Sunteți pe pagina 1din 76
ALAIN FINKIELKRAUT Sumario Introdugio ......-: nu PARTE I — 0 enraizamento do espirito © Volksgeist 15 ‘Humanidade declina-se no plural . 2 O calor maternal do preconceito . 32 O que é uma Nagao? 39 ‘Umm conversa vom Eokeumann 46 © explosivo mais perigoso dos tempos modernos . 52 PARTE II — A traigao generosa ‘Um mundo desocidentalizado 65 ‘A segunda morte do homem . B Retrato do descolonizado . 82 Raga e cultura “ 92 A dupla linguagem OD ins dramas ween: 7 PARTE II — Para uma sociedade pluricultural © desaparecimento dos dreyfusards ‘Uma pedagogia da relatividade ............ 05 ‘A cultura aos pedagos 119 © diteito a servidao PARTE IV — Nés somos 0 mundo, nés somos as etlangas Um par de botas vale tanto quanto Shakespeare . Sua majestade o consumidor ...... si “Uma sociedade enfim adolescente” © zumbi e 0 fanético 131 140 147 157 10 Introdugao Em uma seqiiéncia do filme de Jean-Luc Godard Viver a vida, Brice Parain, que fez 0 papel do filésofo, opée a vida cotidiana & vida com o pensamento, a qual chama também vida superior. Fundadora do Ocidente, essa hierarquia sempre foi frégil e contestada, S6 recentemente, porém, € que sens adversérios vém se aproximando da cultura, as- sim como seus partidérios. O termo cultura tem hoje, com efeito, dois significados. O primeiro afirma a eminéncia da vida com o pensamento; 0 segundo a ‘recusa; dos gestos clementares & grandes oriagdes do espitito, tudo nao é cultural? Por que entao privilegiar estas em detrimento daqueles; preferir a vida com o pensamento A arte do tric8, & mastigacio do/bétele, ou a0 hébito ancestral de molhar um pedago de pao com bastante manteiga no café com Jeite matinal? Mal-estar na cultura. Certamente, ninguém, de agora em diante, saca seu revélver quando escuta essa il palavra. Mas, so cada vez mais numerosos os que, quando escutam a palavra “pensamento”, sacam sua cultura. O livro que aqui estd é 0 relato da ascensiio e do triunfo destes. Parte I _O enraizamento do espirito O VOLKSGEIST Em 1926, Julien Benda publica La trahison des -cleres, Seu assunto: “o cataclismo das nog6es morais entre os que educam o mundo™”, Benda se inquicta com o entusiasmo que a Europa pensante professa, hi algum tempo, pelas profundezas misteriosas da alma coletiva. Ele denuncia a imensa alegria com a qual os serventudrios da atividade intelectual, ao contrétio de sua vocacéo milenar, condenam o sentimento de uni- versal ¢ glorificam os partictilarismos. Com uma estu- pefacéo indignada, constata que os intelectuais de seu tempo abandonam a preocupaco com os valores imu- téveis para porem todo o seu talento ¢ prestigio a ser- vigo do espirito provinciano, para instigar os exclusi- vyismos, para exortar a nagdo a se unir, a adorar a si 1. La trahison des clercs, J.-J. Pauvert, 1965, p. 52. b com uma indignagao monétona, a ferocidade ou a.lou- cura dos humanos. Nao se pode também racionalizat 0 vir-a-ser, como os filésofos do século que se baseiam no progresso das Luzes, ou seja, no movimento pacien- te, continuo e linear da civilizag&o. Nao é a histéria que € sensata ou mesmo racional, é a razio que é hist6- rica: as formas que a humanidade nfo para de engen- drar possuem cada uma sua existéncia aut6noma, sua necessidade imanente, sua razio singular. Essa filosofia da histéria requer um método in- verso ao preconizado por Voltaire: em vez de subme- ter a infinita plasticidade humana a uma faculdade pre- tensamente idéntica ou a uma medida uniforme; em vez de “desenraizar tal virtude egipcia singular de sua terra, de seu tempo e da infancia do espfrito huma- no, para exprimir seu valor nos parametros de um outro tempo”, devia-se comparar o que € compardvel: uma virtude egfpcia com um templo egipcio; Sécrates ‘com seus compatriotas ¢ com os homens de seu tempo antes que com Espinoza ou Kant. ‘A cegueita de Voltaire, segundo Herder, reflete a arrogincia de sua naco. Se ele pensa de maneira falsa, se unifica sem razio a multiplicidade das situa- (Ges histéricas, é porque est imbufdo da superioridade de seu pafs (a Franca) e de seu tempo (0 século das Luzes), Ao julgar a histéria, tendo por medida isso a que chama razfo, ele comete um pecado de orguilho: confere dimensGes de eternidade a uma maneira de pensar particular e provisdria. O mesmo espfrito de conquista aparece em sua vontade de “dominar o ocea- no de todos os povos, de todos os tempos e de todos os lugares”, e na disposigio do racionalismo francés a 18 se expandir para fora dos limites nacionais ¢ a subju- gar o resto do mundo. Ele impde aos acontecimentos {6 ocorridos o mesmo freio intelectual com que a Fran- a sujeita outras nagdes européias, notedamente a Ale- manha. Na realidade, d4 seqiiéncia, no passado, & obra de assimilagdo forcada que as Luzes esto realizando no espaco. E Herder quer, de uma s6 vez, corrigir um erro e combater um imperialismo, libertar a histéria do prineipio de identidade e restituir a cada nagio a altivez de seu ser incompariyel. Se se esforca tanto para fazer dos principios transcendentes objetos hist6- ricos, é para tirar-lhes, de uma vez por todas, o poder de intimidagio que obtém de sua posicdo preeminente. A partir do momento em que ninguém é profeta fora de seu pafs, os povos nao tém de prestar contas sendo a si mesmos. Nada, nenhum ideal imutavel 6 vélido para todos, independente de seu lugar de apari¢ao e superior as circunstincias, deve transpassar-lhes a individuali- dade, ou desvidé-los do espfrito de que so portadores: “sigamos nosso préprio caminho, deixemos que os homens falem bem ou mal de nossa nacdo, de nossa literatura, de nossa lingua: elas so nossas, so nés mesmos, isso basta”. Desde sempre, ou para ser mais preciso, desde Plato até Voltaire, a diversidade humana comparece- ra diante do tribunal de valores. Veio Herder e conse- guiu condenar pelo tribunal da diversidade todos os va- lores universais. Em 1774, Herder é um franco-atira- dor, e 0 pensamento das Luzes goza — principalmente 3, Herder citado in Isaiah Berlin, Vico and Herder, Chatto & Windus, Londres, 1976, p. 182. 19 na Priissia de Frederico II — de um prestigio consi- derdvel. Seré necesséria a derrota de Tena e a ocupa- Go napolednica para que a idéia de Volksgeist tome seu verdadeiro impulso. A Alemanha — despedagada em uma miriade de principados — reencontra 0 sen- tido de sua unidade diante da Franga conquistadora. A exaltagio da identidade coletiva compensa a derrota militar e a aviltante sujeigo, que é seu prego. A nagao, maravilhada, se indeniza da humilhago que est4 so- frendo pela descoberta de sua cultura. Para esquecer a impoténcia, entrega-se a teutomania. Os valores uni- versais que a Franca reivindica a fim de justificar sua hegemonia so recusados em nome da especificidade alema; so os poetas e os juristas que t8m por misao atestar essa germanidade ancestral, Aos juristes com- pete celebrar as solucdes tradicionais, os costumes, as méximas e os ditos que formam a base do dirtito ale- mio, obra coletiva, fruto da ago involuntéria e silen- ciosa do espirito da nagfo. Aos poetas cabe defender essa alma nacional da insinuagio das idéias estrangei- ras; depurar a lingua, sthstituindo as palavras alemas de origem latina por outras puramente germanicas; extmar 0 tesouro enterrado das cangées populares, e, em sua prépria pratica, tomar como exemplo o folclo- re, estado de frescor, de inocéncia e perfeicZo no qual a individualidade esté ainda salvaguardada de qual- quer contato e se exprime em unfssono. Os filésofos das Luzes se definiam como “os le- gisladores pacificos da razfio’”. Mestres de verdade e 4. Chamford, citado em Paul Bénichou, Le sacre de ’écrivain, Corti, 1975, p, 30, 20 justica, opunham ao despotismo e aos abusos a eqiii- dade de uma lei ideal. Com o Romantismo alemao, tudo se inverte: depositérios privilegiados do Volksgeist, ju- ristas e escritores combatem, em primeiro lugar, as idéias de razo universal ou de lei ideal. Sob o nome de cultura nfo se trata mais, para eles, de retroceder ao preconceito e & ignorancia, mas de exprimir, em sua singularidade irredutivel, a alma tinica do povo, da qual so os guardides, HUMANIDADE DECLINA-SE NO PLURAL No mesmo momento, a Franca se restabelece do traumatismo da Revoluedo, e os pensadores tradiciona- listas acusam os jacobinos de terem profanado, por teorias abstratas, o espirito nacional. Sem diivida, foi ao grito de Viva a nago!” que 0s revoluciondrios destrufram 0 Antigo Regime, mas o que caracterizava esse novo sujeito coletivo nao cra a originalidade de sua alma, era a igualdade reinante en- tre seus membros. Vejam Sieyés: “A nago é um corpo de associados vivendo sob uma lei comum e represen- tados pela mesma legislatura®”. Asociados: esse tinico vocabulo eclipsava um passado milenar e, em nome da naco, dispensava brutalmente a histéria nacional. A diyisio em ordens estava abolida: nfo existiam mais nem nobres, nem padres, nem juizes, nem plebeus, nem 5. Qu’esice que le Tiers-Etat?, PLUF., col. Quadrige, 