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João Paulo Saraiva Leão Viana

Gilmar dos Santos Nascimento


Organizadores

O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO:


Continuidade ou Reforma?
ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE RONDÔNIA

7ª LEGISLATURA

MESA DIRETORA

PRESIDENTE:
Deputado Neodi Carlos Francisco de Oliveira

1º VICE-PRESIDENTE: 2º VICE-PRESIDENTE:
Deputado Alex Testoni Deputado Miguel Sena

1º SECRETÁRIO:
Deputado Jesualdo Pires Ferreira Júnior

2º SECRETÁRIO: 3º SECRETÁRIO:
Deputado Chico Paraíba Deputado Ezequiel Neiva

4º SECRETÁRIO:
Deputado Mauro Rodrigues da Silva
João Paulo Saraiva Leão Viana
Gilmar dos Santos Nascimento
Organizadores

O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO:


Continuidade ou Reforma?

Editora da Universidade Federal de Rondônia


Porto Velho
2008
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP

321 (81)
O sistema político brasileiro: continuidade ou reforma?/
S632
organizadores João Paulo Saraiva Leão Viana. Gilmar dos
Santos Nascimento. Porto Velho: Edufro, 2008
346p.

1. Ciência Política - Brasil 2. Sistema Político - Brasil 3. Política


e Governo - Brasil I. Viana, João Paulo Saraiva Leão II.
Nascimento, Gilmar dos Santos.

Ficha Catalográfica elaborada pela Bibliotecária Leandra Perdigão CRB 11/415


SUMÁRIO

9 Palavra do Presidente

11 Prefácio

17 Antônio Octávio Cintra


Majoritário ou proporcional? Em busca do equilíbrio na
construção de um sistema eleitoral

47 Walter Costa Porto


O voto majoritário distrital no Brasil

63 Fabiano Santos
Como aperfeiçoar o sistema político brasileiro? Ensaio de sugestão

75 Filomeno Moraes
Democracia, república e reforma política: variações em torno dos
vinte anos da Constituição Federal

93 Elder Gurgel Filho


Teoria da separação dos poderes: A literatura atual da ciência
política e sua aplicação aos níveis subnacionais
de governo

123 Carlos Wellington Leite de Almeida


Federalismo brasileiro em formação

151 Roberto Amaral


A votação no sistema de listas

169 João Paulo Saraiva Leão Viana


Flávia Ilíada Coêlho
Democracia ou partidocracia? Pontos e contrapontos
da lista fechada no Brasil
191 Clayton Mendonça Cunha Filho
Pedro Wilson Costa Júnior
O preço da democracia: caminhos para aperfeiçoar o sistema de
financiamento de campanhas

201 Raimundo José dos Santos Filho


Vinícius Valentin Raduan Miguel
As coligações proporcionais no sistema
eleitoral brasileiro

215 José Luiz Quadros Magalhães


A necessidade de revisão do papel do Senado na democracia
representativa brasileira – ou sua extinção

239 Francisco Humberto Cunha Filho


Manifestações atuais da representação de interesses no direito
brasileiro: o caso específico do segmento cultural

269 Gilmar dos Santos Nascimento


Sociedade civil e reforma política

281 Luís Fernando Novoa


Democratização em meio ao desmonte: o elo entre a coerência
macroeconômica, a liberalização comercial e a efetividade política

297 Moacyr Parra Mo�a


Reflexões sobre a democracia contemporânea e a questão da
legitimidade do sistema representativo: o caso Rondônia

319 Sansão Saldanha


A democracia consolidada

327 Alex Sarkis


Sobre a vida pregressa dos candidatos
PALAVRA DO PRESIDENTE

Em junho de 2007, a Assembléia Legislativa do Estado de Ron-


dônia, através da Escola do Legislativo, promoveu o I Seminário de
Reforma Política da Região Norte, evento que contou com a participa-
ção de diversos estudiosos de renome nacional e regional. A discussão
sobre mudanças e reformas em nosso sistema político faz parte de um
processo de amadurecimento democrático que completa agora vinte
anos da ocasião da promulgação de nossa Constituição Federal.
A consolidação democrática de nossas instituições traz consigo
a necessidade de uma reflexão crítica acerca daquilo que precisa ser
mantido ou modificado. Debater a reforma política no Brasil não é as-
sunto fácil. Trata-se de um tema polêmico tanto entre estudiosos quan-
to entre políticos e partidos. Basta observar a falta de consenso nos
próprios partidos políticos e bancadas do Congresso Nacional sobre
temas como voto distrital misto, financiamento público de campanhas,
lista fechada, fidelidade partidária, cláusula de barreira, entre outros.
Em uma época de crescente descrédito para com a política, a cri-
se da representação é acima de tudo expressada pelo distanciamento
entre o cidadão e o parlamento. Reconquistar a confiança das Institui-
ções requer sempre a missão de aprimorá-las, principalmente em um
contexto de crises institucionais. É através do exercício democrático da
participação que o cidadão se sente inserido. Privar-lhe desse direito
constitui acima de tudo em um retorno às antigas e repressivas Insti-
tuições.
Nesse contexto, o papel do parlamento rondoniense através da
Escola do Legislativo é acima de tudo levantar questões candentes da
vida política nacional, ampliando a discussão sobre as mesmas, na
perspectiva de inserir o maior número de cidadãos no debate públi-
co. Dessa forma, torna-se primordial unir política e ciência, sendo esse
um bom momento para aproximar as relações entre o parlamento e a
universidade.
A Escola do Legislativo, dirigida pela profa. Darcy Horny, vem
se destacando como um importante departamento da Assembléia Le-
gislativa de Rondônia, contribuindo para a formação de cidadãos inse-
ridos no processo político. A parceria do Legislativo rondoniense com
a Universidade Federal de Rondônia é um belo exemplo dos esforços
que estamos empreendendo no intuito de cada vez mais nos aproxi-
marmos da sociedade.
Ressalto aqui a importância desta obra que é lançada numa par-
ceria entre a Assembléia Legislativa do Estado de Rondônia, a Esco-
la do Legislativo e a Editora da Universidade Federal de Rondônia.
Nós, membros do parlamento rondoniense nos sentimos honrados e
orgulhosos pela iniciativa vanguardista na região norte, ao iniciarmos
o debate público sobre mudanças e aperfeiçoamento de nossas insti-
tuições.
Esperamos que os textos aqui presentes possam contribuir ain-
da mais para a divulgação de nosso sistema político, sendo objetos de
consulta e pesquisa por parte de acadêmicos, estudiosos e principal-
mente pelo cidadão comum.
Com essa iniciativa, temos a certeza de estarmos colaborando
para que a jovem democracia brasileira se consolide ainda mais entre
nós, alargando os ideais da democracia representativa, da justiça social
e do Estado de Direito.

Neodi Carlos de Oliveira


Presidente da Assembléia Legislativa de Rondônia
ÀS ARMAS CIDADÃOS!

Paulo Queiroz

Atenção - previne-se ao leitor - para as páginas que adiante se


abrirão. Mais um pouco à frente, e de lá até o fim do percurso ali come-
çado, há homens armados - e mais que isso - oferecendo a quem quer
que prossiga livro adentro as mesmas armas de que estão a se servir - e
muito mais -, reiterando a cada parágrafo percorrido um convite para
a eles se juntar na guerrilha em que decidiram se envolver. Em que
importem a tenacidade e as estultices do adversário a enfrentar, difícil
não aderir à causa deles, porquanto bom é o combate para o qual nos
chamam a pelejar e poderosas são as armas que ensarilham - com as
quais saúdam a quem passa e com todos querem-nas compartilhar.
V m de longe as tradições que aí estão pulsando e que os perfila-

ram neste campo de batalha. Alguém dirá que remonta à velha Grécia,
onde não desconsiderando o sangue propriamente dito derramado em
Tróia, no Peloponeso, em Queronéia e muitos outros campos sobre os
quais se cruzaram espadas, as batalhas de cujo legado a civilização é
até hoje verdadeiramente tributária tiveram lugar numa tal Ágora, por
intermédio do poder que aquele povo conferiu àquela arma aqui lem-
brada – a palavra. A diferença entre esses dois tipos de guerra é que
onde há espadas zunindo, cortando corpos e ceifando vidas, permeia,
invariavelmente, a insensatez. Nesta outra, a que se fazia na tal Ágora
esgrimindo a palavra, a razão é que desde lá vem tentando dar as car-
tas.
Desde lá, vírgula! Aqui mesmo, aí adiante, entre esses homens
que de tal arma estão servidos, poderá haver quem diga, ferido em
brios, que é desde muito atrás que a palavra se fez força conduzindo a
humanidade. De fato. Antes mesmo de os sumérios cunharem-na em
argila fixando a história, antes até de o deus Thot ensinar aos egípcios
o uso da escrita relativizando o papel da memória, a palavra falada
abriu e pôs-se a ampliar os portais da mente humana para nunca mais
deixar a espécie ser aquela mesma que emergiu da savana ou do Éden.
Como atestam estes versos conhecidos: “No princípio, era o verbo, e
o verbo estava com Deus, e o verbo era Deus”. João, como se vê, sabia
das coisas.
Enfim, estes homens que aí adiante estão a digladiar-se – e esta
é a forma como avançam sobre a adversidade a vencer, fazendo suas
idéias entrechocarem-se para produzir a luz que rasgará a escuridão
– querem persuadir-nos a lhes ouvir não exatamente para com eles
concordar, mas para, pela palavra, tentar nos ajudar pelos caminhos
a trilhar. Querendo, vamos aprender com eles que todas as questões
de interesse geral da sociedade podem resolver-se na deflagração, no
andamento e na conclusão de um debate. Eis em que implica o sistema
da “polis” que naquela lá distante Ágora vai inventar-se em Política,
atribuindo uma extraordinária supremacia à palavra, entronizando-a
no reino da persuasão e fazendo-a prevalecer sobre todos os demais
instrumentos de poder.
Aqui, o que tirou estes homens do sossego em que deviam estar
postos após a faina – todos, como o leitor, têm outras ocupações absor-
vedoras – foi certa inquietação com a forma como estão a nos governar.
Mas isso, pensará o apressado, é um problema das autoridades, dos
políticos no exercício dos seus cargos por todos pagos para se aterem a
esse mister. É bem verdade.
Ocorre que nestes homens pulsam aquelas tradições já referidas,
aquele espírito da política que da Ágora surgiu, se esparramou pelo
mundo e aqui, nesta consigna, instalou-se entre eles, revelando-os nes-
tas páginas que adiante se abrirão, transmutadas na assembléia em que
decidiram reunir-se. Pretendem que o círculo em que se constituem dê
acesso, sempre mais amplo – até alcançar o “demos” –, ao mundo do
domínio público, de modo tentar fazer prevalecer na “cracia” o inte-
resse comum.
As questões que os inquietam são de “todos” conhecidas – vali-
dadas as restrições que a nefanda natureza do sistema impõe a reali-
dade desse “todos” -, posto que há tempos delas bastante se ocupam
os jornais, a televisão, a comunicação em seu conjunto, os estudiosos,
as autoridades em geral, enfim, os próprios políticos – que são, desa-
fortunadamente, os que mais parecem se mexer e por apenas parecer
permanecem sempre no mesmo lugar.
Fala-se do modelo de democracia que nos governa, dos mecanis-
mos que para muitos já estão engastados ou deixaram de funcionar,
dos vícios que medraram em meio a essa fadiga e ameaçam estancar o
curso das nossas vidas, dos procedimentos que podem desequilibrar
um sistema que se arroga da lei como equilíbrio e da igualdade como
norma. Fala-se do concreto da vida social e das reformas que a política
que o conduz parece já estar a exigir.
Aliás, essa opinião que aí acabou de ser proclamada é apenas
outro palpite, porquanto é o leitor que se interessar pelo assunto – e a
prudência, mais que a sabedoria, recomenda que tome tento – quem
vai dizer também se é ou não razoável clamar por tais reformas. Diz-
se a prudência para tentar não deixar ninguém ser incluído entre os
“idion” de que já nos falavam os sábios da Ágora. Não queira, leitor,
ser tomado como um tal, porque na antiguidade grega um “idion” era
aquele indivíduo que, mesmo tendo as condições necessárias à par-
ticipação nas assembléias, se negava a fazê-lo, originando daí aquilo
que se conhece como idiota. Em vez disso, o que se quer é tratar todos
como “isoi”, que significa “iguais” e vai originar “isonomia”, indican-
do a indistinguível participação de todos os cidadãos no exercício do
poder.
Pelo jeito, a julgar pela torrente de clamores que de todo lado pro-
cede, o sistema que nos governa está mesmo a demandar por reformas.
Este modo de corrigir o rumo das coisas também vem de longe. Vire e
mexe, os gregos faziam lá uma reforma. Chamado a repensar as leis da
“pólis”, Drácon não se fez de rogado, mas suas reformas mantiveram a
escravidão por dívida e os privilégios da elite. Veio Sólon e, com suas
reformas, aboliu a escravidão por dívidas e instituiu nova maneira de
participação política, embora mantendo só as elites no comando. Clís-
tenes, por seu turno, objetivou eliminar o controle da aristocracia sobre
o poder político. A cidadania foi concedida a um número maior de
indivíduos, porém, para os que eram tidos como nocivos à “pólis”, foi
instituído o ostracismo. E por aí veio caminhando a humanidade.
Chegamos aonde estamos e, armado até os dentes, vai aparecer
aí o advogado e professor Alex Sarkis para nos falar “Sobre a Vida Pre-
gressa dos Candidatos”, uma questão que anda aguçando muito mais
do que a vã curiosidade de tão pungente. Da Universidade de Brasília
(UnB), onde está especializando-se em “Ciência Política”, apurando
a pontaria e mirando na alma do sistema, chega-nos Elder Gurgel S.
M. Filho para discorrer acerca da “Teoria da Separação dos Poderes, a
Literatura Atual da Ciência Política e sua Aplicação aos Níveis Subna-
cionais de Governo”.
Por acaso insatisfeito com sistema eleitoral? Não se amofine com
o tranco. Ele cientista político e professor e ela pós-graduanda em Ci-
ência Política pela UnB e assessora na Câmara dos deputados, o par de
esgrimistas João Paulo Saraiva Leão Viana e Flávia Ilíada Coelho aqui
vão comparecer para dar umas estocadas nesse modelo que se tornou
objeto de recalcitrantes reclamações, oferecendo à reflexão dos seme-
lhantes “Democracia ou partidocracia: pontos e contrapontos da lista
fechada no Brasil”.
Aliás, não será por falta de munição que o leitor eventualmente
aborrecido com o sistema eleitoral vai deixar de participar dessa re-
frega. Do assunto, com igual disposição e mental beligerância, vão se
ocupar Walter Costa Porto (ex-ministro do TSE e professor de Direito
Eleitoral na UnB e autor, entre outros, de “O Voto no Brasil” e “A Men-
tirosa Urna”), enfrentando “O Voto Majoritário Distrital no Brasil”, se-
cundado lá adiante por Roberto Amaral (ex-ministro da Ciência e Tec-
nologia) com “Votação no Sistema de Listas” e Antônio Octávio Cintra
(Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados e autor, entre outras
obras, de “Reforma Política: Agora Vai?”), que fecha a guarda e parte
para cima de “Majoritário ou Proporcional – Em Busca do Equilíbrio
na Construção de um Sistema Eleitoral”.
Na hipótese de que o leitor se deixe impacientar por ainda não
estar convencido de que todos temos algo a ver com o peixe, a reco-
mendação é tomar um atalho para escutar o sociólogo Gilmar dos San-
tos Nascimento, que fala da parte que nos cabe em “Sociedade Civil e
Reforma Política”. Já Carlos Wellington Leite de Almeida - professor,
mestre em Ciência Política e secretário do Tribunal de Contas da União
(TCU) – vai atacar de “Federalismo Brasileiro em Formação”. A qua-
tro mãos, Raimundo José dos Santos Filho (professor e bacharel em
Ciências Sociais e Direito) e Vinícius Valentin Raduan Miguel (mes-
trando em Ciência Política na Universidade de Glasgow) prometem
deixar machucadas “As Coligações Proporcionais no Sistema Eleitoral
Brasileiro”.
Sem baixar a guarda, o doutor Francisco Humberto Cunha Filho
duelará com “Manifestações Atuais da Representação de Interesses no
Direito Brasileiro: Caso Específico do Segmento Cultural”, enquanto
José Luiz Quadros de Magalhães (...) bombardeará o bicameralismo
brasileiro com “A Necessidade de Revisão do Papel do Senado na De-
mocracia Representativa Brasileira – ou a sua Extinção”.
Em meio ao calor deste debate, eis que uma interpelação se nos
intriga: “Como Aperfeiçoar o Sistema Político Brasileiro?”, pergunta o
cientista político e presidente da Associação Brasileira de Ciência Polí-
tica Fabiano Santos intitulando o ensaio em que oferece muito mais do
que sugestões. Nessa trilha, Clayton Mendonça Cunha Filho e Pedro
Wilson Costa Júnior dão a sua contribuição indicando “Caminhos Para
Aperfeiçoar o Sistema de Financiamento de Campanhas”, aí aspado o
subtítulo do tema geral que desenvolvem – “O Preço da Democracia”.
E assim, ao levantar a lebre para especular sobre o esforço que
nos custa o sistema que nos governa acabou-se por dar panos para
mangas a vários, pois do tema vão se ocupar uns tantos outros cida-
dãos desta ciranda como o advogado Moacyr Parra Mo�a em “Refle-
xões Sobre a Democracia Contemporânea e a Questão da Legitimida-
de do Sistema Representativo – O Caso Rondônia”, o cientista político
e professor Filomeno Moraes em “Democracia, República e Reforma
Política: Variações em Torno dos 20 Anos da Constituição Federal”, o
desembargador Sansão Saldanha em “A Democracia Consolidada” e o
professor da Unir Luís Fernando Novoa em “Democratização em Meio
ao Desmonte: o Elo Entre Coerência Macroeconômica, a Liberalização
Comercial e a Efetividade da Política”.
Ao final do percurso aí ligeiramente anunciado o leitor, com toda
certeza, terá percebido que a arte da política é - como inauguraram
os sábios antigos - essencialmente um exercício da linguagem. E aí
a palavra não é somente o termo litúrgico, a idéia posta em juízo, o
pensamento em missão, a vontade em andamento, mas também argu-
mentação e discussão, motivando interpretações diversas, oposições
extremadas e debates apaixonados. Tem, sim, esta palavra um inco-
mensurável poder de fogo, mas um fogo que não queima, não causa
danos, feridas, destruição – não obstante incendiar os espíritos e com
muita flama iluminar os caminhos. Ciente desses avisos, arme-se o lei-
tor com vontade nestas páginas que adiante se abrirão. Às armas, pois,
cidadãos!

Paulo Queiroz é jornalista, articulista


político
íítico do jornal “O Estadão do Norte”.
Majoritário ou
proporcional?
Em busca do equilíbrio na
construção de um sistema eleitoral1

Antônio Octávio Cintra


Ph.D em Ciência Política pelo Massachusse�s Institute of Technology.
Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados. Professor aposentado
do DCP/UFMG. Editor da Revista Plenarium. Co-organizador de O Sistema
Político Brasileiro: uma introdução (Unesp, Konrad Adenauer, 2006).

1 Este texto foi publicado originalmente no livro Reforma Política: Agora Vai?, da
série Cadernos Adenauer (Ano VI, 2003, nº 2), da Fundação Konrad Adenauer. Sua re-
publicação neste volume nos foi gentilmente autorizada pela Fundação. Fizemos alte-
rações mínimas no texto. Uma delas, contudo, corrige um erro que nos escapou na pri-
meira versão, conforme assinalamos em nota no presente texto. Nele, não discutimos a
conjuntura política do País e as propostas mais recentes de reforma em nosso sistema
eleitoral. Nosso escopo foi, antes, o de discutir, em plano teórico, elementos importan-
tes para a construção de um sistema eleitoral, inclusive o brasileiro, e necessários ao
entendimento das conseqüências políticas dos vários formatos dessa construção.
18 Majoritário ou proporcional?
Em busca do equilíbrio na construção de um sistema eleitoral

1. A importância do sistema eleitoral

Desde que se impôs o princípio da soberania popular, segundo o


qual o poder se origina do povo e em seu nome se exerce, as eleições se
tornaram, principalmente no transcurso dos últimos dois séculos, par-
te essencial da arquitetura política das sociedades democratizadas.
Como pôr em prática o princípio da soberania popular nos gran-
des agrupamentos humanos? O bom-senso nos diz que a idéia de de-
mocracia direta, ou seja, sem representantes, pode funcionar apenas
de modo residual nesse tipo de sociedades. Em outras palavras, para
o povo governar-se – se não se trata de um grupo bem pequeno de
pessoas -, deve fazê-lo normalmente por meio de representantes. Essa,
a idéia da democracia representativa.
Mas como escolher os representantes? Responder a essa pergunta
tomou-se assunto premente, sobretudo em conseqüência da ampliação
do eleitorado nos países centrais, em ondas sucessivas e irreprimíveis,
ao longo dos séculos XIX e XX.
Várias respostas lhe foram sendo dadas com o passar do tempo,
corporificadas em conjuntos de regras - os sistemas eleitorais - que se
aplicam para coletar o voto e transformá-lo em postos com poder po-
lítico.
Nenhum sistema eleitoral é perfeito. De cada sistema eleitoral se
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 19

pedem efeitos diversos, não raro conflitantes, muito difíceis de obter,


de modo satisfatório, numa solução equilibrada que os concilie e seja
aceita pelos vários grupos que disputam o poder político. Os sistemas
podem, por exemplo, ser mais ou menos representativos, podem facili-
tar ou não a formação de maiorias, podem estar mais ou menos abertos
à expressão de novas forças políticas, podem facilitar a fragmentação
ou induzir a concentração partidária, estimular o estabelecimento de
vínculos entre o representante e o eleitorado ou reforçar partidos com
plataformas que falem aos interesses mais gerais dos cidadãos. 2
Quando estudamos a história dos sistemas eleitorais, vemos que
sua estruturação e as mudanças que sofrem resultam de conflitos e de
negociações entre as várias forças políticas, cada qual buscando, nas
fórmulas eleitorais, as que melhor satisfaçam suas ambições de cresci-
mento e influência política ou, o que acontece com os pequenos parti-
dos, os protejam do desaparecimento. Os sistemas concretos acabam
resultando de acordos precários, reavaliados de tempos em tempos, se
certos grupos se julgam permanentemente prejudicados pelas regras
em vigor. Alguns sistemas são, todavia, duradouros como o britânico
e o norte-americano, porque os vários grupos aprenderam, ao longo
de uma longa história, a usá-los estrategicamente, de forma que nem
perdas, nem ganhos, sejam distorcidos com permanência contra um
grupo ou em favor dele.
Na definição de seus sistemas eleitorais, as democracias recor-
rem, basicamente, a dois princípios, o majoritário e o proporcional. O
princípio majoritário é o de mais longa tradição histórica. Podemos
encará-lo tanto como um critério para a tomada de decisão em grupos,
quanto como um critério de representação política. 3

2 Muitos dos debates sobre o assunto, no Brasil, parecem omitir as múltiplas


finalidades dos sistemas eleitorais. Elege-se, em geral, um valor, a ser perseguido com
vantagem sobre todos os demais. Esse valor costuma ser o da representatividade, o
que tem levado a um fundamentalismo proporcionalista, prejudicial à visão do pro-
blema em sua complexidade.
3 Esta importante distinção nos é apresentada por Dieter Nohlen (NOHLEN,
1981).
20 Majoritário ou proporcional?
Em busca do equilíbrio na construção de um sistema eleitoral

Nas deliberações coletivas, freqüentemente se tomam decisões


por maioria de votos e encaramos essa regra como coerente com a lógi-
ca democrática, pela qual vence a maioria. Assim, nos parlamentos, a
deliberação formal nas votações segue a regra da maioria.
No caso das eleições, é preciso um critério de decisão para saber
quem venceu o pleito. Os primeiros sistemas eleitorais usados pelas
modernas democracias para a escolha dos representantes ao parla-
mento foram os de tipo majoritário. O território nacional era dividido
em circunscrições nas quais se aplicava alguma modalidade de regra
majoritária para decidir o vencedor da eleição. Essas circunscrições são
conhecidas no direito eleitoral brasileiro como círculos ou distritos.4
Os princípios de decisão eleitoral se expressam em fórmulas eleitorais,
cuja aplicação permite resolver o problema de que regra seguir para
converter os votos do eleitorado em cadeiras parlamentares ou, nos
sistemas presidencialistas ou semi-presidencialistas, também em con-
quista da titularidade no Executivo, pela eleição direta do presidente
da república.
Pela fórmula eleitoral majoritária, vence quem conseguir a maio-
ria dos votos. Mas a maioria é suscetível de várias definições. Podemos
ter a relativa -- vence quem tiver mais votos --, a absoluta e as maiorias
qualificadas, por exemplo, a maioria de 60% ou a de 2/3.
Podemos, entretanto, encarar o princípio majoritário também
sob um outro ângulo, isto é, como principio de representação. A in-
dagação, nesse caso, é sobre quais resultados se esperam do sistema
eleitoral, que funções se quer que ele desempenhe ao selecionar os re-
presentantes mediante eleições.
O princípio majoritário, enquanto princípio de representação, esti-
pula serem as maiorias, em cada circunscrição (distrito), quem deva ser

4 Ao longo da história, o Reino Unido, a Dinamarca e a Suíça adotaram o distri-


to uninominal, ou seja., aquele em que se elege apenas um representante, com decisão
do resultado por maioria simples em turno único. A Áustria, a Alemanha, a Itália, a
Holanda e a Noruega conheceram os distritos uninominais, mas com decisão em dois
turnos. Distritos plurinominais, nos quais se elegiam mais candidatos, com decisão
majoritária, foram conhecidos na Bélgica, no Luxemburgo e na Suíça.
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 21

representado no parlamento. Há, pois, um forte componente territorial


no princípio majoritário, na medida em que um território é dividido
para que suas diferentes regiões tenham representação, e esta, em cada
distrito, é decidida pelo critério da maioria. 5
Além disso, o princípio representativo majoritário define que as
diversas maiorias obtidas nos distritos devem compor, no sistema par-
lamentarista, uma maioria parlamentar nacional capaz de formar um
governo e dar-lhe sustentação. O sistema eleitoral inspirado no princí-
pio majoritário preocupa-se, pois, com promover a formação de maio-
rias, por julgá-las indispensáveis ao exercício do governo.
Os defensores do princípio majoritário, como princípio de repre-
sentação, têm sustentado sempre, ao longo do tempo, que também as
minorias conseguirão representar-se. Apesar de os votos da minoria
se perderem nos distritos onde é derrotada, nada impede que, em ou-
tros distritos, seja maioria, mesmo que, no total nacional, conquiste
menos cadeiras do que seu rival. Assim, as minorias também conse-
guem ter representação, podem exercer sua função parlamentar e lutar
para conseguir tornar-se maiorias em futuras eleições. Este fato é tanto
mais verdadeiro quanto maior for a representação a se eleger para o
parlamento nacional. Com uma representação numerosa, o território
do país precisa ser dividido em grande número de distritos. Torna-
se, portanto, mais provável que partidos, nacionalmente minoritários,
conquistem a representação de, ao menos, alguns desses distritos, em
que obtenham a maioria relativa. 6
Historicamente, porém, os oponentes do principio majoritário
não se deram por satisfeitos com a argumentação dos que o defendem.
Em conseqüência, na segunda metade do século XIX, surgiu movimen-

5 O princípio majoritário tem, assim, um forte aspecto federalista na sua con-


cepção. Veja-se a análise do assunto em (GORGEN, 1992).
6 A maioria relativa (plurality, em inglês) é adotada em vários sistemas eleitorais
majoritários, como o britânico e o norte-americano (conhece-se tal critério como o do
“first past the post”, termo vindo das corridas de cavalo, ou seja, vence o candidato que
obtiver o primeiro lugar na votação. Outra expressão para o sistema é o de “winner take
all” – o vencedor leva o prêmio inteiro).
22 Majoritário ou proporcional?
Em busca do equilíbrio na construção de um sistema eleitoral

to em defesa de outro principio de decisão e representação, o propor-


cional. 7
Esse princípio, exaltado pelos que o propugnaram como sendo
mais democrático, estipula que a decisão sobre uma eleição deva aten-
der às proporções dos votos conquistados pelos vários competidores.
Na prática, o princípio proporcional de decisão se traduz em fórmu-
las eleitorais mediante as quais os partidos ou candidatos conquistam
uma cadeira parlamentar cada vez que atinjam um determinado mon-
tante de votos (quociente eleitoral, média maior ou resto maior, por
exemplo).
Como princípio representativo, o princípio proporcional con-
sidera terem as eleições, como principal função, a representação, no
Parlamento, na medida do possível, de todas as forças sociais e grupos
políticos da sociedade, na proporção de seu apoio eleitoral. Em outras
palavras, o princípio proporcional dá toda a ênfase à representativida-
de. Quer-se refletir o mosaico social. A função do sistema eleitoral é,
como propunha o Marquês de Mirabeau, em discurso na Assembléia

7 Contrariamente à suposição de muitos, o sistema proporcional foi de iní-


cio defendido não pelos socialistas, mas pelos liberais, como Stuart Mill. Temiam
eles que, com a extensão do direito de voto a amplas parcelas da população, já
em curso, as minorias educadas fossem definitivamente banidas da representação
política, caso permanecesse em vigor o sistema majoritário. Depois, a defesa do
sistema proporcional foi assumida pelos socialistas. Numerosas reformas se suce-
deram entre o final do século XIX e o começo do XX, a fim de implantá-lo. Não foi,
porém, uma evolução simples, que se possa resumir dizendo que a esquerda era
proporcionalista e a direita majoritarista. Na verdade, a grande luta da esquerda
era pela ampliação do direito do voto, mediante eliminação das restrições censitá-
rias, de alfabetização e os votos ponderados. Muitas vezes, grupos conservadores
ou cujo voto era inspirado pelas crenças religiosas temiam uma polarização com os
socialistas, razão pela qual apoiaram o sistema proporcional. É o caso do Partido
Católico na Bélgica, que teve segmentos favoráveis a esse sistema. A Grã-Bretanha,
mesmo se mantendo fiel ao sistema majoritário, conheceu o crescimento do Partido
Trabalhista e a sua ascensão ao poder já nos anos 20 do século passado. Para que o
sistema proporcional se tornasse realidade, foram necessárias fórmulas eleitorais
que permitissem converter os votos em cadeiras parlamentares. Numerosas dessas
fórmulas foram surgindo ao longo da segunda metade do século XIX. Stuart Mill
esposou a fórmula de T. Hare, exposta por esse autor no Treatise on the Election of
Representatives, que Mill cita no seu Consíderations on Representative Government (li-
vro originalmente publicado em 1860).
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 23

de Provença, em 1785, a de fazer um mapa acurado das divisões e ten-


dências da sociedade, nele se reproduzindo os tamanhos relativos das
correntes políticas. 8
Para os que o defendem, esse princípio é mais justo e atende me-
lhor ao imperativo democrático de dar voz às minorias, do que o prin-
cípio majoritário.
A polêmica entre os partidários de cada um desses princípios
tem prosseguido desde o século XIX. À argumentação dos proporcio-
nalistas, respondem os majoritaristas ser a função das eleições não só
representar todas as diferenças existentes e incitar todas as minorias,
por menores que sejam, a se representarem distintamente. Devem tam-
bém estimular a formação de maiorias, indispensáveis ao governo es-
tável, sobretudo num sistema parlamentarista. O principal direito na
democracia, prosseguem, é o de a maioria governar e, entre os critérios
para julgar um sistema eleitoral, está o de saber se e como ele contribui
para formar e manter a maioria.
Entre os proponentes da proporcionalidade, o mais brilhante foi
certamente o filósofo inglês John Stuart Mill (1958, p. 107), para quem
o princípio primeiro da democracia é o da representação na proporção
dos números (“the first principie of democracy – representation in propor-
tion to numbers”). 9
Em verdade, ao estudarmos as experiências de vários países com
o princípio proporcional, vemos com clareza não existir apenas um
modelo de sistema eleitoral nele inspirado, mas sim uma imensa va-

8 Congresso realizado em Antuérpia, em agosto de 1885, sob o patrocínio da


Associação Reformista pela Adoção da Representação Proporcional, enaltecia-a, em
suas conclusões, entre outras virtudes, por ser o meio único de dar “representação
exata a todos os grupos significativos do eleitorado.” (CARSTAIRS, 1980).SA
9 Já em 1868, a defesa do sistema proporcional era feita, em nosso país, por José
de Alencar, cujo inovador pensamento político foi destacado por Wanderley Guilher-
me dos Santos. Diz Alencar: “É evidente que um país estará representado quando seus
elementos integrantes o estiverem na justa proporção das forças e intensidade de cada
um. (...) É essencial à legitimidade dessa instituição (o governo representativo) que ela
concentre todo o país no Parlamento, sem exclusão de uma fração qualquer da opinião
pública.” (apud SANTOS, 1987, p. 20).
24 Majoritário ou proporcional?
Em busca do equilíbrio na construção de um sistema eleitoral

riedade. 10
Uma fonte de variação dos sistemas proporcionais é a forma de
apresentar as candidaturas, se pessoais ou partidárias (neste último
caso, via listas fechadas). Alguns países adotam listas fechadas e preor-
denadas, como a Espanha, a África do Sul, Israel e Portugal. Em outras
palavras, o partido apresenta uma chapa de candidatos, na ordem em
que os quer ver eleitos, não tendo o eleitor escolha; outros permitem
que o eleitor corte nomes da lista, ou lhe acrescente nomes de outras
listas, como a Suíça, ou modifique, dentro de certos limites, a ordem de
precedência na apresentação dos nomes, previamente proposta pelo
partido, como, até 1994, a Itália, para ficarmos em uns poucos exem-
plos da imensa variedade existente com relação a apenas um dos ân-
gulos da questão.
Outra fonte de variação no voto proporcional é a “fórmula eleito-
ral”, aplicada para saber quantas cadeiras cabem a cada partido. Em al-
guns países, para calcular esse número, usam-se séries de números (os
divisores d’Hondt ou Sainte Laguë, por exemplo) pelos quais se divi-
dem sucessivamente os votos válidos de cada partido, atribuindo-se as
cadeiras aos partidos que obtenham o maior quociente (ou média) em
cada uma dessas divisões, até estarem distribuídas todas as cadeiras.
Em outros, preferem-se os quocientes eleitorais. No Brasil, combinam-
se quociente eleitoral (tecnicamente conhecido como quociente Hare)
e divisores d’Hondt (método das maiores médias, para a distribuição
das sobras). 11
O assunto “fórmula eleitoral” é considerado árido e até bizan-
tino por muitos, mas tem considerável importância política, porque a
fórmula ora favorece os partidos maiores, ora os menores, na distribui-
ção das cadeiras parlamentares, as quais, numa democracia, sobretu-

10 O movimento maciço de implantação do sistema proporcional teve a partida


em 1899, na Bélgica, e conheceu grande intensidade até 1920, data em que já estava
adotado na maior parte da Europa Ocidental.
11 Para um tratamento abrangente e didático dos sistemas e fórmulas eleitorais,
vejam-se (NICOLAU, 2004) e (TAVARES, 1994). Este último autor discute em profun-
didade os fundamentos dos sistemas eleitorais.
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 25

do parlamentarista, significam poder político, sendo, aliás, no sistema


parlamentarista, o locus principal desse poder.

2. Que é voto distrital?


Uma outra importante fonte de variação dos sistemas proporcio-
nais relaciona-se com as circunscrições eleitorais, isto é, as porções do
território dentro das quais a representação política é eleita.
Em alguns países, como Israel, a circunscrição é o país como um
todo, sendo os deputados eleitos nacionalmente. Numerosos outros
países, contudo, mesmo tendo territórios pequenos, como a Áustria,
dividem-no em parcelas ainda menores, os chamados distritos – que,
na Áustria, coincidem com as províncias – e elegem neles a represen-
tação parlamentar. Cada um desses distritos tem direito a eleger um
determinado número de representantes, fixado geralmente em função
do tamanho populacional do distrito.
Na literatura técnica sobre o assunto, o número de representan-
tes a se eleger no distrito denomina-se magnitude do distrito. Não bas-
ta, portanto, falar de voto em distrito. É preciso, ademais, saber-lhe a
magnitude, ou seja, se ele é uninominal, binominal ou plurinominal,
Obviamente, não pode haver representação proporcional quando nele
se elege apenas um representante, Nesse caso, sua eleição dar-se-á por
força pelo sistema majoritário. Distritos de pequena magnitude - bi-
nominais, trinominais - tampouco permitem resultados proporcionais.
Haverá sempre discrepância entre a proporção de votos que o partido
obtiver e a proporção de cadeiras que a fórmula eleitoral lhe con-
cederá.12 É a partir de cinco representantes eleitos numa circunscri-
ção que se podem obter resultados proporcionais. Muitos países que
adotam o sistema proporcional elegem, entretanto, representantes em

12 Quando a representação a eleger é pequena, ou seja, a magnitude do distrito


é baixa, a porcentagem mínima de votos necessários para eleger um candidato fica
muito alta, e partidos que não a alcançam perdem seus votos. Em conseqüência, au-
menta a discrepância entre a proporção dos votos obtidos pelos partidos e a proporção
de cadeiras parlamentares conquistadas.
26 Majoritário ou proporcional?
Em busca do equilíbrio na construção de um sistema eleitoral

circunscrições com representação abaixo de cinco e este fato lhes retira


proporcionalidade.
Portanto, mesmo sendo o sistema eleitoral de um país propor-
cional, seu grau de proporcionalidade pode ser mais baixo ou mais
alto do que o de um outro país que também adote o sistema. Depende
do número de representantes que, em média, eleja em cada um dos
distritos eleitorais em que esteja dividido. A Espanha e a Grécia, por
exemplo, têm sistema proporcional, mas sua proporcionalidade é mais
baixa do que a do sistema eleitoral de Israel. É que este último país só
tem um distrito - o país inteiro - onde toda a representação se elege,
ao passo que a Espanha e a Grécia têm numerosos distritos, em cada
um dos quais se elege número pequeno de representantes pelo sistema
proporcional, e a baixa magnitude distrital diminui a proporcionalida-
de do conjunto.
No Brasil, também procedemos à divisão do território para ele-
ger a representação na Câmara dos Deputados: ela se elege nas cir-
cunscrições estaduais, sendo nossos distritos, portanto, atualmente, os
estados. Como se imagina vulgarmente que distrito seja pequeno terri-
tório, tende-se a não encarar os nossos Estados como o que de fato são,
do ponto de visa eleitoral, ou seja, os nossos distritos.
É importante assinalar o fato, pois a terminologia usual entre
nós tende a identificar, no debate político, voto distrital com voto por
maioria simples em distritos uninominais, como se dá nos sistemas
eleitorais britânico ou norte-americano. Mas é terminologia imprópria
e geradora de confusão. Tanto nos sistemas majoritários, quanto nos
proporcionais, alguma forma de distrito sempre se adota, pois a repre-
sentação política é de caráter territorial. No caso extremo, haverá um
único distrito, formado por todo o país, como no exemplo de Israel. 13
Por que mesmo em sistemas que visam à representação propor-
cional, se procura eleger os representantes ao parlamento em circuns-
crições menores do que o país como um todo? Em outras palavras, por

13 Além da representação territorial, podemos ter, por exemplo, a corporativa


ou profissional, como permitia a Constituição brasileira de 1934, em seu art. 23.
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 27

que não ter deputado nacionais, em vez de agrupados, por exemplo,


como entre nós, em bancadas estaduais?
Existe um argumento importante, de que se valem tanto propor-
cionalistas como majoritaristas, na defesa da eleição em distritos de ta-
manho geográfico reduzido. O voto em distritos - seja o sistema de tipo
proporcional, seja de tipo majoritário - é conferido a candidatos que o
eleitor presumivelmente conhece bem e que, por essa razão, provavel-
mente terão um comportamento político mais responsável perante o
eleitorado.
Quando Assis Brasil propugnou pela adoção do princípio pro-
porcional no País, recuou ante a idéia de ter deputados eleitos no país
como um todo, porque esbarrou na realidade concreta do federalismo
brasileiro. Apesar de serem nossos estados, em geral, distritos de ele-
vadas dimensões geográficas, mesmo assim permitem uma proximi-
dade muito maior com o eleitor do que a poderiam ter deputados com
votos espalhados em todo o território nacional.
Na prática, se tivéssemos no Brasil deputados nacionais, ou seja,
eleitos não nos estados e territórios, mas no território nacional como
um todo, seus votos certamente se concentrariam em determinada par-
te desse território. Seriam, portanto, distritalizados de fato. A distritali-
zação informal já ocorre hoje, dentro de cada estado. Teoricamente, os
deputados se elegem na circunscrição do estado como um todo, mas
os votos de muitos deles se concentram num conjunto de municípios
vizinhos, que constituem o seu reduto eleitoral. Sobre esse ponto, vol-
taremos mais adiante.
A questão do federalismo, com a qual esbarrou Assis Brasil, leva-
nos a um outro argumento em favor do voto distritalizado, em vez de
conferido em todo o território nacional ou, mesmo - como já é - esta-
dual. É que, além de permitir um estreitamento do vínculo eleitor-re-
presentante, o voto em candidato distrital recupera uma idéia antiga,
muito viva nos sistemas eleitorais do tipo anglo-saxão: uma vez eleito,
o deputado passa a representar o distrito inteiro, não apenas a facção
que o elegeu. Ele representa uma comunidade territorialmente locali-
zada, fala por ela, independentemente das divisões internas desta. Os
proporcionalistas extremados tendem a desconhecer essa faceta mais
tradicional da idéia de representação, segundo a qual uma autorida-
de eleita - um prefeito, por exemplo - fala por todos os munícipes e
28 Majoritário ou proporcional?
Em busca do equilíbrio na construção de um sistema eleitoral

não apenas pelos que nele votaram. O deputado norte-americano, por


exemplo, é o representante do distrito X ou Y, de toda a sua população,
portanto, e não apenas dos republicanos ou democratas que lhe deram
a vitória. Em outras palavras, a representação distrital tende a atenu-
ar as divisões partidárias localmente. O representante tem de mostrar
serviço, levando benefícios à coletividade como um todo.
A eleição em âmbitos territoriais menores parece apresentar van-
tagens práticas não desprezíveis, tampouco. São elas muito conhecidas
pelos partidos políticos e pelos candidatos que enfrentam campanhas
eleitorais em territórios muito vastos. Durante a República de 1946,
por exemplo, alguns líderes políticos e publicistas apontavam para o
fato de que a campanha em nível estadual aumentava imensamente o
custo das eleições e atraía o poder econômico à disputa eleitoral, com
o que se corrompia o caráter da representação política. Além disso, a
representação distrital permite o voto personalizado, que, em muitos
sistemas políticos, como o alemão e, na prática, o brasileiro, é conside-
rado aspecto positivo do sistema eleitoral.
Uma recente linha de pesquisa, que tem estudado a associação
entre instituições e corrupção política, mostra ser o sistema de voto
pessoal e distrital menos vulnerável à corrupção. É que a vigilância do
eleitor e da oposição sobre o representante é facilitada, conquanto os
assim eleitos tendam a orientar-se mais por questões locais e a favore-
cer políticas públicas de âmbito restrito, que levam benefícios apenas
a seus redutos.14

2.1 Não temos voto distrital, mas temos


distritos informais

Ampla pesquisa levada a cabo por Nelson Rojas de Carvalho,


valendo-se dos dados da Justiça Eleitoral, permite saber, para cada de-
putado federal, de onde provêm seus votos no território estadual.
Carvalho classifica a totalidade da representação federal em qua-
tro grandes perfis, resultantes da combinação de duas dimensões. Uma

14 Veja-se (KUNICOVA; ROSE-ACKERMAN, 2003).


O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 29

dessas dimensões diz respeito à concentração geográfica ou dispersão


do voto do deputado no estado. A outra tem a ver com ser o parlamen-
tar majoritário ou não nas localidades em que é votado. Os majoritários
são, na terminologia de Carvalho, dominantes, os demais, não-domi-
nantes. Combinadas as duas dimensões, temos, para os dados de 1998,
nas celas, os quatros perfis mostrados na tabela, com a porcentagem de
deputados (sobre o total de deputados) em cada um deles.15
Note-se que, da representação eleita em 1998, 51% dos parlamen-
tares era candidatos “de reduto”, sendo 16% majoritários em um redu-
to e 35% majoritários em mais de um reduto.

Tabela 1: Votação dos deputados federais: padrão geográfico (eleição de 1998),


A votação do deputado se A votação do deputado é
concentra em reduto espalhada
O deputado é 16% 35%
majoritário
O deputado não 31% 18%
é majoritário
(as porcentagens são tomadas sobre o total dos deputados) Fonte: (CARVALHO, 2003).

Os demais representantes (dispostos na linha inferior de matriz)


não são majoritários, provindo 31% deles de cidades onda se concen-
tram seus votos (cidades grandes e regiões metropolitanas) e 18% ten-
do votação dispersa pelo território estadual.
Carvalho mostra diferenciarem-se os comportamentos e percur-
sos políticos desses quatro tipos de representantes. Por exemplo, as
famosas emendas ao orçamento, representadas pelos parlamentares
todos os anos, visam a levar benefícios concretos a localidades especí-
ficas, precisamente os redutos em que os deputados que as apresentam
são dominantes. Quando a emenda é aprovada e, sobretudo, quando

15 Veja-se (CARVALHO, 2003). A tipologia usada por Carvalho foi introduzida


por Barry Ames (AMES, 2001). Um trabalho pioneiro, que identificou padrões em-
píricos de distritalização no Rio de Janeiro, deveu-se a Luciano Dias (DIAS, 1991, p.
65-98).
30 Majoritário ou proporcional?
Em busca do equilíbrio na construção de um sistema eleitoral

o recurso nela previsto é liberado, pode o deputado receber o crédito


pelo benefício que trouxe para seu município.
Já o deputado cujo voto se concentra numa região metropolitana,
em que vários outros são eleitos, não faz, da apresentação de emendas,
o cerne de sua atividade parlamentar. A obra pública que o governo
empreende em uma grande cidade dificilmente pode ser creditada ao
esforço de um único parlamentar. Portanto, lutar por ela não tem o
mesmo sentido que tem para o deputado dominante em reduto in-
teriorano. Os parlamentares de votação não-majoritária em grandes
cidades, ou de votação espalhada no território do Estado, sem serem
majoritários em nenhum lugar específico, lidam, em geral, com temas
e causas mais amplos. Tratam de políticas públicas gerais - educação,
saúde, economia -, ou defendem interesses de categorias sociais (pro-
fessores, bancários, ruralistas) ou valores mais universais (preservação
do meio-ambiente, união civil de pessoas do mesmo sexo, rumos da
política econômica, proibição da comercialização de armas de fogo,
entre outros).

3. É possível combinar os princípios majoritário e


proporcional? A solução alemã 16

No período pós-guerra, a Alemanha concebeu, ao cabo de ela-


borados estudos e paciente negociação política, que incluiu também,
em muitos momentos, as próprias forças de ocupação no setor ociden-
tal (Estados Unidos, Grã-Bretanha e França), um sistema eleitoral que,
sendo proporcional, permitisse todavia eleger a representação na Câ-
mara Federal (Bundestag) de duas formas. Nele, a metade dos deputa-
dos se elege em distritos uninominais, por critério majoritário (maioria
simples) e voto personalizado (voto no candidato), e outra metade me-
diante voto em listas partidárias fechadas, estaduais, com os candida-
tos apresentados ao eleitor na seqüência em que deverão ser eleitos.
Com esse sistema, materializada a versão atual pela Lei Eleitoral

16 Aqui, mencionaremos apenas os traços mais salientes do sistema alemão,


tratado em pormenor em (UNGLAUB, 1995, p.7-35).
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 31

Federal de 7 de maio de 1956, colhem os alemães as vantagens do voto


em candidatos, não em partidos, dado em pequenos distritos, em vez
de no território estadual como um todo, porém sem perder as virtudes
do voto partidário, programático, que o sistema de listas fechadas per-
mite praticar. E isso segundo os cânones da representação proporcio-
nal, pois os partidos terão, no Bundestag, o número de cadeiras a que a
sua votação de lista, no país como um todo, der direito.
Conforme os conceitos apresentados no começo do texto, o cri-
tério para decidir quem ganhou a eleição, em nível nacional, é o da re-
presentação proporcional. Pelo sistema proporcional, ganhar a eleição
não é questão de tudo ou nada, uns levando todas as cadeiras, outros
ficando a ver navios. É, sim, resultado de uma distribuição graduada,
de acordo com a porcentagem dos sufrágios dados a cada partido. E,
sendo o sistema proporcional, é bem possível que, para fazer maioria,
um partido precise do apoio de outros. Na prática alemã, tem sido ne-
cessário o apoio, a um partido maior, de um dos pequenos, os Liberais
ou os Verdes, mas a possível coalizão pós-eleitoral já é conhecida do
eleitor quando vota.
Contudo, conhecido o número de cadeiras a que o partido faz
justo pelo critério da proporcionalidade (ou seja, o seu quociente par-
tidário), usa-se uma segunda regra de decisão para preenchê-las uma
a uma, dentro do total de cada partido. Essa regra determina que o
partido aplique o critério de decisão majoritário na eleição de uma par-
cela dos seus candidatos, os que venceram os pleitos distritais. Nes-
sa parcela, as candidaturas são pessoais, ainda que patrocinadas pelo
partido. Os demais candidatos, que permitem ao partido completar a
sua quota proporcional de cadeiras, são tomados da lista. A lista recebe
o que, no Brasil, chamaríamos os votos de legenda, os votos na chapa
partidária preordenada.17

17 Não há o que objetar quanto à rigorosa aplicação do critério da proporciona-


lidade ao sistema germânico, elevadíssima, aliás, visto ser o quociente eleitoral calcu-
lado nacionalmente e não, como entre nós, por estado. O teste crucial da proporcionali-
dade desse sistema é a resposta à seguinte pergunta: que acontece quando um partido
tem um quociente partidário e, contudo, nenhum de seus candidatos logra maioria em
distrito? Simplesmente preenche todos os lugares com candidatos da lista partidária.
Portanto, o fato de não eleger candidatos em distritos não faz com que o partido seja
prejudicado e perca direito a ter a sua quota proporcional totalmente preenchida.
32 Majoritário ou proporcional?
Em busca do equilíbrio na construção de um sistema eleitoral

Há um outro ponto importante a assinalar. Desde 1953, o eleitor


alemão dispõe de dois votos, devendo conferir o primeiro a um candi-
dato distrital e o segundo a uma lista partidária entre as que competem
no estado. Na primeira eleição, em 1949, o eleitor dispunha de um úni-
co voto, que contava para ambas as finalidades, a eleição do candidato
no distrito e a soma de votos para a legenda partidária, com base na
qual se calculavam os quocientes partidários.
Qual a diferença entre o eleitor contar com um só voto ou dispor
de dois votos, tendo a liberdade, nesta última hipótese, de votar em
candidato de um partido na votação para o representante do distrito
e na lista fechada e pré-ordenada de outro partido, como passou a ser
possível a partir de 1953?
Examinemos o assunto. Quando o eleitor dispunha de apenas
um voto, este era em boa parte determinado pelo desejo de ver eleito
seu candidato distrital ou, como segunda opção - caso em geral dos
pequenos partidos, com o candidato distrital de sua preferência com
poucas chances de obter a maioria dos votos locais -, pela intenção de
impedir a vitória de um candidato indesejável. Como procedia nesta
segunda hipótese?
Os dois partidos com maiores chances de vencer o pleito distri-
tal eram, desde o primeiro pleito, em 1949, os democrata-cristãos (na
verdade, uma coligação do CDU com o partido da Baviera, o CSU) e os
social-democratas (SPD). As chances dos candidatos de várias outras
agremiações, com pequeno número de eleitores, eram quase nulas.
Entre esses pequenos partidos, tinham mais probabilidade de ganhar,
em uns poucos distritos, os liberais (FDP). Mas, em geral, os eleitores
liberais e os de outros pequenos partidos tinham de votar estrategica-
mente, se não quisessem perder seu voto no distrito e, pior ainda, ver
eleito um candidato não desejado. Para não “perder o voto”, o eleitor
do FDP, por exemplo, conferiria seu voto a um outro candidato, que
não o seu preferido, mas com maior probabilidade de vencer do que
este, desde que, naturalmente, não fosse uma escolha repugnante. O
menos ruim, digamos.
No caso dos liberais, esse voto seria, em geral, dado ao candida-
to democrata-cristão, não ao social-democrata. Mas, como o eleitor só
dispunha de um voto, que valia também para o cálculo das proporções
de cadeiras partidárias, o FDP acabava sendo prejudicado, pois elegia
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 33

um candidato de outro partido que não o seu e não obtinha os votos


na lista proporcional. E o mesmo acontecia com os demais pequenos
partidos.
O voto duplo resolveu tal problema. Desde que foi introduzido,
o eleitor do FDP, por exemplo, pode continuar dando seu voto distrital
aos democrata-cristãos nos distritos em que seu partido tenha pou-
cas chances de ganhar a cadeira local, mas pode dar o segundo voto a
seu próprio partido. O mesmo raciocínio prevalece para eleitores que
preferem algum outro pequeno partido, como os Verdes. Votam num
candidato distrital, em geral social-democrata, mas o voto de lista é
para os Verdes.18 Do ponto de vista do critério de representação, o
sistema alemão satisfaz em grau elevado a exigência da proporcionali-
dade. Mas pode, também, ser julgado muito satisfatório à luz do que se
espera da aplicação do princípio majoritário, em nível do Parlamento
Federal. A evidência histórica é a de que o sistema partidário alemão
foi levado a uma razoável concentração, fato que permite ao Parlamen-
to eficácia e operosidade, pela clara definição de maiorias, capazes de
sustentar os gabinetes no exercício do governo.
Mas esse efeito, a concentração de votos em poucos partidos e a
capacidade de criar maiorias, não advém do uso do sistema majoritário
para a eleição de uma parcela dos representantes. O máximo de con-
centração que se obtém como fruto dessa característica do sistema elei-
toral é dentro do que poderíamos chamar “a bancada dos distritais”,
ou seja, os 328 deputados eleitos nos distritos. Quando olhamos uma
tabela de resultados eleitorais na Alemanha, vemos que praticamente
todas as cadeiras distritais são conquistadas seja pela aliança CDU-
CSU (os democrata-cristãos), seja pelo SPD (a social-democracia).19 Há,

18 Dados empíricos sobre a importância do segundo voto para o exercício do


“voto estratégico” por parte do eleitor são discutidos em (KLINGEMANN; WESSELS,
2001, p. 279-296). Esses votos são essenciais para que tanto os Liberais quanto os Ver-
des superem a barreira dos 5% dos votos ((Sperrklausel).
19 Manfred Unglaub (UNGLAUB, 1995) apresenta dados das eleições parla-
mentares de 1994. Nelas, a coligação CDU/CSU (democracia cristã} conquistou 221
cadeiras distritais e o SPD 103, perfazendo os dois partidos 324 cadeiras distritais, do
total de 328 em disputa.
34 Majoritário ou proporcional?
Em busca do equilíbrio na construção de um sistema eleitoral

pois, um bipartidarismo entre os deputados distritais.


Trata-se, porém, apenas da metade da representação. Como os
totais de cadeiras partidárias se calculam em função dos segundos vo-
tos obtidos, se o partido não conseguir eleger nenhum deputado dis-
trital, mesmo assim leva ao Bundestag sua quota de deputados, desde
que, bem entendido, supere a “cláusula de barreira”, da qual falare-
mos mais adiante.
Além do papel do mecanismo proporcional em assegurar repre-
sentação a todos os partidos que obtenham número suficiente de votos
para passar a barreira - de tal sorte que perder em distritos não exclui
o partido necessariamente do Parlamento, como se dá, por exemplo, na
Grã-Bretanha - os dois votos, à disposição do eleitor, permitem, como
vemos, a sobrevivência dos pequenos partidos,
Em verdade, segundo os estudiosos, a grande causa de concen-
tração do sistema partidário alemão foi a aplicação da “cláusula de
barreira” (Sperrklausel). Trata-se da exigência ao partido de um míni-
mo de 5% do total de votos nacionais ou, pelo menos, três candidatos
distritais, para ele poder funcionar como partido na Câmara.
A proporcionalidade do sistema alemão é das mais altas do mun-
do. Contudo, a “cláusula de barreira” (Sperrklausel) estabelece um li-
miar muito alto para a eleição ao Bundestag. Nos primeiros anos de
sua aplicação, houve a esterilização de centenas de milhares de votos
e, com isso, diminuição do grau de proporcionalidade do sistema, Não
desejoso de perder seus votos, votando num partido inviável, o eleito-
rado começou, de eleição para eleição, a escolher entre as agremiações
com perspectivas de superar a barreira do mínimo de votos e, buscan-
do a que estivesse mais próxima ideologicamente de sua preferência
inicial. O sistema partidário foi-se adensando em um número menor
de partidos. Com isso, como o eleitor passou a votar em partidos viá-
veis, o sistema concentrou-se. Mas passou, também, a apresentar alto
nível de proporcionalidade, porque deixaram de perder-se votos da-
dos antes a agremiações sem chance de superar a barreira. 20 Depois,

20 Sobre os efeitos da “cláusula de barreira” na concentração do sistema parti-


dário, veja-se a análise de Deiter Nohlen (NOHLEN, 1981).
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 35

no entanto, da unificação das Repúblicas Federal e Democrática, o quadro


partidário de novo se diversificou. 21
Giovanni Sartori contradita ter sido a cláusula de barreira a gran-
de responsável pela concentração do sistema partidário. Para ele, deci-
sivo mesmo foi ter a Corte Constitucional colocado fora da lei tanto os
neonazistas quanto os comunistas, partidos com razoável número de
eleitores e que tendiam a passar a barreira. “Com o afastamento dessas
duas organizações”, comenta, “ficou fácil para a Sperrklausel eliminar
os partidos menores” (SARTORI, 1996, p. 32).
Outro aspecto do sistema, que pode afetar-lhe a proporcionali-
dade, é a eleição, por um partido, de mais candidatos distritais do que
a sua quota proporcional lhe permite. A regra é a de que essas cadeiras
não se percam. Com isso, para que os demais partidos não sejam preju-
dicados, sendo-lhes subtraídas cadeiras que o partido com excesso de
vencedores distritais levou, o número de cadeiras do Bundestag tem
de ser acrescido do número de cadeiras conquistadas em excesso por
algum partido. 22
Entretanto, se essa possibilidade existe em teoria, na prática
havia, até recentemente, ocorrido em muito poucas eleições, sendo
reduzidas as cadeiras excedentes. Mas, depois da unificação, têm elas
sido em maior número. Nas eleições de 1994, por exemplo, houve um

21 Assim, da eleição de 1994, resultou um quadro de cinco partidos parlamen-


tares, conquanto tenha continuado avassaladora a maioria da democracia-cristã (294
das 672 cadeiras) e da social democracia (252 cadeiras).
22 As cadeiras excedentes têm confundido alguns analistas do sistema alemão.
Tem-se afirmado que, com essa característica, o número de distritais é, no mínimo, a
metade dos deputados no Parlamento, podendo ser maior que a metade. É um equivo-
co. O número de deputados distritais é fixo, pois os distritos são em número prefixado
de recortes geográficos estabelecido antes das eleições. Quando há deputados exce-
dentes. porque um partido venceu em mais distritos do que o seu quociente partidário
(o número de cadeiras a que tinha direito) lhe permitia, o que aumenta, no total do
Bundestag, são os deputados de lista. Tal fato se dá porque os demais partidos não
podem ter a sua proporção de cadeiras (ou seja, seu quociente partidário) diminuída.
Portanto, os deputados distritais, eleitos por critério majoritário, são, no máximo, a
metade dos eleitos. Quando há excedentes, portanto, o número de distritais se torna
menor do que a metade da representação, e o número de deputados de lista supera a
metade dessa representação.
36 Majoritário ou proporcional?
Em busca do equilíbrio na construção de um sistema eleitoral

total de 16 mandatos excedentes, cabendo 12 aos democrata-cristãos


e 4 à social-democracia. Em 1998, foram 13, todas da social-democra-
cia.
Essas formas de diminuir a proporcionalidade do sistema não
são resultado imprevisto nem, muito menos, fruto de manipulação
escusa. São deliberadamente colocadas no sistema, pois para os ale-
mães a proporcionalidade perfeita da representação não é o fim su-
premo, único, exclusivo. Querem, antes, um sistema e eleitoral de
efeitos menos unilaterais, ou seja, um sistema que não persiga ape-
nas, a todo custo, a proporcionalidade da representação, negligen-
ciando-lhe outros aspectos. Fica claro, para quem estuda o sistema
proporcional personalizado, que os alemães visaram um alvo 1egí-
timo, ou seja, um sistema capaz de induzir a formação de um Parla-
mento com numero menor de partidos e no qual, como conseqüência,
se facilitasse a formação de maiorias, indispensáveis ao respaldo dos
governos.
O sistema eleitoral alemão, criado para contemplar interesses
conflitantes quando da redemocratização do país, sem prender-se a
oposições teóricas irredutíveis entre “majoritarismo” e “proporciona-
lismo”, mas, ao contrario, elaborado com pragmatismo, tem inspira-
do numerosas reformas eleitorais. A idéia básica é a de abandonar, na
eleição de parlamentares, a obediência estrita, seja ao principio majo-
ritário, seja ao proporcional. Uma parcela dos representantes vem de
um estrato majoritário, com no máximo 50% da representação, com-
pletado por um estrato proporcional, igual àquele, ou maior, quando
há mandatos excedentes. 23 Em geral, a função deste segundo estrato
é compensatória. Destina-se a impedir que o sistema fique despropor-
cional. Contudo, poucos dos sistemas inspirados no misto alemão se-
guem-lhe a estrita fidelidade ao princípio proporcional, conforme as

23 Se não há mandatos excedentes, os dois estratos têm, cada um, a metade do


parlamento. Quando há mandatos excedentes, porém, o estrato proporcional (deputa-
dos vindos das listas partidárias) é aumentado. Veja-se a nota 22. Na versão deste texto
publicada originalmente em Reforma Política: Agora vai? o trecho saiu, por equívoco,
com essa afirmação invertida.
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 37

regras aqui expostas.

4. O sistema misto no Brasil


No Brasil, a idéia de sistemas mistos tem há muito seduzido os
líderes políticos e publicistas, porém nem sempre em linha com a in-
venção alemã do pós-guerra. Alguns dos proponentes de reformas,
como a seguir veremos, estiveram menos preocupados com incorporar
elementos do princípio majoritário ao sistema proporcional vigente,
do que com diminuir o âmbito geográfico da eleição dos deputados
(realizando-a em distritos geograficamente menores). Propuseram,
também, diminuir a magnitude do distrito (ou seja, o tamanho da re-
presentação a eleger) mediante a eleição, em cada um, de um número
menor de deputados.
Assim, em 1958, o então presidente do TSE, ministro Edgar Cos-
ta, defendeu que, mantendo-se o sistema proporcional, os estados fos-
sem divididos em tantos distritos quantos deputados devessem eleger-
se naquela unidade da Federação. Em cada distrito, haveria apenas um
candidato por partido. Os votos, contudo, conferir-se-iam ao partido,
não ao candidato. Computados os votos e calculado o número de ca-
deiras a que cada partido fizesse jus -- o quociente partidário -, cabe-
riam os lugares individuais aos distritos em que o partido auferiu mais
sufrágios, em ordem decrescente.
Não se tratava, pois, de mesclar os princípios proporcional e
majoritário, mas sim de recuperar a idéia do pequeno distrito geo-
gráfico na coleta do voto. Esta, a maneira tradicional no Brasil de en-
tender a expressão “voto distrital”, conforme anteriormente assinala-
mos. Segundo o ministro do TSE, “o deputado seria um representante
dos interesses do distrito ou região pelo qual fora eleito, onde maior
se revelava a influência do mesmo partido” (CAVALCANTI, 1975, p.
264).
Em 1960, o senador Milton Campos apresentava um projeto
similar ao de Edgar Costa. Os estados seriam também divididos em
distritos, em número igual ao da bancada a ser eleita. Cada partido
apresentaria um candidato por distrito (podendo o mesmo candidato,
contudo, ser apresentado em até três distritos). Os votos seriam tota-
lizados no estado e, conhecidos os quocientes partidários, os lugares
38 Majoritário ou proporcional?
Em busca do equilíbrio na construção de um sistema eleitoral

seriam preenchidos, em cada partido, pelos candidatos mais votados.


Em suma, o voto seria obtido em distritos menores, mas a atribuição de
cadeira seguiria a lógica proporcional, da mesma forma como propu-
sera Edgar Costa. Uma diferença básica entre os dois projetos é que, no
de Costa, votar-se-ia no partido, ao passo que, no de Milton Campos, o
voto seria personalizado.
Segundo Milton Campos, com apenas um candidato por partido
em cada distrito, seria mais fácil a escolha do eleitor. Ademais, argu-
menta, “o nome importa muito”, pois “os partidos não têm, por en-
quanto, prestígio, tradição e organização suficientes para que o eleitor
se contente com a legenda”. Em suma, o partido existiria, entre nós,
via candidato. Campos aduz, também, a vantagem de, mesmo sendo
o voto colhido em distritos, continuar o sistema sendo proporcional.
Além disso, alega, eliminar-se-ia a luta interna entre os partidários,
pois em cada distrito apenas um candidato do partido competiria, di-
ferentemente do que acontece com as listas abertas, usadas à época e
ainda hoje. O financiamento da campanha seria mais barato, pois se
desdobraria localmente e permitiria a “bons cidadãos”, sem recursos,
se candidatarem. À idéia de que a compra de votos seria facilitada na
área restrita do distrito, retruca dizendo que, aí, a vigilância será mais
viva, “maior o escândalo e mais terrível a desmoralização dos que par-
ticiparem da corrupção”. Acrescenta que “de qualquer forma, dificil-
mente a incidência da corrupção será maior do que atualmente, quan-
do ela se dilui por montes e vales, generalizando, da parte de muitos
candidatos, uma prática que tende a afastar os homens de bem dos
prélios eleitorais”. Os candidatos, com vínculos à localidade, teriam
maior legitimidade e, arrematando o argumento, observa que os par-
tidos seriam prestigiados, mas sem que se lhes permitisse o “despotis-
mo da escolha dos candidatos, como sucederia com o voto de legenda”
(CAVALCANTI, 1975, p. 265-269).
Em 1963, foi a vez de o deputado Oscar Dias apresentar um ino-
vador projeto de lei. Semelhantemente às duas propostas anteriores,
seriam os estados divididos em tantos distritos quanto fossem cadeiras
a preencher na unidade da Federação, menos o numero de cadeiras a
preencher com voto colhido em toda a circunscrição estadual. O nú-
mero dessas cadeiras variaria de acordo com o tamanho da bancada
estadual, sendo de 12 em São Paulo e de 2 nos estados de pequena
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 39

representação. O candidato poderia disputar tanto a cadeira distrital


quanto a “estadual” - que o projeto chama “geral” - e, se eleito em am-
bos os níveis, deveria optar por uma delas. O eleitor disporia de dois
votos, um para o candidato distrital, outro para o deputado geral. To-
talizados os votos em nível estadual e calculado o quociente partidário,
o preenchimento da cadeiras far-se-ia segundo a ordem decrescente de
votação nominal dos candidatos, tanto os votados no distrito quanto
os candidatos gerais. O candidato distrital deveria ter residência no
distrito por pelo menos dois anos na época do registro de sua candida-
tura. Também se exigia declaração de bens e se proibiam empréstimos,
financiamentos, auxílios e doações por candidatos de quantia ou bem
de qualquer natureza, de valor superior ao salário mínimo da região,
a qualquer entidade, ou de qualquer valor a eleitor inscrito, até oito
meses antes do pleito e seis meses depois dele.
O relator desse projeto, o deputado Getúlio Moura, informa ter
havido debates sobre se a divisão em distritos facilitaria ou não a atua-
ção do poder econômico. Observa que, se é verdade que “a diminuição
dos limites de influência do candidato pode facilitar a concentração do
poder do dinheiro, não é menos verdade que o contato permanente
entre candidato e eleitorado, o conhecimento direto, pela proximidade
que ele pode ter com os eleitores, dificu1ta a ação do poder do dinhei-
ro” (CAVALCANTI, 1975, p. 269-299).
Algum tempo depois, já na antevéspera do golpe de 1964, Franco
Montoro apresentou um projeto de lei diretamente inspirado no siste-
ma alemão. Nos três projetos acima examinados, colhia-se o voto no
distrito -- seja para o partido, seja para o candidato --, mas os lugares
eram atribuídos aos candidatos segundo as regras do sistema propor-
cional adotado no país. Já Montoro distingue a eleição no nível distri-
tal, a ser feita pelo método majoritário, da eleição proporcional da lista
partidária estadual, de tipo fechado, que serve de base aos cálculos
dos quocientes eleitoral e partidário e, por- tanto, determina o número
total de deputados que o partido elege.
Como nos casos anteriores, Montoro foi também cuidadoso em
argumentar que não se quebrava a norma proporcional. Diferentemen-
te, porém, do molde germânico, em seu projeto o quociente eleitoral
seria calculado por estado, não em nível nacional. Os eleitores teriam
dois votos, um na lista partidária fechada, estadual, e outro no candi-
40 Majoritário ou proporcional?
Em busca do equilíbrio na construção de um sistema eleitoral

dato distrital. 24
Montoro apresenta três fundamentos para seu projeto, quais
sejam: assegurar a autenticidade da representação popular, comba-
ter a influência do poder econômico nas eleições e fortalecer a vida
partidária. O voto em lista aberta, na circunscrição estadual como um
todo, parecia-lhe escancarar a porta à influência decisiva do poder eco-
nômico e governamental e impedir a formação de vínculos efetivos
entre eleitores e representantes. Sobretudo, parecia-lhe que o sistema
proposto estaria mais blindado aos aventureiros, que, com apoio de
grupos econômicos, buscam votos em regiões com as quais não têm
vínculos (CAVALCANTI, 1975, p. 299-312).
Em 1969, já no período autoritário, Gustavo Capanema, a pedido
de Rondon Pacheco, presidente da Arena, preparou, mas sem dar-lhe
a forma de um projeto de lei, uma proposta de sistema misto, também
seguindo sistemática alemã (CAVALCANTI, 1975, p. 312-318).
Em 1983, o ministro da Justiça, Abi Ackel, apresentou a proposta
do que se chamou voto distrital misto. Metade da representação viria
de distritos no qual cada partido apresentaria dois candidatos, um a
ser escolhido pelo método majoritário, o outro pelo método proporcio-
nal. O eleitor teria dois votos, que deveriam ser para o mesmo partido.
Os candidatos distritais, com a maioria relativa de votos, estariam elei-
tos. Para os candidatos pelo sistema proporcional, calcular-se-iam os
quocientes eleitoral e partidário. Os segundos candidatos distritais - a
serem eleitos proporcionalmente - seriam ordenados de acordo com a
porcentagem dos votos conseguidos nos distritos. Os com as maiores
porcentagens estariam eleitos, até se atingir a metade da representação.
A Comissão Especial de Estudos Constitucionais, criada pelo pre-
sidente José Sarney em 1985, e presidida por Afonso Arinos, também
se decidiu, em seu anteprojeto constitucional, por um sistema misto,
inspirado no alemão, mas com o eleitor dispondo de apenas um voto.
A opção pelo voto singular visava a impedir a fragmentação partidá-

24 O problema dos lugares extras, que o sistema alemão permite, não foi igno-
rado. O partido não perderia essas cadeiras. O projeto, contudo, não enfrenta o pro-
blema de como conciliar essa estipulação com o número de deputados da Câmara dos
Deputados, que é prefixado.
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 41

ria, tendência já visível naquele momento.


Já no âmbito da própria Assembléia Nacional Constituinte, hou-
ve oscilação. A subcomissão, dentro da comissão temática que cuidou
do assunto “sistema eleitoral”, definiu-se pelo sistema proporcional,
decisão que foi chancelada pela própria comissão temática. A Comissão
de Sistematização, contudo, optou por um sistema misto, majoritário e
proporcional, que seria matéria de lei. O grupo de constituintes que se
denominou “Centrão” apresentou um substitutivo, segundo o qual o
sistema eleitoral não seria constitucionalizado, senão objeto de lei com-
plementar. No entanto, em plenário, prevaleceu a opção pelo sistema
proporcional, conquanto alguns do que votaram favoravelmente a ela
estavam convencidos de não que não impediria a ulterior adoção de
um sistema inspirado no misto alemão, por ser este, em verdade, um
sistema proporcional.
O senador Fernando Henrique Cardoso, um dos que defendiam
esse ponto de vista, chegou a apresentar, em 1991, um projeto de lei
ordinária, destinado a instituir um sistema eleitoral de tipo alemão
entre nós. Todavia, da mesma forma que propostas anteriores, já co-
mentadas, o cálculo dos quocientes eleitoral e partidário seria feito nos
estados, em vez de nacionalmente. O projeto tampouco lidou com a
possibilidade, inerente ao sistema alemão, de que um partido logre
mais cadeiras do que seu quociente eleitoral determina. Esse proble-
ma, aliás, é insolúvel sem mudança constitucional, porque implicaria
aumentar o número de parlamentares após as eleições, em função de
seu resultado, o que fere a Lei Maior. O projeto também dispõe que o
eleitor tenha apenas um voto, podendo usá-lo, contudo, para votar seja
no candidato distrital, seja na lista partidária, seja, mesmo, num nome
dessa lista, conforme a atual sistemática. Esse voto único contaria tanto
para o partido quanto para o candidato distrital.
Durante o período de revisão constitucional, em 1993, ressurgiu
a tentativa de implantar um sistema misto, igualmente inspirado no
alemão. Haveria, na proposta do relator - o deputado Nelson Jobim -
dois estratos, o de representantes eleitos em distritos uninominais e o
de representantes eleitos em listas fechadas. Da mesma forma que na
matriz germânica, as cadeiras seriam atribuídas proporcionalmente
aos partidos, e as cadeiras excedentes levariam ao aumento do tama-
nho da Câmara. Os pormenores do sistema eleitoral seriam objeto
42 Majoritário ou proporcional?
Em busca do equilíbrio na construção de um sistema eleitoral

de lei. Na justificação da proposta revisional, observa-se que, na lista


aberta brasileira, os partidos buscam candidatos com potencial de
voto, em geral representantes de corporações, candidatos com pres-
tígio regional, líderes religiosos, radialistas, entre outros, cuja eleição
gera uma representação de lealdade primária com os grupos que os
elegeram, apenas secundariamente se dedicando às questões partidá-
rias ou nacionais. Chama-se também a atenção para a. luta fratricida
entre os candidatos. Também se critica o fato de os distritos serem
os estados, o que gera campanhas custosas e facilita os candidatos
“pára-quedistas” (aqueles sem vínculos com o eleitorado, que, em
período eleitoral, fazem campanhas caras para conquistar esse eleito-
rado desconhecido).
Tendo fracassado o esforço de revisão constitucional, desde en-
tão tem havido numerosas propostas de introdução de sistemas elei-
torais mistos. O qualificativo “misto” na verdade não é unívoco no
seu uso entre nós. Ora significa a combinação, no sistema e eleitoral,
de um estrato com representantes eleitos pela decisão majoritária, em
distritos menores do que o estado, com outro de representantes elei-
tos proporcionalmente, em lista fechada, mais ou menos conforme o
molde alemão; ora se usa para a combinação do voto em lista fechada
com o voto em lista aberta, mas sem divisão dos estados em circuns-
crições menores; ora, também, se recorre ao termo para caracterizar o
emprego do sistema proporcional em distritos de pequeno território e
de pequena magnitude de representação, em vez de no estado como
um todo. As propostas desses últimos sistemas são em geral bastante
similares a alguns dos sistemas propostos nos anos 50 e 60 do século
XX, sobre os quais acima discorremos. 25

25 Algumas dessas propostas são as PECs n° 10/95 (do deputado Adhemar de


Barros Filho), 28/95 (da deputada Rita Camata), n° 108/95 (do deputado Expedito Jr.),
n° 168 (do deputado Mendonça Filho), nº 289/95 (do deputado Osvaldo Reis) e no
47/99 (do senador Sérgio Machado), além dos PL n° 4/95 (do deputado Adilson Mo�a)
e n° 3.428/2000 (do senador Roberto Requião). Franco Montoro também apresentou
um projeto de lei voltando à idéia do sistema misto, já apresentado em 1964. Contudo,
nessa versão, afastou-se do sistema alemão, pois a eleição em cada um dos estratos se
faria sem a conexão do cálculo dos quocientes eleitoral e partidário. Estes se calculam
apenas para o estrato em que o eleitor vota nas listas partidárias (PL nº 1.306/95).
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 43

5. Considerações finais

As crises políticas dos últimos anos trouxeram novamente à dis-


cussão, tanto no meio político, quanto no jornalístico e também na opi-
nião pública mais desperta, o tema reforma política. Entre as matérias
incluídas no tema estão mudanças no sistema eleitoral. Na verdade,
há uma insatisfação de muitos setores políticos com o sistema vigen-
te no país, que é proporcional, mas com lista aberta. Seria fácil, mas
não corresponde aos fatos, dizer que essa insatisfação provém de um
grupo bem definido no espectro político, por exemplo, os conservado-
res, temerosos ante o progresso da esquerda que o atual sistema tem
permitido desde a República de 46. Se, de fato, boa parte dos projetos
mais antigos que anteriormente resenhamos foi concebida por líderes
de centro ou centro-direita, sua crítica ao sistema vigente esteve sem-
pre assestada não contra o político de esquerda ou os trabalhistas que
conquistavam cadeiras nos centros industriais, senão contra os can-
didatos que representavam o poder econômico e tomavam de assalto
o eleitorado tradicional, antes cativo da UDN ou do PSD. A clivagem
parecia, pois, ser menos em termos de esquerda e direita e mais em
termos de elites políticas tradicionais contra “aventureiros” (como a
eles se referiam) que compravam os votos e atuavam como predado-
res, sem responsabilidade para com o reduto.
Por outra parte, desde a última constituinte, numerosas propos-
tas de modificação do sistema eleitoral têm sido patrocinadas por par-
lamentares de esquerda, sobretudo do PT, centrando-se suas criticas ao
sistema vigente na vulnerabilidade deste ao financiamento privado e
na sua inadequação à formação de identidades partidárias sólidas.
A lista aberta brasileira é aplicada, a nosso ver, numa escala pou-
co apropriada para. que o voto pessoal possa exibir as virtudes que se
lhe atribuem. Para que estas se revelem, traduzindo-se no surgimento,
via eleições parlamentares, de uma classe política com fortes víncu-
los com o eleitorado, suscetível de controle por este e por este punível
ou recompensável pelo voto em uma eleição futura -- em suma, para
haver representação com accountability - o distrito deve ser geografi-
camente reduzido. Ademais, por serem os votos transferíveis dentro
do partido - uma vez superado o quociente eleitoral, os votos de um
candidato que excedem esse quociente beneficiam outros candidatos
44 Majoritário ou proporcional?
Em busca do equilíbrio na construção de um sistema eleitoral

do partido, sem o conhecimento do eleitor – e dentro da coligação, em


que o partido maior ajuda a eleger candidato do partido menor a ele
coligado, não raro em detrimento de seus pr6prios candidatos - perde
força o argumento de que o voto pessoal dê ao eleitor uma grande li-
berdade de escolha. Esta é em boa parte ilusória. 26
É bem verdade que os dados, antes apresentados, da pesquisa
de Nelson Rojas de Carvalho, mostram que, pelo menos para uma
parcela dos representantes, as características específicas e louvadas do
voto pessoal podem estar presentes. Trata-se daqueles deputados cujo
eleitorado se concentra espacialmente e que tendem, nesses redutos,
a ser majoritários. Esses representantes têm um comportamento mais
responsável para com esse eleitorado localizado. O dado permite pen-
sar que a instituição de um sistema de formato alemão não seria trau-
mática. Ou seja, racionalizaria uma tendência espontânea do sistema
que praticamos, formalizando o distrito, que já existe informalmente, e
mantendo a proporcionalidade, outro valorizado atributo do sistema.
Além disso, o estrato de representantes eleito por lista equilibraria a
tendência “paroquial” que a representação distrital pode significar.

