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A história dos direitos humanos surge dos horrores verificados após a segunda
guerra mundial, em que pelo menos seis milhões de judeus foram dizimados pelos alemães.
Muito embora o segundo e então definitivo “reich” de Adolf Hitler não tenha se concretizado,
é certo haver o holocausto a que o ser humano foi submetido, inspirado o mundo a adotar
paradigmas éticos, filosóficos e morais para orientar, numa ação conjunta, um processo de
internacionalização dos determinados e mais básicos direitos então denominados, a partir dali,
1
de direitos humanos. A relação de Bruno, alemão, e Shimon, judeu - duas crianças
desinteressadas a escrever uma história de humanidade por entre cercas de arame farpado -,
agora se tornaria história corriqueira sob o fundamento de um direito convencionado por
grande parte das nações do mundo.
1
John Boyne, O menino de pijamas listrados.
2
Jaime Benvenuto Lima Júnior, Relatório brasileiro de direitos humanos econômicos, sociais e
culturais – meio ambiente, saúde, moradia adequada, educação, trabalho, alimentação, água e terra
rural, p. 135, 2003.
3
e Puffendorf, na idade média, ao conceber certos direitos inerentes a cada ser humano em
decorrência da própria natureza humana, também apontava na mesma direção.
4
3
governo”. De mesma forma, o exercício dos direitos dos indivíduos, agora selados pelo
próprio Estado no seu conjunto, se lhes dotando com a pecha da fundamentalidade,
compunham um regime de liberdades públicas todas voltadas para a vida básica,
primeiramente, de cada um. Porque essa foi, à época, a primeira necessidade sentida pelos
revolucionários franceses, já inspirados pelas declarações dos norte-americanos. Desejavam
eles o direito à vida privada, desregulada pelos olhos do rei, sobretudo.
3
Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Direitos Humanos Fundamentais, 1999.
5
dos olhos do rei, nos mais remotos aspectos era, na verdade, a vontade de dignidade humana
que o homem perseguia a si até então.
Por isso então, a relevância dos direitos humanos como parte indispensável dos
direitos das gentes, talvez os únicos a motivar continentes inteiros e o próprio mundo
entrelaçado, a um consenso quase que unânime a esse respeito. Antes disso Direito
Humanitário, a Liga das Nações e a OIT – Organização Internacional do Trabalho trataram
deles. A Carta das Nações Unidas, de 26 de junho de 1945, assinada em São Francisco, nos
Estados Unidos, também fez isso. Tudo no intento de fortalecer a idéia da dignidade humana.
4
Enciclopédia Compacta de Conhecimentos Gerais, p. 347.
6
primórdios, ineficazes. A solene Declaração teve como divisor de águas justamente a
homenagem aos avanços do homem também no campo ético, já que até ali, até a década de
40 do século passado, esse lhe via em desuso. Os direitos fundamentais de outrora, agora se
tornavam também humanos a toda e qualquer pessoa do mundo, sem exceção.
5
Alci Marcus Ribeiro Borges, Breve Introdução ao Direito Internacional dos Direitos Humanos,
2006.
7
repousar sobre os de cunho fundamental. E os direitos fundamentais, por sua vez, não apenas
se aperfeiçoaram, mas se despertaram no seu caráter mais humano possível justamente em
virtude do pós-guerra mundial. Por isso então, sua importância para a compreensão dos
direitos humanos em si, estudo esse a ser desenvolvido nas próximas linhas.
6
Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit, p. 19, bem aduz que “a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, é a mais famosa das declarações. Por força do
preâmbulo da Constituição de 1958 – como ocorria na de 1946 – está ela em vigor na França.
Integra o chamado ‘bloc de constitutionnalité’, em face do qual opera o controle de
constitucionalidade efetuado pelo Conselho Constitucional”.
7
Dimitri Dimoulis e Martins Leonardo, Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, 2007.
8
A terminologia “dimensão”, mesmo repudiada por parte da doutrina nacional,
é a regularmente usada. Há quem prefira a expressão “geração”, outra ferozmente criticada. E
há ainda os que preferem denominar tais direitos como “categorias” ou “espécies”. 8
8
Guido Soares, Direito Internacional Público e Direitos Humanos, 2007, dispõe, com incisão, que
“de mesma forma, a classificação dos direitos humanos conforme “gerações”, tem recebido críticas,
em nossa opinião, em parte, bastante procedentes, como as formuladas por autores internacionais e,
sobretudo brasileiros, para apenas citar alguns, como os luminares doutrinadores, Antônio Augusto
Cançado Trindade , o já citado Carlos Weis, Dalmo de Abreu Dallari e Flávia Piovesan . Os
argumentos de tal crítica se resumiriam a que o conceito de “geração” seria inadequado, porquanto
alguns dos direitos da segunda e terceira geração já constavam do rol dos direitos da primeira
geração, os denominados direitos liberais, e, sobretudo, que aqueles não se originaram, tal como os
filhos, destes”.
9
Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit.
9
O valor disso, nesta percepção, surge enfim como rol de direitos a combater a
ação discricionária e arbitrária do Estado em face dos indivíduos, caracterizando sua mínima
intervenção e sua pecha de absenteísta. A ele se impunha uma espécie de ação negativa, não
lhe restando discricionariedade ou arbitrariedade sobre a qual se firmar em prol de seus
interesses próprios. Cada ser humano passa a ser tomado como fim da atividade estatal, para
quem o Estado se vinculava juridicamente, em respeito ao conteúdo firmado e admitido na
própria Declaração de 1789.
Finda que, desta visão isonômica da lei e das liberdades públicas aos
indivíduos, os menos abastados não puderam lhe perceber a, de fato, criarem mudanças
significativas, principalmente no âmbito sócio-econômico. Se a lei tratava a todos de maneira
equivalente, não adiantava ao magistrado tratar os menos abastados de maneira semelhante
aos mais abastados porque, no mais das vezes, o controle social e econômico era ainda
exercido pela burguesia, e isso limitava a própria chance de um menos abastado lograr êxito
10
Ney Stanys Morais Maranhão, A afirmação histórica dos Direitos Fundamentais. A questão das
Dimensões ou Gerações de Direitos, 2006.
10
em qualquer demanda, ou em qualquer outra situação, se em face de indivíduo ou corporação
muito maior do que ele.
11
Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit, p.42.
11
Com isso se percebe que o liberalismo empunhado pela promulgação da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, é resultado premeditado de uma ambição
concretizada pela burguesia francesa em tomar as rédeas do poder estatal, porque até ali, já
cansada da proteção qual sempre se ofereceu ao clero e a nobreza. O proletariado, neste
embate, foi por ela utilizado como mera longa manus, nunca como parte integrante,
fundamental, para quem as conquistas pelas liberdades públicas seriam igualmente repartidas.
Por essa razão, o descontentamento dos menos abastados toma forma nas
doutrinas do marxismo, do socialismo, entre outras semelhantes. A igreja católica também
lança sua doutrina social, de repúdio à acumulação de riquezas da maneira como então os
direitos fundamentais pareciam permitir. Em 1917, eclode a Revolução Russa. E depois disso,
outros Estados passam a encarar todo este plexo de ideais como substrato material para
efetivação de políticas sociais através de mudanças jurídicas relevantes, criando os chamados
direitos sociais, de cunho assistencialista. É o que fazem as Constituições do México, em
1917, e a de Weimar (alemã), em 1919. 12
12
Nelson Saldanha, O que é o Liberalismo?, 1996.
13
Daniel Sarmento, Direitos Fundamentais e Relações Privadas, 2006.
12
mão de recursos jurídicos, poderia envidar esforços políticos para alcançar equivalência entre
ricos e pobres, denominando-se esta busca como Justiça Social.
Como visto, só em razão, pois, desta segunda dimensão de direitos dados como
fundamentais a alguém, é que se abrem melhores oportunidades ao ser humano de gozar da
primeira dimensão de direitos, até então percebida por não muitos, geralmente, donos das
terras, da indústria e do comércio. A busca pelo capital era ainda necessária, porque
indispensável. Por pelo menos quase um século, as nações se enveredaram sob a regência do
sistema econômico capitalista, e certamente não se desfariam dele, por já deterem vínculo
intrínseco com o próprio Liberalismo, o que não era de todo ruim.
E o que de fato assusta na guerra de Hitler é a razão de seu saldo ter sido, sem
dúvida alguma, um dos mais cruéis à humanidade, sob a pecha de um nacionalismo (aliás, de
um social-nacionalismo) exacerbado, disfarçado do mais puro autoritarismo. A matança foi
encetada em nome de uma sociedade mais justa. E curiosamente, para se alcançar a esta
sociedade mais “ajustada”, “padronizada”, traçou-se um culto demasiadamente exclusivista à
pureza da nação. Descartava-se quem não era considerado cidadão, mediante parâmetros
absolutamente subjetivos, pessoais. Origem, crença religiosa e cor de pele prestavam-se como
13
elementos desclassificatórios à consideração de um indivíduo como parte de seu país. O
próprio princípio liberalista e ainda subsistente da igualdade, em pleno Estado Social, passou
a ser desrespeitado mais uma vez.
