raro ou extraordinário. Traduz a idéia daquilo que se distingue ou se
individualiza de per si, é o especial ou o particular a certa classe ou a certas coisas. A
singularidade de que trata a lei, somente pode ser vista por seu ângulo intrínseco, ou
por outras palavras, pelas características e qualidades que lhe são próprias (do objeto),
de imediato afastando as qualidades pessoais do prestador de serviço. Na verdade,
singular é o objeto, jamais o prestador do serviço. As qualidades pessoais – tão somen-
te – são consideradas pelo legislador, apenas no caso de contratação de profissionais
de qualquer setor artístico, dos quais se exige apenas que sejam consagrados pela
crítica especializada ou pelo público, como dispõe o inciso III do artigo 25. Já o inciso II
do mesmo artigo 25 declara ser inexigível a licitação para a contratação dos serviços
técnicos enumerados no artigo 13 da Lei de Licitações, mas exige que o objeto tenha
natureza singular, pouco importando, até esse momento, quem será o prestador do
serviço. Assim, enfatizamos, não há se falar em “singularidade do prestador do servi-
ço”, senão na singularidade do objeto. Nesse sentido, a singularidade constitui-se em
requisito objetivo da inexigibilidade de licitação, ao lado dos serviços técnicos enumera-
dos no artigo 13, nos quais se subsumem os serviços advocatícios.
A notória especialização, por seu turno, é o requisito subjetivo da inexigibilidade
de licitação, é dizer, se liga ao prestador do serviço. É prevista como exigência no inciso
II do artigo 25 da Lei de Licitações, trazendo aquilo que deve ser considerado como
notória especialização, em rol exemplificativo, no parágrafo 1º do mesmo artigo. Espe-
cialista é a pessoa que se dedica a um ramo de sua profissão; ou pessoa que tem
habilidade ou prática especial em determinada coisa, ou ainda, conhecedor ou perito.
Notório, por outro lado, é o de conhecimento de todos, o público ou o manifesto. Em
razão de notório ser tomado como aquilo que é do conhecimento público ou de todos,
traduz o que se tem como certo e verdadeiro, prescindindo de ser provado. A lei proces-
sual também trata do fato notório, eximindo as partes do dever de provar. Na Lei de
Licitações, a notória especialização encontra um limite à conclusão do aplicador da
norma, na medida em que relaciona o conceito detido pelo profissional ou empresa, à
inferência de que seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena
satisfação do objeto do contrato. Com isso, o fato do profissional possuir um ótimo
conceito no campo de sua especialidade, por si só, não implica dizer que possua notó-
ria especialização de que fala a lei, pois essa é apenas a primeira parte da exigência
legal, devendo isso resultar na essencialidade e indiscutibilidade referidas.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137 a 188, janeiro/junho-2007 185
Cumpre ressaltar que ao teor do diploma legal de regência, não se pode falar
em reconhecimento da notória especialização, em função da probabilidade de su-
cesso na realização do trabalho ou, muito menos, confiança do agente contratador
no contratado. A notória especialização é requisito subjetivo que se coloca a priori,
como essencial para a satisfação do objeto contratado, de modo que nenhuma dúvi-
da deva pairar quanto à capacidade do profissional levar a bom termo a incumbência.
A especialização mencionada na lei diz respeito à especialidade profissional, obser-
vada nas Ciências Médicas, nas Jurídicas e nas Engenharias, a título exemplificativo.
Também a lei processual trata da especialidade do perito na matéria sobre a qual
opinará, tudo comprovado por certidão ou documento hábil.