26 Jairo Nicolau mostra que, em quatro eleições, de 1986 a 1998, apenas 35,5%
dos eleitores tiveram seus candidatos eleitos, 22.2% votaram em candidatos derrota-
dos, 33.3% anularam o voto ou votaram em branco e 8,8% votaram na legenda. Por-
tanto, observa. “a idéia de acompanhar o desempenho dos deputados eleitos só faria
sentido para pouco mais de um terço dos eleitores.” (NICOLAU, 2002, p. 226)
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 45

Sugestões de bibliografia

1. A bibliografia sobre os sistemas eleitorais é extensa, havendo já


excelentes textos sobre o assunto de autoria de cientistas políticos bra-
sileiros. Recomendaríamos, entre estes: (LIMA JR., 1991); (NICOLAU,
2004); (TAVARES, 1994).
2. Para tentativas mais antigas de modificar o sistema eleito-
ral brasileiro, dando-lhe caráter “distrital”, veja-se: (CAVALCANTI,
1975}.
3. Para explicação do sistema alemão, recomendamos: (NOH-
LEN, 1981); (UNGLAUB, 1995).
4. Para uma visão dos sistemas mistos nas democracias contem-
porâneas, veja-se: (SHUGART; WAlTENBERG, 2001).
5. Para as relações entre sistemas eleitorais e corrupção, veja-se:
(KUNICOVA, ROSE-ACKERMAN, 2003).

Referências

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Editora FGV, 2003.
CARSTAIRS, Andrew Mclaren. A short history of electoral systems in
Wesern Europe. Londres: George Allen & Unwin, 1980.
CARVALHO, Nelson Rojas. E no início eram as bases: geografia po-
lítica do voto e comportamento legislativo no Brasil. Rio de Janeiro:
Revan, 2003.
CAVALCANTI, Themistocles Brandão. O voto distrital no Brasil. Rio
de Janeiro: Editora FGV, 1975.
DIAS. José Luciano de Ma�os. Legislação eleitoral e padrões de com-
petição político-partidária. In: LIMA JR., Olavo Brasil de (org.). Sis-
tema eleitoral brasileiro: teoria e prática, Rio de Janeiro: luperj/Rio
Fundo Editora, 1991.
GORGEN, Hermann M. Sistemas eleitorais. In: PINHEIRO FILHO, Is-
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Câmara dos Deputados, 1992.
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grass roots. In: SOBERG-SHUGART, Ma�hew, WATTENBERG, Martin
46 Majoritário ou proporcional?
Em busca do equilíbrio na construção de um sistema eleitoral

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Oxford: Oxford University Press, 2001.
KUNICOVA, Jana; ACKERMAN, Susan Rose. Electoral roles and
constitutional structures as constraints on corruption. Dezembro
2003. (Texto não publicado.).
LIMA JR., O1avo Brasil de (org.). Sistema eleitoral brasileiro: teoria e
prática. Rio de janeiro: Iuperj/Rio Fundo Editora, 1991.
MJLL, John Stuart. Considerations on representative government. In-
dianápolis: The Library of Liberal Arts, 1958 (a primeira edição é de
1860).
NICOLAU, Jairo. Sistemas eleitorais. Rio de Janeiro: FGV, 2004. (5ª
edição, revista e atualizada).
__________. Como controlar o representante? Considerações sobre as
eleições para a Câmara dos Deputados no Brasil. Dados, vol. 45, n° 2,
2002.
NOHLEN, D. Sistemas electorales del mundo. Madrid: Centro de Es-
túdios Constitucionales, 1981.
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SARTORI. Giovanni. Engenharia constitucional. Brasília: Editora da
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porâneas: teoria, instituições, estratégia. Rio de Janeiro: Relume-Du-
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UNGLAUB, Manfred. Eleições e sistema político: experiências com o
voto distrital misto na Alemanha. In: JUN G, W. (org.). Partidos e sis-
temas eleitoras em tempos de reforma. São Paulo: Fundação Konrad
Adenauer, 1995.
O voto majoritário
distrital no Brasil

Walter Costa Porto


Ministro do Tribunal Superior Eleitoral, 1996-2001.
Professor de Direito Eleitoral da Universidade de Brasília.
Editor da Revista Estudos Eleitorais. Autor de O Voto no Brasil;
O Dicionário do Voto; A Mentirosa Urna.
48 O voto majoritário distrital no Brasil

I. O início, no Império

O voto distrital, como chamamos no Brasil,1 foi, inicialmente, in-


troduzido no Brasil, no Império. Graças ao empenho à determinação
de Honório Hermeto Carneiro Leão, o Marquês do Paraná, chefe do
Gabinete de 6 de setembro de 1853, é que se deveu a aprovação da cha-
mada Lei dos Círculos, o Decreto n° 842, de 19 de setembro de 1855.
Duas foram as “idéias dominantes” do texto: a divisão das pro-
víncias do Império em tantos distritos eleitorais quantos fossem seus
deputados à Assembléia Geral e a proibição de que fossem votados
para membros das Assembléias Provinciais ou deputados ou senado-
res, nos colégios eleitorais dos distritos em que exercessem autorida-
de, ou jurisdição, os presidentes das províncias e seus secretários, os
comandantes de armas e generais-em-chefe, os inspetores da fazenda
geral e provincial, os chefes de polícia, os delegados e subdelegados, os
juizes de direito e municípios.
Para Joaquim Nabuco (1997, p. 13), era uma “idéia fixa” de Para-
ná: ele estaria disposto a aceitar a eleição direta, uma vez que tivesse o

1 Na doutrina estrangeira só se chama “voto majoritário para as assembléias”.


O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 49

círculo; queria a representação do país real: “que a eleição fosse uma


verdade, a expressão das maiorias locais, fosse quem fosse o deputa-
do”.
A menção, por Nabuco, à “expressão das maiorias locais” resol-
ve a possível contradição entre o intento de Paraná, de defender a re-
presentação das minorias, e sua busca, para implementá-la, do modelo
distrital.
A experiência nos mostra como o voto majoritário - com a bruta-
lidade que Duverger (1996, p. 378) apontaria 2 - desatende as parcelas
minoritárias de opinião. Mas o que Paraná (1978) visava, com a lei de
1855, eram as minorias localizadas. Na sessão do Senado, de 20 de ju-
lho de 1855, ele assim argumentava:

Não tenho o intuito de acabar com os interesses grupa-


dos; o que pretendo é que se não grupem tanto os indi-
víduos que embarguem a existência das minorias; que-
ro que se forme a maioria, que se grupe; mas que se não
grupe de tal maneira que ocupe todo o espaço e expila a
minoria: isto é, quero que continue a grupar-se a maio-
ria, mas que deixe espaço para que a minoria possa ser
representada, possa falar perante o país. (LEÃO, 1978).

Essa vantagem, que o projeto procurava - a de dar lugar a que a


minoria tivesse lugar no Parlamento - não a enxergava o Senador Eu-
sébio de Queiroz (1978). Para ele, a vantagem se acharia reduzida “a
proporções verdadeiramente homeopáticas”.
Nem a enxergava, igualmente, o Senador Souza Ramos (1978).
Seria preciso, para ele, “que a opinião adversa estivesse grupada em
certos pontos para dali virem seus representantes”.
Em verdade, os círculos não se haveriam de compor somente de
duas e de três paróquias, não se formariam tantos círculos quantos fos-
sem os colégios eleitorais existentes, esparsas como naturalmente se

2 “A brutalidade do escrutínio majoritário de um só turno”, disse ele.


50 O voto majoritário distrital no Brasil

achavam, na maior parte das províncias, as paróquias e os colégios em


que predominasse a opinião da maioria. Então, seus eleitores que se
reunissem nos círculos poderiam ser vencidos do mesmo modo que são
vencidos, agora, na eleição por província. E concluía o Senador Souza
Ramos (1978) “E vencidos dessa maneira, então, nem suplentes darão
à Câmara dos Deputados”.
E aludia a um ponto que atraía muitas críticas ao projeto: no sis-
tema proposto, a maioria que elegesse o Deputado, elegeria, igualmen-
te, seu suplente. Anteriormente, determinava a lei eleitoral que seriam
declarados eleitos deputados os que tivessem a maioria dos votos até
o número dos que a província deveria eleger; os que se lhe seguissem
em votos, ficavam designados suplentes. Daí a contradição, vista na
reforma, pelo Senador Eusébio de Queiroz:

Se por um lado abris as portas do Parlamento aos repre-


sentantes da minoria em um outro círculo, por outro,
trancais aos suplentes, que atualmente, oferecem essa
representação da minoria. (QUEIROZ, 1978).

Terminava, com a Lei dos Círculos, no dizer do Senador Araújo


Lima, “a válvula salvadora dos suplentes” ou, como tantas vezes se
disse, no debate parlamentar, em relatórios de comissões, “o respira-
douro dos suplentes”. (PINTO, 1983, p. 222).
Um propósito de Paraná, na procura de uma eleição “verdadei-
ra”, era a de evitar o que chamava “deputados de enxurrada”. Ele acre-
ditava que o estreitamento da base eleitoral impelia o eleitor a uma
escolha mais cuidadosa. E acentuava: votando-se “em chusma” havia
o risco de escapar peixe nas malhas, “quando se votar sobre um só,
hei de escolher com cautela, hei de votar com escrúpulo, procurando
aquele a quem tenho de dar o meu voto reúna as qualidades precisas
para ser votado”. (PORTO, 1985, p. 160).
Jogou toda a força de seu governo na aprovação da medida. E
na sessão de 28 de agosto de 1855, chegara a dizer ao presidente da
comissão que analisava o projeto: “Se a comissão não quisesse dar seu
parecer em tempo de se poder passar nessa sessão, em viria à Câmara
e proporia a urgência”. (NABUCO, 1997).
Morto em 1856, não viu Paraná o resultado da primeira aplicação
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 51

de sua lei, na eleição para a legislatura de 1857-1860. Segundo uma in-


dicação de 1858, dos Deputados Cruz Machado e Dantas, não obstante
“a disposição pouco favorável com a que lei fora executada”, ela levara
ao Parlamento “representantes de diversas opiniões políticas”.
Mas logo se cuidou de sua revisão, com o alargamento dos círcu-
los para a eleição de três deputados. Constatara-se que a lei “excedera
a seu fim”, ampliando as influências regionais, fazendo preponderar,
sobre os dirigentes de partidos e homens notáveis das lutas partidá-
rias, parentes e protegidos de vultos interioranos.
O empenho de Paraná, tão exitoso, pela ampliação das inelegi-
bilidades, e seu esforço, esse não tão exitoso, pela representação das
minorias, o igualam a Alencar, na luta pela “a alforria do voto, cativo
do governo”.

II. Os círculos de três

Em agosto de 1859, era apresentado, na Câmara, projeto de lei,


de autoria de Sérgio de Macedo, visando o alargamento dos círculos
para que se elegessem, em cada um, três deputados.
Obviamente, a proposta pretendia atender às críticas que se ha-
viam levantado contra a iniciativa de Honório Hermeto. Não porque,
de início, como se viu, no primeiro teste da lei, se repetisse uma “câma-
ra unânime” 3 : mas para restringir a força dos líderes locais, sem fazer
voltar, inteiramente, o poder das cúpulas partidárias.

Aprovado em 18 de agosto de 1860, o Decreto


nº. 1.082 dispunha, por seu art. 2°:

As Províncias do Império serão divididas em distritos eleitorais


de três Deputados cada um. Quando, porém derem só dois Deputa-
dos, ou o número destes não for múltiplo de três, haverá um ou dois

3 Assim se denominavam, no Império, as Câmaras com o predomínio, esmaga-


dor, de uma só parcialidade política, conservadora ou liberal.
52 O voto majoritário distrital no Brasil

distritos de dois Deputados.


A redação já antevia a dificuldade, ante a diversidade da partici-
pação das províncias na Assembléia Geral: é que, das vinte províncias
existentes, seis davam somente dois deputados e sete outras indica-
vam representantes em número que não era múltiplo de três. Nesses
casos, segundo o art. 1°, ª 2°, do Decreto haveria “um ou dois distritos
de dois deputados”.
Distrito único, de dois deputados, passaram a ter, então, Amazo-
nas, Rio Grande do Norte, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso, Paraná
e Santa Catarina; e único, de três deputados, Pará e Piauí.
Além disso, possuíam distritos de dois o Ceará (seu 3º distrito),
Paraíba (seu 2º), Pernambuco (4° e 5°), Alagoas (2°), Sergipe (1° e 2°),
Bahia (1°) e Minas (7°).
Desse modo, dos quarenta e seis círculos em que se dividia a cena
eleitoral, em 1860, dezesseis eram de dois deputados e dois outros, de
três deputados.
O alargamento dos círculos trouxe, obviamente, maior acúmulo
de nomes por distritos, para a eleição de deputados às Assembléias
Provinciais. Se antes, com o Decreto n° 842, de 1855, a escolha ia de um
mínimo de 2 e 3 deputados, como em Minas, Bahia e Pernambuco, a
um máximo de 11, como em Goiás, Rio Grande do Norte e Mato Gros-
so, agora, com a nova divisão, ia de um mínimo de 7 e 8 deputados,
como em Minas e Bahia, a um máximo de 30, como no Pará.
A reforma de 1860, além de alargar os distritos, extinguiu a elei-
ção dos suplentes, juntamente com a de deputados. A primeira lei de
círculos mandara fazer eleição especial para suplentes, pela mesma
maioria que fazia os deputados; a segunda, mandou fazer nova esco-
lha, em caso de vaga.
Com isso, não foram atendidas as queixas daqueles que prega-
vam para a representação das minorias, “o respiradouro dos suplen-
tes”. Se Honório falecera em 1856, meses antes de assistir ao êxito do
primeiro teste de sua reforma, Ferraz, promotor da “triangulação elei-
toral”, como chamaria Tito Franco de Almeida (1875, p. 168), deixava
a chefia do gabinete em fevereiro de 1861, sem presidir, igualmente, a
primeira eleição que iria prová-la.
E o primeiro pleito sob o Decreto n°. 1.082 trouxe à Câmara, se-
gundo José Maria dos Santos (1930, p. 45), “uma síntese luminosa da
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 53

alma brasileira naquele instante”. Mas, a seguir, os círculos não teriam


correspondido à intenção do legislador, de corrigir as “câmaras unâ-
nimes”. Tendo se procedido, desde 1856 até 1871, a quatro eleições ge-
rais, três as produziram. E trouxeram - essa a queixa geral - o enfraque-
cimento dos partidos.
Com a chamada Lei do Terço, o Decreto n° 2.675, de 20 de outubro
de 1875, interrompeu-se, no Império, a experiência do voto majoritá-
rio-distrital: o eleitor passaria a votar, para Deputados à Assembléia
Geral ou para membros das Assembléias Legislativas Provinciais, em
tantos nomes quantos correspondessem aos dois terços do número to-
tal marcado para a Província. Se o número marcado para Deputados
fosse superior a três, o eleitor deveria adicionar, aos dois terços, um ou
dois nomes, conforme fosse o excedente.
Daí a principal crítica ao projeto: o voto incompleto, de dois ter-
ços, não tinha aplicação a sete Província, era arbitrário em outras sete,
sendo exercido, com exatidão, em apenas seis.

III. A Lei Saraiva

Com a Lei Saraiva, de n°. 3.029, de 9 de janeiro de 1881, voltaram


os círculos, chamados, agora, e para sempre, na imprensa e no debate
parlamentar, distritos. Distritos de um, para os deputados à Assem-
bléia Geral; distritos plurinominais, para os membros das Assembléias
Legislativas Provinciais, em um mínimo de dois nomes, como nos dis-
tritos das províncias de Minas Gerais, a um máximo de onze, como no
Rio Grande do Norte, Espírito Santo, Paraná, Santa Catarina, Goiás e
Mato Grosso.
Numa redação imperfeita, o art. 17, § 2º, da nova lei, dispunha
que não se consideraria eleito o candidato à Assembléia Geral que
não reunisse “a maioria dos votos dos eleitores que concorrem à elei-
ção”.
Maioria absoluta, obviamente, é o que se desejava. Não sen-
do alcançada, proceder-se-ia a nova eleição, depois da eleição geral.
Voltava-se, assim, ao sistema de dois turnos, já utilizado pela Lei de
1855.
Se a primeira eleição, para a legislatura 1881-1884, em que se tes-
tou a Lei Saraiva, sob a rigorosa vigilância de seu autor, foi um com-
54 O voto majoritário distrital no Brasil

pleto êxito, levando à Câmara 47 oposicionistas, conservadores, e se a


segunda, em 1884, sob o Gabinete Dantas, ainda manteve o prestígio
da lei, as que se seguiram foram, mais uma vez, maculadas pelos ve-
lhos vícios, pela antiga compressão oficial.

IV. O voto distrital na 1ª república

O modelo distrital empregado no final do Império foi afastado


pela República que se iniciava, para a eleição da primeira Assembléia
Constituinte. Pelo Decreto 78 B, de 21 de dezembro de 1889, se dispu-
nha:

No dia 15 de setembro de 1890 se celebrará em toda


a República a eleição geral para a Assembléia Constituinte,
a qual compor-se-á de uma só Câmara, cujos membros serão
eleitos por escrutínio de lista em cada um dos Estados.

E no “regulamento para a eleição do primeiro Congresso Nacio-


nal”, com o Decreto n° 511, de 23 de junho de 1890, se determinou:

Art. 30 ......
As cédulas para deputados conterão tantos nomes
quantos forem os deputados que o Distrito Federal ou o Es-
tado tenha de enviar ao Congresso e levarão o rótulo - para
deputados.
As cédulas para senadores conterão três nomes e leva-
rão o rótulo - para senadores.

Do sistema majoritário-distrital anterior, voltava-se - mas só


para essa eleição, como se verá - ao sistema simplesmente majori-
tário, de lista. Logo se retomaria o voto por distritos, de três nomes,
como na Lei de 1860. Dispôs a Lei n° 35, de 26 de janeiro de 1892, por
seu art. 36:

Para a eleição de deputados, os Estados da União serão divi-


didos em distritos eleitorais de três deputados, equiparando-
se aos Estados, para tal fim, a Capital Federal. Nesta divisão
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 55

se atenderá à população dos Estados e do Distrito Federal,


de modo que cada distrito tenha, quanto possível, população
igual, respeitando-se a contiguidade do território e integrida-
de do município.

Os Estados que dessem cinco deputados, ou menos, constitui-


riam um só distrito; quando o número de deputados não fosse perfei-
tamente divisível por três, juntar-se-ia, para a formação dos distritos, a
fração ao distrito da capital.
E retornava, também, o voto incompleto: cada eleitor votaria em
dois terços do número de deputados. Das 21 unidades federadas, so-
mente duas - Goiás e Alagoas - alcançavam um número de Depu-
tados Federais divisível por três, fazendo com que em 19 distritos, o
eleitor não pudesse votar, efetivamente, em dois terços do total: nos de
quatro ou cinco deputados, votaria em três nomes.
A Lei Rosa e Silva, a de n° 1.269, viria em 15 de novembro de 1904:
os distritos passaram a ser de cinco nomes; os Estados que dessem sete
Deputados, ou menos, constituiriam um só distrito eleitoral. Quando
o número de Deputados não fosse divisível por cinco - e somente era
divisível em dois Estados, Ceará e Paraíba e no Distrito Federal - jun-
tar-se-ia, para a formação dos distritos, a fração, quando de um, ao
distrito da capital do Estado e, quando de dois, ao primeiro e segundo
distritos, cada um dos quais elegendo seis deputados.
Cada eleitor poderia votar em três nomes, nos Estados cuja re-
presentação constasse apenas de quatro deputados; em quatro nomes,
nos distritos de cinco; em cinco, nos de seis; e em seis, nos distritos de
sete deputados.
E o voto poderia ser cumulativo. Por essa acumulação, e pelo voto
incompleto, procurava Rosa e Silva, no substitutivo que apresentou, afi-
nal aprovado, assegurar a representação da minoria.
Rosa e Silva acreditava que ao legislador não cumpria fixar a
proporção em que as minorias deveriam representar-se mas, unica-
mente, assegurar a verdade do processo eleitoral e adotar um sistema
que lhes facilitasse eleger seus representantes, dependendo o maior
ou menor número deles dos esforços e do valor eleitoral das respecti-
vas agremiações. E para a efetividade e proporcionalidade da repre-
sentação das minorias, conviria “o alargamento das circunscrições
56 O voto majoritário distrital no Brasil

eleitorais”.
Para ele, a divisão dos Estados em distritos de três, como se dis-
punha na Lei n° 35, por um lado, não permitiria a proporcionalidade
da representação das minorias, desde que houvesse “uma só base para
todas elas”; e, por outro lado, facilitaria a continuação dos “rodízios”4
, pois cada eleitor somente poderia acumular dois votos (PINHEIRO,
1876, p. 200). Podendo o eleitor votar em quatro nomes, onde as mino-
rias fossem fracas, a oposição, ainda assim, poderia eleger um repre-
sentante, acumulando todos os seus quatro votos em um candidato; e
onde fossem fortes, poderiam eleger dois candidatos.
Em verdade, a experiência de 1875, do terço, do Decreto n° 2.675,
havia mostrado que a repartição arbitrária não importava em qual-
quer garantia de representação aos grupos menores. Recursos como o
do “rodízio” deixavam, à maioria mesma, a unanimidade dos postos.
Mas, na solução Rosa e Silva, a própria complexidade do processo in-
viabilizava a consecução de seu objetivo. E, de resto, toda a maquinaria
fraudulenta - a envolver o alistamento e a qualificação dos eleitores, a
votação, a apuração e verificação e reconhecimento dos diplomas - não
haveria de ser corrigida por meros arranjos de técnica eleitoral. Somen-
te o regime proporcional, que viria com a 2ª República, é que atenderia

4 Em um discurso no Senado, em 1875, Figueira de Melo explicava o que se


chamava, no Império, de “rodízio” apresentando duas hipóteses. A primeira, de um
distrito com 180 eleitores, 120 da maioria e 60 da minoria: “Esses eleitores da maioria
dividem-se em três grupos: 40 votam nos candidatos A e B, 40 votam nos candidatos
B e C; os outros 40 nos candidatos A e C. Portanto, os candidatos A, B e C vêm a ter 80
votos cada um e suplantam, assim, os 60 da minoria, que não poderá eleger seu can-
didato.” A segunda hipótese parecia, de início, ainda mais favorável à representação
da minoria: “A maioria tem 765 eleitores e a minoria, 500, número até muito superior
ao terço; ainda assim a minoria não será representada, desde que houver uma regular
e simples divisão de votos. Basta que das 765 cédulas correspondentes ao número de
eleitores da maioria se tirem 510, e em todas estas se escreva o número do candidato
A, e terá este 510 votos¸ número superior ao da minoria; que dentre esses 510 eleitores,
que votarão no candidato A, 255 votem no candidato B e 255 no candidato C. Ora, 255
eleitores, que ainda não foram contados, votam nos dois candidatos B e C, que, tendo
já, cada um, 255 votos da turma dos 510 eleitores, ficarão também com a maioria de 10
votos sobre os 500 pertencentes à minoria”.
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 57

à necessidade de dotar as Câmaras de representantes das oposições.

V. O modelo distrital no Brasil: um balanço


Tivemos, no Brasil, o sistema majoritário-distrital, para as elei-
ções para o Legislativo, por sessenta e sete anos: de 1855 a 1860, com
distritos de um nome; de 1860 a 1875, com distritos de três; de 1881 a
1890, com distritos de um; de 1892 a 1904, com distritos de três; e, final-
mente, de 1904 a 1930, com distritos de cinco.
Ora, se temos o modelo proporcional, entre nós, desde 1932, com
o intervalo de oito anos, do Estado Novo, sem eleições, temos, então,
que vigora com o mesmo tempo que o distrital.
E uma vez que se volta a anunciar, pela imprensa, o sentimento
geral do Congresso por uma reforma política que contempla, em um
de seus itens principais, a introdução de um sistema distrital misto, a
modos da Alemanha, cabe rememorar as lições da história.
Em primeiro lugar, o que nos aponta o passado é, no esquema
distrital, o tão deplorável desfavor das minorias. Isso era lembrado,
há quase um século e meio, pelo grande liberal inglês, Walter Bagehot
(1867, p. 134), ao analisar o sistema distrital de seu país. Dizia ele:

Em muitos distritos hoje existentes, a cassação de vo-


tos da minoria é sem esperança e crônica. Eu mesmo
tenho votado em um condado agrícola por vinte anos e
sou um liberal; mas dois tories têm sido sempre eleitos
e durante toda a minha vida serão eleitos. Como as
coisas estão, meu voto é inútil.

E, contemporâneo de Bagehot, outro grande liberal, Stuart Mill


(1981, p. 76), iria ressaltar “as vantagens transcendentes” da represen-
tação proporcional, deplorando o governo “de privilégios, em nome
da maioria numérica, que é praticamente a única a ter voz no Estado”,
com “uma exclusão total das minorias”.
Outra grave “doença” do modelo distrital é o “mapismo”: como
há de ser dividido, e corretamente, o território eleitoral? Como evitar
as influências políticas nessa distribuição de áreas? Sempre se recorda
o gerrymander 5, dos EUA, ou o “efeito Deferre” 6, da França.
58 O voto majoritário distrital no Brasil

E no caso do Brasil de hoje, com seu crescimento desordenado,


com suas cidades, no dizer de Gilberto Freyre, “inchadas”, com seus
deslocamentos populacionais, impor-se-ia, sempre, a atualização e cor-
reção dos distritos, a contrariar eleitores e eleitos, a confundir lealda-
des políticas.
O terceiro problema do sistema distrital é o da valoração, des-
medida, do elemento regional, o que, para alguns críticos, resultaria
em uma “vereadorização” da representação no parlamento. Sempre se
recorda que Churchill, ao final da 2ª grande Guerra, depois de salvar
a Inglaterra, não foi reeleito em seu distrito, perdendo para um certo
Simpson, que mantinha permanente contato com seus concidadãos.
Mas a versão é inteiramente falsa. Churchill se elegeu em seu distri-
to. Só que, contrariamente a todas as expectativas, de que para ele se
dirigissem todos os votos, um candidato independente conseguiu um
terço da votação. O partido de Churchill é que perderia no país, levan-
do-o a se afastar do posto de 1° Ministro.
Finalmente, há que considerar o problema apontado por Octa-
ciano Nogueira: a dificuldade que sentirão os eleitores em razão da
informatização geral das eleições, em teclar, muito mais vezes, na urna
eletrônica. Veja-se o quadro apresentado pelo Professor da Universi-

5 Diz-se do desenho tendencioso das circunscrições eleitorais, no sistema dis-


trital. A expressão nasceu em razão de Eldbridge Gerry, que chegou à Vice Presidência
dos EUA mas, antes, governou Massachuse�s. Pouco antes do pleito de 1812, o legis-
lativo daquele Estado aprovou uma formação dos distritos eleitorais que beneficiava,
largamente, o situacionismo. O Governador Gerry parece ter se oposto, inicialmen-
te, ao projeto mas lhe deu, depois, a aprovação. O partido de Elbrigde Gerry, com
50.164 votos, alcançou 29 cadeiras, enquanto a oposição, com 52.766 votos, somente
conseguiu 11 postos. O mapa eleitoral, com a caprichosa distribuição das áreas, foi
examinado, depois, pelo editor de um jornal e por um pintor, Gilbert Stuart, que co-
meçou a desenhar, por cima de um dos distritos, uma cabeça, patas, rabo, algo que se
assemelhou, por fim, a uma salamandra. “Uma gerrymandra”, sentenciou o editor. O
comentário fez sucesso e, a partir de então, designou a fraude, tão comum, do mapis-
mo nos sistemas distritais.
6 Gaston Deferre, ministro do interior da frança, em 1983, procedeu a uma di-
visão de Marseille em arrondissements¸ de modo tão hábil que, com 2.600 votos de
maioria, o candidato Jean Claude Gaudin perdeu a chefia da administração munici-
pal.
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 59

dade de Brasília, na hipótese do modelo distrital misto, a modos do


sistema empregado na Alemanha, para nossas eleições de 2002, e com
distritos de deputados federais igual ao de deputados estaduais:

Pulsações do eleitor na urna eletrônica


Cargo Algarismos Confirmação Total
Presidente 2 1 3
1º Senador 3 1 4
2° Senador 3 1 4
Dep.Federal (nominal) 4 1 5
Dep. Federal Lista 2 1 3
Governador 2 1 3
Dep. Estadual(nominal) 5 1 6
Dep. Estadual nominal 5 1 6
Dep. Estadual nominal 5 1 6
Dep.Estadual(lista) 2 1 3
TOTAL 33 1 43
Fonte: Octaciano Nogueira

Mas em favor do modelo distrital pesam inúmeras razões. Pri-


meiro, a competição acirrada no interior dos partidos, trazida pelo
atual sistema, ao contrário da emulação - natural, esperada - entre as
agremiações e que vem sendo deplorada por todos os estudiosos. Jairo
Nicolau a aponta, também, na Finlândia, único país a seguir, em 1976,
o exemplo brasileiro.
Talvez para evitar essa disputa é que tem ocorrido, no interior no
país, a possibilidade de uma “distritalização” do quadro eleitoral, os
partidos criando áreas exclusivas para cada um de seus candidatos.
Estudando a composição da bancada paulista à Câmara dos De-
putados, em 1986, Maria D’Alva Gil Kinzo (1989, p. 92) verificou que
boa parte dos candidatos eleitos tinha sua vocação concentrada em al-
guns poucos municípios. “Isso equivale dizer que eles tenderiam a re-
ceber uma votação concentrada espacialmente e que, portanto, teriam
uma base eleitoral claramente definida. É com base nisso que se tem ar-
gumentado - principalmente aqueles que defendem a adoção no Brasil
60 O voto majoritário distrital no Brasil

do chamado sistema distrital puro - que, na prática, estaria funcionado


de fato um sistema distrital, na medida em que os deputados já teriam
seus redutos eleitorais definidos e assegurados”.
Depois, a pretensa “vereadorização” já se encontra, lamentavel-
mente, na representação atual, ao se exigir do parlamentar que se subs-
titua ao Estado na prestação de serviços básicos às comunidades.
Finalmente, sabe-se do efeito redutor do modelo majoritário
para as Assembléias quanto ao sistema partidário, pela primeira vez
apontado por Duverger. E somente essa chance de valorização das le-
gendas, do enxugamento de seu número, estonteante para uma de-
mocracia (31 partidos registrados na Justiça Eleitoral, pelo menos 16
representados no Congresso) daria razão à volta a um molde por tanto
tempo utilizado entre nós.

Referências

ALMEIDA, Tito Franco. Estudos e Comentários da Reforma Eleitoral.


Rio de Janeiro: A.M. Fernandes da Silva, 1875.
BAGEHOT, Walter. The English Constitution. London, 1867.
DUVERGER, Maurice. Sociologia Política. Rio de Janeiro: Forense,
1966.
KINZO, Maria D’Alva Gil. A bancada federal paulista de 1986: con-
centração ou dispersão do voto. In: Eleições/1986, São Paulo: Vértice;
Revista dos Tribunais, 1989.
LEÃO, Honório Hermeto Carneiro. Ata de 31.07.1855. Anais do Sena-
do do Império do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1978.
MILL, John Stuart. Considerações sobre o Governo Representativo.
Brasília: Unb, 1981.
NABUCO, Joaquim. Um Estadista do Império. vol. 1. Rio de Janeiro:
Topbooks, 1997.
PINHEIRO, Luiz F. Maciel. Reforma Eleitoral. Rio de Janeiro: Typo-
gráphico do Direito, 1876.
PINTO, Antônio Pereira (org.). Relatório da Comissão de Constituição
da Câmara. In: Reforma Eleitoral. Brasília: Unb, 1983.
PORTO, José da Costa. O Marquês de Olinda e seu Tempo. Belo Ho-
rizonte: Itatiaia/Usp, 1985.
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 61

QUEIROZ, Eusébio de. Ata de 04.08.1855. Anais do Senado do Impé-


rio do Brasil, Brasília: Senado Federal, 1978.
RAMOS, SOUZA. Ata de 31.07.1855. Anais do Senado do Império do
Brasil, Brasília: Senado Federal, 1978.
SANTOS, José Maria dos. A Política Geral do Brasil. São Paulo: T.
Magalhães, 1930.
Como aperfeiçoar
o sistema político
brasileiro?
Ensaio de sugestão 1

Fabiano Santos
Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ, onde é professor e pesquisador.
Presidente da Associação Brasileira de Ciência Política, 2008-2010.
Autor de O Poder Legislativo no Presidencialismo de Coalizão, (IUPERJ; UFMG,
2003). Co-autor de Governabilidade e representação política na América do Sul,
(Konrad Adenauer; Unesp, 2004). Organizador de O Poder Legislativo nos Estados:
diversidade e convergência, (FGV, 2001).

1 O presente artigo se apóia em reflexão de minha autoria publicada em Plena-


rium, Câmara dos Deputados, Maio de 2007, Ano IV, n. 4.
64 Como aperfeiçoar o sistema político brasileiro? Ensaio de sugestão

Introdução

Os estatísticos utilizam uma ótima expressão para caracterizar


equívoco muito freqüente entre analistas que interpretam como rela-
ções de causalidade meras associações temporais entre dois fenômenos:
correlação espúria. Trata-se de lição básica em cursos de metodologia
– o fato de dois fenômenos ocorrerem ao mesmo tempo, não permite a
inferência de que um seja causado pelo ou a causa do outro. Pois bem,
o atual debate em torno da reforma política é marcado por uma imensa
correlação espúria. O fato de termos vivido crises políticas, oriundas
da descoberta de práticas ilícitas de membros do governo, no passado
e no presente, comportamento também observado no Legislativo tem
levado à conclusão de que existe uma relação de causalidade entre o
sistema político em seu atual formato e a proliferação de corrupção.
Por conseguinte, basta alterar as regras, em particular as que regem
a competição eleitoral para a Câmara dos Deputados, que o sistema
passará a produzir representantes éticos e de alto padrão moral. A fra-
gilidade do argumento é gritante.
O problema da corrupção e a proliferação de escândalos é fe-
nômeno comum a todos os sistemas políticos nos quais os seguintes
ingredientes se encontram associados: capitalismo, setor público ativo
na economia, democracia com sufrágio universal, além de partidos em
busca de financiamento para campanha. Ou seja, a corrupção é um
problema em todos os lugares em que o capitalismo convive com de-
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 65

mocracia, independentemente do sistema político adotado. Os países


que conseguiram diminuir as taxas de corrupção foram aqueles que
aperfeiçoaram as instituições de controle, como Ouvidoria, Ministério
Público e Tribunais de Contas. É fato notório que no Brasil tais ins-
tituições têm aumentado sua participação e importância no processo
político.
De resto, o sistema político brasileiro, apesar das aparências,
funciona de maneira satisfatória. Temos um sistema partidário estabi-
lizado, com taxas de volatilidade cadentes, girando em torno de 4 a 5
partidos em equilíbrio de condições e que expressa a pluralidade social
radicada na sociedade. Temos uma disputa presidencial mais estabili-
zada ainda, baseada em torno de dois blocos: um de centro-esquerda
e outro de centro-direita, que se revezam e continuarão a se revezar no
poder, principalmente, e, à medida em que a radicalização de espaço ao
bom senso e à disputa em torno de uma agenda para o país. Mudanças
são bem vindas, desde que preservando o caráter radicalmente demo-
crático de nossa arquitetura institucional, calcadas no presidencialismo,
grande símbolo da incorporação política em um país desigual, no voto
proporcional, garantia dos direitos de minoria em uma sociedade com-
plexa e plural e na lista aberta, espaço vital de preservação da “accoun-
tability” nas eleições para o Legislativo.
Nas linhas que se seguem, centrarei minhas observações sobre o
debate em torno da reforma política na questão do sistema de gover-
no. Argumento que a principal linha de aperfeiçoamento institucional
passa pelo fortalecimento do Legislativo, especificamente, na geração
de incentivos para que os partidos de oposição possam participar do
processo decisório e alocativo de “dentro” do Congresso, e não através
de um movimento de cooptação do Executivo.

Presidencialismo de Coalizão: Como evitar


erros do passado e estabilizar o processo político
institucional.

Um governo normal, tem ao final de seu mandato, sempre coisas


boas e ruins a mostrar. As intenções de voto em favor da reeleição do
presidente Lula revelam que boa parte da população aprova dimen-
sões importantes de sua administração, mas especificamente, pontos
66 Como aperfeiçoar o sistema político brasileiro? Ensaio de sugestão

ligados ao desempenho da economia e do combate aos gravíssimos


problemas sociais. Entre os aspectos positivos, todavia, não se pode in-
cluir a estratégia adotada para se relacionar com o Congresso. Os pro-
blemas vividos pelo governo com a base aliada no parlamento, assim
como o espaço conquistado pela oposição na organização e condução
das CPIs constituem excelente aprendizado sobre o modo pelo qual
não se deve dar a interação entre Executivo e Legislativo no Brasil.
A separação de poderes e o multipartidarismo formam a base de
funcionamento de nossas instituições democráticas. Como efeito dire-
to destas características, surge a necessidade de se organizar coalizões
de apoio ao presidente no Legislativo, uma vez que são remotíssimas
as chances de que o partido do presidente conquiste a maioria das ca-
deiras nas duas Casas do Congresso. Este contexto institucional defi-
ne o presidencialismo de coalizão, modelo de governança adotado no
Brasil e em vários países da América do Sul, onde é freqüente a con-
jugação de presidencialismo e fragmentação partidária. Quais são os
pressupostos do bom funcionamento do presidencialismo de coalizão?
O exame dos últimos mandatos presidenciais revela que pelo menos 4
pontos são fundamentais:
1) A decisão de montar a coalizão e a disposição de distribuir poder
entre os partidos que demonstram o desejo de fazer parte do gover-
no;
2) A redução, tanto quanto possível, do número de parceiros, assim
como de sua heterogeneidade a fim de se reduzir os custos de tran-
sação política no interior da coalizão;
3) A distribuição proporcional de cargos no Executivo ao peso que
os partidos têm na base aliada;
4) A definição de uma agenda legislativa que seja consenso na coa-
lizão e a conquista dos postos-chave no Congresso tendo em vista
fazer tramitar os pontos principais de tal agenda.
A importância dos pontos enumerados acima pode ser medida
através de uma rápida comparação deste primeiro mandato do presi-
dente Lula com o que ocorreu ao longo dos dois mandatos de Fernando
Henrique Cardoso. A tabela abaixo contém as informações necessárias
para uma análise mais cuidadosa do tópico.
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 67

Tabela 1 - Duração, Composição Partidária, Apoio Parlamentar, Proporcionalidade


e Percentagem de Ministros Apartidários dos Ministérios Formados entre 1985 e 2000.
Presidentes Partidos Apoio na Proporcionalidade
Período de
e seus Representados no Câmara na Distribuição
Duração
Ministérios Ministério (nominal) das Pastas
FHC I-1 (01/95-04/96) PSDB-PMDB-PFL-PTB 56,3 0,57
PSDB-PMDB-PFL
FHC I-2 (04/96-12/98) 76,6 0,60
PTB PPB-PPS
PSDB-PMDB-PFL
FHC II-1 (01/99-03/99) 74,3 0,70
PTB-PPB-PPS
PSDB-PMDB-PFL
FHC II-2 (03/99-10/01) 68,2 0,59
PPB-PPS
FHC II-3 (10/01-03/02) PSDB-PMDB-PFL-PPB 62,0 0,68
FHC II-4 (03/02-12/02) PSDB-PMDB-PPB 45,1 0,37
PT-PSB-PDT-PPS
LULA 1 (01/03-01/04) 49,3 0,64
PCdoB-PV-PL-PTB
PT-PSB-PPS-PCdoB
LULA 2 (01/04-07/05) 62,0 0,51
PV-PL-PTB-PMDB
PT-PSB-PCdoB-PV
LULA 3 (06/05-08/05) 59,8 0,56
PTB-PMDB-PL
PT-PSB-PCdoB-PV
LULA 4 (08/05-09/05) 69,0 0,55
PTB-PMDB-PL
PT-PSB-PCdoB-PV-PTB
LULA 5 (09/05-04/06) 69,0 0,52
PMDB-PP- PRB-PL
PT-PSB-PCdoB-PV
LULA 6 (04/06 - ) 58,4 0,52
PTB-PMDB-PP
Dados gentilmente cedidos por Octavio Amorim Neto.

As diferenças são significativas e podem ser sintetizadas em 3 di-


mensões, até certo ponto relacionadas aos itens expostos inicialmente:
a durabilidade; o número e natureza dos parceiros; a proporcionali-
dade entre cadeiras e pastas ministeriais e a magnitude de ministérios
técnicos, isto é, sem filiação partidária. Com relação à durabilidade,
percebe-se maior estabilidade durante os dois mandatos de FHC do
que o que foi verificado durante o governo Lula. De 1995 a 1998, ape-
nas dois gabinetes foram compostos, número que se eleva um pouco
no quadriênio 1999-2002. Nada que se compare, contudo, aos 6 gabine-
tes montados pelo atual governo.
A explicação para tal instabilidade surge ao levarmos em con-
sideração o número de partidos presentes em cada ministério – du-
68 Como aperfeiçoar o sistema político brasileiro? Ensaio de sugestão

rante os dois mandatos de FHC, este número oscilou de três a seis, ao


passo que com Lula, variou de 7 a 9 partidos. Chamamos atenção aci-
ma para o problema da heterogeneidade política e isto fica ainda mais
claro após o exame da tabela. Enquanto FHC trabalhou com partidos
dispostos de forma contígua no espaço ideológica (PPB, PFL, PSDB,
PMDB, PPS), Lula negocia com parceiros tão diversos quanto PP, PTB,
PL, PMDB, PV, PCdoB, além do próprio PT.
Vale a pena mencionar, também, o fato de terem presença im-
portante no ministério Lula, partidos que sobrevivem basicamente por
conta do controle da patronagem e das verbas sob controle do setor
público. A coexistência de partidos orientados essencialmente para
cargos (office seeking na acepção de Strom 1990) com partidos orien-
tados para políticas (policy seeking, Strom 1990) é difícil em qualquer
contexto. Todavia, durante o governo Lula o peso do primeiro tipo de
partidos acabou se intensificando por conta do gradual abandono de
partidos como o PDT e o PPS, de tradição de esquerda, abandono ocor-
rido em nome da discordância em torno de policies. A conseqüência,
no que tange a convivência entre Executivo e Legislativo foi a de que
o já frágil equilíbrio alcançado inicialmente com a coalizão se tornou
fonte de conflitos insolúveis ao redor de cargos, recursos do Estado
para o benefício de clientelas e partidos. Neste contexto, o governo é
sempre presa fácil de escândalos, o que implica a necessidade perma-
nente de reajustes na composição partidária do ministério.
O princípio da proporcionalidade entre percentual de cadeiras
no Legislativo controladas por um partido que compõe a coalizão, isto
é, seu peso na base de apoio, e o percentual de assentos no ministério
é uma regra de ouro para a montagem de governos multipartidários.
O desrespeito a este princípio, quando feito de maneira extrema pode
causar desequilíbrios importantes no desempenho da base no parla-
mento.
O indicador fundamental neste particular, ou seja, que permite
averiguar o grau de correspondência entre pastas ministeriais e força
parlamentar dos partidos é o sugerido por Amorim Neto (2000), deno-
minado de Taxa de Coalescência. Os valores referentes a cada período
presidencial, em exame, aparecem na quinta coluna. A taxa se baseia
no índice de desproporcionalidade de Rose (1984) cuja função é de me-
dir a distorção entre cadeiras e votos ocorrida em cada eleição. No es-
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 69

tudo de Amorim Neto, ministérios substituem cadeiras parlamentares


e estas substituem os votos. Assim,

Taxa de Coalescência = 1-1/2 somatório |Si-Mi|

Onde,
Mi= % de ministérios recebidos pelo partido i quando o gabinete
foi escolhido;
Si= % de cadeiras ocupadas pelo partido i no interior do conjunto
de cadeiras sob controle dos partidos integrantes do ministério no mo-
mento em que este foi indicado.

A necessidade de acomodar as várias facções internas do PT le-


vou a que este partido tivesse uma representação superdimensionada
ao longo de todo o período do governo Lula, acarretando defecções
e dificuldades de gestão da coalizão. O mesmo problema ocorreu de
maneira significativamente mais tênue durante os oito anos de gover-
no FHC – tirante o último ano deste e o primeiro do governo Lula, os
demais sempre indicaram taxas de coalescência maiores de 1995 a 2002
do que de 2003 a 2006.
Em resumo, durante seu primeiro mandato, o presidente Lula, de
fato, decidiu montar uma coalizão e distribuiu poder aos partidos que
revelaram disposição de participar de um governo sob liderança petis-
ta. Portanto, a primeira condição foi atendida. Contudo, o mesmo não
ocorreu com relação aos demais pontos destacados acima. O número
de parceiros foi extremamente alto, bem como a dispersão ideológica
dos partidos integrantes da base. A distribuição de pastas ministeriais
longe esteve da proporcionalidade relativamente ao peso dos partidos
no Congresso – pode-se dizer que o PT controlou muito, pouco restan-
do aos demais parceiros. Finalmente, com exceção do primeiro ano de
mandato, no qual uma agenda de reformas constitucionais ficou bem
estabelecida como prioritária pelo governo, o restante do período ficou
marcado por uma grande indefinição quanto ao que, essencialmente, o
governo gostaria de ver aprovado no Legislativo. Ademais, em vários
momentos, a oposição conseguiu emplacar nomes pouco palatáveis
para o governo em postos chaves da Câmara e do Senado, sendo o
episódio que levou a vitória de Severino Cavalcanti à presidência da
70 Como aperfeiçoar o sistema político brasileiro? Ensaio de sugestão

Câmara Baixa em apenas o mais ruidoso deles.

Uma Inovação Radical: Apostar


em governos de minoria
Os problemas enfrentados pelo atual governo, apenas em parte,
decorreram de suas próprias escolhas, ou seja, tiveram origem no puro
e simples descuido em assunto que se mostrou de primeira importân-
cia. Todavia, parte significativa dos dilemas vividos por Lula e sua
equipe derivou de restrições colocadas pelo ambiente político e insti-
tucional. Em primeiro lugar, a estrutura do conflito político-partidário,
isto é, o modo pelo qual a força parlamentar dos partidos dispostos a
uma conduta mais ou menos cooperativa foi distribuída. Em segundo,
e mais importante lugar para fins de reforma política, a pouca flexibi-
lidade conferida pelo sistema político, em particular, pelo conjunto de
atribuições decisórias depositadas nos Poderes Executivo e Legislati-
vo. Do jeito que as coisas funcionam na política brasileira atualmente,
poucas possibilidades restam ao presidente brasileiro a não ser gover-
nar com maiorias, frequentemente, com supermaiorias parlamentares.
Utilizando-se de raciocínio contrafactual, poder-se-ia argumentar que
boa parte das disfuncionalidades observadas recentemente não ocorre-
ria se o governo optasse por montar uma base de apoio no Legislativo
minoritária, porém mais enxuta e coesa, e partisse para a negociação
de sua agenda com a oposição e independentes.
Uma outra lógica governamental adviria de uma decisão desta
natureza, como se viu, experiência comum no presidencialismo norte-
americano e em diversos países parlamentaristas da Europa. A história
revela, entretanto, que para o bom funcionamento deste tipo de gover-
no é essencial que o governo encontre no Congresso atores que estejam
dispostos e capacitados a negociar uma agenda para o país. Sob esta
perspectiva, a atual estrutura institucional que rege as relações Exe-
cutivo/Legislativo concentra muito poder no primeiro, principalmente
no que tange o orçamento e o poder de iniciar legislação, através das
MPs, e torna o segundo irresponsável da ótica das políticas públicas de
alcance mais geral.
Em outras palavras, governos de minoria pressupõem a existên-
cia de algumas condições político-institucionais. No Brasil, os benefí-
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 71

cios advindos da condição de ser governo são muito altos assim como
os custos de estar na oposição, principalmente para pequenos parti-
dos e partidos intermediários. Uma plataforma interessante que visa o
aperfeiçoamento democrático no Brasil consiste, pois, em capacitar o
Legislativo para participar de maneira mais eficiente no processo de-
cisório, na implantação de políticas públicas, através de seu acompa-
nhamento e do processo de alocação de recursos orçamentários. Reto-
mando alguns pontos já destacados em artigo anterior (Santos 2004),
destacaria, pelo menos, duas dimensões: 1) aumentar o poder de alo-
cação de recursos do Congresso; 2) aumentar o poder decisório das
comissões técnicas permanentes.
Quanto ao primeiro aspecto, trata-se de discutir a inserção do
Congresso no processo orçamentário brasileiro. Duas medidas são es-
senciais: a) tornar o orçamento, que é aprovado a cada ano pelo Le-
gislativo, imperativo e não apenas autorizativo. Retirar o poder de
contingenciar o gasto da União é vital para conferir maior responsa-
bilidade às decisões dos congressistas, assim como para redistribuir
o poder político da burocracia do Ministério da Fazenda em favor da
dimensão representativa do regime democrático; b) A segunda medida
essencial no sentido de se aumentar o poder de alocação do Congresso
diz respeito à própria forma pela qual a peça orçamentária é discutida
e aprovada no Congresso. Atualmente, o processo é concentrado em
uma comissão mista, sendo de vital importância a figura do relator
do projeto, em geral, escolhido entre os mais confiáveis membros da
base aliada ao governo. Uma maneira de contornar esta situação é a de
dividir o projeto orçamentário por áreas e enviar os diversos subproje-
tos para comissões pertinentes, fornecendo-lhes o poder de modificar
as estimativas de receitas e despesas ali contidas. Uma vez aprovada
a proposta da comissão temática, esta a envia para a comissão de or-
çamento e suas subcomissões, que tratariam de apreciar a proposta
de substitutivo daquela. Relevante ressaltar que tal divisão de tarefas
implica modificar a forma de tramitação do projeto de orçamento que
deixaria de ser unicameral, passando a tramitar simultaneamente nas
duas Casas do Congresso.
A segunda dimensão relevante consiste no problema do ritmo
e lócus de tramitação das matérias enviadas às comissões permanen-
tes. Duas questões básicas devem ser consideradas: a) a questão da
72 Como aperfeiçoar o sistema político brasileiro? Ensaio de sugestão

urgência; e b) a questão das comissões especiais. Existem dois tipos


de urgência: a constitucional, de prerrogativa unilateral do chefe do
Executivo e a regimental, que pode ser solicitada por parlamentares
segundo vários critérios, mas cuja aprovação depende da concordân-
cia do plenário. Em comum, nos dois casos, o fato de uma matéria sob
tramitação urgente ter necessariamente de estar em plenário para vota-
ção em 45 dias, tendo ou não sido apreciada pela comissão de mérito.
O ponto central é que os principais projetos de interesse do Executivo,
excetuando-se projetos de emenda constitucional, recebam o carimbo
de urgentes, seja mediante pedido do próprio presidente, utilizando-se
de sua prerrogativa constitucional, seja pela via de acordo entre líde-
res. Não é difícil entender que o recurso sistemático do instrumento do
pedido de urgência, incidindo especialmente sobre matérias importan-
tes, acaba por enfraquecer o trabalho das comissões permanentes, di-
minuindo, por conseguinte, os incentivos para uma participação mais
ativa nestes órgãos.
A questão das comissões especiais é mais um mecanismo de
amesquinhamento das atribuições das comissões permanentes. Proje-
tos de emenda constitucional e projetos de código não tramitam em
comissões permanentes. Ademais, matérias complexas, apreciadas por
mais de 3 comissões permanentes, podem ser retiradas destas e envia-
da para uma comissão especial, encarregada unicamente de proferir
parecer sobre tais matérias. Uma comissão especial difere de uma per-
manente pelo fato de ser constituída apenas para dar conta da tarefa
especificada no momento de sua criação, isto é, trata-se de comissão
ad hoc cuja membership é escolhida caso a caso. O ponto central é que a
composição das comissões especiais pode ser manipulada pelos líde-
res, responsáveis pela indicação de seus membros, independentemen-
te de expertise no tema em apreciação, apenas para dar aquiescência
às finalidades do governo. As decisões de uma comissão permanente,
contudo, para cuja montagem algum grau de dedicação e especializa-
ção nos temas pertinentes é pressuposto de seus membros, não são de
fácil manejo por parte das lideranças do bloco governista.
A facilidade de se pedir urgência para a tramitação dos projetos
de interesse do governo e a prática de montagem de comissões espe-
ciais diminuem dramaticamente os incentivos para que os parlamen-
tares, governistas ou de oposição, participem do processo decisório,
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 73

desprovidos que são de um lócus a partir do qual sua contribuição


possa ser levada em consideração. Impõe-se, portanto, por um lado,
rediscutir os critérios tanto de indicação de tramitação especial para
projetos, restringindo, por exemplo, o número destes que podem tra-
mitar com urgência em um mesmo intervalo de tempo, ou o tama-
nho do apoio necessário para aprovar a urgência constitucional; e, por
outro, permitir às comissões permanentes a apreciação de projetos de
emenda constitucional e de código, além de aumentar os requisitos de
complexidade tendo em vista criar uma comissão especial.

Conclusão

A conclusão é que a grande discussão em torno da reforma polí-


tica encontra-se deslocada em seu foco mais precípuo, pois não se trata
de intervir nos mecanismos eleitorais, mas, sim, de como tornar o Con-
gresso definitivamente co-responsável, para o bem e para o mal, pela
agenda governamental no Brasil. Além de atingir um fim em si mesmo
louvável, o fortalecimento da Casa por excelência da representação po-
lítica, este enfoque sobre a reforma institucional teria como conseqüên-
cia benéfica tornar o processo governativo mais flexível, conferindo ao
presidente e à oposição um leque maior de alternativas no que tange as
suas finalidades de tramitação e negociação da agenda e sobrevivência
política respectivamente.

Referências:

AMORIM NETO, Octavio. Gabinetes Presidenciais, Ciclos Eleitorais e


Disciplina Legislativa no Brasil. Dados, Vol. 43, nº3, 2000.

ROSE, Richard. Electoral Systems: A Question of Degree or of Prin-


ciple? In: LIJPHART, Arend; GROFMAN, B. (orgs.). Choosing and
Electoral System: Issues and Alternatives. New York: Praeger, 1984.

SANTOS, Fabiano. A Reforma do Poder Legislativo. Plenarium. Brasí-


lia: Câmara dos Deputados. Ano 1, nº 1, 2004.
Democracia, república
e reforma política
í
ítica:
variações em torno dos
vinte anos da Constituição Federal

Filomeno Moraes
Doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo. Mestre em Ciência
Política pelo IUPERJ. Professor Titular da Universidade de Fortaleza e Professor
Adjunto da Universidade Estadual do Ceará. Presidente da Associação Cearense de
Formação de Governantes, 2002-2004. Co-organizador de Reforma Política: realizações
e perspectivas (Konrad Adenauer, 2003). Autor de A Construção Democrática
(Casa José de Alencar/UFC, 1998).
e-mail: filomenomoraes@uol.com.br
76 Democracia, república e reforma política:
variações em torno dos vinte anos da Constituição Federal

À guisa de considerações iniciais

A Constituição Federal completa, neste 2008, o vigésimo ano de


sua promulgação. Sem dúvida, é o texto que inaugurou o ciclo mais
democraticamente virtuoso de toda a história político-constitucional
brasileira, além de caracterizar-se - depois da Constituição do Império
e da primeira Constituição Republicana, e visto que a Constituição de
1946 foi defraudada com o golpe militar de 1964 - como o mais dura-
douro.
Constituições tendem geralmente a não ter vida longa (LANE,
1996), pois, aqui e alhures, estão sujeitas às vicissitudes dos fatos e aos
coeficientes de “sentimento constitucional”, isto é, a consciência social
que, maior ou menor e transcendendo os antagonismos, integra deten-
tores e destinatário do poder político no marco de uma ordem comu-
nitária obrigatória (LOEWENSTEIN, 1976).
No que diz respeito à história política brasileira, nos menos de
duzentos anos de existência do Estado nacional, observa-se a fertili-
dade em matéria de assembléias constituintes, que foram instaladas
em 1823, 1890, 1933, 1946 e 1987. Constituições, além das prove-
nientes das assembléias constituintes, as de 1891, 1934, 1946 e 1988,
existiram mais ainda as oriundas das sístoles autocráticas de oca-
sião: a Constituição de 1824, já que Pedro I dissolvera a assembléia
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 77

constituinte instalada após a Independência, foi a primeira da série


de ordenamentos constitucionais autoritários; 1937 assistiu a outra
manifestação do autoritarismo no processo constitucional; em 1967
editou-se nova carta, a qual, embora passando pelo Congresso Na-
cional, não se livrou do travo da imposição; finalmente, em 1969 se
coroou-se, com a impropriamente chamada Emenda Constitucional
nº 1, o conjunto de constituições outorgadas no Brasil.
Consagrando desde o seu preâmbulo a idéia-força do Estado
Democrático e Social de Direito, a Constituição de 1988 pretende-se
destinada a “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a
liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e
a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralis-
ta e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida,
na ordem interna e internacional, com a solução das controvérsias”.
A soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores
sociais do trabalho e da livre iniciativa foram erigidos como funda-
mentos do Estado Democrático de Direito, proclamando a Carta Mag-
na brasileira que o poder emana do povo, que o exercerá por meio de
representantes eleitos ou diretamente.
Ademais, a Constituição da República estabeleceu no seu art.
1º, V, o pluralismo como um dos fundamentos da República Fede-
rativa do Brasil, alevantando novo valor em contraposição àqueles
prevalecentes durante o autoritarismo-burocrático, máxime os con-
tidos na doutrina da segurança nacional. Desde 1988, com a inscri-
ção do pluralismo como fundamento da pólis brasileira, legitimou-
se a diferença e exorcismaram-se os hegemonismos, as supremacias
e as preponderâncias, dando-se azo às manifestações das diferentes
forças políticas, com o corolário de que é proibido proibir, exceto
na situação em que se requeira a exclusividade da verdade política
e ideológica e em que a dicção seja utilizada para coibir outras dic-
ções (MORAES, 2006).
A CF/88 pode ser observada a partir de diversas perspectivas im-
portantes, e uma delas, inevitavelmente, decorre da dimensão inédita
que atribui aos princípios democrático-político e republicano, em re-
lação aos quais e à sua efetivação, tecem-se, neste trabalho, algumas
variações.
78 Democracia, república e reforma política:
variações em torno dos vinte anos da Constituição Federal

A manifestação do poder constituinte


em 1987/1988

Os frutos advindos das assembléias constituintes representam


contrapontos importantes aos surtos de autoritarismo que, perio-
dicamente, marcaram a história político-constitucional brasileira e
que, excetuada alguma teoria de curto-circuito institucional, pare-
cem não estar em qualquer estabelecimento de cenários da conjun-
tura. No seu tempo, tais assembléias estabeleceram arenas privile-
giadas da participação política da sociedade, mesmo se se impuser
um nível de exigência maior em relação às mesmas. Merece atenção
a assertiva de Raymundo Faoro (2007, p. 257- 258), trazida a lume
antes da Constituinte de 1987/1988, segundo a qual nunca o poder
constituinte conseguira, nas suas quatro tentativas, “vencer o apa-
relhamento de poder, firmemente ancorado ao patrimonialismo de
Estado, mas essas investidas foram as únicas que arvoraram a insíg-
nia da luta, liberando energias parcialmente frustradas” e que “to-
dos os passos, insuficientes na verdade, no caminho das liberdades
e da democracia, nos quase 160 anos de país independente, foram
dados pelas constituintes, que legaram à sociedade civil as bandei-
ras, frustradas e escamoteadas, de sua emancipação”.
Acompanhando a linha de raciocínio estabelecida por Raymun-
do Faoro, pode-se afirmar que o texto constitucional de 1988 pôde vir à
luz em virtude da peculiar modalidade que o poder constituinte adqui-
riu na efervescência da sociedade brasileira nos 80. De fato, na década
de 80, sobretudo na esteira da convocação do Congresso Constituinte
estabelecida pela Emenda Constitucional no 26/1985 e prosseguindo
até a promulgação do texto constitucional de 1988, o Brasil vivenciou
um dos mais importantes momentos de ativação política da sociedade
civil organizada, momento este que, dando continuidade ao processo
de mudança política iniciado na década de 70, acabou por contribuir
para a inflexão do regime militar e a construção de instituições repre-
sentativas e multipartidárias. Mesmo Fernando Henrique Cardoso,
que, na presidência da República e em função da racionalidade eco-
nômica, do alinhamento à globalização e da continuidade no poder,
desembaraçou-se ou tentou desembaraçar-se de diversos comandos
constitucionais originários, haveria de reconhecer a importância do
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 79

esforço constituinte. A propósito, afirma que “a grande causa da mi-


nha geração não foi a da estabilização da economia. Tampouco a do
desenvolvimento econômico. Foi a da democracia” e que “a História
contemporânea da política brasileira começa nos anos de 1970, com as
lutas pela volta da democracia”. E conclui que “o resultado desse borbu-
lhar da sociedade acabaria sendo a convocação da Assembléia Nacional
Constituinte, finalmente eleita em 1986” (CARDOSO, 2006, p.14-15).
Apesar das limitações constantes do ato convocatório do Con-
gresso Constituinte, como diz Dalmo de Abreu Dallari, “o resultado
de seu trabalho ficou mais próximo das aspirações dos progressistas
e democratas do que das preferências conservadoras dos oligarcas e
autoritários”, porque foi a que recebeu “maior influência do povo em
sua elaboração”. Ademais, “conseqüência da ampla mobilização do
povo no momento da Constituinte e de sua influência nas decisões foi
a garantia de seu conteúdo democrático, muito evidente pelos princí-
pios expressamente afirmados em normas constitucionais, assim como
pelo grande número de artigos relacionados com os direitos humanos
e suas garantias” (DALLARI, 1999, p. 49-53).

O princípio democrático-político na CF/88:


representação e participação
Por mais que tenham mudado o papel e as funções das consti-
tuições, as mesmas são, acima de tudo, instrumentos de governo que
limitam, restringem e permitem o controle do exercício do poder po-
lítico, a sua razão de ser. Uma constituição é fundamentalmente uma
moldura de governo, ou, como diz Sartori (1996, p. 211) “sem uma
carta de direitos, uma constituição ainda é uma constituição; mas se
ela não está centralizada numa moldura de governo, não é uma consti-
tuição”. Logo, apesar de os textos constitucionais desde o México, em
1917, até o Brasil, em 1988, estarem “carregados de programaticidade”
(Canotilho, 2006), a constituição como “instrumento de governo” tem
a sua razão de ser.
A literatura especializada ressalta que os recentes processos de
transição política na América Latina, em sua maioria, se consolidaram
com mudanças constitucionais (SUNSTEIN, 1998), com as constitui-
ções desempenhando, pois, um papel vital na política de tais países.
80 Democracia, república e reforma política:
variações em torno dos vinte anos da Constituição Federal

Assim é que, a transição brasileira tem na Constituição de 1988 um


momento fundamental para a definição da nova institucionalidade,
da qual se devem destacar a dimensão propriamente “constitucional”,
isto é, os sistemas eleitoral, partidário e de governo, e a dimensão “pro-
cedimental”, ou seja, as regras que regulam o processo decisório, fun-
damentalmente as relativas aos poderes de agenda e à capacidade de
formulação das políticas públicas por parte dos Poderes Executivo e
Legislativo.
Entre os seus propósitos inovadores, ao estabelecer que “todo
poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos
ou diretamente, nos termos desta Constituição” (destacou-se), a Lei
Fundamental contempla a possibilidade de realização, conjunta, da
democracia representativa com a democracia participativa ou direta.
Ou seja, a produção de decisões políticas advindas da atuação de re-
presentantes eleitos (vereadores, prefeitos, deputados estaduais, go-
vernadores, deputados federais, senadores e presidente da República)
ou diretamente dos eleitores, abre a perspectiva de um modelo misto
de democracia semidireta. Neste passo, a Constituição Federal estabe-
lece que “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e
pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da
lei, mediante: I - plebiscito; II - referendo; III - iniciativa popular” (art. 14).
Além dos mecanismos de participação legislativa, a CF introdu-
ziu, ampliou ou enfatizou diversos outros mecanismos de participa-
ção administrativa1 ou judicial,2 bem como está aberta à inclusão, via

1 Audiência pública (art. 58, § 2º, II), colegiado público (art. 89, VI; art. 194, VII;
art. 204, II; art. 206, VI; art. 216, § 1º; art. 227, § 1º), co-gestão paraestatal (art. 206, VI),
cooperação das associações representativas no planejamento municipal (art. 29, XII),
provocação de inquérito civil (art. 129, § 1º), controle externo de contas municipais
(art. 31, § 3º), denúncia aos tribunais de contas (art. 74, § 2º) e reclamação relativa à
prestação de serviços públicos (art. 37, § 3º, I a III).
2 Mandado de segurança coletivo (art. 5º, LXX, a e b), ação popular (art. 5º,
LXXIII), ação civil pública (art. 129, III), ADIn e ADC (art. 103, VII, VIIII e IX), ação de
impugnação de mandato eletivo (art. 14, § 10), legitimação extraordinária de comuni-
dades e organizações indígenas (art. 232), júri popular (art. 5º, XXXVIII), escabinato
(art. 98, I e II) e acesso da advocacia às magistraturas togadas ((arts. 94, 111, I; 115, I;
119, II; 120, III; 123, caput, e par. ún., I; art. 123, par. ún., I).
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 81

emendas constitucionais, de novos mecanismos.


A introdução na ordem constitucional dos mecanismos da de-
mocracia participativa constitui inegável avanço, pois se espera que
a complementaridade, entre as formas de representação política e as
formas de participação política, funcione como corretivo a certas difi-
culdades do sistema político, diminuindo-se, inclusive, a distância que
separa os representantes dos eleitores. Todavia e apesar dos impas-
ses da democracia representativa (BERCOVICI, 2003), convém prestar
bastante atenção ao aspecto da “complementaridade” entre uma e ou-
tra forma da democracia, mesmo porque a realização da forma partici-
pativa ou direta está em função da ativação política da sociedade, até
agora, de modo geral, praticamente inerte ou negligente na pressão
por plebiscitos e referendos e na confecção de projetos de lei, comple-
mentares e ordinários, de que possui a iniciativa.
A propósito da democracia brasileira e da tensão entre repre-
sentação e participação, convém recorrer a Wanderley Guilherme dos
Santos (2007, p. 7-10) quando considera que a democracia direta é uma
idéia sedutora e generosa, porque “a concessão de um mandato não
equivale a alguma lúcida transferência de sabedoria do povo a seus
representantes nem há comprovação de intimidades telepáticas entre
um e outros”, e que “plebiscitos e referendos proporcionam o indis-
pensável esclarecimento quanto à inclinação majoritária da população
vigente”. Mas, convém considerar também que substituir permanente-
mente as instituições representativas por consultas plebiscitárias à po-
pulação é uma tese atraente, porém equivocada. De fato, “o parlamen-
to vem a ser precisamente o lugar em que são expostos argumentos
contraditórios, em que se processa a persuasão de uns, a reconsidera-
ção de outros e a deliberação que, afinal, raramente corresponde ima-
culadamente a alguma das opiniões originárias”. E quanto às grandes
expectativas a propósito dos mecanismos complementares de demo-
cracia direta, conclui que “são, essencialmente, omnifuncionais, tantos
servem à democracia como podem beneficiar tiranias”.

A síndrome da insatisfação progressiva

Desde 1979, quando se procedeu a substancial mudança na le-


82 Democracia, república e reforma política:
variações em torno dos vinte anos da Constituição Federal

gislação partidária, vivencia-se constante discussão ou elaboração de


normatividade partidário-eleitoral. As mutações, a partir do final da
década de 70, distribuem-se em três escaninhos: (1º) a fixação ou am-
pliação de limites para o exercício da cidadania eleitoral; (2º) as de-
cisões que afetaram o processo eleitoral e a organização partidária;
(3º) as decisões que alteraram a representação política
tica (LAMOUNIER
(LAMOUNIER,
1989; LIMA JR., 1994; MORAES, 1992/1993; NICOLAU, 1996; MORAES
& LIMA, 2003). E, pelo menos, três aspectos cristalizados por tais mu-
danças foram de crucial importância para a volta do País à democracia
política e para a ampliação da cidadania política: (1º) o restabelecimento
das eleições diretas para governador, a partir de 1982, para prefeitos das
capitais, a partir de 1985, e, desde 1989, para presidente da República;
(2º) a autorização para a criação de partidos nacionais, que fugia ao figu-
rino bipartidário traçado pelo Ato Complementar nº 4/65; (3º) o estabele-
cimento do voto facultativo para o analfabeto (1985) e para os menores
entre dezesseis e dezoito anos de idade. Tais mudanças foram, todas,
constitucionalizadas em 1988.
Nomeadamente no que diz respeito aos partidos políticos, as-
sistiu-se nos anos 70 e 80 ao desenrolar de processo de progressiva
abertura para a sua criação. Desde 1979 - momento em que se extin-
guiram as duas siglas criadas com base na legislação do regime mili-
tar, Aliança Renovadora Nacional-Arena e o Movimento Democrático
Brasileiro-MDB, até a promulgação da Constituição de 1988, as normas
relativas ao sistema partidário-eleitoral caminharam sempre no senti-
do do multipartidarismo.
Apesar das mudanças que houve em relação ao período da di-
tadura, o que se assiste vocalizar, no entanto, é uma permanente insa-
tisfação com o sistema político. Como observa Fábio Wanderley Reis
(2003, p.13-14) “o debate brasileiro tem exibido a característica de um
enfrentamento bastante rígido entre partidários e oponentes das posi-
ções quanto a diferentes aspectos dos problemas, (...) em que se con-
frontam presidencialistas e parlamentaristas, majoritaristas e propor-
cionalistas etc.” destacando-se nas formas que tais enfrentamentos têm
assumido o contraste entre dois tipos de orientações básicas, a saber, os
adeptos da engenharia política, confiantes nas possibilidades transfor-
madoras da ação legal deliberada, e os analistas de perspectiva “burke-
ana”, contrários ao “artificialismo” dos meios legais.
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 83

Pelo menos em três dos ensaios de reforma política, muitas ve-


zes com pretensões de não deixar pedra sobre pedra, prevalecem os
“adeptos da engenharia política”. Senão, veja-se.
Na legislatura iniciada em 1995, tramitou no Congresso Nacio-
nal, tendo como relator o então senador Sérgio Machado (PMDB-CE),
projeto de reforma considerando os seguintes aspectos do sistema
político: sistema eleitoral; fidelidade partidária; partido nacional e de-
sempenho eleitoral; domicílio eleitoral e filiação partidária; duração de
mandato de senador; datas de posse; voto facultativo; divulgação de
pesquisas eleitorais; imunidade parlamentar; número de vereadores;
suplentes de senadores; e financiamento de campanhas. Na legislatura
seguinte, iniciada em 1999, foi criada uma comissão especial na Câma-
ra dos Deputados, tendo como presidente o deputado Alexandre Car-
doso (PSB-RJ) e, como relator, o deputado Ronaldo Caiado (PFL-GO).
O relator propôs o exame dos seguintes temas básicos: financiamento
de campanhas eleitorais; fidelidade partidária, domicílio eleitoral, filia-
ção partidária; sistema eleitoral, listas; coligações partidárias, limites;
propaganda dos partidos políticos, pesquisa; e causas de inelegibili-
dades, renúncia. Isto sem prejuízo da análise de outras questões como
à atinente ao pacto federativo e à relativa a organização dos poderes
(MORAES, 2003; 2005).
Em 2007, a Câmara dos Deputados aprovou o regime de urgên-
cia para o Projeto de Lei nº 1.210/07, que trata da reforma política e que
continua na Câmara. O projeto tem pretensões largas, dispondo sobre
as pesquisas eleitorais, o voto de legenda em listas partidárias preor-
denadas, a instituição de federações partidárias, o funcionamento par-
lamentar, a propaganda eleitoral, o financiamento de campanha e as
coligações partidárias. Na visão dos subscritores do projeto, pretende-
se encaminhar solução para os problemas seguintes que requererem
soluções mais urgentes: “a) a deturpação do sistema eleitoral causada
pelas coligações partidárias nas eleições proporcionais; b) a extrema
personalização do voto nas eleições proporcionais, da qual resulta o
enfraquecimento das agremiações partidárias; c) os crescentes custos
das campanhas eleitorais, que tornam o seu financiamento dependente
do poder econômico; d) a excessiva fragmentação do quadro partidá-
rio; e) as intensas migrações entre as legendas, cujas bancadas no Le-
gislativo oscilam substancialmente ao longo das legislaturas”.
84 Democracia, república e reforma política:
variações em torno dos vinte anos da Constituição Federal

Independentemente de tais tentativas integrais de reforma po-


lítica, não pode passar despercebido o conjunto de transformações na
ordem constitucional inaugurada em 1988, relativo ao sistema políti-
co.3 Tais modificações, realizadas de maneira incremental, tem atingi-
do, algumas vezes, pontos centrais da tradição político-constitucional
nacional, como foi o caso da introdução do mecanismo da reelegibili-
dade de mandatários do Poder Executivo.