O ideal de nação mais justa acabou enfim, por transcender a própria razão de
“ser” humano. E por esse motivo, a alusão ao resultado da segunda guerra. Os povos se
constrangeram a humanização e universalização das relações humanas. Chegou-se à
conclusão de que os direitos fundamentais não podiam mais proteger aos interesses do
indivíduo, ou de um grupo determinado de indivíduos, inspirado pela cidadania a fazer
distinção entre semelhantes. Não. Os direitos fundamentais, antes de tudo, deveriam dirigir-se
aos seres humanos, agora não somente considerados como fim de seus Estados soberanos,
mas sujeitos de direitos tutelados por todas as gentes.
Há quem diga, como Manoel Gonçalves Ferreira Filho 15, que a Declaração
Universal dos Direitos do Homem situa-se ainda na esfera da segunda dimensão de direitos
fundamentais, por inscrever, lado a lado, liberdades públicas e direitos sociais. Para o
doutrinador, a citada Declaração seria um coroamento das duas dimensões de direito
existentes, pela junção delas num só diploma.
14
Mabel Cristiane Moraes, A proteção dos Direitos Humanos e sua Interação diante do Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana, 2003.
15
Mabel Cristiane Moraes, op.cit.
16
José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional, p. 385, 1993.
14
Há quem diga, com acerto, que os direitos humanos, na verdade, não
decorreram necessariamente do segundo pós-guerra mundial, desta terceira dimensão de
direitos fundamentais. Para os que advogam este entendimento, os direitos humanos foram
sim deflagrados a partir deste momento histórico na vida da humanidade, que foi a segunda
guerra mundial, mas, na verdade, houveram de nascer já na primeira dimensão, pertinente a
Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789, como houve de se anotar
anteriormente. Porque antes, estavam adormecidos.
17
Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, p. 569, 2000.
18
Flávia Piovesan, Direitos Humanos e Direito Constitucional Internacional, 1997.
15
constitucional na ordem jurídica interna. Aliás, esta a diferença entre um e outro: os
fundamentais são institucionalizados na ordem interna 19, e só ela os pode garantir. Tratam da
vida humana, mas não na sua plenitude. Na verdade, indicam valores os quais podem levar o
ser humano a alcançar parte de sua dignidade, mas não ela toda.
Os direitos humanos, por sua vez, vêem na ordem internacional o seu repouso,
por causa de seus valores axiológicos. Como direito no seu amplo sentido, os tratados
internacionais de direitos humanos tomam por base fontes materiais históricas, sociológicas,
éticas e filosóficas. Sua gênese não surge a partir de uma ordem estatal interna. Surge a partir
da vida humana e do valor que se faz a seu respeito. Os Estados internacionais só formalizam
estes direitos reputados humanos, passando a respeitar a humanidade de cada indivíduo em
especial, por não mais se tolerar discrepâncias acerca da natureza humana de cada um. A vida
humana iguala os indivíduos, não a lei, pois todos, sem distinção, são dotados de liberdade,
autonomia e razão 20, valores que não se pode, e nem nunca se poderia ter ignorado.
19
Mabel Cristiane Moraes, op.cit.
20
Mabel Cristiane Moraes, op.cit.
16
21
. A vida humana – e não alguns de seus setores –, desde a Declaração Universal dos Direitos
dos Homens, é elevada a categoria de bem máximo de um ordenamento jurídico, nunca
passível de ingerência estatal ou internacional qual lhe faça degradada. Os Estados passam a
fazer dela motivo de pactos internacionais, de tutela também internacional. Apenas a
efetivação das normas que a delimitam é que se orquestram no seio dos ordenamentos
jurídicos internos de cada país signatário deste pacto.
21
Celso Lafer, A Reconstrução dos Direitos Humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah
Arendt, 1988.
17
ponto especificamente, muito embora a partir disso e de recente jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal, se o discuta aqui para fins de análise da supralegalidade.
18
Apenas uma pequena digressão se faz a respeito do que são os tratados, como
fontes formais de expressão do direito internacional, pelas quais as regras jurídicas do que
convencionam os Estados é então positivada. É importante a anotação a respeito porque, entre
outras razões de se clamar pela constitucionalidade material de um tratado na ordem interna,
tudo quanto lhe envolve para o seu cumprimento é também motivo suficiente para se exigir
que, ante a ordem jurídica vigente, à luz da Constituição Federal de 1988, um tratado de
direitos humanos receba como norma, esse posicionamento.
22
J.F.Rezek, Direito Internacional Público, 1999, p. 14.
19
que variável ao extremo, o tratado passa por esse caminho, digamos. E pelo efeito
compromissivo e cogente que visa produzir, ele mesmo dá cobertura legal à sua própria
substância, mesmo que a matéria tratada seja não tenha relevância substancial ao direito das
gentes, tampouco aos humanos em si. 23
Veja-se então que “o acordo formal entre os Estados é o ato jurídico que
produz a norma, e que, justamente por produzi-la, desencadeia efeitos de direito, gera
24
obrigações e prerrogativas” . De muita relevância a consideração porque, um tratado
internacional de direitos humanos, a seu turno, nada mais é do que um tratado em que sujeitos
de direitos internacionais avalizam vínculos entre eles no intuito de que a dignidade do ser
humano, não formalmente, mas materialmente, entre atitudes positivas e negativas de um
Estado, seja promovida, e principalmente, respeitada.
23
J.F.Rezek, op.cit, p. 14
24
J.F.Rezek, op. cit, p. 19.
20
ratificação. A doutrina a isso denomina procedimento, que pode ser menos ou mais abreviado
dependendo do sistema constitucional de cada país, e pode envolver um ato composto dos
Poderes Executivo e Legislativo.
25
J.F. Rezek, op. cit.
26
J.F. Rezek, op. cit, p. 33.
21
(em que se tem um poder derivado para a celebração de tratados internacionais), ou então, por
um chefe de missão diplomática.
27
Op.cit, p. 47.
22
como se concebe a idéia em relação às Constituições dos Estados, o preâmbulo pode indicar
as razões sociológicas, éticas, filosóficas e políticas para fundamentar a razão de se celebrar
determinado tratado.
Nele constam os seus objetivos. E assim constam para que sua parte
dispositiva tenha como finalidade, como alcance, justamente o cumprimento destes objetivos,
e por isso a sua importância. Diz-se que a Corte Internacional de Justiça já se valeu, e não só
em uma ocasião, do preâmbulo de um tratado para delimitar o alcance do dispositivo nele
constante. 28
28
J.F.Rezek, op. cit.
29
J.F. Rezek, op. cit.
23
nota, emite a sua nota-resposta, para que assim tenha validade o tratado, consumando-se o
vínculo bilateral.
30
Op.cit, p. 70.
24
O Poder Legislativo de um país, se lhe permitido, pode opor suas restrições
quando da aprovação do tratado na ordem interna. Mas serão elas consideradas, quando da
ratificação pelo poder Executivo, com reservas.
Por erro, dolo, corrupção e coação sobre o negociador também se pode opor
reservas a um tratado. O Erro que se aceita quanto à idéia de um tratado, é de fato, não de
direito. A coação, gerando nulidade absoluta do tratado em relação ao país signatário a opor-
lhe reserva por esse fundamento, é caracterizada pela ameaça ou emprego de força em
violação aos princípios de direito internacional. O dolo é caracterizado pela deliberada má-fé
de um dos negociadores em usar o tratado como forma de desequilibrar-se uma relação
presumida justa, em tese. E a corrupção, diz respeito ao convencimento de um negociador por
outros, de maneira imoral, em promessa de determinadas vantagens pessoais ao Estado que
então assinar o tratado.
Não há termo final, usualmente, para se ratificar um tratado, a não ser que esta
possibilidade seja assim disposta em alguma de suas cláusulas. E ele passa a entrar em vigor,
quando não lhe observado um lapso como vacatio legis, de vigência diferida.
O tratado deve, após isso, ser registrado. Atualmente, se faz tal coisa junto às
Nações Unidas. Mas outras organizações regionais, conforme dispõe o tratado, ou
organizações especiais, conforme dispõe a matéria dele, podem servir como órgãos para
registro de um tratado internacional.
Há tratados que podem operar efeitos sobre terceiros, sejam jurídicos, sejam
meramente factuais, mas, sobre isso não se discute. Em regra, como já se anotou, um tratado
vige por tempo indeterminado, a não ser que o próprio texto nele inserto diga o contrário. E
países outros os quais de sua negociação e assinatura resolveram não tomar parte, podem
depois, aderir-lhes, operando o que então se denomina ingresso mediante adesão. “A adesão
é uma forma definitiva de consentimento do Estado em relação ao tratado internacional. Sua
natureza jurídica não difere daquela da ratificação: também aqui o que temos é a
manifestação firme da vontade de ingressar no domínio jurídico do tratado”. 31
Um tratado não pode ser violado. Aliás, é feito, em tese, para não sê-lo. Se
violado, sua violação deve ser substancial, o que, segundo a Convenção de Viena em seu art.
