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Resumo
Vinte anos após a queda do Muro de Berlim, o mundo conheceu notável evolução, em
direção contrária ao previsto em 1989. Depois de uma década marcada pelo neoliberalismo
e pelo “Fim da História” de Fukuyama, seguiu-se outra baseada no “Choque de Civiliza-
ções” de Huntington, com o 11 de setembro, a guerra ao terrorismo, o retorno de governos
de esquerda, a ascensão da República Popular da China e, finalmente, a queda de outro
muro, o das finanças globais (Wall Street). Finalmente, analisa-se a questão alemã quanto a
realidade histórica do Muro de Berlim, a sociedade alemã-oriental e as causas e consequên-
cias de seu desaparecimento.
2 JAMESON, Frederic. Cinco teses sobre o marxismo atualmente existente. In: WOOD, Ellen;
FOSTER, John (Org.). Em defesa da história: Marxismo e pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1999. p. 192.
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gonizaram o triunfo de algumas revoluções socialistas, como a cubana, a
vietnamita e as africanas dos anos 1970. Desde então, não mais ocorreram
revoluções socialistas.3 Nesse sentido,
3 Ver VIZENTINI, Paulo. As revoluções socialistas. In: SILVA, Francisco Teixeira da (Org.).
O século sombrio: uma história geral do século XX. Rio de Janeiro: Campus; Elsevier, 2004.
4 HUNTINGTON, Samuel. O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial. Rio de
Janeiro: Objetiva, 1996.
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Muitos acadêmicos viram nas ações político-militares unilaterais da
administração Bush uma retomada do poder americano, configurando
uma nova hegemonia “unipolar” para o século XXI, que, como o anterior,
seria novamente americano. Para outros analistas, tratava-se de uma rea-
ção para evitar uma tendência histórica que emerge lentamente, a de cons-
trução de um sistema mundial multipolar, num quadro de equilíbrios entre
EUA, União Européia, Rússia, Japão/Tigres Asiáticos, China, Índia, África
do Sul e Brasil, como argumenta o politólogo brasileiro Hélio Jaguaribe.5
Agora existe um tempo fluído, que torna a força (declinante) da
América um poder desfocado em relação à nova realidade. Segundo
Emmanuel Todd comentou na véspera da guerra do Iraque,
5 Relações Brasil – União Européia. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, 2000. p. 7.
6TODD, Emmanuel. Depois do Império: ensaio sobre o declínio americano. Rio de Janeiro: Record,
2003.
7 OSTERHAMMEL, Jürgen; PETERSON, Niels P. Globalization: a short history. Princeton;
Oxford: Princeton University Press, 2005. Tradução nossa, grifos do autor.
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Novas forças emergem no Terceiro Mundo
8FULBROOK, Mary. The People’s State: East German Society from Hitler to Heonecker. New
Haven: Yale University Press, 2005. p. 3. Tradução nossa.
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O Partido Social-Democrata (SPD) e depois o Partido Comunista (KPD)
criaram instituições, práticas sociais e uma cultura específica dentro da
sociedade alemã, praticamente um Estado dentro do Estado. Mais ainda: o
socialismo alemão foi a principal fonte formadora do bolchevismo russo.
O Nazismo, um regime autoritário que protegeu o capitalismo
alemão das forças sociais que o desafiavam durante a Grande Depressão,
conduziu os militantes do KPD e muitos do SPD aos campos de concen-
tração e ao exílio. Durante a Guerra Civil Espanhola, grandes contingentes
de comunistas alemães lutaram nas Brigadas Internacionais contra os
membros da Legião Condor nazista. Assim, pode-se afirmar que, desde o
fim da I Guerra Mundial, houve uma guerra civil latente ou explícita entre
os comunistas e os conservadores alemães. Grande parte dos dirigentes da
RDA era constituída por veteranos da Guerra Civil Espanhola,9 outros
saíram dos campos de concentração ou retornaram do exílio soviético.