1982, Pp. Sl. 21 camponeses, mas homens beneficiérios dos mesmos di- reitos e submetidos aos mesmos deveres. Em tma pa- lavra, Sieyés proclamava o fim do sistema hereditario: ao se prevalecerem de seus ancestrais para reivindicar um dircito especial concedido & sua mentalidade par- ticular, todos eram exclufdos do corpo da nagéo, Nem por isso se infegravam ao se moldarem na mentalidade comum, Dizendo “Viva a naco!”, os revoluciondtios nao opunham os franceses de boa cepa aos nobres de raca ou toda nova qualificacdo nacional &s outras qua- lificagdes concretas que serviam tradicionalmente para classificar e distinguir os seres. Nao era para fixar os homens em sua terra natal que os separavam, a prin- cfpio, de seus titulos, de suas fungdes ou de stas linha gens © que pronunciavam a dissolugao das superiori- dades nativas. Nao era para doté-los de um espitito particular que separavam sua existéncia da de sua casta ou. de sua corporago. Todas as determinagées empiticas se encontravam fora de cena, inclusive a etnia. Inyertendo o sentido de sua prépria etimologia (nascor, em latim, quer dizer “‘nascer”), a nago tevo- luciondria desenraizava os individuos e os definia an- tes por sua humanidade que por seu nascimento. Nao se tratava de restituir uma identidade coletiva a seres sem balizas ou sem pontos de referéncia, Tratava-se, a0 contrétio, ao livré-los de toda dependéncia defini- tiva, de afirmar radicalmente sua autonomia. Libertos de suas amarras e de sua ascendéncia, 0s individuos 0 estavam também da autoridade trans- cendente que até entao reinava sobre eles, Nem Deus, nem pai, nfo dependiam mais do céu e da hereditarie- 22 dade. Associados e nao subjugados, diz Sieyés, eram representados pela mesma legislatura. O proprio poder a que se submetiam encontrava sua fonte e sua legiti- midade na decisdo deles de viverem conjuntamente & de se dotarem de instituicdes comuns. Um pacto adju- dicava seu exercfcio, fixava seus limites ¢ definia sua natureza. Em resumo, 0 governo era um bem que per- tencia ao corpo da nagéo, cujos principes eram somente os “usufrutudrios, os ministros ou os depositérios”. Se tal monarca fizesse mal uso da autoridade politica que Ihe era conferida por contrato, se tratasse esse bem ptiblico como bem privado, a nagio, como jé assina- lava Diderot na Enciclopédia, estava habilitada a dis- pens4-lo de seu juramento como “um menor que tivesse agido sem conhecimento de causa”, O poder, em ou- tras palavras, no vinha mais do céu, mas de baixo, da terra, do povo, da unio das yontades que formavam a coletividade nacional. E, portanto, opondo-se ao mesmo tempo aos privi- Iggios nobiliérios ¢ ao absolutismo real que 0 conceito de nago irrompeu na histéria, A hierarquia social era fundada no nascimento, e a monarquia no direito di- vino. A Reyolugdo Francesa substituiu essa represen- tao da sociedade e essa concepgo de poder pela imagem de uma associagao voluntéria ¢ livre, Tal 6, precisamente, para os conservadores, 0 pe- cado original, a presuneao fatal de onde decorrem inexoravelmente a dissolugo do conjunto social, 0 Terror, e, para terminar, a ditadura napolednica. Reu- 6. Diderot, artigo “Autorité politique”, in L’Encyclopédie, Edi- tions Sociales, col. Essentiel, 1984, p. 108. 23 nindo-se com o designio de fazer uma constituigao, os revolucionétios acreditaram reiterar o pacto primordial que esté na origem da sociedade. Para estabelecer o Te- gime de assembléia, fundamentara-se no contrato so- cial. Ora, respondem os defensores da tradigao, jamals houve contrato. Um cidadao nfo pertence & sua nagao em virtude de um decreto de sua vontade soberana. Essa idéia é uma quimera, ¢ essa quimera engendrou todos os crimes, “Uma assembléia qualquer de ho- mens”, escreve Joseph de Maistre, “nfo pode consti- tuir uma nacdo. Uma empresa desse género deve mesmo obter um lugar entre os mais memordveis atos de lou- cura”, Pois a sociedade nfo nasce do homem, por mais Ionge que se retroceda na historia, é ele que nasce em uma sociedade jé constituida. E obrigado, desde o prin- cipio, a nela inserir sua agao, da mesma maneira que aloja sua fala e seu pensamento no interior de uma lin- ‘guagem que se formou sem ele e que escapa a seu poder. Desde o principio: que se trate, na verdade, de sua naga ou de sua lingua, © homem entra em um jogo no qual nio Ihe cabe fixar, mas aprender ¢ respeitar as regras. Acontece com as constituig6es politicas o mes- mo que com a concordancia do particfpio pasado ou com a palavra para dizer “mesa”. Por um lado, elas va- tiam de acordo com as nagSes; por outro, os homens en- contram-nas, néo as moldam. Seu desenvolvimento € es- pontaneo, organico e nao-intencional. Longe de corres- ponderem a uma vontade explicita ou a um arranjo 7. J. de Maistre, Oeuvres compleies, I, Vitte, Lyon, 1884, p. 230, 24 deliberado, elas germinam e amadurecem insensivel- mente no solo nacional. Como uma regra gramatical, elas nao resultam de um objetivo claramente concebido por uma ou varias pessoas: ““O que é uma constituigao? Nao € a solucao do problema seguinte? Tendo em conta a populacio, os hébitos, a religifo, a situacao geogréfica, as relacdes politicas, as riquezas, as boas e més qualidades de uma certa nagio, encontrar as leis que the correspondam. Nao sfio as pessoas entregues somente a suas forgas que podem solucionar esse pro- blema. B, em cada nagdo, 0 paciente trabalho dos sé- ctilos ””. Mas por uma résolugdo to absurda quanto a que consistiria em declarar a lingua francesa caduca e em substitui-la, por decreto, por um idioma artificial e vé- ido para todos os homens, os revolucionérios escolhe- ram jazer uma constituigéo universal. Fazer em vez de compilar; universal em vez de em conformidade aos hébitos de seu pats, Inebriados de teoria, esses es- peculadores bérbaros dotavam sua débil pessoa de um poder demitirgica e aplicavam remédios gerais a uma situago particular, Em vez de reconhecer humildemen- te que esse problema os ultrapassava, eles acrecitavam poder resolvé-lo e se esforcavam nisso liquidando seu patriménio, Voluntarismo desastroso, frenesi de abs- tragio, delirio prometéico que sob o pretexto de rest tuir autoridade politica & nago, os conduzia sim- plesmente a tomar seu lugar e a investir contra os tra- g0s distintivos de sua histéria. Associando-se para dat 8 coletividade bases pretensamente racionais, desasso- 8. Ibid., p. 75. 25 ciavam-se de sua tradigfo: eles a privavam ao mesmo tempo de seu poder criador e de sua singularidade; fur- tavam seu poder para destruir sua alma, No momento mesmo em que acreditavam libertar a nagio das insti- tuig6es antiquadas que a mantinham sob tutela, traf ram de fato a identidade nacional cin proveito desta ilusio do espirito, desta entidade puramente imaginé- tia: © homem. Quando os revolucionérios evocavam a nagao, era, como ja foi visto, para transferir ao homem os poderes que a alianca secular do trono e do altar re- servava a Deus. Um século antes de Spengler e seu Declinio do Ocidente, os extremistas Ihes respondiam: o homem é uma miragem, um “fantasma zoolégico”, s6 existem as mentalidades e as culturas nacionais: 9, SPENGLER, Le declin de ?Occident, 1, Gallimard, 1848, p. 33. Para Spengler, € verdade, nfo sfio as nagdes que cons- tituem as unidades culturais de base, so as civilizagdes. Seu olhar engloba conjuntos histéricos muito mais vastos que 0 de Joseph de Maistre. Desprezando a miopia nacionalista, ele vé sucederem-se ou se enfrentarem oito grandes culturas desde os primérdios da histéria humana: 2 egipcia, a babi- énica, a chinesa, a grega antiga, a drabe, a ocidental, e a cultura dos povos maias da América Central. Mas, essa mu danga de escala nfo implica uma mudanga no modo de pensar. Acontece. com os otganismos spenglerianos 0 mesmo que com as nagées, de acordo com Maistre ou Herder. Séo totalidades fechadas em si mesmas, entidades vivas “nas quais cada uma imprime em seu material, a humanidade, sua pré- ria forma, cada uma das quais tém sua prépria idéia, suas prOprias paixdes, sua vida, querer e sentir prOprios, sua pro- pria morte” (citado e traduzido por Jacques Bouveresse, in “La vengeance de Spengler”, Le temps de la reflexion, 1983, p. 398). Existe, pois, um elo de filiagfo entre a filosofia da contra-tevolugao e 0 relativismo antropolégico de Spengler. 