60, acontece quando um Estado o repudia pura e simplesmente em conta de um dispositivo
fundamental para a consecução do que então se tratou, acordou. O que, por conseqüência, “dá
direito a outra parte de entendê-lo extinto, ou de suspender também ela o seu fiel
cumprimento, no todo ou parcialmente”. 32
Para o estudo, não cabe tratar-se a respeito do conflito entre tratados em si,
senão entre eles e a lei interna, o que se fará em outro tópico, e não agora.
31
J.F. Rezek, op. cit, p. 91.
32
J.F. Rezek, op. cit, p. 95.
26
levando-se em conta sucessivas adesões e denúncias as quais, ao longo de sua vigência, foram
ocorrendo. Ou então, extingue-se um mediante condição resolutiva por lapso, por termo,
variável nas suas formas, em predeterminação ab-rogatória. Ainda, por conjugarem-se
intenções ab-rogatórias da unanimidade das partes ou mediante votação com quorum
majoritário (desde que expressa essa possibilidade no próprio tratado), caso em que se opera
uma decisão ab-rogatória superveniente para se extinguir o tratado.
Um tratado pode ainda ser extinto por vontade unilateral encetada por uma das
partes pactuantes, só que por denúncia desta à outra, ou ainda, a todas as outras partes,
conforme se trate a forma de um tratado pela sua bilateralidade ou multilateralidade. Pela
denúncia, manifesta num instrumento ou notificação escrita, em ato de Governo do poder
Executivo dirigido ao depositário do tratado, o Estado denunciante pratica um ato então
unilateral em que declara sua vontade de “deixar de ser parte no acordo internacional” 33.
33
J.F. Rezek, op. cit, p. 112.
27
Ao menos é essa a interpretação mais razoável, efetiva e integradora que se
pode fazer do inciso I do art. 49 e do inciso IV do art. 83 da CF/88, diante de uma leitura
harmônica e sistemática de todo o texto constitucional. Aqui não se debate ainda quanto à
possível incorporação automática dos tratados de direitos humanos, disposição essa dada pelo
próprio constituinte originário, como dita a conjugação dos § § 1º e 2º do art. 5º, em virtude
da matéria neles tratada ser de suma importância à própria função da dignidade humana como
valor fundante não só do sistema constitucional, mas da ordem jurídica que se criou após o
dia 03 de outubro de 1988 34.
Mas não se deixa de reconhecer que uma vez dada ao Congresso Nacional
competência exclusiva para resolver ou referendar definitivamente tratados, em especial, os
que podem acarretar encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional, lhe seja
dada também competência para referendar previamente, um ato de denúncia a ser tomado
pelo Poder Executivo. No âmbito dos tratados de direitos humanos, por mais que exista quem
diga não haver incorporação automática deles na ordem jurídica – isso não em razão da
matéria que tratam, obviamente, mas sim pela rigidez formal da Constituição e sob a ótica de
não se poder afrontar a separação de poderes -, 35 se pode dizer, por ora, que até a sua retirada
do ordenamento jurídico deve, impreterivelmente, passar pela voz da “Casa do Povo” que é o
Poder Legislativo.
2.2 Do papel do Direito Internacional Público e sua cogência perante a ordem jurídica
interna dos Estados.
36
Antônio Albuquerque, Material de Estudo da Faculdade de Direito da Universidade Lusófona, p.2.
30
só que se compreendendo nesta expressão “Estado” o relacionamento entre quaisquer outros
sujeitos de direito internacional, mesmo os de cunho supranacional, com outros organismos
nacionais. Noutra das mãos, o Direito Internacional Público regula a ordem internacional num
todo, podendo se dizer tratar-se esta a finalidade talvez maior de sua atuação.
Hidelbrando Accioly diz serem inúmeras “as doutrinas que procuram explicar
a razão de ser do DIP, mas verifica-se que todas podem ser filiadas a duas correntes, ou
seja, a voluntarista e a positivista”. E um pequeno comentário se faz a esse respeito, até em
virtude de se conceber a importância disso para que um tratado de direitos humanos, em nossa
ordem interna, seja consagrado materialmente como norma constitucional, de plena eficácia
sempre que possível, e não equiparada a ela mediante inócuo processo legislativo, ou feita lei
especial em face de leis regulares.
37
Hidelbrando Accioly, Manual de Direito Internacional Público, 1996.
31
Estados respeitarem-na de boa-fé em razão da vontade ou consentimento dado, na verdade, ao
tratado que pactuaram. Por isso, deve a norma cogente ser cumprida de boa-fé já que, também
de boa-fé, presume-se, foi consentida.
Mas sobram críticas ao jus cogens. As mais recorrentes são a de que não há
uma ordem jurídica internacional sobre a qual todos os países do mundo firmem seu
consentimento, abrindo, por isso, mão de própria parcela de seu poder interno. Noutras
palavras, não há executoriedade, de fato, na ordem jurídica do Direito Internacional Público
porque é característica dele próprio que os Estados sejam sempre independentes e soberanos,
regendo-se pela sua autodeterminação sem que outros lhe intervenham.
38
Guido Soares, op. cit, p.18.
32
Se admitida, essa discricionariedade desmerece a razão de ser de um tratado, e do próprio
Direito das Gentes.
Entretanto, positivada, a regra do jus cogens tenta (ou pelo menos intentou), da
melhor maneira possível, inculcar nos Estados o sentimento de cumplicidade no tocante suas
relações internacionais, de que sejam cumpridas todas de boa-fé já que a boa-fé, como valor
ético e moral, é o ideal, a atitude volitiva que se espera do próprio coração humano. A
humanidade a tem como padrão e se lhe positivou a Convenção de Viena na intenção de
lembrar aos Estados a importância de que um pacto deve sempre ser cumprido, desde que
respeitados princípios básicos do próprio Direito Internacional Público, mesmo sabendo-se
que melhor seria a expectativa de que o jus cogens ficasse ao alvedrio moral e ético de cada
Estado.
Os Estados são governados por corações humanos. Corações humanos são
governados por desígnios, em sua maioria, como se viu na história do mundo, ruins. O ser
humano nasce bom, mas ao longo da vida pode se tornar ruim, principalmente se não lapidado
e incentivado a manter seus laços éticos e espirituais de bondade, de humanidade. O Direito,
fruto da criação do homem e ciente disso, equilibra-se nesta premissa, regulando as relações
humanas entre bons e ruins, se lhe incumbindo dar-lhes o que lhes pertencem, desde que, para
tanto, se faça tal coisa em respeito a um mínimo de dignidade humana inerente a ambos.
E é esse, pois, o motivo para se haver positivado o valor do jus cogens como
princípio explícito e objetivo do Direito Internacional Público.
33
Contudo, em virtude dessa cogência, vê-se razão para se questionar quem, ou
melhor, qual dos direitos, num conflito direto entre tratado internacional e lei interna, tem
prevalência sobre a regulamentação das relações entre os Estados como sujeitos
internacionais.
Porque mesmo existindo uma ordem jurídica dita “externa”, por força da
imperatividade de um tratado, dentro de cada Estado, semelhantemente, existe uma ordem
jurídica interna em que os seus desejos já expressos são soberanos sobre o seu povo, ainda
que odiosos a outros Estados. Melhor dizendo, a primeira grande pergunta na visão de
Hidelbrando Accioly, consiste em saber se o Direito Internacional Público e o direito interno
são dois ordenamentos independentes ou se tratam de dois ramos de um mesmo sistema 39.
39
Op. cit, p. 62.
34
A segunda apóia-se no primado da ordem jurídica interna, importando na
soberania de cada Estado que, a seu critério, pode ou não adotar os preceitos do Direito
Internacional, de maneira casual. Na verdade, cabe ao Estado consentir ou não de que a norma
internacional melhor complete seus interesses. A ordem jurídica única desenhada sob o
monismo, a princípio, tem validade no seu todo, mas no caso de eventual conflito de norma
internacional em face de norma interna, prevalecerá esta última se assim o Estado desejar.
Porque a norma interna é fruto de sua criação. E a interpretação que se deve fazer dela é à luz
da própria Constituição do Estado, e não de um diploma internacional.
Eis então, três posições as quais se pode adotar, na qual em uma delas, os
Estados podem admitir, de qualquer forma, a existência do Direito Internacional Público.
Mesmo que a crítica ao jus cogens se faça então acentuadamente, em razão desse paradoxo,
de como resolver um conflito entre lei internacional e lei interna, da prevalência de uma à
outra e em quais casos isso pode se dar.
40
J.F. Rezek, op. cit. p. 05.