Mas é necessário mencionar que o regime alemão oriental se ba-
seava num modelo de Frente Antifascista, e que os soviéticos desejavam o
estabelecimento de uma Alemanha unificada, neutra e desarmada. Para
evitar a volta do fascismo, realizaram no leste uma desnazificação mais
radical (com a eliminação da base socioeconômica do III Reich) do que a
teatralidade do Julgamento de Nuremberg, que condenou indivíduos,
mas deixou intocadas suas bases socioeconômicas.
Depois da guerra a tendência política foi a de reunificação da
esquerda (fusão dos social-democratas e dos comunistas), pois sua divi-
são fora um dos fatores que propiciaram a ascensão de Hitler. No oeste
tal fusão foi revertida ou impedida pelas autoridades aliadas, somente
subsistindo no leste, com a criação do Partido Socialista Unificado da
Alemanha (SED). A ele foram associados partidos menores (liberal,
democrata-cristão, liberal-democrata e camponês, além de organizações
sociais), que participaram do poder no Estado (com cargos) e no parla-
mento da Alemanha oriental de 1949 a 1989. O cargo de Primeiro Minis-
tro da RDA foi ocupado, de 1949 a 1964 (data de sua morte), por Otto
Grotewohl, que fora líder do Partido Social-Democrata.
9 Ver as entrevistas que Catherine Epstein realizou em German communists and their century. Cam-
bridge, Massachusetts/ London: Harvard University Press, 2003.
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Berlim Ocidental ficava encravada na RDA e era uma “pérola do Plano
Marshall”, pois, de 1945 a 1955, recebeu mais investimentos que toda a
América Latina. A RDA sempre reivindicou a anexação da cidade, não
um muro divisório, mas sua soberania não era reconhecida plenamente
sequer pela URSS, que desejava um tratado multilateral de neutralização
e desarmamento da Alemanha. Neste caso, a RDA teria de ser fundida
numa Alemanha única, e o regime do SED convertido em simples partido
político numa democracia liberal capitalista.
Além da diferença de recursos do Plano Marshall, da formação sub-
vencionada de uma cidade de classe média e de serviços (ocidental) frente
a uma outra operária e industrial (oriental), é preciso levar em conta outros
fatores. O leste estava repleto de refugiados dos territórios perdidos para a
Polônia e expulsos da URSS, dos países bálticos e da Tchecoslováquia, que
ali estavam temporariamente, aguardando alguma chance de retornar a
seus lares. Isso nunca aconteceu, e as mudanças socioeconômicas nos dois
lados (Plano Marshall em 1947, criação da RDA em 1949, coletivização da
agricultura em 1952) produziram levas de refugiados em direção ao oeste.
Honestamente, não creio que fossem “liberais” (uma tradição fraca na
Alemanha), especialmente após 12 anos de educação nazista. Eram pessoas
sobreviventes da maior guerra da história, em busca do meio mais fácil de
sobreviver e de reconstruir suas vidas.
Assim, ainda que Berlim Ocidental fosse um foco para a fuga de
cérebros e para as atividades políticas e de espionagem do Ocidente atra-
vés de uma cidade totalmente aberta, a construção do Muro deveu-se,
primordialmente, a um fator da Grande Diplomacia, a Segunda Crise de
Berlim (1958-1962). A incorporação da Alemanha Ocidental (ou Federal,
RFA) à OTAN em 1955 e a busca de um novo equilíbrio europeu e global
entre as duas superpotências reascenderam a disputam em torno da
questão alemã. E Berlim representava, justamente, o nervo exposto em
termos jurídico-diplomáticos. A disputa entre Kruschov e Kennedy che-
gou a um impasse na fracassada Cúpula de Viena em junho de 1961. Na
impossibilidade de, pelo menos, transformar Berlim (unificada) numa
cidade livre, controlada pela ONU, Moscou vai autorizar a RDA a estabe-
lecer uma fronteira (material) dentro dessa cidade que abrigava dois
sistemas rivais. Era a forma de fazer com que a “sua” Alemanha fosse
também reconhecida de fato e de jure.