26 “no hé homem no mundo, diz uma célebre férmula de Joseph de Maistre. Vi em minha vida franceses, ita- lianos, russos. Sei mesmo, gragas a Montesquieu, que se pode ser persa; mas quanto ao homem, declaro nunca té-lo encontrado; se ele existe. eu ignoro™”. Na¢do contra nagdo, os tradicionalistas combatem a idéia de livre associagéio contra a de totalidade globa- lizante, e, ao modelo rousseauniano da vontade geral, eles opdem, sem ainda empregar a expresso, 0 con- ceito de inconsciente coletivo. A semelhanga dos apés- tolos da soberania popular, fazem subir o poder da ba- se para o topo. No momento em que se poderia esperar vé-los contestar esse principio democratico, eles se co- locam de fato em seu préprio terreno e descobrem a nacdo sob os individuos. O erro dos revolucionarios € o de nao terem descido com suficiente profundidade, de nao terem cavado bem fundo em sua busca aos ali- cerces da vida coletiva. Tomando a si mesmos como base, acreditaram-se no direito de constituir a socie- dade, Era esquecer 0 direito constituinte da sociedade sobre a razdo individual. Afastados, com efeito, da idéia de que os sujeitos humanos formam consciente- mente a comunidade na qual vivem, pois é ela que molda insidiosamente sua consciéncia. A nagao nao é composta a partir da vontade de seus membros, é a yontade destes que é comandada por pertencerem A totalidade nacional. Uma vez que o homem é obra de sua nagdo, € o produto de seu meio ambiente, e¢ no © inverso, como acreditavam os filésofos das Luzes ¢ seus discipulos republicanos, a humanidade deve se de- 10. J, de Maistre, Oeuvres, I, op. cit., p. 75. clinar no plural: ela nfo 6 senao a soma dos particula- rismos que povoam a terra. E de Maistre une-se aqui com Herder: “As nagées tém uma alma geral © uma verdadeira unidade moral que as constituem no que so. Essa unidade é sobretudo anunciada pela lingua *”. Eis portanto transmutado em determinagao incon: ciente o que dizia respeito adesio refletida dos int viduos, A nacéio — pelo viés da organizacdo social ¢ pela lingua — introduz, na experiéncia dos seres hu- manos, contetidos ¢ formas mais antigas que eles, for- mas que os mesmos no esto em condicées sequer de assegurar 0 dominio, Que se defina como ser social ou como sujeito pensante, o homem niio é senhor de seus atos; esta articulado, antes de toda iniciativa, a outra coisa que néo a si proprio. Esté, assim, desalo- jado desta posicdo de autor na qual os filésofos tinham acreditado poder estabelecé-lo. No espirito das doutri- nas da contra-revolugao, trata-se de abandonar essa idéia e restaurar Deus com seus antigos privilégios. Visto que o homem s6 se descobre ligado a uma nacio j4 constituida, é a0 Criador que se deve atribuir a apa- tigo e o desabrochar das entidades nacionais. Ao dar vida 4s comunidades humanas, o dinamismo pode ser qualificado de divino precisamente porque é anénimo, porque é um “proceso sem sujeito”. B no fato de que na origem das linguas e das sociedades nao hd, propria- mente falando, ninguém, que os tradicionalistas véem a prova irrefutdvel da existéncia de Deus. Peca, ao mesmo tempo contra seu povo e contra a vontade divina, o insensato que, desafiando o curso 11, Ibid, p. 325. 28 das coisas, cisma em estabelecer um governo ou crier instituig6es. Ao delito de traigao, ele acrescenta o crime de sacrilégio. E a Deus que ultraja quando repu- dia os costumes venerdveis ou quando despreza os dogmas nacionais. Um Deus que, entretanto, ao guardar 0 mesmo nome que o antigo Mestre do Universo, ocupa um outro lugar‘e recebe uma definicao inteiramente nova. Rea- cionérios, os tradicionalistas tém por objetivo procla- mado fechar o infeliz paréntese histérico aberto em 1789. Teocratas querem salvar 0 mundo deste desas- tre fundamental — a dissolugio do direito divino, mas © que chamam Deus nfo é mais o Ser supremo, 6 a razao coletiva. Identificado a tradig&o, garantido no espirito de cada povo, esse Deus abandonou a regiéo celeste do Soberano Bem pelas regies obscuras e sub- terrdneas do inconsciente, Esta, daqui em diante, si- tuado aquém, e nao mais elém, da inteligéncia humana € orients as ages, modela o pensamento de todos sem que o saibam, em vez de, como fazia seu homénimo, comunicaree com as criaturas pela via da Revelagao. Deus falava ao homem uma lingua universal, doravan- te fala nele a lingua de sua nacao. De Maistre e Bonald tém a mesma ambicao de Bossuet, 0 tedrico cldssico do absolutismo: ensinar a submissao aos homens, dar-lhes a religiio do poder es- tabelecido, substituir, segundo a formula de Boneld, “a autoridade da evidéncia pela evidéncia da autori- dade”. A analogia, porém, p4ra af: era a uma ordem transcendente que Bossuet queria unir os homens, 6 a uma ordem subjacente que De Maistre e Bonald, tal qual o Romantismo politico alemAo, pretendem sujei 29 té-los. Por trés da aparéncia de um simples recuo, a contra-revolugao abole todos os valores transcenden- tes, tanto divinos como humanos. O homem abstrato © o Deus supratertestre so tragados a0 mesmo tempo pela alma da nao, pela sua cultura. Os tradicionalistas denunciam fanaticamente a pe- netracéo do espirito de exame na esfera religiosa. Nao existe para cles maior blasfémia que submeter os mis- térios da Santa Escritura aos critérios do pensamento claro e racional. Também se dedicam a pér em xeque a déivida, a acorrentar a razo (“a obra-prima do racio- cinio 6 descobrir 0 ponto onde é preciso parar de ra- ciocinar "”), a fim de dar & palavra divina enfraque- cida 0 império supremo que ela antigamente exercia sobre os seres. Chega de brincadeira: uma vez que 0 pensamento, a arte e a vida cotidiana perderam-se no despudor, é necessério submeté-lo novamente aos salu- tares tormentos da inquietacao religiosa. E necessario que o Além volte a ser 0 horizonte constante e o fim tiltimo de todas as atividades humanas. Mas — para- doxalmente — essa volta a religido passa pela destrui- ao da metafisica. Século da indiscrigao erftica e da impiedade militante, momento maldito no qual um Diderot podia dizer que era muito importante no con- fundir a salsinha com a cicuta, e pouco releyante saber se Deus existe ou nfo, a época das Luzes é também (isto explica aquilo) um século metafisico. Se os filé- sofos recusam o poder da tradicdo, ¢ porque veneram 12. J. de Maistre, Oeuvres, VI, p. 39, citado in Massimo Boffa, “Joseph de Maistre: La défense de la souveranité”, Le débat, n° 39, margo-maio, 1986, Gallimard, p. 90. 30 a 08 prinefpios abstratos e intemporais. Se ngo temem “destruir 0 preconceito, a tradicao, a Antiguidade, o consentimento popular, a autoridade, em suma, tudo © que subjuga a multidéo de espfritos””, € porque, depois de Platao, elevam o Bem acima de qualquer coisa existente; comegando por descartar os fatos, eles se apGiam, para julgar a ordem estabelecida, em uma norma incondicionada, em uma idéia do direito, imu- tavel e constrangedora. Os contra-revolucionarios se recusam a segui-los nessa arrogancia ¢ a invocar outras abstragdes, outras esséncias imaculadas contra as que eles preconizam. Reduzem, ao contrario, toda idéia pura ao estado de fantasma inconsistente e fixam como programa repatriar o Bem no vir-a-ser. O édio impla- cAvel com o qual perseguiam esse periodo iconoclasta, sem fé nem dogma, nfo se dirige tanto a seu materia- lismo quanto 4 sua intemperanga especulativa, a seu gosto pelas “nuvens” metaffsico-morais; em resumo, a seu platonismo. Os tradicionalistas fazem tabula rasa do abstrato. Em seu combate contra os excessos do espftito critico, em seu cuidado de restaurar a razdo na razo, ou seja, em respeito aos valores tradicionais, fulminam todos os dualismos: a eternidade deixa de ser oposta ao tempo, a esséncia a existéncia, o posstvel ao real, o inteligfvel ao sensfvel, e mesmo o outro mundo a este. Seu pensamento intensamente imanente nao deixa nada subsistir acima do universo tangivel da hist6ria, Esses estranhos devotos perseveram em denunciar a ilusao dos além-mundos. Falando em nome 15. Diderot, artigo “Ecletisme”, L’Encyclopédie, p. 148, a da religido ameagada, eles antecipam, de fato, o niilis- mo nietzchiano: ndo é a impiedade, mas “a falta de senso histérico” que constitui a seus olhos “‘o pecado original” da filosofia. E 0 culto que eles celebram & 0 do fato. E disto que se trata. A exceléncia é um pleo- nasmo da existéncia. O valor das instituicdes esté, daqui em diante, fixado por sua antigilidade e ndo mais por seu grau de aproximagdo a um modelo ideal. Os costumes so legitimos porque so seculares. Quanto mais uma ordem é ancestral, mais merece ser preser- vada. Se tal opinido comum atravessou os séculos, € porque é verdadeira; nenhum argumento racional pode valer contra essa patina da idade, contra essa consa- grado pelo tempo. Toda metafisica abolida, sé hé verdade na longevidade das coisas. O CALOR MATERNAL DO PRECONCEITO Herder: “O preconceito é bom em seu tempo, pois traz felicidade. Reconduz os povos a seu centro, reata-os solidamente ‘a suas rafzes, torna-os mais prés- peros segundo seu caréter proprio, mais ardentes e, em. conseqiiéncia, mais felizes em suas inclinagdes ¢ obje- tivos. A nacdo mais ignorante, a mais tomada pelos preconceitos 6, a partir desse ponto de vista, freqiien- temente a primeira: o tempo de desejos de imigracao e de viagens plenas de esperancas ao estrangeiro jé € 14, Nietesche, Humain, trop humain, Denoal, col, Méditations, 1983, p, 19. 