35
humanos, servem para melhor aperfeiçoar a aplicação da Constituição Brasileira, por
exemplo, sob o mote da dignidade humana.
Por fim, a CF/88 é dualista quando anota que um tratado internacional assinado
pelo Brasil, representado pelo Poder Executivo, deve passar por processo de incorporação
conduzido pelo Congresso Nacional que, o admitindo, irá editar Decreto Legislativo como
que o validando, sobre o qual o citado Poder Executivo enfim poderá apor sua ratificação. É o
que versa o art. 84, VIII, da Carta Política.
Como então já se anotou, para a finalidade deste estudo, a posição que se adota
ao menos para justificar a constitucionalidade material de um tratado internacional de direitos
humanos é a de que a Constituição adotou, neste quesito, a corrente monista, sob a primazia
dos Direitos Internacionais Humanos. Ao menos nesse aspecto, não parece haver dúvida que o
constituinte originário fez opção pela citada incorporação imediata de tratados de direitos
humanos, em virtude da relevância da matéria neles disposta. O fato de o constituinte
derivado, diga-se de passagem, com o advento da EC/45, haver criado uma espécie de
processo formal para a incorporação e equiparação de um tratado a uma Emenda
Constitucional, não retira a eficácia do monismo sob a prevalência do Direito Internacional
Público (no caso, como se anotou, dos direitos humanos), inserto no texto do § 2º do art. 5º da
CF/88.
36
Os direitos humanos, aos quais se cumprem fazer constantemente a sua defesa
intransigente, conferem ao campo normativo da proteção humana, uma natureza globalizante,
o que muito justifica sua relevância até para o próprio Direito Internacional atual. E é por
conta disso que “até mesmos os temas tradicionais passaram a ser “contaminados” pelo
novo enfoque centrado nos valores revelados pela novidade da descoberta da pessoa humana
nas relações internacionais”. 41
“Viver é mais que existir” 42, diz a letra do liricista. Aliás, diz a humanidade
inteira. Viver é existir para si mesmo. É reconhecer-se entre si e entre os outros. É gostar-se,
valorizar-se, e saber que o Estado lhe deve não só esse respeito, mas a promoção disso, por
intermédio ou de ações positivas, ou de ações negativas.
41
Guido Soares, op. cit.
42
Slim Rimografia, “Sol”, de “Instrospectivo”.
37
Aliás, o mundo também deve. Quem nasce, nasce para existir, em qualquer
parte do mundo, sob qualquer aspecto em que se proponha discutir a sua própria existência,
enquanto ser pensante, racional. Quer sob um valor religioso, sejam sob valores éticos,
filosóficos, morais, jurídicos ou quaisquer outros, a vida, estrondosamente viva, na forma de
quem anda, pensa, lê, escreve, come, e habita o mundo inteiro, é o patrimônio de um planeta
em meio a outros oito, na qual se vê-la unicamente existir nesse chamado Terra.
Sendo assim, quaisquer conceitos ou estudos que se faça sobre isso, jamais
serão estanques. Os gregos ou o cristianismo na visão de São Tomás de Aquino fizeram, mas
não esgotaram o tema. Imannuel Kant 43 e o ideal de todo ser humano existir como um fim em
si mesmo, ou a reflexão de Nietzche em Assim falava Zaratrusta ou Humano,
Demasiadamente Humano, igualmente. Protágoras, Cícero, Agostinho, Francisco de Vitória,
Puffendorf, Descartes, Locke, Rosseau, Voltaire e Montesquieu, igualmente contribuíram
cada um ao seu tempo e modo, para conferir importância de ser e sentir-se humano, sem,
contudo, traçarem pontos de chegada, senão, pontos de partida para se alcançar a uma espécie
de fórmula sobre o que vem a ser a dignidade do ser humano.
43
Norbert Hoerster é quem cita Kant, ao dizer que “no reino dos fins, tudo tem um preço ou uma
dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outro como
equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo preço e, portanto, não tem equivalente, então
ela tem dignidade”.
38
direito, a partir de então, deveria sempre ser reconhecido por qualquer ordem jurídica interna,
uma vez reconhecido pela ordem jurídica internacional. E seria válido sob quaisquer
condições ou circunstâncias, ainda que um conceito completo a respeito de dignidade humana
não se alcançasse, como, de fato, nunca se alcançou.
Pois, o que mundo havia visto até então, por si só, era o conceito do que não
era e nem nunca poderia ser a dignidade de uma pessoa.
44
O mundo, em torno dele, passa a gravitar , sobretudo de maneira
conscientemente ética. Com o pós-segunda guerra mundial, o direito, definitivamente, passa a
ser colocado à sua razão, combatendo sua coisificação. E a partir da Declaração Universal dos
Direitos do Homem, esta concepção então se desdobra em direitos “humanos”, direitos esses
marcados por indivisibilidade e universalidade. A condição de pessoa humana é o único
requisito para que um indivíduo tenha o expresso reconhecimento de seus direitos
45
primordiais, a proteger sua existência com dignidade moral e espiritual. Em especial, para
protegê-lo do Estado e do juízo que a inobservância disso o pode levar a fazer de si mesmo.
Eis, portanto, o molde do mais amplo valor traçado a respeito do ser humano.
A experimentação de dor física e sofrimento moral nunca antes haviam sido maiores e
46
intensas . E essa dor, esse sofrimento, do segundo pós-guerra em diante, passa a ser
relembrado ao nascer de um novo dia, mesmo que inconscientemente. O indivíduo dá-se a
refletir a respeito de sua existência e de como ela é exposta não só porque a ordem jurídica foi
então permeada de valores desta natureza. Na verdade, o que faz o direito é tentar alcançar
uma dignidade humana que, para ela mesma, não há conceito fugaz, estanque.
44
Vicente Greco Filho e Alessandra Orcesi Pedro Greco, A Prova Penal no contesto da Dignidade da
Pessoa Humana, 2008.
45
Flávia Piovesan, Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos: Jurisprudência do
STF, 2008.
46
Mabel Cristina Moraes, op. cit.
39
O indivíduo dá-se a refletir a respeito de si, de seu papel, sobre sua finalidade.
Não só perante o próprio Estado em que vive, mas perante o mundo. A dignidade humana é
assim, um sentimento que vem de dentro para fora, que brota do coração. Nem o próprio ser
humano consegue explicá-la. Se forjada sob um conceito, é por vezes o juízo doloroso que o
próprio ser faz de si mesmo perante o mais algoz dos homens e das instituições: ele mesmo,
enquanto parte de um Estado social, político ou jurídico, e parte do mundo que também dessa
forma parece se organizar. Ele indaga como pode, diante disso, sobreviver dignamente por
suas próprias forças e o que faz a lei para lhe socorrer ao menos um pouco, em pé de
igualdade.
47
Carmem Lúcia Antunes Rocha, op.cit.
40
E para isso, há o reconhecimento da existência dos direitos mais básicos a esse
desiderato, imprimindo-se neles o próprio conteúdo da dignidade humana e a projeção dela
sob uma única, mas não esgotável linguagem, se assim podemos dizer. Ela não é alocada
como derivação de uma conduta, ou mesmo como um padrão de conduta a ser perseguido. Ela
passa a ser tratada como uma qualidade, não importando o modo de cada um conduzir-se. A
dignidade humana passa, pois, a ser relevada como um “pressuposto de qualquer conduta, um
limite externo e de caráter tutelar imposto à ação”. 48 O indivíduo que a goza, a goza não por
seus próprios méritos. Goza-a porque é ser humano e, até então, está vivo.
48
Augusto César Leite de Carvalho, A dignidade (da pessoa) humana, 2009.
49
Vicente Greco Filho e Alessandra Orcesi Pedro Greco, op. cit.
50
Mabel Cristiane Moraes, op. cit.
51
Carmem Lúcia Antunes Rocha, op. cit.
52
Como bem estudou o assunto Del Vecchio, todas as manifestações jurídicas subsumem-se a uma
fonte única, essencial e permanente que é o espírito humano, a natureza humana, a pessoa humana.
41
Humanos, visando garantir o exercício dos direitos da pessoa humana. Seu diploma maior, se,
reconhece na Declaração Universal de 1948. Surge com ela, uma espécie de um código
comum, a ser observado por todos os países 53.
Este controle, esta limitação, passa então a ser empreendida de “fora para
dentro”, tendo-se o incentivo de diplomas e organismos internacionais a motivarem os
Estados a respaldarem seus pactos sociais, ou seja, suas Constituições, com normas de
implicações tanto negativas quanto positivas aos poderes de cada Estado na sua
particularidade. Essa a diferença básica do que anteriormente não se havia constatado na
Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão, de 1789.