Na noite de 13 de agosto de 1961, barreiras de arame farpado (de-
pois transformados em um muro de concreto cada vez mais complexo),
colocadas pela milícia operária da RDA (Grupos de Combate da Classe
Operária), estabeleceram uma fronteira física cuja passagem se tornava
um ato internacional. Kennedy disse, então: “não é a melhor solução [ao
problema alemão], mas ao menos se evitou a guerra”. Os próprios con-
servadores do governo de Bonn (a capital ocidental) foram beneficiados
pela divisão do país e pela construção do Muro. Eles puderam desvenci-
lhar-se imediatamente de qualquer conexão com o passado nazista, pois a
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RFA se transformou em vanguarda do “Mundo Livre” e recuperou ple-
namente sua legitimidade internacional. Em poucos anos, o conservado-
rismo alemão passou de vilão a vítima e herói. A existência da RDA, por
sua vez, permitiu à RFA utilizar o anticomunismo como um meio de
contenção da esquerda ocidental.
Enquanto as pessoas simples sofriam as consequências cotidianas
e psicológicas da divisão, o mundo Ocidental a utilizava como peça de
campanha política, ilustrando a “crueldade do socialismo”. Mas, na prá-
tica, um foco de tensão era eliminado e, alguns meses depois, como con-
sequência da Crise dos Mísseis em Cuba, era instalado o famoso Telefone
Vermelho e tinha início uma era de distensão entre os EUA e a URSS. As
duas Alemanhas aproveitaram a situação para construir uma identidade
própria em oposição “à outra”, gerando legitimidade e estabilidade in-
terna.
A RDA, por sua vez, teve, nos anos 1960, seu “milagre econômico”
e sua população, com um melhor nível de vida, desenvolveu uma identi-
dade alemã-oriental (o povo a chamava de “Nossa Pequena República”),
mesclando elementos socialistas com tradições progressistas alemãs. Em
1972, as duas Alemanhas estabeleceram um modus vivendi (relações di-
plomáticas em 1974) e, em 1973, ingressaram simultaneamente na ONU.
A RDA passou a ser um Estado “normal”, mundialmente reconhecido.
Teve grande atuação em apoio aos movimentos de libertação nacional
africanos e aos regimes revolucionários instalados nos anos 1970, enquan-
to a Alemanha Ocidental, por exemplo, apoiava o regime racista do Apar-
theid na África do Sul. Ao Brasil, a RDA forneceu os planetários e outros
equipamentos de precisão às universidades (em troca de café), máquinas
impressoras e instalou uma fábrica de motos em Gravataí, a MZ Simson
(que foi adotada pela Brigada Militar gaúcha nos anos 1980).
Um dado interessante é que, em função da guerra e de duas ondas
de emigração (predominantemente masculina), havia significativa maio-
ria de mulheres, que tiveram um papel destacado na construção do socia-
lismo no país escolhido pelo teatrólogo Bertolt Brecht como sua pátria.
Houve grande desenvolvimento em educação, ciência e tecnologia, saú-
de, lazer e esportes. Se as viagens eram bastante restritas para o ocidente,
o leste europeu era intensamente visitado pelos alemães orientais. Nem
tudo era apenas repressão a intelectuais de vanguarda ou a dissidentes
políticos.
Aliás, não havia uma oposição articulada, devido a três aspectos:
os descontentes emigravam, havia um sistema de segurança onipresente
e a população era chamada a participar ativamente e em massa nas orga-
10 Depois de um curto período como “Herói da Unificação”, Kohl caiu em desgraça por envolvimen-
to em corrupção no processo de privatização das empresas da ex-RDA, tornando-se um nome incon-
veniente.