32 doenga, inchago, corpuléncia doentia, pressentimento de morte ®”, De Maistre: “Todos os povos conhecidos foram felizes e produtivos na medida em que obedeceram ficlmente a esta razao nacional que ndo é outra coisa send o aniquilamento dos dogmas individuais e 0 reino absoluto e geral dos dogmas nacionais, ou seja, dos preconceitos titeis *”. Proclamando seu amor pelo preconceito, contra- revolucionérios franceses ¢ roménticos alemaes reabi- litam 0 termo mais pejorativo da lingua das Luzes — cheio de audécia, provocacdo suprema — e 0 elevam & dignidade de cultura. Nao €, dizem eles, o obscurantis- mo que floresce sob 0 sono da razdo individual, 6 a razio coletiva. Presenca do “nés” no “eu” e do ante- rior no atual, vefculos privilegiados da meméria popu- lar, sentengas transmitidas de século em século, inte- ligéncia anterior & consciéncia grade de protecao do Ppensamento — os preconceitos constituem o tesouro cultural de todos os povos. Sob o pretexto de difundir as Luzes, os filosofos investiram contra esses preciosos vestigios. No lugar de veneré-los, quiseram destrui-los, E nao contentes em desfazerem-se deles por sua prépria conta, exortaram 0 povo a imité-los, Como escreve Kant, eles escolheram por divisa Sapere aude, nfo tenha medo de saber, atreva-se a desafiar todos os con- formismos, “tenha coragem de te servir de teu prdprio entendimento”, sem a ajuda de um diretor de conscién- 15, Herder, Une autre philosophie de histoire, Aubiet-Mon- tnigne, 1964, pp. 185-187. 16, J. de Maistre, Ocuvres, I, op. cit, p. 376. 33 cias ou da muleta das idéias recebidas. Resultado: ar- rancaram os homens de sua cultura no momento mesmo em que se vangloriavam de cultivé-los, Enxo- taram a histéria acreditando banir a superstigo ou © erro; convencidos de emancipar os espfritus, s6 cou seguiram desenraizé-los, Esses caluniadores do lugar- comum nio libertaram o entendimento de suas corren- tes, eles 0 cortaram de suas origens. O individuo que deveria, gracas a eles, sair de sua condicdo de minori- dade, foi, em realidade, esvaziado de seu ser. Por ter querido ser causa de si, renunciou a si proprio. Em sua luta pela independéncia, perdeu toda substincia, Pois as promessas do cogito sao enganosas: liberto do preconceito, subtraido & ascendéncia das méximas na- cionais, 0 sujeito nao é livre, mas ressecado, desvitali- zado, como uma drvore privada de seiva. E preciso, pois, ver na opini#o comum o himus no qual o pensamento se alimenta, seu tinico central, a origem ou a matriz da qual ele provém e nfio, como 08 filésofos, a autoridade estrangeira que 0 domina e © aniquila. Para os tradicionalistas a época das Luzes se resume em um funesto qiiiproqué: os filéscfos se enganam a respeito da natureza e, se se pode dizer, a respeito do sexo do preconceito. Da mae que amamen- ta, que ao mesmo tempo nos envolve ¢ nos inspira, eles fizeram um pai cruel, E ao procurar destruir 0 pai, foi a mae que mataram. Este homicfdio que se queria libertador mergulhou o homem na miséria e 0 condenou ao erro, como atesta 0 cataclisma revolucio- nério. Uma transmutagao de valores se revela pois in- dispensdvel. Diderot tinha pressa de tornar a filosofia popular a fim de aproximar 0 poyo do ponto onde 34 estiio 0s filGsofos. E 0 contrétio que deve ser empre- endido: aproximar os filésofos do ponto onde ficou a sabedoria popular; por o pensamento na escola da opi- nigo; imergir o cogito nas profundezas da coletividade; reatar o liame rompido com as gerag6es anterlores; substituir a busca da autonomia pela busca da auten- ticidade; abandonar toda resisténcia critica, se deixar invadir pelo calor maternal dos preceitos majoritérios e se inclinar diante de seu discernimento infalfvel; acorrentar a razdo ao instinto, em suma, levar para © casulo nacional esta “grande sociedade de espiritos espalhada por toda parte e em toda parte independen- te” que os pensadores das Luzes se glorificavam de ter sabido estabelecer, Entdo, & felicidade de ter res- taurado a unidade primitiva, acrescentar-se-é a exal- tante certeza de viver novamente na yerdade. “Ele nfo puniu a sabedoria do mundo com a inépcia?” dizia j4 Sio Paulo a respeito do Deus do qual se tinha feito apéstolo. Depois da alvorada do cristianismo existiram sempre misticos ou tedlogos para ineluir a vida do espfrito no andtema langado pela reli- gido sobre a existéncia humana. Esse julgamento pro- vyém da convicedo de que todo ato natural é um pecado € que o exercicio da razfio é um ato natural. Irreme- diavelmente pervertido, 0 homem no pode empreen- der nada além do crime e do mal. A mécula original ‘com a qual é afetado contamina as produgdes de sua inteligéncia. Reduzido a si mesmo, é incapaz tanto de lucidez quanto de grandeza. Somente um decreto di- vino € capaz de livré-lo de sua propria baixeza e de 17. Voltaire, citado in René Pomeau, L'Europe des lumizres, Slatkine, 1981, p, 176. 35 arrancé-lo da corrupgao da ordem carnal. Nessa pers- pectiva, nao ha zona intermediéria entre as iniciativas humanas marcadas pelo concupiscéncia e a caridade que vem de Deus. A existéncia esté submetida, em todos os scus aspectos, @ tnica altcrnativa da decadén- cia e da graga, e a independéncia da ordem espiritual € uma ius fomentada pelo orgulho. Mas, a despeito das aparéncias e das invectivas que Ihes dita 0 desgosto do episédio revolucionério, os tradicionalistas nfo aderem a essa antropologia pessi- mista, Sem dizer abertamente — talvez mesmo sem ter consciéncia —, eles rompem com a visio da qual se proclamayam os herdeiros. Nao ¢ a Deus, como foi visto, que eles restituem as faculdades e virtudes que despojam dos atores humanos, é a alma da nacao. Tudo no homem esté impregnado dessa substfncia particular, moldado por esse idiotismo. Tudo, ou seja, tanto as formas de sua piedade quanto seus impulsos mais na- turais. Para os contra-revoluciondrios nfo existe mais natureza humana senfo vida espiritual auténoma. A Descartes respondem: penso, logo sou de qualquer lugar; pelo exercfcio da reflexio, no efirmo minha soberania, traio minha identidade. E essa reprovagio infligida ao cogito se estende & caridade e & concupis- céncia. Esses comportamentos sao praticas sociais, fatos cujo sujeito yerdadeito é a coletividade. Esses dominios de realidade distintos so alojados na mesma insignia nacional. Essas trés dimensdes da existéncia sao reunidas em um c6digo tinico: 0 que os romanticos alemaes chamam de Volksgeist. A critica revolucioné- ria desemboca, assim, na mesma descoberta feita pela revolta contra 0 cosmopolitismo francés. 36 beicil E essa descoberta subverte de cima a baixo a pai- sagem do pensamento. A denominagdo que os tradicio- nalistas se atribuiam nao nos deve desencaminhar: animados da paixdo pelo passado, roménticos ale- mes € teocratas franceses executam nele nao menos que uma verdadeira revolugio epistemolégica. Seu 6dio pela modernidade engendra uma concepcao de homem radicalmente nova. Sua nostalgia inaugura no saber uma mutaggo da qual ainda somos largamente tributarios. Esses reaciondrios obstinados sfo, a con- tragosto, inventores, Em seu forte desejo de colocar 0 homem em seu lugar, descobrem o impensado que nele age e fundam as ciéncias humanas. Os tradicionalistas podem deixar rapidamente a cena politica e intelectual, pois so os fildlogos, os sociélogos ou os historiadores que os substituem ime- diatamente © que resolvem o debate entre os dois tipos de nagdo a favor do Volksgeist. Doravante os sfbios, © no 0s idedlogos, declaram que 0 contrato social é uma ficedo porque, fora da sociedade, nao hé indivi- duos auténomos ", 18, “A influéncia dos conservadores franceses sobre 0 pensa- mento social foi importante e é suficiente uma olhada na ‘obra dos sociblogos para se assegurar disso. Assim Saint- ‘Simon ¢ Comte nfo param de fazer elogios ao que o segundo chamava de ‘escola rotrgrada’: Comte acha que esse grupo imottal, e de Maistre encabecando-o, merecerio por muito tempo a gratidio dos positivistas, e SaintSimon julga que 6 a Bonald a quem ele deve seu interesse pelos periodos ‘eriticos’ e ‘orgfinicos’ da histétia, assim como a primeira formulaglo de suas proposicdes sobre a estabilizacsio da industrializago e da democracia” (Robert A. Nisbet, La tradition sociologique, PULF., 1984, p. 26.) 37 De vez, tudo se inverte e 0 racionalismo muda de campo. As ciéncias do inconsciente divulgam a légica das leis e crengas da qual zombavam imprudentemente 0s filésofos, ¢ pogam, assim, as Luzee em flagrante delito de cegueira intelectual. Fazendo da hist6ria o modo de ser fundamental do homem, mostrando a ne- cessidade dos valores que sucessivamente tm curso nas sociedades em cada época, substituindo a critica da opiniao comum pelo estudo objetivo de sua génese — os positivistas voltam contra os espiritos esclarecidos do século precedente a acuisacio de superstigao ou igno- rancia contra os espfritos esclarecidos do século pre- cedente. Hé pouco tempo, o direito divino fazia parte das inomindveis fabulas das quais a razo critica pen- sava dever emancipar os homens. Com a aparigfo das ciéncias humanas, so as idéias filos6ficas de contrato social, de direito natural que sio, por sua vez, postas entre as mitologias. Os sarcasmos dos eruditos sucedem & veeméncia de de Maistre e de Herder, e por uma re- viravolta irénica a filosofia sofre a sorte humilhante que infligia & religidio: essa visio fantasmagérica do mundo supe, escreve Taine com desprezo, “homens nascidos h4 20 anos, sem parentes, sem passado, sem tradig&io, sem obrigacdio, sem patria e que, reunidos pela primeira vez, vao pela primeira vez discutir entre eles *”, Apresenta-se freqiientemente a instauragio da ordem liberal na Europa como uma vitéria do campo do progresso sobre o campo da reacdo, como um resuil- 19, Taine, Les origines de la France Contemporaine, citado in Jacques Julliard, La France de Rousseau, Seuil, p. 144. 