Só que, como se vê até hoje, por questão ética, moral, filosófica e de alguma
forma espiritual ou religiosa, o ser humano existe. Irá sempre existir, até o dia em que a terra
se acabe. E a partir disso, de sua simples existência e já de seu valor enquanto ser existente e
pensante, é que então se lhe respeita. Porque a pior afronta à dignidade de um indivíduo
enquanto ser humano, ao menos de maneira objetiva, é aquela praticada pelo próprio Estado
em que ele vive, quando se lhe nega principalmente respeito e proteção. Quando em guerra,
escravizado até por uma outra nação, o indivíduo inda assim não desmerece tratamento digno,
muito embora se admita ao menos que tal coisa se imponha por parte do inimigo, do Estado
vencedor, até com maior amplitude.
43
Mesmo assim, a indignidade do ser humano é inadmissível.
Uma guerra civil, por exemplo, não se origina somente a partir de movimentos
paramilitares, de cunho político principalmente. Ela nasce em corações humanos indignos, e
pode se manifestar de maneira muito pior, como a que se vê no Brasil do século atual. A
apatia política e o descaso às instituições públicas fazem de cada um, refém, e ao mesmo
tempo, vilão. O aumento incontrolável da criminalidade é um dos frutos dessa guerra interior.
Injustiça social e falta de boa-fé no trato de negócios se eternizam como motivos suficientes
para que a ordem econômica, pela cobrança de juros, seja sempre desequilibrada, e por esse
motivo, a defesa da dignidade humana, a humanizar qualquer relação particular, entre
indivíduos, e estatal, entre indivíduos e Estado.
Enfim, diante então desse esboço amplo do que se trata a dignidade de um ser
humano, torna-se impossível conceituá-la sob um molde estrita e verdadeiramente jurídico 57.
Pior ainda é a tentativa de divorciá-la então dos tão citados valores éticos, morais, filosóficos,
sociológicos e espirituais dos quais inevitavelmente o constituinte brasileiro se embebeu,
57
O conceito de Ingo Wolfgang Sarlet, A eficácia dos Direitos Fundamentais, 2001, a respeito do
tema, por exemplo, é um dos mais completos. Por ele se tem a noção de que "A qualidade intrínseca e
distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do
Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais
que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como
venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e
promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em
comunhão com os demais seres humanos".
44
mesmo a criando como parte de uma norma hipotética fundamental abstrata que é a
Constituição Brasileira. A verdade é que todos a dizem ter sido forjada sob o valor da
dignidade da pessoa humana, ainda que esta última, como sobreprincípio jurídico, tenha sido
positivada, como dita o art. 1º, III, da CF/88.
58
Carmem Lúcia Antunes Rocha, op. cit.
45
sob armas. Os que se muniram de idéias e tolerância, evitando a todo custo uma guerra civil
de indignidade humana dentro do próprio coração, foram obrigados à rouquidão.
Por tal motivo é que, vendo-se tamanha gravidade em tudo isso, o constituinte
preferiu, com a promulgação da nova Carta Política do Brasil, dispor uma resolução ao que no
passado se violou, formalizando-se principalmente o chamado bloco de constitucionalidade
do art. 5º da CF/88 e prevendo outras dimensões de direitos fundamentais (inclusive os de
quarta ou quinta geração como prefere parte da doutrina dizer).
Dizem, aliás, que uma das seqüelas desses anos de ditadura militar deu-se na
década de oitenta, quando então se constatou um crescimento econômico pífio que só fez
aprofundar o fosso social entre ricos e pobres. Por conta deste Estado de Direito “às avessas”,
a economia e a competitividade do país foram estagnadas. Os inúmeros planos econômicos
desta época, além de pouco conquistar, marcaram a década seguinte, a de noventa, ainda com
marcas outras, indeléveis. Cresceu a apatia política de gente já descrente do Estado. Por
conseguinte, deu-se mais azo à proliferação ou a “descoberta” da corrupção.
Por conta disso tudo é que uma nova luta, a partir da Constituição Federal de
1988, passa a ser travada. O ideal mor do novo constitucionalismo em vigor no Brasil não só
retoma a democratização do Estado e o fortalecimento de suas instituições. Inculca no
inconsciente coletivo a idéia de o país necessitar mostrar-se economicamente forte,
competitivo, e sólido na condução do sistema democrático de governo. Ao menos
politicamente, se tentaria alçar o Brasil à condição de potência internacional, o que só se faria
por abertura do mercado interno a impulsionar o aquecimento da economia e o incremento da
indústria nacional. Tudo em vista de se “revestir” a chamada dignidade da pessoa humana.
E por isso o intuito da Constituição Federal de 1988 em adotar em seu art. 1º,
inciso III, a dignidade humana. Não somente se concedia, a partir dela, unidade aos direitos e
garantias fundamentais, agora considerados como inerente à personalidade de qualquer
indivíduo. De mesma sorte, se tentava, um pouco, amenizar a latente questão da miséria social
na qual a maioria pobre, era submetida.
Visando a construção de uma sociedade justa, como diz o art. 3º, I, da Carta
Política, é que surge a dignidade humana. Isso estava a valer tanto para ordem interna quanto
no tocante às relações internacionais que o Estado Brasileiro travaria com outros países,
fazendo prevalecer os direitos humanos. Quem o diz é o art. 4º, II e IX, da Constituição.
Por isso que a positivação, pois, da dignidade humana como sobreprincipio, foi
não por acaso, estratégica. O Brasil passou a dizer, a partir de 1988, que o bem estar do ser
humano seria o ideal pelo qual todo o seu maquinário estatal estaria engrenado. Pelo ser
humano o país se organizaria no âmbito de seus três poderes políticos e para ele se envidaria
todo e qualquer esforço para lhe fazer sentir-se humano. Isso se daria através da disposição de
direitos e garantias fundamentais, políticas e sociais, principalmente.
59
Op. cit.
60
Direito Constitucional, 2006, p. 45.
47
Ferir, portanto, a este sobreprincípio, é muito “muito mais grave do que
transgredir uma norma” 61, na clássica lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, por
exemplo. Tem-se não somente uma ofensa a um específico mandamento obrigatório, como
também a um sistema de comandos, muito maior do que o próprio princípio. Tem-se a
legitimação da mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade 62, por se ofender ao
maior princípio existente na ordem jurídica brasileira.
Uma Constituição pode ser classificada sob o seu aspecto jurídico, político ou
sociológico. Hans Kelsen, Carl Schimitt e Ferdinand Lassale, cada qual a seu modo e visão, a
definem sob estes três aspectos, respectivamente.
Mas é fato que na CF/88 não consta só a forma pela qual o país se organiza
politicamente ou então os valores dos quais ela se reveste, ou seja, dos fatos sociais que a
dirigem. Sobretudo, os direitos e garantias individuais dispostos aos indivíduos, podendo ser
contrapostos contra o próprio Estado e ainda contra outros particulares, são a pedra angular de
validade da Constituição Federal, e até mesmo do direito interno. Mais especificamente, o
direito realmente válido é o que se conforma, a priori, com a Constituição Federal de 1988,
ou seja, é o que se conforma à própria dignidade humana, por nela relacionar-se os direitos e
garantias fundamentais que a compõem.
61
Curso de Direito Administrativo, 2007, p. 922.
62
Celso Ribeiro Bastos, Curso de Direito Constitucional, 1996, no mesmo sentido, também diz que "é
extremamente mais grave a lesão a um princípio do que o ferimento a uma norma isolada (...) a lesão
ao princípio consiste em ferir as próprias estruturas desse direito, a ossatura que compõe esse feixe
normativo".
63
Celso Antônio Bandeira de Mello, op. cit.
48
A Constituição Federal de 1988 é então a norma hipotética fundamental do
ordenamento jurídico interno, se a tratarmos sob o seu conceito jurídico; é a hipótese de um
direito que “deve ser” perfeito na sua própria abstração. De suas entrelinhas toda e qualquer
outra lei retira fundamento para ser considerada válida dentro de um sistema jurídico que,
pressupõe-se, já é perfeito, em cujo topo se assenta a própria Constituição. Sob o olhar da
teoria pura do direito, a Constituição é a norma que mais “pureza” carrega. Dela não se extrai
64
considerações de cunho sociológico, político ou filosófico já que tanto ela quanto o direito
em si, como fruto de uma convenção racional entre os homens, são perfeitos.
67
Joaquim José Gomes Canotilho, op. cit, p. 245.
68
Interpretação e Aplicação da Constituição, 1996, p.147.
50
V MATERIALIDADE CONSTITUCIONAL DOS TRATADOS INTERNACIONAIS
DE DIREITOS HUMANOS E A EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45/04.
72
Ingo Wolfgang Sarlet, op. cit, p. 176.
73
Luiz Flávio Gomes, Valor dos Direitos Humanos no Sistema Jurídico Brasileiro, 2008.
74
Valério Oliveira de Mazuolli, op. cit.
54
globalização dos direitos humanos, tal como à idéia da legitimidade das preocupações da
comunidade internacional no tocante a matéria, à dignidade do ser humano 75.