Enfatizando o caráter excepcional da dispensa e da inexigibilidade de licitação, o
legislador determinou providências administrativas próprias, como a obrigatoriedade da
comunicação à autoridade superior, ratificação e publicação na imprensa oficial, como
condição de eficácia dos atos anteriores, a exemplo do reexame necessário das “sen-
tenças contra a Fazenda Pública”. Assim, se esta depende de reexame para ter eficá-
cia, mais ainda se exige da decisão administrativa que inexigiu a licitação na contratação
de serviços de advocacia, parecendo um contra-senso impor mais rigor ao processo
judicial que ao administrativo. Depois da ratificação e publicação – não antes – poder-
se-ia contratar, com cláusula de vinculação ao termo que inexigiu a licitação.
Na realidade, a conclusão mais importante é que a contratação direta de servi-
ços advocatícios, é dizer, inexigindo-se a licitação, é possível, ao menos em tese,
desde que o caso concreto assim o permita. Para tanto, mister a verificação da pre-
sença da singularidade do objeto e a notória especialização do escolhido, sempre de
acordo com as graves exigências da Lei de Licitações, por tudo mostrando que a
regra é a realização de certame, sendo absoluta exceção a dispensa ou inexigibilidade
da licitação. No caso de contratação de serviços de advocacia, conforme recomenda
a Lei nº 8.666/93, deve ser realizada licitação na modalidade de concurso, com a
vantagem de não causar o aviltamento de honorários combatido pela Ordem dos
Advogados do Brasil.
Por fim, no que diz respeito às conseqüências do desatendimento das prescri-
ções específicas da Lei nº 8.666/93, afirma-se que a Administração Pública tem o
dever de anular o contrato e os atos anteriores, operando-se retroativamente de modo
a impedir os efeitos jurídicos que ele, de ordinário, deveria produzir, desconstituindo
os já produzidos, inclusive o pagamento do contratado, podendo haver indenização
pelos serviços até então prestados, se não existir culpa deste. A previsão de figura
penal específica para a indevida dispensa ou inexigibilidade de licitação, com penas
graves, inclusive, associada ao disposto na Lei nº 8.429/92 sobre o assunto, uma vez
mais ressalta o caráter de exceção da dispensa e da inexigibilidade de licitação, po-
dendo ser utilizados, mas sempre dentro dos estreitos limites legais. Tratando-se de
ato de improbidade administrativa o Ministério Público é órgão constitucional e legal-
mente legitimado para buscar em juízo o reconhecimento da prática ímproba, com
186 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.137-188, janeiro/junho-2007
condenação dos responsáveis nos termos da lei de regência. O Parquet deve dar
especial atenção e atuar nesses casos, impedindo o locupletamento de alguns às
custas do combalido erário público.
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ROTEIR O P
TEIRO ARA
PARA
O COMB
COMBAATE
À LAVAGEM
LAV
DE DINHEIRO
DINHEIRO
1
É comum a Polícia Judiciária investigar o crime, elucidar a autoria, a materialidade dos fatos e relegar para a
Magistratura deliberar sobre os bens auferidos com o delito, e ao Ministério Público a decisão de prosseguir, ou
não, na investigação sobre o destino dado ao capital obtido com os delitos.
2
NAÍM, Moisés, Ilícito,trad. Sérgio Lopes, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, p. 20.
3
Ibidem.
4
COSTA, José de Faria, “O fenómeno da globalização e o Direito Penal Económico”, in Boletim da Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra n° 61, 2001, p. 540.
5
CANAS, Vitalino, O crime de branqueamento: regime de prevenção e de repressão, Coimbra: Livraria Almedina,
2004, p. 21.
192 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.189-199, janeiro/junho-2007
6
PELLEGRINI, Angiolo e JÚNIOR, Paulo José da Costa, Criminalidade organizada, São Paulo: Jurídica Brasileira,
1999, p. 55.
7
CAPARRÓS, Fabián, El delito de blanqueo de capitales, Madrid: Ed. Colex, 1998, p. 412.
Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.189 a 199, janeiro/junho-2007 193
8
CANAS, Vitalino, O crime de branqueamento: regime de prevenção e de repressão, ob. cit., p. 22.
194 Revista da ESMP - ano 1, n.º 1, p.189-199, janeiro/junho-2007