38 tado por muito tempo precério de um conflito entre a modernizacao social e a persisténcia do Antigo Re- gime. E esquecer que 0 maior problema dos republi- canoe, ao longo de todo o século XIX, scré conciliar sua fidelidade & heranca das Luzes com o progresso do saber, apoiar-se no direito natural sem com isso desco- nhecer o valor cientifico desta objecio levantada por Joseph de Maistre: “Toda questo sobre a natureza do homem deve se resolver pela hist6ria”™, numa palavra, no passat por metafisicos atrasados aos olhos do posi- tivismo safdo da contra-revolugio. O QUE E UMA NACGAO? Um acontecimento, entretanto, vai recolocar em pauta essa consagragdo do Volksgeist pela ciéncia: a guerra de 1870 entre a Franca e a Alemanha, e, mais, precisamente, a conquista da Alsécia-Lorena pelos alemaes. Esse epis6dio. com efeito, nao provoca so- mente a exacerbago das paixdes nacionais, reanima, com uma profundidade e uma acuidade hoje esqueci- das, 0 litigio entre a nagio-génio e a nagio-contrato. Muito mais que o folclore patriético das cartas da Franga que velam o Este de preto, que as criangas que aprendem a cantar O Tannenbaum na noite de Natal, ou mais que os batalhées escolares que, baioneta e boné de pompom vermelho na cabega, desfilam cla- mando: Vous avez pris l’Alsace et la Lorraine, mais 20. J. de Maistre “Des origines de la souveraineté”, Oeuvres, 1, op. cit,, p. 316. 39 notre coeur, vous ne Vaurez jamais™”, uma yerda- deira controvérsia filoséfica, cuja importancia perma- nece capital, brota dessa desavenca fronteirica. Desde 0 cessar dos combates, os maiores historia- dores alemaes dedicam-se a justificar, com argumentos cientificos, a anexago dos novos territérios. Recusan- do separar 0 homem de suas determinacdes, pro- curando a verdade de seu ser e a chave de seu com- portamento nas forcas que o comandam a sua revelia— a lingua, a raga, a tradicio hist6rica —, eles constatam que 0 alsacianos falam alemfo e pertencem & cultura alema. Deduzem disso que a conquista é legitima: “Os alsacianos so dos nossos, portanto so nossos, afirmam em substancia Strauss e Mommsen. A comunidade cultural funda a apropriagéo, A tutela francesa arran- cara essas provincias de sua verdadeira familia. A vi- téria prussiana corrige essa anomalia histérica ¢ thes permite a reintegrago no seio nacional”. Uma vez que Strauss ¢ Mommsen colocaram todo seu prestigio a servigo da Alemanha vitoriosa, seus ho- mélogos franceses se sentem imediatamente obrigados a responder. Eles se colocam, entretanto, em um terre- no totalmente diverso, Em vez de exibir as rafzes cél- ticas das populagdes confiscadas, ou de dar um sobre- ango filolégico ou etnogréfico, admitem imediatamen- te a seus interlocutores que a Alsécia é alema na lingua ena raga. Mas, diz Renan, “ela nao deseja fazer parte do estado alemfo: isso encerra a questio. Fala-se em direito da Franca, em direito da Alemanha, Essas abs- 21. Cf, Jean Pierre Rioux, “Introduction a Rémy de Gourmont”, Le joujou patriotisme, JJ. Pauvret, 1967. 40 tragdes nos tocam muito menos que o direito que os alsacianos, seres vivos, de carne e osso, tém de s6 obe- decerem a um poder por eles aceito™. E Fustel de Coulanges: “O que distingue as na- Ges nao é nem a raga nem a lingua. Os homens sentem em seu corago que so um mesmo povo quando tém uma comunidade de idéias, de interesses, de afetos, de lembrangas e de esperangas. Fis 0 que faz a pétria (...) a patria 6 0 que amamos*”, No entanto, antes dessa crise, Renan ¢ Fustel de Coulanges partilhavam o desdém dos historiadores ale- mies pela primitiva antropologia das Luzes. Era evi dente, para eles, que os individuos, pelo viés da lingua, até mesmo pela hereditariedade, procediam de sua nago € nfo o inverso, como o tinham proclamado os perigosos sofistas do século precedente, Era a “falsa politica de Rousseau” a que Renan atribufa ainda a responsabilidade da derrota francesa diante da Alema- nha. A Revolucao, segundo ele, a Franga havia per- dido ao dilapidar 0 patriménio nacional em nome de uma concepgao enganosa da nogio: “O dia em que a Franga cortou a cabega de seu rei, cometeu um suici- dio®”. © contraste que se manifesta entre a vontade dos alsacianos e suas origens étnicas obriga Renan a recon- siderar suas certezas. Desde a assinatura do amisticio 22. Renan, “Nouvelle lettre & M. Strauss”, in Histoire et parole, Laffot, col, Bouquins, 1984, p. 651. 23. Fustel de Coulanges, citado in Raoul Girardet, Le nationa- lisme francais, Seuil, col. Points, 1983, p. 64, 24. Renan, “La réforme intellectuelle ¢ morale de la France”, op. cit., p. 597. 25. Ibid. 4 ¢ antes mesmo que se abram em Versalhes, as negocia- ges entre a Franga e 0 novo império alemao, os depu- tados da Alsécia e da Lorena da Assembléia Nacional afirmam, em uma declaragdo solene, cua fidelidade & Franga: “Nés proclamamos o direito dos alsacianos- lorenos de permanecerem membros da patria francesa, e juramos, tanto por nés quanto por nossos represen- tados, nossos filhos e seus descendentes, reivindicé-lo eternamente ¢ por todas as vias contra todos os usut- padores”. E, logo apés a sessio das duas provincias ea ratificagao pela Assembléia, eles insistem: “Nés declaramos, ainda uma vez, nulo e néo acontecido o pacto que dispde de nds sem nosso consentimento . ‘A reivindicagéo de nossos direitos fica para sempre aberta a todos e a cada um, na forma e na medida em que nossa consciéncia nos ditaré... Vossos irmfos da Alsécia ¢ da Lorena, separados nese momento da fa- milia comum, conservam pela Franca ausente de seus lares uma afeicao filial até o dia em que ela vird ai retomar o seu lugar™”. Esse irredentismo, em uma 26. Citado in Raoul Girardet, Le nationalisme francais, p. 37. A énfase dessa declaracdo ndo deve nos fazer esquecer que a volta a patria mae, em 1918, no teve nada de idilic. Apés as primeiras manifestagées de entusiasmo patristico, a politica de assimilacionismo laico praticada pela Franca se chocaré, ao longo de todo o entre-guerras, com um poderoso ‘movimento autonomista, Mas isso € uma outra histéria nfo atenua em nada a importincia da “Declarago de Bor- deaux”. Nao é 0 amor pela Franca que faz desse texto um. documento capital, mas ‘‘a proclamagao solene de que so- mente o consentimento funda a nacionelidade” (Jean Matic Mayeur, “Une mémoirefrontitre: I’Alsace”, in Les lieu de mémoire, 11: La Nation**, sob a ditegao de Pierre Nora, Gallimard, 1986, p. 88 42 na regido que, na noite de Natal, canta espontaneamente O Tannenbaum!, fornece a prova incontestavel de que © idioma, a constituicéio hereditdria ou a tradigéo nao exercem sobre os individuos 0 impériv absuluie que tende a lhes conferir as ciéncias humanas. Fica assim demonstrado que o sentimento nacional resulta ndo de uma determinagao inconscientemente, mas de uma livre decisao. E assim os habitantes da Alsdcia-Lorena restituem @ idéia caduca de contrato uma atualidade completamente paradoxal, © mesmo Renan que com- batia a noc&o perniciosa de pacto fundador, faz agora da nag&io 0 objeto de um pacto implicito cotidiana- mente selado entre aqueles que a compoem: “Uma nacdo €, portanto, uma grande solidariedade constitut- da pelo sentimento dos sacrificios que se fez ¢ dos que se esté disposto a fazer. Ela supe um passado; entre- tanto, no presente, resume-se num fato tangivel: o consentimento, 0 desejo claramente expresso de conti- nuar a vida comum, A existéncia de uma nagaéo é um plebiscito de todos os dias”. ‘A definicio de Renan acolhe a longa hist6ria que Siayes rejeitava sem cautela nas trevas do despotismo. Ele passa do plano formal ao plano concreto das tra- digdes vivas que do nacdo sua fisionomia particular. O corpo de associados de “O que é o Terceiro Estado?” torna-se, em “O que é uma nagiio?”, “uma associagio secular”; a ago torna-se a nacéio francesa, rica, para além das clivagens, com uma meméria imutdvel e indi- visivel: 89 6 um episédio da vida nacional e nfo a 27. Renan, “Qu’estce qu'une nation?”, in Oeuvres Completes, I, Calmann-Lévy, 1947, p, 904. 