Mas em resposta a tal crítica, marcam-se a própria razão de ser dos direitos
humanos e do papel exercido pelo então sobreprincípio da dignidade da pessoa humana, que
lhes dão origem. É grande e válida a sua projeção sobre o ordenamento jurídico do país, ainda
que o próprio Estado muitas vezes a torne objetivamente ineficaz. Porque, inda assim, a
dignidade do ser humano foi adotada como mote pelo constituinte para qualquer fim estatal,
tratando-se do valor base dos direitos fundamentais na forma de princípio estruturante da
própria Democracia 76, como já se anotou.
75
Flávia Piovesan, op. cit.
76
Carmem Lúcia Antunes Rocha, op. cit.
55
CF/88) o fez desta maneira justamente por compreender, neste assunto, uma relativização da
“forma”, ou seja, do processo formal de incorporação de um tratado de direitos humanos, à
“matéria” nele constante, de muito mais importância até do que a própria relativização da
soberania estatal. Caso contrário, por certo o constituinte originário haveria previsto, no lugar
da chamada cláusula aberta, o citado processo de incorporação, uma vez que à época da
promulgação da Constituição, a dissensão doutrinária a respeito do assunto já existia.
Se tal motivo não é ainda suficiente, tem-se outro. Como se disse, o § 1º do art.
5º, da CF/88, já mencionado, bem versa que “as normas definidoras de direitos e garantias
fundamentais têm aplicação imediata”. Não se pode considerar tenha o constituinte
56
originário, a partir disso, concebido o dispositivo tendo em vista somente o momento pós-
promulgação da nova Carta. É admissível, nesse sentido, que o constituinte tenha elaborado o
dispositivo prevendo que, por óbvio, os poderes políticos do país, em pleno divisor de águas
entre ditadura militar e democracia, fossem sentir grande dificuldade em adequar os preceitos
do novo texto, ainda isolados no mundo do “dever-ser”, ao mundo do “ser”, onde então a vida
em si, depois da nova Constituição, estaria sempre por acontecer.
Porque, de outra sorte, o velho brocardo jurídico diz a lei não conter palavras
inúteis, ainda mais se tratando de norma constitucional, qual não se lhe admite e tampouco se
deveria admitir uma interpretação restritiva ou extintiva de outros direitos fundamentais,
dizendo-a então ser dotada de palavras sem sentido.
77
Flávia Piovesan, Direitos Humanos, Globalização Econômica e Integração Regional, 2002.
57
de partida, na Carta é alocado já nas primeiras linhas, ou melhor, no primeiro de seus mais de
duzentos artigos 78, não se pode então admitir-se para a incorporação de tratados de direitos
humanos, um processo semelhante ao de ratificação dos demais tratados, em sua maioria,
relacionados à ordem privada.
78
Carmen Lúcia Antunes Rocha, op. cit.
58
Direito e as finalidades estatais são direcionadas. O dispositivo dá à Constituição Federal uma
função de “construir e fortalecer o Direito Internacional, devendo seu conteúdo, portanto,
cumprir este papel. Neste sentido determinadas normas constitucionais possuem e devem
possuir uma significação internacional, uma vez que são voltadas para fora, e não somente
para dentro do sistema jurídico interno” 79.
Não se deve esquecer ainda, como diz o art. 85, III, da CF/88, que é crime o
ato de responsabilidade do Presidente da República impedir o livre exercício de direitos
individuais. Portanto, outra razão para a dita incorporação automática dos tratados, de se lhes
facilitar a vigência, validade e eficácia, está nesse ponto. Por direitos individuais talvez se
devam compreender, não por um acaso, aqueles que, segundo o § 2º do art. 5º, expressos na
79
Mabel Cristiane Moraes, op. cit.
59
Constituição, não excluam “outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados,
ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, como já
se disse.
80
Flávia Piovesan. op. cit, 1997.
81
Alexandre de Moraes, op. cit.
82
Mabel Cristiane Moraes, op.cit.
60
Ainda que não se dissesse, pela leitura do art. 5º, § 2º, da CF/88, um tratado de
direitos humanos incorporado automaticamente na ordem jurídica interna, inda assim, se lhe
diz constitucionalmente material e não supralegal em consideração ao ideal do “pro homine”
83
, em geral, aplicado como princípio especial a derrogar norma geral, por tratar de conteúdo
mais favorável ao ser humano. Um tratado dessa importância se enlaça, à luz da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, com a própria condição do indivíduo em suas três, quatro ou
cinco dimensões de direitos fundamentais. Noutras palavras, é condição sine qua non para a
titularidade e gozo de todas essas dimensões de direitos a própria condição única e exclusiva
de “ser” humano, e o princípio do “pro homine” reforça essa premissa. 84
No mesmo passo, homenagem deve se render à própria Declaração Universal
dos Direitos Humanos quanto à sua execução no tempo, segundo a idéia de sua duração
atrelada “a legitimidade da situação que nele encontra origem” 85, como já se aludiu ao tratar-
se das características dos tratados internacionais. A materialidade constitucional de um
tratado, sob as ingerências dos § § 1º e 2º do art. 5º da CF/88, dá vazão a essa concepção, qual
seja, a de que um tratado efetivamente de direitos humanos, desde que validamente
constitucional, deve sempre ter plena eficácia segundo a situação que o legitima: o indivíduo e
sua dignidade. O descaso a ele, imagina-se, o descaso a nós mesmos, não se presume. Porque,
de mesma forma:
Entretanto, o direito é muito mais do que um valor social, uma decisão política,
ou um ideal lastreado pelo direito posto, absorto em si mesmo. Por sua Teoria Geral renovada,
se o concebe a partir dos direitos humanos fundamentais, a partir da dignidade da pessoa
humana. Em razão disso, se lhe vê como um fenômeno social positivado para fins de defesa
integral do indivíduo, por intermédio dos direitos humanos.
A validade do direito, nesse passo, obriga ao seu operador aferi-la não a partir
da constitucionalidade da ordem jurídica por ele estabelecida, mas, sobretudo, a partir da
humanidade em que, por sua Constituição, o direito se apóia. Ou seja, o direito deve,
efetivamente, ser visto não só como ciência, em que lhe pesa um estigma próprio e autônomo,
frio muitas vezes. Deve é ser visto como razão para se aumentar a “condição humana” moral e
ética, superando-se o modo individualista e egoísta de ser. 88
Por conta disso, o direito atual, na sua forma extenuada, está a reclamar a
criação de um novo pacto social, mesmo utópico. Porque em busca de uma utopia é que já
hoje se têm lançadas as diretrizes mais básicas da dignidade humana enquanto norma. E este
trabalho não deve cessar. O ser humano, através do direito, sempre está em busca de uma
condição de plenitude humana, porque nesses dias, é irrevogável e irrenunciável ele próprio
não se considerar um cidadão do mundo, o ser a quem Deus fez por um pouco menor do que
os anjos, mas que com glória e honra foi coroado 89.
87
Marcos André Couto Santos, A delimitação de um conteúdo para o Direito. Em busca de uma
renovada teoria geral com base na proteção da dignidade da pessoa humana, 2003.
88
Marcos André Couto Santos, op.cit.
89
Salmos, Capítulo 8, versículo 7.
62
Dessa forma, não se quer dar lugar à chamada “inflação” de direitos humanos
fundamentais, muito criticada por sinal. De fato, há que se concordar que nem todo e qualquer
direito, inicialmente, se trate de um direito humano fundamental. Mas inda assim quer se
comungar da premissa de que, mesmo exceção, os direitos humanos são avolumados com o
passar do tempo, fato esse já visto, e por sinal inevitável. As diferentes necessidades
demandadas pelos homens fazem surgir outros direitos de proteção à dignidade humana,
como as chamadas “dimensões” ou “gerações”.
90
Flávia Piovesan, op. cit.
63
deve questionar mais, para a efetivação do próprio direito, a utilidade da sociologia, da ética,
da filosofia, da história ou da moral, entre outros valores e ciências enquanto fontes de
materialidade para o direito. Importa sim, é que a ação do mundo, mais do que a ação estatal
de cada parte dele, volte-se para a preservação do ser humano enquanto ele mesmo, não para a
intolerância. Todas estas ciências humanas agregam-se a isso e o direito, como já se disse
antes, não se divorcia desses campos de conhecimento. Sua efetividade só existe de fato
91
quando esses valores estão incrustados em sua base ético-axiológica , guarnecendo,
principalmente o ser humano, como criador e não como criatura do “dever-ser”.
91
Marcos André Couto Santos, op.cit.
92
Fábio Konder Comparato. Papel do jurista num mundo em crise de valores, 1996.
93
Carmem Lúcia Antunes Rocha, op. cit.