Dilemas do desenvolvimento democrático-


republicano sob a vigência da CF/88

a) dinheiro e política

Um ponto relevante, que merece a atenção no Brasil atual, con-


cerne à relação problemática entre dinheiro e política. De fato, ape-
sar de a República no Brasil já ter completado um século de existência
formal, é patente a baixa institucionalização do princípio republicano
entre nós, o que tem feito da mesma, em muitas situações, mais cosa
nostra do que res publica, com indicadores da pouca distinção entre o
“público” e o “privado”. Tal característica da formação nacional tem
manifestações perversas no financiamento partidário-eleitoral, indi-
cando que, em certa medida, a crise brasileira está relacionada com o
financiamento de partidos e de eleições.
Cumpre anotar que os transtornos oriundos da relação entre
política e dinheiro não constituem monopólio nacional. Ao contrário,

3 A CF/88 previu dois mecanismos para viabilizar a própria mudança: o da re-


visão constitucional (art. 3º. do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), pelo
que foram realizadas seis “emendas constitucionais de revisão”, e o processo ordinário
(art. 60), responsável, até o momento, por cinqüenta e seis emendas. Para as emendas
relacionadas aos aspectos “constitucional” e “procedimental” do sistema político, ver
Moraes (2005). A EC nº 52, de 2006, estabelece que “é assegurada aos partidos políti-
cos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento e para
adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais, sem obrigato-
riedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital
ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade
partidária” (art. 17, § 1º).
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 85

embora com graus e traços diferentes, têm dimensão globalizante, en-


volvendo países ricos e pobres, democracias antigas e novas, políticos
e partidos situados nas diversas posições do espectro político-ideoló-
gico. No entanto, financiamento partidário-eleitoral com recursos não
contabilizados na forma da lei, participação de empresas fantasmas no
exterior, mandatários com inserção em interesses privados poderosos,
“mensalinhos”, “mensalões” e quejandos, constituem fatores de preo-
cupação nacional.

b) a judicialização da política

Em matéria eleitoral e partidária, cresce em grandes proporções


a judicialização. Cumpre rememorar um pouco. Até 1997, o Brasil,
dada a casuística das regras do jogo, vivenciava sobressalto à aproxi-
mação de cada eleição. Naquele ano, com a edição da Lei das Eleições,
inaugurou-se ciclo virtuoso, criando-se mais previsibilidade e segu-
rança jurídicas em relação à competição política. Todavia, desde 2002,
a questão das coligações partidárias trouxe novo fator de instabilidade
para o sistema político. É que, em 2002, o Tribunal Superior Eleitoral,
em resposta a uma consulta, promoveu forte intervenção no processo
político, quando verticalizou as alianças eleitorais, a menos de um ano
das eleições e contra a tradição de federalismo partidário que vigorou
durante o regime constitucional de 1946 e, proibida pelo Código Elei-
toral de 1965, se restabeleceu, em 1985.
Começava a via-dolorosa, entre cujas estações se destacaram a
promulgação da Emenda Constitucional nº 52 (que determina o fim da
regra de verticalização), nova decisão do TSE (que, anulando a decisão
do Congresso Nacional, manteve a verticalização para as eleições de
2006) e, por fim, o julgamento do Supremo Tribunal Federal, segundo
o qual a EC nº 52 somente surtiria efeito para as eleições a partir de
2010. Depois, numa mesma semana, o TSE enrijeceu e, em seguida, tor-
nou flexível a matéria concernente a aspectos da escolha e do regime
das coligações eleitorais.
O processo político brasileiro se caracteriza por um federalismo
partidário, com a existência, tanto durante o multipartidarismo de
1946-65 quanto no que se desenvolve dos anos 80 para cá, de “subsiste-
86 Democracia, república e reforma política:
variações em torno dos vinte anos da Constituição Federal

mas partidário-eleitorais”, decorrentes da diversidade que caracteriza


as unidades federativas. Por conseguinte, é incompreensível e inócuo
amarrar a política dos Estados a uma lógica nacional, abstraindo-se
diferenças e possibilidades, identidades e criatividades. Mesmo que se
tenha em conta as reservas concernentes a coligações para eleições pro-
porcionais - cujo fim merece debate sério -, lembre-se de que o Brasil
não é a única democracia a admitir o mecanismo. Democracias como
a Suíça, Israel, Holanda, Dinamarca, Suécia e Noruega empregam no
presente, ou já empregaram no passado, alguma variedade de coliga-
ção para eleger algum nível da representação política. Logo, decidi-
damente, coligações eleitorais não significam qualquer tara política
brasileira. Ademais, a nossa “fortuna” é o pluralismo, que, além de
fundamento constitucional da República (art. 1º, V), é dado sociológico
inarredável.
Outra manifestação de judicialização da política ocorreu em
relação à questão do mandato, se pertence ao parlamentar eleito ou
se pertence ao partido. Evidentemente, o mal-estar provocado pelo
funcionamento dos partidos e do sistema partidário no Brasil parece
repousar, em boa medida, na falta de respeito à fidelidade partidá-
ria, para o que, evidentemente, o “presidencialismo de coalizão” (ou
“presidencialismo de animação”) – que se observa nos níveis federal,
estadual e municipal – funciona como componente deletério.
Destarte, a decisão do STF afirmativa de que, ao sair do partido
pelo qual foi eleito, o mandatário deixa o mandato, tende a estabelecer
a saúde partidária. Todavia, entre outras, duas questões não podem
calar. Primeiro, os poderes são independentes, sem predominância
de qualquer um deles. Assim, inspirado em Pontes de Miranda (1953,
p.173) cabe perguntar se é bom preponderar o exercício do Poder Judi-
ciário, “ou porque tal exercício seja demasiado, de modo que (...) passe
a superar os outros, ou porque os outros não dêem ao exercício a inten-
sidade que seria normal”? Segundo, como guardião da Constituição,
é bom o Poder Judiciário realizar a reforma política no lugar do Con-
gresso Nacional?

c) o espectro que ronda a República

Um novo espectro agora ronda os experimentos democráticos


O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 87

e republicanos latino-americanos, qual seja a tentativa de fixação de


tempo não razoável, ou mesmo indefinido, para os mandatos presi-
denciais.
No Brasil, assistiu-se em 2006 ao segundo pleito em que é pos-
sível a reeleição para presidente da República e governador. Para os
prefeitos, já se teve as experiências de 2000 e de 2004. Inexistem es-
tudos abalizados sobre o impacto do mecanismo sobre o experimen-
to democrático-constitucional brasileiro. Todavia, um olhar empírico
sobre a prática da reeleição talvez não seja, de modo geral, animador:
tendência ao uso da máquina governamental, abuso de poder político,
condutas vedadas a agentes públicos, captação ilícita de sufrágio, de-
sequilíbrio da competição política, oligarquização e personalização do
poder e empreendedorismo político distante dos valores republicanos
constituem, entre outros, aspectos negativos vinculados ao mecanismo.
Inclusive, no debate sobre a reelegibilidade é visível o consenso sobre
os seus aspectos negativos, reunindo inspiradores e aproveitadores,
reais ou potenciais, da introdução do mecanismo, em 1987, na Consti-
tuição Federal. De fato, na presidência de Fernando Henrique Cardoso
apostrofou-se na Constituição Federal, em detrimento de uma tradição
republicana centenária de repulsa, o mecanismo da reeleição.
Sempre a eleição presidencial! Em grande medida, a pedra angu-
lar do sistema político brasileiro (LIMA JR., 1999) – de Deodoro a Lula
– tem sido a eleição presidencial, provocando, antes mais e recente-
mente menos, crises, transtornos e preocupações.
É oportuno lembrar que, na esteira da transição do autoritarismo
para a democracia, ocorrida no Brasil e em outros países latino-ame-
ricanos, a teoria política encareceu pelo menos mais duas condições
necessárias à qualificação de uma democracia política ou poliarquia, a
saber, quem ocupa as posições mais altas no governo não deve sofrer o
término de seus mandatos antes dos prazos legalmente estabelecidos e
as autoridades eleitas não devem estar sujeitas a restrições severas ou
vetos (O’DONNELL, 1996).
Antes, Robert Dahl (1971) estabelecera as condições de existên-
cia de um regime democrático, a partir da observação de um conjunto
de condições que, senão todas, pelo menos boa parte, deveria estar
presente. Ei-las: autoridades públicas eleitas; eleições livres e limpas;
sufrágio universal; direito a competir pelos cargos públicos; liberda-
88 Democracia, república e reforma política:
variações em torno dos vinte anos da Constituição Federal

de de expressão; informação alternativa e liberdade de associação. A


partir dos anos 90, assistiu-se na América Latina a progressos muito
grandes na busca da institucionalização das democracias políticas ou
poliarquias, apesar dos muitos déficites que se fizeram ou se fazem
acompanhar.
Neste diapasão, com certeza a teoria da democracia necessita
estabelecer mais uma condição necessária para que um regime possa
considerado democrático, a saber, que os presidencialismos (de coa-
lizão, de animação, ou de outra natureza) não admitam mandatários
vitalícios ou quase vitalícios (MORAES, 2007).
No caso brasileiro, os tempos são outros, instituições democráti-
cas se consolidaram razoavelmente, o constitucionalismo democrático
parece que veio para ficar. Por via da dúvida, porém, não faz mal ter
em mente a admoestação de Raymundo Faoro (2007, p. 253), segundo
a qual, “quem conhece as classes dirigentes brasileiras, sempre férteis
de expedientes, concessões e conciliação, não pode se deixar enganar
pelo espetáculo das aparências”.

O que não é a reforma política

É necessário dizer que o reformismo político brasileiro não é de


hoje. Antônio Pereira Pinto (1983, p. 12), publicista da época do Impé-
rio, no seu livro Reforma Política, já afirmava que “desde a primeira
legislatura (1826) iniciaram-se, em ambas as câmaras, luminosos pro-
jetos tendentes a regulamentar o processo das eleições”. De lá para
cá, dificilmente qualquer legislatura se inicia sem muitos projetos de
reforma política.
Inclusive, já se formou no senso comum a idéia de que não se
dispõe de instituições políticas adequadas e que o instrumento para
construí-las é mais e mais legislação. Há que esconjurar, porém, a
idéia também que constantemente cria força no Brasil de hoje, segun-
do a qual legislação partidário-eleitoral dará soluções rápidas ao que
a legislação penal, contida no Código Penal e em outros diplomas
legais, não tem sido eficaz. Como lembra Fabiano Santos (2005), “(...)
vender a idéia de que a reforma política acabará ou diminuirá de
maneira significativa comportamentos desviantes e a má utilização
dos recursos públicos é vender ilusões”. De fato, a reforma deve ser
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 89

pensada de maneira a “aperfeiçoar o modo pelo qual os votos dos


eleitores são traduzidos em distribuição de poder político pelos par-
tidos, e não como mecanismo de solução de fenômenos criminais”.

À guisa de considerações finais

1. No período de vigência da CF/88, isto é, nos últimos vinte anos,


a vida política brasileira passou por muitas vicissitudes, mas se cons-
trói um experimento que coloca o país no caminho das democracias.
Se conforme Sérgio Buarque de Holanda (1995, p.161), “a democracia
no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido”, sob a égide do
texto constitucional de 1988, parece caminhar em marcha batida para
deixar de sê-lo. De fato, a dimensão “estruturante” que a Constituição
Federal de 1988, atribui ao princípio democrático-político possibilitou
que, no seu marco, se realizasse o processo de mudança política, com a
construção de instituições representativas e multipartidárias, a restau-
ração da separação dos poderes e a reconstrução do federalismo.
2. Evidentemente, cumpre observar que a ordem de problemas
que marcou e marca a institucionalização democrática no Brasil foi e é
bastante extensa, e os desafios que apresentou e apresenta foram e são
amplos. No entanto, nos anos 90 e prosseguindo pelos primeiros anos
do século XXI, o processo político caminhou no sentido de falsificar as
profecias de cenários catastróficos e consolidar o experimento demo-
crático. Talvez não se possa dizer a mesma coisa do princípio republi-
cano, a necessitar de engenho e arte para a sua melhor efetivação.
3. Cumpre ressaltar que a perspectiva incremental de reforma
política pode ser mais eficaz do que as propostas abrangentes. Com
o aperfeiçoamento do presidencialismo, do sistema de representação
proporcional e também do federalismo, que são elementos já tradicio-
nais na política brasileira, talvez se esteja realmente formulando a ne-
cessária reforma política.
4. Obviamente, será alvissareiro o fato de, transcendendo o no-
ticiário escandaloso que tem marcado os últimos anos, o Congresso
Nacional proporcionar o retorno da discussão realmente institucional,
inclusive da remodelação do seu status institucional, mostrando que,
ali, nem tudo é indecorosidade e torpeza e que, pelo contrário, “a dig-
nidade da legislação” (WALDRON, 2003) sobrevive e pode dar bons
90 Democracia, república e reforma política:
variações em torno dos vinte anos da Constituição Federal

frutos no sentido do aperfeiçoamento político-institucional.


5. Deliberações judiciais sobre matérias afeitas à problemática da
reforma política embutem, entre outros, um grande risco: o da politi-
zação da justiça. Como largamente sabido, normas e instituições polí-
tico-eleitorais e político-partidárias não são neutras nem indiferentes
aos resultados da competição política. Pelo contrário, têm o condão
de afetar as decisões estratégicas dos diversos atores políticos, a saber:
cidadãos-eleitores, cidadãos-candidatos, partidos, coalizões eleitorais
e coalizões parlamentares, enfim e no limite, têm o condão de afetar
resultados da competição política.
6. Nestes tempos de judicialização da política e de conseqüente
politização da justiça, convém refletir sobre as palavras de J. J. Gomes
Canotilho (2003, p. 57), para quem, “os juristas, quando discutem uma
questão, ou são amigos do legislador, ou são amigos dos juízes, ou são
amigos do Executivo”. “Eu sou, em princípio,”, diz o constitucionalista
português, “amigo do legislador, porque nele identifico a democracia,
identifico o agente conflitual e transformador”, ponderando que “isso
hoje tem relativizações”, “como vocês (os brasileiros) podem ver pela
vossa prática e nós também vemos pela prática portuguesa”. Mesmo
assim, alerta: “Se me perguntarem se o lugar do conflito é ainda ou
também o Parlamento, são ainda os esquemas normativos, eu continuo
a dizer que sim. Não para marginalizar o Executivo, não para subalter-
nizar o Judiciário, mas porque acredito que a política é uma dimensão
importante em qualquer projeto”.
7. Em suma, pela articulação entre democracia política, Estado
do bem-estar e desenvolvimento, levada a termo pelos constituintes de
1987/1988, logrou-se, ao “revés do que dizem os seus inimigos”, a pro-
mulgação da “melhor das Constituição brasileiras de todas as nossas
épocas constitucionais” (BONAVIDES, 2001, p. 204). Emendada muitas
vezes, conserva em grande medida, todavia, o espírito que lhe foi atri-
buído pelo constituinte originário. Necessita de mais cumprimento!

Referências

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O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 91

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Teoria da separação
dos poderes
A literatura atual da ciência política
íítica e sua
aplicação aos níveis
ííveis subnacionais de governo

Elder Gurgel Filho


Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará.
Pós-graduando em Ciência Política pela Universidade de Brasília.
94 Teoria da separação dos poderes: A literatura atual da ciência
política e sua aplicação aos níveis subnacionais de governo

Foi o pensamento político do século XVII e XVIII que agregou a


teoria da separação de poderes às funções básicas do Estado, atribui-
ções relacionadas à instituição ou órgão independente e autônomo que
levasse a cabo as referidas funções.
Concepção clássica da teoria da separação dos poderes Executi-
vo e Legislativo tem seu fundamento na modernidade. Onde a clássica
atribuição “Legislativo é para criar lei (legislar) e Executivo para cum-
prir as leis (executar)” se baseia nos argumentos de Locke, Montes-
quieu e dos federalistas americanos: Hamilton, Madison e Jay.

1. A contribuição dos pensadores clássicos, O


Federalista e Max Weber à teoria da separação
dos poderes

John Locke, no Segundo Tratado Sobre o Governo, declarou e


defendeu a distinção entre os poderes: o Poder Legislativo tem o direi-
to de estabelecer as leis para a preservação da comunidade e de seus
interesses; o Poder Executivo executa as leis elaboradas. A separação
dos poderes, além de uma divisão de atribuições e funções de gover-
no, mostra que os fundamentos do Poder Legislativo, sua gênese per-
mitiria a representação da vontade dos súditos, enquanto os fatores
constituidores do Poder Executivo limitariam essa representação e a
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 95

proteção da vontade e necessidade da sociedade.


A igualdade pressupõe independência, pois, “tudo quanto é
igual deve ter a mesma medida”, inclusive de poder. Nenhum Poder
deve ter maior poder que o outro, suas atribuições devem ser respeita-
das, e funções separadas.
O Poder Legislativo tem seus limites, não pode prejudicar o in-
teresse do povo. Para Locke, o Legislativo, em última instância, repre-
senta o poder soberano do povo. O consentimento para criar leis é da
assembléia que legisla, ou seja, o Poder Legislativo representante dos
interesses do povo. Permitir que outro Poder tenha as mesmas atribui-
ções e funções de legislar e representar a sociedade representaria para
Locke a subversão e o fim do governo. Dessa forma, “O Legislativo não
deve nem pode transferir o poder de elaborar leis a quem quer que seja
ou depositá-lo em quaisquer outras mãos, senão naquelas em que o
povo o depositou”. (LOCKE, 1998, p. 514).
A elaboração das leis, que é o benefício para a vontade popular,
deve estar dissociada da execução, pois o Poder Executivo não teria a
capacidade de limitar-se ao bem público. Não teria o poder de preser-
vação dos direitos dos súditos, nem de representar suas vontades.

[...] o poder legislativo é depositado nas mãos de diver-


sas pessoas que, devidamente reunidas em assembléia,
têm em si mesmas, ou conjuntamente com outras, o
poder de elaborar leis [...] é necessário haver um poder
permanente, que cuide da execução das leis que são ela-
boradas e permanecem vigentes. E assim acontece, mui-
tas vezes, que sejam separados os poderes legislativo e
executivo. (LOCKE, 1998, p. 515).

Para Montesquieu em sua obra O Espírito das Leis, existem três


tipos de funções no Estado, a legislativa, a executiva e a judiciária.
Existe uma clara divisão de atribuição entre os Poderes Executivo e Le-
gislativo. A separação dos poderes se dá não de maneira a garantir que
o mais capaz realize a função para a qual esteja preparado, e sim para
assegurar a existências de freios e contrapesos entre os grupos sociais
com poder político, mecanismo que refletiria entre os poderes Execu-
tivo e Legislativo. Conforme Montesquieu (1996, p. 167) “Existem em
96 Teoria da separação dos poderes: A literatura atual da ciência
política e sua aplicação aos níveis subnacionais de governo

cada Estado três tipos de poder: o poder legislativo, o poder executivo


das coisas que dependem do direito das gentes e o poder executivo
daquelas que dependem do direito civil”.
A separação de poderes em Montesquieu, onde o Legislativo tem
que cumprir sua função de criar leis e o Executivo de fazer cumprir e
executar as leis, não se resume à capacidade institucional de realizar
suas atribuições. A separação dos poderes visa a assegurar a liberdade
e evitar a tirania, ameaça que o autor presenciava em vários momentos
da história antiga. Para Moraes (2001, p. 38) “A teoria de Montesquieu
teve na liberdade política do cidadão o seu grande fundamento [...]
para que se tenha liberdade, cumpre que o governo seja de tal modo
que um cidadão não possa temer o seu semelhante”.

Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de ma-


gistratura, o poder legislativo está reunido ao poder
executivo, não existe liberdade: porque se pode temer
que o mesmo monarca ou mesmo senado crie leis tirâ-
nicas para executá-las tiranicamente. (MONTESQUIEU,
1996, p. 168).

Na constituição de um sistema político para os Estados mo-


dernos precisava-se de um mecanismo de controles mútuos entre as
funções públicas, instituições de governo e representação do povo. A
construção do pensamento do autor identifica o risco do poder político
se concentrar em um grupo específico, assim como, das atribuições e
funções de Estado se concentrarem na mesma pessoa jurídica e políti-
ca, o que levaria à concentração de poder e à tirania, mal que o Estado
moderno se propõe extinguir.
A separação de poderes é uma tentativa de equilibrar os interes-
ses divergentes dos grupos políticos societários, dos diferentes repre-
sentantes e evitar o poder absoluto. O Poder Legislativo teria o direito
de examinar de que maneira as leis que criou estariam sendo executa-
das, ou seja, fiscalizaria os atos do Executivo. O Poder Executivo não
participaria dos debates sobre as necessidades e vontades dos repre-
sentados, não poderia propor, pois poderia ser contrário à assuntos
que não conhece, principalmente os que expressam à vontade da so-
ciedade. Em última instância, a separação dos poderes busca garantir
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 97

a liberdade entre as funções dos Poderes e a liberdade do povo e sua


vontade.
Montesquieu emprega a teoria da separação dos poderes como
mecanismo de salvaguarda da liberdade e de conciliação entre forças
sociais em conflito. Quando as funções de governo são atribuídas a
diferentes grupos sociais, o exercício do poder não se torna uma prer-
rogativa única de qualquer um deles; isso provoca a colaboração entre
eles, o que melhora a convivência e preserva a liberdade.
Os americanos: Hamilton, Madison e Jay, autores dos artigos e
ensaios publicados na imprensa como O Federalista, são os principais
pensadores do processo de fundamentação constitucional do Estado
americano. Destacam a idéia de que a separação de poderes enquanto
princípio político seria essencial para garantir a liberdade, e que os
poderes institucionais deveriam ser distribuídos de forma a assegurar
que as funções de um Poder não venham ser invadidas e desrespeita-
das pela atribuição de outro Poder.
Madison sustenta a idéia de que o poder surge do povo e inova
afirmando que aqueles a quem é dado o poder devem sempre depen-
der do povo, seja pela curta duração dos mandatos, seja pelas constan-
tes eleições. Defendia a descentralização do poder público em várias
instâncias institucionais e órgãos de poder e maior número de deposi-
tários desse poder.

No governo republicano predomina necessariamente


a autoridade legislativa. A solução para este inconve-
niente está em repartir essa autoridade entre diferentes
ramos e torná-los [...] tão pouco interligados quanto o
permitir a natureza comum partilhada por suas fun-
ções e dependência em relação à sociedade. Talvez seja
até necessárias precauções adicionais contra perigosas
usurpações. Como a importância da autoridade legis-
lativa conduz a tal repartição, a fraqueza do executivo,
por sua vez, pode exigir que ele seja reforçado. (MADI-
SON, apud LIMONGI , 2002, p. 274).

O tema central de O Federalista é o estabelecimento de controles


bem definidos sobre os mandatários nos diferentes ramos do poder,
98 Teoria da separação dos poderes: A literatura atual da ciência
política e sua aplicação aos níveis subnacionais de governo

controles estabelecidos e impostos. A natureza humana é má, os ho-


mens são ambiciosos e vingativos, daí a necessidade de controlar os
detentores do poder. Segundo Limongi (2002, p. 249) “As estruturas in-
ternas do governo devem ser estabelecidas de tal forma que funcionem
como uma defesa contra a tendência natural de que o poder venha a se
tornar arbitrário e tirânico”.
Dada a tendência do homem a abusar do poder quando o tem
nas mãos, faz-se necessária a limitação do poder através da sua contra-
posição a outro poder, em um sistema de controles mútuos.

Todavia, a grande segurança contra uma gradual con-


centração de vários poderes no mesmo ramo do governo
consiste em dar aos que administram cada um deles os
necessários meios constitucionais e motivações pessoais
para que resistam às intromissões dos outros. (MADI-
SON apud LIMONGI, 2002, p. 273).

A teoria da separação dos poderes teve seus princípios justifica-


dos como uma maneira de evitar a tirania da concentração dos pode-
res em uma única mão. A preocupação central dos constitucionalistas
americanos é a formatação de uma legislação moderna que forneça os
meios para a coordenação dos conflitos e choques dos diferentes inte-
resses dos grupos sociais e ramos institucionais do poder público.

[...] a aplicação deste princípio encontra-se construída


a partir das medidas constitucionais, garantias a auto-
nomia dos diferentes ramos do poder, posto em relação
um com os outros para que possam se controlar e frear
mutuamente. (LIMONGI, 2002, p. 251).

A adoção do princípio da separação dos poderes justifica-se como


uma forma de se evitar a tirania, onde todos os poderes se concentram
nas mesmas mãos. Os diferentes ramos do poder precisam ser dotados
de força suficiente para resistir às ameaças uns dos outros, garantindo
que cada um se mantenha dentro dos limites fixados constitucional-
mente. (LIMONGI, 2002, p. 251).
Uma das maneiras de se frear o poder Legislativo consiste em
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 99

criar limites institucionais internos ao seu próprio poder, como tam-


bém, o reforço institucional dos outros poderes aumentando suas
atribuições e autonomia. A teoria da separação dos poderes de Mon-
tesquieu foi reinterpretada pelos Federalistas, assumindo a forma de
teoria dos freios e contrapesos, ou doutrina do controle mútuo, a partir
de Madison.
No entanto, um equilíbrio perfeito entre estas forças
opostas, [...] não encontram lugar em um governo. Para
cada forma de governo, haverá um poder necessaria-
mente mais forte, de onde partem as maiores ameaças à
liberdade. [...] para as repúblicas, o legislativo se cons-
titui na maior ameaça a liberdade, já que é a origem de
todos os poderes e, em tese, pode alterar as leis que re-
gem o comportamento dos outros ramos do poder. Daí
porque sejam necessárias medidas adicionais para frear
o seu poder. (LIMONGI, 2002, p. 251).

Para que os poderes sejam autônomos, eles devem “ser de tal


maneira constituídos que os membros de um tenham a menor ingerên-
cia possível na escolha dos membros dos outros” (MADISON, apud
LIMONGI, 2002, p. 272). O sistema eleitoral não pode reforçar unila-
teralmente a nenhum ramo do poder específico. Seu formato eleitoral
não pode fazer com que os que concorrem aos cargos representativos
proporcionais, como os de deputados federais, estaduais e vereadores,
dependam da ajuda ou intervenção direta do Poder Executivo para se
elegerem.
Desta forma, a teoria da separação dos poderes marca as cartas
constitucionais dos Estados contemporâneos e tem função primordial
para sua formação. Esta teoria tem categoria e princípio constitucional,
tendo-se tornado um dos fundamentos característicos da estrutura or-
ganizativa do Estado moderno. Como afirma Moraes (2001, p. 38) a
teoria da separação de poderes “sustenta toda a doutrina do Estado
Liberal”.
Max Weber (1993) no seu clássico estudo sobre o Parlamento e
Governo na Alemanha Reordenada: críticaíítica políítica da burocracia e da
natureza dos partidos analisando o funcionamento do Parlamento ale-
mão e sua relação como o Governo na época de Bismarck, afirma que
100 Teoria da separação dos poderes: A literatura atual da ciência
política e sua aplicação aos níveis subnacionais de governo

um Legislativo mantido com o intuito de legitimar o regime não deixa


a seus membros outras opções que não a prática do clientelismo e fi-
siologismo pelos parlamentares governistas, e da denúncia e oposição
sistemática e constantes pelos parlamentares da oposição.
Max Weber chama tanto o comportamento governista fisiológico,
quanto a oposição sistemática de “política negativa”, um Legislativo
para construir “política positiva” tem que participar da construção das
políticas de governo, e não homologar ou rejeitar todas as propostas
governamentais sem analisar sua consistência.

O nível de um parlamento depende da condição de que


este não simplesmente debata grandes questões, mas de
que as solucione decisivamente; em outras palavras, sua
qualidade depende da seguinte alternativa: o que ocor-
re no parlamento tem realmente importância ou o parla-
mento não passa de um mal tolerado boi de presépio de
uma burocracia dominante. (WEBER, 1993, p. 15).

Entretanto, na medida em que um parlamento só possa


apoiar as queixas dos cidadãos contra a administração
apenas rejeitando dotações e projetos de lei e apresen-
tando noções descabidas, esse parlamento se exclui de
participação positiva na direção de assuntos políticos.
Esse parlamento só poderá desenvolver uma “política
negativa”, isto é, enfrentar os chefes administrativos
como se o parlamento fosse um poder hostil [...] será
considerado como um simples freio, um conglomerado
de críticas impotentes e sabichões. (WEBER, 1993, p.
30).

O Parlamento alemão estava fundado numa relação de troca de


cargos e patronagem, onde os partidos apoiavam o governo numa in-
teração clientelista e fisiológica, o que enfraquecia o Estado.

[...] querem controlar também a concessão de cargos.


Em primeiro lugar, objetivam colocar seus líderes nos
principais postos políticos. Se obtêm êxito na luta elei-
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 101

toral, os líderes e funcionários podem proporcionar a


seus adeptos cargos estatais seguros durante o período
de preponderância do partido. (WEBER, 1993, p. 21).

Alem de representar os interesses econômicos locais e


eleitores influentes, a concessão de cargos subalternos
torna-se o principal interesse dos partidos. O choque
entre o Chanceler Bülow e o Partido de Centro (em
1906) não foi motivado por diferenças políticas, mas
essencialmente pela tentativa de o chanceler de ab-ro-
gar o direito de concessões de cargos do partido [...] Os
partidos conservadores mantém seu monopólio de car-
gos na Prússia e procuram atemorizar o monarca com o
espectro de “revolução” sempre que esses benefícios se
encontram em perigo. (WEBER, 1993, p. 31).

Os partidos que se encontram em exclusão permanente


esforçam-se por se compensarem [...] e adotar no parla-
mento, como costumavam fazer os social-democratas,
políticas hostis ao governo ou alienadas ao Estado. Isso
é muito natural, pois todo partido luta pelo poder, isto
é, por uma participação na administração e, conseqüen-
temente, no preenchimento de cargos. (WEBER, 1993,
p. 31).

Weber culpa o Parlamente e essa relação com o governo, pelo atraso do


Estado alemão diante dos outros estados Europeus, que gera a “polí-
tica negativa” do Legislativo e do Governo. Para Weber, o Legislativo
tem que fiscalizar as ações da administração, afirma que “Um parla-
mento ativo entretanto, é um parlamento que supervisiona a adminis-
tração participando continuamente do trabalho deste”. (WEBER, 1993,
p. 38).

2. O Poder Legislativo e o dilema


da Abdicação ou Delegação

Na relação entre os Poderes Executivo e Legislativo, passou a


102 Teoria da separação dos poderes: A literatura atual da ciência
política e sua aplicação aos níveis subnacionais de governo

existir um redimensionamento das funções de cada poder que é per-


cebido quando o Executivo obtém a iniciativa de legislar e a exclusivi-
dade de algumas áreas. Esse processo provoca o debate DELEGAÇÃO
versus ABDICAÇÃO de poderes, discussão ligada diretamente à teoria
da separação dos poderes, e a criação de mecanismos de freios e con-
trapesos entre a relação Executivo e Legislativo.
A partir dessa discussão pode-se compreender como tem-se
dado à relação entre Prefeitos e Governadores e as Câmaras Munici-
pais e Assembléias Legislativas, creio que uma relação de cooperação
que garante governabilidade e estabilidade, a partir da disciplina e ho-
mogeneidade da coalizão de governo.
Os vereadores e deputados estaduais têm DELEGADO certa au-
tonomia de legislar sobre matérias de políticas públicas importantes
aos prefeitos e governadores, e não estão ABDICANDO ao seu poder
legal e regimental de legislar, mas cooperam com a iniciativa legisla-
tiva sobre determinadas áreas para garantir rapidez e maior governa-
bilidade aos Executivos municipal e estadual. Constata-se essa coope-
ração das Câmaras Municipais e Assembléias Legislativas à política
de governo e a delegação para o Prefeito e Governador construirem
uma legislação de política pública. Na atualidade, se faz necessário
uma ação governamental rápida, e uma atuação eficaz para resolver
os problemas complexos das grandes metrópoles e centros urbanos do
país. Por isso, os Poderes governamentais municipais e estaduais assu-
miram novas atribuições para dar maior agilidade e rapidez, evitando
discussões políticas intermináveis e paralisia de governo.
Grohmann aborda critérios para definir a diferença entre DE-
LEGAR e ABDICAR1. Usaremos esses critérios para compreender o
relacionamento entre os poderes Executivo e Legislativo municipal e
estadual, definindo se a relação entre os poderes é de ABDICAÇÃO ou
de DELEGAÇÃO.
Como afirmam Figueiredo e Limongi (1999, p. 127) existe o prin-

1 GROHMANN afirma que; “Na delegação o poder outorgado pode ser recu-
perado, e as condições e os padrões normativos da relação entre Executivo e o Legisla-
tivo são estabelecidos por este ultimo.” (GROHMANN, 2001, p. 119).
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 103

cípio da separação dos poderes, porém “partindo do pressuposto de


que o ato de governar requer a cooperação entre os dois poderes”.
É aí que as Câmaras Municipais e as Assembléias Legislativas
tem que avaliar as vantagens de delegar a iniciativa de certas propostas
legislativas ao Executivo municipal e estadual e aprovar suas matérias.
A delegação com a aprovação da legislação de políticas públicas não
pode ser vista como perda de poder legal do Legislativo para o Execu-
tivo, pois os Legislativos podem voltar atrás e recuperar a delegação
dada e reavaliar a cooperação, pois os padrões legais e normativos são
determinados, em última instância pelas casas legisladoras. Pensando
a delegação entre os Poderes no nível estadual, Grohmann afirma:

A delegação deve deter-se à capacidade de garantir o


maior ganho possível na realização dos objetivos que a
motivaram. A eficácia da delegação [...] depende de sua
capacidade de controlar o uso da prerrogativa por parte
do Executivo. (GROHMANN, 2001, p. 127).

Se as Câmaras Municipais e Assembléias Legislativas enquanto


Poder Legislativo fossem mais independentes do Executivo nas suas
atribuições, sendo mais autônomas nas suas decisões correríamos o
risco de um enfrentamento entre as preferências políticas contrárias
dos dois poderes, o que poderia levar à paralisia de governo. Quanto
mais equiparados e iguais em força de decisão, maior o risco de insta-
bilidade e de um bloqueio institucional e administrativo nos municí-
pios e nos estados.
Para alguns teóricos, para que exista um governo eficiente que
implemente decisões políticas e administrativas eficazes é necessário
que um dos poderes seja mais forte em relação ao outro, fazendo valer
suas preferências para que o governo decorra sem problemas. Essa re-
lação desigual de força salvaria o sistema democrático, pois livraria o
país da crise de ingovernabilidade.
Outra visão teórica acredita na igualdade de forças e na criação
de freios e contrapesos entre os poderes. Não existiria um poder que
interferisse nas decisões do outro e impusesse como prioritária sua
própria agenda. Estaria resguardada a autonomia de cada poder e com
isso mantido a democracia e os interesses dos representantes.
104 Teoria da separação dos poderes: A literatura atual da ciência
política e sua aplicação aos níveis subnacionais de governo

Fernando Abrucio (1998a), na sua obra Os Barões da Federação:


os governadores e a redemocratização brasileira argumenta que, em
geral, as Assembléias Legislativas estaduais no Brasil são instituições
frágeis e dominadas por um ator predominante, o Poder Executivo,
na figura do governador. Para Abrucio, estaria ocorrendo nos estados
o “ultrapresidencialismo estadual”. O ultrapresidencialismo é carac-
terizado pelo fato dos governadores serem o centro incontestável no
processo de governo, através de controle dos outros poderes e da dinâ-
mica da política estadual.

O ultrapresidencialismo estadual brasileiro tinha uma


característica básica: o Poder Executivo, e mais especi-
ficamente o governador, era um centro político incon-
trastável no processo de governo, por meio de contro-
le de outros Poderes e de toda a dinâmica da política
estadual. O Poder Executivo tornava-se hipertrofiado,
praticamente eliminando o princípio constitucional da
separação e independência entre os Poderes. (ABRU-
CIO, 1998a, p. 111)

Para obter essa força, o governo estadual tinha de agir


de duas maneiras. O governador deveria, em primeiro
lugar, eliminar a possibilidade de o Legislativo e de o
Judiciário controlarem institucionalmente o Executivo.
Destruiria-se assim o princípio dos checks and balances,
pedra angular do sistema presidencialista. Para atingir
tal objetivo, o governador teria de neutralizar a prática
fiscalizadora da Assembléia Legislativa e sobretudo dos
órgãos fiscalizadores – Tribunal de Contas e Ministério
Público -, tornando-os aliados do governador, e não fis-
calizadores de seus atos. (ABRUCIO, 1998a, p. 111).
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 105

Mas para implantar o ultrapresidencialismo com todo


esse vigor, o governador precisava obter ampla maioria
na Assembléia Legislativa, tanto para eliminar sua fun-
ção de checks and balances, como para controlar ampla-
mente o processo decisório. (ABRUCIO , 1998a, p. 111).

Existiria uma espécie de “pacto homologatório”2 entre o Gover-


nador e deputados estaduais, onde os parlamentares aprovariam as
iniciativas do Governador sem maiores discussões, se obtivessem con-
cessões e distribuição de recursos clientelistas.
Para Cláudio Gonçalves Couto (1991) em seu trabalho A homo-
logação das iniciativas legislativas de interesse do executivo – um
aspecto central das relações entre os poderes executivo e legislativo
no Brasil, o pacto homologatório ou a coalizão fisiológica de governo,
como ele vai denominar no seu próximo trabalho, afeta as funções clás-
sicas do Poder Legislativo. Este “abriu mão”, termo usado por Couto
para caracterizar a “abdicação”, de poder de legislar em função do Po-
der Executivo. Para ele o pacto impede os parlamentares de legislar
eficazmente, ou seja, elaborar políticas de governo que garanta a repre-
sentação e representatividade total da população, pois abriram mão
para garantir demandas; como também impede o Poder legislativo de
fiscalizar as ações do Executivo, deixando inteiramente a cargo desse
as funções soberanas de governo e de representação do interesse pú-
blico da sociedade.

Ao formar uma base parlamentar homologatória, o Exe-


cutivo busca estabelecer uma maioria confortável, pelo
menos maioria absoluta (50% mais um dos membros da
casa), de modo a que esta possa atuar enquanto “rolo
compressor”, isto é, aprovando qualquer matéria sem
que maiores dificuldades possam ser criadas pela opo-

2 Categoria elaborada por COUTO (1991) e utilizada para embasar a tese do


ultrapresidencialismo.
106 Teoria da separação dos poderes: A literatura atual da ciência
política e sua aplicação aos níveis subnacionais de governo

sição. (COUTO, 1991, p. 13)

Feita a troca, os parlamentares facilitam, a atuação do


Executivo, que embora até mesmo possa governar sem
o apoio do Legislativo, tal a concentração de poder de
que dispõe o Chefe de Governo, tem sua tarefa bastante
facilitada ao estabelecer o pacto homologatório. (COU-
TO, 1991, p. 06)

Couto defende a tese de que o Legislativo abdicou de suas fun-


ções clássicas ao Executivo em detrimento de cargos estatais e recursos
financeiros clientelista. Para Couto, o pacto homologatório decorre de
dados estruturais. Em primeiro lugar, está “a cultura política hegemô-
nica, que privilegia o fisiologismo e o clientelismo, fazendo com que
essas regras sejam prezadas pelos agentes”. Em segundo lugar, vêm as
“condições estruturais que favorecem o jogo fisiológico-clientelístico,
e que se relaciona com o grande poder de que dispõe o Executivo e o
funcionamento das Casas Legislativas.”

Atendo-se ao papel de homologar as iniciativas legis-


lativas de interesse do Executivo em troca de recursos
(clientelísticos ou não), os parlamentares deixam de atu-
ar enquanto representantes, uma vez que aquele Poder
passa a apropriar-se de suas prerrogativas. O poder le-
gislativo (aqui me refiro ao poder de legislar) acaba sen-
do apropriado pelo Executivo. Os parlamentares abrem
mão desta prerrogativa para atender às demandas de
sua clientela – tornando-se despachantes destas e não
representantes da população – ou para maximizar os
seus próprios interesses particulares. (COUTO, 1991, p.
20). [Grifo do autor, o negrito meu].

[...] a prática fisiológica-clientelista operante através do


pacto homologatório é prejudicial ao bem público. E
mais, uma vez que o Legislativo abre mão de suas fun-
ções clássicas, podemos dizer que pacto homologatório
tem um efeito perverso sobre o funcionamento do Poder
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 107

Legislativo.” (COUTO, 1991, p. 31). [O negrito meu].

No estudo do professor Valmir Lopes (2003), Poder local e re-


presentação política:
íítica: Estudo sobre os vereadores comunitários e
institucionais em Fortaleza, análise sobre os padrões modernos dos
vereadores municipais, fica claro que devido os fatores que levaram
ao surgimento do “vereador institucional” e a sua própria natureza,
afetam diretamente a relação entre os poderes municipais. O Poder
Legislativo municipal perde poder local e autonomia de fiscalizar o
Executivo, pois o vereador institucional tem ligações estreitas com a
administração e o projeto de política governamental do Poder Executi-
vo. A relação moderna entre os Poderes Legislativo e Executivo muni-
cipais é marcada pela pouca autonomia do legislativo.
Para o autor, o fortalecimento do município como unidade de go-
verno nasce com a Constituição de 1998, e a transferência de recursos
financeiros para os municípios. Como também a reforma do Estado,
que modernizou os procedimentos públicos, aumentou a força local
do Poder Executivo. Para Lopes (2003), todos esses fatores de moderni-
zação institucional contribuíram para fortalecer o poder do Prefeito.

A marca da política desenvolvida pelos vereadores é


do clientelismo. O Governo municipal não é constitu-
ído sobre base partidária, mas na troca de favores dos
representantes do Executivo em relação aos membros
do Legislativo. Este tipo de relacionamento é explica-
do pela natureza do Poder Legislativo, o que explica a
necessidade de alinhamento de um vereador constan-
temente em relação aos interesses do Poder Executivo,
abdicando na maior parte das vezes de cumprir sua fun-
ção de fiscalizador do Poder Executivo. (LOPES, 2003, p.
305) [Negrito meu].

Essa afirmação se refere a uma relação entre os poderes onde


o modelo representativo do “vereador tradicional” se mantém ainda
como predominante no parlamento municipal. Onde a natureza da re-
presentação e do voto ainda é em proporção clientelista e fisiológica
para com a base eleitoral e social.
108 Teoria da separação dos poderes: A literatura atual da ciência
política e sua aplicação aos níveis subnacionais de governo

Acredito que o poder do vereador com maior depen-


dência da máquina da prefeitura se amplia, pois agora
não se trata mais de um processo de cooptação, ocor-
rido após o pleito, para composição de uma base sus-
tentação parlamentar para o Prefeito. Trata-se então de
assegurar esta dependência e representação direta, já
durante o período eleitoral, com candidatos fortemente
vinculados ao Poder Executivo. A origem do poder do
vereador institucional denota que o Poder Executivo é
hoje detentor de quase todo o poder local, não dando
mais margem para atuação autônoma de vereadores de
feição tradicional e comunitária. A conseqüência mais
imediata para uma representação política constituída na
base de vereadores institucionais é o comprometimento
absoluto da autonomia do Poder Legislativo e a conse-
qüente impossibilidade de cumprir um dos pilares da
divisão do poder, a fiscalização constante dos atos do
Executivo. (LOPES, 2003, p.316).

Fabiano Santos (2003a), em seu estudo sobre O Poder legislati-


vo no presidencialismo de coalizão, faz um consórcio entre a prática
clientelista de cooptação dos legisladores para formação de maioria
parlamentar de governo e os recursos legais e institucionais denomi-
nados de poder de agenda. Descarta uma única estratégia para estabe-
lecer a relação entre os Poderes Legislativo e Executivo.

[...] existem dois recursos básicos mediante os quais


uma coalizão de apoio pode ser formada ou mantida:
utilização estratégica da patronagem e utilização do po-
der de agenda. Em particular, mostrarei que a utiliza-
ção estratégica da patronagem, quando acompanhada
da utilização do poder de agenda fornece colaboração
parlamentar mais segura do que é o caso quando lide-
ranças e presidente utilizam apenas o primeiro desses
recursos. (SANTOS, 2003, p. 64).
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 109

Como a Coalizão Fisiológica de Governo não é suficiente para


garantir estabilidade na relação entre os poderes, uma coalizão pro-
gramática baseada unicamente e exclusivamente em princípios ideoló-
gicos e visão de políticas governamentais também se torna insuficiente
para garantir a governabilidade. Estratégia eficiente seria associar ide-
ologia de programas com a patronagem na formação de coalizão.

Dado o multipartidarismo, é irreal supor que uma coali-


zão possa se sustentar com base única e exclusivamente
na afinidade programática. A coalizão por desejo de con-
trole de cargos, por sua feita, se mantém até o momento
em que o valor dos postos obtidos pela participação na
coalizão presidencial for igual ou superior ao valor es-
perado da obtenção de cargos que derivam da adesão a
outras coalizões potenciais. (SANTOS, 2003, p. 65).

A combinação de ideologia e patronagem define a me-


lhor estratégia para que o presidente forme sua base de
sustentação parlamentar. Melhor dizendo, a utilização
estratégica da patronagem é necessária para completar
a insuficiência da dimensão ideológica. (SANTOS, 2003,
p. 66).

O poder de agenda do presidente e das lideranças par-


tidárias remete à estrutura institucional que organiza o
processo legislativo. [...] a capacidade do Poder Executi-
vo de iniciar e influenciar o processo legislativo. (SAN-
TOS, 2003, p. 67).

Mecanismos de coordenação do processo decisório são introdu-


zidos; a mesa diretora das Câmaras Municipais e Assembléias Legisla-
tivas e os núcleos de elaboração de leis, as chamadas comissões, domi-
nam a tramitação das proposições. Essas instituições e seus elementos
legais são recursos que serão usados em últimas instâncias pelos atores
políticos como os vereadores e deputados. Por isso os legisladores de-
vem estar afinados na sua cooperação com o Executivo, para lhe garan-
tir o uso seguro desses instrumentos legais e regimentais.
110 Teoria da separação dos poderes: A literatura atual da ciência
política e sua aplicação aos níveis subnacionais de governo

Tanto o Congresso Nacional, as Assembléias Legislativas esta-


duais como as Câmaras Legislativas Municipais, não configuram em
instâncias de veto à agenda do Executivo. Não se verifica como verda-
deiro, no sistema presidencialista, a hipótese de que todo parlamentar
tem a estratégia dominante de não cooperar com o Executivo. O con-
trole exercido pelo poder Executivo - nos diversos níveis federativos
- sobre iniciativas legislativas, cria incentivos para que os legisladores
apóiem a agenda do governo.

3. A relação Executivo e Legislativo


nos níveis subnacionais

A literatura da ciência política que analisa os poderes Legislati-


vos no nível estadual e municipal, e a relação entre poderes Executivo
e Legislativo no nível subnacional é bastante reduzida. Poucos são os
trabalhos nessas áreas que analisam o nível estadual, estando concen-
trado o maior volume de trabalhos e estudos no nível federal, ou seja,
referente à estruturação do Congresso Nacional e os poderes do Presi-
dente da República.
Um trabalho foi realizado para estudar a organização interna e
produção legal de poderes legislativos estaduais contidos na coletânea
O poder Legislativo nos Estados: diversidade e convergência, organi-
zada por Fabiano Santos (2001). Outro trabalho realizado de análise
das mudanças no processo de governo de diferentes estados e municí-
pios no país presentes na publicação Processo de governo no Municí-
pio e no Estado, organizado por Régis Castro Andrade (1998).
O professor Regis de Castro Andrade organizou uma série de
artigos e trabalhos e fez uma análise dessas pesquisas que constam do
referido livro. O estudo busca compreender as estruturas e práticas do
processo decisório no Legislativo municipal e estadual de São Paulo.
Analisa o processo decisório nas Casas Legislativas do município e do
Estado de São Paulo, a partir das estratégias escolhidas pelos agentes
participantes com o fim de explicar seus padrões. As pesquisas focali-
zaram a questão, tão cara a ciência política, “como se governa”, que diz
respeito à teoria dos sistemas de governo, a qual pertence o tema das
relações entre os poderes no processo de governo.
Cláudio Gonçalves Couto em Negociação, Decisão e Governo:
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 111

padrões interativos na relação executivo-legislativo e o caso paulis-


tano, trata do conceito de governo como função do sistema político
e pontua os padrões de interação entre os Poderes Executivo e o Le-
gislativo, principais instituições no processo governativo. Também
compara e avalia padrões tradicionais de interação, como a coalizão
fisiológica de governo e os padrões de interação de negociação pon-
tual no governo municipal de São Paulo de Luiza Erundina. A estra-
tégia de formar maioria escolhida pela ex-prefeita da capital paulista
não lhe garantiu estabilidade para governar, sendo necessário que o
Executivo Municipal optasse pela estratégia de interação denominada
“Barganha Alocativa” (BA) e, em determinadas matérias, ocorreram
“Negociações Pontuais” (NP) com vereadores da oposição, a fim de
fazer aprovar matérias de relevância para o Executivo.
Apesar disso, no governo Luiza Erundina, foi desfeito o padrão
governativo patrimonial na relação entre os Poderes, fundamento da
tradição política brasileira. Cláudio Couto afirma que:

A contribuição imediata representada por essa ruptura


para consecução do bem público numa gestão governa-
mental se manifestou nos sucessos obtidos [...] se que
houvesse como característica distintiva do processo
de negociação a presença de práticas fisiológicas e/ou
clientelistas. (COUTO, 1998, p. 68).

Para Cláudio Couto existem padrões de interação entre os po-


deres Legislativo e Executivo. A estratégia de relação pode ser coope-
rativa ou conflitiva. A modalidade: coalizão ou negociação pontual. A
moeda de troca poderá ser programática ou fisiológica.
Com a Coalizão Fisiológica de Governo, o Executivo
obtém apoio dos parlamentares independentemente do
conteúdo das políticas que são aprovadas por estes, o
que implica uma abdicação da capacidade propositiva
do Parlamento. (COUTO, 1998, p. 48).

[...] o Executivo obtém apoio dos parlamentares inde-


pendentemente do conteúdo das políticas que são apro-
vadas por estes, o que implica na abdicação da capacida-
112 Teoria da separação dos poderes: A literatura atual da ciência
política e sua aplicação aos níveis subnacionais de governo

de propositiva do Parlamento. Basta que seja mantida a


transferência de recursos para controle dos legisladores
na forma de loteamento de cargos na máquina governa-
mental ou através de outras formas de transferência de
recursos diretamente para o controle dos legisladores.
Num sentido mais estrito, o que caracteriza o fisiologis-
mo é o fato de que a barganha política ocorre através da
transferência de recursos diretamente para controle dos
legisladores, ao passo que o clientelismo se baseia na
transferência de recursos do Estado para base político-
eleitoral dos parlamentares. (COUTO, 1998, p. 48).

No caso da Coalizão Programática de Governo (CPG),


a formação de uma bancada de sustentação do Execu-
tivo no Parlamento se dá com base na costura de um
programa comumente aceito, de cuja conformação os
parlamentares participaram. Presume-se assim que as
iniciativas legislativas de interesse do Executivo sejam
coerentes com esse programa, o que torna sua aprova-
ção regular uma decorrência normal, não-fortuita, da
coalizão estabelecida. (COUTO, 1998, p. 47).

A governabilidade do sistema político municipal normalmente


é construída de modo a que o padrão interativo propicie estabilidade
decisória. Um sistema político no qual o Executivo alcança maioria dos
legisladores fundada na Coalizão Fisiológica de Governo, ação que se
mostra mais apta a produzir decisões de governo e apresentar decisões
governamentais.

No caso de coalizões, em que o Executivo logra obter


uma bancada estável de sustentação no Parlamento,
aquele Poder costura junto aos parlamentares um acor-
do que garante, por parte destes últimos, apoio perene
às iniciativas legislativas de seu interesse ao longo da
legislatura e/ou mandato do chefe de governo. (COU-
TO, 1998, p. 46).
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 113

É bem verdade que a apropriação fisiológica da maqui-


na pública presta-se à atuação clientelista desse mesmo
parlamentar num segundo momento, afinal, a partir
do instante em que dispõe do controle de uma agência
governamental qualquer, o parlamentar ganha maiores
forças para estabelecer um relacionamento clientelista
com sua base eleitoral, utilizando diretamente dos re-
cursos públicos que controla. (COUTO, 1998, p. 49).

Para Couto, o caráter e padrão interativo entre os Poderes é es-


tabelecido e fundamentado tradicionalmente na política brasileira via
Coalizão Fisiológica de Governo, com o Legislativo abdicando da sua
capacidade propositiva, ou melhor, abdicando de sua disposição de
criar legislação relevante, em detrimento das iniciativas legislativas do
Executivo. Não existe relação cooperativa entre Poderes onde a intera-
ção é somente fisiológica e clientelista.

Porém, se com a nova mecânica institucional o Legislati-


vo obteve poder, não ganhou responsabilidade na mes-
ma proporção. O arcabouço institucional vigente não é
propício a uma atuação responsável dos parlamentares
com respeito ao processo governativo, pois não pro-
porciona incentivos a uma prática cooperativa entre os
Poderes e nem à preocupação com as dimensões repu-
blicana e técnica da ação governamental. A fragilidade
organizacional dos partidos associada à externalidade
dos Poderes contribui para uma atuação atomizada dos
legisladores, orientada sobretudo para o atendimento
de demandas localizadas e particulares de suas bases
político-eleitorais, desvinculando a função de represen-
tantes mais imediatos dessas bases (brokers) daquela de
co-governantes. Essa ação, orientada por uma raciona-
lidade pautada quase que só por critérios individuais
conduz tanto à pulverização das bancadas parlamenta-
res como à sua volatilidade. (COUTO – 59, 1998) [grifo
meu].
114 Teoria da separação dos poderes: A literatura atual da ciência
política e sua aplicação aos níveis subnacionais de governo

O estudo de Eliana Marcondes Pralon e Gabriela Nunes Ferreira,


a Centralidade da câmara municipal de São Paulo no processo decisó-
rio, analisa as razões de natureza estrutural e conjuntural pelas quais a
Câmara Municipal de vereadores tem uma função primordial no mu-
nicípio de São Paulo.
Para as autoras, a Câmara de vereadores exerce centralidade no
sistema político municipal, desempenhando um papel fundamental
no processo decisório. Entretanto, existem fatores que colocam o Le-
gislativo em posição de destaque no sistema político, enquanto outros
fatores estabelecem a dependência do Legislativo em relação ao Exe-
cutivo municipal.
A tese central é que a opção estratégica do Executivo municipal
no inicio do governo, quanto à maneira de relacionamento com a Câ-
mara Municipal, determina o grau de autonomia ou dependência que
o Legislativo terá diante do Prefeito. O Prefeito, ao construir maioria
parlamentar através de coalizão fisiológica de governo, determinará se
o Legislativo será dependente ou não de sua agenda de governo.

Na tentativa de criar condições de governabilidade, o


prefeito parece recorrer mais freqüentemente a duas es-
tratégias: poderá optar pela construção de uma maioria
estável através da distribuição de cargos e/ou recursos
clientelistas, o que denominamos aqui “coalizão fisio-
lógica de governo”; ou negociar pontualmente projetos
de seu interesse, oferecendo aos parlamentares algumas
vantagens, como, por exemplo, a liberação de recursos
para suas bases eleitorais. (PRALON e FERREIRA, 1998,
p. 76).

O trabalho de Fernando Luiz Abrucio, O ultrapresidencialismo


estadual, estuda a conjuntura de fatores que demonstram a hipertrofia
do Poder Executivo nos estados, abordando a relação do Executivo es-
tadual com a União no federalismo brasileiro, bem como os padrões de
relação entre os governos estaduais e os municípios. O autor defende
que nos estados e municípios não existe eqüipotência entre os poderes,
e sim uma concentração de poder no Executivo, o que denominou de
ultrapresidencialismo. Existiria uma preponderância do Executivo em
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 115

relação ao Legislativo.

Mas, para implantar o ultrapresidencialismo com todo


o seu vigor, o governador precisava obter uma ampla e
sólida maioria na Assembléia Legislativa, tanto para eli-
minar sua função de checks and balances como para deter
um controle amplo do processo decisório. (ABRUCIO,
1998, p. 88)

O mais importante para o Executivo estadual era ter um


controle rígido sobre a Assembléia Legislativa. Primeiro
para neutralizar seu poder de fiscalização e controle dos
atos dos atos do Poder público estadual. [...] Para com-
pletar o quadro do ultra presidencialista, o Executivo
estadual limitava o papel do Legislativo dentro do pro-
cesso decisório. Nos casos das Assembléias Legislativas,
praticamente apenas referendavam as políticas elabora-
das pelo Executivo. (ABRUCIO, 1998, p. 89)

Para Abrucio, o Poder Legislativo é uma instituição homologató-


ria da agenda do Executivo, que exerce poder sobre o primeiro. Apesar
de o sistema presidencialista de governo vigorar nos três níveis de go-
verno da Federação brasileira, o nível estadual e municipal não desen-
volveram uma relação eqüipotente entre poderes, como também não o
plano federal. Nos municípios não existiria igualdade de poderes entre
as instituições de governo, se configuraria um Executivo legalmente
poderoso em detrimento de um Legislativo que é apenas um locus de
decisões terminativas.
O artigo de Valeriano Mendes Ferreira Costa e Carlos Thadeu
de Oliveira, “
“A fraqueza da Assemblééia Legislativa do Estado de São
Paulo” analisa o processo de inserção do MDB/PMDB no Estado de
Paulo”,
São Paulo. Seus autores estudam os instrumentos institucionais e po-
líticos usados pelo Poder Executivo na sua relação com o Poder Legis-
lativo estadual. Analisam também os fatores e estruturas internas da
Assembléia Legislativa que contribuem para sua dependência em face
do Executivo.
Obra organizada por Fabiano Santos (2001), O Poder Legislativo
116 Teoria da separação dos poderes: A literatura atual da ciência
política e sua aplicação aos níveis subnacionais de governo

nos Estados: diversidade e convergência, resulta de um esforço cole-


tivo para traçar um panorama completo das regras constitucionais e
regimentais que regulam as relações entre os dois Poderes e a organi-
zação interna do Legislativo em alguns estados brasileiros.
Os trabalhos demonstram que existe convergência sobre os po-
deres constitucionais dos Executivos estaduais e divergência nas for-
mas de organização legislativa. Com exceção do poder de editar me-
didas provisórias, os governadores dispõem de poderes legislativos
semelhantes aos do Executivo federal e instrumentos de definição de
agenda. As formas internas de organização legislativa mostram maior
variação, gerando organizações mais ou menos centralizadas de pro-
cesso decisório.
O resultado é que existe convergência nos Executivos estaduais,
na capacidade de aprovação de suas agendas legislativas. O sucesso do
Executivo é o padrão mais corriqueiro, mas a maneira pela qual este
domina a produção legal varia e apresenta padrões diferentes.
Para os autores, o papel do Poder Legislativo estadual é expres-
sivo no conjunto da produção legal em quatro dos seis estados. Existe
preponderância do Legislativo em Minas Gerais e no Rio de Janeiro,
mas os Legislativos nos estados de São Paulo e no Espírito Santo de-
monstram fraqueza e papel homologatório. Nos estados do Rio Gran-
de do Sul e do Ceará onde os governos obtêm maioria legislativa está-
vel, o executivo domina a produção legal. Os autores Filomeno Moraes
e Gustavo Grohmann destacam a importância e a natureza sempre
emergencial da agenda legislativa dos Executivos estaduais, centrada
em questões fiscal e financeira.
Os autores Fernando Abrucio, Marcos Antonio Carvalho e Vale-
riano Mendes (2001), ao analisarem O papel institucional da assem-
bléia
ééia Legislativa paulista, e o autor Mauro Petersen Domingues ao
analisar Espírito
íírito Santo: produção legal e relação entre os poderes Exe-
cutivo e Legislativo entre 1995 e 1998, identificaram nos dois casos
exemplos de abdicação de poder e de subserviência do Legislativo ao
Executivo onde maiorias partidárias são formadas por meio de trocas
clientelistas.
Fabiano Santos (2001) no seu estudo A dinâmica legislativa no
Estado do Rio de Janeiro: análise de uma legislatura, e Fátima Anas-
tasia (2001) no seu estudo Transformando o Legislativo: a experiência
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 117

da Assembléiaééia Legislativa de Minas Gerais, concluem que o parla-


mento estadual dos dois estados RJ e MG são instituições políticas au-
tônomas, com grande capacidade de implementar suas preferências
em políticas de governo; entretanto, as Assembléias Legislativas estu-
dadas não colocam obstáculos à aprovação da agenda de governo do
Executivo.
Filomeno Moraes (2001), na sua análise A dinâmica legislati-
va na Assembléia do estado do Ceará: 1995 a 1998 1998, e Luis Gustavo
Melo Grohmann (2001) no seu trabalho O processo legislativo no Rio
Grande do Sul: 1995 a 1998, concluem que são as maiorias partidárias
estáveis, resultado de alianças no período eleitoral, que dão ao Poder
Executivo grande capacidade de governar.

4. A relação Executivo e Legislativo no nível fe-


deral

Argelina Cheibub Figueiredo e Fernando Limongi (1999), anali-


sam a interação dos Poderes no nível federal em Executivo e Legislati-
vo na nova ordem constitucional. Os autores descobrem um governo
dotado de inúmeros instrumentos de intervenção nos trabalhos legis-
lativos e líderes partidários capazes de disciplinar o comportamento
de seus membros partidários em plenário. Estudo dos efeitos da uti-
lização dos instrumentos procedimentais, em poder do presidente e
líderes partidário, sobre a agilização do processo decisório no interior
do Poder Legislativo e pelo aumento da capacidade do executivo de
impor sua agenda.
Para os autores, o poder de agenda presidencial e dos líderes
partidários cumpre papel preponderante na dinâmica do presidencia-
lismo brasileiro. O poder de agenda serve para encurtar os prazos de
tramitação de matérias, mediante o recurso aos pedidos de urgência;
para impedir o envio de propostas indesejáveis, através das iniciativas
exclusivas em matérias orçamentárias e tributárias; e para poupar o
Congresso de decidir sobre matérias sensíveis a opinião pública, atra-
vés do recurso de medidas provisórias.
O exame dos dados da produção legal da Câmara do Deputa-
dos e ao comportamento dos partidos em plenário não deixa dúvida
quanto à forte influência do executivo nas decisões tomadas pelo Le-
118 Teoria da separação dos poderes: A literatura atual da ciência
política e sua aplicação aos níveis subnacionais de governo

gislativo, e quanto à ação disciplinada dos deputados em relação à de-


terminação dos líderes.
Demonstram um sistema político estável e perfeitamente capaz
de produzir políticas públicas de acordo com a vontade de Executi-
vos e maiorias parlamentares eleitas de maneira legítima. O Presiden-
te seria o elemento central desta coordenação do comportamento dos
agentes políticos, os congressistas, que, na ausência do poder de agen-
da presidencial, sucumbiriam à tentação de radicalizar demandas de
cunho particular.
No âmbito nacional, o Executivo obtém altas taxas de sucesso
e domina a produção legal. O Poder Legislativo, apesar de sua alta
atividade propositiva, tem baixa taxa de sucesso e participação pouco
importante no conjunto da legislação.
Encontraram-se evidências teóricas, empíricas e analíticas que,
mostrando a atuação dos mecanismos institucionais, revelam um bom
grau de apoio alcançado pelo Presidente, no momento atual, dissipan-
do o espectro da ingovernabilidade causado pela paralisia decisória.
A concepção clássica moderna de separação e diferenciação das
atribuições entre os poderes ganhou novas configurações no Estado
contemporâneo. A relação entre Executivo e Legislativo se modificou.
As instituições políticas do Estado, apesar de estarem separadas, pas-
saram a compartilhar poderes e atribuições com a finalidade de per-
mitir a governabilidade do Estado. Com essa nova configuração, os
Poderes Executivo e Legislativo podem checar e interferir na ação do
outro.
Ocorreu um redimensionamento nos limites da ação de cada
poder, como demonstra GROHMANN (2001), sobre a relação entre
os Poderes no Estado do rio Grande do Sul, entretanto, esse redimen-
sionamento e partilhar de atribuições como o ato de legislar e alocar
recursos, também reverberam nas estruturas de poder local, como o
nível municipal.

Do Legislativo não cabe mais a emanação monopoliza-


da da legislação. E assim reforça-se o Executivo pela ca-
pacidade de legislar e administrar o Estado e suas polí-
ticas. Mas o caminho não é de mão única. O Legislativo
tem sua compensação quando pode alocar recursos de
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 119

forma particularizada, toma parte no processo de exe-


cução. (GROHMANN, 2001, p. 118).

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tica política da burocracia e da natureza dos partidos. Petrópolis, Vo-
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Federalismo
brasileiro
em formação

Carlos Wellington Leite de Almeida


Mestre em Ciência Política pela Universidade de Brasília. Especialista em
programação e análise financeira pelo International Monetary Fund Institute. Bacharel
em Direito pela Universidade Federal de Rondônia. Secretário do Tribunal de
Contas da União (TCU) no Estado de Rondônia. Professor da Faculdade de Ciências
Humanas, Exatas e Letras de Rondônia – FARO.
124 Federalismo brasileiro em formação

Introdução

O Federalismo como modelo político

O federalismo é uma forma de poder caracterizada pela união de


“poderes menores” ou “poderes fracionários” para formar uma entida-
de superior, um poder maior, com alcances específicos e exclusivos, ao
qual todos aqueles entes reunidos estejam subordinados e com o qual
exerçam políticas comuns. Os poderes menores, ou entes federados,
não abdicam, no modelo federativo tradicional, de suas prerrogativas
e de sua própria composição de forças. Pode-se dizer, portanto, que o
Estado assim formado, ou seja, o Estado federal, é um Estado compos-
to por subunidades, os Estados membros, que não se anulam diante do
poder maior, mas, ao contrário, devem constituir seu sustentáculo e ser
fonte de sua vida e seu vigor.
Esta característica de ser uma reunião de poderes menores, e não
a superação desses poderes, é um dos traços mais típicos do que se
convenciona chamar de Estado federal. No Brasil, contudo, as origens
do federalismo são próprias e, portanto, diversas das acepções tradicio-
nais. Da mesma forma, os resultados atingidos são diversos daqueles
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 125

normalmente esperados quando da adoção do modelo teórico básico.


Ao contrário do que se deu nos Estados Unidos, o modelo federativo
brasileiro resultou não da união de poderes menores, mas da desa-
gregação de um poder maior, constituído por um Estado unitário. Do
Estado unitário do Império evoluiu-se para a situação de um Estado
federativo, definido na primeira Constituição republicana, em 1891.

As peculiaridades do caso brasileiro

O caso brasileiro é um caso de federalismo “às avessas”, surgido,


como já dito, não de uma união, mas de um fracionamento. Ele foi,
em grande parte, apenas uma solução jurídica republicana destinada
a acolher as oligarquias locais e regionais que já dominavam a vida
política imperial. Há, portanto, um efeito verdadeiramente centrífugo
e desagregador contraposto ao ideal centrípeto e agregador de interes-
ses, característico do ideal federativo. Com a solução federativa favo-
rável às oligarquias, à União restou envidar esforços centralizadores
para evitar a desagregação, não só territorial mas da condução da po-
lítica nacional, do que resultou um modelo confuso em que clamores
pela descentralização das decisões políticas e administrativas chocam-
se constantemente com a alegada necessidade de centralização para a
condução a bom termo das políticas públicas de ordem nacional.

Teoria do Federalismo

O federalismo é um modelo de união entre Estados. Outros pos-


síveis modelos de união entre Estados são, por exemplo, as uniões pes-
soais e as uniões reais, em que dois Estados se fundem por haverem
sido encimados por um único monarca, distinguindo-se as uniões pes-
soais por serem acidentais e as uniões reais por serem deliberadas. Em
certos casos é extremamente complexo o modo de distinção entre as
uniões de Estados. O Império Austro-Húngaro, por exemplo, normal-
mente classificado entre as uniões reais, é classificado por Riker como
um exemplo histórico de federalismo (BONAVIDES, 1994, p. 161-165).
O que parece ser distintivo no federalismo é a reunião do caráter de
voluntariedade da união com a não-anulação dos entes políticos que se
fundem e com a formação de um outro ente anteriormente inexisten-
126 Federalismo brasileiro em formação

te, o qual receberá os “poderes federais”. Como causas para a grande


diversidade de soluções federativas possíveis, David Cameron (1999,
p. 3) identifica os traços determinantes dos fatores demográficos, ge-
ográficos, culturais, sociais, históricos, constitucionais, institucionais,
políticos e, até mesmo, circunstanciais, na conformação dos diferentes
federalismos.
Nenhum federalismo é idêntico ao outro, havendo cada um de-
les se formado a partir de experiências distintas. O federalismo dos
países de tradição inglesa, por exemplo, compõem sistemas em que a
maior parte das atividades políticas são conduzidas por instituições
específicas de cada nível governamental. Nos países de tradição alemã
o equilíbrio federativo é caracterizado pela concessão de maiores atri-
buições ao poder central pelos poderes fracionários em troca de maior
participação dessas frações (os Estados, na Alemanha, ou os Cantões,
na Suíça) na administração do próprio poder central.

Classificação de acordo com os mecanismos de


relações intergovernamentais

Importante e prestigiada tentativa de classificação, proposta por


Daniel Elazar (1993, p. 155), diz respeito não mais à forma como se
processam as uniões dos Estados no federalismo, mas à forma como
se processam as relações dentro dos Estados federais uma vez cons-
tituídos. É perfeitamente viável a sobreposição entre as classificações
quanto às formas das uniões e quanto às formas das relações. Um Es-
tado federal pode ser, ao mesmo tempo, uma federação e, no interior
desta federação as relações desenvolvidas serem do tipo centro-peri-
feria (será a seguir apresentado). Esta possibilidade resulta da própria
complexidade que encerra o federalismo.
No entanto, esta classificação não comporta soluções mistas dos
tipos de uniões entre si, bem como dos tipos de relações internas ao
Estado federal. Especificamente, no que se refere à classificação das
relações entre os entes federados, o autor sustenta que, ainda que algu-
ma confusão de características possa emergir, os modelos de relações
são essencialmente modelos puros, cada um servindo para a definição
clara de um determinado arranjo político: o modelo piramidal ou hie-
rárquico, o modelo centro-periferia e o modelo matricial.
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 127

Modelo piramidal

Cada um dos modelos denota diferentes formas de exercício do


poder e da autoridade pelos diferentes membros do arranjo político.
O primeiro modelo, o piramidal ou hierárquico, é o que corresponde
à tradicional noção de níveis verticalizados de poder que se traduzem
em fluxos sempre descendentes de autoridade, tomadas as decisões
sempre nos níveis superiores e obedecidas as mesmas nos níveis abai-
xo. Corresponde às formas mais primárias de poder.
É, portanto, um modelo básico para a compreensão inicial do
próprio sentido de autoridade, de hierarquia, fundamental na evolu-
ção política dos povos. Porém, do ponto de vista do federalismo, rela-
ções deste tipo atentam contra a própria natureza do termo, servindo,
na prática, para caracterizar como relações federais apenas os exem-
plos mais primitivos de uniões de poderes, exemplos em que o sentido
de acordo, convênio, ainda não se encontre suficientemente desenvol-
vido, seja em função de circunstâncias devidas à conjuntura histórica,
seja em função de especificidades inerentes à própria construção das
relações entre os entes que se unem. A expressão gráfica do modelo é
uma pirâmide composta por diferentes níveis, com autoridade decres-
cente à medida que se desce os níveis que compõem a pirâmide.

Modelo centro-periferia

Outro modelo de relações federativas é o modelo centro-peri-


feria. Neste caso, a autoridade principal reside em um centro, mais
ou menos influenciado por sua periferia, influência que dependerá da
conjuntura em que se encontrem as relações federativas. Estes gover-
nos ou organizações de periferia tendem a desenvolver-se organica-
mente e ao redor de um centro. O poder se concentra ou se distribui de
acordo com as decisões que tome o centro, o qual pode incluir ou não
uma representação significativa das periferias. A relação entre centro e
periferia é de influência recíproca. A expressão gráfica da relação cen-
tro-periferia é a de círculos concêntricos, quanto mais central o círculo,
mais importante sua posição. “No modelo de centro-periferia, a autori-
dade se concentra em centro somente, mais ou menos influenciado por
sua periferia, o qual dependerá da situação em que se encontre. Estes
128 Federalismo brasileiro em formação

governos ou organizações tendem a desenvolver-se organicamente, e


ao redor de um centro, ... . Tendem a adotar um caráter oligárquico,
com o poder em mãos daqueles que constituem o centro. O poder se
concentra ou se distribui de acordo com as decisões que tome o centro,
o qual pode incluir ou não uma representação significativa das perife-
rias” (ELAZAR, 1996, p. 27).

Modelo matricial

O modelo de matriz é, segundo Elazar (1982, p. 44), o modelo


ideal de relações federativas e representa um governo integrado por
campos unidos por instituições comuns. As células da matriz represen-
tam agentes políticos independentes inclinados à cooperação, “múlti-
plos centros de poder ligados por poderes distribuídos que os forçam
a interagir”. E, ainda, segundo o mesmo autor, “o modelo de matriz
representa um governo integrado por campos unidos por instituições
comuns enquadradas e uma rede de comunicações compartilhada...
Reflete... a distribuição fundamental dos poderes entre múltiplos cen-
tros compreendidos na matriz. Cada célula da matriz representa um
agente político independente em um campo de ação política. Há célu-
las grandes e células pequenas, e os poderes que são atribuídos a cada
uma podem refletir esta diferença, mas, na verdade, nenhuma célula é
“superior” ou “inferior” a outra”.

Relações Centro-periferia

Tendências centrípetas e tendências centrífugas

O marco histórico da origem da Federação brasileira pode ser


definido no instante da Proclamação da República, em 15 de novembro
de 1889. O movimento militar liderado por Deodoro da Fonseca, que
reuniu suas tropas no Campo de Santana (hoje Praça da República) no
Rio de Janeiro, é comumente definido como o passo inicial do Brasil
republicano e federativo, havendo-se dadas por extintas, em caráter
definitivo, a monarquia e o Estado unitário a ela associado.
A federação, como a república, também encerra graves discus-
sões quanto à sua origem. Isto porque o Estado unitário do Império,
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 129

na verdade, não prescindia do apoio dos núcleos de poder localizados


no âmbito das províncias. Senhor de um território de dimensões con-
tinentais e interligado por uma precaríssima rede de comunicações, o
governo imperial necessitava buscar compor interesses com as elites
dos diferentes rincões para tornar efetivas as suas políticas. Quando a
solução federativa foi proposta, desde antes de 1889, e formalmente re-
cebida pela Constituição de 1891, sua adoção representou não somente
uma mudança na conformação constitucional do país, mas, também,
um importante momento de afirmação dos poderes locais.
Outra importante característica da formação federativa do Brasil
diz respeito ao caminho inverso em relação ao processo considerado
normal para o surgimento das federações. A federação estadunidense,
por exemplo, formou-se a partir da reunião das ex-colônias inglesas,
elevadas ao status de Estados federados. A federação alemã, da mesma
forma, formou-se a partir da união de seus entes federados. Já a fe-
deração brasileira, ao contrário, formou-se como resultado da decom-
posição do anterior Estado unitário e não da reunião das províncias
imperiais, isto é, surgiu em sentido “descendente” e não “ascendente”.
O surgimento da federação brasileira foi um ato do poder central pré-
existente e não como união dos poderes subnacionais para a formação
do poder central. A este respeito, discorre Amaro Cavalcanti (1983, p.
119) “... já deste ponto começa a diferença da República Brasileira, pos-
ta em confronto com a outras uniões federativas, mais importantes e
ora igualmente existentes na América e na Europa, ...”. Esta realidade
está na origem de muitos conflitos resultantes da oposição entre o cen-
tralismo e as demandas por autonomia regionais e locais.
Como decorrência do modo pelo qual originou-se a federação
brasileira, na verdade, o resultado da consolidação e afirmação dos
poderes locais em face de um Estado centralizador, as relações fede-
rativas assumiram a forma de relações centro-periferia, para utilizar
a classificação de Elazar, vista anteriormente. Antônio Octávio Cintra
(1974, p. 70) discute a vinculação do “centro” com a “periferia” na po-
lítica brasileira. Conectada a tese de Cintra com a de Elazar, agrupa-
dos os entes federados sob a fórmula de círculos concêntricos, cabe à
União o papel de círculo central, aos Estados o papel de círculo externo
ao da União e aos Municípios a posição de terceiro círculo, externo
aos outros dois. Agrupados desta forma, os entes federados relacio-
130 Federalismo brasileiro em formação

nam-se entre si da forma descrita por Elazar: há um espaço de decisões


mais importante (o círculo central, isto é, a União) e os demais círculos
concêntricos (Estados e Municípios) influenciam-se mutuamente tan-
to no cumprimento das ordens emanadas do centro, como no sentido
de condicionar tais decisões centrais. Esta relação de mútua influência
tem características específicas que dizem respeito à própria formação
social brasileira, são elas:
a) o fortalecimento do Governo Central e deu em acordo com as
elites locais (municipais) e estaduais, pois a intensificação da vida po-
lítica nestes dois “círculos” poderia elevar a consciência das camadas
subordinadas a um nível perigoso para a reprodução do “pacto das
elites”;
b) a intermediação política é característica marcante do federa-
lismo brasileiro. Embora exista desde o período do Império, o federa-
lismo republicano contribuiu para elevar a dependência dos círculos
mais centrais em relação aos mais exteriores, isto é, dos Estados em
relação aos Municípios e da União em relação a estes dois, em razão
da posição predominantemente periférica dos controles da máquina
eleitoral. Neste contexto, ressaltam os “coronéis”;
c) no tocante à posição relativa entre os Estados, existem aqueles
“mais próximos” do centro e aqueles “mais distantes”. No contexto em
que se desenvolveu o federalismo brasileiro, um federalismo crescido
sob o signo das disparidades regionais, aos Estados mais centrais inte-
ressou o fortalecimento do Governo Central, como garantia contra os
Estados mais periféricos. Tal foi, por exemplo, o caso do Estado de São
Paulo, maior exportador de café, no início do período republicano;
d) os Estados não-hegemônicos não se incomodavam com as de-
sigualdades crescentes e com o controle do governo central pelos Esta-
dos mais dinâmicos, desde que as bases de dominação oligárquica não
fossem ameaçadas;
e) o arranjo federalista reconheceu a hegemonia nacional dos
Estados mais poderosos, principalmente São Paulo e Minas Gerais, e
garantiu-lhes o controle da máquina do governo federal. A política do
centro passou a expressar os interesses daqueles Estados. Neste ínte-
rim inclui-se, com especial destaque, a questão da política fiscal;
f) o Município evoluiu como ente mais fraco no federalismo bra-
sileiro. Sua fraqueza advém da conjugação de interesses políticos fede-
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 131

rais e estaduais que viam no fortalecimento municipal um perigo à sua


posição privilegiada. Tal fato condicionou a política fiscal no sentido
de conceder ao Município um papel de importância reduzida na re-
partição dos recursos e, por fim, este fato retroalimentou a situação de
fraqueza política dos mesmos;
g) a instituição de uma sistemática bem definida de repartição
de recursos tem o traço bastante positivo de reduzir a necessidade de
demonstrações de lealdade e vassalagem política para o recebimento
de receitas fiscais;
h) mudanças no perfil econômico dos Estados e Municípios,
inclusive as decorrentes do desenvolvimento, suscitam necessidades
maiores de auxílio financeiro federal, logo, a existência de regras bem
definidas de partilha fiscal é extremamente importante para a redução
da necessidade de intermediação política, mas não a elimina totalmen-
te;
i) na medida em que a política fiscal consolide a hegemonia fi-
nanceira da União e favoreça os Estados mais centrais, na relação cen-
tro-periferia, o que ocorre é a continuação das velhas tendências: de-
sigualdades regionais, necessidade de intermediação, pacto de elites,
porém sustentadas por mecanismos políticos e fiscais de tipo novo.
Convivem no federalismo brasileiro, como, aliás, em todos os
federalismos do mundo, tendências opostas, voltadas ou para o cen-
tralismo ou para a dispersão do poder. Os períodos do Brasil Colônia e
do Brasil Império deixaram como herança política para o Brasil repu-
blicano o pensamento centralista do governo nacional, o paternalismo
e o poder das elites locais, estes, sustentados por uma estrutura social
e agrária que favorecia as práticas de controle social aproximado, o
paternalismo e o patrimonialismo. Em tais condições, o particularismo
dos interesses localizados e a intermediação política de natureza clien-
telística assumiram papel dominante na república recém-nascida, um
papel que se prolongaria no tempo. A República Velha, o período que
vai do governo do marechal Deodoro da Fonseca até a Revolução de
1930, foi marcado pelo virtual “aprisionamento” do governo federal,
transformado em mero homologador das decisões regionais. O perío-
do varguista e os governos militares pós-1964, por sua vez, representa-
ram momentos de extrema centralização do processo político. Toda a
evolução histórico-política do Brasil deu-se ao longo deste continuum
132 Federalismo brasileiro em formação

centralização-descentralização, um processo que, na verdade, legi-


timou o conservadorismo e bloqueou mudanças no sistema político
brasileiro, ao mesmo tempo em que promovia o progresso econômico
que, alguns momentos, assumiu caráter surpreendentemente dinâmi-
co (RODRIGUEZ, 1995, p. 432).