43 data em que a nagao saiu da sombre ¢ se libertou de seu passado. Mas, ao dar ao vinculo social a espessura hist6rica da qual os revolucionarios o tinham empobre- cido, Renan é levado, em iiltima instancia, a Ihes dar razio: nfo é o Volksgeisi, comunidade organica de sangue e de solo ou de costumes e de histéria, que sub- mete & sua lei os comportamentos individuais, 6 0 concurso voluntério dos individuos que forma as nagdes. Depois de ter ele préprio raciocinado em termos de entidades coletivas, dividido completamente “a es- pantosa simplicidade do espirito semitico, estreitando © cérebro humano, fechando-o a toda idéia delicada *” e afirmando sem rodeios que “a raga semitica compa- rada & raga indo-européia representa realmente uma combinacao inferior da natureza humana””, Renan descobre brutalmente a irredutibilidade das conscién- cias. Sob 0 choque do acontecimento, o homem que foi “o verdadeiro fiador cientifico do mito ariano na Franga®” deixa de conceber 0 espirito como uma priséo mental. Os conceitos cientfficos de raga ou de cultura perdem seu valor operatério, e a nagéo nio aparece mais para Renan sob a forma de uma entidade, mas sob 0 aspecto daquilo que Husserl, um pouco mais, tarde, chamaré uma “‘comunidade intersubjetiva”. 28. Renan, “Discours d’ouverture au Collége de France”, Ocuvres complétes, II, op. cit., p. 333. 29. Renan, “Histoire des langues sémitiques”, Oeuvres com- plétes, VIII, op. cit., p. 146, 30. Léon Poliskov, Le mythe aryen, Calmann-Lévy, 1971, p. 208, 44 Nao é justo, vé-se, reduzir a questfio da Alsécia- Lorena a uma querela paroquiana. Renan reagiu con- tra o pangermanismo triunfante com outra teoria da nagdo fundada sobre outra representagdo do homem. Na concepgio de Strauss e Mommsen, 0 ho- mem € cativo de sua ascendéncia, suas reservas sdo pura ilusdo: ele é impregnado de Histéria até nas reen- trancias mais secretas de sua interioridade, é seu her- deiro, pela Iingua que fala, pela sociedade que Ihe deu nascimento. A tradic&io o precede e ultrapassa sua re- flexdo: ele Ihe pertence antes de se pertencer. Para Re- nan, se é yerdade que o homem nfo esté inteiramente presente para si mesmo e que esse deslocamento fun- da as ciéncias humanas, no se deve ver no pensamento a resultante ou o simples prolongamento do impensa- do onde ele se banha: “nao abandonamos este princi- pio fundamental de que o homem é um ser racional e moral antes de ser aprisionado em tal ou tal lingua, membro de tal ou tal raga, aderente a tal ou tal cul- tura”, Do Renascimento até a época das Luzes, o progra- ma dos Tempos Modernos tinha sido livrar 0 espfrito humano da verdade revelada e os dogmas da Igreja. Liberto de toda tutela, doravante o homem sé tinha que prestar contas a sua azo. Safa da condigao de mino- tidade (segundo a célebre férmula de Kant) ¢ procla- ‘maya-se apto a pensar sem pai. Renan acrescenta uma cléusula a essa definicao do homem maior, libertando a vida do espirito da comunidade no qual ela se enraf- 31. Renan, “Qu’est-ce qu'une nation? op. cit., p. 900, Ocuvres completes, 1, 45 za, Hé no homem, afirma, um poder de ruptura: ele pode se desfazer de seu contexto, evadir-se da esfera nacional, falar, pensar e criar sem testemunhar a tota- lidade da qual mana, Em outras palavras, aos olhos das instancias paternais que procurayam restringir 0 campo de seu pensamento, ele nfo conquistou a du- ras penas sua autonomia para ser absorvido, sem mais nem menos, por essa mae devoradora: sua cultura. “Antes da cultura francesa, da cultura alema, da cul- tura italiana, existe a cultura humana ”.” Com essa distingfo entre cultura nacional e cul- tura humana, é a Goethe que Renan faz implicitamen- te referéncia, 6 0 espirito de Goethe que ele opde 2 visio de mundo posta em pritica pelo nacionalismo alemao. UMA CONVERSA COM ECKERMANN Em 51 de janeiro de 1827, Goethe, no apogeu de sua gloria e na noite de sua vida, conversava com 0 fiel Eckermann sobre um romance chinés que 0 ocupa- va e Ihe parecia bastante notavel. No momento em que pensava ser subjugado e como que dominado pela sin- gularidade ou o pitoresco dessa obra, descobriu nela afi- nidades com sua prépria epopéia em versos Herman Dorotéia © com os romances ingleses de Richardson. Estava surpreso nfo pelo exotismo do livro, mas por sua proximidade. Fragmento destacado de uma civili- zagao longinqua e pouco conhecida, esse texto, con- 32, Ibid., p. 901, 46 tudo, néo era uma curiosidade: eis o que o intrigava. E pelo contato improvavel entre ele, patriarca da Eu- ropa, ¢ esse romance chinés, pelo estranho sentimento de familiaridade que experimentava, por este lago te- cido a despeito de todas as diferencas — a atitude do espirito em transcender a sociedade e a histéria se re- yelaya novamente, Enraizados em um solo, ancorado’ em uma época, datados e situados, os homens podiam escapar, entretanto, & fatalidade dos particularismos. A divisdo nao era irremediavel: existiam lugares — os livros — nos quais a humanidade podia ter conscién- cia de seu despedacamento em uma mirfade de espiritos locais. Dessa constatagZo surpreendente, Goethe tirava rapidamente um programa, Visto que a literatura era capaz de vencer ou transcender as diferencas de sécu- lo, de raga, de lingua ou de cultura, era preciso que ela nisso se empregasse. Essa possibilidade fixava seu ideal. Essa utopia, esse néo-lugar, esse além do lugar e do momento constituiam sua vocagio verdadeira, Nao eram vélidas senfo as obras em relago as quais a questo “onde?” e a questo “quando?” nfo pudessem ser totalmente respondidas. Mas, para permitir a tais obras se multiplicarem, ainda seria preciso que os escritores e os leitores pu- dessem efetivamente se abrir a influéncias numerosas e voltar os olhos para além de seu circulo imediato. Dai a importincia concedida por Goethe & tradugio e a todas as formas de circulagio literéria. O comércio das formas e das idéias deyeria pér termo em uma existéncia na qual o particular fosse absoluto, onde tudo viesse do interior. Sob o efeito da troca e da in- 47 teragdo generalizada, os povos deixariam de ser en- cerrados em suas fronteiras, as nagdes nfo seriam mais planetas, os idiomas nao se degradariam em tantos idio- tismos, a escrita se destacaria do solo e as obras, en- trando diretamente na sociedade uma com as outras, no poderiam mais ser classificadas segundo a sua ori- gem. A época da literatura mundial sucederia a adic&io dos particularismos. “Também gosto de me informar sobre as nagSes estrangeiras e aconselho a todos, por sua parte, a fazer o mesmo. O termo literatura nacional nio significa grande coisa hoje; estamos indo na dirego de uma época de literatura universal, e cada um deve se empenhar em apressar a vinda dessa época®.” Goe- the descobrira, com emogo, a existéncia de uma arte © uma literatura especificamente alemas, Estava entao em Estrasburgo, onde dois acontecimentos tiveram so- bre ele uma ressonfincia considerdvel: 0 reencontro com Herder e a visio da catedral. “Encontrando esse edificio construfdo sobre uma antiga terra alema, ¢ em uma época totalmente alema, apreendendo, além dis- s0, que o nome do arquiteto que se lia sobre uma tum- ba modesta era alemfo por consoniincia e por origem, empreendi, em meio a meu entusiasmo por essa obra de arte, mudar o mal-afamado nome “g6tico”, dado até ento a essa arquitetura, e reivindicéla para o meu pais, dando-the o nome de arquitetura alema™. Em Estrasburgo — capital da Alsécia e nessa épo- ca cidade francesa — Goethe teve a stibita revelagao de 33. Conversations de Goethe avec Eckermann, Gallimard, 1941, p. 158, 34, Goethe, Poésie et vérité, Il, Le Signe, 1980, p. 159. 48 que as obras-primas tinham uma pétria e que a arte germfnica nao podia ser comparada a nenhuma outra O significado estético da palavra “‘Alemanha” Ihe apa- receu pela primeira vez com toda clareza. Dessa impres- sfio nasceu um ensaio — Arguitetura alema — que Goethe publicou, em 1772, em uma coletanea que in- cluia um texto de Herder. Resumia seu credo em uma formula: “A arte caracteristica 6 a tnica ver- dadeira ®”. O que o punha em situagio delicada em sua época nesse século dito das Luzes, cego as particu- laridades ¢ culpado de ter renunciado a seu génio “ao enviar seus filhos alhures a fim de colecionarem plan- tas estrangeiras para sua propria perda*”’. Nao teria ele mesmo reunido a prole de seus filhos perdidos se tao logo devesse ir de Estrasburgo a Paris, essa Babi- Ionia dos Tempos Modernos, um monumento providen- cial nao o tivesse retido 4 beira do abismo cosmopolita, e nfo Ihe voltasse — in extremis — & consciéncia sta identidade alema? . Visto, com efeito, que o Belo se identifica ao tt pico, a autarquia espiritual deve substituir a troca. E necessério preferir-se 0 fechamento que protege a pluralidade humana & abertura que acelera a uniformi- zagio do gosto, das condutas e das obras. E necessétio voltar-se para dentro de si e no mais sair, rarefazer os contatos no lugar de os multiplicar, defender-se das in- fluéncias exteriores em vez de se comprazer com elas. Se nao hé efetivamente valor mais alto que o espirito 3, Goethe, “Architecture allemande”, in Eerits sur Vart, Klincksiech, 1983, p. 72. 