64
A EC/45, por si só, nada mais fez do que tentar por fim à discussão que se
travava a respeito dos tratados serem ou não equiparados à lei ordinária, principalmente
94
aqueles relacionados à dignidade da pessoa humana . Ela tentou facilitar a
constitucionalização formal dos direitos humanos, mostrando preocupação do constituinte
derivado reformador em sintonizar-se à ordem jurídica global. Só esqueceu-se, porém, de que
a constitucionalidade formal para a incorporação dos ditos tratados, jamais deveria derrogar a
materialidade que neles se carrega, ou seja, a sua constitucionalidade material.
Porque o direito das gentes e a atual posição da dignidade humana como seu
braço forte parece mais se preocupar com uma ordem jurídica interna voltada à proteção do
ser humano enquanto sujeito de direitos intangíveis, e não com uma ordem extremamente
formal, na qual se torna os indivíduos escravos de uma ordem soberana, mas demasiadamente
abstrata.
O que fazer agora com os tratados não aprovados pelo quorum de 3/5, por dois
turnos, em cada Casa Legislativa? Se lhes transforma em lei ordinária, como antes se fazia em
94
Apenas para que se faça constar, a partir da EC/45, os tratados de direitos humanos passam a ser
vistos sob quatro níveis hierárquicos: 1) são supraconstituiconais, ou seja, estão acima da
Constituição; 2) são constitucionais, de maneira formal ou principalmente, por consta de sua
materialidade; 3) são supralegais, por estarem abaixo da CF/88, mas acima de qualquer outra lei
ordinária; 4) são infralegais, tratados como qualquer outra lei ordinária, o que, num,a antinomia dele
com lei ordinária brasileira, se desembaraçará a questão por adoção do princípio da especialidade, em
que uma lei é preterida em razão de outra menos especial, ou então, por adoção do princípio da
posterioridade, em que prevalece a norma posterior, revogando a norma anterior.
95
Luiz Fernando Sgarbossa, A Emenda Constitucional nº 45/04 e o novo regime jurídico dos tratados
internacionais em matéria de direitos humanos, 2005.
96
A incorporação de tratados e convenções internacionais de direitos humanos no direito brasileiro,
1996.
65
franca oposição ao monismo com prevalência do direito internacional neste âmbito 97? Se lhes
deixa continuar perderem a eficácia material do substrato neles contido? Em face, aliás, da
jurisprudência atual do STF, os tratados ratificados pelo país após a vigência da EC/45
passam então a ser equiparados à lei ordinária, mas aqueles anteriores à emenda, serão sempre
tratados com status supralegal, de lei alocada a um degrau acima da ordinariedade? Ou então,
tanto um como outro serão dotados de supralegalidade, de “especialidade”?
99
Frederico Augusto Leopoldino Koehler, Hierarquia dos tratados internacionais em face do
ordenamento jurídico interno. Um estudo sobre a jurisprudência do STF, 2007.
67
Além do mais, a tônica é de que a interpretação, em si, de um tratado - em
especial de direitos humanos -, é feita por seus signatários de muita boa-fé, em conformidade
com o sentido comum que deve ser atribuído aos termos dele em seu contexto (texto objetivo,
preâmbulo e anexos do tratado). À luz de seu objeto e finalidade principalmente, um tratado
deve igualmente ser interpretado. E quem está a ditar isso tudo são os artigos 31 e 32 da
Convenção de Viena. Ou seja, a própria interpretação isolada do tratado, pela finalidade a ele
circunscrita e pelo objeto, por si só, relevante, devem motivar o pais signatário a observá-lo, o
que parece não ser feito com muito rigor em nosso país.
Assinado um tratado deste tipo para após, em ordem interna, se alocar o seu
objeto - a dignidade humana -, em segundo plano, é esquecer-se que o próprio poder
constituinte originário foi buscar justamente em diplomas internacionais tais como a
100
Declaração Universal dos Direitos Humanos, a materialidade de fundamento ético sobre a
qual faria então repousar a Constituição Federal de 1988 em muitas de suas prescrições
dispostas nos incisos do art. 5º. Noutras palavras, o exercício do intérprete, principalmente o
responsável pela aplicação da lei, deveria estar em interpretar um tratado internacional de
direitos humanos de acordo com o contexto de sua gênese enquanto norma de deliberação
internacional, ou seja, de acordo com o fundamento jurídico nele representado.
100
Valério de Oliveira Mazzuoli, A opção do Judiciário brasileiro em face dos conflitos entre
Tratados Internacionais e Leis Internas, 2001.
101
André Lipp Pinto Bastos Lupi, Qual contexto? Uma análise dos critérios de interpretação segundo
a Convenção de Viena sobre direito dos tratados, 2007.
102
Flávia Piovesan, op. cit.
68
Kelsen acerta, em outro argumento que se expõe a favor da constitucionalidade
material de um tratado internacional de direitos humanos, que uma norma, para sua validade,
deve retirar fundamento da Constituição. Só que hoje se marca um novo tempo; tempo em
que uma norma interna, no Brasil, retira seu valor da Constituição se por um acaso ela mesma
se encontra adequada à evolução da dignidade humana também em âmbito internacional, por
tratados dessa espécie. Caso contrário, a norma se valida diretamente dos direitos humanos
internacionais, e não da CF/88. Pois os tratados internacionais de direitos humanos, sempre se
deve tê-los para maior quantificação do grau de efetividade do próprio sentimento humano,
quando então traduzido para o plano jurídico. Dessa maneira, reduzem-se desigualdades,
sociais principalmente 103.
103
Priscila Pereira de Andrade, Definição do Status jurídico das normas internacionais de direitos
humanos. Um caminho para maior efetividade, 2007.
104
Controle de Convencionalidade: STF revolucionou nossa pirâmide jurídica, 2009. O autor ainda
defende que Valério de Oliveiro Mazzuoli, a esse respeito, institui corretamente a tese do controle de
convencionalidade de um tratado de direitos humanos em face de lei ordinária ou norma constitucional
contrária a esse ideal, só que a ser preconizada em âmbito difuso. E o próprio Valério, nesta idéia,
expõe que um tratado materialmente constitucional, por lidar com direitos humanos, possui eficácia
paralisante sobre lei doméstica, interna. A norma pode até não deixar de produzir efeitos internamente,
mas, se acaso estiver a combater um tratado de direitos humanos, têm sua eficácia paralisada por força
do próprio tratado. Porque se a CF/88 possibilita sejam os tratados de direitos humanos elevados ao
status de norma materialmente constitucional, ou atualmente dotada de constitucionalidade formal
(caso em que esse controle de convencionalidade é feito tanto de maneira difusa quanto de maneira
abstrata), por lógica, deve se lhes observar os meios que garanta a qualquer norma ou emenda de se
protegerem contra investidas não autorizadas do direito infraconstitucional, e porque não, do próprio
direito constitucional, como é o caso da EC/45.
105
E mesmo na antinomia entre leis internas, os critérios de especialidade, hierarquia ou vigência no
tempo acabam cedendo lugar a que, sob a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, extraídos
dos direitos humanos, prevaleça aquela que mais se amoldar ao espírito não só da Constituição em seu
art. 1º, III, mas aos próprios direitos humanos. Ou seja, a lei interna, no conflito à outra de possível
aplicação, só será aplicada se experimentada sobre esse duplo controle de verticalidade.
69
Deve se ponderar, igualmente, que a constitucionalidade de direitos humanos
demonstra da parte do poder constituinte uma abertura sensata da soberania brasileira, num
ato de cooperação com outros Estados e organismos internacionais. Mostra igualmente a
harmonização de tais direitos à ordem jurídica externa, sobressaltando-a.
Por isso então a existência de um processo que, mesmo não sendo tipicamente
legislativo, é aquele no qual se tem a deliberação, tanto na Câmara dos Deputados quanto no
Senado, sobre o conteúdo material de um tratado de direitos humanos. Cabe às duas casas, em
conjunto e se convencionadas a tal coisa, exararem Decreto Legislativo atestando a ratificação
do pacto por parte do Poder Executivo. Tudo de maneira célere, e não rígida, como prevê o §
3º do art. 5º da CF/88.
Como pôde essa emenda ter sido deliberada e aprovada, dificultando aos
tratados internacionais de direitos humanos a produção, de fato, de efeitos jurídicos eficazes,
como a nova Teoria Geral do Direito se lhes pretende fazer? Ainda que a EC/45 se lhe tenha
esculpido de maneira a impor aos tratados necessária incorporação por via estritamente
formal, não se pode dizer com isso que, acredite-se ou não, a constitucionalização de tratados
deste tipo está sendo feita.
106
Interpretação e Aplicação da Constituição, 1998.
70
Pois se deve atentar para o fato de que os § § 1º e 2º do art. 5º da CF/88
garantem a imediata aplicabilidade das normas definidoras de direitos e garantias
fundamentais bem como a sua inclusão automática na ordem jurídica interna, fortalecendo ao
princípio do pro homine. E o passo que deu o constituinte originário neste sentido foi o de não
oferecer dificuldades à Constituição Federal em se adequar ao Direito Internacional Público,
em especial, à idéia da boa-fé, do pacta sunt servanda e do jus cogens, como também
estabelece o art. 27 da Convenção de Viena. A assertiva deste dispositivo último é de que um
tratado não pode deixar de ser cumprido na ordem interna de um país signatário.