Oligarquias e Federação

A oposição entre o poder central e os poderes periféricos não


conduziu, necessariamente, a um choque direto que culminasse com a
vitória definitiva de qualquer uma das tendências. Na verdade, poder
central e oligarquias regionais e locais geraram um sistema político ca-
paz de lhes garantir a reprodução no poder e a manutenção do status
privilegiado. Mesmo o autoritarismo do período militar pós-1964 não
sufocou as demandas regionais, cujos representantes continuaram a
dispor de grande influência junto ao governo autoritário. Esta inter-
dependêrncia entre o centro e a periferia produziram na política bra-
sileira, segundo a conclusão de Cintra e outros autores, um processo
de legitimação mútua dos interesses do poder central e dos poderes
regionais e locais, excluindo-se desses interesses aqueles das camadas
populares e de outros grupos que não dispunham de acesso ao poder.
Celina Souza (1998, p. 33) faz referência a autores que identificaram
apenas uma “polarização aparente voltada para a legitimação recípro-
ca”.
O conservadorismo político tem sido um obstáculo a qualquer
tentativa de mudança estrutural na sociedade e na política brasileiras
(LAMOUNIER, 1999, p. 17). Ao longo da história do Brasil ocorreram
importantes momentos de ruptura entre o poder central e os poderes
periféricos, relevantes o suficiente para assinalar o início e o fim de
fases históricas, mas nenhum deles capaz de operar alterações signifi-
cativas no sistema político. Carente de legitimação para a condução de
suas próprias políticas, o governo federal continuou a depender dos
processos regionais e locais de referendo e, por sua vez, dependentes
de recursos fiscais e financeiros e temerosos quanto à possibilidade
de perda de suas posições, as oligarquias estaduais e municipais não
hesitaram em compor com aquele governo seus próprios interesses.
Deu-se, assim, a afirmação do modelo proposto por Cintra, segundo o
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 133

qual os grupos de dominação regionais e locais não se incomodavam


com a sua condição periférica desde que a periferia continuasse a lhes
pertencer.
O federalismo republicano, como já dito, constituiu-se em coro-
lário do processo de consolidação e afirmação dos regionalismos que
já se manifestavam desde os períodos colonial e imperial. À época da
monarquia, os presidentes das províncias eram nomeados pelo impe-
rador, o que fazia deles, ao menos provavelmente, autoridades confi-
áveis para o poder central. Com a república e as eleições estaduais, os
agora governadores de Estados tornaram-se mais independentes do
governo central. Haja vista a necessidade de sustento político em bases
regionais e locais, por mais que os governadores continuassem a de-
pender, em grande parte, dos recursos fiscais e financeiros transferidos
pelo governo federal, é inegável que houve uma significativa transfe-
rência de poder em favor da periferia, isto é, dos Estados e Municípios.
A imperiosidade de composição entre os interesses do governo federal
e os dos governos estaduais tornou-se mais que evidente. Victor Nunes
Leal (1948, p. 68) comenta que: “[com o federalismo]...como a eleição
do governador de Estado não dependia tão puramente da vontade do
centro como outrora a nomeação do presidente de província, o chefe
do governo federal só tinha duas alternativas: ou declarar guerra às si-
tuações estaduais, ou compor-se com elas num sistema de compromis-
so que, simultaneamente, consolidasse o governo federal e os governos
estaduais”. Ainda, no que se refere à afirmação dos poderes regionais
e locais. Nunes Leal (1948, p. 183) assevera que: “...a abolição do regi-
me servil e, depois, com a República, a extensão do direito de sufrá-
gio deram importância fundamental ao voto dos trabalhadores rurais.
Cresceu, portanto, a influência política dos donos de terras, devido à
dependência dessa parcela do eleitorado, conseqüência direta da nossa
estrutura agrária, que mantém os trabalhadores da roça em lamentável
situação de incultura e abandono”.
Foi, portanto, como decorrência de fatores estruturais como a
súbita expansão de um eleitorado despreparado e a manutenção de
uma estrutura agrária que favorecia o mando local, que as relações
centro-periferia tornaram-se ainda mais resistentes ao tempo. Mudan-
ças conjunturais não se mostraram suficientes para reverter a situação
consolidada e mudanças estruturais como as que ocorreram na econo-
134 Federalismo brasileiro em formação

mia, em geral, pouco ou nenhum efeito tiveram sobre a estrutura das


relações sociais. Prosseguindo em sua crítica ao estabelecimento de um
regime representativo sobre uma estrutura inadequada, comenta Nu-
nes Leal (1948, p. 184): “a superposição do regime representativo, em
base ampla, a essa inadequada estrutura econômica e social, havendo
incorporado à cidadania ativa um volumoso contingente de eleitores
incapacitados para o consciente desempenho de sua missão política,
vinculou os detentores do poder público, em larga medida, aos condu-
tores daquele rebanho eleitoral”.
As três primeiras décadas do período republicano e federalista
foram marcados pelo coronelismo e pela política dos governadores,
ambos os fenômenos manifestações claras do modelo centro-periferia e
do caráter crítico que assumia a intermediação clientelística na política
brasileira. Nenhuma das esferas de governo lograva obter resultados
sem composição de interesses com as demais. O governo federal não
conseguia implementar suas políticas sem o referendo dos governos
estaduais e locais. Os governos estaduais não conseguiam fazer valer
suas decisões sem o referendo dos governos municipais localizados
em seu Estado e sem a anuência política e o apoio financeiro do go-
verno federal. Os governos municipais, por sua vez, nada conseguiam
fazer sem a anuência política e o apoio financeiro dos governos federal
e do Estado ao qual pertenciam (1948, p. 184).
Um comentário deve ser feito a respeito dessa relação: a interde-
pendência pode, muitas vezes, representar um benefício, por significar
a possibilidade de controle mútuo, com vistas à prevenção do abuso de
poder, contudo, transforma-se em vírus da não governabilidade quan-
do assume o papel de obstáculo no caminho da implementação de po-
líticas e, em função do que se pode observar, este último traço tem
sido o mais evidente na Federação brasileira desde a sua formação.
Marcel Bursztyn (1990, p. 42) faz referência a essa mútua dependência
das esferas de governo: “...paralelamente à progressiva dependência
do poder local – que fornecia os empregos a serem trocados por votos
– havia também o caminho inverso: o governo central dependia desses
mecanismos para assegurar sua legitimidade”. Nunes Leal (1948, p. 69)
assegura que: “...como nas relações estaduais-federais imperava a “po-
lítica dos governadores”, também nas relações estaduais-municipais
dominava o que por analogia se pode chamar “política dos coronéis”.
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 135

...os chefes locais prestigiavam a política eleitoral dos governadores e


deles recebiam o necessário apoio para a montagem das oligarquias
municipais”. E, por sua vez, Maria Isaura Pereira de Queiroz (1976,
p. 125) realça o papel de intermediário entre os interesses federais e
municipais desempenhado pelos governos estaduais: “...o governo es-
tadual manobrava sob a pressão de duas forças com as quais tinha que
se equilibrar: os chefes políticos regionais ou municipais e o governo
central”.
Os movimentos centralizadores da Revolução de 1930, do Es-
tado Novo e dos governos militares de 1964 a 1984 são importantes
exemplos de ruptura política no Brasil. No entanto, no que se refere
às condições estruturais do modelo de relações centro-periferia não
houve mudança significativa ou ocorreram, tão-somente modificações
temporárias. As principais mudanças decorrentes da Revolução de 30
disseram respeito à economia. O processo de industrialização modifi-
cou radicalmente o perfil econômico do país, o que elevou, em termos
sociais, a burguesia urbana a um patamar de importância até então
desconhecido. Contudo, ao contrário do que se poderia inicialmente
supor, não houve um arrefecimento da influência das elites tradicio-
nais, mas, sim, uma nova acomodação de interesses entre os grupos di-
rigentes urbanos e rurais. Pode-se dizer que houve a inclusão de uma
nova elite nos círculos do poder sem que houvesse, necessariamente, a
retirada daqueles grupos que ocupavam, tradicionalmente, os postos
de mando. Em termos de relação centro-periferia, pode-se dizer que
a Revolução de 1930 representou um importante momento de forta-
lecimento do centro, agora associado à elite urbana, sem que viesse a
se tornar suficientemente forte para agir independentemente da pe-
riferia. O Estado Novo, além de dar prosseguimento às modificações
na estrutura econômica iniciadas no período revolucionário anterior,
foi um momento de relativa cessação das relações centro-periferia, po-
dendo-se falar, mesmo, em um temporário desaparecimento do fede-
ralismo. Não houve, entretanto, o desmonte da estrutura oligárquica,
permanecendo as elites tradicionais apenas adormecidas sob o manto
da ditadura varguista: elas não tardariam a ressurgir tão logo fossem
restabelecidas as condições do jogo democrático. Os governos milita-
res de 1964, da mesma forma, promoveram um cessar temporário das
influências estatais e municipais sobre o poder federal, mas, como nos
136 Federalismo brasileiro em formação

casos anteriores, lograram apenas sua manutenção em estado latente


e, ao contrário do que ocorreu com o Estado Novo, viram-nas ressurgir
ainda durante o período autoritário. A razão para o reaparecimento
das influências regionais e locais sobre o governo federal está na cons-
tante necessidade que este tinha de buscar sucessivos institutos de le-
gitimação para o seu próprio status.
Após o fim do período militar restabeleceu-se, novamente, o pro-
cedimento padrão de competição entre as elites políticas: a busca de
vantagens via disputas eleitorais. As relações centro-periferia que mar-
caram toda a trajetória da Federação brasileira até então persistem e,
como antes, vê-se um governo federal que depende de apoios regionais
e locais negociando com governos estaduais e municipais que estão
dispostos a legitimar os atos daquele em troca de prestígio político e de
recursos fiscais e financeiros. O modelo de relação federativa persiste,
sobrevivendo aos diferentes momentos de ruptura no padrão político
brasileiro e reconstituindo as velhas fórmulas sempre que possível.
Até mesmo como resultado da reação ao autoritarismo do perío-
do militar recente, o atual momento das relações centro-periferia é um
momento de descentralização. Desde a promulgação da Constituição
Federal de 1988 ocorre um fortalecimento das instâncias mais periféri-
cas de poder em face das mais centrais. Os Municípios, por exemplo,
foram definitivamente recepcionados pelo texto constitucional como
entes federados, o que lhes dá uma posição de importância até então
não desfrutada pelos mesmos. Para Rui de Bri�o Álvares Affonso (1995,
p. 57): “o termo “federação” diz respeito à idéia de “união”, “pacto”,
articulação das partes (estados) com o todo (nação), por intermédio
do Governo central ou federal. No Brasil, entretanto, “federalismo”
tem sido recentemente associado ao processo de “descentralização” e
a apenas uma parte dos atores envolvidos no pacto federativo: os esta-
dos e municípios”.

Democracia e Descentralização

Tensões federativas

Com o fim do regime militar tem início o período da redemo-


cratização, também chamado, usualmente, Nova República. Desde sua
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 137

aurora, o período mostrar-se-ia turbulento, a começar pelo falecimento


do presidente eleito Tancredo Neves, antes da posse no cargo. A assun-
ção da Presidência da República pelo Vice, José Sarney, estava cercada
de dúvidas decorrentes da repentina perda daquele que representava
a coalizão julgada ideal para a transição. Sarney teve jogada sobre seus
ombros, repentinamente, a tarefa de conduzir o processo de redemo-
cratização a um termo que não resultasse em uma indesejável polari-
zação de ordem ideológica, nem em uma “caça às bruxas” do período
anterior, nem segundo uma ótica que denunciasse fraqueza a ponto
de ensejar o retorno ao poder de opositores do tipo “linha dura” do
período precedente. A redemocratização política foi um complicado
processo em que o desafio da Nova República consistiu em transigir
da abertura para a democracia. Uma seqüência ao desafio apresentado
aos presidentes-generais Geisel e Figueiredo, que enfrentaram o pro-
blema de transigir sem choques da exceção política para a abertura
(SELCHER, 1986, p. 117).
A exemplo do que ocorreu durante a abertura, a distensão política
realizada durante a redemocratização não se deu de forma controlada
e os ânimos descentralizantes exacerbaram-se. O resultado deste pro-
cesso desordenado de descentralização foi o crescimento das tensões
entre as unidades subnacionais e a União e entre as próprias unidades
federadas subnacionais. As tensões políticas resultantes da oposição
entre os Estados e Municípios de um lado e a União do outro, isto é, da
oposição entre entes federados de níveis distintos, são denominadas
tensões verticais. O mesmo conceito é aplicável às tensões resultantes
da oposição entre Estados e Municípios. Já as tensões entre entes fede-
rados de mesmo nível, isto é, tensões do tipo Estado versus Estado ou
Município versus Município, são chamadas tensões horizontais.
As tensões verticais ficaram bastante evidenciadas na luta dos
Estados e Municípios por maior autonomia. Como reação ao centra-
lismo dos governos militares e, como ato contínuo da relação centro-
periferia da Federação brasileira, a redemocratização identificou-se
com a descentralização, iniciando mais uma época de prevalência dos
interesses da periferia sobre os do centro. Pode-se dizer, mesmo, que
a redemocratização e a descentralização a ela inerente foram, efetiva-
mente, capitaneadas pelos interesses dos Estados e dos Municípios,
que imprimiram a marca de seu poder no texto constitucional. Os Mu-
138 Federalismo brasileiro em formação

nicípios, por exemplo, foram reconhecidos, pela primeira vez, como


membros constituintes da Federação. Em especial, no tocante às rela-
ções fiscais, ficou patente a definição de uma profunda redistribuição
de recursos às expensas da União. Esta observação condiz com a tese
de Celina Souza (1998, p. 31), exposta em seu texto “Dez anos de des-
centralização: a experiência dos municípios brasileiros”1, segundo a
qual “a tensão [entre níveis de governo], tanto em Estados unitários
quanto em Estados federados, tem tendido a favorecer as unidades
subnacionais de governo”. O processo deu-se de forma absolutamente
desordenada, o que gera, ao final, problemas para todos os níveis de
governo.
Outra característica do período da redemocratização, em relação
à questão federativa, diz respeito ao acirramento das tensões horizon-
tais, isto é, das tensões entre entes federados de mesmo nível, o que
significa a oposição entre Estados ou entre Municípios. A já tradicional
questão das disparidades regionais assumiu feições monstruosas com
a redemocratização porque os Estados, livres, ou, para não se exagerar,
bem menos restritos em sua liberdade de agir, mergulharam em uma
espécie de “vale-tudo” no qual se defrontam interesses particulares e
não se discute, ou se discute insuficientemente, o interesse geral. Aos
Estados mais pobres interessava a obtenção de recursos capazes de
sustentar seus programas de desenvolvimento. Os Estados mais ricos,
por sua vez, lutavam por recursos que lhes garantiriam os arrojados
investimentos que almejavam e a continuidade de sua condição de pri-
mazia. A falta de identificação nacional, que já se evidenciava desde
antes da Independência, exacerbou-se no Império e assumiu “meros

1 O texto enfoca a questão da democracia municipal no Brasil. Busca investigar


se a descentralização e a redemocratização introduzidas no Brasil desde 1988 muda-
ram a forma como os bens locais são distribuídos e se foi mudada a agenda da des-
pesa pública na esfera local. O município sai fortalecido com a Constituição de 1988,
ampliando sua participação no jogo político e na capacidade financeira. No entanto,
em pouco ou nada foi rompida a mentalidade de que a ação pública local só é possível
com apoio da União e do Estado. Há, portanto, um padrão nas relações intermunici-
pais em que as esferas de governo lutam entre si para manter ou melhorar sua posição
relativa.
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 139

limites legais” com o amadurecimento da República2, voltou a se mos-


trar durante os governos que sucederam ao último presidente militar.
A respeito desta falta de identificação nacional, que leva os governan-
tes e governados a visarem tão-somente aos seus interesses restritos,
Francisco de Oliveira (1995, p. 79) não hesita em falar em ausência de
cidadania. De acordo com esse autor, “a “idéia fora de lugar” da Fede-
ração brasileira poderia ser exemplificada, além de tantos outros agra-
vos nacionais, pela ausência de cidadania”.
Em grande parte, os governadores dos Estados, que já haviam
demonstrado seu poder mesmo sob a égide do autoritário regime mili-
tar, constituíram-se em pivôs deste acirramento das tensões horizontais
(RODRIGUEZ, 1995, p. 439). A partir de sua influência decisiva sobre os
parlamentares, os governadores moldaram boa parte da Constituição
de 1988 em seu favor (ABRÚCIO, 1998, p. 170-171). Os governadores
agiram de acordo com a lógica do “vale-tudo” entre os Estados, todos
dispostos a obter o maior número de vantagens possível dentre o espó-
lio do período anterior, o que tornou impossível o estabelecimento de
uma agenda comum para o crescimento e para a solução dos demais
problemas. Para Rodriguez (1995, p. 443): “ A ação dos governadores...
se caracteriza por: um comportamento de negociador maximizador,...
nunca está disposto a ceder nada, uma vez que entra na negociação
já com perdas e precisa recuperá-las; uma ação individual: não existe
coletivo...; uma agenda oculta: nessas condições resulta difícil estabe-
lecer uma agenda de negociações, prioridades e alianças estáveis...”. O
resultado da ação dos governadores foi a elevação a altíssimo nível da
competição entre os Estados e o aprofundamento da crise financeira e
fiscal dos governos estaduais. O autor afirma, ainda, que “será muito
difícil retirar da cena política brasileira, [a curto prazo] , a centralidade

2 A referência aos “limites legais” diz respeito à gradual forma de se promover


oposição, que, pouco a pouco, deixou de ter caráter de conflito aberto, muitas vezes,
conflito armado para restringir-se a discussões no âmbito do Congresso ou em outros
foros, bilaterais ou multilaterais. No entanto, o adjetivo “meros” visa a dar ênfase ao
fato de que a nova “forma legal” não significou, em hipótese alguma, a supressão ou
mesmo a redução dos choques entre Estados.
140 Federalismo brasileiro em formação

da ação dos governadores e seus recursos de poder. Nesse período,


devem ser evitadas duas tentações: a tentação centralista e autoritária,
que não respeita nem reconhece o espaço político dos governadores
na constituição federativa; e a tentação descentralizante neoliberal,
que destrói o pacto federativo e ameaça a unidade nacional” (RODRI-
GUEZ, 1995, p. 444). Para bem caracterizar o poder dos governadores
durante os períodos da abertura e da redemocratização, o mesmo au-
tor utiliza o termo Política dos Governadores, o que resgata a idéia da
intensa regionalização das questões políticas ocorrida durante a Repú-
blica Velha.
A assunção de uma posição cada vez mais central pelos gover-
nadores nas negociações federativas ocorre em paralelo com a gradual
retirada da União das atividades não exclusivamente realizáveis pelo
governo. Rodriguez (1995, p. 444) identifica neste resultado a caracte-
rística propiciatória do ambiente que se formou a partir da conversão
entre os ideais descentralizantes e os princípios neoliberais que, defen-
dendo a redução do poder estatal ao mínimo, emprestaram sustenta-
ção teórica à gradual retirada de funções e de recursos da União de boa
parte das suas atividades.

Pluripartidarismo e falta de agenda nacional


As características do sistema partidário também contribuíram
para a intensificação dos debates de ordem regional, em detrimento da
preocupação com os assuntos nacionais. Pode-se identificar duas fases
no pluripartidarismo brasileiro, nos primeiros anos da redemocratiza-
ção do regime. A primeira fase, que vai de 1980 a 1988, é caracterizada
por baixa fragmentação partidária, pela dominância do PMDB e pelo
início do declínio do PDS, materializado pela criação do Partido da
Frente Liberal-PFL. O segundo período, de 1988 a 1995, é marcado por
um pluripartidarismo mais exacerbado, com alta fragmentação parti-
dária e pelo início do declínio do PMDB, consubstanciado pela criação
do Partido Social-Democrata Brasileiro-PSDB. Neste segundo período,
o número de partidos políticos aumentou substancialmente, evoluin-
do de 5 partidos em 1985 para 23 em 1995. As fusões ocorridas em
seguida baixaram o número para 20. Este número não considera as le-
gendas criadas por cidadãos anônimos, chamadas “partidos relâmpa-
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 141

gos” que não obtiveram registro definitivo junto ao Tribunal Superior


Eleitoral-TSE. Esses “partidos relâmpagos” eram utilizados, principal-
mente, por lideranças estaduais com o intuito de lançar candidaturas
ou ampliar o tempo disponível no horário eleitoral gratuito. Como nos
períodos anteriores, o sistema partidário não foi capaz de servir como
adequado meio de comunicação política dos anseios da sociedade ao
nível nacional (CHACON, 1985, p. 22).
Maria D’Alva Gil Kinzo (1998, p. 91-99) aponta três característi-
cas principais no delineamento da situação atual do sistema partidário
brasileiro: o baixo nível de consolidação, a fragilidade sistêmica e o ele-
vado grau de fragmentação. Por baixo nível de consolidação entenda-
se que os componentes principais do sistema partidário ainda não se
encontram completamente definidos. A fragilidade sistêmica decorre,
em grande parte, da própria falta de consolidação. Dentre os principais
sinais de fragilidade destaca-se o baixo índice de identificação dos elei-
tores com os partidos. Quanto à fragmentação, a autora ressalta que,
em 1998, 20 partidos possuíam representação no Congresso Nacional,
mas, somente 8 deles tinham algum peso apreciável no jogo político
e nenhum deles detinha representação superior a 21% das cadeiras, o
que tornava impossível a obtenção de qualquer maioria sem recorrer
a coligações.
Outro importante sintoma da fraqueza do sistema partidário da
Nova República foi o aumento do número de grupos de pressão e ban-
cadas suprapartidárias, ao lado da intensificação de suas atividades.
Os grupos de pressão, juntamente com as bancadas suprapartidárias,
constituem respostas da sociedade à inadequação dos partidos como
canais das demandas sociais. Os grupos de pressão não estão sujeitos
ao controle institucional como os partidos políticos e, por isso, pode-
se alegar que eles sejam mais afetos e mais próximos do interesse da
sociedade.
Em pesquisa realizada durante a legislatura 1991-1994, Abrúcio
(1998, p. 175) concluiu que “os deputados no Congresso Nacional or-
ganizavam suas ações mais pela via regional do que pela via partidá-
ria. A principal razão disso era a fraqueza dos partidos em agregar as
demandas individuais dos políticos. Isso acontece porque o arcabouço
institucional brasileiro incentiva a conduta individualista dos políti-
cos, em detrimento da conduta partidária”.
142 Federalismo brasileiro em formação

A atual conformação das relações federativas

O sistema político brasileiro assumiu novo contorno após a


Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, como decorrência da
nova relação de forças que se forjou na Federação brasileira. O aumen-
to da importância dos Estados e dos Municípios, bem como a criação
de novos Estados e novos Municípios, impuseram uma dinâmica às
relações federativas ao longo da qual o fiel da balança pendeu favora-
velmente às unidades federadas subnacionais. O Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, em seu Art. 13, determinou a criação do
Estado do Tocantins3, a partir do desmembramento de parte do Estado
de Goiás, e em seu Art. 14, ordenou a transformação em Estados dos
Territórios Federais de Roraima e Amapá4. No que diz respeito aos
Municípios, de 1984 a 1997 foram instalados 1.405 novos Municípios
no Brasil (MAIA GOMES e MACDOWELL, 1999, p. 5). Tais fatos são
indicativos da enorme pressão por autonomia exercida pela periferia
da Federação. Cada vez mais as reivindicações por autonomia se têm
convertido em resultados descentralizantes concretos (o que não quer
dizer, como será visto mais adiante, que esses resultados sejam neces-
sariamente benéficos).
Estas mudanças, contudo, devem ser percebidas como limitadas
ao seu próprio contexto. A persistente relação centro-periferia foi reafir-
mada. A Federação continua a ser dividida em Estados centrais e Esta-
dos periféricos. A sobre-representação parlamentar do Norte-Nordeste
expressa o pacto entre o urbano e o rural, o agrícola e o industrial, o
tradicional e “moderno” ou, pelo menos, “não tão ultrapassado”. Além
disso, no dizer de Flávio Limoncic (193, p. 19), “ao reconfirmar os Esta-
dos enquanto distritos eleitorais para a Câmara Federal, a Constituição

3 Ato das Disposições Constitucionais Provisórias, Art. 13 – “É criado o Estado


do Tocantins, pelo desmembramento da área descrita neste artigo, dando-se sua insta-
lação no quadragésimo sexto dia após a eleição prevista no § 3º , mas não antes de 1º
de janeiro de 1989.”
4 Ato das Disposições Constitucionais Provisórias, Art. 14 – “Os Territórios Fe-
derais de Roraima e do Amapá são transformados em Estados Federados, mantidos
seus atuais limites geográficos.”
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 143

reproduziu as práticas tradicionais da política brasileira, onde as ban-


cadas estaduais são fortemente dominadas pelos executivos estaduais,
tornando os deputados estaduais representantes de Estados, não da
sociedade”. O ressentimento resultante da distorção na representação
estadual é inevitável: os Estados centrais, São Paulo, por exemplo, diri-
gem críticas ao modelo, alegando seu próprio desfavorecimento polí-
tico. Em 1994, o paulista Celso Russomano (PSDB) foi eleito deputado
federal com 233.482 votos, um quantitativo equivalente a quase o dobro
do eleitorado total do Estado de Roraima, composto por 119.399 elei-
tores (TEIXEIRA, 1995, p. 57). Há, portanto, necessidade de constantes
rediscussões a respeito dessas distorções propositadas, uma vez que se
constituem em inesgotável foco de ressentimento político para aqueles
Estados que se julgam excluídos da arena política, ainda que inseridos
na arena econômica, e em “direito” alegado por aqueles Estados que
se julgam excluídos da arena econômica e, por isso mesmo, preferem
acreditar nos resultados da arena política (CAMARGO, 1995).
As principais mudanças operadas pela Constituição de 1988 na
estrutura das relações federativas disseram respeito ao Município. Em
seu art. 1°, o texto constitucional já evidencia a mudança no status do
mesmo, ao elevá-lo à condição efetiva de ente federado. A atual Consti-
tuição proclama que a República Federativa do Brasil é composta pela
união indissolúvel dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios,
diferentemente da Constituição de 24 de janeiro de 19675, alterada pela
Emenda Constitucional n° 1, de 17 de outubro de 19696, que afirmava
ser a República Federativa composta apenas pelos Estados, pelo Distri-
to Federal e pelos Territórios.
Uma vez passando a fazer parte da ordem jurídica, aos Municí-
pios foram atribuídas competências específicas, sobretudo no que se
refere à tributação e ao orçamento. O principal efeito desta reorientação
política foi que “uma vez que as lideranças políticas locais não estejam
mais financeira e politicamente subordinadas aos executivos federal e
estadual, elas podem construir uma relação de lealdade e de alianças

5 Constituição do Brasil, de 24 de janeiro de 1967.


6 Emenda Constitucional n° 1, de 17 de outubro de 1969.
144 Federalismo brasileiro em formação

de base mais ampla no nível local. Formas novas de accountability po-


dem surgir” (SOUZA, 1998, p. 49). Os Municípios, portanto, passaram
a ser parte efetiva do sistema jurídico brasileiro, ao qual, anteriormen-
te, só pertenciam em caráter residual, apenas como “constatações” da
realidade social brasileira, e não como parte institucionalizada da vida
política. Para François de Bremaeker, “a Constituição promoveu im-
portantes transformações no cenário político-administrativo do País.
Os Governos municipais tiveram reforçada a sua autonomia, na ex-
pectativa de que viessem a assumir, como assumiram, um papel de
maior importância na prestação dos serviços de interesse local” (BRE-
MAEKER, 1998, p. 187).
Ligados que são às questões locais, à realidade quotidiana dos
cidadãos, os Municípios assumiram lugar central no processo de ge-
ração e distribuição de bens públicos. Tornou-se necessário, portanto,
redefinir o papel do Município na sociedade brasileira e adequar os
instrumentos de ação e de controle às novas e ampliadas responsabili-
dades. Marcel Domingos Solimeo assevera que “as novas e mais com-
plexas responsabilidades dos Municípios exigem não apenas a organi-
zação e a mobilização da sociedade como o desenvolvimento de novas
formas de atuação” (SOLIMEO, 1998, p. 160). Os Municípios parecem
haver superado a arcaica concepção do governo municipal, segundo
a qual “a prefeitura [é] um órgão que asfalta ruas e constrói praças”
(DOWBOR, 1987, p. 7), fruto do processo centralizador que caracte-
rizou as relações federativas durante boa parte da vida republicana
do Brasil e da concepção paternalista que atravessa toda a história da
formação social e política nacional. Mesmo nos períodos de maior des-
centralização, como o interregno 1946-1964, a efetivação da autonomia
municipal se viu frustrada pelo paternalismo político, cuja conclusão
inevitável era a de que os Municípios na Federação, como as crianças
na família, não dispunham de capacidade para decidir o próprio des-
tino. A esse respeito, Dowbor afirma que “ficou esmagada, nesse pro-
cesso, a presença do Município nas decisões sobre o desenvolvimento”
(DOWBOR, 1987, p. 7).
Como reflexo da grande desigualdade sócio-econômica entre as
regiões brasileiras, os Municípios são, a exemplo dos Estados, profun-
damente diferenciados entre si. Neste sentido, a descentralização de
competências ao nível municipal pode ser positiva no que se refere a
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 145

entregar às populações bens e serviços públicos mais adequados às


demandas locais. A aparente simplificação que vem da dispensa de
tratamento igual a entes distintos, na verdade, resulta em problemas
futuros a serem resolvidos. A causa de tais problemas pode ser encon-
trada na quase sempre presente incoerência entre as ações executadas
em caráter genérico e os fins pretendidos em caráter específico. É o
problema a que Dowbor se refere ao afirmar que “todos nós buscamos,
de uma forma ou outra, soluções universais. E grande parte dos con-
flitos que presenciamos deve-se a esta nossa exagerada tendência para
a simplificação” (DOWBOR, 1987, p. 9). As profundas diferenças entre
os Municípios são referenciadas, também, por Celina Souza: “assim
como os Estados membros, as cidades possuem profundas diferenças
nas suas estruturas ocupacional, social e física, devido ao desenvolvi-
mento econômico e social desigual” (SOUZA, 1998, p. 34).
Outra característica marcante deste recente municipalismo brasi-
leiro diz respeito à mudança, nos primeiros momentos da redemocra-
tização, no perfil dos políticos municipais, que passaram a representar
cada vez mais os partidos não conservadores, e à renovação dos qua-
dros, com a inserção de novas pessoas na arena política. Em seu levan-
tamento, Celina Souza (1998, p. 36) verifica que “existe uma tendência
a diminuir a participação dos partidos conservadores nos governos
das capitais” e que “63% dos prefeitos, em 1977, tinham experiência
política anterior, enquanto que, em 1979, 52% estavam exercendo uma
função eletiva pela primeira vez” (SOUZA, 1998, p. 38). Lúcia Avelar
e Fernão Dias de Lima (1997, p. 9-47) também concluem pela presença
política mais fortalecida dos partidos não conservadores nas capitais e
nos Municípios de maior porte. O que se pode inferir dessas observa-
ções é que a redemocratização e a ênfase dada ao papel do Município
na Federação formaram um contexto favorável à renovação e à busca
de novas soluções para os problemas locais. Além disso, o crescimento
dos partidos não conservadores nas capitais pode ser percebido como
importante manifestação popular no sentido de pressionar por mu-
danças mais profundas nos círculos do poder. A alteração no perfil dos
políticos municipais é evidenciada, também, pelo aumento na esco-
laridade média dos prefeitos. De acordo com o Instituto Brasileiro de
Administração Municipal-IBAM, no período de 1973 a 1989, o número
de prefeitos com nível superior triplicou.
146 Federalismo brasileiro em formação

Conclusão

Uma relação de influência


O federalismo, modelo político adotado no Brasil, efetivamente
influencia qualquer decisão ou ação política. Uma formação na qual se
chocam o centralismo e o localismo, a ação política centralizada e os
“vazios de poder”. Nesses vazios de poder, durante muito tempo, o
governo praticamente não atuou.
O poder local é essencialmente ligado à força das elites. A im-
portância das elites regionais e locais está ligada à formação social bra-
sileira, marcada pelos signos do paternalismo e do patrimonialismo.
As elites disputaram e disputam poder entre si e com o poder central.
Tentativas de alteração do quadro sócio-político encontram limites na
força do conservadorismo dessas elites e a política fiscal tem sido um
dos instrumentos mais importantes, tanto para os grupos interessados
na manutenção do status quo quanto para os atores políticos que se
interessam pela promoção de mudanças.

Uma relação centro-periferia

Dentre os modelos propostos para teorização do federalismo: pi-


ramidal, matricial e centro-periferia, o Brasil se enquadra neste último.
O centro é formado pela União e a periferia pelos Estados (inclui-se
o Distrito Federal) e pelos Municípios. No contexto dessa relação, o
federalismo brasileiro é marcado pela alternância entre momentos de
profunda descentralização e momentos de grande concentração de po-
der e pela desigualdade inter-regional. Coexistem no Brasil Estados
com alta evolução econômica e Estados pobres, em que a penúria de
condições diz respeito tanto ao povo quanto ao governo, este, incapaz
de implementar políticas públicas adequadas.
A Federação brasileira comporta graves tensões nas relações en-
tre os entes federados. Nas bases dessas tensões estão os conflitos de
autoridade entre os entes federados, as desigualdades regionais extre-
mas, o modelo de representação parlamentar, enfim, todo o conjunto
de realidades que definiram a evolução histórica das relações federati-
vas no Brasil. Tais tensões podem ser classificadas em tensões verticais,
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 147

quando dizem respeito a entes federados de níveis distintos, como as


tensões entre União e Estados, e tensões horizontais, quando referen-
tes às relações entre entes federados de mesmo nível, tais quais as que
existem entre Estados. Essas tensões são transferidas pela Federação à
política fiscal, que as vê refletidas nos seus diferentes instrumentos.

Descentralização e desigualdades

É preciso conciliar as demandas por descentralização, ligadas à


maior eficiência que a sociedade requer do Poder Público, com a ne-
cessidade de uma efetiva ação do governo central no sentido de redu-
zir o abismo estrutural que divide o Brasil em dois países: um rico e
um pobre. Até que se equacione a questão das desigualdades, o Brasil
estará, inevitavelmente, mergulhado no conflito entre regiões. Somen-
te após atingido um equilíbrio mínimo, estará a Federação preparada
para agir de forma harmônica. Que vivamos para vê-lo!

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sistema de listas

Roberto Amaral
Ministro da Ciência e Tecnologia, 2003-2004. Vice-Presidente Nacional do Partido
Socialista Brasileiro. Professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Editor do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos. Autor de
O Papel do Intelectual na Política, (Edições Demócrito Rocha, 2005). Co-autor de
Textos Políticos da História do Brasil, (Senado Federal, 2002).
152 A votação no sistema de listas

Uma pequena introdução

Dentre as muitas características dos regimes democráticos, uma


é inafastável: sua raiz na soberania popular. Dessa origem decorrem
tanto a legitimidade quanto a legalidade do poder, cujo exercício é
regulado por um ordenamento jurídico em cujo topo se encontra a
Constituição. A soberania popular, por seu turno, nas democracias re-
presentativas, como a brasileira, se exerce mediante o voto (ou sufrá-
gio), direito do cidadão. No Brasil o cidadão vota quando elege seus
representantes (aqueles que vão elaborar as leis ou governar), e quan-
do aprova ou rejeita leis ou responde a consultas.
Nas democracias diretas, o poder era exercido direta e imedia-
tamente pelo povo. Seu berço foi as cidades-Estado gregas, destaca-
damente Atenas. Essa experiência finda com a antiguidade clássica.
A forma moderna de democracia é a representativa ou indireta. Nela,
o poder é exercido por mandatários da vontade coletiva, ou seja, por
representantes do povo, escolhidos mediante eleições, isto é, pelo voto
popular. Essas democracias representativas tendem, contemporanea-
mente, a transitar para modelos semidiretos. Identificamos como de-
mocracias mistas ou semidiretas aquelas que procuram harmonizar
princípios da democracia indireta (como a delegação), com dispositi-
vos típicos das democracias diretas. Dentre esses dispositivos absorvi-
dos pela democracia representativa contemporânea, estão o referendo,
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 153

o plebiscito, a iniciativa legislativa popular, a revogação de mandatos


(também conhecida como recall) e o veto.
Por conhecer institutos como o referendo, o plebiscito e a iniciati-
va, podemos dizer que nosso modelo se aproxima das experiências da
democracia simidireta, ou mista, nada obstante conserve todos os ins-
trumentos da representação. Pode-se mesmo dizer que o direito consti-
tucional contemporâneo tende à adoção das modernas conquistas dos
princípios progressistas da doutrina da soberania popular.
Afirma nossa Constituição: “Todo o poder emana do povo, que
o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos ter-
mos desta Constituição” (Art. 1º, parágrafo único). Segundo o texto
que acabamos de ler, o exercício da soberania popular se dá de duas
maneiras: a) quando o poder é exercido por representante do povo e b)
quando o próprio povo intervém com sua palavra final. Na primeira
hipótese, vimos já, o poder é delegado, pelo povo, a cidadãos por ele
eleitos para em seu nome exercerem funções legislativas ou adminis-
trativas. É quando o cidadão vota para eleger seu representante. Mas o
cidadão também vota para confirmar uma lei ou uma medida governa-
mental (referendo) e vota para responder a uma consulta (plebiscito). É
a hipótese b. Logo após a promulgação da Constituição de 1988 fomos
chamados a definir a forma (república ou monarquia constitucional) e
o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) que de-
veriam vigorar entre nós. Essa consulta denominou-se plebiscito. Re-
centemente o povo foi convocado às urnas para dizer se aprovava ou
não a vigência de dispositivo da lei do desarmamento, que proibia a co-
mercialização e posse de armas de fogo. Tratava-se de um referendo.
Nas democracias de índole participativa (denominação que tende
a firmar-se sobre democracia direta), cujo melhor exemplo contempo-
râneo é a atual constituição venezuelana, o cidadão é chamado, através
do voto, a exercer diretamente o poder, sem quebra dos mecanismos
da representação.
A constituição venezuelana de 30 de dezembro de 1999, reafir-
mando, como todas as constituições democráticas, como a brasileira
de 1988, que todo o poder emana do povo (diz “a soberania reside
intransferivelmente no povo”) inverte a ordem do exercício do poder:
primeiramente, o poder é exercido pelo povo, diretamente, e indireta-
mente, mediante o sufrágio, pelos órgãos do poder público (Art.5º).
154 A votação no sistema de listas

Seja nas democracias representativas, seja nas democracias mais


ou menos participativas, como a suíça e a venezuelana, seja em demo-
cracias representativas que admitem, como a brasileira, o referendo,
o plebiscito e a iniciativa legislativa popular, a legitimidade do poder
decorre do exercício do voto pelo povo, o titular insubstituível da so-
berania. Porque, quando elege o seu representante, não está o cidadão
renunciando à sua soberania, mas nomeando um delegado para, em
seu nome, e consoante o mandato que lhe é atribuído, exercer o po-
der. Tanto os parlamentares quanto os titulares de cargos executivos
eletivos são representantes do povo, em nome de quem exercem os
respectivos mandatos.

Na democracia representativa

Vimos até aqui que nas democracias representativas o poder,


sempre derivado da soberania popular, não é exercido diretamente
pelo cidadão, mas por representantes seus, portanto, indiretamente.
Esses representantes são sempre eleitos segundo normas que consti-
tuem o chamado sistema eleitoral, variante de país a país. Por intermé-
dio das eleições, periódicas, o povo se manifesta. Em síntese, o poder
que emana do povo é constituído pelo voto, dado em eleições livres e
legítimas, realizadas nos termos da legislação específica, regras previa-
mente definidas, que estabelecem o processo eleitoral, a distribuição
dos cargos em disputa etc. No Brasil o sistema eleitoral é fundamental-
mente regulado pela Constituição federal, pelo Código eleitoral, pela
Lei dos Partidos políticos, pela Lei de Inelegibilidade e pela Lei eleito-
ral e por uma vasta gama de dispositivos legais correlatos. Além das
Resoluções do TSE, editadas a cada pleito, as quais, porém, devendo
simplesmente nortear a aplicação dos dispositivos legais, terminam
por constituir ação legiferante, criando direito. É importante destacar,
pois é exigência da ordem jurídica, que a legitimidade do pleito de-
pende da observância de normas previamente definidas, evitando-se a
mudança das regras em pleno andamento do jogo. Neste sentido cons-
titui avanço de nosso direito o disposto no art. 16 da CF, ao afirmar que
“A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua
publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data
de sua vigência”.
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 155

Do voto

Na sistemática brasileira o voto ou sufrágio é universal, dire-


to, secreto, obrigatório e periódico, com valor igual para todos. Estes
atributos constituem cláusulas pétreas, isto é, não podem ser objeto de
emenda constitucional que visem a aboli-los.
O sufrágio é o poder de que, nas democracias, dispõe o cidadão
para intervir na vida pública participando da soberania. Essa inter-
venção, vimos já, pode ser a) direta (quando, através do voto, o cida-
dão decide sobre determinado assunto) e b) indireta, quando, ainda
por intermédio do voto, elege seus representantes ou governantes. No
primeiro caso o povo vota para decidir, ou seja, vota mas sem eleger;
diz-se que houve votação. No segundo caso vota para eleger; diz-se
que houve eleição.
Voto universal é aquele em que a capacidade de participação no
pleito não sofre limitações derivadas de sexo, raça, renda, instrução ou
nascimento. Mas isso não significa que todas as pessoas possam votar.
O direito brasileiro prevê limitações de idade, nacionalidade e domi-
cílio, entre outras. Não podem alistar-se como eleitores os incapazes,
os estrangeiros e, durante o serviço militar obrigatório, os conscritos.
O voto secreto visa a proteger a manifestação livre da vontade eleito-
ral, ameaçada tanto pelo poder político quanto pelo poder econômico.
É um direito do eleitor. É obrigatório para os maiores de 18 anos e
menores de 75 anos e facultativo para os maiores de 16 e menores de
18 anos. O sufrágio, além de universal e secreto, é também direto, no
direito brasileiro, porque o eleitor elege, diretamente, isto é sem inter-
mediação de colégios eleitorais (como, entre nós, ao tempo da ditadura
militar; como, sempre, nos Estados Unidos) seus representantes, tanto
para o Poder Executivo, em toda as suas instâncias, quanto para as
diversas casas legislativas.
Trataremos do voto constitutivo dos mandatos, isto é, das eleições.

Das eleições

As eleições, no Brasil, são majoritárias para alguns cargos e pro-


porcionais para outros, e se destinam à escolha de governantes (pre-
156 A votação no sistema de listas

feitos, governadores e presidente da República) e legisladores (verea-


dores, deputados estaduais, deputados distritais, deputados federais e
senadores da República).
As eleições para os Executivos são majoritárias, isto é, elege-se
aquele que obtém maioria de votos. Nas eleições para Presidente da
República, Governadores de Estado e prefeitos de cidades com mais
de 200 mil habitantes, só se declara eleito aquele candidato que obtém
maioria absoluta (metade mais um) dos votos válidos. Tal não ocor-
rendo, os dois candidatos mais votados disputam um segundo turno.
Daí a expressão “eleição em dois turnos”. As eleições para o Senado
da República são igualmente majoritárias, mas não há a exigência de
maioria absoluta: elegem-se os candidatos mais bem votados. Portan-
to, eleições em turno único.
Nas duas hipóteses de eleições majoritárias o voto é dado no can-
didato e não no partido ou coligação. Não há voto de legenda. Cuide-
mos agora das eleições para as funções legislativas.
Em regra, há duas famílias de sistemas eleitorais para a constitui-
ção das casas legislativas: o majoritário e o proporcional. Trataremos
de ambos. Comecemos pelo majoritário, adotado nos Estados Unidos,
no Japão e em grande número de democracias européias. Esse sistema
se caracteriza, como enuncia sua própria denominação, por assegurar
a eleição de um só candidato, o mais votado. Em regra, a geografia
eleitoral é dividida em áreas ou circunscrições eleitorais (que no Bra-
sil chamamos de distritos), com as quais são atribuídas as cadeiras a
serem preenchidas. A cada distrito corresponde uma vaga. Ganha-a o
mais votado.
O sistema majoritário, mais conhecido na literatura política bra-
sileira por sistema ou voto distrital, pode ser apresentado, de forma
simplificada, através de dois modelos: o de maioria simples e o de dois
turnos.

Vejamos um e outro

No sistema de maioria simples a vaga é preenchida pelo can-


didato que obtém o maior número de votos. Cada distrito elege um
vereador ou um deputado. É eleito o mais votado dentre todos. É a
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 157

tradição anglicana. Assim na Grã-Bretanha (desde 1264), no Canadá,


nos Estados Unidos e na Índia.
No sistema majoritário de dois turnos a única diferença sobre o
modelo anterior é a exigência de que o concorrente, para ser declarado
eleito, obtenha metade mais um dos votos (maioria absoluta) de seu
distrito. Tal não ocorrendo, realiza-se um segundo turno, entre os dois
mais votados, permitida a formação de coalizões partidárias. Assim
o eleitorado de um candidato derrotado pode descarregar seus votos
num dos candidatos em disputa. É o modelo francês, conhecido como
ballotage.
No modelo de eleição proporcional o número de parlamentares
a serem eleitos é determinado pelo número de habitantes da respectiva
circunscrição, e o número de eleitos, por partido, é calculado em fun-
ção do número de votos obtido por partido ou coligação de partidos.
Não há distritos. A circunscrição é o Estado (para deputados estaduais
e federais), o Distrito federal (para deputados distritais) e o municí-
pio (para os vereadores). Em outras palavras os deputados podem ser
votados em todo o Estado e os vereadores em todo o município. São
eleitos os mais votados em cada partido.
Assim: tomemos por referência a eleição de vereadores e supo-
nhamos que na cidade x, existem dez cadeiras por preencher (isto é, a
respectiva Câmara Municipal é constituída de dez vereadores). Como
saber quantos vereadores cada legenda (partido) terá elegido, e quais
os eleitos em cada partido? Simplesmente dividindo-se o número de
votos válidos (digamos 100 mil) pelo número de cadeiras (100.000 di-
vidido por 10), donde 10.000. Este é o quociente. Cada partido elegerá
tantos vereadores quantas vezes tenha feito dez mil votos. Em cada
partido se elegem os mais votados, independentemente da posição que
ocupem na lista de candidatos.
O Brasil optou pelo sistema de eleição proporcional, mediante
listas abertas.
Trataremos inicialmente do sistema proporcional.

Sistema proporcional

Ao contrário do sistema majoritário, a representação proporcio-


nal tem por objetivo fazer com que o parlamento reflita, o mais fielmen-
158 A votação no sistema de listas

te possível, o mosaico ideológico e político da sociedade, assegurando


a representação do maior número possível de opiniões. Enquanto a
eleição majoritária tende ao bipartidarismo, o sistema proporcional é
construtor do pluripartidarismo. Enquanto na fórmula majoritária um
candidato ou partido que tiver obtido, por exemplo, 40% dos votos,
pode ficar fora do parlamento, o sistema proporcional visa a espelhar,
aritmeticamente, a preferência do voto. Assim, o Partido que obtiver,
por exemplo, dez por cento dos votos, tende a ter algo próximo a dez
por cento das cadeiras.
Falemos das listas.

O sistema de listas

A regra para as eleições parlamentares proporcionais é o sistema


de listas, inaugurado pela Bélgica em 1899. Lista é a relação de candi-
datos que cada partido, ou coligação, oferece à escolha do eleitorado.
Essas listas podem ser abertas, fechadas, livres ou flexíveis. Veremos o
conceito de cada uma.
Listas abertas são aquelas nas quais o eleitor pode votar em qual-
quer dos candidatos arrolados por qualquer partido (admitida também
a votação na legenda), sendo eleitos aqueles mais votados, indepen-
dentemente da ordem oferecida pelo partido. Observam esses sistema,
com algumas variantes, Brasil, Chile, Finlândia, Peru e Polônia. Em
outras palavras, o voto é personalizado: o eleitor vota no candidato de
sua escolha.
Na lista livre a ordem dos eleitos é também definida pelos eleito-
res. Nesse sistema o eleitor pode votar ou em um partido (e nesta hipó-
tese seu voto valerá para todos os candidatos da lista partidária) ou em
diversos candidatos, neste caso podendo votar em tantos candidatos
quantas sejam as vagas. Este sistema só é praticado na Suíça.
No sistema de listas fechadas a ordem previamente ditada pelo
partido é a ordem dos eventuais eleitos, e o leitor vota não em candida-
tos específicos, mas em partido. A votação obtida pela legenda indica
o número de cadeiras a que terá direito: se o partido obteve votos su-
ficientes para, por exemplo, preencher cinco vagas, essas serão ocupa-
das pelos cinco primeiros nomes da lista. É o sistema dominante nos
países que optaram pela representação proporcional.
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 159

A lista flexível é um encontro entre as listas abertas e as fechadas.


Nesse sistema, o eleitor pode votar na legenda, e assim aceita a ordem
partidária, ou assinalar sua preferência por determinado candidato.

O caso brasileiro

O regime eleitoral brasileiro adota, desde 1945, isto é, desde a


redemocratização que se seguiu ao Estado Novo, o sistema de listas
abertas, permitido o voto de legenda. O eleitor pode tanto escolher um
nome dentre os candidatos do partido ou da coligação, quanto votar
na legenda do partido de sua preferência. Nesse caso o voto é compu-
tado para efeito do quociente eleitoral.
Nosso sistema permite, ainda, nas eleições proporcionais, as co-
ligações de partidos. Nesse caso, independentemente do número de
partidos, a coligação forma uma só lista e eleitos são os candidatos
mais votados, independentemente da filiação partidária. A coligação é
tratada juridicamente como se um partido fôra.

Das listas abertas

Repitamos: o sistema brasileiro de eleição para os cargos legisla-


tivos é o proporcional mediante listas abertas; é o voto nominal. O elei-
tor escolhe o seu candidato. Essa seria sua grande vantagem: a aproxi-
mação entre o eleitor e o eleito.
Para seus defensores ela é, ainda, a mais democrática, pois dá
ao eleitor o direito de, com exclusividade, escolher seu representante,
enquanto no sistema de listas fechadas fica sua vontade subordinada à
lista preordenada pelo partido. A lista aberta assegura o voto pessoal.
Esse voto pessoal é mais propício ao fortalecimento dos vínculos entre
o eleitor e o eleito.

Desvantagens do sistema de listas abertas

De outra parte, porém, afirmam seus adversários, o sistema de


listas abertas enseja o enfraquecimento da ordem partidária: o foco da
política deixa de ser o partido – cujo fortalecimento é unanimemente
apontado como essencial para a democracia representativa-- para ser
160 A votação no sistema de listas

o candidato, a pregação política abandona princípios programáticos


para se situar nas qualidades pessoais do candidato, deixando o eleitor
à mercê de projetos messiânicos, populistas e assistencialistas. Como o
vínculo se faz diretamente entre o candidato e o eleitor, sem a media-
ção partidária, desaparecem, igualmente, os compromissos político-
partidários. Daí a fragilidade das maiorias parlamentares (implicando
muitas vezes crises políticas), a troca de siglas dentro da mesma legis-
latura (no período de 1º de janeiro de 2003 a 15 de fevereiro de 2004
nada menos de 125 deputados federais trocaram de partido), e a in-
fidelidade, planta daninha que devora a vida partidária. O candidato,
eleito, passa a considerar-se uma instituição autônoma, proprietário do
mandato, e esse mandato, por seu turno, se desvincula da vontade do
eleitor. Por conseqüência, o eleitor não se identifica com seu represen-
tado. Pesquisa de responsabilidade da Comissão Especial de Reforma
Política da Câmara dos Deputados (2005), afirma que menos de três
meses após a eleição nada menos de 1/3 dos eleitores não lembra em
quem votou para deputado e menos da metade dos eleitores cita cor-
retamente o nome de um candidato a deputado. Esse sistema ensejaria
ainda a corrupção mediante a compra de votos e outros expedientes,
como o financiamento das campanhas, subordinando assim o exercício
do mandato à ação do poder econômico e do poder político.
De outra parte, objeta-se ainda, o eleitor, embora votando no can-
didato de sua escolha, pode, pelo sistema do quociente, estar contri-
buindo para a eleição de outro candidato. Na hipótese das coligações
proporcionais, o desvio é ainda mais grave, pois, votando na legenda
de um partido, ou no candidato tal do partido qual, pode estar ele-
gendo um candidato de outro partido, integrante da mesma coligação,
pois seu voto só servirá para constituir o quociente eleitoral. E como
as coligações são livres, e muitas vezes esdrúxulas, o eleitor vota num
candidato com determinado perfil ideológico e pode ajudar a eleger
outro de perfil distinto ou antagônico.
A eleição no sistema de listas abertas – crítica que também se
aplica ao voto distrital-- enseja o empobrecimento das discussões po-
líticas; os temas nacionais, mesmo as questões cruciais do Estado, da
região, são substituídos pela troca do favor pessoal, pelas reivindica-
ções menores. Todos os candidatos se transformam em despachantes
de sua comunidade.
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 161

Esse sistema, como observado anteriormente, é responsabilizado


pela crise dos partidos, enquanto o modelo de listas fechadas, contrá-
rio senso, é apresentado como instrumento de salvação da vida parti-
dária, pilar da democracia representativa.

Dos partidos

Antes de tratarmos das listas fechadas, falemos um pouco dos


partidos, e seu papel na democracia representativa. Unanimemente são
eles considerados como a viga mestra do sistema democrático repre-
sentativo. A fragilidade do processo político-institucional é a outra face
da fragilidade dos partidos. Partidos fortes, democracia representativa
forte. Por isso mesmo a fragilidade – e baixa representatividade— do
sistema partidário brasileiro, presentemente em crise a mais grave, é
apresentada como uma das causas de nossa crise política crônica, dos
impasses institucionais e da baixíssima legitimidade de nosso processo
eleitoral.
Pois, se os partidos estão na gênese da democracia representati-
va, ela, assim como é praticada em nosso país, é acusada de promover
o esvaziamento dos partidos políticos, esvaziamento que, por seu tur-
no, é indicado como a fonte de nossa crônica crise política. Duas são as
mazelas atribuídas à democracia representativa: a falência do sistema
de partidos e o distanciamento crescente entre o exercício do mandato
e a vontade do eleitor.
Que nossos partidos são frágeis, que sua legitimidade é claudi-
cante, não resta a menor dúvida, e não sabemos se poderia a realidade
ser muito diversa se considerarmos a fragilidade da vida democrática,
recém saída de mais de 20 anos de ditadura. Entendemos que a corri-
genda será oferecida, no seu tempo, pelo processo social. Mas até lá,
surgem as propostas de reforma política. Aliás discute-se essa reforma
desde o dia imediato à promulgação da Constituição de 1988. Dentre
as propostas que tramitam no Congresso destaca-se a introdução do
sistema das listas fechadas. O principal argumento de seus defensores
é a necessidade de fortalecer os partidos. A dúvida, porém, está na
ordem dos fatores: o sistema de listas fechadas fortalece os partidos ou
partidos fortes é que reclamam as listas fechadas?
Como já conhecemos o mecanismo das listas fechadas, discutire-
162 A votação no sistema de listas

mos agora, tão-só, suas vantagens e desvantagens.

Vantagens do sistema de listas fechadas


A primeira de suas vantagens, segundo seus defensores, respon-
deria explicitamente à crise dos partidos: seriam elas instrumento de
fortalecimento do sistema partidário. A grande vantagem do voto em
lista é ser um voto partidário, enquanto a característica das listas aber-
tas seria o voto pessoal, da proximidade, raramente determinado por
motivações políticas.
Superando as disputas pessoais, a preferência eleitoral, no siste-
ma de listas fechadas, recairia sobre os partidos, portanto sobre pro-
gramas e linhas ideológicas. A campanha eleitoral, coletiva, por outro
lado, serve para unificar a linha política da futura bancada. Um de
seus subprodutos é a fidelidade, subordinado o eleito à disciplina par-
tidária, condicionante para sua posição na lista de candidatos. Por fim,
afastaria o financiamento ilícito de campanhas e reduziria a possibili-
dade de corrupção eleitoral.
Do nosso ponto de vista o sistema de listas fechadas exige o fi-
nanciamento público de campanha e é incompatível com as coligações
de partidos, nas eleições proporcionais. Por óbvio, não há conflito rela-
tivamente a coligações partidárias nas eleições majoritárias.

Desvantagens do sistema de listas fechadas

A disputa eleitoral, ao invés de operar-se na sociedade, se ins-


tala primariamente no Partido, de forma fraticida: verdadeira guerra
se instala entre os candidatos da mesma legenda, pois em toda e qual-
quer situação só serão eleitos os que ocuparem os primeiros lugares
nas listas. Do preordenamento deriva uma pré-eleição, pois decisiva é
a ordem na lista partidária.
Ao invés de democratizar a vida interna dos partidos, facilitará
ainda mais sua oligarquização, o poder das direções; o ordenamento
das listas é uma resultante da influência dos candidatos na máquina
partidária, abrindo espaço interno, inclusive, para corrupção. Se, no sis-
tema de listas abertas, registram-se casos de venda de legenda, cessão
de legenda para candidatos sem vínculo partidário mas com recursos
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 163

financeiros, o sistema de listas fechadas pode ensejar a possibilidade


de negociações, com os controladores das legendas, visando a assegu-
rar a boa localização no candidato na lista pre-ordenada. A questão de
fundo permanece: a democratização das organizações partidárias.
O voto em lista fechada – tratamos de outra crítica-, retira do
eleitor o direito de votar no candidato de sua escolha pessoal; ao invés
disso, é obrigado a votar na legenda, contribuindo para eleição de can-
didatos dentre os quais pode não estar com possibilidade de eleger-se
o de sua preferência. Outra crítica que lhe fazem seus adversários é a
de que quebraria o vínculo do representante com seu eleitor.

A reforma brasileira

Tramitam no Congresso brasileiro inumeráveis projetos de re-


forma política. Um deles é apresentado pela Comissão Especial de
Reforma Política, o qual propõe a adoção, pela legislação brasileira,
entre outras inovações, do sistema de listas fechadas. Essa inovação
viria acompanhada de mecanismos de fidelidade partidária, de meca-
nismos assecuratórios de maior transparência na prestação de contas
das campanhas, da garantia do pluralismo partidário (assegurador,
por seu turno, da participação política das minorias) e do financiamen-
to público das campanhas. Trata-se do Projeto de lei nº 2679, de 2003
sobre financiamento público de campanhas eleitorais, listas partidárias
pré-ordenadas nas eleições proporcionais, federações partidárias, coli-
gações partidárias, cláusulas de desempenho e funcionamento parla-
mentar.
A proposta se concretizaria em dois tempos: a. na transição do
sistema de listas abertas para o de listas fechadas (primeira eleição) e
b. no sistema de listas fechadas propriamente dito.
a. Transição. Comporão a lista os atuais deputados federais e
estaduais, de acordo com sua classificação pelo número de votos na
última eleição, os suplentes efetivados ou os suplentes que exerceram
o mandato por pelo menos seis meses e os deputados que mudaram de
legenda; estes entrarão na lista imediatamente após os deputados titu-
lares originários. Assim, fica assegurada a reprodução do status quo
ante, salvo deliberação em contrário da Convenção respectiva, prevista
pelo Projeto. Os demais membros da lista serão aprovados em Con-
164 A votação no sistema de listas

venção. Cada lista partidária poderá conter até 150% do número de


vagas prevista para cada Estado (deputados federais e estaduais) ou
Município (vereadores).
b. Listas fechadas. A ordem de precedência dos candidatos na
lista partidária será determinada pela respectiva convenção, nos ter-
mos do que estiver prescrito no estatuto partidário. O sistema de listas
fechadas aboli o voto nominal. Assim, contam-se apenas os votos da-
dos às legendas partidárias.
Trata-se, portanto, da introdução do sistema clássico de listas
preordenadas. A expectativa é que, discutido e aprovado na legislatura
que se iniciará em janeiro de 2007, o projeto da Comissão Especial de
Reforma Política da Câmara dos Deputados, ou outro que provavel-
mente lhe venha suceder, possa o sistema de listas fechadas, ou preor-
denadas, ser introduzido nas eleições parlamentares de 2010.
O projeto, assim, que está longe de promover a reforma de que
carece a vida política brasileira, silencia quanto ao mandato impera-
tivo, à revogação de mandato e a fidelidade partidária. O mandato
imperativo restauraria a dignidade da representação, coibindo a auto-
nomia do representante em face da vontade do representado. A revo-
gação, arma da cidadania, asseguraria a compatibilidade do mandato
com sua representação, o decoro e a ética. Dispositivos de proteção da
fidelidade partidária assegurariam a preeminência do partido sobre o
interesse pessoal do titular de mandato.
Adverte-se, porém, que o sistema de listas fechadas não deve ser
identificado como panacéia para todos os graves problemas que acu-
sam a crise da democracia representativa brasileira. Ela tem raízes his-
tóricas e mais profundas as quais remontam mesmo à crise constituinte,
a permanente crise da constituição do Estado brasileiro, a crise de uma
sociedade fundada na desigualdade e na exclusão, na concentração de
renda e de poder político, de par com a expulsão das grandes massas
do debate político ou da convivência social. A inapetência legiferante
do Congresso brasileiro – outra indicação da crise mais profunda— in-
viabilizou qualquer sorte de reforma política, nada obstante os recla-
mos da sociedade. Estima-se que a próxima legislatura proporcione a
aprovação das reformas necessárias, assegurando, primariamente, um
largo debate do qual possam participar os mais variados setores da
opinião pública brasileira. Só a mobilização da sociedade – em que não
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 165

estão interessados governos e partidos e imprensa— poderá indicar as


alternativas legislativas para a reforma política. Mas sem ilusões. Rara-
mente a reforma jurídica determina o processo social; é este que deve
comandar a reforma política.

Glossário

Cidadão

É o titular dos direitos políticos, aquele que pode votar e ser vo-
tado, e pode exercer todos os atos inerentes à cidadania.

Iniciativa legislativa

Mediante a iniciativa, o povo não chega a legislar, mas obriga que


se legisle. Este instituto de democracia semidireta foi incorporado ao
direito brasileiro pela Constituição de 1988: “Art. 61. x 2º - A iniciativa
popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados
de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado
nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de
três décimos por cento dos eleitores de cada um deles”.

Mandato

Mandato eletivo é o poder delegado pelo cidadão-eleitor a um


outro cidadão para que, representando-o, exerça legislativas ou de go-
verno. Diz-se que é representativo quando a delegação se estabelece
em aberto; no mandato imperativo os atos do mandatário estão su-
jeitos à vontade do mandante. O sistema brasileiro adota a figura do
mandato representativo.

Plebiscito

Diferentemente do referendo, o plebiscito tem por objeto medi-


das políticas, como a definição de formas de governo, criação de ter-
ritórios, subdivisão, desmembramento ou anexação de Estados (v.g.
Constituição federal, art. 18 x x 3º e 4º.
166 A votação no sistema de listas

Recall

V. revogação

Referendo

É o instrumento mediante o qual o povo exerce o poder de san-


cionar leis. Compõe, com o plebiscito, a categorias das medidas que
propiciam a manifestação direta do povo.

Revogação

Por intermédio da revogação pode o eleitorado extinguir o man-


dato eletivo de funcionário, parlamentar ou titular de cargo executivo.
Entre os países que primeiro o acolheram estão a Suiça e os Estados
Unidos, onde tem vigência em poucos Estados, valendo mais para os
municípios. O melhor exemplo do poder de revogação é oferecido pela
Constituição venezuelana de 1999, prevista para todos os cargos eleti-
vos, inclusive para a presidência da República. Não se trata, é preci-
so ressaltar, de mera declaração d3e direito. O atual presidente, Hugo
Chavez, foi submetido a um referendo, e teve seu mandato ratificado.
A revogação pode ser individual (de um mandato), e neste caso é cha-
mada de recall, e pode ser coletiva, de toda uma assembléia, e aí então
denomina-se abberufungsrecht. É conhecido em alguns cantões da Su-
íça.

Sufrágio

É o direito, de que é titular exclusivo o cidadão, de intervir direta


ou indiretamente no processo político. Diretamente decide sobre de-
terminado assunto; indiretamente elege seus representantes. Pode ser
restrito (quando impõe limitações de sexo, instrução renda ou outras
ao seu exercício) ou universal, quando, teoricamente, todos podem vo-
tar, ou seja, quando a faculdade de participação não está sujeita a res-
trições acima referidas. Mas não basta ser cidadão, para poder votar. É
preciso –é este o direito brasileiro alistar-se como eleitor. O eleitorado
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 167

brasileiro é o conjunto de cidadãos (brasileiros com direito a voto) alis-


tados como eleitores junto à justiça Eleitoral.

Referências

AMARAL, Roberto; CUNHA, Sérgio Sérvulo. Manual das eleições.


São Paulo: Editora Saraiva. 2ª edição. 2002.
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. Rio de Janeiro: Fundação Getú-
lio Vargas. 2ª edição. 1972.
CUNHA, Sérgio Sérvulo. Dicionário compacto do direito. São Paulo:
Editora Saraiva. 4º edição. 2005.
NICOLAU, Jairo Marconi. Sistemas eleitorais: uma introdução. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas. 1ª edição. 1999.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília. Se-
nado Federal, 2002.
VENEZUELA. Constitución de la República Bolivariana de Vene-
zuela. Caracas: Caceta Oficial, 1999.
PORTO, Walter Costa. Dicionário do Voto. Brasília: Editora UnB,
2000.
BOBBIO, Norberto et alli. Dicionário de política.
DAHL, Robert A. Sobre a democracia. Brasília: Editora UnB, 2001.
MACEDO, Dimas. O discurso constituinte: Uma abordagem crítica.
Fortaleza: UFC. 2. ed. 1997.
Democracia ou
partidocracia?
Pontos e contrapontos da lista
fechada no Brasil*

João Paulo Saraiva Leão Viana


Cientista político, professor da Escola do Legislativo do Estado de Rondônia,
Faculdade de Ciências Humanas, Exatas e Letras de Rondônia – FARO; Faculdade
Interamericana de Porto Velho – UNIRON; e Faculdades Integradas Aparício
Carvalho – FIMCA; Mestrando em Política Internacional pelo Centro Brasileiro
de Estudos Latino-Americanos. Autor de Reforma Política – Cláusula de Barreira na
Alemanha e no Brasil (Edufro, 2006).

Flávia Ilíada Coelho


Comunicadora social, assessora parlamentar da Câmara dos Deputados,
pós-graduanda em Ciência Política pela Universidade de Brasília.

* Agradecemos os comentários generosos de Antônio Octávio Cintra e Elder


Gurgel Filho, que nos forneceram observações e sugestões imprescindíveis para os
detalhes finais deste trabalho. Contudo, qualquer equívoco aqui presente é de nossa
inteira responsabilidade.
170 Democracia ou partidocracia?
Pontos e contrapontos da lista fechada no Brasil

O tema da reforma política tem se tornado freqüente há alguns


anos no noticiário brasileiro. Cientistas políticos, sociólogos, juristas e,
principalmente, a imprensa, vêm levantando o debate acerca de uma
reforma política em nossos sistemas eleitoral e partidário. Como se aí
residisse a solução para os males que afetam a representação política
brasileira.
Dentre as mais diversas propostas de reforma política, costuma-
se divergir sobre tudo. Enquanto alguns estudiosos apontam para a
necessidade de uma reforma total, com mudanças radicais, como a im-
plementação de um modelo misto, tal como o sistema eleitoral alemão,
outros, preferem falar apenas em uma reforma pontual que contribua
para o aperfeiçoamento do sistema vigente. No calor da discussão,
uma coisa é tida como certa: o sistema político brasileiro nascido com a
redemocratização de 1985 e fortalecido com a Assembléia Constituinte
de 1988 necessita de mudanças.
O ponto de partida para análise de nosso sistema político é a
Constituição de 1988 que estabeleceu formalmente as bases do seu
atual funcionamento. A Carta Magna optou pela manutenção de ele-
mentos já existentes, tais como o federalismo, a república, o presiden-
cialismo, a representação proporcional de lista aberta, estendeu o voto
aos analfabetos e aos menores de 16 a 18 anos. Além de um caráter
altamente inovador no que diz respeito à adoção de mecanismos de
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 171

participação popular, como o plebiscito, o referendo, e a iniciativa po-


pular nas esferas federal, estadual e municipal.
Contudo, um ponto considerado polêmico, foi a extrema permis-
sividade para a criação de um partido político. Nenhuma regulamen-
tação fazia referência à formação e representação dos partidos no par-
lamento, nem à fidelidade partidária. O mecanismo foi liberar e não
restringir expressão e desejo de formação de legenda local, estadual,
ou nacional, pois qualquer empecilho à criação de um partido seria
visto como “resquícios da ditadura”. Os Legisladores tinham a com-
preensão que o tempo eliminaria os partidos sem raízes societárias.
O objetivo era elaborar uma Constituição sem restrições, quebrando o
modelo anterior dos militares.
No entanto ficava acertada a realização de um plebiscito que de-
cidiria sobre nossa forma e sistema de governo. A partir daí, o que
se viu foi uma excessiva proliferação de legendas. Se até 1985 o país
contava com cinco partidos políticos, no final dos anos 80 esse número
aumentaria para mais de trinta. Atualmente, conforme a lei dos parti-
dos nº 9096 de 1995, para que seja criado um novo partido é necessário
a obtenção de no mínimo 0,5% de assinaturas do número de eleitores
que votaram para deputado federal nas últimas eleições, em pelo me-
nos 1/3 dos Estados brasileiros.
Em 1989, na primeira eleição presidencial após a redemocratiza-
ção, vinte e dois partidos concorreram. A chegada de Fernando Collor
ao poder foi acompanhada pelo desastre dos dois maiores partidos do
Congresso Nacional, PMDB e PFL, herdeiros políticos dos partidos do
regime ditatorial: MDB e ARENA. Segundo Jairo Nicolau (2003, p. 201-
202) a crise dos dois principais partidos (PMDB e PFL) com o resultado
pífio nas eleições de 1989, além do plebiscito sobre formas e sistemas
de governo realizado em abril de 1993, foram os elementos decisivos
para que no início dos anos 90, a reforma eleitoral passasse a fazer par-
te da agenda de importantes setores da política brasileira.
De lá para cá, o descontentamento com o funcionamento do sis-
tema político brasileiro tornou-se notório. O diagnóstico que possu-
ímos partidos fracos, pouco enraizados na sociedade, um congresso
inoperante, caracterizado pelo fisiologismo, tem sido a marca das ruas.
1
Pesquisa realizada pelo IUPERJ em 2002, questionou os eleitores so-
bre qual o fator mais importante na escolha do deputado federal: o
172 Democracia ou partidocracia?
Pontos e contrapontos da lista fechada no Brasil

candidato, ou o partido a que ele pertencia (a possibilidade de dizer


ambos foi aceita). O resultado demonstrou que a grande maioria, 92%
dos entrevistados, possui o candidato como fator mais importante na
escolha. Somente 4% disseram ser o partido o mais importante, e 4%
responderam que ambos eram importantes.
A excessiva personalização do voto é vista por estudiosos como
característica marcante do sistema político brasileiro. Dentro desta
perspectiva o sistema de votação em lista fechada surge no debate po-
lítico como alternativa de mudança ao quadro atual.
O objetivo deste artigo é apresentar um breve retrato do funcio-
namento do atual sistema de lista aberta no Brasil, com ênfase para
a eleição da Câmara dos Deputados. Após isso, inicia-se a discussão
sobre o sistema proporcional de lista fechada, analisando os pontos
prós e contras a sua implementação no Brasil, com o argumento de es-
tudiosos sobre o assunto. A partir daí procura-se analisar o processo de
votação do Projeto de lei 2679/2003 que derrotou a proposta de imple-
mentação da lista fechada. Por fim, procuramos estabelecer algumas
sugestões de aperfeiçoamento para o atual sistema.

O sistema de lista aberta no Brasil

O sistema proporcional de lista aberta no Brasil é utilizado nas


eleições para a Câmara dos Deputados, Assembléias Legislativas e Câ-
mara dos Vereadores desde 1945. Este sistema oferece ao eleitor a pos-
sibilidade de votar em um nome do partido, e desde 1962 é dada tam-
bém a opção ao eleitor de votar no partido (voto de legenda). Nossa
experiência consiste na mais antiga em vigor no mundo. Países como
Chile, Finlândia e Polônia adotam também a lista aberta nas eleições
parlamentares.
O modelo brasileiro apresenta algumas diferenças em relação
aos demais. Diferentemente desses países, no Brasil, o eleitor pode vo-
tar também no partido. Contudo, o voto dado ao partido é contabili-
zado apenas para a distribuição das cadeiras (quociente eleitoral), não

1 Para mais detalhes sobre a pesquisa ver NICOLAU, 2006.


O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 173

influindo na posição entre os candidatos da lista.


Outra especificidade do modelo brasileiro é a coligação nas elei-
ções proporcionais. “Pelo sistema em vigor no Brasil, os candidatos
mais votados, independente do partido ao qual pertençam, ocuparão
as cadeiras eleitas pela coligação” (NICOLAU, 2004, p. 57). Em nosso
sistema as coligações funcionam como se fossem uma única lista (um
partido). Na Finlândia e na Polônia, os partidos também podem se co-
ligar. No entanto, há uma distribuição proporcional das cadeiras den-
tro da coligação. Os nomes mais votados de cada partido são eleitos,
não os da coligação, como em nosso modelo.
É importante ressaltar que no atual sistema de lista aberta, a le-
gislação partidária estabelece que a escolha dos candidatos seja reali-
zada pelo próprio partido com base no seu regimento. Daí o poder da
burocracia partidária na escolha dos candidatos. Torna-se necessário
apenas que seja realizada uma convenção no âmbito estadual para de-
finição dos candidatos. As convenções ficam acertadas pra o mês de
junho do ano eleitoral, entre os dias 10 e 30. A lista de candidatos do
partido deve ser enviada para a Justiça Eleitoral até o dia 05 de julho.
Até 1998 quem detinha mandato (ou tinha sido eleito naquela legis-
latura) tinha assegurada sua candidatura pelo partido para o mesmo
cargo. Em 2002, o Supremo Tribunal Federal julgou tal regalia incons-
titucional e acabou com o privilégio.
Entre os estudiosos dos sistemas eleitorais é comum a idéia que
a lista aberta contribui para a personalização da escolha eleitoral. As
campanhas tendem a se concentrar diretamente no candidato. O que
pode significar o enfraquecimento da vida partidária é visto pelos en-
tusiastas do sistema como uma aproximação entre eleitor e eleito. Se-
gundo Roberto Amaral (2006, p. 05) “Para seus defensores ela (lista
aberta) é, ainda mais democrática, pois dá ao eleitor o direito de, com
exclusividade, escolher seu representante, enquanto na lista fechada
fica sua vontade subordinada à lista preordenada pelo partido”. Dessa
forma a lista aberta assegura o voto pessoal, que seria mais propício ao
fortalecimento de vínculos entre eleitor e o eleito.
Além do incentivo para que as campanhas sejam concentradas
na figura do candidato, uma das principais críticas à lista aberta é o es-
tímulo à competição entre os membros de um mesmo partido. Apesar
de a eleição ser disputada em um sistema proporcional, dentro de cada
174 Democracia ou partidocracia?
Pontos e contrapontos da lista fechada no Brasil

partido ou coligação a alocação das cadeiras é realizada pelo sistema


majoritário, ou seja, ganha quem ficar melhor colocado. Ao invés de se
ajudarem mutuamente, os candidatos disputam as possíveis cadeiras
obtidas pela legenda. Desta forma a disputa se acirra entre os candida-
tos da própria lista, e não de partidos adversários.
Sco� Mainwaring, citado por André Marenco (2006b, p. 725),
analisa que ao incentivar a competição intrapartidária o mecanismo
da lista aberta seria o responsável por provocar infidelidade, migra-
ção interpartidos, menor disciplina legislativa, votos personalizados,
reproduzindo uma situação endêmica de fragilidade partidária.
Conforme Carlos Ranulfo Melo (2005) “O sistema (lista aberta)
transforma a eleição brasileira em uma disputa entre indivíduos. Os
partidos quase desaparecem do processo”. Para ele o argumento de
que o atual modelo representaria melhor os anseios do eleitorado com
a livre possibilidade de escolha do seu representante, e maior ligação
entre eleitor e eleito, não se sustentaria. Ranulfo Melo cita pesquisa da
UFF e Unicamp, realizada em 2002, onde mais de 70% dos entrevista-
dos não lembravam em quem haviam votado para deputado em 1998.
Além da metade dos 30% restantes errarem ao mencionar o nome do
candidato, citando indivíduos que nem sequer participaram da dispu-
ta eleitoral.
Na contra mão deste raciocínio Fernando Limongi (2003, p. 465)
aponta que “o nosso modelo de lista aberta é muito bom porque resol-
ve o problema da eleição, sempre realizada em dois estágios: primeiro
uma eleição no interior do partido, depois a escolha pelos eleitores. Se-
gundo Limongi, o partido é quem decide primeiro quais os candidatos
que farão parte da lista, depois o eleitor se manifesta, escolhendo o seu.
Desse modo, acrescenta ele: “o voto é uma forma de o eleitor passar in-
formação para o partido, e expressar sua preferências”. Por que limitar
isso? Qual o mal disso? Indaga ele.
Nosso sistema de lista aberta, o mais antigo em vigor no mundo,
alia-se ao fato de constituirmos um eleitorado de mais de 120 milhões
de eleitores, ficando atrás apenas de Estados Unidos e Índia. Longevi-
dade e magnitude são características do sistema de lista aberta vigen-
te no Brasil. É preciso também lembrar que as coligações em eleições
proporcionais têm sido frequentemente apontadas como fatores de en-
fraquecimento da vida partidária. Elas deturpariam o voto na legenda
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 175

(quando o eleitor vota em um partido, seu voto é computado para a


coligação) e contribuem para que partidos nanicos possam burlar a
fórmula do quociente eleitoral.
A discussão acerca do sistema de votação em lista vem à tona
expondo problemas cruciais da representação política brasileira, tais
como a personalização do voto, fidelidade partidária e com as coliga-
ções em eleições proporcionais. Tornou-se comum entre os estudiosos
a associação entre a fragilidade da vida partidária e o sistema de lista
aberta brasileiro.
Como pontos positivos têm se observado a liberdade de esco-
lha do eleitor entre optar pelo voto no partido (ou coligação) ou no
candidato. Os defensores do atual sistema costumam frequentemente
indagar por que o eleitor teria cerceado seu direito de escolha pessoal?
Nesse caso, apontam-na como mais democrática, pois ampliaria as op-
ções do cidadão, além de aumentar o accountability pessoal na relação
eleitor e eleito, ou seja, a capacidade de responsabilização de gover-
nantes pelos eleitores. No caso da lista aberta está claro que aquele que
exerce o mandato deve prestar contas com os eleitores, mas na lista
fechada, como ficaria a relação pessoal de responsabilidade para com
o exercício do mandato?