36. Goethe, ibid. 49 distintivo de cada nacio, a rota do escritor esta toda tragada: imitar, em sua ordem, a catedral de Estras- burgo, dar yoz ao mundo natal, agarrar e manifestar o espirito do povo do qual € oriundo. Mas Goethe desiludiu-se rapidamente com esse éxtase patridtico. Sua concessao ao lirismo do Volks- geist ficou sem amanha. Indo, quase por assim dizer, na direcdo oposta de seus companheiros, escolheu rom- per com Herder, no momento em que toda a Alemanha intelectual sucumbia ao charme consolador do pensa- mento, Convidado em 1808 (dois anos depois de le- na...) a dar sua opiniao sobre a composico de uma coletinea das melhores poesias alemis destinada ao povo, ele fez uma s6 recomendagio a seus solicitante que incluissem em sua antologia tradugdes alemiis de poemas estrangeiros . Esse conselho, nessa data, cons- titufa uma verdadeita provocacao. Em plena ocupagio napoleénica, em um clima de efusio patética e de na- cionalismo desvairado, Goethe denunciava a fidelida- de sistemética do artista a sua patria. Enquanto os ou- tros poetas e pensadores exaltavam as profundezas mis- teriosas da alma germénica ¢ desempenhavam o papel de destruidores das universalidades, ele ousava decla- rar: “Uma tolerancia generalizada ser4 mais certamen- te atingida se se deixa em paz o que faz a particulari- dade dos diferentes individuos humanos e dos diferen- tes povos, convencendo-se de que 0 traco distintivo do que € realmente digno de merecimento reside em sua pertinéncia a toda humanidade *”, 37. Antoine Berman, L’épreuve de l’étranger, Gallimard, col. Les Essais, 1984, 38, Goethe, Ecrits sur Vart, op. cit., p. 52. 50 Goethe reata assim com a tradigao metaffsica rom- pida pelo Volksgeist, ou seja, pela nacionalizacao sis- temética das coisas do espirito. Retorno menos tolo en- tretanto. Tinha aprendido com Herder que o homem nav pertenve a todus os tempos © todos us lugares, que a lingua que fala, a paisagem que habita, e a histéria na qual esta langado nao sao qualidades secundérias ou ornamentos acrescentados 4 sua natureza. Ele sa- bia, dir-se-ia hoje, que o homem esté situado. Era bem consciente de que ndo se escapa por decreto A sua par- ticularidade de nascimento. Ao afirmar: “Como ho- mem, como cidad’o 0 poeta amar sua patria; mas a patria de seu poder e de sua ago postica ¢ 0 Bom, 0 Nobre, 0 Belo, que no esto atados a nenhuma provi- déncia especial, a nenhum pais especial, que ele capta ¢ forma Ié onde os encontra®”, Goethe se distinguia radicalmente dos serventuérios cldssicos do Bom, do Nobre ¢ do Belo: o grupo étnico nao era para ele um aspecto acidental, mas constitutivo da existéncia, No entanto, ¢ af est o essencial, Goethe recusava fazer da necessidade, virtude. Que dependamos de uma tradi- 40 especifica e que sejamos moldados por pertencer & nago, era um fato diante do qual era impossivel estar cego. Essa realidade merecia ser reconhecida e néo idolatrada, Respirando o mesmo ar que os outros mem- bros de sua tribo, nascendo como qualquer um em um mundo histérico dividido, o artista néo podia pre- tender alcancar rapidamente a universalidade. Espon- taneamente participava das maneiras comuns de ver € julgar as coisas, sua personalidade nfo se diferencia- 39, Ibid., p. 50. 51 va a princfpio da personalidade coletiva de onde Ihe vinham ao mesmo tempo as primeiras idéias e as pa- layras para dizé-las. Mas ndo € razio para acrescen- té-las, nem para erigir em absoluto esse enraizamento em um lugar ou cm uma lingua! Com Herder, Goethe constatou a subordinacao do espfrito, sua ancoragem numa coletividade particular. Contra ele e contra seus préprios entusiasmos de juventude, ele incumbiu a ar- te de no encarecer essa dependéncia, mas de transcen- dé-la. Tratava-se, para as obras individuais, de exceder © Volksgeist e nao de ser sua expressdo, A cultura hu- mana nao deveria em nenhum caso se reduzir A soma das culturas particulares. E por isso que Goethe con- vidava os poetas, os artistas e os pensadores.a sair do guadro nacional onde Herder e seus dsefpulos exigiam que se confinassem. O EXPLOSIVO MAIS PERIGOSO DOS TEMPOS MODERNOS Por ocasifio da conversa com Eckermann, Goe- the estava sereno: pensava que o tempo trabalhava pe- la literatura mundial. © fervor nacionalista decaia A medida que se atenuava o traumatismo da conquista napolednica, ¢ © romantismo politico parecia declinar de maneira irremediével. Além disso, um mercado mundial, que punha fim ao fechamento das nagées so- bre si mesmas, estava nascendo. Nenhuma porgdo da humanidade poderia mais prosseguir sua histéria sob uma redoma, ao abrigo dos entrelagamentos da econo- mia planetdria. Até h4 pouco ainda intransponiveis, as 52 fronteiras tornavam-se porosas. Nao parecia possivel subtrair por muito tempo as produgdes do espitito des- sa circulacao generalizada de bens. Em 1827, os dias do Volksgeist pareciam contados. Cingiienta anos mais tarde, os mestrés da universi- dade escolhem solenemente Herder as custas de Goethe. Para eles, a arte no constitui mais a prova da liberda- de do espitito (de sua capacidade de transcender as circunstancias, de frustrar a empresa da coletividade, da época, da terra natal), mas a manifestagéo concreta de sua dependéncia. Aos que invocam 0 direito dos po- vos de dispor de si mesmos eles contrapéem o caréter alemao da catedral de Estrasburgo. O que é ese monu- mento sendo a materializacko do {ato de os alsacianos pertencerem & Alemanha? Os habitantes atuais podem bem protestar contra a anexagdo; aos olhos da historia imemorial da qual sao, quer queiram ou no, os her- deiros, essa rebelio é uma criancice, um despeito pas- sageiro, um capricho sem conseqiiéncias e sem signifi- cago, Nao se dispde de quem dispée de vés, nfo se rejeita sua cultura como sc sc tratassc de uma coupa, Segundo essa teoria, tal qual Renan a resume, “a fa- milia germénica [...] tem 0 direito de recuperar os membros dispersos do germanismo, mesmo quando es- ses membros nao pedem para se reanexarem ®, Com o pangermanismo, a marca educativa de Goe- the se apaga na Alemanha: reduzindo a cultura ao cul- to exclusivo das poténcias originais, o Volksgeist triun- fa e revela, além disso, suas potencialidades totalitdrias. Tenha-se em mente que uma forma inédita de autorida- de brota desse conceito forjado, para fazer frente & do- 40. Renan, “Qu’estce qu'une nation?”, op. cit., p. 895. 53 minagdo francesa, Pela primeira vez, nfo € nem a de- monstraco da forga, nem 0 direito divino que o Esta- do opée & vontade dos individuos, é sua propria identi- dade. Os alsacianos so escravizados por um mestre tao despético que se confunde com o ser deles. No lu- gar de referir-se ao além, de se exercer a partir de fora, de aplicar uma lei transcendente, o poder a que se sub- metem tem sua origem no lado de cé das identidades individuais que constituem a alma coletiva. Eis por- tanto sujeitos literalmente encarnados pela opressio da qual so yitimas, obrigados a se reconhecer no Es- tado que os esmaga brandindo a efigie deles. Essa coa- Go representa para Renan o escfndalo maior da ane- xago e sua inovaco politica mais perturbadora: “Nao temos 0 direito de sair pelo mundo apalpando o crénio das pessoas, para depois agarré-las pela garganta di- zendo: ‘Tens 0 nosso sangue, pertence-nos!” Excluindo os caracteres antropolégicos, hé a razo, a justica, o verdadeiro, 0 belo, que so os mesmos para todos“. Precisemos que Renan nao faz diferenciagao entre o argumento racial ¢ o argumento mais especificamente cultural. Nao é menos grave, a seus olhos, justificar a conquista pela catedral de Estrasburgo que pelo patrio- tismo genético dos alsacianos. Nos dois casos, com efei- to, os homens sofrem a prova de uma privacao sem pre- cedentes: so destituidos de todo dominio sobre seu proprio destino em nome de sua esséncia profunda; raga ou cultura — € a verdade da qual sao, involunta- riamente, titulares que desqualifica seu desejo cons- ciente. 41. Ibid., p. 898. 54 Ainda ha mais: o espirito nacional suprime, ao mesmo tempo, o individuo (tragado pelo seu grupo de origem) e a humanidade (cortada em esséncias parali- sadas, pulverizada em uma multiddo de personalidades tnicas fechadas em si mesmas). E se a negacio do in- dividuo engendra um poder sem limites, é a guerra total que nasce da deslocagao do género humano. Nada segura, dito de outro modo, um Estado atormentado pela dominagéo do Volksgeist; nenhum obstdculo éti- co se ergue mais em seu caminho: privados de existén- cia propria, desalojados de seu foro interior, seus sujei- tos nao podem reivindicar direitos, e, visto que seus inimigos ndo pertencem A mesma espécie, nao hé razio para aplicar-Ihes regras humanitérias. Uma vez que os adversatios deixam de ser semelhantes, 0 combate en- tre eles esti livre de qualquer limitagdo: “A divisio da humanidade em ragas, que vem sendo bastante conde- nada, nao somente porque repousa sobre um erro cien- tifico, mas ainda porque muito poucos pafses posstiem uma raga yerdadeiramente pura, s6 pode levar a guer- ras de exterminio, a guerras ‘zoolégicas’, permitam-me dizé-lo, andlogas as que as diversas espécies de roedo- res ou carnivoros se entregam para viver. Seria o fim desta mistura fecunda, composta de elementos nume- rosos e todos necessérios, que se chama humanidade. Vés hasteareis no mundo a bandeira da politica etno- céntrica e arqueolégica no lugar da politica liberal; essa politica vos seré fatal ™”, Face ao conflito da Alsdcia-Lorena, aparentemen- te limitado e local, Renan tem o pressentimento de um 42, Renan, “Nouvelle lettre A M, Strauss”, op. cit,, p. 651. 