110
Op. cit.
111
Op.cit.
73
§ 2º é a de que este daí, como dito, se trata de norma mais favorável ao ser humano, portanto,
112
mais favorável à própria força normativa da Constituição, como bem diz Konrad Hesse .
Ela respeita o monismo com prevalência dos direitos internacionais. Leva em conta o jus
cogens, a boa-fé pactual e o pacta sunt servanda. E por fim, guarnece a dignidade humana
como sobreprincípio da Constituição, ampliando o seu significado, inesgotável, diga-se de
passagem. Ponderando-se a questão à luz dos princípios constitucionais da proporcionalidade,
inevitavelmente chega-se a essa conclusão, ainda que, nesse embate, fosse melhor que a
norma do § 3º do art. 5º da CF/88 já sucumbisse.
Sua diferença entre o seu predecessor é que no bojo deste último, da norma do
§ 2º do art. 5º, não se tem uma previsão de processo de incorporação de um tratado de direitos
humanos para que então seja válido como norma materialmente constitucional. Não.
Enquanto norma invulgar, o próprio § 2º é quem constitucionaliza a materialidade de um
tratado desse tipo, o que, sem dúvida, é muito mais benéfico não só à ordem constitucional.
112
Dier normative kraft der Verfassung (Força normativa da Constituição).
74
113
de direito internacional . Por isso a alusão à sua materialidade constitucional, e não à sua
supralegalidade, principalmente para a resolução do caso concreto. Pois não se está, ao
celebrar-se tratados internacionais do tipo, relacionando-se comercialmente, em âmbito
privado, com outros Estados. Pelo contrário. Esta relação internacional pública se esguia
sobre o valor do coração dos homens, e não sobre o que têm eles a produzir.
Por isso que numa ponderação de proporcionalidade estrita entre uma e outra
norma, verifica-se daí que a mais recente delas, advinda da EC/45, sacrifica um direito
fundamental em troca de outro menos afeito à fundamentalidade e à humanidade. O § 3º do
art. 5º, parece o constituinte derivado reformador lhe haver imprimido mais a preocupação em
disciplinar o que, na verdade, já era disciplinado pela Constituição Federal do que
necessariamente, trazer algum reforço realmente constitucional e benéfico à Constituição
Federal em si, principalmente sob o espectro da dignidade da pessoa humana. Essa opção, em
segundo lugar, volta-se contra a própria deliberação que doutrina tanto constitucional quanto
internacional, como fontes do direito, faziam da questão.
113
Flávia Piovesan, op. cit.
75
fundamentalidade à própria dignidade do homem. E servem como fontes materiais de direito
veiculadas por fontes formais, e não o contrário.
Contudo, tanto para isso quanto para serem aplicadas no plano onde as coisas
realmente acontecem (ou seja, no plano fático, concreto), elas não podem desprezar a
realidade da natureza humana, e tampouco as necessidades dos homens. Não pode o
constituinte omitir-se à realidade de onde surge a Constituição, e à realidade para a qual ela se
destina.
Por esse motivo a carência de se vê-la não como parte mais fraca, sucumbente,
e sim a mais forte. É sempre ela quem deve prevalecer. Seu texto deve conter princípios
básicos, fundamentais, e abrangentes, do que especialmente é a dignidade da pessoa humana.
A Constituição não pode ser objeto de modificações particularizadas, momentâneas. Isso é o
que lhe garante forte eficácia enquanto norma hipotética consubstanciada à realidade social. E
o § 3º do art. 5º da CF/88, numa preclara vontade do constituinte derivado em equacionar o
que já então assim restava, fez foi retalhar e descaracterizar a própria feição da Carta neste
quesito.
114
Op. cit.
77
Surge disso a necessidade da adoção de um tratado internacional de direitos
humanos como norma materialmente constitucional, de plena eficácia e imediata
aplicabilidade, principalmente no plano fático, da resolução do caso concreto. Sempre se
intenta com isso, preconizar o ideal positivado do constituinte originário de que, evoluindo o
ser humano em suas complexas relações e necessidades, evolui também a sua proteção. Não
se infla o rol de direitos e garantias fundamentais do art. 5º da Constituição Federal de 1988.
O que se tem é a possibilidade de lançar-se mão de outros direitos humanos que se acham
mais próximos de guardarem o bem tutelado por toda e qualquer ordem jurídica, que é o ser
humano. Esse parece ser o mais perfeito exercício do direito enquanto ciência humana.
Nessa particularidade, se diz que há o crescimento de um novo
constitucionalismo também, a levantar a bandeira da força normativa da Constituição como
tese suficiente ao que tratamos. Trata-se do “neoconstitucionalismo”. Para essa doutrina,
contundente, aliás, vale a releitura que se pode e deve fazer dos direitos humanos
fundamentais, enquanto normas constitucionais, internas, das quais se deve extrair sua
máxima eficácia normativa, sobretudo quando o conteúdo nelas plasmado, se dá em normas
de cunho material.
115
Camila Muritiba Tenório. A re-significação dos direitos individuais à luz da nova conjuntura sócio-
jurídica brasileira, 2008.
78
Daí a razão para se fundir sua força como “norma”, à releitura do direito
constitucional, já que “a vida, quer a vida em geral, quer a vida humana em particular, está
acima do Direito posto. É, qualquer que seja a constituição, bem supraconstitucional” 116, por
ser o maior de todos os bens, e também o mais valoroso deles. Por seu valor ontológico se
aprofundam os direitos humanos, e a partir desse aprofundamento é que se concebe o Direito
117
como um sistema de 2ª ordem. Porque o “Direito não é somente lei. O texto não basta” ,
tanto quanto não basta só o espírito que se lhe quer imprimir, a partir da força normativa da
Constituição; a partir do texto constitucional, e mesmo dos direitos humanos internacionais,
este sistema é composto de “um conjunto de elementos que evoluem e interagem de modo
relativamente uniforme”, ao qual se atribui a função principal de prevenir conflitos, e não
somente solucioná-los 118.
Mas isso não retira dos direitos humanos a sua eficácia enquanto normas
fundadas sobre valores outros, que, de maneira alguma dependem então de necessária
imperatividade e cogência, das quais se lhes tenham um comando de respeito imputável aos
Estados porque alocadas na ordem jurídica internacional. O que necessita a comunidade
internacional, para o acatamento a esses direitos, é de bom senso ético.
O Brasil, neste contexto, tem por obrigação respeitar a própria norma interna
do § 2º do art. 5º da Constituição Federal de 1988, para que, através dela, como norma
também político-ideológica, outras ainda (logicamente, as de caráter internacional e
humanitário) consigam proteger os indivíduos e seus direitos fundamentais, e não aos
Estados. O pacta sunt servanda e a boa-fé fazem o papel da imperatividade e da cogência que
falta ao próprio direito internacional público nesse sentido, e tornam obrigatória a alocação de
116
Antônio Junqueira de Azevedo. O Direito ontem e hoje. Crítica ao neopositivismo constitucional e
à insuficiência dos direitos humanos. 2008.
117
Antônio Junqueira de Azevedo, op. cit, p. 12.
118
Antônio Junqueira de Azevedo, op. cit.
79
um tratado internacional de direitos humanos em patamar constitucional. Por isso, nem se
carece de cogência e imperatividade, até em razão dos artigos 26 e 27 da Convenção de Viena
sobre tratados internacionais equacionarem a questão, ditando justamente tal coisa.
Noutras palavras, não se pode dizer que a eficácia da cláusula aberta do citado
§ 2º do art. 5º da CF/88 seja restrita por outra norma constitucional, e tampouco por uma
fonte, apenas, de direito, que é a jurisprudência do STF no caso. Mesmo se Alta Corte tivesse
sumulado a questão, inda assim, não se poderia então sobrepor uma súmula a uma norma
constitucional. E não se pode, ou não se quer acreditar ainda, que a norma em análise pode ser
objeto de ponderação, de equilíbrio, se aplicada a um caso concreto.
80
e sob essa luz, o ser humano é a premissa básica do Estado. E tudo quanto lhe envolve para a
sua proteção, não deve ser impedido de fazer frente já de pronto.
CONCLUSÃO
Improvável até que se lhe veja plenamente delimitada nesse aspecto. Mas, inda
assim, deve se buscar aproximar o direito, sua premissa máxima, à sensível realidade de João,
José e Maria, brasileiros que, no seu país, comem feijão com arroz como se fossem príncipes.
A cláusula aberta do § 2º do art. 5º da Constituição Federal de 1988, mais o § 1º deste
dispositivo, quer se acreditar sejam um dos caminhos para isso, por preverem a
nacionalização de direitos humanos destinados a amenizar esse compasso ainda distante do
direito à humanidade, literalmente.
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