O sistema de lista fechada


O sistema eleitoral de lista fechada consiste num modelo onde os
partidos apresentam antecipadamente uma lista pré-ordenada de seus
candidatos. O eleitor vota em um partido (voto de legenda) e não pode
expressar preferência por um determinado nome da lista. As cadeiras
são ocupadas pelos primeiros nomes da lista, de acordo com o número
que cada partido conseguir. Por exemplo, se determinado partido ob-
tém quatro cadeiras, irá preenchê-las com os quatro primeiros nomes
da lista partidária.
Entre os países que adotam a representação proporcional de lista
fechada encontramos África do Sul, Argentina, Indonésia, Portugal, Es-
panha, Costa Rica, Paraguai, Turquia. O modelo de lista fechada pode
ser encontrado também em diversos sistemas eleitorais mistos, sejam
paralelos como o da Geórgia, Japão, Coréia e Rússia, ou mistos-con-
gruentes, como o da Alemanha, Hungria, Bolívia e Nova Zelândia.
176 Democracia ou partidocracia?
Pontos e contrapontos da lista fechada no Brasil

Segundo André Marenco (2006b, p. 733) na grande maioria dos


países a adoção do sistema de lista fechada ocorreu no período do se-
gundo pós-guerra. Conforme Marenco em 23 de 27 casos a implemen-
tação desse modelo se deu em contextos marcados por uma forte de
ausência de competição eleitoral. Ou seja, em países que se encontra-
vam em processos de independência ou em transição de regimes de-
mocráticos, sem competição eleitoral efetiva. Espanha e Portugal são
exemplos da implementação da fórmula proporcional de lista fechada
após décadas de ciclos autoritários.
Prevalece entre estudiosos a idéia que o sistema de lista fechada
permite ao partido um controle maior do perfil dos candidatos que
serão eleitos. Nesse caso, a cúpula partidária dominaria as primeiras
posições da lista. O risco de tal oligarquização apesar de existir nem
sempre se confirma. Segundo Jairo Nicolau (2006a, p. 135) é impor-
tante lembrar que alguns países obtiveram relativo sucesso após sua
implementação. Nicolau cita o caso de Portugal e Espanha que adota-
ram a lista fechada em fase de redemocratização e conseguiram êxito
na reorganização partidária. Ele observa também que a África do Sul
e Israel conseguiram um certo equilíbrio garantindo a participação de
grupos étnicos e religiosos. No caso argentino o modelo vem logrando
êxito no tocante à representação feminina na Câmara dos Deputados.
Sobre a polêmica referida ao controle da lista pelos caciques par-
tidários, é importante ressaltar que a proposta de implementação da
lista fechada no Brasil observa que a escolha dos nomes poderia ocor-
rer em convenção partidária, com votação secreta e com composição
proporcional entre as diversas chapas concorrentes. O próprio Jairo
Nicolau (2006a, p. 135) lembra que se hoje as convenções partidárias
se dão num ambiente político esquecido, controlado por caciques, isso
mudaria por completo caso a lista fechada fosse adotada.
Em linha análoga Bruno Reis (2007, p. 92-96) afirma que a mu-
dança no foco da disputa eleitoral se daria a partir das convenções,
com as disputas intrapartidárias. Assim é possível imaginar segundo
Reis uma competição maior no momento das convenções (o que não
seria ruim, observa ele), visto que a eleição teria dois momentos distin-
tos. No primeiro ela se daria no interior do partido, com os candidatos
buscando a melhor posição na lista. Resolvido esse problema, em um
segundo momento, depois de montada a lista, a disputa iria para a
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 177

sociedade e “nada mais resta ao candidato senão fazer campanha pelo


seu partido, em nome do partido, em favor da plataforma parlamentar
do partido – mesmo a contragosto”, analisa o estudioso.
Uma crítica bastante comum em países que adotaram o sistema
de lista fechada refere-se à ausência de prestação de contas persona-
lizada (accountability pessoal). Como não existe uma ligação dire-
ta entre o eleitor e o eleito, o representante tem pouco interesse em
apresentar contas do seu mandato. Como o representante encontra-se
diretamente vinculado ao partido, torna-se mais interessante fortale-
cer-se na atividade partidária, para assim garantir boa posição na lista
seguinte. Como observa Jairo Nicolau (2006a, p. 136) essa é a principal
crítica feita ao funcionamento da lista fechada na Argentina, em Israel
e na Espanha.
Outro ponto polêmico refere-se à redução da margem de escolha
por parte do eleitor. Como se pode votar apenas no partido, caso haja
alguma restrição do eleitor por um ou mais nomes classificados como
primeiros na lista partidária (com chances reais de vitória), o eleitor
nada pode fazer. É aí que muitos críticos julgam-na antidemocrática.
Uma opção que preservaria a liberdade de escolha do eleitor seria a lis-
ta flexível. Nesse modelo os partidos definem a ordem dos candidatos
antes das eleições, mas o eleitor fica livre para votar em um determi-
nado nome da lista. O voto dado ao partido confirma a ordenação da
legenda. Mas caso o eleitor vote em um candidato e esse obtenha um
número significativo de votos (a fórmula para a contagem varia em
cada país), ele pode mudar sua posição na lista. Holanda, Bélgica, Áus-
tria, Suécia, Dinamarca e Noruega adotam a lista flexível. Conforme
Jairo Nicolau (2006a, p. 133) nesses países o eleitor tende a confirmar a
lista partidária, por isso, é pequeno o número de candidatos que con-
seguem mudar suas posições na lista.
Estudiosos e políticos recorrem frequentemente ao fato de que
só através de um sistema de listas fechadas seria possível instaurar o
financiamento público de campanhas no Brasil. Em parte, é verdade, e
o debate político sobre a reforma em nosso sistema eleitoral uniu esses
dois elementos, como se fora indissociável a introdução do financia-
mento público de campanhas sem o modelo de lista fechada. Isso por-
que no sistema de lista aberta seria impossível controlar os gastos de
campanha devido a enorme quantidade de candidatos. É importante
178 Democracia ou partidocracia?
Pontos e contrapontos da lista fechada no Brasil

lembrar que existem outras questões que apontam para a dificuldade


de implementação do financiamento público. Como por exemplo: qual
a regra para financiar campanhas individuais dentro de um partido?
Um puxador de votos terá o mesmo montante que um candidato de
primeira eleição? Quais os critérios para a distribuição dos valores?
Mas é evidente que com o enxugamento do número de candidatos e
um número menor de chapas sob controle das máquinas partidárias,
seria mais fácil obter êxito na fiscalização dos gastos. Nesse caso, a lista
fechada seria decorrência do financiamento público de campanhas.
No que se refere à disputa eleitoral, a adoção do sistema de lista
fechada consistiria em uma das alterações mais consistentes ao lado do
financiamento público de campanhas. Sua adoção mudaria a cultura
política do país em 180º. Alguns se perguntam se a dose do remédio
não seria tão exagerada, visto que o fortalecimento da vida partidária
poderia ocorrer pela adoção de outros mecanismos.

A discussão da lista fechada


no sistema eleitoral brasileiro

A introdução da lista fechada no sistema eleitoral brasileiro tem


apresentado divergências por parte de estudiosos pelos mais diversos
motivos. Torna-se necessário, para um melhor entendimento dos ar-
gumentos a favor e contra sua implementação uma divisão entre os
analistas políticos.

Analistas Políticos a Favor

O professor Bruno Reis (2007, p. 93), coloca-se altamente favorá-


vel a implementação da lista fechada no Brasil. Segundo Reis “Não está
escrito no DNA dos brasileiros que eles têm que votar nas pessoas. É a
regra eleitoral que lhes diz isso”. Para ele, se presumimos que os par-
tidos significam algo, por que não determinar que cada partido deve
fixar sua chapa, apresentar-se ao eleitorado como organização política,
e não um mero agrupamento de indivíduos, e assim induzir o público
a decidir sobre essas organizações? Será educativo a longo prazo, mes-
mo com todas as dores que o parto irá causar, completa ele.
O estudioso David Fleischer (2004, p. 123-141), crítico veemente
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 179

do sistema representativo proporcional, afirma que o pior malefício da


lista aberta seria o incentivo às campanhas eleitorais com formato indi-
vidual, e o quase completo esquecimento do nome do partido durante
as campanhas políticas eleitorais. Segundo Fleischer, “a campanha gira
em torno de nomes individuais, com propaganda maciça destacando
o nome, foto e número de identificação do candidato, com pouca ou
nenhuma informação sobre sua filiação partidária”. Considerando o
cenário mundial, chama atenção para as poucas democracias do mun-
do que usam o sistema de representação proporcional puro, usam tam-
bém o mecanismo de lista aberta de candidatos. Sendo muito raro em
países democrático esse uso. A instalação da lista fechada geraria gran-
de impacto sobre o sistema eleitoral brasileiro
Para o cientista político Carlos Ranulfo Melo (2005) a organiza-
ção partidária do sistema eleitoral poderia ser feita pela adoção da lista
flexível ou da lista fechada. Como argumenta ele, a lista que os parti-
dos apresentam ao eleitor é previamente ordenada, ou seja, a agremia-
ção define quais são os nomes prioritários para o preenchimento das
vagas a que tiver direito. Contudo, a diferença é que o sistema flexível
permite ao eleitor, caso não concorde com a ordem preestabelecida,
dizer qual o candidato de sua preferência no partido. Candidatos que
atingirem certa cota serão eleitos independentemente do lugar ocupa-
do na lista. No sistema fechado o eleitor tem apenas a opção de votar
no partido de sua preferência.
Sobre a crítica de oligarquização da vida partidária com a adoção
das listas pré-ordenadas, Ranulfo Melo argumenta que uma boa saída
seria estabelecer na lei orgânica dos partidos a escolha da lista através
de eleições abertas a serem realizadas no mesmo dia em todo o país.
Segundo ele “Cidadãos com filiação partidária votariam em seu parti-
do. Cidadãos sem filiação partidária poderiam – o voto seria facultati-
vo – votar onde quisessem, desde que o fizessem apenas uma vez”. Em
cada agremiação partidária, completa ele, “diversas listas poderiam
ser formuladas e ao final seria composta de forma proporcional aos
votos recebidos. O que se perde com isso? Nada. O que se ganha? Um
razoável incremento na participação política”.
O consultor legislativo da Câmara dos Deputados, Antonio Oc-
távio Cintra (1999), ferrenho defensor da introdução de um sistema
misto como o alemão, coloca-se favorável que parte da representação
180 Democracia ou partidocracia?
Pontos e contrapontos da lista fechada no Brasil

seja por meio do modelo proporcional em listas fechadas. Pare ele ao


manter parte dos eleitos pelo voto personalizado, não haverá ruptura
brusca com a situação atual. Segundo Cintra “O que se fará é discipli-
ná-la, adotando o voto no indivíduo na escala em que ele é mais apro-
priado e permite maior controle pelo eleitor do seu delegado”. Para ele
“o voto personalizado em listas estaduais é que é inadequado”.

Analistas Políticos Contra

Em Seminário realizado na Assembléia Legislativa de Rondônia,


em 2007, o cientista político Fabiano Santos, alertou para o perigo da
adoção do sistema de lista fechada. Santos enfatizou que do ponto de
vista normativo retirar a escolha do eleitor, e passá-la para o partido,
seria transferir soberania, concentrando poder na cúpula partidária.
No tocante ao fortalecimento de partidos, Santos aponta para o lado
duvidoso desse argumento, e cita a Venezuela como caso notório do
distanciamento entre a sociedade e os partidos. Segundo ele, o regi-
me de “partidocracia” instituído para fortalecer o sistema partidário
acabou resultando na década de 90, no afundamento das principais
legendas, o que contribuiu para a chegada de Chávez ao poder e o fim
do sistema partidário venezuelano.
Fabiano Santos fez questão de salientar que os partidos brasilei-
ros são fortes, prova disso é a forma como eles se comportam no par-
lamento, coesos e disciplinados. O estudioso lembrou que os partidos
precisam se fortalecer nas ruas, na sociedade. Uma boa opção segundo
ele seria a adoção da lista flexível, levantada por Jairo Nicolau, pois
preservaria o direito de escolha do eleitor.
O professor Jairo Nicolau (2003, p. 212) admite a existência no
sistema de listas aberta de um forte incentivo à personalização do voto.
Contudo, acrescenta o estudioso, a lista fechada funcionaria como uma
medida extrema. Nicolau aponta que uma escolha mais moderada se-
ria deixar o partido definir a ordem da lista, no entanto seria oferecido
ao eleitor a possibilidade de continuar votando em candidatos. A lista
flexível é também apontada por ele como uma opção.
Em entrevista à BBC Brasil, o cientista político Antonio Carlos
Peixoto (2006) disse acreditar que existe vontade política por parte de
nossos legisladores de votar algumas mudanças. Peixoto é favorável
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 181

à fidelidade partidária, mas é contra o voto por lista fechada e o voto


majoritário (distrital). Segundo o professor da Uerj, o mecanismo da
lista fechada “não é bom porque a cacicada dos partidos faz a lista e
enfia goela abaixo do eleitor”.
O professor Fernando Limongi (2003, p. 465) analisa que se por
um lado a lista fechada ocasionará o fortalecimento aos partidos, isso
não garante que sua adoção seja boa para a democracia. Para ele a oli-
garquização é o principal risco para os eleitores. Segundo o cientista
político, nosso modelo de lista aberta é muito bom porque permite ao
eleitor expressar suas preferências, manifestando seu voto preferencial
por um dos candidatos.
O cientista político André Marenco (2006a, p. 183-186) observa
que a lista fechada em última instância iria simplesmente fortalecer os
dirigentes partidários, mas ficaria o indício que o resultado poderia ser
a manutenção constante dos mesmos quadros partidários nas primei-
ras posições da lista. Ou seja, da possibilidade eminente de oligarqui-
zação do sistema partidário, o que “configure precisamente a resposta
de oligarquias provinciais ante o risco de surgimento de lideranças al-
ternativas”.
Segundo Marenco, a lista aberta não pode ser acusada exclusi-
vamente de promover a personalização do voto, que acarretaria em
migração e infidelidade partidária. Para ele não há comprovação que
a lista aberta seja responsável pela infidelidade partidária. A questão
da fidelidade, aponta o cientista político, poderia ser fortalecida com a
simples exigência de maior tempo de filiação prévia.

Argumentos teóricos a favor da lista


aberta contra a lista fechada2

a) Mantém o accountability, ou seja, os mecanismos de cobrança


e prestação de conta entre representante e seus eleitores.
b) O eleitor é o agente político principal podendo determinar di-
retamente sua escolha no candidato de sua preferência.

2 Quadro de argumentos gentilmente cedido por Elder Gurgel Filho


182 Democracia ou partidocracia?
Pontos e contrapontos da lista fechada no Brasil

c) A lista fechada pode gerar um processo de oligarquização dos


partidos, dificultando a renovação e surgimento de novos políticos.
d) Reduzido vínculos entre os representantes e seus eleitores.
e) A lista fechada reduz o poder de escolha e decisão do eleitor
limitando sua preferência.
f) Ausência de prestação de contas dos mandatos

Argumentos teóricos a favor da lista


fechada contra a lista aberta

a) Incentivos pelo sistema de lista aberta a campanhas persona-


listas e individuais, centradas no candidato e não nos programas par-
tidários.
b) Ausência de partidos fortes, programáticos, disciplinados, co-
esos, interagindo com eleitor.
c) Aumento de representantes parlamentares individualistas
ruim para os partidos.
d) A redução da capacidade de escolha do eleitor gera o benefício
do aumento da disciplina partidária, e vínculo entre eleitores e progra-
mas partidários.
e) Os eleitores e cidadãos são avessos a partidos políticos no Bra-
sil. A culpa é do personalismo incentivado pela regra eleitoral da lista
aberta, que faz os eleitores se identificarem com as características e per-
sonalidade dos candidatos.
f) A lista fechada acabaria com troca-troca de partidos, ou seja, a
migração de deputados entre partidos.

A derrota da lista fechada em 20073

No início da atual legislatura, um acordo entre as lideranças par-


tidárias tornou possível trazer a iniciativa da tramitação da Reforma
Política para a Câmara, com o compromisso de pô-la na pauta de vo-

3 As discussões na Câmara dos Deputados, aqui citadas, foram extraídas do


Diário da Câmara dos Deputados, ANO LXII - N 118 - quinta-feira, 28 de junho de 2007
- Brasília - DF, páginas 32331 a 33040.
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 183

tações até o final da primeira sessão legislativa. Na prática, a mudança


significou dar a autoria do projeto àquela casa, garantindo que, uma
eventual mudança do texto no Senado tivesse que ser ratificada pelos
deputados.
A retomada das discussões a respeito da tão esperada Reforma
Política trouxe à tona a proposta do voto em lista fechada. O Projeto de
Lei 1210/2007 substituiu mais de 100 propostas que tratavam do assun-
to e foram reprovados pelo plenário daquela casa.
A Câmara criou uma Comissão Especial para analisar o texto da
Reforma Política que incluía, entre outras medidas, financiamento pú-
blico de campanhas, fidelidade partidária, cláusula de barreira e voto
em lista fechada. Um dos relatores da matéria nesta Comissão foi o
deputado Ronaldo Caiado (DEM-GO), que nos últimos anos acabou se
aprofundando muito nos assuntos da Reforma, sobretudo no que diz
respeito à aplicação do voto em lista fechada.
Após intensos debates, finalmente um acordo de líderes garantiu
que a matéria entrasse na pauta de votação da Câmara no dia 27 de
junho de 2007. Foram apresentadas 346 emendas de plenário, sendo
que a grande maioria questionava a proposta do voto em lista fecha-
da. A argüição dos proponentes baseou-se, principalmente, no fato de
que essa modificação impactaria diretamente nas eleições municipais
do ano subseqüente, reforçando a tese do “caciquismo partidário”. O
principal argumento contrário a lista fechada trabalhava com a idéia
de que esse formato, ao invés de fortalecer os partidos, ajudaria a criar
verdadeiras dinastias partidárias, uma vez que, em tese, só consegui-
riam entrar na lista aqueles que estivessem ligados às lideranças da
legenda.
A partir disso, uma das principais modificações propostas pelas
emendas criava o que o relator Ronaldo Caiado (DEM-GO) chamou
de lista flex, também conhecido como “sistema híbrido”. Coordenada
e redigida pelo deputado Flávio Dino (PCdoB-MA), a emenda aglu-
tinativa foi alvo de intensos ataques, sobretudo por parte do relator
Caiado, e basicamente consistia em eleger metade das vagas para o
legislativo através do voto em lista fechada e a outra metade através
do voto direto.
O início dos trabalhos se deu de forma tumultuada. O acordo
firmado entre as lideranças para que fossem votados nominalmente os
184 Democracia ou partidocracia?
Pontos e contrapontos da lista fechada no Brasil

itens ligados à lista fechada e ao financiamento público de campanha


foi quebrado pela apresentação conjunta de um requerimento dos lí-
deres Jovair Arantes (PTB-GO), Miro Teixeira (PDT-RJ) e Marcelo Ortiz
(PV-SP), solicitando inversão de pauta e trazendo como primeiro item
o Projeto de Lei Complementar 35/2007 de autoria do também líder
Luciano Castro (PR-RR) e que tratava da fidelidade partidária.
Ficou claro a falta de consenso das bancadas dos partidos a res-
peito da lista fechada o que, de certa forma, influenciou para que li-
deranças não fechassem a votação com suas bases, mas sim, dessem
espaço para os divergentes pontos de vista durante a discussão.
A manobra da inversão tinha como objetivo ganhar tempo para
fortalecer o coro do “não” à lista fechada. Na percepção do deputado
Miro Teixeira (PDT-RJ), o tema tinha sido pouco debatido e havia cer-
to temor de que a proposta pudesse ser aprovada com quorum míni-
mo, uma vez que a matéria tramitava ordinariamente e, diferente do
Projeto de Lei Complementar 35/07, não exigia quorum qualificado da
maioria absoluta dos membros da casa – ou seja, 257 deputados.
Em respeito ao acordo feito entre as lideranças, o plenário rejei-
tou o requerimento de inversão de pauta. Quando todos se prepara-
vam para votação do PL 1210/07 mais uma manobra regimental tentou
adiar a votação. Desta vez foi um requerimento de retirada de pauta
apresentado pelo vice-líder do PTB, Arnaldo Farias de Sá, que ques-
tionava, principalmente, a proposta de financiamento público de cam-
panha e o sistema híbrido. Baseados na derrota anterior, as lideranças
conseguiram convencer o petebista a retirar o requerimento, abrindo a
matéria para discussão e votação. Todos estavam ansiosos para votar a
reforma e o discurso das lideranças que se manifestaram, PDT e PR, foi
no sentido de continuar a votação e, de uma vez por todas, derrotar a
proposta da lista fechada e financiamento público de campanha.
Os dois relatores designados para darem parecer acerca das 346
emendas, deputados Pepe Vargas (PT-RS) pela Comissão de Tributa-
ção e Finanças, e Ronaldo Caiado (DEM-GO), pela Comissão de Cons-
tituição e Justiça, conseguiram apresentar seus relatórios favoráveis ao
substitutivo do deputado Ronaldo Caiado mantendo o voto em lista
fechada, o financiamento público e rejeitando a emenda aglutinativa
que instituía do sistema híbrido de votação proporcional. Ao final da
exposição de Caiado, eis que mais uma tentativa de manobra regimen-
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 185

tal entra em cena, protagonizada, novamente, pelo deputado Arnaldo


Farias de Sá (PTB-SP) solicitando o adiamento da votação por duas ses-
sões. Depois de discursos inflamados de Sá e Vargas, o petebista recua
novamente e retira seu requerimento de adiamento.
Após mais uma leva de intensos debates, alguns parlamentares
que apoiaram a construção da emenda aglutinativa do deputado Flávio
Dino (PCdoB-MA) chegaram a conclusão de que a discussão em torno
da lista fechada não avançaria e o ideal seria buscar o que passaram a
chamara de “reforma possível”, traduzida pelo sistema híbrido. O lí-
der do PMDB, deputado Henrique Eduardo Alves, propôs um requeri-
mento de preferência, para que fosse votada a emenda aglutinativa do
deputado Dino, requerimento esse que foi rejeitado de forma bastante
equilibrada: 240 votos contrários contra 203 favoráveis.
A derrota do requerimento do líder peemedebista criou um cli-
ma de derrota da lista fechada. A partir desse ponto, a maior parte dos
discursos das lideranças convergiu para o entendimento de que o ple-
nário rejeitara o modelo da lista fechada e que era necessário avançar
nos demais pontos do substitutivo do relator Caiado. Nesse momento,
o presidente Arlindo Chinaglia (PT-SP) chegou a propor que a vota-
ção do voto em lista fechada se desse de forma simbólica, acatando a
rejeição do requerimento anterior como indicativo. Obviamente, após
tamanho esforço, o relator não aceitou a proposta da presidência e,
numa demonstração de combatividade, Ronaldo Caiado (DEM-GO)
pediu aos pares que a votação da lista se desse nominalmente, fechan-
do assim, o assunto de forma real e concreta.
A aprovação simbólica do requerimento de destaque apresenta-
do pelo deputado Miro Teixeira (PDT-RJ), possibilitou que os artigos
relacionados a lista fechada fossem votados separadamente dos demais
pontos da matéria. A votação da lista foi polêmica. O bloco PMDB/ PSC
e PTC, além do PPS, liberaram suas bancadas para votação. Governo e
minoria idem. Na orientação das bancadas a derrota do tema foi cate-
górica: 7 bancadas e blocos orientaram pelo não, contra apenas 3 pelo
sim. O resultado final foi de 252 votos contrários a proposta do voto em
lista, contra 181 votos favoráveis, tendo o Partido dos Trabalhadores
(PT), os Democratas (DEM) e o Partido do Movimento Democrático
Brasileiro (PMDB) desempenhado papéis estratégicos para contraba-
lancear a disputa, conforme demonstra tabela a seguir:
186 Democracia ou partidocracia?
Pontos e contrapontos da lista fechada no Brasil

VOTO EM LISTA FECHADA


PARTIDO
SIM NÃO ABSTENÇÕES
DEM 42 8 1
PC do B 13 - -
PDT - 22 -
PHS - 2 -
PMDB 33 42 2
PMN - 4 -
PP 2 34 -
PPS 4 6 -
PR - 35 -
PRB - 1 -
PSB 4 18 -
PSC - 6 -
PSDB 8 42 -
PSOL 3 - -
PT 71 2 -
PTB 1 17 -
PT do B - 1 -
PV - 10 -
Sem Partido - 2 -
TOTAL 181 252 3
Fonte: Câmara dos Deputados

Conclusão

A lista fechada suscitou um polêmico debate na cena política


brasileira. Tanto no meio acadêmico quanto no político as discussões
acerca de sua implementação foram sempre muito fervorosas. Os par-
tidários à sua introdução alegavam sobretudo a necessidade do forta-
lecimento das legendas. Nesse sentido, a adoção de tal modelo é ob-
servada por estes como o remédio, uma espécie de antídoto para os
males da excessiva personalização do voto. Sua introdução forçaria um
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 187

vínculo partidário entre o cidadão e as legendas, mesmo que há lon-


go prazo, como observaram alguns cientistas políticos, essa seria uma
boa medida para mudança significativa na cultura político-partidária
brasileira.
Do outro lado do espectro político, estudiosos e políticos con-
trários à sua adoção alegam como argumento principal a oligarquiza-
ção da vida partidária, reservando para o caciquismo a decisão sobre
quem ocuparia os primeiros lugares da lista. Provavelmente aqueles
que possuem uma história dentro do partido, com um certo tempo de
filiação, teriam bem mais chances de ocupar um bom lugar na lista do
que aquele que acaba de chegar. Isso por um lado inibiria as frequen-
tes migrações partidárias, pois o recém chegado na legenda, de certo,
encontraria dificuldades para obter uma posição de destaque, por mais
democrática que fosse a convenção.
Apesar da derrota na Câmara dos Deputados, sem dúvida algu-
ma o surgimento da lista fechada no debate da reforma política traz a
tona a questão da fragilidade da vida partidária e a excessiva personali-
zação do voto, expondo graves problemas do atual sistema. Porém, um
ponto a ser observado é a restrição da escolha do eleitor. Por mais frágil
que seja a relação entre o eleitorado e os partidos, retirar do cidadão
a opção de escolha no voto pessoal e transferí-la ao partido pode ser
observada como uma dose um tanto quanto exagerada do remédio.
A lista flexível pode ser uma boa opção para esse impasse. Nesse
modelo o cidadão pode fornecer o voto na lista partidária, ordenada
pelo partido, mas é dada também ao eleitor a opção de escolher um
nome (voto pessoal) ou alterar a ordem da lista. No caso brasileiro se-
ria ainda mais fácil, pois como já facultado ao cidadão a oportunidade
de votar no candidato ou na legenda, resta apenas ao partido elaborar
em convenção uma lista previamente ordenada.
Nesse contexto, permanece a livre escolha do eleitor, que pode
tanto aceitar a ordem da lista oferecida pelo partido, como pode não
aceitar o resultado da convenção, rejeitando assim a lista original.
Vale lembrar que na maioria dos países que adotam a lista fle-
xível, o eleitorado tende a confirmar a ordem oferecida pelo partido.
Trata-se de uma boa medida a ser adotada por aqui. Resta saber se os
mecanismos eleitorais incentivariam os candidatos a fazerem campa-
nha para o partido ou a velha competição intrapartidária continuaria
188 Democracia ou partidocracia?
Pontos e contrapontos da lista fechada no Brasil

imperando nas eleições. Isso, porém, somente sua implementação iria


dizer.

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O preço da
democracia
Caminhos para aperfeiçoar o sistema
de financiamento de campanhas

Clayton Mendonça Cunha Filho


Mestrando em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de
Janeiro. Pesquisador do Observatório Político Sul-Americano – OPSA-IUPERJ.

Pedro Wilson de Oliveira da Costa Júnior


Mestrando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará.
192 O preço da democracia
Caminhos para aperfeiçoar o sistema de financiamento de campanhas

“A democracia não está ameaçada pelo regime de


partidos, mas pelo financiamento deles”.
Maurice Duverger

Dentre as várias propostas de reforma política discutidas, de tem-


pos em tempos ou atualmente em tramitação no Congresso Nacional,
praticamente todas propõem alterações mais ou menos radicais no sis-
tema de financiamento dos partidos políticos e campanhas eleitorais.
Há certo consenso de que, parte substancial dos casos de corrupção
ou favorecimento ilícito de interesses, passa diretamente pelo levanta-
mento de recursos para financiar as campanhas e escândalos relativos
ao tema atingiram, nos últimos anos, importantes líderes políticos de
diversos países, como Japão, Alemanha ou Itália, por exemplo.
No Brasil, escândalos como os do “mensalão” e o das “sangues-
sugas”, mais recentemente, ou dos “anões do orçamento” e PC Fa-
rias, em princípios dos anos 1990 todos tiveram relação direta com as
opacas relações estabelecidas entre políticos e partidos em busca de
financiamento e doadores com interesses pouco altruístas, para dizer
o mínimo, o que tem levado à intensificação nas discussões acerca da
necessidade de mudanças nas regras do jogo.
Pretendemos, neste artigo, fazer uma breve avaliação do siste-
ma de financiamento de partidos e campanhas em vigor, bem como
das principais propostas de alteração em discussão e sugerir possíveis
caminhos para o aperfeiçoamento de nossa democracia no sentido de
conferir-lhe uma maior transparência e independência frente à influ-
ência nem sempre positiva (também para dizer o mínimo) do poder
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 193

econômico.

O financiamento de campanha hoje


Temos hoje, em vigor no Brasil, um sistema de financiamento
misto. Os partidos políticos, regidos pela Lei Nº9.096/95, são livres
para receber doações privadas para suas atividades regulares e eleito-
rais, ressalvadas certas limitações estabelecidas na referida lei1, além
de receberem dinheiro público através do Fundo Partidário (estabe-
lecido em valor nunca menor ao número de eleitores inscritos até o
fim do ano anterior multiplicado por R$0,35) e terem acesso gratuito
a propaganda partidária e eleitoral em rádio e televisão (pela qual as
emissoras recebem compensação fiscal conforme estabelecido no arti-
go 52 da mesma lei). Além dos recursos partidários, financiam também
as eleições: doações feitas diretamente aos candidatos nos termos e li-
mites estabelecidos pelas Leis Nº9.504/97 e Nº11.300/06 em que, basi-
camente, as doações aos comitês eleitorais dos candidatos por pessoas
físicas são limitadas em 10% de sua renda bruta no ano anterior, bem
como são estabelecidas proibições semelhantes às da lei dos partidos.
Apesar do forte subsídio público2 planejado para servir como
“nivelador do jogo” e fornecer condições mínimas de disputa a todos
os candidatos, os custos milionários das campanhas fazem com que
a maior parte destes3 seja bancado pelo setor privado, gerando dis-
torções nas chances eleitorais de candidatos capazes de angariar mais

1 Art. 31. É vedado ao partido receber, direta ou indiretamente, sob qualquer


forma ou pretexto, contribuição ou auxílio pecuniário ou estimável em dinheiro, inclu-
sive através de publicidade de qualquer espécie, procedente de: I - entidade ou gover-
no estrangeiros; II - autoridade ou órgãos públicos, ressalvadas as dotações referidas
no art. 38; III - autarquias, empresas públicas ou concessionárias de serviços públicos,
sociedades de economia mista e fundações instituídas em virtude de lei e para cujos
recursos concorram órgãos ou entidades governamentais; IV - entidade de classe ou
sindical.
2 Somente o horário eleitoral gratuito consome cerca de 1 bilhão de reais em
renúncias fiscais de acordo com Jairo Nicolau (2004).
3 Cerca de 80% dos gastos declarados nas eleições de 2002, segundo compilação
do cientista político David Samuels.
194 O preço da democracia
Caminhos para aperfeiçoar o sistema de financiamento de campanhas

recursos em detrimento daqueles que pareçam menos palatáveis aos


grandes financiadores4 e suspeitas (algumas vezes comprovadas) de
favorecimento por parte dos candidatos eleitos, dos interesses de gran-
des doadores de campanha, interesses estes nem sempre lícitos ou de-
sejáveis do ponto de vista das prioridades sociais.
Os problemas começam a surgir pela necessidade inexorável,
dada a natureza do jogo, de os candidatos buscarem, a qualquer custo,
financiamento para suas campanhas sob pena de entrarem na dispu-
ta em desvantagem com relação aos demais competidores. Apesar da
recente tentativa de baratear as campanhas com a proibição da reali-
zação de “showmícios” e da distribuição de diversos tipos de brindes,
a inexistência de um teto nos gastos possíveis faz com que arrecadar
um pouco mais nunca seja demais, por mais que um candidato já tenha
arrecadado. Quanto mais dinheiro na campanha, maiores as possibili-
dades de convencer potenciais eleitores.
Some-se a isto, a fraca estrutura de fiscalização da prestação de
contas possuída pelos tribunais eleitorais e tem-se um forte atrativo
para a arrecadação a qualquer custo, muitas vezes com a formação de
“Caixa Dois” pelos candidatos com verbas provenientes de doadores
que não querem ou não podem ser identificados, seja por doarem com
dinheiro não-contabilizado já nas próprias empresas como forma de
evadir ao fisco, por doarem dinheiro proveniente de atividades eco-
nômicas ilegais (narcotráfico, prostituição ou jogo do bicho, por exem-

4 Conforme afirma Jairo Nicolau (2004), “Estas [doações] não são feitas de ma-
neira neutra: partidos pequenos e de esquerda recebem muito menos do que outros”.
Por exemplo, podemos tomar os dados relativos à campanha presidencial de 1998,
em que o candidato Ciro Gomes, então no PPS e terceiro lugar na disputa, declarou
gastos de cerca de 1 milhão de reais e Lula do PT, segundo lugar nas eleições, declarou
ter gasto cerca de 3,9 milhões de reais, diante dos mais de 43 milhões de reais decla-
rados pelo vencedor Fernando Henrique Cardoso do PSDB. Nas eleições seguintes,
em 2002, o candidato do PSDB José Serra declarou ter gasto R$34,7 milhões, com o
vencedor Lula (PT) declarando cerca de R$39,3 milhões. Além do fato de Lula ter sido
pela primeira vez o campeão de gastos, é interessante notar que isso se deu somente
no momento em que suas propostas ficaram bem mais “moderadas” e palatáveis em
comparação com suas candidaturas anteriores, praticamente deixando de ser um can-
didato anti-establishment.
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 195

plo), ou por estarem interessados no favorecimento direto em contra-


tos com o governo uma vez vencida a eleição. Recorde-se a respeito,
por exemplo, a declaração do presidente Lula em entrevista dada à
TV Globo, em Paris, no auge do escândalo conhecido como “Mensa-
lão” de que “caixa dois todo mundo faz”. Mensalão este que consistiu,
basicamente, na distribuição entre políticos da base aliada do governo
Lula de recursos para campanha de origem obscura e, posteriormen-
te, não declarados sob a intermediação do publicitário Marcos Valério,
detentor de diversos contratos com o governo. Esquema que já havia
sido utilizado, de forma bastante semelhante, pelo hoje opositor PSDB
e aliados com a participação do mesmo Marcos Valério nas campanhas
estaduais de Minas Gerais em 1998.

A proposta de financiamento público exclusivo

O acúmulo de tantos escândalos provocados pelas fragilidades


do sistema de financiamento eleitoral, vigente no Brasil, tem colocado
em xeque o atual modelo e levado à proposição de diversas alterações,
sendo a mais radical delas a de financiamento público exclusivo de
campanhas conforme previsto, por exemplo, no PL nº 2.679/035 em
tramitação no Congresso. De acordo com o projeto, o Fundo Partidário
passaria a constituir a única fonte permitida de financiamento dos par-
tidos e das campanhas eleitorais, tendo para tanto seu valor elevado
dos atuais R$0,35 por eleitor inscrito no país para R$ 7,00 por eleitor (o
que seria equivalente a cerca de R$900 milhões em números de 2002) a
serem distribuídos pelo TSE aos partidos segundo o seguinte critério:
1% dividido igualitariamente entre todos os partidos registrados; 14%
igualitariamente entre todos os partidos com representação na Câmara
dos Deputados; e 85% distribuído proporcionalmente à bancada eleita
para a câmara na última eleição.
A medida, inédita no mundo na intensidade proposta, é defen-
dida por muitos como a única forma de impedir a influência do poder

5 Existem, na verdade, mais de uma dezena de projetos semelhantes tratando


sobre o tema em tramitação no Congresso. Ver CINTRA, 2005 para uma comparação
entre alguns deles.
196 O preço da democracia
Caminhos para aperfeiçoar o sistema de financiamento de campanhas

econômico sobre os resultados eleitorais, diminuindo a corrupção pré


e pós-eleitoral e garantindo assim uma democracia mais limpa e efe-
tiva. Ao mesmo tempo, é fortemente criticada por outros tantos como
uma dispendiosa miragem no que diz respeito ao combate ao “caixa
dois” e à corrupção e um risco para o enraizamento social dos partidos,
que poderiam se ver acomodados com a garantia da verba pública e,
assim, perder quaisquer incentivos para investir numa aproximação
mais orgânica com os cidadãos.
A princípio, a possibilidade de, em teoria, anular as distorções
provocadas pela excessiva dependência dos recursos privados torna a
proposta de financiamento público exclusivo bastante atrativa. Simu-
lações de variáveis estocásticas segundo “modelo de voto probabilísti-
co” realizadas pelos economistas da UnB Adriana Portugal e Maurício
Bugarin (2003) mostram que a presença de contribuições privadas nas
campanhas políticas tendem a produzir políticas públicas enviesadas
em favor dos grupos economicamente dominantes e que a adoção do
financiamento público exclusivo tende a produzir políticas socialmen-
te ótimas. Entretanto, a forma escolhida para a distribuição dos recur-
sos, proporcionalmente aos resultados obtidos nas eleições anteriores
para a Câmara dos Deputados, tende a comprometer a variedade da
representação dos diferentes partidos no Congresso, com a tendência à
consolidação de um único partido a longo prazo, tendência essa tanto
maior quanto mais altos forem os recursos públicos disponibilizados
aos partidos de forma exclusiva. O risco é a criação de um círculo vicio-
so em que o partido mais votado hoje receberá mais recursos amanhã,
podendo eleger ainda mais representantes, recebendo, assim, ainda
mais recursos e tornando quase impossível que um partido pequeno
possa reverter o quadro.
O problema já existe no atual sistema, pois os recursos do fundo
partidário atuais e o tempo no horário eleitoral gratuito já são distribu-
ídos proporcionalmente à representação dos partidos na Câmara dos
Deputados, o que gera inúmeras críticas por parte dos partidos meno-
res quanto à (in) justiça desse critério, mas a possibilidade de utilizar
recursos próprios e obter doações privadas (possibilidades vetadas no
projeto em tramitação) amenizam um pouco os efeitos negativos com
relação a esse aspecto. Caso o projeto seja adotado exatamente como
se encontra, mesmo que nunca se chegue a um caso extremo de mono
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 197

ou bipartidarismo, ocorrendo tão somente uma oligopolização e ma-


nutenção dos atuais grandes partidos, praticamente estaria fechada a
janela para o surgimento e consolidação gradual de um possível novo
partido conforme, por exemplo, o caso do PT após a redemocratização,
que de pequeno partido radical anti-establishment logrou consolidar-
se como uma das principais forças políticas do país.
Outra dificuldade antecipada diz respeito à distribuição dos re-
cursos dentro de cada partido entre seus vários candidatos. Sem uma
forte regulação a respeito dos percentuais obrigatórios a serem repas-
sados a cada estado, é possível prever inúmeros conflitos intrapartidá-
rios entre cúpulas e candidatos a governos estaduais em que a vitória
de um determinado adversário seja dada como certa e os leve a serem
cristianizados e deixados à míngua por seu próprio partido. Além des-
sa possibilidade em eleições majoritárias, no caso das proporcionais o
financiamento público exclusivo casa perfeitamente com eleições por
lista fechada, mas caso se mantenha o sistema de listas abertas atual,
teremos um grande potencial de conflitos na distribuição de recursos
entre os vários candidatos de cada partido. Distribuir igualmente os
recursos entre todos geraria fortes protestos dos puxadores de voto de
cada legenda, enquanto distribuí-los com base na popularidade presu-
mida certamente desgostaria os demais candidatos, além de conter um
óbvio caráter caciquista, concentrando demasiado poder nas cúpulas
que decidiriam quem receberia quanto.

Considerações finais

A repetição constante de escândalos relativos ao financiamento


de campanhas, caixa dois e tráfico de influências por parte de financia-
dores, tudo isso faz com que se tornem urgentes modificações no siste-
ma atualmente em vigor se quisermos dotar o país de uma democracia
real e socialmente efetiva. A forma e a intensidade das mudanças a
serem adotadas é que ainda são um tema controverso.
A adoção do financiamento público exclusivo de campanhas po-
deria, em teoria, diminuir a influência dos interesses privados sobre a
máquina pública, mas nada garante nos projetos em tramitação que
partidos e candidatos não continuassem a se valer de caixa dois finan-
ciado privadamente, visto que a prática já é ilegal sob as leis atuais
198 O preço da democracia
Caminhos para aperfeiçoar o sistema de financiamento de campanhas

e mesmo assim largamente praticada. Não há nada no novo sistema


proposto capaz de coibir eficazmente a perpetuação deste nocivo fenô-
meno, o que nos leva a crer que antes mesmo de pensar na introdução
ou não de alteração tão radical no sistema eleitoral brasileiro, outras
alterações se fazem mais urgentes.
Antes de qualquer outra mudança, é preciso alterar a legislação
brasileira a fim de endurecer as punições ao caixa dois e de dotar os
tribunais eleitorais de capacidade efetiva de fiscalização para execu-
tá-las com rigor ou tudo poderá, de fato, não passar de uma quimera
lampedusiana. Tal poderia ser obtido, por exemplo, através de uma
maior articulação legal de funções entre os tribunais eleitorais e a Re-
ceita Federal, Banco Central, Tribunais de Contas e o Ministério Públi-
co, além da instituição da obrigatoriedade de prestações de contas em
tempo real (ou pelo menos diariamente) pelos candidatos através da
Internet e abertura legal aos órgãos competentes acima do sigilo das
contas bancárias de campanha.
Além disso, seria interessante também impor um limite razoável
ao total de gastos permitido por candidatura, adote-se ou não o finan-
ciamento público exclusivo. É injustificável que se gastem centenas de
milhões a fim de pasteurizar candidatos e torná-los uma “mercadoria”
atraente, mas sem conteúdo, em um país com tantas carências sociais
e de infra-estrutura. No caso de adoção do financiamento público ex-
clusivo, talvez o valor de R$7,00 por eleitor seja excessivo e no sistema
atual a imposição de um limite conhecido de antemão (seja ele qual for)
pode facilitar a fiscalização através da própria percepção dos gastos re-
alizados pelo candidato em comparação ao limite imposto pela lei. E
dado que parte significativa dos gastos de campanha referem-se à pro-
dução das peças de marketing midiático, a padronização técnica dos
programas eleitorais por meio de alterações na lei que simplifiquem a
exposição dos candidatos e suas idéias sem tantos e excessivos efeitos
especiais destinados à espetacularização da política e mercantilização
dos candidatos poderia baratear significativamente os custos atuais.
E também com ou sem a exclusividade do financiamento públi-
co, talvez seja a hora de repensarmos os critérios de distribuição do
Fundo Partidário e do Horário Eleitoral Gratuito. Se é fato que existem
diversos partidos sem qualquer representatividade política, ideológica
e social registrados atualmente (fruto da facilidade com que se podia
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 199

criar um novo partido nos anos finais da ditadura e iniciais da rede-


mocratização) com os quais seria um “desperdício” aumentar gastos,
não é menos verdade que o sistema atual constitui-se em uma grande
barreira à consolidação de novos partidos potencialmente represen-
tativos de importantes segmentos da sociedade. Cabe destacar que a
facilidade anterior para a criação de partidos foi corrigida e, hoje, é ne-
cessário um grande esforço para se conseguir milhares de assinaturas
em todo o país num prazo fixo para que se possa legalizar um novo
partido e o problema dos partidos de aluguel possa, talvez, ser resol-
vido ou pelo menos extremamente minorado se fossem submetidos
a um “recall” e obrigados a provar sua representatividade conforme
as regras atualmente em vigor. Resolvido esse problema, cremos ser
absolutamente fundamental uma divisão mais igualitária dos recursos
públicos entre os partidos, a fim de evitarmos a oligopolização atual e
em andamento6.
Finalmente, é possível que o financiamento público exclusivo
não seja o mais recomendado no momento a todos os níveis de dispu-
ta, e formas intermediárias com alterações mais pontuais possam ser
mais adequadas em alguns casos. Em disputas majoritárias, poderia
ser extremamente interessante e exeqüível abolir a possibilidade de
financiamento privado, mas no atual sistema de disputa nas eleições
proporcionais sua adoção poderia causar mais problemas que os que
teoricamente resolveria, conforme adverte Samuels (2003). Neste caso,
pode ser mais adequada a manutenção do financiamento misto, com
a adoção do limite máximo de gastos e a alteração na forma de cálculo
das doações privadas permitidas. Hoje, estabelecida como porcentual
da renda do doador, deveria ser fixada em valores monetários abso-
lutos e de valor relativamente baixo, a fim de dar mais transparência
e diminuir o poder de chantagem e troca de favores entre candidatos
e doadores,7 incentivar a busca de múltiplos financiadores “de base”

6 Segundo dados divulgados pelo TSE, os quatro maiores partidos PT, PMDB, PSDB
e DEM devem ficar com mais da metade dos recursos do Fundo Partidário em 2008.
7 Segundo David Samuels (2003), “Com o sistema atual, nenhum doador pode
dizer que doou ‘demais’, porque ninguém sabe o que é realmente ‘demais’!”.
200 O preço da democracia
Caminhos para aperfeiçoar o sistema de financiamento de campanhas

(grassroots), em vez de alguns poucos mega-financiadores como no


sistema atual.
Certamente, o restabelecimento da democracia, após os longos
anos de autoritarismo do regime militar, foi uma das grandes conquis-
tas da sociedade brasileira. No entanto, entendemos que a democra-
cia jamais alcançará um estágio definitivo, sendo sempre perfectível,
passível de aperfeiçoamentos e aprimorar o sistema de financiamento
dos partidos e das eleições parece-nos um dos caminhos fundamen-
tais para esse aperfeiçoamento. Afinal, como afirma Zova�o, “embora
a democracia não tenha preço, ela tem um custo de funcionamento que
é preciso pagar e, por isso, é indispensável que seja o sistema democrá-
tico que controle o dinheiro, e não o oposto” (2005).

Referências

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Consultoria Legislativa, 2005.
NICOLAU, Jairo. Receita para Reduzir Escândalos. O Globo. Rio de
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O que podemos aprender com o “caixa um” e propostas de reforma.
In: BENEVIDES, Maria Victoria; VANNUCHI, Paulo; KERCHE, Fábio
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ZOVATTO, Daniel. Financiamento dos partidos e campanhas eleitorais
na América Latina: uma análise comparada. Opinião Pública. Campi-
nas, v. XI , n. 2, out. 2005.
As coligações
proporcionais no
sistema eleitoral
brasileiro

Raimundo José dos Santos Filho


Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de São Paulo. Bacharel em
Direito pela Universidade Federal de Rondônia. Especialista em Direito e Processo
Eleitoral pela FARO-TRE-RO. Professor da Faculdade de Ciências Humanas, Exatas e
Letras de Rondônia; e Faculdades Associadas de Ariquemes.

Vinícius Valentin Raduan Miguel


Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Rondônia.
Bacharel em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas, Exatas e Letras
de Rondônia. Mestrando em Ciência Política pela University of Glasgow.
202 As coligações proporcionais no sistema eleitoral brasileiro

Introdução

As coligações em eleições proporcionais são um dos pontos fre-


qüentemente apontados como causas da instabilidade ética na cena po-
lítica brasileira. É analisada pela ciência política como dois fenômenos,
sendo o primeiro a coligação partidária (ou eleitoral), com o objetivo
de obter vitória no processo eleitoral por meio do acúmulo de recursos
que permitam maiores chances, como tempo para publicidade gratuito
e votos, e o segundo, coligações e alianças no período posterior às elei-
ções, para possibilitar a governabilidade (FLEISCHER, 2006).
A confusão semântica tem origem nos Códigos Eleitorais, quan-
do entre 1950 e 1965, os “conjuntos” partidários eram chamados de
alianças, e na legislação eleitoral de 1985, de coligações.
No entanto, estranhamente, as segundas coligações não decor-
rem, necessariamente, das primeiras. Com o objetivo puramente elei-
toral, coligações sem o menor rigor ideológico-programático ou mes-
mo conflitantes, são feitas, por vezes, sob a justificativa de diferenças e
particularidades regionais.
Exemplo nítido desta problemática da ausência de solidez ideo-
lógica é a aliança (embora prevaleça o veto formal da direção) entre o
PT e o PSDB em Belo Horizonte. Grotescamente, em dois outros mu-
nicípios (Açailândia, MA e Cláudia, MT) a direção do PT autorizou
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 203

alianças para as eleições municipais deste ano. Em tempo, no total, o


PT já autorizou alianças com tradicionais rivais como o PSDB, DEM e
PPS em 14 municípios.
Repetição do cenário de 1994, quando o PSDB se aliou em vários
estados com o PCdoB, PDT e PPS, em tese, aliados do PT, com quem o
partido disputava a Presidência da República.
O Tribunal Superior Eleitoral, em 2002, chegou a denominar as
coligações de “esdrúxulas”, qualificação, que, se considerada a flexibi-
lidade (ou incoerência) dos partidos, cabe perfeitamente.
A problemática é o enfraquecimento dos partidos, com a diluição
do conteúdo que cada um deles deveria trazer como bagagem inerente
à sua representação de um segmento social. Isto se mostra ainda mais
grave com a ausência da verticalização, ou seja, a prevalência da “fe-
deralização das coligações”, com alianças em nível nacional que não
se repetem nas esferas estaduais e municipais. Em conseqüência da
miscelânea de partidos, a futura governabilidade é comprometida em
razão da ausência de pontos comuns para a elaboração das políticas.
Embora não pactue desta concepção por não ver problemas com a
diluição do conteúdo ou o fortalecimento partidário, Paulo Costa Leite
(2003), ex-presidente do STJ, aponta ser fundamental que as coligações
feitas com este propósito, confiram conteúdo ético à sua existência.
Uma questão que prevalece sem resposta é: as coligações diluem
o conteúdo programático dos partidos ou os partidos adotam coliga-
ções incoerentes por já não terem um rígido programa de governo e
sólidas bases político-ideológicas?
Finalmente, com as coligações em eleições proporcionais, as le-
gendas funcionam como um só partido, o que ocasiona um mecanismo
para burlar o quociente eleitoral.

Histórico
As coligações proporcionais no sistema político brasileiro re-
montam à abertura política de 1945. A partir de então, começaram, sob
a autorização estatal, as uniões entre partidos durante as disputas ao
pleito, como as alianças interpartidárias que surgiram após 1950 e le-
vam a criação de uma pessoa jurídica temporária. De fato, a coligação
é uma amálgama fictícia, uma abstração jurídica que leva à formação
204 As coligações proporcionais no sistema eleitoral brasileiro

de um partido imaginário, além daqueles que a compõe.


Este pleito foi marcado pela vitória de Getúlio Vargas para a Pre-
sidência da República, pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), tendo
como Vice-Presidente João Café Filho, do Partido Social Progressista
(PSP). No entanto, contavam com o apoio de uma facção dissidente do
Partido Social Democrático (PSD).
Wanderley Guilherme dos Santos citado por Amaury de Souza
(1962, p. 65) lembra que em 1962, mais de 80% das bancadas dos pe-
quenos partidos e 50% das bancadas das três principais legendas no
Congresso foram conquistadas por meio de alianças entre os partidos,
a maioria sem qualquer ligação ideológica ou programática.
Até 1964, prevaleciam coligações entre estes partidos (mais a
UDN), mas as coligações eram igualmente frágeis ideologicamente: o
PTB aliava ao PSD contra a UDN em algumas regiões e, em outras, a
UDN coligava com o PSD contra o adversário comum (PTB) (FLEIS-
CHER, 2006).
O elemento que significou uma ruptura temporária nesse siste-
ma foi o golpe militar de 1964, findando o governo Goulart (setembro
de 1961 – março de 1964), que existira sob intensa agitação popular,
ampliação do movimento operário, crise econômico-financeira, crise
no sistema político eleitoral e acirramento ideológico. Embora não seja
o escopo do trabalho, é digna a menção deste momento de crise insti-
tucional que provocou alterações nos sistema jurídico-político.
É importante destacar que os anos de 1961-1964 existiram como
entreatos golpistas, o primeiro armado por Jânio Quadros, com sua
carta-renúncia, prevendo a interdição dos setores militares de seu vice
e seu retorno nos braços do povo, e o segundo, o definitivo, desferido
pelos setores conservadores da sociedade e intenso apoio estaduniden-
se.
Em 8 de dezembro de 1961 o Congresso aprovava o Conselho de
Ministros, presidido por Tancredo Neves, do PSD mineiro. A compo-
sição do gabinete foi uma nítida vitória dos grupos conservadores que
faziam oposição ao projeto de Goulart: quatro ministros do PSD, dois
da UDN, um do PTB (o partido do presidente) e um ministério mais
simbólico do que efetivo, era a pasta de Relações Exteriores, a cargo de
Santiago Dantas.
Posteriormente, um segundo gabinete é formado, de centro com
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 205

orientação reformista, e, de pleno, solicita ao Congresso autorização


para legislar, por meio de decretos, sobre as reformas de base, remessa
de lucros, direito de greve e abuso do poder econômico, suprimindo o
Legislativo.
Em setembro de 1962 o Executivo retornava ao Presidente Gou-
lart e era fortalecida a campanha pelo plebiscito para retomada do pre-
sidencialismo, que de fato prevaleceu em 6 de janeiro de 1963. Goulart
reassume os poderes conferidos pela Carta de 1946.
Sob as brumas do golpe e o forte acirramento ideológico, PSD e
UDN obtêm em 1962, 54% da representação na Câmara Federal, o que
explica e provoca novas dificuldades para a governabilidade.
Sob marchas da direita e da esquerda, o golpe é preparado e
finalmente concretizado abolindo o pluripartidarismo, e criando um
partido para representação do governo – a Aliança Renovadora Nacio-
nal-Arena – e outro que, em tese, deveria significar a oposição ao novo
regime – o Movimento Democrático Brasileiro (MDB).
Esta situação se arrastou até 1984, quando os militares não dis-
putaram a Presidência da República, significando com isso o fim do
regime vigente, embora o novo presidente tenha sido eleito de forma
indireta, pelo Colégio Eleitoral. No entanto, a reforma partidária rea-
lizada no início do governo do general João Batista Figueiredo, trouxe
de volta o pluripartidarismo, apesar de ser, na realidade, uma tentati-
va do governo de dividir e esfacelar a oposição, que no momento era
concentrada em um único partido, o MD. Inclusive, essa reforma ainda
mantinha a proibição de legalização dos PCs.
Em 1985, já sob o governo Sarney, os parlamentares aprovaram
Emenda Constitucional que, entre outras medidas, aboliu o Colégio
Eleitoral, permitiu a organização dos partidos comunistas e estendeu
o voto aos analfabetos, além de eliminar as restrições ao processo de
formação dos partidos políticos. O Partido Comunista do Brasil (PC
do B) ressurge, assim como o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e o
Partido Socialista Brasileiro (PSB), que voltou à cena com seu líder dos
anos 1960, Miguel Arraes, assim como também foi criado o Partido Li-
beral (PL). Elemento novo no cenário político brasileiro foi a fundação,
em 1980, do Partido dos Trabalhadores, de base sindical, estruturado
de baixo para cima, atraindo um razoável contingente de militantes de
esquerda, que haviam rompido com o marxismo tradicional, incorpo-
206 As coligações proporcionais no sistema eleitoral brasileiro

rando inclusive uma nova esquerda católica.


Os parlamentares constituintes, eleitos pelo pleito de 1986, ela-
boraram uma nova Constituição em 1988, que preservou os elementos
tradicionais do regime republicano brasileiro: presidencialismo, fede-
ralismo, bicameralismo, multipartidarismo e representação propor-
cional. Contudo, a forma e o sistema de governo ainda foi um ponto
polêmico, que somente foi resolvido no plebiscito nacional de 1993. O
mandato presidencial foi definido como sendo de quatro anos, assim
como representação mínima de oito deputados e máxima de 70, dos
estados na Câmara Federal.
A Constituição de 1988 também teve a preocupação de conside-
rar o partido político como importante para a preservação do Estado
de Direito e o canal de acesso do Governo a determinadas parcelas da
sociedade, servindo ainda ao abrandamento das dimensões do poder
presidencial, uma vez que força uma subdivisão e respeito às mais va-
riadas tendências existentes no corpo social.
Vinte e dois candidatos disputaram o pleito para a Presidência
da República, mas o fato que merece destaque é que um partido recém-
criado, o Partido da Reconstrução Nacional – PRN, com o apoio de
outros pequenos partidos, elegeu seu candidato: Fernando Collor de
Mello, que disputou o segundo turno com Luis Inácio Lula da Silva.
Contudo, a forma e o sistema de governo ainda foi um ponto polêmico,
somente resolvido por meio de um plebiscito nacional, em 1993.

As coligações proporcionais na atualidade

Na atualidade, um dos fatores que levam às coligações é a incapa-


cidade dos partidos nanicos de alcançarem expressão nacional durante
as eleições, simplesmente pelo sistema de quociente eleitoral adotado
em nosso sistema eleitoral não permitir que um candidato se eleja se
o seu partido não possuir uma determinada expressão em termos de
votos alcançados. No entanto, como o sistema de quociente é utilizado
apenas para a eleição de parlamentares, tão logo se defina o pleito, os
partidos iniciam a busca para a ampliação da legenda, assim como do
aumento de sua participação no cenário político nacional.
No entendimento do cientista político Bruno Reis (2007), o siste-
ma eleitoral do Brasil é descentralizador em decorrência da represen-
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 207

tação proporcional com listas abertas, provocando competição intensa


e pulverizando os candidatos.
O que os partidos fazem, é examinar a compatibilidade dos seus
candidatos com a realidade eleitoral do seu estado, verificado a repre-
sentação de categorias profissionais na lista dos candidatos de legen-
da; participação de candidatos de aparelho, ou seja, os melhores apre-
sentadores de rádio e televisão ou pastores evangélicos, incorporando
candidatos de distintas regiões e microrregiões do estado. Acrescem-se
a listagem, as lideranças partidárias.
Temos, então, quatro tipos de critérios para candidatos: a) cate-
gorias profissionais, b) aparelhos, c) regiões, d) lideranças partidárias.
As lideranças partidárias, por sua vez, fazem a opção das três primei-
ras para assegurar a legenda e sua eleição, porque depende desses per-
sonagens a produção dos votos suficientes para ter o maior ou menor
número de candidatos.
Para o cientista político Otávio Soares Dulci (2003), nas coliga-
ções em eleições proporcionais, a finalidade da representação propor-
cional é completamente violada por provocar distorção na composição
das bancadas. Inexistem ainda critérios distributivos das cadeiras pela
chapa, e o projeto se esgota após a eleição. Ou seja, “É expediente tran-
sitório, que não se desdobra em atuação conjunta dos coligados nos
órgãos legislativos – o que afinal seria uma atenuante”.
Como analisa o estudioso José Giusti Tavares (2007, p. 113), as
coligações em eleições legislativas proporcionais comprometem a in-
tegridade e a identidade do quociente partidário. Comprometendo
igualmente a correspondência de cada partido entre a densidade rela-
tiva de votos com a densidade relativa de cadeiras, o que segundo ele
consistiria no objetivo essencial da representação proporcional.
Segundo Giusti Tavares, na maioria dos países onde ocorrem
alianças partidárias para eleições legislativas proporcionais, o cálculo
da distribuição de cadeiras é realizado respeitando o quociente parti-
dário ou seu equivalente entre os partidos que a compõe, levando em
consideração a participação relativa de cada um no total de votos da
coligação. Para ele, o grande problema brasileiro é que a aliança en-
tre os partidos não consistiria em uma coligação interpartidária, mas,
sobretudo na substituição literal do partido pela coligação partidária.
Conforme Giusti Tavares (2007, p. 133), as “coligações não são apenas
208 As coligações proporcionais no sistema eleitoral brasileiro

inconsistentes com eleições proporcionais; são também, nelas desne-


cessárias”.
Ao discordar de forma veemente sobre a implementação de uma
cláusula de exclusão no patamar de 5% em nosso sistema eleitoral,
o cientista político Jairo Nicolau, citado por João Paulo Viana (2006,
p.101), aponta que o fim das coligações em eleições proporcionais, se-
ria elemento imprescindível para conter a proliferação de legendas. No
entendimento do professor Nicolau, o mecanismo do quociente elei-
toral funciona como uma cláusula de barreira, contudo, é através das
coligações em eleições proporcionais que partidos nanicos “burlam”
tal mecanismo.
As coligações enfraquecem os partidos, diluindo o conteúdo
ideológico-programático e mesmo rompendo a coesão intrapartidária
(como mostraremos adiante), favorecendo o personalismo na política.
Um dos fatores de rejeição às coligações é o fato de que ela deturpa o
voto na legenda, visto que estes quase nunca resultam favoráveis ao
partido que obteve o voto, mas à coligação, que dele se beneficia.
Começando pela distorção criada pelo voto proporcional em lis-
ta aberta, que acaba por fragmentar os partidos, instigando a competi-
ção intrapartidária, posto que, sendo eleitos apenas os mais votados do
partido (ou coligação), a disputa eleitoral é interna ao partido (coliga-
ção) e não externa. A experiência demonstra que, no caso específico de
candidaturas, o inimigo eleitoral não é o candidato do outro partido,
mas o outro candidato do próprio partido, com quem de fato é dispu-
tado os votos para que o votado efetivamente seja eleito.
A coligação se torna um fator de deturpação gritante do voto
na legenda. Quando um eleitor, levado pela preferência partidária, em
vez de demonstrar sua preferência por esse ou aquele candidato de seu
partido, deposita o voto na legenda de sua confiança ideológica, pode
ocorrer de não obter o resultado que espera. Como o quociente eleito-
ral é o mesmo para toda a coligação, candidatos de seu partido, even-
tualmente muito bem votados, auxiliarão candidatos de outro partido
da coligação, embora estes candidatos, assim como seu partido, não
sejam da preferência do eleitor que votou na legenda.
Prevalecendo a manutenção das coligações proporcionais, os
partidos políticos continuarão a sofrer contínuo enfraquecimento,
pela descaracterização de seu ideário em face da eleição de candidatos
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 209

pertencentes a outras agremiações, ora coligadas, de ideologias confli-


tantes. Com a proibição, teremos uma melhor caracterização das iden-
tidades partidárias, exigindo, em seguida, uma regulamentação mais
rígida nas normas de fidelidade e de filiações partidárias.
Em meio a esse ambiente de numerosos partidos políticos, es-
cassa fidelidade partidária e coligações temporárias ditadas por con-
veniências pessoais, é certo que a Lei nº. 9.504/97 – assim como o pró-
prio Código Eleitoral - necessita de ajustes e aprimoramentos, seja no
sentido de acompanhar a evolução operacional decorrente do modelo
de voto informatizado implantado com sucesso pela Justiça Eleitoral,
como no sentido de conduzir a sociedade brasileira à criação de um
sistema eleitoral em que os partidos sejam robustos o suficiente para
agregarem e representarem os anseios dos diversos segmentos que a
compõem.
Apenas para reforçar a proposta, apontando possíveis soluções
à imensa fragmentação partidária, quando se considera o distancia-
mento entre as ações do parlamento brasileiro e o desejo dos eleitores,
o professor João Paulo Viana afirma que, da necessidade de partidos
fortes e representativos é que surge no debate político propostas sobre
temas polêmicos. Segundo ele:

Precisamos de partidos fortes, partidos que representem


bem os interesses da sociedade, em um sistema partidá-
rio sólido e não temporal. É exatamente aí que entram
pontos como a cláusula de barreira, verticalização, voto
distrital misto, fidelidade partidária, fim das coligações
nas eleições proporcionais e financiamento público de
campanhas. (VIANA, 2006, p. 87)

Esses pontos entram no debate da reforma política quando se


busca criar uma engenharia institucional que seja capaz de fortalecer
os partidos, promovendo uma maior ligação com o eleitorado, bem
como maiores condições de governabilidade. Como analisa ainda o
professor Viana (2006, p. 118), mudanças relativas à fidelidade partidá-
ria, ao fim das coligações em eleições proporcionais e o financiamento
público de campanhas, são consideradas essenciais para a estabilidade
do atual sistema.
210 As coligações proporcionais no sistema eleitoral brasileiro

Considerações finais

É consenso entre os cientistas políticos que o sistema partidário


brasileiro necessita de alterações. A divergência se encontra no teor da
mudança, em uma mudança radical, incluindo medidas como adoção
do voto distrital misto, lista fechada, financiamento público ou se ape-
nas ajustes pontuais no atual sistema.
A cultura política brasileira é marcada por interesses pessoais
afastados dos reais objetivos da Administração Pública. A lógica da
troca de benefícios privados, que garantem a governabilidade e negam
os conceitos de oposição e situação, prevalece sobre os interesses repu-
blicanos.
As coligações surgem da tentativa de superar a competitividade
eleitoral e, criando uma entidade supra-partidária, obterem vantagens
para o pleito, uma vez que o quociente eleitoral constitui um impedi-
tivo para partidos nanicos. Mas acabam tendo um fito puramente es-
tratégico, sem pactuação de uma agenda ou plataforma comum (CIN-
TRA, 2005).
Para assegurar a vitória, os partidos firmam coligações igual-
mente incoerentes e, até recentemente, antagônicas em níveis estadu-
ais e nacionais, configurando-se como meras siglas, agremiações sem
relevância ao invés de grupos sociais que partilham um mínimo de
coesão com alguma corrente filosófica e ideológica.
Inúmeros partidos políticos, sem coerência programática ou
clivagem ideológica interna, levam ao Legislativo, igual número de
projetos de governo, que não coincidem com o projeto trazido pelo
Executivo. Dessa tensão constante, o Executivo é obrigado a negociar,
distribuindo obras públicas e nomeações políticas sem esteio técnico
– mas necessárias aos atores envolvidos para atenderem suas bases
eleitorais e grupos de interesse que os cercam, em uma lógica pragmá-
tica compreensível: assegurar o futuro político imediato, capitalizando
retornos eleitorais com a reivindicação do crédito pelos programas e
verbas.
Sendo assim, a cooperação passa necessariamente pela negocia-
ção, o que envolve um flagrante patrimonialismo. Esta prática fisioló-
gica é a falência da política como vivência de um bem comum, tornan-
do particulares os segmentos extensos do poder público.
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 211

De modo geral, todo o processo político, seja para a aprovação de


leis ou outras temáticas, passa pelo filtro do fisiologismo, com inten-
sos debates para novas alocações de apadrinhados e obtenção de no-
vos benefícios clientelistas. Como o estadunidense Barry Ames afirma,
na falta de partidos programáticos, “no sistema vigente, o Executivo
constrói coalizões aliando o desinteresse dos deputados pelas políticas
de alcance nacional com a avidez por fisiologismos” (AMES, 2003, p.
202).
Portanto, utilizando da distribuição de cargos e programas de
políticas públicas, que são incorporadas as oposições e processadas
as dissonâncias. O orçamento público é utilizado para arregimentar
apoio político.
A ausência da fidelidade partidária permite partidos multiface-
tados, que se fracionam, sem qualquer conteúdo programático, apenas
com o fim de permanecerem ligados tanto à oposição quanto à situação.
É o caso do PMDB, que chegou a ter candidato em chapa oposicionista
ao mesmo tempo em que se aliava à base do governo. Para fomentar e
manter essa mágica política mercenária dividiu-se sob o comando de
diversos “caciques”, uns comandando a batalha oposicionista e outros
mantendo alianças que permitiam o partido, como um todo, garantir
as benesses do poder. Para assombro da sociedade, em momentos de
derrota de um determinado grupo, para evitar perdas gerais, aquele
inicialmente vencido, se alia a outro grupo imediatamente, como ficou
claro quando o presidente do partido, deputado Michel Temer, após ter
declarado apoio ao candidato oposicionista Geraldo Alckmin (PSDB),
testemunhando a derrota deste, celebrou acordo de apoio ao PT.
Essa manifestação de mobilização em busca de resultados junto
ao Poder Executivo, é a mesma que mobiliza os partidos políticos e
candidatos na campanha para o Legislativo. Com a permissão de coli-
gações proporcionais, o jogo de interesses pessoais, ou de determina-
dos grupos, leva à criação de verdadeiros monstros de Frankenstein
políticos, somente unidos pelo interesse na vitória eletiva.
Agravando a situação, o desconhecimento generalizado sobre o
sistema político-eleitoral acaba favorecendo estas práticas, e o engodo
não é facilmente percebido. Dificilmente o cidadão comum consegue
apreender a contradição existente em uma coligação para eleição pro-
porcional parlamentar, por considerar que o voto em seu candidato irá
212 As coligações proporcionais no sistema eleitoral brasileiro

contribuir para sua eleição, juntamente com o de outros eleitores que


comungam de suas opiniões políticas.
A excessiva fragmentação partidária, que insiste em proteger-se
sob o escudo do “pluripartidarismo”, é uma das mais evidentes razões
deste atraso institucional. Complementando esta, temos a ausência de
partidos políticos que detenham maiorias parlamentares significati-
vas, forçando com que o Executivo forme coalizões e alianças para a
implementação de seu projeto de governo, provocando o que a ciência
política brasileira tem por consenso denominar de Presidencialismo de
Coalizão, expressão clássica inventada por Sérgio Abranches (1988),
que consistiria numa mistura de multipartidarismo, representação
proporcional e presidencialismo.
Por fim, as coligações fazem transferências indevidas de votos
(LIMONGI, 2003).
Há no, entanto, a possibilidade de, aproveitando-se do desenvol-
vimento atingido pela sociedade, trabalhar no sentido de ampliar a sua
capacidade de discernimento sobre a forma como ela é representada
politicamente.
Por enquanto, vigora um sistema democrático contendo particu-
laridades eleitorais com a possibilidade de optar por um representante
e, concomitantemente, contribuir para a eleição de um candidato de
outro partido.

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A necessidade de
revisão do papel do
Senado na democracia
representativa brasileira
– ou sua extinção

José Luiz Quadros de Magalhães


Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor da
Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Titular da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais. Presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos
de Minas Gerais. Autor de Pacto Federativo, (Mandamentos, 2000); Direito
Constitucional, (Mandamentos, 2002).
216 A necessidade de revisão do papel do Senado na democracia
representativa brasileira – ou sua extinção

Introdução

Em 2007 a absolvição pelo Senado do Senador Renan Calheiros


trouxe revolta em parte da opinião pública brasileira. Algumas vozes
passaram a defender o fim do Senado Federal, outras, mais mode-
radas, a fusão das duas casas, o que pode significar a mesma coisa
por caminhos diferentes e uma linguagem menos agressiva. Como de
costume, passados alguns meses, uns escândalos a mais, ameaças de
CPI’s, que vão transformando o Congresso Nacional em comissariado
de polícia, o que definitivamente não é sua função, e ainda a longa
discussão da CPMF com a irresponsável extinção do tributo por razões
meramente partidárias, o tema do bicameralismo e unicameralismo foi
rapidamente esquecido. Naquele momento, as razões para extinção ou
fusão das duas casas eram muito mais emocionais do que técnicas, mas
despertaram em muitas pessoas a vontade de compreender a finalida-
de e utilidade desta casa legislativa em nossa história, especialmente
sua finalidade e utilidade contemporânea.
Neste ensaio vamos discutir a função do bicameralismo e do
unicameralismo no Brasil e em alguns outros estados nacionais, para
compreendermos a função que tem o nosso Senado na Constituição de
1988. Pretendemos demonstrar a necessidade de uma reforma consti-
tucional que resgate o Senado para a democracia representativa e para
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 217

o federalismo brasileiro. Acreditamos que da forma como funciona


atualmente o nosso Senado, mais do que desnecessário é uma institui-
ção ruim para a democracia e para o nosso federalismo.
Faremos uma análise teórica, comparativa e histórica, logo con-
textualizada. Queremos demonstrar que a desnecessidade do nosso
Senado não é uma tese jurídica descontextualizada. Não se trata de de-
fender, em tese, o unicameralismo no lugar do bicameralismo. O que
pretendemos levantar é o fato de que o Senado, no contexto histórico
institucional e constitucional da republica democrática instituída no
Brasil a partir de 1988, pode ser desnecessário, e mais do que isto, pode
ser prejudicial, uma vez que não cumpre sua função de casa de repre-
sentação dos entes federados, distorce a soberania popular fundada
no sufrágio igualitário universal (que proíbe a existência de voto cen-
sitário ou qualquer outra forma de pesos diferenciados de votos para
os cidadãos brasileiros), e ainda é históricamente marcado por uma
majoritária representação de elites políticas e econômicas conservado-
ras, famílias que se alojam no poder, perpetuando um familismo extre-
mamente prejudicial para a idéia de Republica e impedindo reformas e
transformações que a Câmara muitas vezes poderia promover.
Para compreendermos o papel do Senado vamos começar pela
análise de seu funcionamento na Constituição de 1988 para posterior-
mente fazermos um estudo comparado com o funcionamento do Sena-
do e sua finalidade(s) em outras democracias contemporâneas.

O Senado na Constituição Federal de 1988

A adoção da organização do parlamento, em uma ou duas casas


legislativas, ultrapassa a discussão da forma federal de Estado, poden-
do ter aspectos políticos relevantes para a estabilidade e conservação
do ordenamento jurídico. No Brasil, a Constituição de 1988 mantém o
bicameralismo das Constituições anteriores.
A Câmara de Deputados é formalmente a representação popular
onde o mecanismo de escolha deve respeitar a idéia de soberania po-
pular e voto igualitário: um cidadão, um voto. O Senado é formalmen-
te a casa de representação dos interesses dos entes federados em um
Estado Federal. No Brasil o Senado representa os Estados membros
e o Distrito Federal em um federalismo simétrico, o que implica na
218 A necessidade de revisão do papel do Senado na democracia
representativa brasileira – ou sua extinção

idéia de que a representação dos Estados membros da federação não


é proporcional à população, ao poder econômico ou dimensão territo-
rial, mas igualitária para cada Estado: três senadores para cada estado
membro e o Distrito Federal.
O nosso Senado, além de casa de representação dos Estados
membros e do DF, cumpre a função de casa legislativa revisora de na-
tureza moderadora conservadora, com o objetivo de barrar prováveis
mudanças bruscas na legislação e na Constituição decorrentes de uma
alteração radical na composição da Câmara dos Deputados, uma vez
que esta casa tem todas as suas cadeiras em disputa no período de
quatro em quatro anos, enquanto no Senado a renovação ocorre na
proporção de um terço, dois terços a cada quatro anos, permanecendo,
portanto, sempre uma parcela de componentes eleitos na legislatura
anterior. Desta forma, uma mudança radical na composição da câmara
de deputados será amortecida pelos senadores eleitos há quatro anos
atrás, que podem ser na proporção de um terço ou dois terços de todo
o Senado. Esta característica bastante conservadora é capaz de preju-
dicar a vontade popular expressa em um momento político específico,
frustrando a população com o papel desempenhado pelo legislativo.
Esta situação pode ser mais grave quando a maioria do Senado for
contraria à maioria da Câmara e ao Governo eleito. Como sabemos,
o governo depende do Congresso nacional para governar, como em
qualquer democracia representativa do mundo, e como o Senado par-
ticipa da votação em todo processo legislativo, não havendo separação
de competências legislativas segundo a vocação da casa, esta caracte-
rística conservadora será ainda mais acentuada.
Um outro grave problema que ocorre em nosso sistema bicame-
ral decorre da mencionada ausência de repartição constitucional de
competência legislativas e constitucionais entre as duas casas de modo
que mantenha a função de representação do povo por parte da Câmara
de Deputados e a representação dos estados membros por parte do
Senado.
A Câmara dos Deputados, pelo fato de representar os cidadãos, e
uma vez que se adotou o sistema de circunscrições equivalentes ao ter-
ritório dos Estados membros, deve ter número variável de Deputados
por circunscrição (que corresponde ao território do Estado membro),
correspondente à proporção do número de seus eleitores. Em outras
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 219

palavras, enquanto no Município e nos Estados membros as eleições


ocorrem em circunscrição única, o que implica na adoção do sistema
proporcional puro, para os representantes do povo brasileiro na Câ-
mara de Deputados Federais a Constituição não adota a circunscrição
única, mas sim um sistema que podemos chamar de distrital propor-
cional, uma vez que o território é dividido em circunscrições para fim
de aprisionamento do voto. Exemplificando: a) nas eleições para ve-
readores cuja dimensão é o território do município, o eleitor de qual-
quer bairro ou distrito pode votar em qualquer vereador de qualquer
bairro ou distrito (circunscrição única); b) nas eleições para deputados
estaduais, o eleitor de qualquer município, de qualquer região do Es-
tado pode votar em qualquer candidato do Estado, seja qual for seu
domicílio, sua região ou cidade (circunscrição única); c) nas eleições
para deputados federais a adoção de circunscrição única implicaria na
possibilidade do eleitor de qualquer cidade, município, região ou es-
tado, poder votar indistintamente em qualquer candidato também de
qualquer local. Isto não ocorre justamente pelo fato de nossa Consti-
tuição, diante da grande dimensão territorial e diversidade cultural e
econômica presente em nosso território, optar pela adoção de um sis-
tema distrital proporcional. Em outras palavras, o eleitor domiciliado
em Minas Gerais só pode votar nos candidatos a deputados federais
também domiciliados e inscritos em Minas Gerais. Isto não significa
que estes deputados representem Minas Gerais, representam o povo
brasileiro, mas para facilitar o controle dos representados sobre seus
representantes e evitar distorções favoráveis a candidatos residentes e
domiciliados em determinadas regiões decorrentes de poder econômi-
co ou mídia além de outros fatores, a Constituição dividiu o território
em circunscrições que correspondem ao território dos Estados mem-
bros. Em cada uma desta circunscrição haverá uma eleição proporcio-
nal para preenchimento de vagas que variam de oito a setenta.
Desta divisão decorre um problema sério: o texto constitucional
estabeleceu o número mínimo de 08 (oito) e o máximo de 70 (setenta)
Deputados por Estado. Esta proporção criada pelo mínimo e máximo
não permite que haja a proporcionalidade exigida por princípio funda-
mental da Constituição que mantenha o sufrágio igualitário de um ci-
dadão, um voto, visto a enorme disparidade existente entre os Estados
mais e menos populosos. Ou seja, a proporção entre o Estado menos
220 A necessidade de revisão do papel do Senado na democracia
representativa brasileira – ou sua extinção

populoso com menor eleitorado e o mais populoso com maior eleitora-


do não cabe matematicamente dentro da proporção entre oito e setenta.
Isto faz com que os brasileiros habitantes dos Estados menos populosos
sejam super-representados na Câmara (o seu voto vale mais, pois com
menos votos esses eleitores elegem mais deputados) enquanto que os
habitantes dos Estados mais populosos sejam sub-representados (uma
vez que para eleger um deputado precisa de muito mais votos do que o
eleitor dos estados menos populosos). Importante lembrar que se trata
neste caso de representação popular e não representação dos Estados
membros pois estes estão representados no Senado. Para corrigir este
problema é necessário mudar os números mínimo e máximo ou então
mudar o número de circunscrições que não precisam corresponder ao
território dos Estados uma vez que os deputados não representam os
Estados, mas sim o povo brasileiro.
Entretanto, com razão, argumenta-se que os Estados menos po-
pulosos seriam mesmo assim prejudicados por esta regra, pois, en-
quanto São Paulo teria 70 deputados, Estados como Rondônia, Amapá,
Acre, Roraima, entre outros, teriam cada um apenas oito deputados.
A casa de representação dos Estados membros é o Senado e este tem
três senadores para cada estado, mantendo assim o equilíbrio (ou si-
metria horizontal) federal. O Senado Federal, por representar a federa-
ção, estabelece pesos iguais de representação entre os Estados, sendo
que cada um terá três representantes, incluindo-se a partir de 1988, a
representação do Distrito Federal. O prejuízo dos Estados menos po-
pulosos, logo, só ocorre, pela inexistência de competências legislativas
próprias que preservem de um lado a simetria no senado e de outro a
proporcionalidade na Câmara. São necessárias mudanças no processo
legislativo que estabeleçam competências exclusivas de iniciativa para
cada casa, além das que já existem, observando a finalidade constitu-
cional de cada uma delas.
Outro problema com o Senado será seu conservadoris-
mo, muito mais marcante do que sua natureza de Casa Legisla-
tiva com a responsabilidade de manter o equilíbrio federal. Esse
conservadorismo negativo manifesta-se, claramente, em três mo-
mentos: a) o mandato de seus membros; b) a forma de renova-
ção dos mesmos; c) a sua competência legislativa onde não há de-
marcações claras de iniciativas legislativa para uma e outra casa
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 221

levando em consideração sua função e finalidade constitucional.


