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I. O já sentido
Assim, estamos em uma época estética mesmo sem “ter uma relação
privilegiada e directa com as artes” (p. 11), ainda que todo esse panorama
possa ser enriquecido com as atuais condições favoráveis a criação
artística. Essa afirmação quer afirmar, muito mais do que negar as artes,
que o sentir está alargado: despojado em todas as experiências. Deve-se
verificar em que medida os meios de comunicação atuam nesse sentido e,
mais especificamente, como os meios digitais influem nesse panorama.
A procura por idéias que descubram com clareza, logo objetividade, essa
nova situação são feitas em vão. Mas, antes, deve-se atentar ao “sentir que
acompanhou as idéias, os projectos, as fés, as obras mais diversas,
conferindo-lhes um ar de família e assinalando-as com uma única marca”
(p. 12).
A virada histórica de nossa relação com o sentir acontece sobre essas duas
características, “a nós, pelo contrário, os objectos, as pessoas, os
acontecimentos apresentam-se como algo já sentido, que vem ocupar-nos
com uma tonalidade sensorial, emotiva, espiritual já determinada. Na
verdade, não é entre a participação emotiva e a indiferença que reside a
distinção, mas é entre o que está por sentir e o já sentido. O que está por
sentir pode ser sentido ou não; mas o já sentido só pode ser recalcado: o
facto de a sua tonalidade ser quente ou fria é secundário em relação ao
facto de estarmos isentos de senti-lo ou não. Dispensar o homem tanto da
participação quanto da indiferença, tanto da sensibilidade quanto da
insensibilidade, libertá-lo da fadiga, do esforço, da responsabilidade, da
atenção, da escolha, da aplicação, subtraí-lo ao enorme despêndio de
energia consumida no sentir, assim como ao enorme esbanjamento de
objectos, de pessoas e de acontecimentos passados sem serem sentidos,
está é a grande viragem histórica de que somos testemunas” (p. 12 e 13).
Ideologia e sensologia
A ideologia era considerada uma cegueira pois não era uma consciência
legítima, assim, “a sensologia tende a idetificar-se com o falso sentir,
porque passa sem qualquer cobertura teórica. Ao mesmo tempo, no
entanto, é impossível desmascará-la como falsa, porque não pretende ser
portadora de nenhuma verdade, mas constitui-se como a pura efectualidade
do já sentido” (p. 14). Assim, o já sentido é como que a sensibilidade de
nossa época (p. 15). Cabe procurar se o autor coloca essa sensibilidade sob
alguma perspectiva moral.
Narcisismo e especularismo
O alheamento do sentir
“no horizonte do sentir alheado não existe já lugar para uma educação
sentimental que pouco a pouco ensine a confrontar o mundo interior com a
realidade efectual: esta, na verdade, não é algo de racional e de prático,
mas é desde logo essencialmente estética, impregnada e embebida de
sensibilidade e de afectividade. A realidade efectual contém já todas as
possíveis figuras, dimensões e aspectos do sentir” (p. 23). É um mundo
completo do sentir alienado que não suporta mais outras considerações
sensíveis, em outras palavras, é uma realidade “em que cada um nada mais
tem a acrescentar, podendo apenas ser atravessado, percorrido; é um
repertório exaustivo de sensações e de afectos já sentidos que apenas se
pode reproduzir, repetir” (p. 23).
“com a burocracia, por sua vez as relações do homem com o mundo vegetal
que se modificam profundamente. Com efeito, socializando a acção, a
burocracia quebra a ligação entre o homem e a natureza vegetal que está
implícito na noção de comunidade” (p. 25). A ação além do horizonte
burocrático “é privada de significado histórico-social” (p. 26). Como a
burocracia é o alheamento do agir, é sobre a mobilidade dos homens que a
burocracia tende a cultivá-los como domésticos, “a missão da burocracia
consiste em superintender e em gerir o movimento de homens
desenraizados do seu contexto originário e assimiláveis a plantas colocadas
em vazos” (p. 26).
O mesmo processo de “substituição da ideologia pela sensologia, da
burocracia pela mediacracia, do narcisismo pelo especularismo, (no qual)
dá-se uma verdadeira subordinação do pensar e do fazer em relação ao
sentir” (p. 21) inclui “o homem-animal e o homem-planta (que) antecipam o
homem-coisa” (p. 27).
Estátuas e ecos
As subculturas, que poderiam ser tidas como o exemplo mais claro do sentir
em nossa época, são, para o autor, “mais sensa-ções do que senso-logias,
mais media-sujeições do que media-cracias, mais espetáculos do que
espelhos” (p. 32). Assim, essas subculturas parecem não só não se
enquadrar perfeitamente no sentir externo, como serem demasiado
restritas para poderem indicar uma grande virada filosófica: “as
sensologias, diferentemenete das subculturas, nutrem ambições
universalistas e colocam-se como herdeiras das ideologias e das
burocracias” (p. 33). Cabe refletir acerca de quais outros exemplos servem
para delinear esse novo sentir, sobretudo no campo estético estrito, como a
arte.
Porém , o autor resalva que esses exemplos são “figuras provisórias de uma
experiência que aspira a tornar-se o equivalente geral com que se
permutam todas as manifestações históricas do já sentido” (p. 34).
Por fim, o intelectual orgânico “gere não as idéias, nem as acções, mas as
sensações e os afectos, ou seja, aspectos da experiência que na nossa
tradição foram considerados o que de mais privado e mais íntimo o homem
conhece. É preciso não esquecer que, no horizonte do já sentido, a
dimensão estética pertence à sociedade, não aos indivíduos que nunca
antes foram tão vazios e espectrais quanto hoje, obrigados como são a
serem moedas, não importa se verdadeira ou falsa” (p. 39).