11 Por exemplo, comissões de inquérito ocidentais avaliavam os professores universitários e substi-
tuíam os demitidos por seus discípulos; as direções das empresas e órgãos governamentais passaram
a ser ocupadas, numa porcentagem elevada, por ocidentais. A retomada por ocidentais de proprieda-
des ocupadas há 40 anos por orientais, especialmente, causou um enorme mal-estar social.
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orientais) e o surgimento de uma (n)östalgie, a nostalgia pela vida bucólica e
sem sobressaltos para o cidadão comum da RDA, desde que não assumisse
uma atitude de contestação aberta ao regime. Os orientais se encontraram
totalmente despreparados para viver sob a cultura capitalista semi ameri-
canizada de individualismo, competição e materialismo consumista da
RFA, além da criminalidade e das drogas. Outro dado interessante é que
mais de 75% dos alemães orientais se declaram explicitamente sem religião,
invalidando especulações sobre a força da Igreja Evangélica.12
Hoje, um mesmo Estado abriga duas sociedades distintas, no qual
muitas pessoas evitam ao máximo ir ao outro lado. Tal divisão ainda levará
uma ou duas gerações para desaparecer. Segundo a oriental Jana Hensel,
jornalista do Der Spiegel, para que o namorado de algum membro dos gru-
pos de jovens do leste possa ser aceito é complicado, sendo necessário
comprovar que não se trata de um “arrogante consumista ocidental”. Mas
também há o avanço do neonazismo e do racismo, como subproduto desse
processo. Sem dúvida, há mais liberdade individual e direito de ir e vir,
mas esses fenômenos negativos são inegáveis e preocupantes. Grave tam-
bém é a manipulação tendenciosa de associar os regimes da RDA e do III
Reich (que nunca é referido como nazista, mas como nacional-socialista).
Trata-se de um jogo perigoso, que pode ter consequências inesperadas
nesse confuso mundo pós-moderno, pois a RFA e o III Reich constituem
sistemas econômicos capitalistas em que despontam as mesmas grandes
empresas privadas.
Talvez o ponto positivo da Nova Alemanha Federal seja uma ten-
dência à autonomia internacional, como uma liderança da União Europeia.
Em 2003 a RFA disse não à invasão do Iraque, e mantém uma (complexa)
aliança com a Rússia. Outra consequência foi o declínio do bipartidarismo
SPD-CDU (União Democrata-Cristã, de centro-direita), partidos que decli-
naram. Os comunistas sobreviveram no leste (Partido do Socialismo De-
mocrático) e, depois, se associaram aos dissidentes da esquerda do SPD,
fundando o partido A Esquerda (Die Linke)13, que se tornou a terceira for-
ça política. Mas parece que, enquanto houver resistência à assimilação e
também crise social, a temerosa elite alemã continuará a denegrir o legado
político-cultural dos alemães orientais, que estão sendo excluídos até mes-
mo da história. A Alemanha é um país poderoso e importante para o futu-
ro equilíbrio de um mundo multipolar e para a elaboração de um modelo
social alternativo ao neoliberalismo. Mas, para tanto, é necessário, antes,
espantar os seus diversos fantasmas.
Abstract
Twenty years after the Berlin’s Wall fall, the world knew a great evolution, in a sense
contrary to the previsions of 1989. After a decade marked by neo-liberalism and by Fukuyama’s
“End of History”, there was another decade based on Huntington’s “Clash of Civilizations”,
September 11, war on terrorism, the reemergence of leftists governments, the rise of
People’s Republic of China and, finally, the fall of another wall, this of global finances
(Wall Street). At the end, there’s the German question analysis: the concrete history of Berlin
Wall, the East-German society and the causes and consequences of its desapearence.
Referências
DENNIS, Mike. The rise and fall of the German Democratic Republic (1945-
1990). London; New York: Longman, 2000.
FULBROOK, Mary. The People’s State: East German Society from Hitler to
Heonecker. New Haven: Yale University Press, 2005.
KALDOR, Mary. New & old wars: organized violence in a global era.
Cambridge: Polity Press, 1998.