O mandato dos Senadores é de 8 anos, o dobro do mandato dos
Deputados Federais, não existindo, ainda, a possibilidade de renova-
ção de todos os seus membros de uma só vez, pois a eleição ocorre a
cada quatro anos, renovando-se um terço e dois terços dos seus mem-
bros alternadamente. O estabelecimento desse mecanismo, como já
mencionado, implica na existência de uma casa legislativa que poderá
representar, em determinado momento político, barreira às transfor-
mações mais amplas apoiadas pela maioria da população, oriundas de
uma Câmara dos Deputados totalmente renovada pelo voto popular.
O caráter limitador do processo legislativo pelo Senado se agrava
pelo processo de elaboração normativa estabelecida na Constituição,
onde todas as matérias devem ser votadas, normalmente, nas duas ca-
sas legislativas separadamente, e em alguns casos, como na apreciação
de veto presidencial, pelo Congresso Nacional, em sessão unicameral.
A adoção desse processo implica que as matérias oriundas da
Câmara dos Deputados, deverão ser discutidas e votadas no Sena-
do, sendo que se não aprovadas serão arquivadas ou então, sofren-
do emendas, voltarão para apreciação das modificações pela Câmara.
Aprovadas ou não, as modificações sofridas no Senado por meio de
emendas, mas aprovado o projeto de lei, este será encaminhado para
sanção ou veto do Presidente da República. Se o projeto de lei é propos-
to por senador, iniciando-se no Senado, ocorre o mesmo procedimen-
to, só que em sentido contrário. Importante observar que os projetos
de lei de iniciativa do Presidente da República, do Poder Judiciário, de
iniciativa popular, de iniciativa do Ministério Público ou de iniciativa
de deputados federais, deverão se iniciar na Câmara, seguindo o pro-
cedimento acima. Já os projetos de iniciativa dos senadores devem se
iniciar no Senado, seguindo então o procedimento já referido: após dis-
cutido, votado e aprovado no senado segue para a Câmara, esta pode
arquivar ou então, aprovar sem emendas indo para sanção ou veto do
Presidente da República. Se houver emendas aprovadas ao projeto de
lei, estas emendas retornam para apreciação da Câmara. Aprovadas
ou rejeitadas as emendas, segue o projeto para sanção ou veto do Pre-
sidente da República. O que chama atenção e que causa problemas é a
inexistência de matérias de iniciativa exclusiva do Senado e da Câmara
conforme a finalidade constitucional de cada uma destas casas. Para
222 A necessidade de revisão do papel do Senado na democracia
representativa brasileira – ou sua extinção

que o Senado cumprisse sua função de representação dos interesses


dos Estados membros, evitando a distorção que ele provoca da propor-
cionalidade da representação popular, e para que a Câmara cumprisse
sua função de representação igualitária do povo, evitando a distorção
que causa da simetria federal, teríamos que corrigir os seguintes equí-
vocos e omissões constitucionais:

a) As matérias de interesse dos Estados (matéria


fiscal e orçamentária, por exemplo) deveriam iniciar
obrigatoriamente no Senado e ter obrigatoriamente a
palavra final do Senado, após discussão e aprovação ou
não do projeto de lei, com ou sem emendas por parte da
Câmara de deputados. A não aprovação de um projeto
de lei do Senado implicaria em veto da Câmara que obri-
gatoriamente retornaria ao Senado para apreciação.
b) Todas as outras matérias de interesse popular
em geral deveriam ser iniciadas na Câmara de Depu-
tados e depois de passar pelo Senado, retornar sempre
à Câmara de Deputados para discussão e votação final,
na forma acima descrita.

Estas análises do nosso texto constitucional criam uma descon-


fiança em relação ao nosso bicameralismo e a busca de nova configu-
ração para nossa democracia representativa que possa oferecer maior
clareza, celeridade e transparência no processo legislativo. O unicame-
ralismo pode oferecer uma dinâmica muito mais adequada a um país
em transformação. Entretanto, a adoção do unicameralismo esbarra na
lógica federal especialmente na adoção de um federalismo simétrico
que busca a correção das diferenças regionais por meio de uma repre-
sentação igualitária entre os entes federados.
Será que todo federalismo é juridicamente simétrico? A única ma-
neira de corrigir as brutais distorções no desenvolvimento econômico
é por meio de um federalismo simétrico? Não acredito que seja. O fim
da simetria não pode ser obstáculo para a adoção do unicameralismo.
Existem Estados federais juridicamente assimétricos assim como exis-
tem Estados federais unicamerais. O bicameralismo não é uma condi-
ção inafastável para o federalismo. Vejamos pois algumas soluções:
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 223

a) Para a manutenção do Senado em um federa-


lismo simétrico a superação do problema pode ocorrer
de maneira simples, partindo-se da modificação dos
três fatores, enumerados anteriormente, como sendo
responsáveis pelo caráter conservador do Senado. I- A
redução do mandato para quatro anos e a renovação
de todos os seus membros, simultaneamente, com a
Câmara de Deputados, pode reduzir o caráter conser-
vador mantendo-se o equilíbrio federal no parlamento.
II- Outro avanço pode ser alcançado, corrigindo-se o
processo legislativo e estabelecendo-se competências
diversas, para as duas casas legislativas. Determinando
para o Senado e para a Câmara competências legisla-
tivas específicas segundo sua finalidade constitucional.
III- Criar novas circunscrições territoriais para fins elei-
torais, que permitam a correção das distorções entre os
estados com maior ou menor população ou modificação
dos números mínimo e máximo de deputados por cir-
cunscrição o que pode atenuar o problema.
b) Com a extinção do Senado e a adoção de um
federalismo unicameral simétrico, dinâmico, manten-
do-se mecanismos fiscais e princípios constitucionais
fundamentais que promovam e protejam o equilíbrio
federal com a redução das desigualdades regionais e
sociais.
c) Uma opção radical: temos defendido em vários
trabalhos, o Poder Municipal, estudando as opções exis-
tentes para a desejável descentralização de poder, o que
pode ocorrer por meio de uma federação de Municípios;
uma miniaturização dos Estados Membros; ou a simples
modificação da repartição de competências e os mecanis-
mos atualmente existentes ainda muito centralizados. Re-
conhecemos, entretanto, que este é um caminho incerto.

Para entendermos a adoção de um unicameralismo em uma Fe-


deração simétrica ou assimétrica precisamos resgatar alguns conceitos.
O que significa um federalismo simétrico e assimétrico?
224 A necessidade de revisão do papel do Senado na democracia
representativa brasileira – ou sua extinção

O Federalismo simétrico (simetria jurídica) busca o equilíbrio de


um Estado Federal de fato assimétrico (as assimetrias reais, de nature-
za econômica, cultural, populacional são muito comuns), onde os en-
tes federados de mesmo nível (municípios entre si e estados membros
entre si) têm as mesmas competências e se for o caso, o mesmo número
de representantes no Senado. Digo, se for o caso, pelo fato dos mu-
nicípios, embora sendo entes federados, não terem representantes no
Senado, mas tem entre si, as mesmas competências legislativas ordiná-
rias, administrativas e constitucionais.

O federalismo assimétrico ocorre em Estados comple-


xos que convivem com uma diversidade lingüística e
étnica de especial complexidade histórica, como ocorre
com o Canadá onde pessoas de cultura e idioma francês
convivem com pessoas de cultura e idioma inglês, ou a
Bélgica que dispõe de um Senado para representação
das comunidades lingüísticas neerlandesa (flamenga);
francesa e uma minoria alemã (MAGALHÃES, 2000, p.
113).

Pela existência destas comunidades distintas que guardam mui-


tas vezes rivalidades antigas, o Senado apresenta uma assimetria que
procura responder ao peso populacional de cada comunidade, assim
como o peso econômico algumas vezes. Portanto no federalismo assi-
métrico há um tratamento diferenciado em relação aos entes federados
de mesmo nível que procuram acomodar diversidades étnico-culturais
e ou econômicas.
No Brasil, embora convivamos com assimetrias reais que vão
desde uma diversidade cultural muito rica até realidades econômicas
muito diferentes, adotamos um federalismo simétrico do ponto de vis-
ta constitucional.
A adoção de um federalismo assimétrico (juridicamente) no Bra-
sil deve buscar a superação das assimetrias sociais e econômicas e não
perpetuá-las. Este é um problema que deve ser enfrentando e uma crí-
tica que pode surgir à adoção de tal proposta. O federalismo assimétri-
co serve apenas para manter e reconhecer as diferenças, como no caso
belga e canadense ou pode servir para superar assimetrias?
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 225

O federalismo assimétrico pode efetivamente ajudar a manter a


unidade em países como Bélgica e Canadá, que têm grandes diversi-
dades culturais que se mostram em certos momentos quase que insu-
peráveis. Entretanto, nos parece obvio, que, se de um lado este modelo
federal reconhece as diversidades populacionais e econômicas, não
condena nenhum Estado membro (ente federado) a condição de su-
balternidade, o que seria claramente inaceitável por países formados
por grandes diversidades étnicas e logo culturais, lingüísticas e econô-
micas como Bélgica, Canadá, Rússia, Suíça e citando um caso que não
deu certo, a Iugoslávia.
O modelo federal proposto para o Brasil não seria, entretanto,
de um federalismo assimétrico nestes termos. Como já discutido, po-
deríamos seguir um modelo de federalismo simétrico com as reformas
essenciais demonstradas ou então um federalismo unicameral como
ocorre, por exemplo, com a Venezuela.
Surge então uma outra pergunta: um federalismo unicameral é
necessariamente assimétrico? A resposta é não. Vejamos.
A inexistência do Senado nos sistemas unicamerais pode levar a
uma apressada conclusão de que, no federalismo, a representação dos
Estados membros (entes federados) seja feita pela Câmara de depu-
tados que necessariamente teria uma representação proporcional de
acordo com a população de cada Estado. Em primeiro a escolha dos
representantes na Câmara não precisa ser feita pelo sistema distrital
proporcional com circunscrições equivalente ao território do Estado
como ocorre hoje no Brasil. A forma de escolha dos representantes do
1
povo pode ser pelo sistema distrital majoritário , distrital misto2, dis-
trital proporcional (onde os distritos ou circunscrições eleitorais não
correspondam ao território dos estados membro) ou ainda pelo siste-
ma proporcional puro. Só isto já elimina qualquer suspeita de favoreci-

1 Em cada distrito eleitoral é realizada uma eleição majoritária que pode ser em
um ou dois turnos para a escolha do deputado daquele local.
2 A combinação do sistema distrital majoritário e distrital proporcional ou mes-
mo o proporcional puro, onde um percentual de vagas no parlamento é preenchida
por um e outro sistema, como ocorre hoje na Alemanha.
226 A necessidade de revisão do papel do Senado na democracia
representativa brasileira – ou sua extinção

mento de qualquer estado. Além disto, o equilíbrio federal ocorre efeti-


vamente por meio de uma justiça fiscal com a distribuição de recursos
de forma justa, buscando o cumprimento do principio da redução das
desigualdades regionais e sociais. O equilíbrio federal com equidade
deve ser construído com políticas públicas, políticas fiscais e equida-
de financeira e orçamentária fundadas sobre o principal constitucional
de observância obrigatória de redução das desigualdades regionais e
sociais.

O Senado em outros Estados Nacionais

Ao realizar um estudo comparado, especialmente na realidade


européia, percebemos que há uma característica comum ao Senado: o
Senado funciona como uma espécie de superego da nação, uma casa
conservadora que não detém as mesmas competências que a Câmara
(casa de representação popular e por este motivo quase sempre mais
importante), e que funciona muitas vezes apenas para vetar ou pro-
telar a entrada em vigor de uma lei, levando a Câmara a rediscutir e,
portanto, repensar determinada matéria. Outra característica comum
do Senado e a representação dos interesses regionais. Para o exercício
desta função o Senado detém competências próprias ligadas a estes in-
teresses, onde, em geral detém a palavra final. Apenas nestas matérias.
Portanto conservar, evitar mudanças bruscas e representar interesses
territoriais é a função preponderante do Senado, que por este motivo
não têm as mesmas competências e a mesma força da casa legislativa
popular. Importante que se diga que isto não é regra geral existindo
uma enorme variedade de sistemas. No parlamentarismo é comum
que apenas a Câmara de deputados escolha o governo e logo possa
também derrubá-lo, mas há exceções: na Itália o Senado também par-
ticipa da escolha e da derrubada do governo. Não se pode dizer que o
sistema italiano sirva de modelo, uma vez que te se mostrado extrema-
mente instável (MARTINES, 1994). De 1947 até hoje a Itália teve mais
de cinqüenta governos, o que dá uma média de quase um governo por
ano.
Devemos conservar, barrar mudanças, ou criar um sistema que
acompanhe as transformações rápidas das sociedades contemporâne-
as? Necessitamos de um Senado para defender os poderes locais ou
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 227

precisamos efetivamente de uma revisão do pacto federativo que des-


centralize recursos e competências para os estados membros e muni-
cípios?
Prosseguindo com a análise comparada vamos citar alguns
exemplos específicos, despertando nos leitores a curiosidade para que
busquem outros exemplos. Se o leitor quiser defender o nosso sistema
basta buscar exemplos no sistema norte-americano. Lembro, entre-
tanto, que este sistema tem se mostrado arcaico e pouco democrático,
fundado em eleições indiretas para presidente com forte presença dos
grupos de pressão organizados de setores econômicos e financiamento
privado de um sistema muito caro em um bipartidarismo que chega
facilmente a unanimidade quando se trata de sistema econômico. A
proliferação dos mecanismos de controle sobre a população (espe-
cialmente dos pobres, hispânicos e árabes) e dos órgãos internos de
inteligência soma-se uma mídia concentrada e comprometida com os
interesses econômicos da indústria armamentista e petrolífera. Lem-
bramos ainda que este bipartidarismo no bicameralismo presidencial
norte-americano, só funciona, devido a características históricas espe-
cificas, entre elas o fato de inexistência de uma oposição ideológica
efetiva ou algum partido de expressão que apresente alternativas ao
modelo sócio-econômico dominante. As eleições norte-americanas são
muito desacreditadas entre a população pobre que não vê perspectivas
de mudança de vida. A participação nas eleições estaduais é muito in-
ferior ao percentual de 50% do eleitorado enquanto as eleições presi-
denciais alcançam em média este patamar.
Podemos buscar um exemplo do outro lado do mundo: o Japão.
Neste país o Congresso Nacional tem o nome de Dieta e é composta
por duas câmaras: a Câmara de representantes (equivalente aos de-
putados) e a Câmara de Conselheiros (equivalente ao Senado). Os de-
putados têm mandato de quatro anos enquanto os conselheiros têm
mandato de seis anos, característica comum do bicameralismo, onde
o mandato do senador é em geral maior do que dos deputados, jus-
tamente acentuando o caráter conservador daquela casa. A Câmara
de Representantes é mais poderosa e conta com maior numero de
membros (em torno de 500 membro de acordo com os cálculos reali-
zados para a eleição distrital que antecede as eleições), enquanto que
o Senado (Câmara de Conselheiros) tem a metade deste numero. Só a
228 A necessidade de revisão do papel do Senado na democracia
representativa brasileira – ou sua extinção

Câmara de Representantes (deputados) participa da escolha e queda


do governo. Normalmente um projeto de lei se inicia e se aprova na
Câmara de Representantes sendo que a Câmara de Conselheiro pode
apresentar emendas que podem ser derrubadas pelos Representantes
(MARGADANT, 1993).
Um caso interessante de federalismo bicameral complexo e assi-
métrico é o da Bélgica. Este país une duas etnias preponderantes (valões
de fala francesa e flamengos de fala holandesa), além de uma minoria
alemã expressiva. Para superar as diversidades ainda hoje muito acir-
radas, as reformas constitucionais de 1893, 1899 e 1921 introduziram
a representação proporcional e a igualdade lingüística. Desde 1970 a
Constituição reconheceu comunidades lingüísticas com bastante auto-
nomia e competências importantes em matéria de educação. Esta des-
centralização constante culminou com a adoção do federalismo em 14
de Julho de 1992. O Senado belga não tem as mesmas competências da
Casa dos Representantes (deputados) e cumpre uma função de ma-
nutenção da unidade territorial belga constantemente ameaçada pelos
conflitos e preconceitos entre flamengos e valões. Como curiosidade
para a percepção da complexidade deste Estado Federal assimétrico ci-
tamos o professor Bruno Burgarelli Albergaria Kneipp quando analisa
a composição do Senado belga:

“O Senado possui setenta e um membros, assim escolhi-


dos:

a) vinte e cinco senadores eleitos pelo colégio eleitoral


holandês;
b) quinze senadores eleitos pelo colégio eleitoral francês;
c) dez senadores indicados pelo Conselho da Comunidade
Flamenga;
d) dez senadores indicados pelo Conselho da Comunidade
Francesa;
e) um senador indicado pelo Conselho da Comunidade de
fala alemã;
f) seis senadores indicados pelos senadores referidos nas
letras a) e c);
g) quatro senadores indicados pelos senadores referidos nas
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 229

letras b) e d).

Para complicar mais um pouco, existem mais regras acerca dessa


distribuição. Um dos senadores da letra a), c) e f) deverá ser legalmente
residente no dia de sua eleição na região bilíngüe de Bruxelas-Capital;
seis dos senadores das letras b), c) e g) deverão ser legalmente residen-
tes no dia da eleição também na região bilíngüe de Bruxelas-Capital.”
(KNEIPP, 2000). O total de senadores belgas deve sempre se basear na
proporcionalidade existente entre os diversos grupos lingüísticos. Um
detalhe curioso: a remuneração dos senadores é inferior a remunera-
ção dos deputados.
O federalismo alemão é um exemplo importante de federalismo
de cooperação, especialmente após a incorporação da República De-
mocrática da Alemanha (Alemanha oriental socialista) pela República
Federal da Alemanha (Alemanha ocidental capitalista). Na linha do
que temos demonstrado ate aqui, o Senado não tem as mesmas com-
petências da Câmara de deputados, não tendo a mesma importância
desta. Esta ultima escolhe o governo e pode derrubá-lo. Um dado inte-
ressante do Senado como casa de representação dos “Lander” é o fato
dos Senadores serem membros dos governos estaduais o que garante
a efetiva representação dos interesses dos entes federados estaduais
por meio de seus governos eleitos. Muitas vezes os próprios minis-
tros–presidentes dos “Lander” (que seriam o equivalente aos nossos
governadores) representam seus Estados. Cada “Land” só necessita
enviar um representante para o “Bundesrat” (Senado), uma vez que
todos os votos de cada estado membro devem ser no mesmo senti-
do. Em nível estadual a Baviera é o único estado membro que adota
o sistema bicameral com a adoção de um senado estadual (STEIN,
1983, p. 49).
A França não é um estado federal, mas como muitos outros esta-
dos unitários tem um Senado que não detém as mesmas competências
nem a mesma importância da Câmara de deputados, não participando
da escolha do governo e de sua derrubada. O Senado francês é esco-
lhido de forma indireta representando as coletividades territoriais da
Republica. O número de cadeiras no Senado é de 322, onde 296 re-
presentam os departamentos metropolitanos, 8 para os departamentos
“d’outre-Mer”, 4 para os territórios “d’outre-Mer” e 12 para os france-
230 A necessidade de revisão do papel do Senado na democracia
representativa brasileira – ou sua extinção

ses estabelecidos fora da França. O sistema de representação das coleti-


vidades territoriais é proporcional, sendo que cada departamento tem
direito a uma cadeira até 154.000 habitantes e mais uma cadeira para
cada 250.000 habitantes. O mandato dos senadores é de nove anos, su-
perior aos quatro anos dos deputados. A renovação do senado ocorre
na proporção de um terço a cada três anos. O senado francês participa
do processo legislativo mas a vontade da Câmara de Deputados sem-
pre prevalece. A inferioridade do Senado se caracteriza também pela
impossibilidade deste oferecer um voto de desconfiança em relação ao
governo. Existem, entretanto, alguns domínios onde o bicameralismo
francês se mostra igualitário. É o caso da adoção de leis constitucionais
e leis orgânicas relativas ao Senado (BURDEAU; HAMON; TROPER,
1995).
A Espanha adota uma forma de organização territorial “sui ge-
neris” classificada como uma forma altamente descentralizada de or-
ganização territorial, estado regional ou regionalizado ou como prefe-
rimos, estado autonômico, terminologia adotada por constitucionalista
espanhóis. O Congresso nacional espanhol, o legislativo nacional, e
chamado de “Cortes Gerais”. Seguindo a linha dos outros sistemas bi-
camerais já citados, seja em estados federais, seja em estados unitários
ou regionais, o Senado não tem a mesma competência da Câmara de
Deputados, mostra-se como uma casa inferior que não participa da
escolha do governo ou de sua derrubada e que tem como característi-
ca fundamental a representação de interesses regionais. A tramitação
de projetos e das disposições de leis inicia-se sempre no Congresso
de Deputados, mesmo que a iniciativa seja do Senado. A competência
do Senado não é simétrica com a do Congresso dos Deputados para a
produção legislativa uma vez que só cabe a proposição de emendas ou
o veto ao conjunto do projeto enviado pelo Congresso de Deputados,
com o voto da maioria absoluta do Senado. A aprovação de emendas
ou o veto do Senado produz o reenvio do texto para a reconsideração
dos deputados, que podem por sua vez se manifestarem por maioria
simples sobre as emendas do Senado. No caso de veto este pode ser
derrubado por maioria absoluta do Congresso de deputados (PER-
CES-BARBA, 1984, p. 67).
Poderíamos citar diversos outros exemplos mas não é necessário.
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 231

Estes confirmam os casos mencionados.3

O Senado não é essencial ao federalismo não se


constituindo, portanto, em cláusula pétrea.
Diante do que já foi dito sobre equilíbrio federal percebemos
com bastante clareza que não se constitui a existência do Senado em
uma cláusula pétrea, justamente pelo fato de que sua inexistência não
afetar o federalismo. Acrescente-se ainda a constatação aqui feita, de
que sua configuração atual fere a Constituição trazendo desequilíbrio
na representação popular, perpetuando privilégios locais por meio do
familismo além de não cumprir sua função de representação dos Esta-
dos.4 Existem várias formas de Estados Federais no mundo contempo-
râneo. Podemos perceber com clareza o movimento em direção a uma
acentuada descentralização, que os Estados democráticos do mundo
vêm construindo.
O federalismo clássico constitui-se no modelo norte-americano,
formado por duas esferas de poder, a União e os Estados-membros (fe-
5
deralismo de duas esferas ), e de progressão histórica centrípeta, o que

3 Obra de leitura obrigatória é a do Professor José Alfredo de Oliveira Bara-


cho, Teoria Geral do Federalismo, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1986. O professor
Baracho, como carinhosamente é chamado pelos seus alunos, construiu uma obra de
referencia em matéria de Direito Constitucional, Teoria do Estado e da Constituição.
4 Um aspecto interessante do nosso Senado é o fato do Senador poder perten-
cer a partido ou coligação diferente do governo estadual. Isto na prática política pode
muito mais prejudicar o estado do que ajudá-lo. Em países como Canadá e Alemanha,
o Senador deve ser indicado ou mesmo membro do governo estadual, só assim haverá
a correta representação dos interesses do estado membro, que tem um governo legi-
timamente eleito pelo voto popular. No caso canadense ocorre uma outra preocupa-
ção: pode ocorrer que a maioria dos governos estaduais seja de partido ou coligação
diferente do governo federal. Como o sistema canadense é parlamentar, os governos
seriam sempre viáveis uma vez que sempre teriam maioria na Câmara. Neste caso,
entretanto, embora com maioria na Câmara o governo enfrentaria um Senado hostil, o
que prejudica a aplicação das políticas governamentais.
5 A literatura sobre federalismo usa a denominação “federalismo de dois ní-
veis” para referir-se aos modelos federais em que coexistem as esferas de governo da
União e dos Estados-membros. Para tratar do federalismo brasileiro, que incluiu os
municípios como mais uma esfera, é comum encontrarmos a expressão “federalismo
de três níveis”. No entanto, faremos uso neste trabalho, apenas da denominação “es-
feras da federação”, ao invés de “níveis da federação”. Isto porque a palavra nível dá
a idéia de hierarquia, o que inexiste na forma federal de Estado, na relação entre seus
entes.
232 A necessidade de revisão do papel do Senado na democracia
representativa brasileira – ou sua extinção

significa que surgiu historicamente de uma efetiva união de Estados


anteriormente soberanos, que abdicaram de sua soberania para formar
novas entidades territoriais de direito público, o Estado federal (pessoa
jurídica de direito público internacional) e a União (pessoa jurídica de
direito público interno), uma das esferas de poder, ao lado dos Esta-
dos-membros, diante dos quais não se coloca em posição hierárquica
superior.
Importante ressaltar, neste ponto, alguns aspectos importantes:

1. O federalismo clássico de duas esferas diferencia-se de outros


Estados descentralizados, como o estado autonômico, regional
ou unitário descentralizado, pelo fato de ser a única forma de
Estado cujos entes territoriais autônomos detêm competência le-
gislativa constitucional, ou, em outras palavras, um poder cons-
tituinte decorrente. Assim:
1.1 No Estado unitário descentralizado, as regiões autônomas re-
cebem, por lei nacional, competências administrativas, caracteri-
zando a descentralização pela existência de uma personalidade
jurídica própria e eleição dos órgãos dirigentes. Esta descentra-
lização de competências administrativas pode ocorrer em nível
municipal, departamental ou regional, em um nível ou em vários
níveis simultaneamente. Exemplo: a França.
1.2 No Estado regional, as regiões autônomas recebem compe-
tências administrativas e legislativas ordinárias, elaborando o
seu Estatuto, mas sempre com o controle direto do Estado nacio-
nal (é o modelo italiano, onde, embora a Constituição da Itália de
1947 mencione este Estado como sendo unitário, as transforma-
ções por que vem passando fazem com que os teóricos classifi-
quem-no hoje como modelo de Estado altamente descentraliza-
do: um Estado regional).
1.3 No Estado autonômico espanhol, outro modelo altamente
descentralizado, ocorre uma descentralização administrativa e
legislativa ordinária, diferenciando-se este modelo de Estado re-
gional pela forma ímpar de constituição das autonomias, onde a
Constituição Espanhola de 1978 permitiu que a iniciativa partis-
se das províncias para constituírem regiões autonômicas e que
estas elaborassem seus Estatutos, que, para terem validade, de-
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 233

vem ser aprovados pelo Parlamento Nacional, transformando-se


em lei especial.
1.4 Já no Estado federal, os entes descentralizados detêm, além de
competências administrativas e legislativas ordinárias, também
competências legislativas constitucionais, o que significa que os
Estados membros elaboram suas Constituições e as promulgam,
sem que seja possível ou necessária a intervenção do Parlamento
Nacional (no nosso caso, do Congresso Nacional) para aprovar
esta Constituição estadual (como é necessário em relação aos Es-
tatutos das regiões autônomas no Estado regional e no Estado
autonômico), que sofrerá apenas um controle de constituciona-
lidade a posteriori. Não há, portanto, hierarquia entre Estados-
membros e União.
1.5 Não estamos considerando, como característica diferenciado-
ra entre estes tipos de Estados, a descentralização de competên-
cias judiciais.
1.6 O grau de descentralização ou o número de competências
legislativas e administrativas transferidas aos entes descentrali-
zados também não é hoje mais elemento diferenciador, uma vez
que existem Estados federais centrífugos onde o número de com-
petências legislativas e administrativas dos estados-membros é
inferior ao de regiões autônomas. O nosso federalismo é, ainda,
um dos modelos mais centralizados, bastando, para confirmar
esta afirmativa, ler a distribuição de competências legislativas e
administrativas nos artigos 21 a 24 da Constituição Federal de
1988, para verificar a concentração de competências na União,
em detrimento dos Estados-membros e Municípios.

Portanto, o que caracteriza o federalismo, o seu elemento essen-


cial sem o que não se pode falar em federalismo, é a descentralização
6
de competências constitucionais (o poder constituinte decorrente) . A

6 Já estudamos no nosso livro Direito Constitucional, (Direito Constitucional,


Tomo II, Editora Mandamentos, Belo Horizonte, 2002), as características principais do
Estado federal. Deixamos claro que o que difere o Estado federal de outras formas
234 A necessidade de revisão do papel do Senado na democracia
representativa brasileira – ou sua extinção

existência ou não de um Senado Federal não é um elemento essencial,


mas apenas uma característica de um tipo federal. A partir da Consti-
tuição de 1988, os municípios brasileiros não só mantêm sua autono-
mia como conquistam a posição de ente federado, podendo, portanto,
elaborar suas Constituições municipais (chamadas pela Constituição
Federal de leis orgânicas), auto-organizando os seus poderes executivo
e legislativo e promulgando sua Constituição sem que seja possível
ou permitida a intervenção do legislativo estadual ou federal para a
respectiva aprovação. O que ocorrerá com as Constituições municipais
(leis orgânicas) será apenas o controle a posteriori de constitucionali-
dade o mesmo que ocorre com os Estados membros.
Alguns autores têm rejeitado a idéia do município como ente fe-
derado, por ser uma idéia nova, mas seus argumentos (ausência de re-

descentralizadas de organização territorial do Estado contemporâneo é a existência


de um poder constituinte decorrente, ou seja, a descentralização de competências le-
gislativas constitucionais”, em que o ente federado elabora sua própria Constituição
e a promulga, sem que seja possível ou necessário a intervenção ou a aprovação dessa
Constituição por outra esfera de poder federal. Isso caracteriza a essência da federa-
ção, a inexistência de hierarquia entre os entes federados (União, Estado e municípios
no caso brasileiro), pois cada uma das esferas de poder federal nos três níveis brasilei-
ros participa da soberania, ou seja, detém parcelas de soberania, “expressas nas suas
competências legislativas constitucionais, ou seja, no exercício do poder constituinte
derivado. Não estamos afirmando que os Estados-Membros, a União e os municípios
são soberanos, pois soberano é o Estado federal e a expressão unitária da soberania,
ou seja, sua manifestação integral, só ocorre no poder constituinte originário. O que
afirmamos é que no Estado federal, além da repartição de competências legislativas
ordinárias, administrativas e jurisdicionais, há também – e isso só ocorre no Estado
Federal – a repartição de competências legislativas constitucionais. Essa repartição de
competências constitucionais implica a participação dos entes federados na soberania
do Estado, que se fragmenta nas suas manifestações. Entretanto, esse poder consti-
tuinte decorrente, embora represente a manifestação de parcela de soberania, não é
soberano, por esse motivo deve ser um poder com limites jurídicos bem claros, que
podem ser materiais, formais, temporais e circunstanciais. A Constituição de 1988 es-
tabelece limites materiais expressos e obviamente implícitos, deixando para o poder
constituinte decorrente, que é temporário (assim como o originário), prever o seu fun-
cionamento e o funcionamento do seu próprio poder de reforma e seus limites formais,
materiais, circunstanciais e temporais. O poder constituinte decorrente é de segundo
grau (se dos Estados-Membros) e de terceiro grau (se dos municípios), subordinados à
vontade do poder constituinte originário, expressa na Constituição Federal.
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 235

presentação no Senado, impossibilidade de falar-se em União histórica


de municípios, ausência de poder judiciário no município) são frágeis
ou inconsistentes diante da característica essencial do federalismo, que
difere esta forma de Estado de outras formas descentralizadas, que é
a existência de um poder constituinte decorrente ou de competências
legislativas constitucionais nos entes federados. Apenas no Estado Fe-
deral ocorre a descentralização de competências constitucionais.
Quanto à existência de um processo histórico de união, esta não
existiu no Brasil, assim como em vários Estados federais pelo mundo.
A formação de nosso Estado Federal ocorreu de forma fictícia, onde
ocorre uma União constitucionalmente construída a partir de 1891,
mas sem a existência de um processo histórico de união do que estava
separado, uma vez que o Brasil já nasce unido, tendo a nossa primeira
Constituição de 1824, estabelecido um Estado unitário.
O argumento da negação do município como ente federado fun-
dado em idéia de inexistência de representação dos municípios no
Senado não procede. Como já mencionado, existem Estados federais
não bicamerais (a Venezuela é unicameral), assim como ocorre o bi-
cameralismo em Estados unitários (França), regional (Itália), autonô-
mico (Espanha), sendo que, no caso brasileiro, o nosso Senado não é
apenas uma casa de representação dos Estados, mas cumpre também
uma função revisora e conservadora, caracterizada pela duração do
mandato e forma de renovação de suas cadeiras, como também estu-
dado anteriormente.

Conclusão

Uma primeira conclusão reside na constatação da necessidade


de reforma de nosso sistema representativo que pode seguir duas dire-
ções: a manutenção de um bicameralismo em um federalismo simétri-
co com a especialização das duas casas ou a adoção de um federalismo
unicameral também simétrico.
A manutenção do atual sistema se mostra irracional e prejudicial
aos interesses populares, portanto ofensivos à democracia representa-
tiva e participativa que estamos construindo em nosso país após 1988.
A transformação de nosso Senado em casa conservadora e in-
vestigadora ofende a vontade popular. Não há no Senado nenhuma
236 A necessidade de revisão do papel do Senado na democracia
representativa brasileira – ou sua extinção

discussão de grandes projetos de transformação das instituições e da


sociedade brasileira. Assistimos a uma sucessão de CPI’s que refletem
brigas políticas e a tentativa de permanente desestabilização do gover-
no para se alcançar o poder.
Discussões importantes, como o pacto federativo, são deixadas
de lado para atender a busca de manchetes em jornais e revistas como
uma casa que investiga (o que é função da polícia). O Senado nestes
termos tem se alçado a uma falsa condição de guardião da moralidade.
Quando o legislativo, no lugar de debater grandes temas nacionais, se
impõe como sua principal função a investigação, corre o risco de se
mostrar desnecessário perante a opinião pública brasileira, uma vez
que assume uma função para qual não tem competência técnica.
A característica conservadora demonstrada neste ensaio, assim
como a ausência de uma postura de defesa dos interesses dos estados
membros, que possa compensar a inexistência de mecanismos proces-
suais constitucionais adequados para o exercício desta função de re-
presentação dos entes federados, tem transformado o Senado em uma
casa protelatória, que inviabiliza a aplicação de políticas públicas ade-
quadas, que são exigidas com maior rapidez diante de um mundo em
constantes e rápidas mudanças.
A adoção de um federalismo descentralizado e unicameral, man-
tendo-se a simetria jurídica como mecanismo de busca da redução das
desigualdades regionais e sociais, pode ser um importante mecanis-
mo de transformação de nossa sociedade. O poder executivo tem se
mostrado, em nossa história democrática recente, como o poder mais
próximo das aspirações populares, e para que este poder exerça de
forma adequada suas funções, necessita de um legislativo ágil, trans-
parente, e que repercuta a vontade do povo por meio de um diálogo
permanente. É necessário para o país um diálogo permanente entre
executivo e legislativo fundado em idéias e projetos nacionais e não
em suspeitas, delações, ameaças e investigações que têm, na maioria
das vezes, finalidade de desestabilização do governo. Não podemos
manter a lógica de uma oposição que faz de tudo para inviabilizar o
governo para chegar ao poder. Quando esta oposição vira situação en-
tão é a vez da antiga situação, agora na oposição, fazer de tudo para
prejudicar o novo governo para então voltar ao poder. Quem perde
com isto somos todos nós.
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 237

Um legislativo ágil, que se renova a cada eleição, e que responde


à necessidade de debate e construção de projetos nacionais deman-
dados pela população, e, portanto, em constante dialogo com a po-
pulação e com o executivo, pode ser um importante instrumento de
transformação posto a serviço do povo. A isto poderíamos somar o fim
da profissionalização da política e dos políticos com a generalizada
proibição da reeleição, mas isto já é outra conversa.

Referências

MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Pacto Federativo. Editora Man-


damentos, Belo Horizonte, 2000.
______________. Direito Constitucional. Editora Mandamentos, Belo
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MARGADANT, Guillermo F. El Derecho Japonês actual. Editora Fon-
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BURDEAU, Georges; HAMON, Francis; TROPER, Michel; Droit Cons-
titutionnel. Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence. E.J.A., Pa-
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PECES-BARBA, Gregório. La Constitucion Espanola de 1978 – un es-
túdio de derecho e política. Fernando Torres-editor, Valencia, 1984.
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral do Federalismo.
Editora Forense, Rio de Janeiro, 1986.
Manifestações atuais
da representação
de interesses no
Direito brasileiro:
o caso específico do segmento cultural1

Francisco Humberto Cunha Filho


Advogado da União. Doutor em Direito pela Universidade Federal de
Pernambuco. Professor do programa de pós-graduação em Direito (mestrado
e doutorado) da Universidade de Fortaleza. Autor de: Cultura e Democracia na
Constituição Federal de 1988: a representação de interesses e sua aplicação ao Programa
Nacional de Apoio à Cultura (letra legal, 2004); Direitos Culturais como Direitos
Fundamentais (Brasília Jurídica, 1999).

1 Trata-se de adaptação do Terceiro Capítulo do meu Cultura e Democracia na


Constituição Federal de 1988: a representação de interesses e sua aplicação ao Progra-
ma Nacional de Apoio à Cultura. Rio de Janeiro: Letra Legal, 2004.
240 Manifestações atuais da representação de interesses
no Direito brasileiro: o caso específico do segmento cultural

Introdução

As reflexões seguintes partem da hipótese de que a Constituição


Brasileira de 5 de outubro de 1988 conferiu a certos setores, dentre eles
o cultural um sistema específico, especial e autônomo de exercício do
poder. Entende-se que esta conjectura está envolta em um campo deli-
cado da ideologia dos sistemas da representação, uma vez que evoca,
prima facie, um modelo atualmente visto com desconfiança, por boa
parte da doutrina política, precisamente a representação de interes-
ses.
Efetivamente contra este tipo de representação há motivos teó-
ricos e experimentos históricos que depõem peremptoriamente contra
sua utilização, por serem vinculados a regimes políticos excepcionais,
excludentes e ditatoriais.
Porém, não se faz ciência a partir de dogmas e, em decorrência
desta convicção, devem ser investigados alguns aspectos, que necessa-
riamente precedem um juízo de valor sobre eventual erro ou acerto (do
constituinte de 1987-88 ou do hermeneuta deste) de atribuir-se poder
diferenciado e particular ao setor cultural para suas próprias decisões
de natureza política. Por conseguinte, devem ser resgatadas as origens
da representação de interesses, com os respectivos fundamentos, ma-
nifestações e experiências; do mesmo modo, impõe-se a necessidade
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 241

de se averiguar se tal representação foi extirpada ou conservada nos


anseios políticos; e ainda, investigar se há manifestações em gérmen
deste procedimento representativo, a caracterizar um ressurgimento
em segundo grau para setores específicos, como o cultural, ora eleito
como objeto de investigação.

1. A idéia de representação política

A representação política é fenômeno paralelo à complexização


da sociedade, quando esta, adotando a dicotomia público/privado, di-
ferenciou-se do Estado que, sendo uma abstração, necessita de pessoas
que lhe formulem a vontade (lei) e a ação (execução da lei). Para o exer-
cício destas tarefas, os diferentes segmentos sociais, geralmente nume-
rosíssimos, não atuam em bloco ou em assembléia geral, por motivos
até mesmo de ordem prática, mas enviam aos órgãos estatais pessoas
que exponham, defendam e operacionalizem os pontos de vista da co-
letividade de que emanam. No contexto do presente estudo, portanto,
entender-se-á que representar é, no dizer sintético de Marilena Chauí
2
(2001, p. 286) “estar no lugar de ” alguém perante o Estado, para o
exercício de função pública.
Ideologicamente, a representação política tem natureza am-
bígua, pois nasce simultaneamente da necessidade de justificação do
poder, quando a investidura neste se dava por métodos não-racionais,

2 Segundo Marilena Chauí “Em sua origem o conceito de representação não


pertence ao contexto político: refere-se ao ato de apresentar-se em pessoa perante um
tribunal ou apresentar-se através de um procurador – esse primeiro sentido é jurídico e
definido no contexto da prática do direito em Roma (é bom lembrar que os gregos não
possuem a palavra ‘representação’); refere-se também à presentificação mental do que
está ausente, uma presença-em-imagem ou uma re-presentificação; refere-se ainda à
presentificação intelectual das coisas exteriores pelo entendimento, através da idéia da
coisa externa, sendo uma presença-em-idéia ou a ideação como re-presentificação do
dado exterior no intelecto, graças a operações realizadas pelo próprio intelecto; refere-
se, finalmente, à atuação dos atores na apresentação de uma peça teatral, a ação dos
atores tornando presentes personagens inexistentes. A não ser no caso da apresentação
em pessoa ao tribunal, em todos os outros casos representação significa estar no lugar
de” (CHAUÍ, 2001, p. 286).
242 Manifestações atuais da representação de interesses
no Direito brasileiro: o caso específico do segmento cultural

assim entendidos os formulados basicamente pelos critérios da força


bruta e da ordem divina (HEGEL, 1928, p. 432-433). Mas, por outro
lado, enseja a eliminação do exercício direto do poder, pelo povo, que
deve encetar esta prática através de representantes. Imaginando-se
metaforicamente a situação, a partir da imagem de um globo, e con-
siderando-se a investidura não-racional no poder localizada em um
dos pólos, e a democracia direta no oposto, o sistema representativo
3
estaria no ponto intermediário , porque, relativamente ao primeiro,
avança no sentido de forçar uma fundamentação da autoridade, mas,
por convicção, não busca atingir o segundo, por reafirmar o histórico
4
argumento da incompetência (BURKE, 1982, p. 82) . Ou quando me-
nos, a impossibilidade fática do povo para se autogovernar; este úl-
timo motivo decorreria de determinantes geográficos, consistente no
fato de que o avolumamento da população e da dimensão dos Estados
impediria a reunião pública e direta dos cidadãos na Ágora, como fa-
ziam os antigos gregos, mais especificamente os de Atenas. Importan-
tes pensadores defenderam o sistema representativo, sob o pálio de
pelo menos um destes argumentos, como Burke, Montesquieu, Sieyès,
Schmi�, dentre outros, conforme apanhado constante na obra de Paulo
Bonavides (1994, p. 204-205).
A idéia de representação política foi, desde seu nascedouro, du-
ramente rejeitada por determinadas correntes do pensamento, com

3 Hans Kelsen usando a palavra parlamentarismo como figura simbólica da


estrutura de representação, historia que “A luta contra a autocracia nos fins do século
XVIII e início do XIX foi, essencialmente, uma luta em favor do parlamentarismo. De
uma constituição que conferisse à representação popular uma participação decisiva na
formação da vontade do Estado, que pusesse fim à ditadura do monarca absoluto ou
aos privilégios consagrados pelo sistema das ordens (...). É certo que democracia e par-
lamentarismo não são idênticos. Mas, uma vez que para o Estado moderno a aplicação
de uma democracia direta é praticamente impossível, não se pode duvidar seriamente
de que parlamentarismo seja a única forma real possível da idéia de democracia. Por
isso, o destino do parlamentarismo decidirá também o destino da democracia” (KEL-
SEN, 2000, p. 45-46).
4 Conforme Edmund Burke “Nenhuma representação de um Estado é válida
e adequada se não compreende, ao mesmo tempo, sua aptidão e sua propriedade”
(BURKE, 1982, p.82).
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 243

destaque para aquelas vinculadas ao absolutismo, de um lado, e ao


ideal de democracia direta, do outro. Ligado à segunda linha de pensa-
mento, o expoente maior deste antagonismo é Jean-Jacques Rousseau
para quem:

A idéia dos representantes é moderna; vem do governo


feudal, desse iníquo e absurdo governo, no qual a espé-
cie humana é degradada e o nome de homem constitui
uma desonra. Nas antigas repúblicas, e inclusive nas
monarquias, jamais o povo teve representantes: não se
conhecia sequer esse nome (ROUSSEAU, s/d, p. 96).

Rousseau não se dobra nem mesmo ao argumento pragmático


de que a representação, antes de ser uma doutrina é um imperativo,
em face do grande número de cidadãos dos países modernos. O filóso-
fo busca na história da agigantada Roma a contra-argumentação:

É bastante singular o fato de, em Roma, onde os tribu-


nos eram tão sagrados, sequer se haver imaginado pu-
dessem eles usurpar as funções do povo, e, em meio de
uma tão grande multidão, nunca terem tentado passar
um só decreto oriundo de sua própria cabeça (ROUSSE-
AU, s/d, p. 96).

Nesta crítica Rousseau dá profundidade ao debate, tocando no


tema dos modelos de representação. A primeira grande dúvida a este
respeito consistia em evidenciar se os representantes deveriam, após
receber os mandatos, atuar como lembrou Ernst Bloch (1976, p. 70),
de forma a literalmente encetar a vontade dos eleitores (mandato im-
perativo) ou, noutro sentido, se receberiam uma credencial de livre
ação, balizada, no máximo, pelo fluido conceito de “interesse coletivo”
ou algo equivalente (mandato livre) (CHAUÍ, 2001, p. 294). Na classi-
ficação de Bonavides (1994, p. 202-203), as situações descritas repre-
sentam, respectivamente, as doutrinas da identidade e da duplicidade
representativa; no primeiro caso a vontade do eleitor é resguardada,
porque o representante não passa de emissário; no segundo, é des-
provida de proteção, uma vez que concorre com a vontade pessoal do
244 Manifestações atuais da representação de interesses
no Direito brasileiro: o caso específico do segmento cultural

representante, esta que prepondera5.


O ponto frágil de cada um dos modelos é de fácil inferência: a
doutrina da unidade transforma o representante em mero autômato
ou, mais suavemente, em simples mensageiro; a da duplicidade o di-
vorcia por completo dos eleitores. Constatado o impasse, como é natu-
ral acontecer, buscam-se soluções; a mais básica delas, intermediária e
mista, explicitada na obra de John Stuart Mill, é a de somente ocorrer o
governo representativo quando necessário:

(...) o único governo capaz de satisfazer inteiramente


todas as exigências do estado social é aquele em que o
povo todo participe; que é útil, qualquer participação,
mesmo nas funções públicas mais modestas; que a par-
ticipação deverá ser por toda parte tão grande quanto o
grau geral de melhoramento da comunidade o permita;
e que é desejar-se, como situação extrema, nada menos
do que a admissão de todos a uma parte do poder so-
berano do Estado. Todavia, desde que é impossível a
todos, em uma comunidade que exceda a uma única ci-
dade pequena, participarem pessoalmente tão-só de al-
gumas porções muito pequenas dos negócios públicos,
segue-se que o tipo ideal de governo perfeito tem de ser
o representativo (MILL, 1983, p. 49).

Outras idéias e experimentos vieram à cena política, tentando


compatibilizar representação e resguardo de poder pelo povo; neste
sentido, um dos mais importantes eventos, sem dúvida, foi a criação

5 Segundo Maurice Duverger “Os partidos políticos nasceram ao mesmo tempo


que os processos eleitorais e parlamentares. Desenvolveram-se paralelamente. Apare-
ceram primeiro sob a forma de comissões eleitorais, encarregadas simultaneamente de
dar a um candidato o patrocínio de notabilidade e de reunirem os fundos necessários
à campanha. No quadro das assembléias viu-se desenvolverem-se grupos parlamen-
tares, reunidos os deputados da mesma opinião em vista de uma acção comum. Esta
aproximação dos deputados, no cimo, provocava, naturalmente, uma tendência das
suas comissões eleitorais para se federarem, na base; assim foram criados os primeiros
partidos políticos” (DUVERGER, 1964, p. 152) .
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 245

dos partidos políticos, a partir da qual se oferece a possibilidade da


convergência de idéias, combinada com o controle social dos parla-
mentares, por mecanismos como o da fidelidade partidária (DUVER-
GER, 1964, p. 152).6 A consolidação e evolução dos partidos políticos
induziram o aprimoramento do sistema representativo (KOLARSKA-
BOBINSKA, 1994, p. 111-126). Produzindo um modelo em que deter-
minadas decisões estatais decorrem das vontades casadas de repre-
sentantes e representados; é o que se chama de democracia mista ou
semidireta.
Nos primórdios da democracia semidireta, os encontros das von-
tades de eleitores e autoridades eram certos e breves porque, quando
ocorriam, findavam após a prática do referendo, plebiscito e iniciativa
popular, mecanismos clássicos da fórmula; efetivamente mais uma téc-
nica de legitimação do que de participação. Deste ponto inicial, avan-
çou-se para uma necessária superação, consistente no entendimento
de que o povo não é mero colaborador dos poderes constituídos (LON-
GLEY, 1967, p. 637-658). Mas autoridade decisória, nas searas normati-
vas, executivas e até de julgamentos, nos casos e limites por ele próprio
indicados na Constituição (COTTA, apud BOBBIO, 1994, p. 1106).
Para além da democracia semidireta, há, ainda, quem cogite
no retorno da própria democracia direta. Conforme Dalmo de Abreu
Dallari (1991, p. 130), uma vez que os instrumentos da tecnologia atu-
al (meios de comunicação e cibernética) seriam hábeis a, virtualmen-
te, suprir a impossibilidade de reunião de todos os cidadãos em um
mesmo ambiente, fato este que determinaria uma eventual supressão
intermediadora do representante. Essa perspectiva embute algo de ro-
mântico, porque se fia no fato de que encontrada uma solução material
que permita a grande reunião dos cidadãos, estes estariam dispostos
a restabelecer a democracia direta no modelo clássico; desconsidera
a cultura representativa consolidada durante séculos, a qual, mesmo
sendo passível dos questionamentos até agora expostos, também tem
vantagens, como a de não ocupar todos, o tempo todo, com as tarefas
políticas, uma vez que a vida não se resume a isso (KELSEN, 2000, p.
49).
Outras correntes, defendidas por cientistas políticos como Paulo
Bonavides, analisam a democracia direta não mais pela forma exterior
de sua prática, simbolizada pela reunião em praça pública, mas busca
246 Manifestações atuais da representação de interesses
no Direito brasileiro: o caso específico do segmento cultural

revelar o que seria a substância, razão porque reformulam o conceito:

O importante e essencial, absolutamente indispensável


para definir hoje a identidade da democracia direta, é
que o povo tenha ao seu imediato dispor, para o desem-
penho de uma desembaraçada e efetiva participação,
os instrumentos de controle da mesma (BONAVIDES,
1995, p. 354).

Observa-se, assim, uma grande aproximação entre a mais avan-


çada idéia de democracia semidireta e a teoria substancial da demo-
cracia direta, a ponto de induzir à cogitação de que se trata da mesma
coisa, vista por ângulos distintos. A essência de ambas é a mesma: o
povo define as normas básicas de convivência na Constituição, conser-
vando a titularidade do poder e o direito fundamental de participar de
todos os atos decisórios do Estado, na forma originalmente indicada
(PRÉLOT, 1973, p. 516-519).
No plano do direito positivo brasileiro, múltiplas formas partici-
pativas foram previstas na Constituição de 1988, desde as clássicas, já
referidas, a outras inovadoras, por vezes vinculantes da própria atua-
ção do Estado, e até com autonomia relativamente a ele (CUNHA FI-
LHO, 1997, p. 88-89). Conclui-se, assim, que sem abolir a representação
tradicional, o constituinte de 1987-1988 deu excelência à participação
popular, revelando, em alguns casos, o formato explícito da dita parti-
cipação, mas noutras vezes deixando-o apenas subentendido.
No desvelamento destes mecanismos participativos, principal-
mente os que se relacionam ao setor cultural de um país com vocação
notoriamente multicultural, deve-se seriamente levar em consideração
a advertência de Friedrich Muller (2003, p. 60) de que uma adequada
noção de povo não é monolítica, mas, ao contrário, contempla a diver-
sidade e o conflito como elementos essencialmente caracterizadores da
democracia.

2. A idéia da representação de interesses

No plano da ciência política, a idéia basilar da representação de


interesses é bastante simples e consiste na convicção de que a formação
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 247

da lei, enquanto expressão da vontade coletiva, será mais perfeita, útil,


exeqüível, justa e, principalmente, correta se decorrer do somatório da
vontade dos diversos segmentos sociais, isto porque ninguém melhor
que os próprios interessados, para saber suas reais necessidades.
Deste modo, os órgãos competentes para definir as normas de
convivência deveriam ser compostos por representantes dos mais in-
fluentes segmentos sociais, e não de pessoas aleatoriamente escolhi-
das no seio da população, sem uma vinculação precisa com um dos
referidos setores, como ocorre na adoção de mandato livre, por mero
critério territorial. O resultado da representação de interesses, acredi-
tam os defensores da idéia, somente pode ser benéfico, uma vez que
a sociedade é formada por distintos atores, e se cada um bem atuar o
resultado será satisfatório para a coletividade em geral.

3. Os precedentes da representação de interesses

A partir da observação das ocorrências históricas relacionadas à


representação de interesses, pode-se afirmar sua recorrência desde os
primeiros sinais de alargamento da sociedade política, ou seja, desde o
momento em que a família perdeu a exclusividade do exercício do po-
6
der. Fustel de Coulanges relata a composição dos primeiros senados ,
na antiguidade, como uma corporação de representante de interesses
das famílias, uma vez que elas:

conservavam, tanto quanto possível, as antigas formas


do regime patriarcal (...) Também em Roma, cada uma
das famílias patrícias vivia rodeada de seus clientes.
Iam à cidade para as festas do culto público e para as as-

6 Os senados das federações hodiernas persistem com a idéia da representação


de interesses, só que não mais de famílias, mas de estados-membros, os quais seriam,
simbolicamente, na lógica aristotélica da evolução dos entes políticos, uma etapa a
mais. Veja-se, por exemplo HAMILTON, A., MADSON J. e JAY, (2001, p. 262). Este
autores consideram tão óbvio o direito de representação dos Estados, a partir de uma
casa legislativa própria que introduzem o tema com as seguintes palavras: “Es igual-
mente superfluo explayarse sobre el nombramiento de los senadores por lãs legislatu-
ras de los Estados”.
248 Manifestações atuais da representação de interesses
no Direito brasileiro: o caso específico do segmento cultural

sembléias (...) Só os patrícios podiam ser cônsules, e só


eles compunham o Senado (...), administravam a justiça
e conheciam as fórmulas da lei (COULANGES, 2001, p.
276-277).

Na Idade Média a representação de interesses atinge seu ponto


extremo e se expressa pelo fenômeno político conhecido como plura-
lismo de centros de poder (EHRLICH, 1986, p. 33). Não obstante sobre
um mesmo território houvesse uma unidade moral exercida por um
monarca, de fato não havia unidade normativa vez que diversos núcle-
os de interesses editavam e executavam as próprias normas (KANTO-
ROWICZ, 1998, p. 17-18). No dizer de Jorge Miranda:

(...) a sociedade política medieval e estamental é, com


efeito, como se sabe, uma sociedade complexa, feita de
grupos, de ordens, de classes, de múltiplas unidades
territoriais ou sociais. Os direitos aí são direitos das pes-
soas enquanto membros desses grupos ou estamentos,
direitos de acentuado cunho institucional e concreto. E
são também direitos funcionais de proteção e em con-
corrência uns com os outros (MIRANDA, 1998, p. 19).

Já nesta fase, um segmento social se destaca com autonomia na


edição e execução de suas próprias regras; Segundo Paulo Sandroni
(1996, p. 96-97) são as corporações, as quais, como acontecia com os
demais segmentos fortes da sociedade medieval, tinham poder de vida
e morte sobre aqueles que estavam a elas afetados. Pode-se ter uma di-
mensão clara destas prerrogativas, a partir do relato que Robert Heil-
broner oferece da decisão de uma Guilda francesa sobre uma simples
alteração na quantidade de fios empregada na confecção de tecidos:

(...) se um tecelão de roupas pretende produzir uma


peça de sua própria invenção, não deve obtê-la de seu
tear; precisa antes obter permissão dos juízes da cidade
para empregar o número e o cumprimento de fios de
que irá necessitar, depois que o caso for considerado pe-
los quatro mercadores mais velhos e os quatro tecelões
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 249

mais velhos da Guilda (HEILBRONER, 1996, p. 32-33).

No mesmo sentido, o “revolucionário” emprego de botões nas


roupas provocou “avalanches de protestos” e atos coibitórios por par-
te das Guildas que “demandaram o direito de dar buscas nas casas e
guarda-roupas de quem quer que fosse, de multar e até mesmo pren-
der nas ruas quem estivesse usando os tais renegados objetos subver-
sivos” (HEILBRONER, 1996, p. 33).
A Revolução Francesa, instrumento de antagonismo ao modus
vivendi medievo, rompeu com a idéia de representação de interesses,
substituindo-a pela de mandato livre, supedaneada na convicção com-
pletamente inovadora de que os problemas de uma Nação não pode-
riam jamais ser pensados de forma setorizada, mas em seu conjunto,
impondo-se observar as diversas conexões entre os diferentes interes-
ses, atitude esta impossível de ocorrer pelo mero somatório dos mes-
mos. Este pensamento ganhou positivação em diversas constituições
de Estados liberais, dentre as quais a do Ano III, pós-derrocada da Bas-
tilha, que reservou artigo especificamente para definir que “les membre
de l’Assemblée Notionale sont les représentants, non du département
que les nomme, mais de la France entière (BONAVIDES, 1994, p. 208).
Como enfatizou Boris Fausto (2001, p.15), a seqüência da história
humana, que não tem, necessariamente, curso retilíneo ou progressivo,
introduziu novos elementos que ensejaram uma retomada da idéia de
representação de interesses. Um fato decisivo concorreu para tanto: a
Revolução Comunista da Rússia, influenciada pelos escritos de Karl
Marx. Este evento clamava pela construção de um governo dos traba-
lhadores, camponeses e soldados e, efetivamente, uma vez conquista-
do o poder, mesmo observando que:

(…)en la Ley Fundamental de URSS está escrito (articulo


59-101) que las elecciones de diputados a todos los So-
viets se efectúam por sufrágio universal, igual, directo
y secreto”, faticamente se constata que “los candidatos
a diputados son presentados por los mismos ciudada-
nos: por sus organizaciones sociales de masas, colecti-
vidades laborales y asambleas en las unidades militares
(GRIGORIÁN, 1980, 176-177).
250 Manifestações atuais da representação de interesses
no Direito brasileiro: o caso específico do segmento cultural

A idéia comunista colocou o mundo em polvorosa, pois continha


um convite irrecusável aos excluídos que habitavam este planeta: cha-
mava-os à concretização da igualdade, difundida universalmente des-
de a Revolução Francesa, porém jamais implementada7. Com muitos
adeptos mundo afora, além de se espalhar na maior parte do território
europeu, o movimento comunista tentou conquistar o poder nos paí-
ses de capitalismo mais aguerrido. Por seu turno o sistema econômico
baseado na livre iniciativa teve que realizar uma autocrítica, o que no
plano jurídico se manifestou na forma de modificação das Constitui-
ções, que passaram, ao menos nominalmente, a valorizar o trabalho e
outros aspectos sociais, marcando, assim, o advento da segunda gera-
8
ção de direitos fundamentais (BONAVIDES, 1994, p. 518) .
O fato é que na tentativa de antagonizar o comunismo, mas acei-
tando em parte, uma das idéias por ele veiculadas, a da crítica ao indi-
vidualismo exacerbado, produto básico da Revolução Francesa, como
analisou Ortega (1998, p. 10), os Estados capitalistas ensaiaram fórmu-
las de valorização do trabalho operário, fazendo ressurgir uma repre-
sentação de interesse específico: a representação laboral.
A construção ideológica recente e a implementação fática da re-
presentação de interesses (especificamente a classista) são obras atribu-
ídas a Benito Mussolini, e serviram de modelo à configuração de consi-
derável número de parlamentos do mundo ocidental (TAVARES, 1988, p.
14-35). Gilberto Amado descreve a formulação representativa do “Duce”:

7 Para Marx e Engels “O primeiro passo na revolução operária é a elevação do


proletariado à classe dominante, a conquista da democracia. O proletariado utilizará
seu domínio político para arrancar pouco a pouco todo o capital à burguesia para
centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, ou seja, do prole-
tariado organizado como classe dominante (...)” (MARX; ENGELS, 2000, p. 66).
8 Conforme Bonavides, (1994, p. 518) especificamente sobre a segunda geração
de direitos fundamentais, ora referenciada, o autor a sintetiza com as seguintes pala-
vras: “São direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou
das coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas de Estado
social, depois que germinaram por obra da ideologia e da reflexão antiliberal deste
século. Nasceram abraçados ao princípio da igualdade, do qual não se podem separar,
pois fazê-lo equivaleria a desmembra-los da razão de ser que os ampara e estimula”
(BONAVIDES, 1994, p. 518).
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 251

Chegamos assim a bem especificar o caráter da reforma


sindical e corporativa, inconciliável com as instituições
parlamentares, levada a efeito na Itália. Aí a representação
deslocou-se do plano político para o plano econômico, e
os seus órgãos, em vez de obedecerem aos princípios do
constitucionalismo e da separação e harmonia dos poderes,
obedecem a um sistema especial de hierarquias, sobrepos-
tas umas às outras e articuladas na estrutura totalitária do
estado. Das Câmaras de representação italiana são banidas
as minorias. Essas formam também um todo. Suas funções
são meramente legislativas, non gubernativas. São labo-
ratórios legislativos de que emanarão os textos gerais que
traçam as direções dos futuros contratos coletivos; são apa-
relhos técnicos de cujo funcionamento disciplinado sairão as
leis, os regimentos, as ordenações necessárias ao equilíbrio
do corpo social hierarquizado (AMADO, 1999, p. 89).

No Brasil, a representação de interesses atingiu seu apogeu com


a Constituição de 1934, que é usualmente inserida no rol das demo-
cráticas (FERREIRA, 1999, p. 55). Na referida Constituição criaram-se
vagas no Parlamento Brasileiro especificamente para os representantes
dos diversos interesses laborais e empresariais do país, na quantidade
e no perfil constantes nos Art. 22 e seguintes, alguns dos quais, por
serem elucidativos, merecem transcrição:

Art 22 - O Poder Legislativo é exercido pela Câmara dos


Deputados com a colaboração do Senado Federal. (...) Art
23 - A Câmara dos Deputados compõe-se de representan-
tes do povo, eleitos mediante sistema proporcional e su-
frágio universal, igual e direto, e de representantes eleitos
pelas organizações profissionais na forma que a lei indicar.
§ 1º - O número dos Deputados será fixado por lei: os do
povo, proporcionalmente à população de cada Estado e do
Distrito Federal, não podendo exceder de um por 150 mil
habitantes até o máximo de vinte, e deste limite para cima,
de um por 250 mil habitantes; os das profissões, em total
equivalente a um quinto da representação popular. Os Ter-
252 Manifestações atuais da representação de interesses
no Direito brasileiro: o caso específico do segmento cultural

ritórios elegerão dois Deputados. (...) § 3º - Os Deputados


das profissões serão eleitos na forma da lei ordinária por
sufrágio indireto das associações profissionais compreen-
didas para esse efeito, e com os grupos afins respectivos,
nas quatro divisões seguintes: lavoura e pecuária; indús-
tria; comércio e transportes; profissões liberais e funcioná-
rios públicos (POLLETI, 1999, p. 51).

Sucedeu ao experimento mundial da representação classista a Se-


gunda Grande Guerra, que colocou exatamente em pólos antagônicos,
no que concerne à liderança do conflito, de um lado, países adotantes,
e do outro, não adotantes de tal formato representativo. Como se sabe,
o Eixo formado pela Itália, Alemanha e Japão barbarizou a democracia
e os valores humanitários básicos, e por via de conseqüência impregnou
tudo o que a si estava associado de automática repulsa, pois representa-
va (e ainda representa), simbolicamente, uma das raízes do “mal”.
Eis aqui o primeiro grande obstáculo ideológico enfrentado por
uma reflexão sobre uma possível representação de interesses, defini-
dora de políticas públicas, como seria o caso da cultura. Sepultado o
fascismo e seus derivados, aberta a possibilidade de construção de
uma sociedade irmanadora das nações, principiada a construção do
conjunto dos direitos de terceira geração (os de fraternidade ou solida-
riedade), e tendo vencido de forma arrasadora, após todos estes fatos,
a representação nacional, remanesce a questão: nos escombros do pas-
sado está enterrada, também, qualquer possibilidade de manifestação
legítima da representação de interesses em um Estado Democrático de
Direito, como se auto-intitula o Brasil? A resposta é, seguramente, não9,
o que se sustenta com base na argumentação a seguir desenvolvida.

9 Paulo Bonavides pondera que “tendo passado já a época da indiferença cons-


titucional aos partidos, é de esperar que no futuro toda reforma da Constituição volva
também suas vistas para a disciplina dos grupos de interesses. A ação política desses
grupos incide de modo decisivo na feição dos governos e no comportamento dos go-
vernantes, sendo eles, sob o aspecto da importância de último granjeada, um dado sem
dúvida fundamental ao bom entendimento do sistema representativo” (BONAVIDES,
1994, p. 219).
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 253

4. Abrangência da representação de interesses

O desenvolvimento da representação de interesses pode se dar


nos planos de produção, execução e aplicação das normas, o que a em-
parelha, em princípio, à clássica divisão dos poderes legislativo, exe-
cutivo e judiciário.
No plano da produção de normas, há algumas razões a partir
das quais se admite a representação de interesses; em síntese, ei-las: (1)
A convicção de que toda a organização social deve ser implementada
de forma mecanicista, a partir do somatório de interesses. Tal é, por
exemplo, o caso já analisado da experiência fascista, execrada pela de-
mocracia, além de motivos ideológicos e sentimentais (de repulsa atá-
vica), por concordância com a forma organicista de estruturação social;
(2) A conservação de prerrogativas e privilégios, por razões momen-
tâneas ou reconhecimento histórico; (3) O império do conhecimento
técnico-científico sobre o político, quando a situação fática demonstra
não ser racional a adoção de medida discricionária em lugar de outra
necessariamente emanada de padrões da ciência ou da técnica; (4) O
reconhecimento da necessidade de tratamento específico, em virtude
de peculiaridades do modus faciendi ou da teleologia implícita ou ex-
plicitamente definida pela sociedade, através da Constituição política,
em favor de determinado segmento.
Concretamente, tais fatores podem mesclar-se ou isolar-se, no
todo ou em parte, para o desiderato de conferir a determinado setor a
prerrogativa de produção de suas próprias normas.
No plano da execução de normas (executivo) a representação de
interesses é justificada essencialmente pela competência técnica (know-
how; savoir-faire), e mais tenuemente por razões políticas ocasionais
como descentralização, e conforme Di Pietro (2002, p. 34) parcerias,
além de controle ético. Já no que concerne à aplicação de normas (exer-
cício análogo à jurisdição), embasa a representação de interesses, além
dos fatores que acabam de ser mencionados, o reconhecimento de que,
em certas circunstâncias, o único julgamento justo ou pelo menos acei-
tável é aquele resultante da deliberação dos pares.
254 Manifestações atuais da representação de interesses
no Direito brasileiro: o caso específico do segmento cultural

5. Paradigmas explícitos da representação de


interesses no direito brasileiro

No ordenamento constitucional brasileiro ora vigente está con-


templada a representação de interesses nos três aspectos analisados,
ou seja, produção, execução e aplicação das normas (CUNHA FILHO,
1997, p. 88-89). Os casos mais emblemáticos e explícitos de autono-
mia na gestão de interesses contemplados na Constituição brasileira
são aqueles relacionados aos setores do esporte e das comunidades
indígenas, que merecem alguma pormenorização, em virtude se serem
eleitos, aqui, como paradigmáticos.
Quanto ao desporto, o inciso I do Art. 217 da Constituição Fe-
deral reconhece “a autonomia das entidades desportivas dirigentes e
associações, quanto a sua organização e funcionamento”, o que signi-
fica implementação dos próprios interesses, no plano administrativo.
Porém, não cessam aí as prerrogativas do segmento, ao qual também é
reconhecida uma jurisdição própria, pois, segundo a Constituição, “o
Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competi-
ções desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva,
regulada em lei” (§ 1º do Art. 217). Diga-se ainda que tal autonomia
não ilide a responsabilidade estatal de fazer “a destinação de recursos
públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em ca-
sos específicos, para a do desporto de alto rendimento” (Art. 217, II).
Relativamente às comunidades indígenas, o Art. 231 da Consti-
tuição brasileira estabelece que “são reconhecidos aos índios sua or-
ganização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo
à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
Esta prerrogativa é tão intensa que enseja a construção de subsistemas
de direito civil e penal. Nem mesmo o jus puniendi é preservado como
monopólio do Estado, quando se trata de comunidade indígena, em
face da qual, segundo o estabelecido no Art. 57 do Estatuto do Índio
(Lei nº 6.001/73), “será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de
acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares
contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infa-
mante, proibida em qualquer caso a pena de morte”.
A observação do perfil jurídico da gestão dos próprios interesses
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 255

permite sejam feitas algumas inferências: (1) Deve haver razoabilidade


para conferir-se gestão autônoma, segundo um ou mais dos critérios
especificados no tópico “abrangência da representação de interesses”;
(2) A autonomia não atinge o status de soberania, pois se desenvolve
dentro das balizas legais, ou seja, ao interesse particular de um dado
setor precede o interesse geral estabelecido nas leis. É como dizer: a
representação de interesses desenvolve-se em segundo grau, pois
o primeiro grau é definido pela lei que dá tratamento orgânico aos
diferentes segmentos sociais. Vislumbra-se, in casu, uma verdadeira
síntese dialética entre o antigo sistema da soberana representação de
interesses (cujo ícone mais representativo é a Guilda medieval) e o da
representação nacional pura, aniquiladora, ao menos em tese, dos in-
teresses corporativos; (3) A gestão dos próprios interesses não exclui
o segmento dotado desta prerrogativa da possibilidade de receber os
incentivos públicos, e ainda assim conservar a autonomia que lhe seja
peculiar e indispensável à própria razão de existir.

6. Representação de interesses do setor cultural


na Constituinte de 1987-88

A observação do último processo constituinte originário do Bra-


sil evoca a sabedoria bíblica reveladora de que “pelo fruto se conhece a
árvore”, já que o surgimento deste tipo de representação não se deu de
modo “espontâneo”, resultando, ao contrário, de intensa prática parti-
cipativa da comunidade cultural, da qual se originou o texto constitu-
cional ora vigente.
A consulta aos anais da Constituinte de 1987-1988 permite as-
sim constatar, nos pronunciamentos parlamentares, a ação direta ou
indireta do setor cultural de maneira a influir na redação final do tex-
to. Para este fim considera-se influência indireta aquela omitida pelo
constituinte, quando defende determinada estruturação normativa,
sem qualquer referência à origem de suas idéias, dando a entender
10
que o pensamento nasceu apenas consigo . No sentido oposto, carac-

10 São exemplos os pronunciamentos dos constituintes José Luiz de Sá (PL - RJ),


feito em 3 de abril de 1997, e Vladimir Palmeira (PT – RJ), datado de 4 de agosto de 1997.
256 Manifestações atuais da representação de interesses
no Direito brasileiro: o caso específico do segmento cultural

teriza-se aqui como influência direta aquela expressamente referencia-


da pelo representante, que faz questão de frisar ser um porta-voz das
coletividades culturais organizadas.
Uma das grandes preocupações da comunidade cultural durante
o processo constituinte vinculava-se à definição dos direitos intelectu-
ais com o status de fundamentais, sem, contudo, abrir mão da garantia
dos criadores e intérpretes manterem o controle sobre a exploração de
11
suas obras ou participações em obras de outrem . Somente este anseio
já revelaria o interesse de gestão autônoma do segmento cultural, que,
no entanto, aí não se esgota. Pode sintetizar as ambições do setor a
ação do “Movimento pela Defesa da Cultura12” o qual, intermediado
pelo constituinte Farabulini Júnior, do Partido Trabalhista Brasileiro
(em São Paulo), fez a crítica ao projeto de Constituição elaborado pela
Comissão de Sistematização, efetivamente contribuindo para obter a
mudança redacional de diversos artigos.
O Movimento reivindicava, além de direitos de natureza traba-
lhista e previdenciária, aspectos essenciais para o estabelecimento da
autonomia do segmento cultural, como a liberdade para as atividades
culturais, casada com o incentivo público; participação em conselhos,

11 No Diário da Assembléia Nacional Constituinte de 29 de outubro de 1997


há pronunciamento do constituinte Edmilson Valentim (PC do B – RJ), intermediando
esta reivindicação em nome da Associação dos Atores, Sindicato dos Artistas e Técni-
cos em Espetáculos de Diversões do Rio de Janeiro, Santa Catarina e Distrito Federal;
Associação Profissional de Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Espírito
Santo e São Paulo.
12 Compunham este movimento, segundo o Diário da Assembléia Nacional
constituinte de 5 de maio de 1988, as seguintes entidades: Sindicato dos Artistas e
Técnicos em Espetáculos de diversões no Estado de São Paulo – SATED/SP; União
Brasileira de Escritores – UBE; Associação dos Produtores de Espetáculos Teatrais do
Estado de São Paulo – APETE; Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São
Paulo; Associação Paulista dos Autores Teatrais – APART; União dos Fotógrafos do
Estado de São Paulo; Associação Paulista dos Críticos de Arte – APCA; Associação Bra-
sileira dos Críticos do Arte – ABCA; Associação Ecológica Fiscais da Natureza; Sindi-
cato dos Escritores no Estado de São Paulo; Sindicatos dos Trabalhadores na Indústria
Cinematográfica; Associação Paulista de Cineastas – APACI; Associação Profissional
dos Artistas Plásticos; Associação Brasileira de Imprensa – ABI; Movimento Nacional
pela Democratização da Comunicação.
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 257

com ênfase para o de comunicação; possibilidade de acesso de produ-


ções locais aos meios de comunicação de massa; ampliação do direito
de antena para entidades sindicais e organizações populares.
Em síntese, um olhar panorâmico sobre a atuação do segmento
cultural durante a última Assembléia Nacional Constituinte, permite
concluir que, tão forte quanto o produto normativo que garante a re-
presentação de interesse do segmento cultural, foi o processo do qual
ele resultou.