Todos esse traços descritos por Musil foram formulados pelo filósofo Ernst
Mach: “ambos entendem que a percepção rompe os limites da
individualidade e transporta-nos para um horizonte mais geral, impessoal e
suprapessoal, no interior do qual já não há lugar para um sentir que provém
de cada um em particular. A oposição entre interno e externo, entre
interioridade e exterioridade é assim resolvida num monismo que ora é
determinado como físico, ora como psíquico; o importante é que emoções e
afectos não pertençam mais a uma consciência, a um eu, e muito menos a
um sujeito: todas estas pseudo-entidades são tão instáveis e provisórias
quanto os corpos materiais. Assim, já em Mach a autonomia do sentir é
afirmada de modo mais peremptório: os múltiplos aspectos da realidade
podem ser remetidos para um só tipo de elementos que são de natureza
essencialmente perceptiva. Como o próprio Mach reconheceu
explicitamente, esta teoria mergulha as suas raízes numa experiência de
estranheza de cada um em relação a si próprio, num insistente não
reconhecimento, na falta de identidade pessoal” (p. 41).
“todos nutrem o mesmo desprezo pela moeda inerte, por uma realidade
unívoca, por um modo de ser próprio e determinado de uma vez por todas.
O sentir é algo de subversivo a ética burocrática, é algo que não pode ser
enquadrado nos objetivos e práticas do controle da ação, “enquanto a
burocracia administra as necessidades e os objectivos do indivíduo, a força
motriz do sentir reside numa pulsão anônima e impessoal que não se
identifica com o utente dos serviços burocráticos” (p. 50). A estética escapa,
desse modo, a burocracia por ser algo situado dentro do indivíduo, “sentiam
de um modo interior: o processo de alheamento e de reificação não tinha
ainda investidos as emoções e os afectos, que ficavam protegidos num
universo oposto à exterioridade do mundo prático” (p. 50). Contudo, não se
trata de um sentir “singular ou subjectivo”.
“é uma modalidade do sentir que não se identifica com o indivíduo, mas que
implica a existência de um mundo interior, de que participam as pessoas
sensíveis e cultas” (p. 50).
Estética da vida e estética da forma
“a época burocrática rege-se pois por uma completa separação entre o agir
e o sentir” (p. 50), a administração racional dos objetivos é oposta a
interioridade do sentir. Dentro dessa interioridade se encontram dois modos
distintos de sentir: a estética da vida e a estética da forma.
“na pulsão para a forma, esta acaba ainda por resultar algo de excessivo,
de supérfluo, de inútil, de inadequado à pura interioridade de uma abstracta
vontade de arte. A aventura formal da arte moderna foi sempre tentada
pela ausênsia, pelo silêncio, pela página branca, entendidas não como
falhas, mas como realizações absolutas de um querer sentir só o essencial”
(p. 57).
III.Fazer-se sentir
A serenidade e o transe
Aquilo que está fora dessa tradição pode ser encarado como alternativa, “a
serenidade que nos oferece o sentir oriental e o transe que nos oferece o
sentir meridional podem constituir uma efectiva resistência à sensologia,
mas só se forem encarados na sua relação com um litígio que tem dado
lugar a um combate no Ocidente desde há milênios” (p. 100), desse modo,
deve ser uma forma de sentir autônoma à metafísica não sendo aceita sua
diluição pela cultura ocidental.
Genealogia do sentir
“não sofrer, mas fazer-se sentir! É este o apelo que da profundidade dos
milênios chega até nós!” (p. 102). Fazer-se sentir “acima de tudo, significa
actuar sobre si próprio de modo a sair da impassibilidade metafísica e do
dualismo entre actividade e passividade” (p. 102). Assim, no fazer-se sentir
“o fazer e o sentir estão intimamente ligados” (p. 103).
Desse modo vemos um sentir que possui também com o tempo uma relação
distinta, não no passado ou no futuro, mas sim no momento da experiência:
“enquanto que o já sentido remete para experiências que já aconteceram,
para um sentir por definição pretérito e reificado, o fazer-se sentir, pelo
contrário, é inseparável da experiência do presente, da flagrância do
nascimento” (p. 104). O fazer-se sentir é uma experiência presente de
origem, ou seja, é um permitir constante de que possa ser gerado. Esse ter
origem não compromete com o passado o futuro, “o nascimento não é o
fundamento, nem o início, nem a origem” (p. 104). O fazer-se sentir “nasce
acabado, não é o princípio nem o começo de algo que só o futuro poderá
realizar: é certo que ele exige uma sucessão e também um
desenvolvimento, mas não se deixa subordinar pelo futuro. Em suma, não
pretende valer como origem, como único arquétipo e paradigma de todas as
experiências que hão-de vir, porque não estabelece uma hierarquia de
nascimentos” (p. 105).
“no horizonte do fazer-se sentir, agir e ser objecto de acção são ambos
modos de conhecimento e de sensibilidade: todavia, o conhecimento de
quem age não é igual àquele de quem é objecto de acção. O fazer-se sentir
apresenta, também ele, duas formas de sentir distintas: de um lado a
aísthésis, a serenidade, do outro o menos, a possesão. O primeiro é um
sentir cósmico, uma descoberta jubilante da unidade do intelecto com o
sentido, da alma com o corpo, do homem com o ambiente que o envolve. O
segundo é um sentir teatral, um oferecer-se com entusiasmo à posse por
parte de forças cuja dinâmica resulta enigmática e contraditória, e em todo
o caso estranha à tranqüila identidade do sujeito individual” (p. 106).
Perniola coloca, assim, duas linhas do sentir, seus pontos genealógicos, que
atravessaram todo pensamento ocidental e que culminam no fazer-se
sentir.
Teátrica geral
(p. )