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} QUINTA, 29 DE MARÇO
que questionava se a lei deveria beneficiar agentes
do Estado que torturaram e mataram nos porões da
ditadura. Mas o debate pode voltar à tona, a partir de
ações e interpelações em tribunais internacionais.
MARCOS MÜLLER/AE
F
oi há muito tempo, nu- mal algum em expor crianças ao aviso seco assaltava. Se o dinheiro, que servia de medi- cional da Casa Civil da Presidência da Repú-
mamanhãdesolchapa- de que havia assassinos impiedosos à solta. da para todos os preços, como a bala Chita blica. Quando vi, em uma página dupla de
do. Eu devia ter uns 9 Oterrorismopropagandísticoqueelesdifun- na matinê de domingo, já não servia de pa- umarevistasemanal,umanúncio comapala-
anosdeidade, talvezoi- diam era liberado para menores. Na embria- drão, o que mais poderia servir? Algo de es- vra“Desaparecidos”,tomeiumsustoque pa-
to, e caminhava, ao la- guezde sua sensaçãode onipotência, deviam sencial estava derretendo no mundo fixo e recia regurgitado daquele outro que experi-
do do meu pai, pela cal- pensar que todo cidadão, como as crianças, imutável em que eu crescia, mas não dava mentei ainda criança, na agência do Banco
çada da Avenida 2, em era um crédulo indefeso, pronto a tomar por para saber o que era. Itaú. Lá estavam as mesmas fotos em preto e
Orlândia, SP. O casario verdade pétrea os slogans que faziam rever- Salto para o ano de 1971. Um dia, meu pai branco, as mesmas fotos das mesmas pes-
que passava à nossa di- berar por meio de suas máquinas publicitá- chegou para almoçar especialmente preocu- soas. Um pequeno texto, ao pé das fotogra-
reita, com paredes em rias. Eles ensinavam que ser adulto era con- pado. Tomou seu lugar na cabeceira da me- fias, explicava o objetivo da nova campanha:
tons amenos, janelas para a rua, era brusca- cordar com as autoridades. Ser adulto era sa. Trazia o semblante amarrado. Minha “Ainda existem mais de 140 famílias de desa-
mente interrompido a uns 20 metros do en- perder a inocência – e renunciar à liberdade. mãepuxou assunto eele,contrariandoapos- parecidos políticos que, mesmo depois de o
contro da Avenida 2 com a Rua 4. Em concre- Por isso, a intuição de meu pai ao tentar tura dediscrição disciplinada, balançou a ca- Brasil conquistar a democracia plena, ainda
to armado e amplas paredes de vidro, ficava me afastar daquela selvageria tinha uma jus- beça baixa sobre o prato de comida: não conseguiram enterrar seus mortos. En-
ali a agência do Banco Itaú. Meu pai tinha tificativa.Eletentavameresguardar. Épossí- – Esses filhos do Ivo... contrar esses corpos não é só respeitar o di-
quepagaralgumacontaou falarcomo geren- vel que não tenha levado em conta que, mes- – O que é que tem? reito sagrado de seus familiares, é também
te do Itaú, o seu Carlos, e resolveu me levar mo sem entender dos negócios que os adul- – Ele foi visitar os filhos na cadeia e eles uma forma de o Brasil impedir que erros do
junto. Era pertinho de casa, menos de um tos conduzem, as crianças pressentem o que disseram que fariam tudo de novo, tudo ou- passado se repitam no futuro.”
quarteirão. não encaixa bem. Elas registram o sentido tra vez, que não se arrependem de nada. O Estado brasileiro segue procurando os
Logo que chegamos ao balcão dos caixas, involuntário, o contraditório. Eu tinha ouvido na rua, não fazia muito mesmos rostos. Não que os agentes policiais
eu vi o cartaz. Não me lembro exatamente Eu registrava. O silêncio do meu pai, eu o tempo,queosfilhos doprofessor IvoVannu- não ostenham encontrado há 40anos. O que
dos dizeres – “Procurados”, “Terroristas registrei. Ele sabia que algo não ia bem com chi, de São Joaquim da Barra, 17 quilômetros se passou é algo inconcebível. Eles foram
Procurados”, algo assim – mas retive na me- as mensagens oficiais, mas não dizia. Talvez ao norte de Orlândia, eram aquela coisa lá, achados, mas não oficialmente. Foram apri-
mória a mancha das fotos em preto e branco, nem para si mesmo. Naqueles anos, 1968, terroristas, como os que apareciam no car- sionados, mas ilegalmente. Caíram na ma-
em colunas verticais. Elas me deram a notí- 1969, os professores, o padre, o delegado, o taz. Mas meu pai, contrariado e triste, não se lha paraestatal, por assim dizer. Padeceram
cia de que não vivíamos em segurança. Foi capitão do Exército, os rotarianos, todos re- estendeu em explicações. numa espécie de “Caixa 2” de vidas huma-
um choque. Para descrever o que se deu co- petiam que as coisas estavam em ordem. A O professor Ivo era um homem respeita- nas, da qual não restaram registros formais.
migo numa única palavra, eu diria: terror. Ao insistência de que tudo estava sob controle do. Um exemplo de cultura e de conduta. Seus corpos sumiram. Antes, os policiais os
avisar que havia homicidas soltos pelas ruas, era tão histriônica, tão raivosa, que acabava Seusfilhos eram terroristas. Pior:eramfaná- caçavam vivos para exterminá-los; agora o
talvez até mesmo pelas ruas de Orlândia, ao deixando escapar um clima de insegurança, ticos – tinham sido presos e mesmo assim Estado vai buscá-los mortos, pelos vazios da
lado da minha casa, aquele pôster me aterro- de instabilidade, que precisava ser aplacado não se arrependiam de nada. “Os comunis- História. Até hoje, procurados.
rizou. Lançava contra mim um ultimato: por meio do “pulso firme”. Em tudo havia tas fazem lavagem cerebral nos inocentes
“Ou você se converte em delator ou estará um sinal de descontrole iminente. úteis”, analisava o tio Cyro, que morava em ✽
na mira desses sujeitos aqui, ó, os procura- Quando veio o Cruzeiro Novo, em 1967, frente à nossa casa. Eu e meus irmãos enten- EUGÊNIO BUCCI É JORNALISTA. PROFESSOR DA
dos, esses sujeitos com cara de gente sem paravaler mil vezes mais que o velho Cruzei- díamos que lavagem cerebral era como ser- ECA-USP E COLUNISTA DO ESTADO. ESTE TEXTO
coração”. ro, que estava na praça desde 1942, a percep- vir a alguém uma poção enfeitiçada. A lava- INÉDITO FARÁ PARTE DO LIVRO DIREITOS HUMA-
Pedi explicações ao meu pai, que abreviou ção de que as coisas estavam se dissolvendo gem cerebral levara os filhos do professor NOS: PERCEPÇÕES DA OPINIÃO PÚBLICA – ANÁLI-
o assunto me levando pra longe. Desconver- no ar entrava nos lares por baixo do vão da Ivo Vannuchi para o terrorismo e, depois, SES DE UMA PESQUISA (ORG. DE GUSTAVO VENTU-
sando, achava que me faria esquecer. Mas porta da sala. A “boa notícia” da moeda no- para a cadeia. Inutilmente. Eles não muda- RI), QUE A SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS
esquecer como? va, tão incensada, não conseguia esconder vam de ideia de jeito nenhum. DA PRESIDÊNCIA LANÇARÁ EM JUNHO