7. A explicitação da representação de interesses


do segmento cultural no direito positivo vigente

A partir desses parâmetros, de sua configuração jurídico-cons-


titucional, pode-se averiguar o segmento cultura, no sentido de saber
em qual medida pode o mesmo ser gestor, legislador e julgador dos
próprios interesses. Conforme observou José Afonso da Silva (2001, p.
42), tendo em vista que a cultura é fartamente mencionada na Consti-
tuição Federal do Brasil, proceder-se-á de forma seletiva, pinçando-se
apenas os dispositivos inerentes à autonomia de gestão.
Neste sentido, o inciso IX do Art. 5º da CF assegura que “é livre
a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comuni-
cação, independentemente de censura ou licença”. Além disso, outro
dispositivo constitucional (§ 3º do Art. 216) determina que “a lei esta-
belecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valo-
res culturais”. A escolha dos dois comandos constitucionais transcri-
tos, como base normativa para a comprovação da tese ora defendida,
não é aleatória; deve-se ao fato de que revelam a essência daquilo que
o Constituinte definiu como prerrogativas essenciais do setor cultural
no Brasil, dentre as quais a gestão autônoma dos próprios interesses,
incluindo aspectos normativos, executivos e de julgamento (aplicação
do Direito), como adiante especificado.
É de se notar que o dispositivo do Art. 5º, que se refere topica-
mente à plena liberdade das atividades intelectual, artística, científica e
de comunicação, é prolixo, pois (não fosse um texto jurídico carecedor
de precisão técnica), poder-se-ia substituir todos os termos específicos
por única expressão: manifestação cultural. Seria possível, portanto, o
inciso IX do Art. 5º da CF ter a seguinte redação: é livre a manifestação
258 Manifestações atuais da representação de interesses
no Direito brasileiro: o caso específico do segmento cultural

cultural, independentemente de censura ou licença.


Para muito além dessa observação (sugestão de redação do que
poderia ter sido o texto constitucional), algo deve ser ressaltado: a li-
berdade cultural conquistou status de direito fundamental13. É bem
verdade que Constituições anteriores já continham prescrição análo-
ga no seu rol de direitos14, mas a Constituição vigente se diferenciou
das que a precederam em aspectos fundamentais: previu não apenas
a liberdade para a cultura, mas também gestão participativa e o apoio
do próprio Estado para o exercício desta liberdade, conforme visto no
transcrito § 3º do Art. 216.
Eis aqui, uma equação que demanda desfecho: ter a obrigação de
apoiar uma atividade (a cultural) cuja essência é a liberdade de expres-
são, e que por isso mesmo, não raras vezes, faz a crítica do compul-
sório apoiador, o próprio Estado e sua Administração. E mais: aquele
que realiza a manifestação cultural recebeu do constituinte originário a
incumbência de funcionar como uma espécie de ouvidor (ou ombuds-
man) dos sentimentos sociais, podendo a qualquer tempo manifestar o
que pensa sobre o status quo, com liberdade acentuada, uma vez que
jurídica e politicamente liberado dos grilhões da censura e da licença.
A solução deste dilema está precisa e necessariamente em questão mais
afeta aos culturólogos que aos juristas: a autonomia da cultura.
Como o intento deste estudo é demonstrar que a Constituição
brasileira vigente possibilitou, ao menos no plano deontológico, ins-
trumentos contribuidores para a construção dessa autonomia da cul-
tura, necessário se faz dedicar algumas linhas ao tema.

8. A histórica busca de autonomia do segmento


cultural

A História demonstra que é freqüente serem as manifestações

13 Para mais detalhes ver CUNHA FILHO, (2000, p. 37-61).


14 Ver BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Yves Gandra, (1989, p. 58). Os Auto-
res identificam na Constituição de 1824: art. 179, nº 4 e 5; na Constituição de 1891: art.
72, § 3º, 12, 28, e 29; na Constituição de 1934: art. 113, nº 4 a 6 e 9; na Constituição de
1937: art. 122, nº 4 e 15; na Constituição de 1946: art. 141, § 5º e 7º a 9º; na Constituição
de 1967: art. 150, §§ 5º a 8º; na Emenda Constitucional nº 1/69: art. 153, § 8º.
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 259

culturais economicamente dependentes, submetendo-se a diversos se-


nhores (ou patrocinadores, na linguagem atual), como os reis, a igreja
e os mecenas. Os criadores intelectuais patrocinados dessa forma ja-
mais tiveram liberdade de externar precisamente o que pensavam ou
mesmo o que queriam, sob pena de perder a proteção do bem-feitor
(HAUSER, 2000, p. 28-29).
Também o Estado moderno fomentou a arte de seu interesse, ge-
ralmente aquela que faz a apologia da corrente ideológica que domina
o poder, bem como aquela que se coaduna com a formação do chama-
do sentimento nacional. As demais manifestações culturais geralmente
são excluídas das benesses, quando não perseguidas brutalmente.
Na pátria da indústria cultural, os Estados Unidos, i. e., a mesma
agressividade que as autoridades demonstram no plano bélico, o fa-
zem no controle de umas e difusão de outras manifestações culturais,
na direta proporção de seus interesses, isso indistintamente em terri-
tório americano como estrangeiro, a ponto de ensejar o livro-denúncia
de Frances Stonor Saunders, The Cultural Cold War: The CIA and the
World of Arts and Le�ers, ainda não traduzido para o português. Nes-
te compêndio revela-se que:

(...) durante a chamada Guerra Fria, o governo dos Es-


tados Unidos destinou vastos recursos a um programa
secreto de propaganda cultural na Europa ocidental. A
característica central deste programa era implementar
uma reivindicação que não existiu, o Congresso para
Liberdade Cultural, capitaneado por Michael Josselson,
agente da CIA, e que durou de 1950 a 1967. Suas reali-
zações, da mesma forma que sua duração, foram consi-
deráveis. No ápice de suas atividades, o Congresso para
Liberdade Cultural tinha escritórios em trinta e cinco
países, com dúzias de empregados; publicou mais de
vinte revistas de prestígio, realizou mostra de artes, or-
ganizou conferências internacionais de alto nível, e re-
compensou os músicos e artistas com prêmios e patrocí-
nios para performances públicas. Sua missão era afastar
a intelligentsia da Europa ocidental para longe de sua
renitente fascinação pelo Marxismo e pelo Comunis-
260 Manifestações atuais da representação de interesses
no Direito brasileiro: o caso específico do segmento cultural

mo, bem como aproximá-la do estilo de vida americano


(SAUNDERS, s/d, p. 1).
Também no âmbito interno dos Estados Unidos, na mesma épo-
ca, se não houve prêmio ou incentivo público às artes engajadas com
os valores capitalistas, pela própria natureza do sistema americano,
muita repressão e controle recaiu sobre os trabalhadores intelectuais,
em decorrência do “clima de intolerância e racismo durante o domínio
do senador McCarty” (RODRIGUES, 1991, p. 96).
Mas esse controle da cultura não se resume ao capitalismo; na
China, União Soviética, Cuba e no Leste Europeu comunista as artes e
demais manifestações culturais apoiadas e não perseguidas são aque-
las que implementam as experiências do que ficou conhecido como
“socialismo real” e que vão ao encontro dos interesses da Revolução.
Em discurso de Nikita Kruschev extrai-se a essência desse pensamento
sobre a relação do Estado socialista com o segmento cultural:

A imprensa, o rádio, a literatura, a pintura, a música,


o cinema e o teatro são aguçadas armas ideológicas de
nosso partido. E ele faz com que estas armas estejam
sempre de prontidão para a luta e que atinjam o inimi-
go sem errar. O partido não permitirá a ninguém cegar
essas armas ou enfraquecer seus efeitos (KRUSCHEV,
1963, p. 59).
O mesmo diapasão desafinador da liberdade cultural também
contaminou a história brasileira, principalmente a que contempla o
período do Estado Novo, durante o qual foi construída a essência da
normatividade balizadora da atuação estatal, relativamente à cultura.
Nesse período, que se confunde com a Era Vargas, a atuação pública
para o setor, segundo Alexandre Barbalho, contempla exatamente um

(...) duplo movimento de inviabilizar a produção que deni-


gre a nação, e incentivando somente a valorativa. A busca
de uma imagem unificada do país, portanto de uma cultu-
ra hegemônica, em detrimento de outras, tidas como preju-
diciais ao poder, é uma forma de garantir a manutenção do
regime. O que implica que setores da intelectualidade com
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 261

visões contrárias ao regime, os confrontivos, não só foram


marginalizados do circuito cultural criado pelo governo,
como ainda foram perseguidos, presos e torturados, além
de perderem seus empregos e terem suas obras censuradas
(BARBALHO,1998, p. 47-48).

O período militar principiado em 1964 teve comportamento


idêntico: criou e fomentou instituições culturais, protegeu a fatia da in-
teligência nacional ideologicamente afinada com o poder estabelecido
e, em inútil tentativa, buscou dizimar as demais correntes divergentes,
mesmo que não antagônicas15.

9. A gestão autônoma da cultura e o respeito à


vontade geral

Demonstrado não ser rara a dependência do setor cultural frente


ao Estado e, além disso, a incompatibilidade desta dependência para
com o papel constitucional reservado a tal setor (ombudsman social),
mormente em um país democrático, imperioso se faz encontrar uma
fórmula que sopese os seguintes valores: (1) ampla liberdade de ex-
pressão; (2) submissão dessa liberdade ao interesse geral (algo equi-
valente à volonté general de Rousseau), o que gera uma autonomia de
segundo grau; (3) apoio do Estado, sob a forma de fomento, quando
necessário, independentemente do conteúdo a ser veiculado, salvo se
contrário à subsistência da democracia. Esta fórmula, como visto, já é
reconhecida pela Constituição brasileira para outros setores (v.g. des-
porto e populações indígenas), consistindo no fato de que o Estado

15 Ver STEPHANOU, (2001, p. 247-248). Este autor historia a censura sobre o


filme Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, de José Mojica Marins, conhecido como
Zé do Caixão que, é público e notório, nada tem de subversivo e desenvolve em suas
películas temáticas relativas ao sobrenatural, especialmente sobre a vida após a morte.
Como se vê, o Estado controlador das artes não se contenta em banir apenas o contrá-
rio à sua ideologia, mas lavora para que tudo seja favorável a ela. No caso específico, a
justificativa para a censura baseava-se na convicção de que o filme não se compatibili-
zava com a “evolução do moderno cinema nacional”, e por esta razão o censor sugeriu
a prisão do produtor.
262 Manifestações atuais da representação de interesses
no Direito brasileiro: o caso específico do segmento cultural

desenha apenas a macro-moldura normativa do segmento, para ade-


quá-lo ao todo do interesse nacional, mas o comum e o constante das
decisões constituem competência do setor cultural, sob pena de usur-
pação de prerrogativas constitucionais, desrespeito às peculiaridades
e desconsideração das técnicas peculiares.
Precisamente por todas essas características a gestão autônoma
da cultura, em segundo grau, mesmo que não esteja explicitada, en-
contra abrigo no ordenamento jurídico brasileiro, e contempla também
aspectos de produção, gestão e aplicação de normas, de acordo com a
sistemática que doravante passa a ser desvelada.

10. O segmento cultural e a sua produção


autônoma de normas

A palavra autonomia, etimologicamente, é bastante reveladora:


auto + nomos, ou seja, capacidade de produzir as próprias normas, o
que é atributo indispensável de quem postula independência. Preci-
samente para o setor cultural, a autonomia normativa desdobra-se na
produção de normas reconhecidas pelo Estado e normas produzidas
enquanto Estado. No primeiro caso, os das normas reconhecidas pelo
Estado, situa-se o subsistema normativo da cultura, composto pelas
prescrições que dizem respeito às técnicas de produção cultural. Seria
dizer, por exemplo, as regras para admissão, disciplina e reconheci-
mento de membros dentro de um segmento artístico. Trata-se de deli-
cado aspecto, em virtude de uma característica especial das manifesta-
ções culturais, a criatividade, que adida ao direito à livre manifestação,
permite a insurreição contra as normas padronizadoras da produção
cultural, ensejando, tal rebeldia, a sanção do não-reconhecimento dos
pares que pertencem ao centro produtor das normas afrontadas. Es-
tas mesmas características (criatividade e liberdade) autorizam os dis-
sidentes a criarem outras normas e outros parâmetros de admissão,
disciplina e reconhecimento cultural, igualmente legítimos. Isto assen-
tado, infere-se que é mais correto falar-se não em subsistema, mas em
subsistemas normativos culturais, existentes em pluralidade incalculá-
vel, como também o são as possibilidades dessa sorte de manifestações.
No outro caso, o das normas produzidas pelo setor cultural
enquanto Estado, a representação de interesse cultural atua por con-
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 263

vocação deste ente político, o qual recebe o embasamento teórico ou


técnico pertinente para uma adequada atuação, considerando sempre
o interesse geral. Seria o caso, por exemplo, da interferência dos litera-
tos e demais envolvidos na seara da literatura, como fornecedores de
subsídios à elaboração daquilo que é designado por política do livro.
Ou então, em aspectos que permeiam distintos setores da cultura, de-
finições de políticas por parte de Conselho do setor, cuja composição
contemple a pluralidade da representação das manifestações.
Note-se que não são estanques os dois aspectos relativos à pro-
dução autônoma de normas pelo setor cultural. O primeiro necessaria-
mente influencia o segundo, e vice-versa, pois não se pode conceber
(ainda usando um exemplo que vem de ser citado) que uma única cor-
rente literária influencie com exclusividade a máquina estatal, quando
esta atua na produção de normas relativas ao setor, pois isto equivale-
ria à morte do pluralismo (enquanto princípio constitucional cultural)
e da criatividade (enquanto característica essencial da cultura).

10.1. A cultura e a administração


dos próprios interesses

Mesmo diante da constatação da produção autônoma de normas


por parte do segmento cultural, para a respectiva execução das mes-
mas, no âmbito estatal, continua em princípio a prevalecer a regra de
que a máquina administrativa as implementa. Seria o caso de um con-
selho da cultura decidindo as ações a serem encetadas, ficando a ope-
racionalização desta política a cargo da estrutura administrativa dos
poderes constituídos16. Surgiria para o órgão representante da cultura

16 Até mesmo Rousseau, paladino da idéia de que no plano legislativo era in-
concebível que alguém fizesse as vezes de um corpo eleitoral, defendia que a repre-
sentação consistia em imperativo relativamente à função executiva do poder, forma-
da por nada mais que o corpo concretizador das decisões soberanas. O autor de O
Contrato Social, mesmo nos dias atuais, mesmo omitindo exceções, não deixa de ter
razão porque, a partir da instituição do estado de direito, a lei é a baliza pré-elaborada
das relações interpessoais, para execução da qual cria-se uma máquina administrativa,
composta de servidores e estruturas pagas pelos cidadãos, e que devem implementar
as deliberações contidas nas normas por ele produzidas, quer de maneira direta ou por
representação (ROUSSEAU, s/d, p. 96-97).
264 Manifestações atuais da representação de interesses
no Direito brasileiro: o caso específico do segmento cultural

(no caso, o conselho), uma obrigação situada na fronteira do legislativo


com o executivo: a fiscalização, cujo objetivo é garantir que seja imple-
mentado aquilo que foi decidido pelo legislador.
Porém, há funções executivas que podem e outras que devem
ser delegadas pela Administração ao setor cultural. As que podem re-
lacionam-se com a expertise para a execução de tarefas; as que devem
envolvem julgamentos de mérito sobre qualidade das produções cul-
turais, bem como relações interpessoais no estrito ambiente das ativi-
dades relacionadas ao setor.

10.2. A cultura e seus “tribunais”

A prerrogativa de julgar constitui desdobramento da tarefa exe-


cutiva; assim também pensava John Locke, que não tripartia o poder
da mesma maneira que Montesquieu17. De fato, como analisou Rocha
(1995, p. 23) pode-se sustentar que julgar é aplicar a lei de forma im-
parcial e em caráter definitivo; conceito este em contraposição ao papel
atribuído ao Estado-Administração, que aplica a lei sendo parte inte-
ressada, inclusive para implementar o programa vencedor das eleições
que instituíram as autoridades investidas de mandatos eletivos.
Nesse sentido, o exercício de julgamentos também acompanha a
atividade cultural; muitos deles, sob pena de erro e violação de prerro-
gativas, devem ocorrer em esfera própria. A característica destes julga-
mentos abriga essencialmente as questões de técnica e disciplina ética.
Exemplos podem ser esclarecedores: se o Estado deseja premiar obra
artística de certa modalidade, esta decisão deve ser de um tribunal do
segmento específico. Também, em outra hipótese, se se deseja punir o
plágio, a avaliação meritória deste ilícito deve ser de órgão específico

17 Locke considera a existência dos poderes legislativo (“o que tem o direito de
estabelecer como se deverá utilizar a força da comunidade no sentido da preservação
dela própria e de seus membros”), executivo (o que “acompanha a execução das leis
que se elaboram e ficam em vigor”) e federativo (o que encerra “o poder de guerra e de
paz, de ligas e alianças, e de todas as transações com todas as pessoas e comunidades
estranhas à sociedade”) (LOCKE, 1991, p. 273-274).
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 265

- que aliás já existiu em nosso país18.

Conclusão
De tudo o que foi visto, não é difícil concluir que a gestão públi-
ca da cultura demanda tratamento sui generis relativamente às regras
gerais de Direito Administrativo, em virtude das diversas peculiarida-
des referidas, que demandam o constante compartilhamento entre o
poder público e os segmentos culturais emanados da sociedade civil
na elaboração e execução de políticas para o setor, tudo em função da
necessidade de implementar os valores constitucionais culturais, den-
tre eles, um com força garantística: a autonomia.
Constata-se, portanto, mesmo não figurando de forma explíci-
ta, que a Constituição Federal assegura a prerrogativa autonômica da
cultura, em segundo grau, o que na linguagem da Ciência Política é a
manutenção, para o setor, da representação de interesses.

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BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução em França; tradução

18 Trata-se do Conselho Nacional de Direitos Autorais, sucessivamente criado


e reformado pelos Decretos nº 76.275/75, 84.252/79 e 93.629/86, o último dos quais de-
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Gilmar dos Santos Nascimento


Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Campina Grande.
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Professor das Faculdades Integradas Aparício Carvalho.
270 Sociedade civil e reforma política

“Política é sempre uma ação coletiva. Requer uma vocação


especial para identificação, a articulação e a busca de soluções para os
problemas decorrentes de interesses heterogêneos”.
Maria Victoria Benevides

Quais as condições necessárias para que a reforma política acon-


teça no Brasil. Por que ela demora tanto? Em que sentido irá beneficiar
o povo brasileiro? De outra maneira, mas voltado para o mesmo foco;
como a sociedade enxerga a reforma? O que vislumbra de melhoria
para a democracia? E o que ela representa para a vida cotidiana? Em-
bora questões como estas venham sendo merecedoras de atenção e
pontuando os debates de diversos pesquisadores das ciências políticas,
as explicações para estes fenômenos geralmente ou têm se limitado à
sua mera constatação ou aponta nas suas causas a apatia da população
com o tema em questão.
A nosso ver essa é uma forma simplória de explicar a inércia da
sociedade. É necessário estabelecer outros olhares, variantes possíveis
para explicar o significado desse distanciamento. Desta forma, o pre-
sente artigo se constitui em uma tentativa de, num primeiro instante,
explicar o comportamento político da sociedade frente aos grandes
temas, os quais não transparecem de imediato suas conseqüências; e
como a sociedade se manifesta frente a valores ligados a políticas con-
cretas, aos governos, aos governantes, para além de exercer o dever de
participar através do voto dos processos eleitorais periódicos.
Debater a reforma política com um olhar da sociedade se consti-
tui no desafio a ser trilhado nas páginas seguintes.
Assim, o ponto de partida será buscar uma explicação através da
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 271

Cultura Política da sociedade, como pano de fundo para entender seu


envolvimento e sua apatia com as temáticas políticas brasileiras.
Procurou-se de maneira didática dividir em três partes. Na pri-
meira, são discutidos a ocorrência de envolvimento da sociedade civil
em questões da política nacional e de democracia; na segunda, são des-
critos dados das pesquisas empíricas e na terceira, por fim,a discussão
tem por foco as respostas dos entrevistados acerca da temática deste
livro. Nesta perspectiva as partes estão entrecruzadas.

Cultura Política: a sociedade e o homem

Mesmo que alguns indivíduos por desconhecimento se conside-


rem apolítico, o homem por sua natureza é um ser social e político, até
aqui nada de novidade. O que chama atenção no pensamento socio-
lógico com relação a temática é entender a relação entre a sociedade
e a política, comportamento político e apatia. É comprovado que no
pós - processo eleitoral, o eleitor na sua grande maioria já esquece em
que votou, não acompanha o mandato de que elegeu e esquecem até o
partido do votado.
Assim, a cultura política, conforme Maria Victoria Benevides
(2003, p. 84), aponta para o fato de que a grande função social dos
partidos seria organizar a política como ação coletiva. Por outro lado,
o que se materializa no Brasil é a busca por resoluções individuais, a
marca mais acentuada destes processos, e a indiferença do cidadão,
cujo maior aliado na compreensão dos caminhos da política advém da
divulgação na mídia. tema a ser posteriormente abordado.
É possível atestar que existem no comportamento político, que
vai se constituindo a partir de diferentes agentes formadores de opi-
niões, dados possíveis de serem mensurados a partir de estudos espe-
cíficos, com relação a temas como: a tendência de voto do eleitor, seu
comportamento nos anos seguintes, seu envolvimento com as discus-
sões conjunturais e sua posição frente aos grandes temas da política
brasileira. Em suma, a ciência política utiliza-se de um instrumental
técnico que permite o conhecimento do comportamento do eleitorado
no antes, no durante e no depois.
Especificamente em relação ao tema da reforma política, apro-
veitamos de um trabalho em andamento para ouvir algumas opiniões
272 Sociedade civil e reforma política

através de entrevista semi-estruturadas, com o objetivo de entender


como as pessoas compreendem que visão tem e fazem dos resultados
de uma reforma política no Brasil. E ainda que relação estabelecem
entre as suas vidas e outras questões macro do Poder Nacional e do
Poder Local1.
A tese que embasa as reflexões deste artigo parte do princípio
de que o eleitor transfere para política a possibilidade de resolução
de todos os problemas e para as reformas (seja qual for) a solução de
questões históricos da cultura política brasileira. Ao mesmo tempo as
discussões das reformas e nelas a política vem se limitado aos ciclos de
estudiosos e ao agentes políticos.
A principio, é oportuno esclarecer, sobre essa apatia social,
que embora discussões sobre a necessidade de reforma, venham
ocorrendo desde 1988, os avanços foram parcos. Em relação às re-
flexões sobre a participação da sociedade civil, os estudos ainda não
contemplam maiores analises. Isso não significa que tais análises
sejam desconsideradas, nem que a importância da opinião pública
seja minimizada nas discussões sobre a reforma política, Todavia
pode ser traduzidas como a falta de informação e a lentidão das
reformas políticas, sociais e jurídicas no País, Por outro lado, além
do desconhecimento do que seja a reforma política, pode apontar.
também para uma crise de credibilidade institucional, grave equí-
voco, Limitar as discussões sobre reforma política aos momentos de
crises é confundi-la como questão conjuntural, quando na verdade
ela é estrutural.
A sociedade civil, através das suas organizações, procura maxi-
mizar as discussões, através de fóruns, debates e ciclos de palestras,
entre outros, mesmo assim, são ações esporádicas e de repercussão
mínima, o que coloca uma delicada questão: Por que a sociedade não
entende as reformas propostas pelo governo como algo que vem ao en-
contro do aprimoramento das instituições? De fato o que se observa é
um discussão efetivada a partir de ações de caráter coletivo, cujas con-

1 Dados extraídos de pesquisa em andamento sobre as visões de mundo pre-


sente no imaginário do homem portovelhense que reside na zona sul da cidade.
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 273

seqüências incidirão diretamente na vida do povo brasileiro, porém,


tem ficando restritas a um número pequeno, e as parcas mobilizações
não produzem participações.
A questão inicial verificou o interesse por política. O estudo desta
variável se torna importante por dar a dimensão de comprometimento
dos eleitores com o processo político. Constatou-se que os entrevista-
dos alegam não possuir interesse por política.

A análise da pergunta inicial permitiu a elaboração do seguin-


te quadro.

Muitos se interessam 11,9


Um pouco se interessa 36.3
Não se interessam 51,8
Total 100%
Fonte: pesquisa em andamento dados coletados no segundo semestre de
2007, foram ouvidas até o período 405 pessoas.

A partir dos dados verificou-se uma aparente incoerência entre


as respostas dos entrevistados e as perguntas relacionadas com política
e reforma política. Percebe-se um dado contraditório entre a esperança
e o desencanto com o tema. Para tanto, será feita a análise descritiva
de algumas variáveis.
Observa-se que existe uma clara tendência para a falta de inte-
resse por política (36,3% e 51,8%). A pergunta foi aberta e direta com
o objetivo de perceber a visão inicial dos entrevistados sobre a políti-
ca, aqui não se mensurou os dados por classes, nem por escolaridade,
mais foi definido o campo de pesquisa e a amostra aqui é aleatória, a
partir de dados iniciais.
Por outro lado, quando houve um afunilamento das questões e
elas tratavam de aspectos mais específicos as respostas foram ganhan-
do outros contornos.
Questionados então sobre a importância da reforma, os dados
apresentam uma outra leitura.
274 Sociedade civil e reforma política

Você considera a reforma política importante:

Muito 64,4%
Um pouco 21,4%
Não 14,2%
Total 100%
Fonte: pesquisa em andamento dados coletados no segundo semestre de 2007,
foram ouvidas até o período 405 pessoas.

Verificou-se uma grande importância manifestada, quase sem-


pre apontando para defesa da democracia, mais liberdade, maior lega-
lidade dos aparelhos de estado, ou seja, apontando ao mesmo tempo
para um total desconhecimento do que seja a reforma política. Como
se pode ver nos levantamentos dos dados 64,4% dos entrevistados dis-
seram achar que a reforma é muito importante, mas ao mesmo tempo
não foram capaz de relaciona-la aos tempo que constituem.
No entanto, a análise de outras variáveis permite que se possa
ao menos relativizar essa conclusão. Uma das variáveis diz respeito à
percepção dos entrevistados sobre a existência ou não de democracia
no Brasil. Uma pequena maioria dos entrevistados disse existir demo-
cracia no Brasil.

Em sua opinião existe democracia no Brasil

Sim 57%
Não 43%
Total 100%
Fonte: pesquisa em andamento dados coletados no segundo semestre de 2007,
foram ouvidas até o período 405 pessoas.

É possível sublinhar que o brasileiro percebe claramente a cida-


dania de papel que ele possui, sempre escuta “providencie seus docu-
mentos se não você não existe”, só que essa cidadania garante muito
pouco ou quase nada na sua vida cotidiana. As reformas em andamen-
to são significativas para se caminhar para uma democracia social, en-
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 275

tendida aqui como no mínimo mudanças no processo de socialização,


e não apenas aporte abstrato para apresentar o País com uma estampa
que, na verdade, a vida,a realidade brasileira depõe contra.
Essas respostas, como se afirmou, foram extraídas da pesquisa,
ainda em andamento. São dados preliminares que servem para nor-
tear os caminhos referentes ao objeto de estudo aqui em discussão.
No entanto, não permitem o conhecimento mais detalhado do que as
pessoas compreendem pelo tema da reforma política, são balizadores
para motivar a discussão que aqui vem sendo realizada referente a ne-
cessária participação da população na discussão dos grandes temas da
política brasileira.
O conjunto das respostas, todavia, oferece um indicativo, uma
aparente contradição entre uma forte adesão a valores democráticos,
possivelmente associados aos períodos de ausência democrática, da
constante luta pela democracia, mas ao mesmo tempo, revela uma pe-
quena compreensão da essência da reforma. Há um descomprometi-
mento com a política, como se esta fosse algo exterior ao individuo
algo para alguns e como se ações políticas não fossem generalizantes e
com seus efeitos promovendo conseqüência na vida de todos.
Não falta argumento para explicar essa apatia da sociedade em
relação a política e aos temas políticos. Aqui iremos recorrer a Gramsci,
no seu conceito de hegemonia, para explicar esse paradoxo, a hegemo-
nia de uma classe, fração de classe ou conjunto de classes no poder se
manifestaria através do “consentimento espontâneo dado pelas gran-
des massas da população à direção geral imposta à vida social pelo
grupo dominante” (Gramsci, 1995, p. 12).
O conceito de hegemonia é pertinente porque incorpora a di-
mensão do poder ao debate referente a participação da sociedade civil,
usualmente considerada apenas nas formas de organização. Assim, vai
além da caracterização e descrição dos fenômenos do comportamento
político ou da postulação de determinada identidade, mas, criando as
condições para que se possam explicar as suas origens e ao mesmo
tempo os entraves postos para a participação efetiva da sociedade ci-
vil.
Segundo essa teoria, os setores dominantes da sociedade – a fra-
ção no poder – a sociedade política constrói uma hegemonia que é a
garantia e a justificativa de seu domínio, em relação ao restante da so-
276 Sociedade civil e reforma política

ciedade.. Em outras palavras, os setores hegemônicos constituem um


sistema de crenças e de valores que passam a ser considerados senso
comum, ao mesmo tempo que essas crenças e valores, por sua vez,
são constituintes da sociedade, assim, a apatia, o desinteresse, ao en-
tendimento da política e a falta de envolvimento cm questões macro
da sociedade ocorrem em função dessa crença gestada pelos setores
dominantes, que se reproduzem a partir desse quadro. Daí serem he-
gemonicamente dominantes.
O vigor de uma forma de dominação pode ser mensurado pela
própria interiorização dos dominados, que aceitam os fatos como na-
turalidade, sem questionamento. É o que ocorre, por exemplo, com a
questão da saúde. Criou-se um imposto temporário e nada mudou,
porém, a população só contesta quando vai em busca de atendimento
e não recebe. Enquanto isso, outros melhores posicionados financeira-
mente passam a optar por uma segunda via, formalizando sua asso-
ciação a um plano de saúde, mesmo sabendo que já contribui para um
serviço de qualidade. Aqui poderiam ser citadas tantas outras situa-
ções, mas estas são suficientes para entender como é absorvido e incor-
porado os mecanismos de poder ditados pelos setores hegemônicos
Segundo a concepção de hegemonia, a compreensão da realida-
de que as classes subalternas, no dizer de Gramsci (1995), possuem é
fragmentada, o que cria uma barreira entre a concepção de mundo e a
ação real, se constituindo em um dos fatores de alienação, que implica
dominação política pelos setores hegemônicos. Dessa forma, quando
os resultados dos surveys nos indicam atitudes políticas aparentemen-
te incoerentes, o que na realidade ocorre é a manifestação dessa visão
fragmentada da realidade.
Nesta maneira fragmentada de enxergar a sociedade, a sociedade
civil, de maneira geral, fica descrente de tudo e em relação as reformas
pouco entende sobre a importância das mesmas, sabe que algo precisa
ser urgentemente realizado, mas não credita as mesmas, as transfor-
mações necessárias porque o País necessita passa para garantir uma
cidadania plena. Obviamente que aqui trata-se da sociedade e não das
organizações da sociedade civil, como associações, sindicatos e outras
instituições. Essas até tentam propor debates, mas não conseguem fa-
zer os mesmos ecoarem.
Cabe observar, porém, que no primeiro mandato do atual pre-
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 277

sidente, o discurso das reformas aparecia num contexto mais amplo,


colocadas como necessárias ao desenvolvimento do Brasil. Embora,
hoje, já seja possível constatar que pouco se fez para materializar. No
segundo mandato, a reforma política, assumiu um caráter de ordem
do dia, apesar de maneira fragmentada, pontual, a polêmica vem dan-
do o tom e quase nada avança. As reformas contrapõem os interesses
e até os aspectos ideológicos de setores das classes dominantes, seria
debilidade encontrar agentes para mobilizar discussões em torno de
reformas, quando estas podem provocar mudanças na composição
de forças dentro do bloco hegemônico de poder. Voltamos a Grams-
ci (1999) para pensar nos intelectuais orgânicos, mas mesmo assim, é
tarefa hércules pensar numa sociedade civil brasileira discutindo e fa-
zendo ocorrer as reformas.
Uma analise geral dos discursos e da política revela que as preo-
cupações continuam as mesmas do passado não tão recente; as práticas
superficiais voltadas para melhoria da qualidade de vida da maioria
e a preocupação central com ênfase no desenvolvimento econômico,
via tantos planos, como o último de aceleração do crescimento. Não se
avança, não se renovam as práticas e muito menos o discurso.
Porém parece lícito afirmar que o aparelho de estado brasileiro
sofreu mudanças, não só pela origem do principal mandatário, como
pelo caminho ideológico de seus membros, mesmo que não se possa
afirmar que se trata de um governo de esquerda, houve mudanças no
aparelho de estado; ministérios foram extintos, outros criados, setores
antes secundarizados merecem um melhor olhar. Apesar de todas as
mudanças, a composição de forças para formar o que se convencionou
chamar de base aliada, trouxe todos os segmentos para dentro do go-
verno, ideologicamente, qualquer projeto passar a ser meros ajustes,
não podendo ser confundidos com ações voltadas para um determina-
do tipo de sociedade. Daí fica difícil enxergar a diferença ente o neoli-
beralismo e o projeto de sociedade do atual governo.
O clamor das ruas, as mobilizações populares, marcas dos anos
70 e 80, com os movimento sindicais, movimento estudantil, das donas
de casas e tantos outros da sociedade civil, aparentemente perderam
as referências e hoje não conseguem avançar entorno de questões tão
prementes para o desenvolvimento do Brasil.
Apesar de significativo, costurar esse tecido, de composição di-
278 Sociedade civil e reforma política

versificada a fim de implementar as reformas, passou a ser uma tarefa


difícil e desgastante para o atual governo. Imaginar ainda a sociedade
civil participando de uma grande mobilização pelas reforma parece
estar ainda mais distante, nem mesmo as instituições representativas
vem encarando essa tarefa, notadamente porque os espaços estão cir-
cunscritos a algumas esferas e não ganham contornos mais amplos.

Reformas e Reformas, longa caminhada...

Este artigo representou uma tentativa de encontrar caminhos


para refletir acerca de fenômenos descritos há muito tempo pela Ciên-
cia Política. Para tanto, se buscou auxílio na teoria de Gramsci, a des-
peito do que afirma o senso comum, o eleitor quer a reforma política,
embora não enxergue os efeitos dela na sua vida cotidiana. A reforma
política é identificada apenas como reformulação eleitoral e dos parti-
dos, mesmo assim, não existe familiaridade com este tema, o que por si
só não é garantia de construção de uma sociedade democrática, e nisso
a reforma política brasileira passaria por um envolvimento maior da
sociedade civil através de seus canais mediadores, fóruns seminários,
debates e outras manifestações.
O projeto que estava em votação é restrito ao aspecto político-
eleitoral e contempla apenas quatro pontos: fidelidade partidária, lista
fechada, financiamento público de campanha e fim das coligações para
eleições proporcionais. Observando o desenrolar das votações, sequer
é possível chamar o processo em curso de reforma política.
Entendemos que a construção de uma sociedade democrática
está inserida em um contexto mais amplo, que diz respeito a mudan-
ças no sistema político, na cultura política e no próprio Estado. Por
isso, uma reforma política que amplie a democracia e fortaleça a par-
ticipação popular em nosso país deve necessariamente abranger a de-
mocracia também em suas vertentes participativa e direta, a cidadania
precisa deixar de ser de papel. Na qual o cidadão exerce uma série de
deveres, onde o consenso daqui que é melhor para ele parte de cima e
não da própria sociedade civil
Nesse processo de reformar o Estado brasileiro, é preciso am-
pliar os caminhos da participação da sociedade. Conforme lembrou
Luiz Werneck Vianna (2003, p. 474), “devemos mobilizar a atenção
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 279

para outras direções: os partidos não podem tudo, a representação não


pode tudo”. Não se pode pensar mais uma sociedade que transfere
responsabilidades, mas não consegue nem lembrar os nomes para os
quais fez essa transferência. Segundo Vianna “é preciso criar institui-
ções que eduquem para o civismo”. Nesse sentido, outros caminhos de
participação política da sociedade civil deverão ser construídos para
o exercício pleno da democracia e os avanços para um outro tipo de
sociedade.

Referências

BAQUERO, Marcello (org.). Cultura Política e democracia: os desafios


das sociedades contemporâneas. Porto Alegre: Ufrgs, 1995.
BENEVIDES, Maria Victoria. Nós, o povo: reformas políticas para ra-
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Paulo; KERCHE, Fábio (orgs.). Reforma Política e Cidadania. São
Paulo: Perseu Abramo, 2003.
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do
jogo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal. São
Paulo: Ciências Humanas, 1980.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato bra-
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FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de
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GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o Estado moderno. Rio
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MOISÉS, José Álvaro. Os brasileiros e a democracia: bases sócio-polí-
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SARTORI, Giovanni. Partidos e sistemas partidários. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar editor, 1982.
VIANNA, Luiz Werneck. Seminário Reforma Política – Rio de Janei-
ro. In: BENEVIDES, Maria Victoria; VANUCCHI, Paulo; KERCHE, Fá-
bio (orgs.). Reforma Política e Cidadania. São Paulo: Perseu Abramo,
2003.
Democratização em
meio ao desmonte
o elo entre a coerência macroeconômica, a
liberalização comercial e a efetividade política

Luis Fernando Novoa Garzon


Professor do Depto. de Sociologia e Filosofia da Universidade Federal de Rondônia.
Mestrando em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas. Membro
da ATTAC, da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais e da Rede
Brasileira pela Integração dos Povos.
l.novoa@uol.com.br
282 Democratização em meio ao desmonte: o elo entre a coerência
macroeconômica, a liberalização comercial e a efetividade política

Introdução

No Brasil, como em grande parte da América Latina pilhada e


repilhada, só há governo na condição de automatizar a política econô-
mica de acordo com os requisitos das instituições financeiras multila-
terais e na condição de se lotear as esferas estatais seguindo as ordens
dos cartéis político-empresariais.
A eleição de partidos de centro-esquerda e de lideranças com
base mais difusa e ampla, refletiu os limites desse sistema político car-
comido e, ao mesmo tempo, uma tentativa de contorná-los, de admi-
nistrá-los, sem ruptura. A eleição de Lula e o pleno exercício de seu
Governo representam um teste definitivo de consolidação da nossa de-
mocracia, ou seja, de sua capacidade de representar interesses plurais e
contraditórios com estabilidade? Ou terá sido a esquerda institucional,
referenciada em Lula e no PT, a que teve que amadurecer suas contra-
faces mais particularistas e fisiológicas para ascender em um sistema
político privatizado e corrompido?
O capital financeiro quer criar seu partido único, a gerência uni-
forme da “Divisão Brasil” de suas operações cruzadas. Os próximos
mandatos presidenciais, valiosas mercadorias futuras, estão sendo co-
locados em leilão. É um pacto aberto contra a democracia, e especifica-
mente contra a soberania popular. É golpismo financeiro contra nossas
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 283

frágeis instituições.
O evolucionismo institucional é completamente estranho à nossa
formação histórica. As instituições por aqui surgiram sempre de forma
compensatória, com vício e déficit de origem. Os procedimentos cor-
rem na frente dos processos sociais no esforço de tornar menos visíveis
suas assimetrias. Os interesses são nominalmente representados para
que não saiam de seus devidos lugares.

1. O Brasil em crisálida reversa

O Governo Lula foi eleito para agendar a alternativa a um mo-


delo econômico de caráter inequivocamente anti-social. Exatamente
por isso, foi obrigado a governar para provar o contrário. O preço da
confiança dos mercados foi o aprofundamento do modelo através de
reformas econômicas, administrativas e setoriais que solidificam as po-
sições do complexo financeiro-exportador. Seus porta-vozes oficiosos
e oficiais reiteram que disciplina fiscal, controle inflacionário, flutua-
ção do câmbio e livre movimentação de capitais, são orientações “uni-
versalmente aceitas” e por isso não estariam mais sujeitas ao debate
político.
A alternância de poder serviu para consumo do público inter-
no, para que não se dê conta da gravidade do fato de que nada pode
mudar substantivamente. De que democracia estamos falando então?
Pode haver Estado de direito onde marcos regulatórios se antecipam,
em uma espécie de especulação invertida, aos interesses dos investido-
res? Pode haver cidadania na pólis das condicionalidades privadas?
Aquilo que deveria ser moeda nacional, flutua como sub-moe-
da que é, instrumento especulativo utilizado adicionalmente quando
convém. Metas de inflação no piso e taxas de juro no teto, para que no
meio, o rentismo se acomode, infinito. Gastos públicos na exata me-
dida das migalhas que sobram da extração de superávits primários
máximos. Uma nação desmantelada só se faz inteira no marketing ins-
titucional orientado, ipsis literis, para vender o país.
Ordens, ameaças e opções pré-fabricadas do oligopólio financei-
ro-transnacional edulcoradas como “janelas de oportunidade”. Pro-
fecias auto-cumpridas. Porto tropical preferido dos capitais errantes!
Plataforma preferencial para atender a estratégias de deslocalização
284 Democratização em meio ao desmonte: o elo entre a coerência
macroeconômica, a liberalização comercial e a efetividade política

industrial e outsourcing de serviços! Títulos top de linha, classificação


investment grade!
É preciso reconhecer que as políticas neoliberais dos últimos 15
anos minaram fundo as fontes constitutivas de um outro Brasil possí-
vel. Sequer existe um capitalismo associado. “Nosso” capitalismo per-
deu os contornos identificáveis, foi fundido e anexado, tanto pela via
financeira quanto pela produtivo-comercial.
Ao longo dos anos 90, o desmonte dos eixos econômicos inter-
nos de caráter estruturante, a liberalização comercial-financeira e, por
fim, a delegação da política macroeconômica para o sistema financei-
ro internacional, nos aprisionaram em uma crisálida reversa. As elites
que sobreviveram à seleção neoliberal trataram de dar por encerrado
o “Brasil por fazer”, absolutizando, em seguida, o “Brasil” que deu
certo.
As lantejoulas do agronegócio e das gerencias serviçais do ca-
pital global mal cobrem o corpo do país moribundo. No campo, es-
pecialmente na extensa fronteira agrícola, o progresso é parasitismo
assumido. A alta lucratividade do setor só se viabiliza com depredação
ambiental e com precariedade do tecido social. É o paroxismo de uma
modernização conservadora que se consolida em suas polaridades ex-
tremas.
Nossas grandes cidades são provas materiais da barbárie con-
sumada. Corte transversal do país que triunfa a qualquer custo. Os
estoques de miseráveis sub-utilizáveis servem para absorver externa-
lidades do mercado dinâmico, adequando-se à sua lógica flexibiliza-
dora como uma luva. Elásticas rentabilidades em mercados paralelos
da droga, da prostituição, de tráfico de crianças e de órgãos. A forma
criminosa generaliza-se. Redes criminosas de segunda geração, forte-
mente enlaçadas no mercado formal e no aparelho do Estado, determi-
nam o que compensa ou não.
Órfãos de um destino plural e coletivo, acabamos mergulhando
em grupos auto-referentes ou no consumismo concebido para projetar
um status sempre superior. Com volúpia incomparável lutamos para
chegar na frente. Daí sermos moda nos países centrais. Uma fonte re-
novada de inspiração para designers e estilistas. Nossa contribuição
exótica ao lifestyle da globalização vigente. Vivemos sofregamente o
agora, com fluidez e cínico bom humor. As elites de lá querem a fór-
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 285

mula dessa ascensão prazerosa, processada em meio à dor e à falta de


sentido reinantes.

2. A transição dual
A origem do imenso vazio político em que se assenta o Governo
Lula deve ser buscada no dualismo de uma “transição democrática”
que ocorre em paralelo, e em confluência com uma “transição econô-
mica”. A maré montante de investimentos externos que aflui para cá
na década de 90, se depara com um Estado em situação falimentar, si-
tuação que propicia sua reestruturação desde o âmago. Eli Diniz (2004)
avalia que ao perdermos o equilíbrio do “tripé” formado pelo capital
nacional, pelo Estado e pelo capital estrangeiro, foi-se com ele a capa-
cidade de se processar “pactos nacionais” como antes. O refluxo do Es-
tado-empresário, em submissão aos parãmetros de austeridade fiscal
e de liberalização comercial, criou um ambiente institucional propor-
cionador de uma nova seletividade a serviço de processos de reestru-
turação, de fusões e aquisições comandados pelo capital estrangeiro.
Tem-se ao final dessa transição uma “nova estrutura de representação
de interesses” em que se destaca um processo de “americanização da
relação público-privado”, em que os espaços decisórios passam a ser
setorizados e determinados por lobbies empresariais crescentemente
articulados.
Os processos de financeirização e transnacionalização do terri-
tório nortearam o curso da democratização no Brasil. Os partidos da
ordem, ao invés de questionarem os limites estruturais impostos pelo
capital à nossa democracia, procuraram maximizar sua influência na
máquina governamental com a finalidade de negociar, de forma par-
ticularista, as condições do desmonte da economia nacional e do pró-
prio Estado. O problema era como proporcionar “normalidade institu-
cional” à ordem neoliberal com um arranjo político desses.
A quebra do real em 1999 fez soar o alarme. O conglomerado
financeiro, devidamente representado pelo FMI, percebera que a “jo-
vem democracia brasileira” requeria cuidados especiais. A intervenção
vinha na forma de uma “ajuda” de 30 bilhões de dólares. Os objetivos
implícitos iam muito além de um saneamento financeiro de curto pra-
zo. A continuidade do modelo liberal-privatista havia sido colocada
286 Democratização em meio ao desmonte: o elo entre a coerência
macroeconômica, a liberalização comercial e a efetividade política

em questão. Ou seja, a sucessão de FHC estava definitivamente com-


prometida. Começava ali uma corrida contra o tempo para converter
os interesses dos credores e dos investidores em cláusulas pétreas no
sistema político do país.
O sistema financeiro internacional, cônscio da derrota de seus
aliados tucanos em 2002, dá início a uma operação de enquadramen-
to das eleições presidenciais brasileiras, com a finalidade de reduzir
“suas margens de incerteza”. Malan e Armínio, em postos-chave da
economia, recebem autorização para iniciar o último ato. Banco Cen-
tral e Ministério da Fazenda, lançam medidas intencionalmente vul-
nerabilizadoras para induzirem a debandada dos capitais. Fogo no cir-
co para que venham, céleres e diligentes, os bombeiros. A chantagem
embutida nos contratos de salvamento do FMI duplicava-se na chanta-
gem dos capitais de curto prazo. Ameaça de asfixia do país por falta de
créditos. Condicionalidades redobradas para manter o futuro Governo
sob rédeas curtas.
A confirmação do acordo lesa-democracia consubstanciou-se
na “Carta aos brasileiros”. O PT e Lula ofereceram plenas garantias
de que o modelo de gestão pró-ativo para os capitais não seria alte-
rado, depois da posse. Diante da política de fato consumado, que os
mercados impuseram, as forças populares e de esquerda poderiam ter
respondido com mobilização popular. O caminho adotado, porém, foi
o de avançar por onde houvesse menor resistência sistêmica. A demo-
cracia que poderia ser robustecida a partir da ampliação do escopo da
cidadania foi diluída em função dos centros nodais do poder.

3. Qual democracia, qual PT?

O PT aprovou e deu chancela aos limites com que governaria o


Brasil. Ainda que tangido pelas práticas de desestruturação e desregu-
lamentação comandadas pelo capital financeiro, o PT nunca deixou de
protagonizar sua própria domesticação. Face aos limites que as elites
crescentemente desterritorializadas lhe impuseram, sempre houve a
opção da ruptura, a opção da deslegitimação de mais um “pacto por
cima”, a opção de apostar em uma alternativa generosa e nativa de
poder.
A recusa do PT em participar do Colégio Eleitoral em 1985 e tam-
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 287

bém em não assinar a Constituição de 1988, expressava uma autono-


mia diretamente vinculada a seu enraizamento social. A fundação do
Partido dos Trabalhadores em 1980 representou uma costura de múl-
tiplos motins do povo brasileiro contra uma modernização capitalis-
ta associada, comandada pelo Regime Militar. A linha de frente era
ocupada pela nova classe operária que surgia a partir da nova divisão
internacional do trabalho que visava reduzir custos operacionais das
multinacionais.
Lá estavam os metalúrgicos, segurando a mão do pai-patrão que
chicoteia, não tolerando mais nenhum tratamento indigno. O Lula de
verdade era o emblema de uma nova “classe trabalhadora” que se sen-
tia capaz de pensar, por si mesma, a nação. Sonhar sem intérpretes, sem
cabrestos. A classe se mirava na nação, vilipendiada e agredida tanto
quanto, e tomava seu partido. A subversão da política por baixo. Um
país de pernas para o ar, dos trabalhadores, democrático-popular. Era
nesse entrecruzar de identidades negadas que se alicerçava o caráter
anti-capitalista e anti-imperialista do PT. As greves de 1978 desafiavam
o acordo constitutivo do Regime instalado em 1964, o acordo entre o
capital estrangeiro e a Ditadura para fazer do nosso povo/território,
suporte para acumulação ampliada.
O PT nasceu como prova e promessa de que não haveria por
aqui super-exploração estável. Hoje a principal missão do PT, e de seu
Governo centrista, tem sido avalizá-la, prevenindo reações descontro-
ladas e extravasamentos institucionais. Coerência macroeconômica e
efetividade política são termos em permanente tensão no interior do
Governo Lula. Diferentemente da gestão automática do Governo tuca-
no, possibilitada em tempos de calmaria e fluxos de capitais abundan-
tes, a gestão negociada inaugurada pelo Governo Lula forjou-se em
uma conjuntura de elevado risco de ingovernabilidade. Após a quebra
da âncora cambial em 1999 somente um Governo com alguma legiti-
midade social e nacional poderia dar sobrevida a políticas de cambio
flexível, de metas de inflação e de superávits primários crescentes.
Para Francisco de Oliveira (2006), a vitória do PT completaria
o quadro do Ornitorrinco - metáfora que representaria a estabiliza-
ção e a funcionalização das “deformidades” do capitalismo brasileiro
- constituindo sua quarta pata que ainda faltava, pois, segundo ele, “a
vontade política na qual se colocou o acento da mudança, está sendo
288 Democratização em meio ao desmonte: o elo entre a coerência
macroeconômica, a liberalização comercial e a efetividade política

enquadrada pelos rigores da nova forma do capital(...)”. A caução po-


pular de que se vale o Governo Lula “dá acabamento de legitimação
a uma operação política que, sem ela, aumentaria muito os custos da
total perda de relevãncia do Estado”.
Estabeleceu-se uma simbiose entre uma burocracia sócio-políti-
co originária do campo popular e democrático e a tecnoestrutura fi-
nanceira transnacional. À “gestão”, antes mera correia de transmissão,
atribuiu-se funções nucleadoras no processo de decisão. Os contornos
da atuação “política”, no entanto, continuam a ser definidos, em últi-
ma instância, pelo poder de entabulamento dos grupos que controlam
as estruturas econômicas dinâmicas do país e lhe dão solvência finan-
ceira
Se por um lado, o Governo Lula representa uma recuperação da
esfera política corroída na última década por um voraz sistema de pi-
lhagem financeiro-patrimonial, por outro, trata-se de um resgate par-
cial porque a “autonomia” obtida é, em um momento posterior, aliena-
da em termos ainda mais absolutos. A reativação do contraditório não
segue um continuum democrático radical, em que todos parâmetros
possam ser reinventados, mas ocorre dentro de marcos rigorosamente
definidos pelos grupos econômicos hegemônicos que mantêm intacta
sua capacidade de veto estrutural.
Neste sentido, é verdade que a “política” se amplia, fazendo com
que o debate sobre a condução macroeconômica ganhe novas abor-
dagens e interlocutores, mas os limites estruturais não se alteram, ao
contrário, se consolidam ainda mais à proporção em que se legitimam
em uma base de apoio alargada. Na gestão negociada, não existem
mais concessões aleatórias. As concessões agora são barganhadas em
marcos minimamente recíprocos, com o sistema financeiro internacio-
nal, com as redes privadas e com os governos dos países hegemônicos.
Exemplificando respectivamente: a)cumprimento estrito de superávits
primários dilatados em troca da flexibilidade orçamentária para apli-
cação de recursos públicos no setor de infra-estrutura, com a chancela
do FMI; b) cobertura jurídica, financeira e operacional do risco privado
de investimento pelo Estado em troca de um maior fluxo de aportes
privados em parcerias de longo prazo, com as PPPs e concessões con-
dicionadas; c)liberalização gradual e segura dos setores de serviços,
investimentos e compras governamentais em troca de acessos parciais
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 289

aos mercados europeu e norte-americano para commodities de baixo


valor agregado, nas negociações com a União Européia e ALCA.

4. A relevância de resgatarmos a política


Faz-se necessário identificar o deslocamento, a desterritorializa-
ção, o esvaziamento e/ou a transmutação das estruturas político-de-
cisórias do país em função de acordos/negociações internacionais e
requerimentos do sistema financeiro internacional. É preciso mapear
as “caixas-pretas” e os sistemas decisórios corporativos que têm se in-
crustrado no Estado brasileiro, particularmente a partir de 2002, trazê-
los à luz do debate público e fazer com que seus operadores e avaliza-
dores prestem contas, justifiquem suas decisões, que demonstrem sua
“eficiência” e em função de quem. A identificação e a inquirição desses
espaços capturados é condição para a construção de uma nova institu-
cionalidade democrática.
A “reforma política” que importa, em um sistema político apa-
relhado pelo capital financeiro, é a que resgate o poder de governar,
sob ótica nacional e popular. O que significa definir câmbio, juros e
orçamento de acordo com prioridades coletivas. O que pressupõe esta-
belecer limites de remessas de pagamento de dívida segundo critérios
de legalidade e legitimidade e de acordo com a conveniência dos pro-
gramas de dinamização do mercado interno.
O reino da volatilidade, por sua vez, exige uma organização só-
cio-econômica que realize e multiplique valor instantaneamente, por
sobre as antigas relações de dominação, por sobre as fidelidades es-
paciais, culturais e nacionais. A política que sobra serve para consumo
externo, com relevância correspondente à que for capaz de simular.
Enquanto a política do oligopólio financeiro se faz dona dos vetos, das
vozes e dos ecos possíveis.
O preço da confiança dos mercados foi o aprofundamento do
modelo através de reformas econômicas, administrativas e setoriais
que solidificam as posições do complexo financeiro-exportador. Os
perversos contingenciamentos de recursos, que asfixiavam as políticas
públicas e mutilavam os instrumentos de indução do desenvolvimen-
to, agora são aplicados em nome da disciplina fiscal como valor univer-
sal. Sob o Governo Lula, o Ministério da Fazenda e o BC, arrancaram o
290 Democratização em meio ao desmonte: o elo entre a coerência
macroeconômica, a liberalização comercial e a efetividade política

teto dos superávits primários, abdicaram de resguardar nossa moeda e


se tornaram guardiões de artificiosas metas de inflação, que fornecem
durabilidade a ganhos monopólicos e especulativos.
Assumir as políticas do FMI, ainda que sem acordo formal com
ele, enquanto políticas de Estado, significa uma autofagia programada.
Dois mandatos presidenciais (1994-1998/1998-2002) voltados para as
“tarefas negativas” do desmonte e da desregulamentação, predefini-
ram os mandatos sucessivos e suas “tarefas positivas”. Ampliaram as
dificuldades de revisão do modelo vigente à medida que eliminavam
instrumentos de regulação e de intervenção econômica.
A ampliação da abrangência da esfera de atuação das grandes
corporações não é automática e nem tem relação com algum paradig-
ma superior de organização. Os processos de liberalização comercial
foram e são politicamente construídos pelos Estados nacionais e atores
econômicos predominantes neles.
As empresas globalizadas são projeções de suas economias na-
cionais de origem, são o resultado de suportes concatenados e de uma
somatória de bases de impulso.Em um quadro de rivalidade e com-
petição inter-monopolista, os conglomerados vão determinando o que
podemos e o que devemos produzir. Se, por um lado, a percepção dos
espaços abertos por essa rivalidade é crucial para compormos o cená-
rio em que vamos atuar, combinada e progressivamente, por outro,
não pode servir apenas para programarmos uma ocupação passiva de
nichos, funções e atividades com maior elasticidade de preço.
Qual o lugar do Brasil e da América do Sul, na hierarquia do ca-
pitalismo global? A resposta provirá da reformatação contínua da pró-
pria dependência a que estamos sujeitos, com a elaboração de marcos
regulatórios que promovam a progressão dos conglomerados e com a
consecução de projetos de infra-estrutura que otimizem a transnacio-
nalização e a especialização rebaixada do território.
Se a integração tem por meta declarada a inserção potencial e
real da região no mercado mundial, e essa inserção é devedora do pro-
tagonismo do capital estrangeiro nas cadeias de valor de nossas eco-
nomias, então, essa integração não passa de uma cartelização regional,
estimulada mais que regulada pelos Governos do continente, funda-
mentalmente pelo Governo brasileiro.
Chesnais (1996, 1999a, 1999b, 2001) tem se dedicado a compreen-
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 291

der o processo de mundialização do capital a partir da construção de


um novo “regime de acumulação com predomínio financeiro e rentis-
ta” (CHESNAIS, 1999a), cujo início remonta aos anos 90, regime que
de lá para cá “passou por diversas configurações, em correpondência
às tranformações das relações entre os Estados e as frações do capital e
das relações políticas entre o capital e o trabalho.”(CHESNAIS, 2001).
O autor refere-se a um “processo de construção institucional in-
ternacional” voltado à liberalização, à desregulamentação e à priva-
tização “concebido pelos seus arquitetos ideólogos, ‘técnicos’ e polí-
ticos, para que se extendesse ao conjunto dos países do globo e que
foi imposto por etapas a partir da instituição informal –mais muito
poderosa- do G7, beneficiando-se da ajuda ativa de organizações in-
ternacionais, sejam existentes (o FMI e o Banco Mundial, assim como
a Comunidade Européia, convertida mais tarde em União Européia),
sejam outras novas (a OMC e o NAFTA).”
Cumpre notar que a nova inter-relação entre finanças e indús-
tria, presente nesse regime de acumulação, coloca os conglomerados
resultantes em uma posição tal que “possam escolher à vontade os lu-
gares de suprimento, de produção e de comercialização, e que usufru-
am da liberalização completa dos investimentos diretos estrangeiros,
bem como da abolição de qualquer exigência de fornecimento local”
(CHESNAIS, 2001).
De comum acordo, as Instituições Financeiras Multilaterais e as
representações da União Européia e dos EUA condicionam repasses
financeiros e concessões comerciais paralelas à abertura de setores
nevrálgicos, como sistema financeiro, energia, comunicações, água e
meio ambiente. O oferecimento de facilidades regulatórias em áreas
tão sensíveis funcionaria como um salvo-conduto para os investimen-
tos em todas as demais áreas. É o momento, na relação com o capital
estrangeiro, em que se pede a prova de fidelidade, ou a de plasticida-
de, ao país anfitrião.
O fato é que não importa captar um maior fluxo de investimen-
tos diretos se o tecido econômico a ser adicionalmente irrigado já foi
previamente privatizado e transnacionalizado. Neste modelo de eco-
nomia de enclaves e clusters, os capitais continuarão atravessando o
país para incorporar valor sem oferecer nenhuma reciprocidade. O
pior é que não se prevêem nem ao menos mecanismos que induzam
292 Democratização em meio ao desmonte: o elo entre a coerência
macroeconômica, a liberalização comercial e a efetividade política

transbordamentos dos investimentos, tais como índices de nacionali-


zação, seletividade tecnológica nos financiamentos públicos e políticas
industriais aglomeradoras.
As políticas de irrestringibilidade do capital no Brasil, porém,
esbarram na necessidade de que se definam margens mínimas de re-
ciprocidade com a sociedade, sob pena da ocorrência de reversões
abruptas como se viu na Bolívia, Equador e parcialmente na Argenti-
na. Os mercados exigem, portanto, consistência dos governos de plan-
tão. Consistência nesse caso quer dizer não só coerência com os fun-
damentos macroeconômicos, que sustentam as posições monopólicas
dos conglomerados que dividiram entre si o território, mas também de
efetividade na aplicação desses fundamentos, tornando possível am-
pliar as margens de retorno do “negócio Brasil” nos marcos da legali-
dade e do consentimento popular. Isso quer dizer que a legitimidade
do Governo, gestor das medidas liberalizantes e privatizantes, passa a
ser uma preocupação central do sistema financeiro internacional, inca-
paz de fazer valer seus ditames sem mediações efetivas.

5. Corrupção em nome da eficiência política

Foram as políticas neoliberais de desregulamentação selvagem


que abriram campo para o empresariamento da corrupção e o trans-
bordamento do crime organizado para todas as instituições. As elites
que se nutrem da miséria e da desorganização do país nunca hesitaram
em investir no lucrativo negócio de sucateamento das empresas públi-
cas, na contínua sabotagem das políticas sociais e de desenvolvimento.
Depois, apontam, cínicas, para a podridão alheia inoculada por elas
próprias.
Quem paga manda, certo? E para se livrarem, pagam até para
investigarem. Posição ou oposição, quem dá mais? Enquanto Brasília
for uma feira livre, o Brasil será o restolho, a xepa.
Collor e PC eram outsiders desvinculados dos eixos protagonis-
tas do desmonte e somente por isso foram defenestrados. Nos anos
FHC, Sérgio Mo�a planejou, estratégica e empresarialmente, a relação
entre partido governista, os beneficiários e associados de suas deci-
sões. Centralização do tráfico de influência no plano federal, licitações
viciadas em troca de doações partidárias e eleitorais, articulação de
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 293

parcerias franciscanas de longa duração, regiamente azeitadas com be-


nefícios recíprocos e homens certos nos cargos de confiança para selar
os acordos.
O foco sempre foi o empoderamento do Partido hegemônico e
não a pilhagem pessoal. As irregularidades, prevaricações, abusos e
crimes administrativos cometidos visavam garantir autoridade, máxi-
ma efetividade das decisões, fortalecimento da máquina partidária e
desempenho ótimo nas eleições.
Nesse mar de hipocrisia que paira sobre o de lama, é preciso di-
zer quais são os verdadeiros beneficiários desse sistema. Os segmentos
financeirizados, os serviços oligopolizados e o agronegócio não conse-
guiriam aprovar suas políticas e leis anti-sociais e anti-nacionais, se o
Congresso Nacional fosse minimamente representativo.
Sem conluios com o partido governista, não haveria a decanta-
da “eficiência e especialização” dessas corporações, sempre vitoriosas
porque quase sempre fraudulentas. Como o sistema financeiro in-
ternacional poderia manter um arrocho fiscal e taxas de juros nessa
magnitude, de outro modo? Como a continuaria extrair religiosas re-
messas de pagamentos de uma dívida ilegítima, se por aqui houvesse
uma democracia que não se envergonhasse de sua etimologia? Sem
um exército de mercenários em Brasília, como manter essa lucrativa
guerra permanente contra os direitos trabalhistas, contra as normas
ambientais, contra as políticas sociais, contra o Brasil? Quando Lula
chega à presidência, o esquema já funcionava, os caminhos estavam
ali, sempre muito convidativos. Assim se mantinha a gestão neoliberal,
e assim se manteve. A radicalização das políticas neoliberais está sen-
do oferecida como a única possibilidade de “normalização política”,
pelos que patrocinaram, sob medida, o caos.
O novo fisiologismo vai se fincando nas esferas decisórias supe-
riores para se estabilizar, incluindo as instâncias revisoras no Judiciário,
como mostram as últimas operações da PF. A lógica é a da montagem
de blocos privado-públicos orgânicos geradores de governabilidade e
de negócios de alta lucratividade e baixo risco. Os executivos obtêm
maioria congressual transferindo prerrogativas deliberativas ao setor
privado, em regime de engorda de clientelas. A corrupção sistêmica é
o resultado de uma esfera estatal degradada por máfias político-em-
presariais e redes econômico-financeiras com papel político amplia-
294 Democratização em meio ao desmonte: o elo entre a coerência
macroeconômica, a liberalização comercial e a efetividade política

do. Esse novo poder, em construção, não aceita critérios públicos, tais
como, metas de universalização e de qualificação dos serviços, garantia
dos direitos da população, proteção e recuperação do meio-ambiente.
Todas estas regras passam a ser fixadas, na prática, por meros con-
tratos, firmados entre governos e privatizadores, sem interferência da
sociedade ou de seus representantes.

Anistiar a alternativa

A quem interessa a despolitização das instâncias decisórias que


definirão o que seremos como países e povos no futuro? Quem discutiu
e quem aprovou esse programa de governo? A pregação anti-inflacio-
nária é o último pretexto disponível que serve para dissimular a opção
deliberada pela atrofia da máquina pública e da economia nacional.
A “marca Brasil” vai sendo desenhada e pontilhada no corpo da
nação derrotada. Na colônia penal em que a nação prisioneira foi en-
cerrada, o castigo é retroativo. A origem é o mal. O crime: querer ter
sido. Um país não pode ter utopia tão original e generosa. O futuro que
insiste em se entranhar no tempo/espaço precisa ser incessantemente
socavado.
A criatividade do capitalismo nunca dependeu tanto de seu po-
der desfigurante. E os chamados países emergentes apresentam as
condições ideais para o exercício do desfiguramento. Se admitirmos
que estamos em desenho, quem vai poder deter nosso traço? Nosso
hibridismo gera a maleabilidade que convém ao poder privado e a in-
ventividade que não lhe convém.
Aqui têm projetos nacionais e regionais falidos, e muita gente se
reconhecendo em identidades negadas juntas no último ciclo de inter-
nacionalização. Desfeitos os tecidos sociais, nos sustentamos por um
fio, e, suspensos, inspiramos novas tessituras. A multiplicação de redes
maquiladoras por toda a América Latina dá mostras de como exclusão
social e vazio institucional podem ser “vantagens comparativas”, mas
também mostra um desejo incontido de milhões por reconhecimento,
cidadania e por muito mais que migalhas e terceirizações rebaixadas.
A plasticidade radical de nossas nações inconclusas fez com que
distopias e utopias se comunicassem. A desintegração decorrente da
liberalização econômica fez com que os interesses coletivos perdes-
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 295

sem cunha possível. Por isso não há “governabilidade” possível sem


a reconstrução de esferas públicas e de instâncias nacionais. É nesse
contexto de esgotamento/reciclagem do modelo neoliberal na Améri-
ca Latina que partidos e lideranças de centro-esquerda se gabaritaram
para recompor precários arranjos de poder entre patrocinadores e be-
neficiários do desmonte neoliberal.
Os setores rentistas não conseguem mais se fazerem representar
diretamente. A fachada tucana serviu enquanto pôde. A interlocução
no Governo Lula se faz agora com mediações menos redutíveis. Inte-
resses e focos mais amplos precisam ser cotejados, pinçados, costura-
dos e descartados. Quanto maior o ônus dos ajustes econômicos, maior
o preço da legitimação. A estratégia de obtenção de confiança precisa
ser substituída pela estratégia deslegitimadora que opõe espaços de-
mocráticos aos acordos obscuros com o sistema financeiro.
Os constrangimentos impostos pelo sistema financeiro e transna-
cional ao Governo Lula só tiveram efetividade por que houve vonta-
de deliberada do próprio Governo nesse sentido. Se somos tanto mais
confiáveis aos mercados quanto mais contingenciamos nossa sobera-
nia, então sabemos, pelo temor reflexo deles, que a coragem de confiar
nas nossas próprias forças não pode ser castigada.
O que mais podem exigir os capitais de rapina, e que mal adi-
cional podem fazer, contra os que desobedecerem? Já pagamos com
décadas perdidas o preço da falta de reciprocidade. Na falta dela no-
vamente, o que teremos a perder?
Enquanto custamos a acreditar sobre o que temos nas mãos e
à nossa frente, predadores, especuladores e seus amigos inauguram
temporada de caça e proscrição a controles de capitais, a novos crité-
rios a formas de reestruturação soberana da dívida, a fundos sociais e
regionais de desenvolvimento, a mecanismos de regulação pública de
tarifas e preços estratégicos nas cadeias de valor, a políticas industriais
ativas, a políticas comerciais e de integração regional que se neguem a
sacrificar preciosas margens autonomia operacional e tecnológica.
Não podemos permitir que o país continue trilhando um cami-
nho sob o qual não temos nenhum controle. Mas, se queremos cons-
truir outro modelo de desenvolvimento, temos que ter forças sociais
mobilizadas e comprometidas com isso, senão não sairemos do campo
das hipóteses.
296 Democratização em meio ao desmonte: o elo entre a coerência
macroeconômica, a liberalização comercial e a efetividade política

Referências

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Xamã, 1996.
CHESNAIS, François. Actualizar la noción de imperialismo para com-
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Ed. Xamã, 1999b.
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ra favorable al poder hegemónico en el marco de la mundia-
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MÃO, Wagner de Melo (orgs.). Francisco de Oliveira: A tarefa da Crí-
tica. Belo Horizonte: UFMG, 2006.
Reflexões sobre
a democracia
contemporânea e a
questão da legitimidade
do sistema representativo
o caso Rondônia
Moacyr Parra Motta
Procurador Jurídico da Assembléia Legislativa de Rondônia. Mestre em Direito
pela Universidade Federal de Minas Gerais. Autor de Interpretação
ção Constitucional sob
çã
princípios
í
ípios (Belo Horizonte, Mandamentos, 2003).
298 Reflexões sobre a democracia contemporânea e a questão da
legitimidade do sistema representativo o caso Rondônia

Jamais se refletiu tanto sobre a democracia e os sistemas sociais


como no final do século XX e no início desde século XXI. Emblemáti-
co vivenciar esta mudança de século e suas transformações. Muitos
conceitos foram empregados e tentados. Objetivo possivelmente frus-
trado uma vez que a Democracia é como um rio em cujas correntes
e águas não se consegue banhar duas vezes. Parece ter razão Lenio
Luiz Streck e José Luis Bolzan de Morais (2003), quando se aventuram
em discorrer sobre esta “invenção”, socorrendo-se de outros grandes
pensadores contemporâneos, como Claude Lefort (2003, p. 100), para
quem a democracia é uma constante invenção, isto é, deve ser inventa-
da cotidianamente.
Para Marilena Chauí “a democracia é invenção porque, longe de
ser a mera conservação de direitos, é a criação ininterrupta de novos
direitos, a subversão contínua dos estabelecidos, a reinstituição per-
manente do social e do político”. Para Streck e Morais (2003) “uma
sociedade justa não é uma sociedade que a adotou, de uma vez para
sempre, as leis justas. Uma sociedade justa é uma sociedade onde a
questão da justiça permanece constantemente aberta”. É possível di-
zer, como esses autores, a par da dificuldade de conceituar a demo-
cracia, que existem alguns traços que a distinguem de outras formas
sociais e políticas: em primeiro lugar, a democracia é a única sociedade
e o único regime político que considera o conflito legítimo, uma vez
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 299

que não só trabalha politicamente os conflitos de necessidades e de


interesses, como procura instituí-los como direitos e, como tais, exige
que sejam reconhecidos e respeitados.
O processo da democracia nasce lado a lado com o processo de
formação da sociedade organizada e do Estado. O processo de con-
quista dos direitos fundamentais é um movimento lento e constante.
Aqui na América Latina, especialmente, o processo tem sido mais lento
e ainda de pouca vivência. Basta ver que o tempo vivido em algum
estágio da democracia é bem menor que o tempo vivido em regimes
autocráticos. Até há poucas décadas vivia mergulhada em ditaduras
militares. As seqüelas ainda são bem visíveis, mormente se examinar-
mos a equação distribuição de renda versus participação democrática
da população, além das constantes fraudes nas eleições, parlamentos
eleitos com representatividade desproporcional e escandalosas viola-
ções das Constituições de vários países, inclusive no que pertine à in-
clusão de emendas para reeleição de governantes, compras de votos e
outras fraudes e casuísmos nos sistemas eleitorais.
A democracia é uma temática constante dos juristas e filósofos
em suas reflexões sobre as diversas formas e significados. Surgem pro-
postas indicando um modelo de democracia onde exista uma diminui-
ção gradual dos pressupostos de mercado e uma ascensão gradual do
direito igual de desenvolvimento individual, apresentando um con-
junto de pré-condições que seriam as condições sociais da democracia:
mudança da consciência do povo e grande diminuição da atual desi-
gualdade social e econômica, eis que a desigualdade exige um sistema
partidário não-participativo para manter o status quo (STRECK; MO-
RAES, 2003).
O professor Fernando Badia (1986) faz minuciosa análise sobre a
democracia ante a autocracia. Analisa os aspectos estruturais do siste-
ma político democrático e sua transformação constante até a democra-
cia pluralista e de participação em todos os níveis.
É senso comum a concepção de que “toda democracia assenta
suas bases no povo. Mas o que se entende por povo?”.
Para a democracia grega, povo era somente o conjunto de ho-
mens livres. Os escravos e os libertos não eram considerados cidadãos,
assim, não eram considerados parte do povo. Era uma democracia sob
o regime da minoria e a seu serviço.
300 Reflexões sobre a democracia contemporânea e a questão da
legitimidade do sistema representativo o caso Rondônia

Aristóteles não percebeu no seu tempo as contradições entre a


sua teoria política e a infra-estrutura social escravocrata. Esses aparen-
tes paradoxos ou antinomias são facilmente detectados a posteriori.
Contudo, é o processo histórico que se fosse adivinhado não seria mais
ciência, mas profecia.
São oportunas as observações de Roberto Lyra Filho quando afir-
ma ser fácil, à altura de novos tempos, mostrar as deficiências do passo
antecedente. Ocorre que, no progresso histórico, só podemos entender
as coisas, do anterior para o posterior, e não deste para a conquista
prévia, pois, nesse último caso, qualquer progresso nos parece ab initio
superado.
“Com tal ilusão de ótica, é viável acusar, sempre e absurdamen-
te, a vanguarda da véspera de não coincidir com a vanguarda atual,
que há de ser (não há meio de eludi-lo) um veículo de coisas obsoletas,
quando for tragada pelo tempo e pelas futuras aquisições” (LIRA FI-
LHO, 1983).
Para a democracia liberal, povo era equiparado a uma constru-
ção ideal, alheia a toda realidade sociológica. Não era o ser humano
situado, mas um povo de cidadãos, isto é, indivíduos abstratos e ide-
alizados, frutos do racionalismo e do mecanicismo, que, prescindindo
de toda a construção histórica, informa o constitucionalismo do século
XIX. A democracia liberal deforma o conceito de povo. Nela, o povo
real, concreto, com seus defeitos e qualidades, permanece alheio ao
exercício do poder, e na realidade não é mais do que um poder sobre o
povo (LIRA FILHO, 1983, p. 135).
Há uma tendência reacionária para reduzir o povo ao conjunto
dos cidadãos, ao corpo eleitoral, como se os membros desse fossem en-
tidades abstratas, desvinculadas da realidade que os cerca, sob todas
as influências do ser como sujeito e dos seus problemas, lembra bem
José Afonso da Silva. O corpo eleitoral não constitui o povo, mas uma
simples técnica de designação de agentes governamentais. Povo são os
trabalhadores. Os titulares do poder dominante (político, econômico e
social) não podem entrar no conceito de povo. Seriam tão-somente os
seus representantes (SILVA, 1997).
Friedrich Müller, discorrendo sobre as razões pelas quais as
Constituições falam de povo, afirma que essas justificativas do exercí-
cio democrático do poder e da violência, bem como de todas as razões
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 301

da crítica da democracia dependem desse ponto de vista. A justifica-


ção move-se normalmente no campo das técnicas de representação, de
instituições e procedimentos. Somente assim o “povo” entra no campo
visual; ou ainda nos momentos nos quais a delimitação da nação ou da
sociedade está em jogo (MÜLLER, 1998).
No Título I, art. l° da Constituição Brasileira, figura a República
Federativa do Brasil como sendo o “Estado Democrático de Direito no
qual todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de represen-
tantes eleitos diretamente, nos termos desta Constituição”.
Da mesma forma, a Lei Fundamental Alemã invoca no seu pre-
âmbulo que “o Povo Alemão, por força do seu poder constituinte”,
teria outorgado esse texto; a República Federal da Alemanha seria “um
Estado Federativo Democrático e de Bem-Estar Social”, no qual “todo
o poder de Estado” emanaria do povo e deveria ser exercido pelo povo
em eleições e votações, bem como, por meio dos clássicos órgãos pú-
blicos divisores dos poderes. Finalmente, “os partidos devem atuar na
formação da vontade política do povo” (art. 38 § l°).
Indaga Müller, quem legitimaria essa “co-atuação” - realmente
o povo inteiro, ou apenas os membros dos partidos ou apenas estes
últimos -, descontados os membros inativos, que apenas fazem núme-
ro, ou, ainda, apenas as lideranças (ou lideranças de bancadas oli-
garquicamente instaladas)? Seria o povo, fora dos partidos e dos seus
aparelhos, simplesmente a população? Ou será que a legitimação desta
co-atuação advém ao menos de todos os titulares da nacionalidade ou
ainda dos titulares de direitos eleitorais ativos e passivos? Esses con-
juntos parciais não são idênticos entre si; e pergunta-se quem deles se-
ria idêntico ao “povo”? Ao passo que a elegibilidade, o direito eleitoral
ativo, a nacionalidade e os diversos graus e pressupostos da participa-
ção são parafraseados por textos de normas (em nível constitucional e
infraconstitucional), tais textos de normas faltam para a explanação,
para a definição legal de “povo” (MÜLLER, 1998, p. 42).
Prosseguindo em seus questionamentos, esse célebre jurista ale-
mão levanta a questão da minoria, sempre vencida pelo voto da maio-
ria, lembrando ainda que nem a todos os cidadãos é permitido votar
e nem todos os eleitores votam efetivamente. E que povo se esconde
atrás dos efeitos informais sobre a formação da opinião pública e da
vontade política do povo?
302 Reflexões sobre a democracia contemporânea e a questão da
legitimidade do sistema representativo o caso Rondônia

Conclui esse professor, sustentando que:

Talvez isso seja uma ideologia; mas talvez aqui um povo


inteiro de titulares de nacionalidade ou até a popula-
ção efetiva do território legitimem realmente de outro
modo. Até agora, no entanto, está cada vez menos claro
que povo supre aqui a legitimidade; isso fica cada vez
menos claro, quanto mais de perto examinarmos o fenô-
meno em questão. (MÜLLER, 1998, p. 50).

Quanto à participação no poder, surgem três tipos de democra-


cia qualificadas como direta, indireta ou representativa e semidireta.
Democracia direta é aquela em que o povo exerce, por si mesmo,
os poderes de governo, fazendo as leis, administrando e julgando. É o
povo reunido em assembléia tomando suas decisões.
Georges Burdeau assinala que esse tipo de democracia é mais
uma curiosidade histórica hoje. É a concepção integral da idéia de de-
mocrática. Os indivíduos se reúnem em praça pública ou no campo
para tratar e deliberar sobre as tarefas públicas. ”Ce procedé idylique
de gouvernemente n’est plus aujourd’hui quúne curiosité historique”.
Ela existe apenas em alguns Cantões Suíços (BURDEAU, p. 1995).
Democracia indireta, conhecida como representativa, é aquela na
qual o povo, fonte primária do poder, não podendo dirigir os negócios
do Estado diretamente, em vista da sua complexidade e distâncias ter-
ritoriais, outorga as funções de governo aos seus representantes, que
ele periodicamente elege.
Democracia semidireta é a democracia representativa com al-
guns institutos de participação direta do povo nas funções de governo,
institutos que, entre outros, integram a democracia participativa.
Duas transformações importantes ocorreram a partir do modelo
ideal da sociedade democrática, já apontadas por Bobbio: uma, relativa
à distribuição de poder e a outra, quanto à representação. A direção
ocorre da sociedade centrípeta para a sociedade centrífuga, frustran-
do a “vontade geral de Rousseau” e o modelo do Estado Democrático
fundado na soberania popular, idealizado à imagem e semelhança da
soberania do príncipe, modelo de uma sociedade monística. A socieda-
de real, sustentada nos governos democráticos, é pluralista (BOBBIO,
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 303

p. 1992).
A democracia moderna nasceu como democracia representativa,
ao contrário da democracia dos antigos. A representação deveria pos-
suir um caráter de mandato vinculado. O princípio sobre o qual se fun-
da a representação política é a antítese da representação dos interesses,
do mandato imperativo. Essa é uma questão que hoje está colocada
na ordem do dia no nosso Congresso - questão como representação da
nação ou dos partidos, grupos e corporações.
Esse jurista italiano traz à tona um dos debates mais célebres e
historicamente significativos que se desenrolaram na Assembléia Cons-
tituinte Francesa, originando a Constituição de 1791. Esse momento
histórico permitiu o triunfo daqueles que sustentaram que o deputado,
uma vez eleito, tornava-se o representante da nação e deixava de ser o
representante dos eleitores; como tal, não estava vinculado a nenhum
mandato.
O mandato livre fora uma prerrogativa do rei, que, convocando
os Estados Gerais, pretendera que os delegados das ordens não fos-
sem enviados à Assembléia com pouvoirs restrictifs. Expressão cabal
da soberania, o mandato livre foi transferido da soberania do rei para
a soberania da Assembléia eleita pelo povo. Desde então, a proibição de
mandato livre foi transferida da soberania do rei para a da Assembléia.
A partir daí, a proibição de mandatos imperativos tornou-se uma
regra constante de todas as Constituições de democracia representati-
va. A defesa intransigente da representação política encontrou sempre,
nos fatores da democracia representativa, convictos defensores contra
as tentativas de substituí-la ou de combiná-la com a representação dos
interesses (BOBBIO, 1986, p. 24).
Bobbio então sentencia: “jamais uma norma constitucional foi
mais violada que a da proibição de mandato imperativo. Jamais um
princípio foi mais desconsiderado que o da representação política”.
Quem representa interesses particulares tem sempre um mandato im-
perativo. E indaga: onde podemos encontrar um representante que não
defenda interesses particulares? Sustenta, finalmente, que a disciplina
partidária promove uma aberta violação da proibição de mandatos im-
perativos. Lembra que é uma regra sem sanção.
A democracia direta dos antigos, na qual a atividade pública se
desenvolvia na Polis, impedia o surgimento de qualquer corpo inter-
304 Reflexões sobre a democracia contemporânea e a questão da
legitimidade do sistema representativo o caso Rondônia

mediário entre o indivíduo e a cidade. Rousseau tinha em mente a de-


mocracia dos antigos e a democracia direta (BOBBIO, 1986, p. 25).
A democracia moderna nasceu como método de legitimação e
de controle das decisões políticas em sentido estrito, ou do “governo
propriamente dito, no qual o indivíduo é considerado em seu papel
geral de cidadão e não na multiplicidade de seus papéis específicos de
fiel de uma igreja, de trabalhadores, de estudante, consumidor e de do-
ente”. Após a conquista do sufrágio universal, a chamada extensão do
processo de democratização deveria se revelar não tanto na passagem
da democracia representativa para a democracia direta, como habitu-
almente se afirma, quanto na passagem da democracia política para a
democracia social.
Adverte Bobbio, em outros termos, quando se deseja saber se
houve um desenvolvimento da democracia num dado país, que o certo
é procurar perceber se aumentou, não o número dos que têm o direito
de participar nas decisões que lhes dizem respeito, mas os espaços nos
quais podem exercer esse direito.
A democratização substancial das sociedades inigualitárias não
decorre, pois mecanicamente, da simples ampliação do sufrágio popu-
lar substancial. É mister, antes de mais nada, atacar as fontes do poder
oligárquico, as quais se encontram na própria estrutura das relações
econômicas e sociais, notadamente as restrições práticas à instrução
popular e o monopólio dos meios de comunicação de massa em mãos
da minoria dominante (MÜLLER, 1998, p. 24).
J.J. Gomes Canotilho ensina que o Estado de Direito vem cum-
prindo bem as exigências que o constitucionalismo salientou relativa-
mente à limitação do poder político. O Estado Constitucional é, assim,
em primeiro lugar, o Estado com uma Constituição limitadora do po-
der através do império do direito. As idéias de leis, de Estado sub-
metido ao Direito, de Constituição como vinculação jurídica do poder
foram tendencialmente realizadas por institutos como o Rule of Law,
Rechstsstaat, Principe de la Legalité.
Todavia, faltava alguma coisa ao Estado de Direito Constitucio-
nal - a legitimação democrática do poder. Esse autor chama atenção
para a conciliação do Estado de Direito e democracia, lembrando de
alguns “cismas” entre os “constitucionalistas” e os “democratas” para
significar a opção preferencial a favor do Estado juridicamente cons-
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 305

tituído, limitado e regido por leis (“constitucionalistas”) ou o Estado


constitucionalmente dinamizado pela maioria democrática (“demo-
cratas”).
São conhecidas as controvérsias sobre as antinomias entre De-
mokratisstaat. Na França, Benjamin Constant celebrizou a distinção
entre “liberdade dos antigos”, amiga da participação na cidade, e “li-
berdade dos modernos,” assente na distanciação perante o poder (CA-
NOTILHO, p. 1998).
Canotilho nos chama à reflexão sobre a seguinte questão: “O que
significam no fundo, estas persistentes angústias perante a simbiose de
Estado de Direito e Estado Democrático no Estado Constitucional?”.
Para alguns, Estado de Direito e Democracia correspondem a
dois modos de ver a liberdade. No Estado de Direito, concebe-se a li-
berdade como liberdade negativa, ou seja, uma “liberdade de defesa”
ou de “distanciação” perante o Estado. É uma liberdade liberal que
“curva” o poder. Ao Estado Democrático, estaria inerente a liberdade
positiva, isto é, a liberdade assente no exercício democrático do poder.
É a liberdade democrática que legitima o poder (MOTTA, p. 2003).
A lógica escondida nessas duas liberdades leva mesmo os auto-
res a falarem de two profoundly divergent and irreconcilable a�itudes
to the ends of life . O coração balança, portanto, entre a vontade do
povo e a rule of law
law. Tentemos racionalizar esse balanceamento do co-
ração (CANOTILHO,1998, p. 93).
A idéia de que a liberdade negativa tem precedência sobre a par-
ticipação política (liberdade positiva) é um dos princípios básicos do
liberalismo político clássico. As liberdades políticas teriam uma impor-
tância intrínseca menor do que a liberdade pessoal e de consciência.
A partir disso, arrisca dizendo que não admirará que “se alguém for
forçado a escolher entre as liberdades políticas e as restantes liberda-
des, o governo do bom soberano que reconhecesse estas últimas e que
garantisse o domínio da lei seria preferível”. A segurança da proprie-
dade e dos direitos liberais representaria neste contexto a essência do
constitucionalismo. O “homem civil precederia o “homem político, o
bourgeois estaria antes do cidadão. O “bourgeois” que preza a sua li-
berdade em face do poder terá mais liberdade do que “bourgeois” que
cultiva a liberdade política. O Estado Constitucional é “mais” do que
Estado de Direito. O elemento democrático não foi apenas introduzido
306 Reflexões sobre a democracia contemporânea e a questão da
legitimidade do sistema representativo o caso Rondônia

para “travar” o poder; foi também reclamado pela necessidade de le-


gitimação do mesmo poder (1998, p. 94).
Adverte que se quisermos um Estado Constitucional, assente em
fundamentos não metafísicos, temos de distinguir claramente duas
coisas: uma, a legitimidade do Direito, dos Direitos Fundamentais e
do processo de legislação no sistema jurídico; outra é a da legitimidade
de uma ordem de domínio.
O Estado “impolítico” do Estado de Direito não dá resposta a
esse último problema: donde vem o poder. Só o princípio da sobera-
nia popular, segundo o qual “todo o poder vem do povo”, assegura e
garante o direito à igual participação na formação democrática da von-
tade popular. Assim, o princípio da soberania popular, concretizado
segundo procedimentos juridicamente regulados, serve de “charnei-
ra” entre o Estado de Direito e o Estado Democrático, possibilitando a
compreensão da moderna fórmula Estado de Direito Democrático.
Para a conceituação liberal, Estado de Direito significa a conjuga-
ção de pelo menos três elementos: o princípio da legalidade, ou o im-
pério da lei estatal, que é sua característica básica; o princípio da publi-
cidade, isto é, da transparência da atuação do Estado na produção das
leis, decisões judiciais e atos administrativos; o princípio do equilíbrio
e do controle entre os Poderes (CAMPILONGO, 1998, p. 112).
Esse autor vincula o princípio da publicidade com a regra da
maioria, sustentando que no Estado Constitucional o caráter público é
a regra; o segredo, a exceção. Assim, a maioria precisa estar informada
para controlar, denunciar e deliberar. Não basta a legalidade. O Estado
de Direito vem complementado pelo princípio da publicidade no exer-
cício do poder.
Essa conceituação liberal de Estado de Direito foi consolidada no
século XIX, num contexto diferente. Hoje, o Estado tem outra configu-
ração, especialmente no campo econômico. Dicotomias importantes,
como Estado-Sociedade, Público-Privado, Individual-Coletivo, não ti-
nham o mesmo significado.
Legitimar as decisões coletivas e aproximar governantes e go-
vernados são objetivos da regra da maioria. Fazer da lei a expressão da
“soberania da maioria” integra o conceito de democracia. Mas se além
da noção de Estado, o próprio conceito de Estado de Direito também é
relativizado, qual a utilidade da regra da maioria enquanto instrumen-
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 307

to de legitimação das decisões políticas? Indaga Campilongo.


Estado de Direito é, antes de tudo, princípio da legalidade. A lite-
ratura jurídica e política têm identificado, insistentemente, a coexistên-
cia do Estado de Direito com o Estado Paralelo, lembra. Trata-se de um
Estado à margem do Estado de Direito. O Estado Paralelo desenvolve-
se em espaços extra-legais ou de legalidade. É fruto de uma discrepân-
cia básica, de um lado, uma matriz jurídico-institucional que formaliza
vastos domínios da vida social por meio da lei; de outro, uma prática
social de ações e omissões do Estado no quotidiano da regulação social
(CAPILONGO, 1998, p. 114).
Democracia, reproduzindo, é um conjunto de regras (primárias
ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as
decisões coletivas e com quais procedimentos. A Democracia significa,
nesta perspectiva, a montagem de um arcabouço de normas que de-
finem antecipadamente os atores e a forma do jogo, identificando-se,
de regra, com as questões relativas a: quem vota? Onde se vota e com
quais procedimentos? Sendo que, para cada pergunta, devemos adotar
respostas compatíveis (STRECK; MORAIS, 2003).
Assim, quanto a quem vota? devemos responder todos; sobre
onde se vota?, devemos responder em todos os locais onde se tomem
decisões de caráter coletivo; e sobre quais procedimentos a serem ado-
tados? Precisamos responder que o mecanismo fundamental é a re-
gra da maioria, sendo que para que se possa implementá-la devem-se
disponibilizar alternativas reais, bem como garantir possibilidades de
escolha, tendo como conteúdo mínimo: a) garantia dos direitos de li-
berdade; b) partidos; c) eleições; d) sufrágio; e) decisões por acordo ou
por maioria com debate livre. Além disso, uma grande dose de justiça
social é condição de possibilidade da democracia (STRECK; MORAIS,
2003, p. 108).
A questão da legitimidade é uma qualificadora no Estado de
Direito que não se pode prescindir na Democracia contemporânea.
Freqüentemente as democracias utilizam o artifício da eleição em dois
turnos, isto porque, se as eleições diretas não geram diretamente uma
maioria, essa maioria tem de ser criada para sustentar o mito da de-
legação legítima. A democracia delegativa é fortemente individualis-
ta, porém com um corte mais hobbesiano do que lockeano, uma vez
que pressupõe que os eleitores escolhem, independentemente de suas
308 Reflexões sobre a democracia contemporânea e a questão da
legitimidade do sistema representativo o caso Rondônia

identidades e filiações, a pessoa (e não o partido) que é mais adequada


para cuidar dos destinos da nação (STRECK; MORAIS, 2003, p. 112).
João Paulo Viana (2006, p. 116-118) abordada a questão da legi-
timidade sob o prisma de uma reforma política onde fosse incluída a
cláusula de barreira, lembra que, em 2002, 19 partidos conseguiram re-
presentação na Câmara dos Deputados. O que, para alguns, essa frag-
mentação é vista como um empecilho à formação de governos sólidos,
com maiorias capazes de fomentar decisões. Sugere, para determinar
o melhor funcionamento do sistema político brasileiro, a implemen-
tação de medidas como a fidelidade partidária, o fim das coligações
em eleições proporcionais e o financiamento público de campanhas.
Isso impediria a formação de partidos de aluguel, que comumente se
transformam em “fiéis da balança”, iludindo uma representação com
maior legitimidade.
Em Direito, Democracia e Risco, Giogi (1998), sustenta que a pri-
meira representação a ter ficado obsoleta é a que utiliza a distinção en-
tre a sociedade civil, entendida como o universo das necessidades e o
reino da individualidade, e o Estado, entendido como sociedade políti-
ca, lugar da centralização das decisões e governo da diversidade. Essa
descrição permitia apontar um primado da política, entendida como
sistema de controle da sociedade. Disso se extraía a idéia de um centro
e de uma periferia da sociedade e a idéia da política com centro de alo-
cação de recursos controlado pelo direito e que, baseado em princípios
universais, garantia a justiça das distribuições. Eram os pressupostos
do Iluminismo que serviam de alicerce para a arquitetura constitucio-
nal da sociedade moderna. Essa arquitetura encontrava sua expressão
mais alta no ideal democrático e na estrutura do parlamentarismo mo-
derno: uma estrutura que, assentada numa refinada engenharia consti-
tucional, devia permitir a representação de interesses, a defesa do bem
comum, a tutela da diversidade entendida como garantia do direito
das minorias. Isso tudo pressupunha a centralidade da idéia de nação
e a possibilidade de representação de um centro decisório capaz de
exprimir o interesse geral.
Essa arquitetura dava corpo à idéia iluminista de razão, prosse-
gue Giogi. Era uma idéia que tinha contribuído para a fragmentação
das estruturas sociais, dos privilégios, das diferenças naturais; uma
idéia forte e grande, que se revelou útil também contra os recentes re-
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 309

trocessos e tragédias que mancharam as instituições iluministas das


democracias parlamentares modernas.
Nos últimos dois séculos, essa arquitetura de autodescrição da
sociedade promoveu grandes sedimentações de sentido para as quais
não existem, atualmente, substitutos funcionais. Faltam alternativas às
estratégias do liberalismo e do socialismo, enquanto a reflexão sobre a
essência e o fundamento da democracia assume tons preocupantes e se
transforma numa angustiante questão sobre o futuro da democracia e
do parlamentarismo. Qual o perfil desse futuro? (GIOGI, 1998, p. 37).
Outros mecanismos políticos merecem povoar também a mente
dos pensadores: um sistema federativo que gere melhor distribuição
de poder, renda e espaço físico; uma visão melhor para os municípios
e pequenas comunidades, porque é lá que vivem pessoas reais com ne-
cessidades reais; Um sistema de governo, tipo o Diretorial ou alguma
forma de parlamentarismo que aproxime mais representantes e repre-
sentados e promova maior inclusão e participação destes nas decisões.
Isso evitará momentos traumáticos na hora de mudança e queda das
estruturas governamentais, como queda de um Presidente ou de um
parlamento.
Numa Democracia de representatividade puramente formal,
como garantir o controle da legitimidade e da justiça quando seus ali-
cerces são abalados, mesmo sabendo-se que sua representatividade é
criada através de mecanismos de duvidosa legalidade, como a corri-
queira compra de votos e demagogias do troca-troca? O célebre caso
da Operação Dominó, de repercussão nacional, trouxe uma experiên-
cia que deve ser refletida pela Ciência Política. Nunca, acreditamos, em
nenhum lugar do mundo, a democracia representativa fora colocada
em “cheque” como nesse caso.
Surgiram denúncias veiculadas na imprensa no dia 15 de maio
de 2005, no programa “Fantástico” da Rede Globo de televisão, envol-
vendo Deputados da Assembléia Legislativa do Estado de Rondônia.
Em 16 de maio de 2005, o Presidente da Assembléia Legislativa
emitiu o Ato nº P/064/2005, constituindo e nomeando Comissão Tem-
porária Especial, destinada a apurar os fatos.
Trata-se de veiculação de gravações de áudio e vídeo em todos
os veículos de comunicação do País e deste Estado, “envolvendo mem-
bros deste Poder juntamente com o Senhor Governador do Estado em
310 Reflexões sobre a democracia contemporânea e a questão da
legitimidade do sistema representativo o caso Rondônia

atos que denigrem a imagem de detentores de cargos públicos com


fatos apontados como supostamente incriminatórios, objetivando tirar
vantagens pessoais com o exercício do mandato parlamentar”. Nestas
gravações de vídeo feita pelo Senhor Governador do Estado apareciam
07 Deputados daquele parlamento, incluídos a maioria dos membros
da Mesa Diretora.
A reportagem trouxe à tona fatos graves, que consistiam na
exigência de vantagens pessoais, consistente do valor mensal de R$
50.000,00 (cinqüenta mil reais), para cada deputado, para não fazerem
oposição ao Governo.
Impressiona o relatório da Comissão, especialmente pelo resul-
tado. Por muito menos outros homens públicos, em outras sociedades,
naturalmente, ceifaram a própria vida. Dizia o relatório que

“É antiga a suspeita de que algumas Comissões Parla-


mentares, Especiais ou de Inquérito, degeneram em ga-
zuas para parlamentares desonestos, que as usam para
chantagear e extorquir suspeitos. Mas é a primeira vez
que se revelam os bastidores de uma negociação entre
deputados e o Senhor Governador, onde deputados, su-
postamente, exigem dinheiro para não fazerem oposi-
ção ao Governo.
Note-se que esta Comissão que analisa a reportagem re-
quisitou cópia das gravações veiculadas pela emissora
de televisão, determinou a transcrição do texto e a reali-
zação de laudo pericial nas gravações apresentadas.
Em razão destes fatos, houve comoção da população,
que em manifestação pública, violenta, depredou o
prédio deste Poder Legislativo, do Governo do Estado,
do Tribunal de Justiça e, ameaçam, de forma expressa,
a integridade física dos parlamentares estaduais, com
manifestações injuriosas aos membros deste Poder Le-
gislativo, sem distinção.
Pelas atitudes mostradas pela reportagem televisiva,
instaurou-se uma crise institucional no Estado, com a
população exigindo a renúncia de todos os envolvidos,
inclusive do Senhor Governador do Estado.
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 311

Os atos praticados, em tese, atingem o decoro parla-


mentar, como previsto no art. 34, §1º, da Constituição
do Estado de Rondônia, e art. 88 e seus incisos, do Regi-
mento Interno desta Casa”.

Registre-se que os próprios envolvidos no processo participaram


da votação. Nem precisa ser dito, mas o resultado foi a absolvição de to-
dos.
Choque maior ainda para a nossa Democracia Representativa e
“cheque” na nossa secular arquitetura constitucional encontra-se no
fato desse Parlamento ter sofrido durante esse processo, seis Medidas
Judiciais de Busca e Apreensão em operação conjunta do Superior Tri-
bunal de Justiça, Ministério Público do Estado, Polícia Federal e mem-
bros do Tribunal de Justiça do Estado, denominada, Operação Dominó.
Estas Medidas Judiciais culminaram com o indiciamento de 23 dos 24
deputados que compunham aquele parlamento, por desvio de enorme
soma de dinheiro público.
Surgiram ainda como denunciados no mesmo caso, o Presidente
do Tribunal de Justiça, o Vice-Presidente do Tribunal de Contas, al-
guns agentes públicos servidores da Assembléia Legislativa e empre-
sários locais. Foram todos presos juntamente com o Presidente da As-
sembléia, apontado como o chefe da quadrilha, e transportados para
interrogatório em Brasília, na forma da regra de competência. Mais de
300 policiais fortemente armados povoaram a sede do Poder Legisla-
tivo Estadual. Foi realizada minuciosa busca e apreensão em todos os
setores da Assembléia, exceto na Procuradoria. Naqueles dias somen-
te Agentes da Policia Federal, Promotores de Justiça e Procuradores
habitaram a sede do Parlamento. Os Procuradores acompanharam a
Instituição durante todo o processo.
A partir daí, uma longa e tormentosa guerra de papel, medidas
judiciais e administrativas se instalaram no Estado e no Distrito Fede-
ral. Agora sim era invocado com fervor o dever de respeito às Consti-
tuições aos sistemas legais e à Democracia. Argumentos formalmente
ou aparentemente corretos, do ponto de vista do sistema legal, mas
que se chocavam com os fatos, com a realidade, surgindo de forma
absolutamente inadequados ou, no mínimo, gerando perplexidade,
como se verá. Foi enviado o ofício da Assembléia Legislativa do Estado
312 Reflexões sobre a democracia contemporânea e a questão da
legitimidade do sistema representativo o caso Rondônia

em que seu Vice-Presidente, no exercício da Presidência, comunica a


manifestação contrária à manutenção da prisão em flagrante por porte
ilegal de arma do Deputado Presidente afastado daquele parlamen-
to. A decisão do Desembargador Relator não acatou a resolução nº.
121/06, da Assembléia Legislativa, comunicada ao Tribunal através do
Ofício P227/06, datado de 11 de setembro de 2006.
Afinal, trata-se de prisão em flagrante de Membro do Parlamen-
to Estadual, prisão esta comunicada à Assembléia Legislativa, que por
sua vez, em sessão plenária pública, deliberou contrário a manuten-
ção da prisão em flagrante, resolvendo pela liberdade incontinente do
parlamentar, de conformidade com o disposto no § 1º do art. 27 e § 2º
do art. 53 da Constituição Federal e o § 3º do art. 32 da Constituição
Estadual.
Esse caso não coloca em “cheque” somente a questão do institu-
to da imunidade parlamentar, consagrado constitucionalmente, mas
igualmente outros institutos da democracia representativa tão impor-
tantes quanto este, inclusive o próprio sistema representativo e a im-
portância do princípio da legitimidade como elemento inarredável do
Estado de Direito Democrático.
A Eminente Ministra Eliana Calmon, em informações para o STF,
em habeas corpus impetrado em favor do Presidente da Assembléia
Legislativa, sobre o indeferimento do pedido de liberdade provisória
formulado pelo mesmo em face de sua prisão, assim se manifestou:

“...em referência ao disposto no item 6 do habeas cor-


pus, li atentamente o que está no § 2º do artigo 53, o qual
garante ao parlamentar, federal ou estadual, além não
somente a prisão em flagrante por crime inafiançável,
como também a remessa dos autos à Casa respectiva,
para que ali seja deliberado sobre a prisão.

Confesso a minha perplexidade em dar cumprimento


literal à norma constitucional, a qual é repetida no § 3º
do artigo 32 da Constituição do Estado de Rondônia,
que consultei.
Qual o motivo da perplexidade? A Assembléia Legisla-
tiva do Estado de Rondônia é composta de vinte quatro
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 313

deputados,
Diante da situação constante dos autos, entendi ser im-
possível apresentar o deputado preso aos seus compa-
nheiros de delito.
Procurei na legislação uma forma de solução, mas não
encontrei. Afinal, a realidade é mais rica do que qual-
quer imaginação, mesmo da imaginação do legislador
constitucional, o qual jamais poderia supor situação tão
peculiar.
Dessa forma, ignorei a regra constitucional, seguindo
a linha do razoável, ou seja, aplicar ao parlamentar as
regras de prerrogativa da magistratura, apresentando-
o à Corte Especial deste Superior Tribunal de Justiça,
a quem toca a competência para processar e julgar os
demais indiciados neste inquérito, se transformado em
ação penal.
Nesta oportunidade, Senhora Ministra, quero mais uma
vez destacar a minha preocupação em, de forma abso-
lutamente incoerente, incompreensível e desrespeitosa
para com as autoridades que participaram das investi-
gações, Departamento de Policial Federal, pela Superin-
tendência do Estado de Rondônia e Ministério Público
Federal, pela Subprocuradora-Geral da República; in-
compreensível perante a opinião pública e a cidadania,
a quem compete a magistratura prestar contas de seus
atos, aplicar a Constituição em sua literalidade e, assim,
entregar o parlamentar preso para mais um espetáculo
de chicana e desrespeito à lei, dizendo para a Nação que
o Judiciário estava avalizando, com base na lei e na or-
dem constitucional, a impunidade de um parlamentar.
Afinal, as prerrogativas que o fazem diferente dos de-
mais cidadãos são outorgadas pelo desrespeito da de-
mocracia àqueles que representam o povo.
Quando os delegados populares já não mais expressam
a vontade e o interesse de seus delegantes, naturalmente
que não podem ser atendidas as prerrogativas do cargo.
Não quero me estender em considerações sócio-jurídi-
314 Reflexões sobre a democracia contemporânea e a questão da
legitimidade do sistema representativo o caso Rondônia

cas, por entender que este não é o momento e o foro


próprio, mas não poderia dissociar a minha atuação pu-
ramente técnica, como magistrada, da figura de cidadã,
de espectadora política e acima de tudo, da pessoa que
acredita na última trincheira onde se busca as garantias
constitucionais.
Registro, outrossim, que essa questão referente à imu-
nidade parlamentar já foi enfrentada pelo STF, onde
a eminente Ministra Cármen Lúcia, ao apreciar o HC
89417/RO, impetrado em favor do próprio denunciado
no caso mencionado, em voto que foi acompanhado
pela maioria, indeferiu o writ, consoante notícias am-
plamente divulgadas pela mídia local e nacional. Como
consta da notícia do próprio STF, a Ministra, ao lembrar
que dos 24 deputados, 23 estão indiciados em diversos
inquéritos, indagou: Como se cogitar então numa situ-
ação de absoluta anomalia institucional, jurídica e ética
que os membros daquela Casa poderiam decidir livre-
mente sobre a prisão de um de seus membros, aplicando
a norma constitucional, máximo quando ele é tido como
o ‘chefe indiscutível da organização criminosa que coor-
dena as ações do grupo e cobra dos demais integrantes
o cumprimento das tarefas que lhe são repassadas ?
Em assonância, restou ainda salientado na decisão do
STF que aplicar o pretendido dispositivo constitucional,
na espécie, conduziria a resultado oposto ao buscado
pelo ordenamento jurídico. Entendeu-se, pois, que à
excepcionalidade do quadro haveria de corresponder a
excepcionalidade da forma de interpretar e aplicar os
princípios e regras constitucionais, sob pena de se pres-
tigiar regra de exceção que culminasse na impunidade
dos parlamentares. (HC 89417/RO, rel. Min. Cármen
Lúcia, 22.8.2006. (HC-89.417) in Informativo STF 437).
Aliás, registro que a falta de isenção dos membros da
Assembléia Legislativa fala por si quando se sabe que,
recebida pelo Pleno desta Corte a primeira denúncia por
peculato e formação de quadrilha contra o réu (fls.112-
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 315

114), deliberou aquela Casa suspender a ação penal (CF,


art. 53, § 3º) em inescondível expediente de cunho cor-
porativista.
Nesse passo, considerando que a questão reclamada no
ofício nº P/227/06, do 1º Vice-Presidente da Assembléia
Legislativa de Rondônia, de 11.09.06, já foi enfrentada
pelo próprio STF, reporto-me à fundamentação da emi-
nente Relatora Ministra Cármen Lúcia, no HC 89417/
RO, que assevera a inaplicabilidade do disposto no art.
53, § 2º da Constituição Federal, tampouco o disposto no
art.32, § 3º, da Constituição do Estado de Rondônia”.

Os crimes revelados pelas interceptações telefônicas foram de


corrupção, tráfico de influência, exploração de prestígio e de formação
de quadrilha.

Conclusão

Percebe-se nesse processo a importância de instituições fortes e a


garantia das liberdades democráticas. Percebe-se também a necessida-
de de uma reflexão profunda e transformação das estruturas e proce-
dimentos da democracia liberal, ainda formais, de natureza lockeana
e montesquiana, que não conseguem responder de forma efetiva às
demandas da Democracia Representativa Contemporânea, como se
assistiu no caso Rondônia ou Operação Dominó. Mesmo tratando-se
ou especialmente por tratar-se de um Estado onde o processo de colo-
nização autoritário e o coronelismo ainda estão muito presentes onde
uma pequena elite arrogante no Poder mais das vezes não diferencia o
público do privado; estruturas viciadas, contaminadas por corrupção
e dispendiosas; estruturas que não privilegiam as políticas públicas de
primeiras necessidades; Parlamentos sem código moral solidificado,
aéticos e sem qualquer formação político-ideológica.
Busca-se uma utopia? Por que não? O que nos restou senão res-
gatar uma ética democrática, humanista? Tarso Genro lembra que uma
ética democrática e socialista é, sempre, universalista e considera sem-
pre o “outro”, como uma provável extensão de si mesmo. Sustenta que:
316 Reflexões sobre a democracia contemporânea e a questão da
legitimidade do sistema representativo o caso Rondônia

Todo poder transformador de caráter democrático e re-


volucionário tem um certo caráter utópico. Isto é bom.
Isto é possível. A discussão de um projeto utópico, po-
rém, cede sempre uma parte do seu utopismo ao prag-
matismo do poder. Isso é histórico, verdadeiro, “natu-
ral”. Ao ser derrotada, historicamente, aquela utopia
“mediata” da sociedade sem classes, não foi substituída
por uma utopia “imediata” de natureza democrática.
Foi derrotada pelo neoliberalismo. Não conseguimos,
ainda, responder qual a nossa utopia dentro do Esta-
do Democrático de Direito. Ao não formular esta uto-
pia, teórica e programaticamente, a moral utópica vai
se desconstruindo no partido e dissolvendo o espírito
generoso do utopismo bolchevique, sem substituí-lo
por outra utopia. A ausência de uma utopia concreta,
com democracia, passa a dar lugar, gradativamente, ao
reducionismo pragmático abrigado na vulgaridade teó-
rica (GENRO, 2004, p. 110).

Evidencia-se, na “Operação Dominó”, a fragilidade e esterilidade


do normativismo jurídico, que não consegue responder de forma sa-
tisfatória à sociedade, às demandas que se impõem de pronto. A Cons-
tituição é basicamente unidade, totalidade e complexidade, sentencia
Paulo Bonavides (1997). A Constituição é unidade que repousa sobre
Princípios. Os Princípios Constitucionais. Esses não só exprimem de-
terminados valores essenciais – valores políticos ou ideológicos – se-
não que perpassam toda a ordem constitucional, imprimindo assim ao
sistema, sua feição particular, identificável, inconfundível, sem a qual
a Constituição seria um corpo sem vida, de reconhecimento duvidoso,
senão impossível.
A interpretação sistemática da Constituição permite estabelecer
no regime político a sede daqueles valores a que a linguagem jurídica
conferiu a denominação de princípios constitucionais. Nesses valores
se inspiram ou têm base, os direitos fundamentais e as normas consti-
tucionais de organização e competência.
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 317

Referências

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campos,


1992.
__________________ . O Futuro da Democracia: Uma Defesa das
Regras do Jogo. 5 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São
Paulo: Malheiros, 1997.
BURDEAU, Georges. Manuel Droit Constitutionnel. 24ª ed. Li-
brarie Générale de Droit et de Jurisprudênce. Paris: 1995.
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e Democracia. São
Paulo: Max Limonand, 1998.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e
Teoria da Constituição. 2ª ed. Coimbra: Almedina, 1998.
FERNANDO BADIA, Juan. Democracia Frente a Autocracia. Los
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GENRO, Tarso. Esquerda em Processo. Petrópoles. Rio de
Janeiro: Editora Vozes, 2004.
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MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direito Constitucional.
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MÜLLER, Friedrich. Quem é o Povo? - A Questão Fundamental
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ca e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado Edi-
tora, 3ª Ed. 2003.
VIANA, João Paulo Saraiva Leão. Reforma Política: Cláusula de
Barreira na Alemanha e no Brasil. Porto Velho: Editora da Universida-
de Federal de Rondônia, 2006.
A democracia
consolidada

Sansão Saldanha
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, exercendo o
cargo de Corregedor Geral da Justiça. Mestre em Direito Constitucional pela
Universidade Federal de Minas Gerais.
320 A democracia consolidada

Quando o dia amanhece no Brasil, parece-nos que não há demo-


cracia. Mas há. Podemos dizer que a democracia já se consolidou por
aqui.
O que mais nos impressiona - e que nos faz pensar o contrário -
são as notícias da pobreza que se espalham pelas camadas mais densas
da sociedade, a falta de teto para muitos e a de terras agricultáveis para
outros; os velhos pelos albergues, os hospitais sem leito, os bairros sem
escolas, as favelas tomadas por bandos armados dando as últimas or-
dens de toques de recolher.
Democracia é a liberdade de pensar e expressar-se em todos os
sentidos. Até bem pouco tempo, governo democrático era um governo
só de homens letrados ou proprietários.
A Nova Zelândia foi o Estado que mais cedo, em 1893, estendeu
às mulheres o sufrágio nas eleições, seguida da Austrália, em 1902.
Depois de mais de cinqüenta anos, após a Segunda Guerra Mundial,
é que em países como a França, Bélgica e Suíça as mulheres puderam
votar.
No século XX, a democracia se estendeu à população, na teoria e
na prática, com raras exceções, como um instrumento de participação
na vida pública.
Nos dias atuais, a democracia, além das conseqüências desejáveis
de evitar a tirania, almeja garantir os direitos essenciais e a liberdade.
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 321

Na democracia, apregoamos a autodeterminação e a autonomia moral,


e, a par do desenvolvimento humano, visa a proteção dos interesses
essenciais e a igualdade política, também busca a paz e a prosperidade
para os cidadãos de um Estado.
É Robert Dahl (2001, p. 98) que fornece um rol das instituições
políticas mínimas, para que um Estado possa ser considerado demo-
cratizado. Se faltar uma delas, não está suficientemente democratiza-
do.
Nas democracias antigas, as instituições referidas já estão plena-
mente consolidadas. Se ocorrer algum problema, ou tiverem preocu-
pação quanto à política, são de outra ordem e não o da consolidação
da democracia.
Com esse mínimo de instituições, a serem constatadas no instan-
te da transição de uma sociedade para a democracia, o autor referido
conceitua a situação como de democracia poliárquica, no sentido de
governo de muitos.
Por isso é que podemos dizer que o Brasil é uma democracia con-
solidada, porque temos hoje representantes eleitos; eleições livres, jus-
tas e freqüentes; liberdade de expressão; fontes de informação diversi-
ficadas; autonomia para as associações e cidadania inclusiva. Esses são
os requisitos mencionados por Dahl.
Talvez não seja uma excelência de democracia, essa a brasileira.
Embora já tenham dito que a democracia não é o melhor dos regimes
de governo, de forma que não podemos esperar muito dela.
Mas vamos conferir cada um desses requisitos. Na figura dos
representantes eleitos, o controle das decisões do governo sobre a po-
lítica é investido constitucionalmente a cidadãos eleitos pelo povo. Na
democracia, portanto, os agentes mais importantes do governo não
podem fazer ou planejar e adotar políticas, independentemente, do
desejo dos cidadãos. A solução para o impasse é eleger esses agentes,
mantendo-os nos seus postos enquanto bem servirem.
Não podemos pensar que não venham ocorrer embaraços nessa
ascensão do cidadão o ao poder. VVão e muitos! O que devemos contar é
com a oportunidade de eleger e ser eleito.
Eleições livres, justas e freqüentes. Por esse meio, os cidadãos
são escolhidos em eleições freqüentes cercadas por tudo que presuma
garantir o tratamento igual para todos os concorrentes, isento de todas
322 A democracia consolidada

as formas de coerção. Se houver coerção é relativamente incomum e


decorrente do sistema legal, como acontece na obrigação do voto por
todos e de seguir certos procedimentos para ser votado. O que se dese-
ja ver é a igualdade política, significando que todos os cidadãos devem
ter a oportunidade formal e efetiva de votar e todos os votos devem ser
contados como iguais. É um instrumento para concretizar o controle fi-
nal sobre o planejamento da política do governo, por isso é que devem
ser as eleições freqüentes. Eleições demoradas, entre períodos, fazem
com que se perca o controle sobre os agentes públicos, funcionários ou
representantes.
Com a liberdade de expressão, os cidadãos têm o direito de se
manifestar sem o risco de sérias punições em questões políticas am-
plamente definidas, incluindo-se a crítica ao governo, ao regime, aos
membros dos poderes constituídos, à ordem socioeconômica e à ideo-
logia prevalecente. É a liberdade de expressão um requisito para que os
cidadãos realmente participem da vida política. Geralmente, apóiam-
se nos esclarecimentos dos atos e políticas do governo, vindos a públi-
co pela própria liberdade de expressão. Também, é com a liberdade de
expressão que podem influenciar nos programas de planejamento das
decisões do governo.
O cidadão tem o direito de buscar fontes de informação diversi-
ficadas e independentes de outros cidadãos, especialistas, jornais, re-
vistas, livros, telecomunicações e afins. É, por este meio, que o cidadão
adquire a compreensão das questões da administração pública e polí-
tica do governo. Portanto, devem ter acesso a fontes de informação que
não estejam sob o controle de alguns aficionados ao governo, grupos
ou ponto de vista de partidos. O monopólio das notícias é prejudicial
e antidemocrático, porque fere os princípios da democracia. O mono-
pólio das fontes de informações foi bom para governos autoritários, e
é péssimo para a democracia.
Autonomia para as associações. Para obter seus vários direitos,
até mesmo os necessários para o funcionamento eficaz das instituições
políticas democráticas, os cidadãos também têm o direito de formar
associações ou organizações relativamente independentes, como tam-
bém partidos políticos e grupos de interesses. Se desejarmos de fato
implantar a democracia, é preciso que o cidadão possa livremente es-
colher o modo de se associar, quer por partidos e organizações não
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 323

governamentais, quer por lobby ou simplesmente por grupos de in-


teresse. Além de favorecer o trânsito do cidadão dentro do ambiente
político, segundo Robert Dahl (2001), as associações de toda ordem
são boas fontes de educação cívica e de esclarecimento cívico, porque
proporcionam informações e oportunidade para discutir, deliberar e
adquirir habilidades políticas.
A nenhum adulto, dentro do Estado e sujeito às suas leis, podem
ser negados os direitos disponíveis e necessários à participação e en-
volvimento com instituições políticas e idéias básicas que constituem
a sociedade em que está inserido. A isso se chama cidadania inclusiva.
Entre esses direitos estão: o direito de votar na escolha dos representan-
tes em eleições livres e justas; de se candidatar para os postos eletivos;
de livre expressão; de formar e participar de organizações políticas in-
dependentes; de ter acesso a fontes de informação independentes; e de
ter direitos a outras liberdades e oportunidades que sejam necessárias
para o bom funcionamento das instituições políticas da democracia em
grande escala. É por esta instituição que o cidadão, ou o agrupamento
ao qual pertença, adquire voz onde ela é necessária para a defesa dos
interesses fundamentais. Foi lutando para serem incluídos e participa-
rem das decisões da monarquia que os nobres e burgueses forçaram a
outorga da Carta Magna inglesa, na qual estão radicadas as origens do
constitucionalismo contemporâneo. O mesmo aconteceu com a classe
média francesa, que fez a revolução, porque seus direitos estavam sen-
do deixados de lado, sendo que daí vieram os conclamados direitos do
cidadão e da pessoa humana. Para Dahl (2001, p. 92), “ocorre a plena
inclusão quando todas as pessoas sujeitas às mesmas leis se incluem no
corpo dos cidadãos do Estado”.
Essas instituições políticas da democracia poliárquica são neces-
sárias para satisfazer os critérios de participação efetiva, controle de
programas das decisões do governo, igualdade de voto, entendimento
esclarecido e plena inclusão.
O importante a constatar é que nem sempre essas instituições
aportaram todas de uma vez só na sociedade. Foi paulatina a conquis-
ta de cada povo de cada uma delas. As eleições de cidadãos para o
legislativo possivelmente tenham sido as primeiras que se têm notícia,
seguindo-se da gradual expansão do direito de expressão, quanto às
questões políticas, com a busca e a troca de informações. As associa-
324 A democracia consolidada

ções, que no começo eram consideradas perigosas, separatistas, passí-


veis de subverter a estabilidade e a ordem política, além de ofensivas
ao bem público, redundaram no direito de hoje de todo cidadão de
compartilhar objetivos políticos explícitos. As facções do começo da
democracia, hoje, são partidos sempre procurando por uma força na-
tural mesma, alternarem-se no governo. A marca democrática está na
alternatividade “posição” versus “oposição”.
Com as instituições acima referidas, fica aberto o caminho para
os cidadãos montarem a estratégia para os governos recém-saídos de
períodos autoritários e transformá-los em democracias representati-
vas, porque as instituições estabelecem um nível mínimo para a de-
mocracia, é preciso conhecê-las melhor a fim de que sejam reforçadas e
aprofundadas, tornando, por fim, a democracia de um Estado consoli-
dada, como se verá a seguir.
Para completar, deve-se ver que a democracia consolidada aten-
de ao seguinte padrão: (1) a completude dos procedimentos para se
chegar a um governo eleito; (2) a efetiva escolha dos governantes via
voto popular direto e livre; (3) exercício de fato da autoridade para ge-
rar políticas novas; (4) e a existência de regra formal para que os Pode-
res Executivo, Legislativo e Judiciário, criados pela nova democracia,
não dividam suas funções com outros organismos (LINZ, 1999, p. 21).
Nesta linha de idéia, como afirmou Juan Linz (1999, p. 23-24), o
Estado vive um instante de democracia plenamente consolidada, no
qual é a democracia “o único jogo disponível na sociedade” em termos
de comportamento dos grupos políticos relevantes, que não demons-
tram tendências a derrubar o regime com violência, tampouco dividir
o Estado; em termos de atitudes da população, a qual continua acre-
ditando que qualquer mudança no sistema deva seguir as fórmulas
democráticas; e, em termos constitucionais, pois a comunidade política
resolve os conflitos de acordo com as normas estabelecidas.
No sentido político, o que se percebe é que a vida nacional vem
ajustando-se a parâmetros amplos e genericamente aceitos intra e além
fronteiras. Não se tem notícia que exista atualmente algum grupo de-
sejoso de, mediante a violência, assumir o regime ou dividir o Estado
brasileiro.
A vida civil está cheia de exemplos que as mudanças necessárias
se procuram fazer através das regras estabelecidas para tanto, como se
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 325

nota no combate à fome, às endemias, na expressiva votação na esco-


lha dos governantes. Não faz muito tempo, as mais recentes ofensas
às regras do jogo democrático foram severamente punidas, segundo
os passos estabelecidos na lei suprema do país: vários políticos de alta
representatividade na comunidade perderam os seus cargos, inclusi-
ve um presidente foi impedido de continuar no governo, tudo por se
mostrarem corruptos e indignos de exercer a função pública.
As recentes notícias da comunidade nacional e internacional,
mais relevantes, foram nesse sentido da consolidação da democracia
brasileira. Alguns senões foram desculpados, em razão do caráter seto-
rial e problemático do processo histórico da consolidação democrática
no sentido substancial: a questão dos presídios, do menor trabalhador,
da violência doméstica.
Nessa encruzilhada, acredita-se que a função jurisdicional faz
parte do poder político transferido para o Estado. Perguntaríamos: há
uma democracia judicial?
O Poder Judiciário deve uma pronta resposta ao povo, como titu-
lar material do poder. Se for acometida a poucos a função de interesse
público de resolver os conflitos privados, afastando a composição pes-
soal, a sentença deve obedecer aos padrões democráticos, tanto no seu
sentido substancial quanto procedimental.
Já foi dito antes que o exercício do poder é para satisfazer os
princípios fundamentais do Estado democrático, ou pelo menos não
se arredar deles, quer os que o fundam, como a soberania, a cidadania,
a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da li-
vre iniciativa, o pluralismo político; quer os que fixam seus objetivos
expressos em construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir
o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de to-
dos, sem preconceito de origem, raça, sexo. Essa perspectiva se resume
melhor, porque mais consolidada na passagem do preâmbulo na qual
os constituintes afirmam que, como representantes do povo brasileiro,
se reuniram para “instituir um Estado democrático, destinado a asse-
gurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segu-
rança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e, enfim, a justiça,
como valores supremos da sociedade”.
326 A democracia consolidada

Referências

DAHL, Robert A. Sobre a Democracia. Brasília: Editora Universidade


de Brasília, 2001.
LINZ, Juan; STEPAN, Alfredo. A Transição e Consolidação da Demo-
cracia: a experiência do Sul da Europa e da América do Sul. São Paulo:
Paz e Terra, 1999.
Sobre a vida
pregressa
dos candidatos

ALEX SARKIS
Advogado e professor das Faculdades Associadas de Ariquemes - FAAR.
328 Sobre a vida pregressa dos candidatos

No momento histórico em que a democracia brasileira vem sen-


do alvo de sucessivos escândalos amplamente divulgados pela mídia
nacional e extrapolando para o âmbito internacional, episódios como
a Máfia dos Sanguessugas, Operação Dominó, dólares na cueca de um
assessor parlamentar, o envolvimento de parlamentares num sistema
de propinas denominado de “Mensalão”, movimentando vultosas so-
mas em dinheiro de origem duvidosa e outros acontecimentos igual-
mente reprováveis que a sociedade tem repugnado por abalarem pro-
fundamente a moralidade pública, a conduta dos políticos nacionais,
mais do que nunca, vem sendo questionada por todos os seguimentos
da sociedade brasileira, que assistindo a tudo com um sentimento de
indignação e impotência, por não saber ao certo o que fazer para banir
do cenário político nacional todos os políticos desonestos que enxova-
lham a nação.
Como brasileiro e cidadão valho-me desta oportunidade para
conjeturar sobre o assunto. As conseqüências catastróficas dos desa-
justes de conduta de uma parcela considerável de brasileiros investi-
dos de mandatos eletivos, guardam ligação visceral com as condutas
registradas no folhear do livro de suas vidas, até galgarem o cargo
público que ocupam, isso porque o homem de agora não é nada mais
nem menos que o somatório de tudo que fez ao longo de sua vida.
Qualquer do povo que em algum momento da trajetória de vida
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 329

agir em desacordo com as leis e regras em geral de convivência social


receberá do estado a adequada reprimenda e, por mais paradoxal que
possa parecer, o mesmo não acontece em relação aos integrantes da
classe política, numa afronta inaceitável ao princípio constitucional da
igualdade.
Não poderíamos discorrer absolutamente nada sobre vida pre-
gressa de qualquer pessoa se não fizermos uma retrospectiva histórica
na formação étnica do seu povo. Como é do conhecimento geral, a in-
fluência de europeus, indígenas e negros, foi marcante para a forma-
ção da nação brasileira, cujo povo mesmo tendo incorporado valores
diversificados, teve a obstinação como uma das características mais
marcantes. No entanto, suas perspectivas de vida sempre ficaram limi-
tadas pelas circunstâncias, pois as chances de sucesso na maioria das
atividades dependem de sua condição financeira. Por sua vez, o modo
como o Brasil foi governado no decorrer dos seus mais de 500 anos,
onde as classes menos favorecidas que representam a maior parcela
do povo, sempre foram utilizadas como instrumento de manobra para
consolidar o poder dominante. Para ilustrar, temos exemplos clássicos
dos coronéis no Nordeste e nos seringais da Amazônia e os fazendei-
ros nas regiões prósperas do Sul e Sudeste, onde os currais eleitorais
estão produzindo até hoje uma parcela significativa do parlamento na-
cional.
Os tempos passaram, entretanto, esse esquema mesquinho ain-
da persiste, com os poderosos comandando as ações e os sem posses,
privados cada vez mais de suas necessidades básicas e sem o discer-
nimento e a informação tão necessárias para formar o cidadão côns-
cio de seus direitos, são lembrados apenas nos momentos em que são
úteis para legitimar uma democracia esdrúxula e contraditória onde
a maioria serve apenas para votar, convalidando um processo cruel e
inaceitável que se arrasta há tempos, perpetuando uma injustiça social
sem precedentes na história brasileira.
As campanhas eleitorais no Brasil, como em qualquer parte do
mundo onde o cidadão exerce o direito de votar, são bastante dispen-
diosas, por mais simples que sejam assumem dimensões proporcionais
ao tamanho e força econômica da localidade onde se realiza o pleito e
o seu preço é sempre alto, financeira e politicamente. O que se vê hoje
em dia são candidatos tentando seduzir os eleitores a qualquer custo,
330 Sobre a vida pregressa dos candidatos

valendo-se de todos os artifícios possíveis e imagináveis, guardando


conformidade com o nível sócio-cultural e econômico de cada segmen-
to do eleitorado a ser cortejado.
Nossos antepassados no convívio familiar nos repassam com es-
mero o legado da educação, cultura, incutindo-nos valores morais e
éticos tidos como indispensáveis; daí para frente, somos incorporados
numa sociedade geneticamente subvertida por costumes absurdamen-
te reprováveis; são cultuados princípios que todos, de alguma forma,
praticam e relutam em dele se libertar, como o da conhecida Lei de
Gerson, aquela que, inconsciente ou conscientemente, praticamos no
dia a dia, cujo principio básico é o de levar vantagem em tudo em detri-
mento dos outros, cujos reflexos são notados no cotidiano das pessoas
num abominável circulo vicioso difícil de ser interrompido.
Os políticos como parte da casta privilegiada da sociedade, em
muito maior escala, as praticam de hábito, visto que, para eles o que
importa é vencer continuamente as eleições e conquistar os cargos; já
que, por intermédio dele vem o poder, prestígio e a tão sonhada imu-
nidade parlamentar e o foro privilegiado, que mais cedo ou mais tarde
serão utilizados nos deslizes que cometerem e venham a responder
ações com a complacência da morosidade da justiça. Grande parte dos
crimes praticados são alcançados pela prescrição, estimulando osten-
sivamente a certeza da impunidade.
Quando falamos de vida pregressa do candidato a análise preci-
sa ser o mais abrangente possível, envolvendo a conduta do individuo
no meio familiar, social, profissional e religioso, complementado pelos
requisitos enumerados na legislação; pois a indignação da sociedade
reflete o sentimento de que “O cidadão tem o direito de exigir que o
Estado seja dirigido por administradores íntegros e legisladores pro-
bos… e, finalmente, que o direito ao governo honesto… traduz uma
prerrogativa insuprimível da cidadania” (REALE, 2000).
A figura jurídica vida pregressa foi trazida para a legislação bra-
sileira com a promulgação da Constituição Federal de 1988, artigo 14
parágrafo 9° DOS DIREITOS POLITICOS, cuja redação original era a
seguinte:

“§ 9º Lei Complementar estabelecerá outros ca-


sos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 331

de proteger a normalidade e legitimidade das eleições


contra a influência do poder econômico ou o abuso do
exercício de função, cargo ou emprego na administra-
ção direta ou indireta.”

Mais tarde, a Emenda Constitucional de Revisão nº4 de 1994, deu


ao §9º, do Art.14, a redação a seguir, transcrita aperfeiçoando-o:

“Art. 1.º São acrescentadas ao § 9.º do art. 14 da


Constituição as expressões: a probidade administrativa,
a moralidade para o exercício do mandato, considerada
a vida pregressa do candidato, e, após a expressão a fim
de proteger, passando o dispositivo a vigorar com a se-
guinte redação:
Art. 14...........................................................................
.....................................................................
§ 9º. Lei complementar estabelecerá outros casos
de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de
proteger a probidade administrativa, a moralidade para
o exercício do mandato, considerada a vida pregressa
do candidato, e a normalidade e legitimidade das elei-
ções contra a influência do poder econômico ou o abuso
do exercício de função, cargo ou emprego na adminis-
tração direta ou indireta.
Art. 2.º Esta Emenda Constitucional entra em vi-
gor na data de sua publicação.

Como se constata, esta emenda constitucional trouxe uma feição


completamente renovada, trazendo um entendimento mais amplo de
que a eleição é um processo dirigido ao atendimento de interesses so-
ciais indisponíveis e que o registro de candidatos está umbilicalmen-
te ligado aos princípios de probidade administrativa e de moralidade
para o exercício de mandato.
Desejou a Constituição, portanto, que o pleito fosse livre da abu-
siva influência do poder econômico, político ou administrativo, bem
como que a probidade e a moralidade para o exercício de mandatos
eletivos fossem preservadas, abominando-se a candidatura de pessoas
332 Sobre a vida pregressa dos candidatos

cuja vida pública precedente tenha demonstrado não reunir condições


para, uma vez guindados ao poder, preservar esses valores basilares
do Estado e da convivência política e social.
A mencionada emenda permitiu que novos casos de inelegibi-
lidade fossem criados, observada a vida pregressa do candidato. Pela
análise do dispositivo citado, restou evidente a existência de um prin-
cípio constitucional que manda considerar a vida pregressa do can-
didato na aferição de sua elegibilidade. Desta forma, aplicando-se tal
princípio constitucional, concluímos que indivíduos comprovadamen-
te corruptos condenados por crimes contra a Administração Pública,
seriam sumariamente inelegíveis.
Todavia, esse dispositivo deixou de contemplar casos de inelegi-
bilidade que, tendo em vista a moralidade para o exercício do mandato,
levasse em conta a vida pregressa do candidato. Essa lacuna é danosa
porque ofende a consistência do sistema de inelegibilidade, permitin-
do que sejam eleitas para cargos públicos pessoas moralmente desqua-
lificadas que futuramente estariam predispostas ao envolvimento em
grandes escândalos sociais.
A ausência de norma complementar deixou o Poder Judiciário
limitado às disposições que regulam a inelegibilidade, entre outras
destacamos:

“SUMULA – TSE N. 13 - A vida pregressa de can-


didato, ainda que com registro de condenação criminal,
mas sem trânsito em julgado, não gera inelegibilidade,
por não ser auto-aplicável o § 9º do art. 14 da Constitui-
ção Federal”.

A vida pregressa a que alude a disposição constitucional, ditada


para a esfera eleitoral, e que aqui se toma como fundamento necessá-
rio ao deferimento do registro de candidatura, abarca por seu turno
apenas tudo que existir em termos de ações penais com trânsito em jul-
gado, a vista de sua natureza, plausibilidade e demais circunstâncias,
acaba se constituindo empecilhos ao juízo positivo de moralidade para
o exercício do mandato.
Nos aspectos moral e ético pressupõe a exigência que o candi-
dato deve pautar sua conduta em atitudes corretas e legitimadas pela
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 333

oportunidade de extrapolar sua pacífica e ordeira.


A reputação do individuo é o conceito que o meio social faz de
um de seus membros e que pode ser bom ou mau. Ilibada é intocável
cândida, até porque o termo candidato tem sua origem de cândido, de
limpo, isso porque na Roma antiga os candidatos à eleições vestiam-se
de branco total e desfilavam pelas ruas a procura de votos. Assim, ter
reputação ilibada é ser bem conceituado no meio social em que vive,
é ter comportamento puro, sem jaça. Evidentemente quem está indi-
ciado em inquérito policial ou é réu em ação penal não tem reputação
ilibada. Não tendo reputação ilibada, não gozando de bom conceito no
meio social, não poderia ser candidato a cargo público eletivo.
Com relação à exigência de vida pregressa limpa, verificamos
avanços significativos quando já é exigido de servidores públicos esta-
duais, do Advogado-Geral da União, do Ministro do Tribunal de Con-
tas da União, do Ministro do Supremo Tribunal Federal e do Superior
Tribunal de Justiça, a boa conduta e reputação ilibada, contrariamente
àqueles que pretendem os cargos públicos eletivos nos Poderes Legis-
lativo e Executivo, o Congresso Nacional.
O passar dos tempos, a evolução dos costumes e a pressão dos
órgãos de imprensa e da população estão gradualmente modificando
este estado de coisas, tanto que jurisprudência pátria já sinaliza sua
evolução acomodando duas posições antagônicas se não vejamos:

1. O entendimento da não auto-aplicabilidade


do art. 14, § 9º da Constituição Federal de 1988

O art. 14, § 9º da Constituição Federal trata de um princípio cons-


titucional que manda considerar a vida pregressa na aferição da elegi-
bilidade. Contudo, a jurisprudência predominante no Supremo Tribu-
nal Federal considera tal dispositivo como sendo de eficácia limitada
à edição de Lei Complementar, como se constata da seguinte ementa,
em julgamento no Supremo Tribunal Federal do Agravo Regimental
em Agravo de Instrumento nº 165.332-0-MG (on-line):
EMENTA: ELEITORAL. EX-PREFEITO. CANDIDATO A DEPU-
TADO FEDERAL. IMPUGNAÇÃO. INELEGIBILIDADE FUNDADA
NA SUA VIDA PREGRESSA E NA REJEIÇÃO DE SUAS CONTAS.
ART. 14, §9º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL: NORMA DEPENDEN-
334 Sobre a vida pregressa dos candidatos

TE DE INTEGRAÇÃO LEGISLATIVA.
[...]
O art. 14, § 9º, da Constituição Federal, na redação que resul-
tou da Emenda Revisional nº 4, não cria hipótese de inelegibilidade
por falta de probidade e moralidade administrativa averiguada pelo
exame da vida pregressa do candidato, mas determina que lei com-
plementar o faça, integrando o regime de inelegibilidades da ordem
constitucional.
[...] (grifou-se)
No julgamento do Recurso Especial Eleitoral nº 13.031-MG, que
teve como relator o Ministro Francisco Rezek, o Tribunal Superior
Eleitoral adotou o mesmo entendimento da necessidade de edição de
Lei Complementar para estabelecer os casos em que a avaliação da
vida pregressa pode culminar em inelegibilidade. O Acórdão foi assim
ementado (on-line):

RECURSO ESPECIAL. INELEGIBILIDADE. CONTAS REJEI-


TADAS. PROPOSITURA DE AÇÃO ANULATÓRIA. VIDA PRE-
GRESSA CANDIDATO. ART. 14 - §9º CF.

Proposta ação para desconstituir a decisão que rejeitou as contas,


anteriormente à impugnação, fica suspensa a inelegibilidade (Súmula
nº 1 TSE).
A vida pregressa do candidato só pode ser considerada para efei-
to de inelegibilidade quando lei complementar assim o estabelecer.

Recurso Provido

Nas razões do seu voto, o Ministro Francisco Rezek ressaltou a


impossibilidade de se repelir a aplicação da Súmula nº 13 do Tribu-
nal Superior Eleitoral, que considera que “não é auto-aplicável o § 9º
do art. 14 da Constituição, com a redação da Emenda Constitucional
de Revisão n. 4/94”. Filiou-se ainda ao entendimento dominante na
Corte Eleitoral, inclusive consubstanciado na Súmula nº 1, segundo a
qual, “proposta a ação para desconstituir a decisão que rejeitou as con-
tas, anteriormente à impugnação, fica suspensa a inelegibilidade (Lei
Complementar nº 64/90, art. 1º - I –g)”.
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 335

Assim, em face do entendimento do Supremo Tribunal Federal


de que o dispositivo do art. 14, § 9º não é auto-aplicável e do disposto
nas Súmulas citadas, para restrição da capacidade eleitoral passiva do
cidadão faz-se imprescindível o trânsito em julgado da decisão conde-
natória. A orientação constante da Súmula nº 1 consagra a proteção da
presunção de inocência das pessoas, garantia constitucional de extre-
ma importância para o Estado Democrático de Direito.
O Recurso Especial Eleitoral nº 13.031-MG foi interposto contra
decisão do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais, cujo acórdão,
citado no relatório do Ministro do Tribunal Superior Eleitoral Francis-
co Rezek (on-line), foi assim ementado:

REGISTRO DE CANDIDATURA. INDEFERIMENTO. AÇÕES


PENAIS E CIVIL PÚBLICA EM CURSO. CONTAS REJEITADAS.
PROPOSITURA DE AÇÃO ANULATÓRIA. MANOBRA PARA FU-
GIR À INELEGIBILIDADE PREVISTA NO ART. 1º - I – G, DA LC
64/90 – INELEGIBILIDADE NÃO AFASTADA.

Precedente jurisprudencial do C. TSE


Vida pregressa do candidato deve ser considerada.
Recurso desprovido.

2. O Entendimento da Eficácia dos Princípios


Constitucionais que Repudiam a Improbidade

Na criação da inelegibilidade que visa a salvaguardar a morali-


dade e a probidade administrativa, considerada a vida pregressa do
candidato, a intenção foi justamente de repelir da administração da
coisa pública pessoas de passado suspeito, que não merecem a con-
fiança do povo para exercer o poder em nome da coletividade. Mano-
el Gonçalves Ferreira Filho² ao discorrer acerca dessa inelegibilidade
destaca que:

“A intenção é clara e louvável, pois procura impedir que


disputem eleições e por estas se elejam – pessoas cujo
passado – a vida pregressa – sugira que ameacem a pro-
bidade administrativa e a moralidade”.
336 Sobre a vida pregressa dos candidatos

Assim, levando-se em conta que a maior parte da população bra-


sileira é formada por pessoas sem escolaridade, seria ilusão supor que
o povo, por si só, seja capaz de repelir do cenário político governante
descomprometido com os anseios sociais. Nesse contexto, impõe-se a
produção de normas no ordenamento jurídico capazes de afastar das
disputas eleitorais pessoas com esse perfil.
Essas normas existem, no entanto, necessitam de uma rigorosa
aplicação; Esse é o entendimento do eleitoralista repudiam Djalma
Pinto:

Não se pode afirmar que o nosso sistema jurídico não


se ache equipado com normas aptas a repelir o acesso
aos cargos públicos de pessoas comprovadamente sem
probidade. Em absoluto. Há até excesso dessas normas,
falta apenas colocá-las em prática com a determinação e
firmeza [...]. Basta, simplesmente, emprestar eficácia aos
princípios constitucionais que a improbidade.

Nesse contexto, é de grande importância o princípio constitu-


cional insculpido no art. 14, § 9º da Carta Magna, onde se privilegia a
moralidade administrativa ao exigir-se a análise da vida pregressa do
indivíduo como uma condição de elegibilidade.
Não restam dúvidas de que aquele que esteja respondendo a
processos por práticas delituosas ou que tenha demonstrado, como
gestor, a sua falta de compromisso com as verbas públicas, tendo suas
contas rejeitadas pelo respectivo Tribunal de Contas, ao assumir qual-
quer cargo eletivo, terá grande probabilidade de praticar desmandos
administrativos, sem qualquer compromisso com a moralidade.
Em vista disso, em nome de toda a coletividade, é mais pruden-
te afastá-lo de qualquer disputa eleitoral, sacrificando a sua garantia
individual de presunção de inocência (art. 5º, LVII da CF) em bene-
fício da sociedade, já que está propenso a agir em desacordo com a
moralidade. O Ministro do Tribunal Superior Eleitoral José Delgado,
no seu voto no julgamento do Recurso Ordinário nº 912-RO, assim se
posicionou:

“Temos aqui a alegação de um princípio de presunção


O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 337

de inocência referente a um ato de improbidade admi-


nistrativa. Temos noutro lado também em confronto
aquilo que estou a chamar de princípio de proteção à
democracia. [...] E um, entre tantos outros princípios
que fortalecem o regime democrático, é o do respeito
à moralidade administrativa. [...] Ou interpretamos a
Constituição visando proteger o postulado da democra-
cia, através do chamado princípio de proteção à demo-
cracia, ou vamos esvaziar a mensagem de moralidade
pública que há na Constituição Federal de 1988.”
Por conseguinte, nessa colisão de princípios deve preva-
lecer a interpretação mais benéfica para a manutenção
da democracia. Ademais, trata-se, na verdade, de um
conflito aparente, uma vez que não há qualquer ofensa
ao princípio da presunção de inocência, visto que, para
a análise da vida pregressa do candidato, não se realiza
qualquer exame da matéria relativa aos processos cri-
minais, não adentrando ao mérito da culpabilidade ou
não do indivíduo. Analisa-se apenas o contexto da sua
vida pregressa, em vista da moralidade necessária para
se ocupar um cargo eletivo.
Vale ressaltar, ainda, que não se está a propor a criação
de uma presunção absoluta de que deve ser tirada a ca-
pacidade eleitoral passiva de qualquer indivíduo con-
denado sem o trânsito em julgado da condenação. Com
a adoção do princípio constante do § 9º do art. 14 da
Carta Magna, transferem-se para o postulante do cargo
eletivo o ônus da prova da sua idoneidade, ou seja, deve
provar que está apto a participar do certame eleitoral,
não tendo uma vida pregressa maculada.

Deve-se também repelir a aplicação indiscriminada da Súmula


nº 1 do Tribunal Superior Eleitoral. Não pode qualquer ação tenden-
te a desconstituir as contas desaprovadas ter o condão de suspender
a inelegibilidade do indivíduo. Esse foi o entendimento esposado no
recente julgamento do recurso Ordinário nº 912-RO (on-line) proposto
junto ao Tribunal Superior Eleitoral, assim ementado:
338 Sobre a vida pregressa dos candidatos

RECURSO ORDINÁRIO. ELEIÇÃO 2006. IMPUGNAÇÃO.


CANDIDATO. DEPUTADO ESTADUAL. REJEIÇÃO DE CONTAS.
AÇÃO ANULATÓRIA. BURLA. INAPLICABILIDADE DO ENUN-
CIADO Nº 1 DA SÚMULA DO TSE. RESURSO DESPROVIDO.

A análise da idoneidade da ação anulatória é complementar e


integrativa à aplicação da ressalva contida no Enunciado nº 1 da Sú-
mula do TSE, pois a Justiça Eleitoral tem o poder-dever de velar pela
aplicação dos preceitos constitucionais de proteção à probidade ad-
ministrativa e à moralidade para o exercício do mandato (art. 14, §9º,
CF/88).- Recurso desprovido.
Faz-se necessário que a ação anulatória das contas desaprovadas
tenha requisitos de convicção próximos da certeza, a exemplo do que
ocorre no Processo Civil (art. 273 do Código de Processo Civil), em
casos de concessão de tutela antecipada, em que se exige a prova ine-
quívoca e o convencimento da verossimilhança da alegação para que
possa ser concedida pelo magistrado. Além disso, pela análise da vida
pregressa do indivíduo que tenha as contas rejeitadas, tem-se que seria
inelegível para concorrer a qualquer cargo eletivo.
Importantes as palavras do Ministro do tribunal Superior Elei-
toral César Asfor Rocha no voto proferido no julgamento do Recurso
Ordinário nº 912-RO:

“Penso, com a devida referência, que não se deverá atri-


buir a uma ação ordinária desconstitutiva de decisão
administrativa de rejeição de contas, que não se apre-
sente ornada de plausibilidade, aquela especial eficácia
de devolver ao cidadão a sua elegibilidade, sob pena de
se banalizar o comando constitucional do art. 14, § 9º,
que preconiza a proteção da probidade administrativa e
da moralidade para o exercício de mandato eletivo”.

Deve-se emprestar ao dispositivo constitucional em comento


(art. 14, § 9º) auto-aplicabilidade, na medida em que traz como valor
superior a proteção da probidade administrativa e da moralidade para
o exercício de mandato considerado à vida pregressa do candidato. A
Lei Complementar exigida deve estar dentro dos limites constitucio-
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 339

nais exigidos pela norma do art. 14, § 9º. Importante as palavras do Mi-
nistro do Tribunal Superior Eleitoral José Delgado, em voto proferido
no julgamento do Recurso Ordinário nº 1.133 – RJ.
Em síntese, o que devemos seguir é a postura, tão somente, de
que as normas de Direito Eleitoral sejam interpretadas em harmonia
com os postulados expressos na Constituição Federal, todos voltados
para a construção de uma democracia plena em que a dignidade hu-
mana e a cidadania sejam consideradas como o centro de todas as suas
atenções.
Não pode perdurar o entendimento consolidado do Tribunal Su-
perior Eleitoral da necessidade de edição de Lei Complementar para
tratar do termo “vida pregressa do candidato”, uma vez que o disposi-
tivo constitucional é auto-aplicável.
O conceito de vida pregressa maculada é facilmente atingido,
sem a necessidade da edição de lei, embora nada impeça que possa vir
a ser editada como forma de elucidação e complementação. Portanto,
com o objetivo de que seja protegida a probidade administrativa e a
moralidade para o exercício do mandato, considerando-se a vida pre-
gressa do candidato, deve-se considerar o dispositivo constitucional
em comento auto-aplicável. Não pode a necessidade da edição dessa
lei inviabilizar a aplicação do preceito constitucional que por si só já é
carregado de densidade normativa capaz de irradiar os seus efeitos.
Aplicando-se o entendimento da Corte Eleitoral, é fácil imagi-
nar-se a situação em que alguém, condenado criminalmente por des-
vio de dinheiro público, sem que tenha havido o trânsito em julgado
da sentença, possa vir a ocupar qualquer cargo público. Em se aplican-
do o preceito constitucional do art. 14, § 9º, tem-se que essa pessoa é
inelegível para qualquer cargo, em função da análise da vida pregressa
e da probidade administrativa, já que não restam dúvidas de que, em-
bora a condenação não tenha sofrido os efeitos da res judicata, é um
indivíduo que merece estar longe da Administração Pública por algum
tempo, por estar suficientemente provado de que não reúne condições
para ocupar qualquer cargo público.
Ademais, a existência de uma vida pregressa do candidato, mar-
cada por envolvimento em falcatruas e cometimento de infrações pe-
nais, investigados nas mais diversas instâncias judiciais, opera contra
a necessária moralidade exigida para o deferimento de algum registro
340 Sobre a vida pregressa dos candidatos

de candidatura.
Importantes as palavras de Djalma Pinto ao dissertar sobre a
desnecessidade do trânsito em julgado para considerar inelegível o in-
divíduo condenado por improbidade:
“Pior e mais grave que isso, é desconhecer a realidade dolorosa
e angustiante, sedimentada neste País, segundo a qual ‘até prova em
contrário, não se deve confiar em ninguém’ tamanho o índice de crimi-
nalidade com o qual convive a sociedade neste final de século. [...] Sa-
bedor dessa realidade, o julgador, que com ela convive, concessa vênia,
não pode alegar o seu desconhecimento para exigir trânsito em julgado
de condenações criminais para comprovação de improbidade”.
Mais adiante, o mesmo autor arremata da seguinte forma:

“Nesse contexto, a exigência de trânsito em julgado de


condenação para simples aferição de improbidade, em
última análise, significa prestigiá-la estimulando os go-
vernantes desonestos a persistirem na sua sina, tornan-
do impotente a ordem jurídica para enfrentá-los, como
se o Direito Pátrio, no limiar do terceiro milênio, não
dispusesse de mecanismo para dar satisfação aos seus
legítimos destinatários: o povo brasileiro. Povo este
desiludido e desencantado com as soluções propostas
sempre tendentes à preservação dos direitos políticos
dos comprovadamente sem probidade”.

Portanto, está claro que o ordenamento jurídico pátrio conta com


diversos mecanismos que devem ser utilizados com o objetivo de man-
ter longe da Administração Pública pessoas reconhecidamente sem
probidade, de passado suspeito, com participação em práticas delitu-
osas. Embora seja necessária a ocorrência do trânsito em julgado para
suspensão dos direitos políticos por condenação criminal, os maus
políticos não podem continuar a se agasalhar sob a exigência de res
judicata da condenação, tendo em vista que o art. 14, § 9º da Constitui-
ção Federal de 1988 estabelece a perda da capacidade eleitoral passiva
(inelegibilidade) para aqueles que atentem contra a probidade admi-
nistrativa e a moralidade para o exercício de mandato, considerada a
vida pregressa do candidato.
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 341

O art. 14, § 9º, da Constituição Federal, trata de uma forma de


inelegibilidade (capacidade eleitoral passiva), em que se pode enqua-
drar aquelas pessoas condenadas sem que tenha havido o trânsito em
julgado pelas razões anteriormente expendidas, ao passo que, ocorren-
do a condenação transitada em julgado, enquanto durarem os efeitos
da condenação, estará o indivíduo com seus direitos políticos suspen-
sos, tolhido da sua capacidade eleitoral ativa e capacidade eleitoral
passiva.
A ausência de norma complementar deixou o Poder Judiciário
limitado às disposições que regulam a inelegibilidade, entre outras
destacamos:

“SUMULA – TSE N. 13 - A vida pregressa de candida-


to, ainda que com registro de condenação criminal, mas
sem trânsito em julgado, não gera inelegibilidade, por
não ser auto-aplicável o § 9º do art. 14 da Constituição
Federal.”

A vida pregressa a que alude a disposição constitucional, ditada


para a esfera eleitoral, e que aqui se toma como fundamento necessário
ao deferimento do registro de candidatura, abarca por seu turno “ape-
nas” tudo que existir em termos de ações penais com trânsito em jul-
gado, a vista de sua natureza, plausibilidade e demais circunstâncias,
acabam constituindo empecilhos ao juízo positivo de moralidade para
o exercício do mandato”.
No aspecto moral e ético tem a ver com a exigência de o candi-
dato pautar sua conduta em atitudes honestas e corretas e legitimadas
pela oportunidade de extrapolar sua pacífica e ordeira.
Para ilustrar o assunto recorremos à lição da culta juíza Jaqueline
Lima Montenegro que ao proferir uma decisão assim se manifestou:

“Com base nisso, é importante frisar que a aferição dos


fatos da vida pregressa, para fins de juízo da moralida-
de para o exercício do mandato, não se confunde com o
exame da culpa sobre as infrações penais contidas nas
certidões do pretendente à candidatura.
Há que se afastar cabalmente a idéia de que se está a
342 Sobre a vida pregressa dos candidatos

operar em campo contrário ao princípio da presunção


de não culpabilidade, inserido no artigo 5º, LVII, da CF,
uma vez que não se realiza, para os fins do disposto no
art. 14, parágrafo 9º, da CF, o exame da matéria deduzi-
da nos processos criminais indicados nas certidões com
vistas a concluir pela culpabilidade ou não e definir as
questões penais. Aqui o que se efetua é apenas a análise
do contexto da vida pregressa do sujeito e que se afigura
indicativo de situação contrária a necessária moralidade
para o exercício do mandato.
O candidato a cargo político além do saber natural de-
veria possuir reputação ilibada e vida pregressa limpa,
sem mácula”.

O problema é tão sério e difícil ser contornado que já se passaram


mais de 14 anos e o Congresso Nacional se manteve silente em relação
ao seu dever de legislar sobre a matéria, tanto que tramitam vários
projetos naquela Casa de Leis, sem que nenhum tenha se convertido
na lei complementar, numa evidência muito clara que não se tornará
realidade tão cedo, pois caso contrário afetaria diretamente uma par-
cela considerável do parlamento, pois, na Câmara dos Deputados, o
percentual de políticos que respondem a processo é de 33%, ou seja,
167 dos 513 deputados, e no Senado, de 37%, ou 30 dos 81 senadores.
Se não bastasse a má vontade política no que concerne a regu-
lamentação do parágrafo 9º art. 14, os processos dos parlamentares
devido ao foro privilegiado e pela morosidade e sobrecarga do poder
judiciário se arrastam por anos a fio, resultando extintos pela prescri-
ção, alimentando a impunidade, estimulando práticas de novas ações
delituosas.
Enquanto para o Poder Judiciário for considerado como inelegí-
vel o candidato que possua condenação com trânsito em julgado, não
levando em conta os aspectos éticos e morais, os maus políticos perma-
necerão em ação debochando do povo que os elegeu.
Ao término dessas modestas considerações, não poderíamos es-
conder nossa simpatia pelo prevalecimento da tese que leva em consi-
deração a vida pregressa do candidato, protegendo a moralidade, pois
somente assim poderão ser erradicados do cenário político nacional e
O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: Continuidade ou Reforma? 343

da vida pública todos envolvidos em práticas contrárias às leis, moral


e bons costumes.
Estamos em ano eleitoral e o povo brasileiro irá às urnas para
escolher no mês de outubro vindouro seus prefeitos e vereadores, car-
gos de vital importância. Serão eles responsáveis por ordenar a obra
da administração milhares de municípios brasileiros. Neste momento,
nada mais coerente e justo que procuremos conhecer as credenciais
dos candidatos antes de elegê-los a um cargo público.
Apesar de não podermos vislumbrar com clareza o histórico de
nossos futuros homens públicos, no universo desses pretendentes ha-
verá uma gama de pessoas inescrupulosas, sedentas por uma fatia do
erário público e na busca desse propósito não medem esforços para
conseguir uma vaga na máquina estatal. Para tal, apresentam declara-
ções de imposto de renda irregulares, ocultam ações trabalhistas que
ferem completamente os direitos dos trabalhadores, se divorciam para
burlar a lei, entre tantos outros horrores que só quem acompanha o
dia-a-dia da política neste país é capaz de enumerar.
Pelo que foi divulgado na imprensa nacional, sabe-se que a pedi-
do do presidente do Senado, Garibaldi Alves Filho, o senador Demós-
tenes Torres (DEM-GO) deverá apresentar à Comissão de Constituição,
Justiça e Cidadania (CCJ), brevemente, um projeto de lei complemen-
tar para regulamentar dispositivo constitucional que prevê que, para
fins de registro de candidatura, seja considerada a vida pregressa do
candidato (artigo 14, parágrafo 9º).

Antes tarde do que nunca, esperamos que realmente isso acon-


teça para que aqueles que cometerem delitos, que praticarem atos de
corrupção e improbidade administrativa sejam impedidos de ingres-
sar na vida pública, para o bem de todos.
344 Sobre a vida pregressa dos candidatos

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