55 mergulho iminente na barbérie. A bela idéia de Volks- geist se revela subitamente a ele como “o explosivo mais perigoso dos tempos modernos*®”. Contudo, hé uma coisa que ele nao é capaz de prever — a contami- nagdo progressiva e irresistivel da causa que defende pelas idéias que combate. Tal 6, porém, o paradoxo des- sa querela franco-alema: a oposigao teGrica se atenua 2 medida que 0 antagonismo se radicaliza. Quanto mais a idéia de revanche toma conta dos espiritos (“a revan- che, rainha da Franca", dizia Maurras), mais © patrio- tismo francés exalta “as colinas eternas” e inclina-se misticamente ao enraizamento. Renan reprovava os alemaes por quererem se em- paredar em sua naga, desprezando o direito individual e arriscando partir a humanidade em fragmentos hetero- géneos, Diante da atitude intransigente dos alsacianos, concluia que ndo se podia encerrar ninguém nos limi- tes imperativos de seus dominios. Mas rapidamente Barrés sucede a Renan, e é em torno do espirito fran- cés que se organiza a resisténcia 8 amputagao da Fran- ga. Com mais furor ainda que antes da crise da Alsdcia- Lorena, as ciéncias do homem atacam os principios li- berais herdados do século XIII. “Nao temos o direito, dizeis vos, de sair pelo mundo a apalpar o crfinio das pessoas?. ..” Muitos dos imperativos da antropologia social Vacher de Lapouge desenterra os crinios nos cemitérios de Héraut para medir seu “indice cefalico’, ea Renan, que acreditava poder proclamar “Nac&o nao 43, JL. Talmon, “Herder et la mentalité allemande”, in Destin d'Israél, Calmann-Léyy, 1967, p, 224. 56 6 sindnimo de raga “”, ele responde depois de dez anos de investigacdo sobre esse terreno: “Nao se entra por decreto nem em uma familia nem em uma nagdo. O sangue que se cartega nas veias ao nascer se guarda toda vida, O individuo € esmagado por sua raga, cle nao é nada. A raga, a nagéio sao tudo “”. Com Gustave Ie Bon, é a psicologia que decreta que “‘a vida de um Povo, suas instituigdes, suas crengas e suas artes ni so senfo a trama visfvel de sua alma invistvel” e que “‘ca- da povo possui uma constituigo mental to fixa quan- to seus caracteres anatdmicos *”, Em nome da ciéncia, Barrés pode assim exortar seus compatriotas a se des- viarem das grandes palavras eterno ou sempre e Ihes citar como exemplo o idioma que, no lugar de “‘eu pen- so” deixa a possibilidade de dizer: Es denkt in mir, “isso pensa em mim”, Assim, 0 édio pela Alemanha se formula com a ajuda dos conceitos e mesmo das formas empregadas do outro Jado do Reno. A paixio antigermanica asse- gura, desde que preceda qualquer outra consideragao, 0 triunfo do pensamento alemio. Ao se agravar, 0 res- sentimento apaga a divergéncia. A hostilidade em rela- G0 a0 pangermanismo conduz a sua imitago, a rejei- go pelo inimigo culmina em mimetismo. Os adversé- rios falam doravante a mesma linguagem: em uns ¢ ou- tros a concepefio étnica da nagao se sobrepée & teoria 44, Renan, “Lettre & M. Strauss”, op. cit., p. 652. 45. Citado in Zeev Sternhell, La droite révolutionnaire, 1885- 1914 (Les origines francaises du jascisme), Seuil, 1978, p, 168. 46. Ibid., p. 150, 37 eletiva. Os arautos da revanche nao contestam tanto a idéia de raca quanto a de raga alema. Em suma, no é mais a nacionalizacéo da cultura que escandaliza, mas a cultura do Outro. Os escritores presentes e passa- dos so alistados sob a bandeira de suas nagdes res- pectivas, a pétria de Montaigne se levanta contra a de Kant, um abismo doravante os separa, e é da maneira mais natural que um estudante interrogado sobre 0 re- nascimento nacional pode escrever: “De volta da em- briaguez na qual mergulhara também pela primeira leitura dos eslavos e dos germanos, percebi que tudo is- so era muito bonito, mas que nfo era eu. Desfrutava essas obras mas nfo podia vivé-las; para dizer a ver- dade, eu nfo as desfrutava inteiramente, pois s6 des- frutamos aquilo que podemos criar, e se tenho virtual- mente em mim o poder de escrever Berenice nfo tenho o de escrever Ressurreig@o. Deixei Goethe por Racine e Mallarmé. Tolstoi por Balzac e Stendhal. Senti que me realizava, que me possuia, que vivia na medida mes- mo em que aqueles com os quais me alimentava espi- ritualmente eram de minha carne e de meu sangue””, Nascido da derrota de Sedan e alimentado do dra- ma das provincias perdidas, 0 nacionalismo francés nao é nada mais senfo a aclimatagéio na Franga de to- dos os temas do Volksgeist. Renan lembrava solenemente a Strauss e A sua ge- racdo “ultrapatristica” a existéncia de valores univer- sais. Em 1888, ou seja, menos de vinte anos depois 47, Agathon, Les jeunes gens d'aujourd’hui, resposta de Henri Hoppenot, citado in Girardet, Le nationalisme franeais, op. cit, p. 228, 58 cima dessa troca epistolar, os adeptos da verdade absoluta ¢ da razfo abstrata reencontram-se no campo da anti- Franca. Entao, com efeito, séo os dreyfusards que sus- tentam com forga que a nagao é uma reuniao de vonta- des individuais e nao uma totalidade organica, e que 0 homem “nao é 0 escravo de sua raga, de sua lingua, da religido, do curso dos rios, da diregao das cadeias de montanhas “"'. Essa fidelidade rigorosa aos princfpios defendidos por Renan em O que é uma nacido? Ihes va- le a acusacdo de trair a identidade nacional: conside- rando Dreyfus como uma pessoa, quando “esse filho de Sem” nao é permedvel a todas as excitagdes que afe- tam nossa terra, nossos ancestrais, nossa bandeira, @ palavra ‘honra’*”; acreditando tolamente em seus pro- 48, Renan, “Qu’est-ce qu'une nation?”, op. cit., p. 900. 49, Barrts citado in Zeev Sternhel, La droite révolutionnaire, ‘op. cit., p. 162. Podem objetar que Barts considera Renan tum de seus mestres e que ele chega mesmo a emprestar, quase texiualmente, sua definigfo de sentimento nacional: “Uma nagdo, declare enfaticamente sobre 0 caso Dreyfus, 6 2 possessio de um antigo cemitério e a vontade de conti- nuar a fazer valer essa heranca indivisa”. Entretanto, essa similitude surpreendente nfo deve nos enganar. Enquanto a vontade, regundo Renan, arranca os homens de seu incons- ciente cultural, para Barrés ela os ata a ele definitivamente: “Tudo 0 que somos nasce das condicées historicas e geogré- ficas de nosso pais. Nossos pais meditaram através dos séculos sobre nds, e é preciso, para que nos desenvolvamos, para que encontremos a felicidade, que as coisas nfo sejam essencialmente diferentes do que eram quando nossos ances- trais ‘meditavam’ sobre nés. Preciso que guardem em minha Grvore a cultuira que Ihe permita me sustentar to alto, eu, fraca folhinha’”. Bem consciente da divergéncia filoséfica que se esconde sob o parentesco de vocabulério, Barres re- prova explicitamente Renan por acreditar “em uma razio a testos de lealdade, quando “nao se improvisa pattio- tismo, se 6 patriota no sangue, nas medulas™”; obsti- nando-se, enfim, a demonstrar sua ignorancia quando sua culpa se deduzia de sua raga, eles raciocinam como intelectuais no lugar de pensar ¢ sentir em francés. Ac- sim, o assunto fica no terreno filos6fico da querela Alsécia-Lorena, e os nacionalistas franceses ocupamn do- ravante a posigdo de Strauss e Mommsen: Dreyfus 6 culpado da mesma forma que eram alemaes os habitan- tes das provincias litigiosas: em virtude da fatalidade étnica que pesa sobre seus comportamentos. “O caso Dreyfus”, escreve Julien Benda, “desem- penhou um papel capital na histéria de meu espftito pela limpidez com a qual me permitiu perceber, como num reldmpago, a hierarquia de valores que faz 0 fun- do meu ser ¢ meu édio orginico pelo sistema adver- so”, Nunca, é verdade, as duas visdes da nagdo, do homem, da cultura, que dividiam a consciéneia euro- péia depois da Revolugo Francesa, tinham se afron- tado com tal clareza. Nunca se colocou de maneira tao crucial a questo de saber se era preciso pér um fim no século das Luzes. Reabilitando Dreyfus, a Franca independente existente em cada um de nés e que nos per- mite aproximar da verdade”. Ele chega mesmo a imputar a seu glorioso antecessor uma parte de responsebilidads no nascimento do Dreyfusisme: “E. necessério dizer, um loreno, © que escreveu Les déracinds, d4 & Franca esta definigio: *O que é uma nagSo — é um espirito’. Eis af uma formula de onde se pode retirar, de onde se retira hoje detestaveis consegiiéncias”. (Scenes et doctrines du nationalisme, Plon, 1925, p. 114, 132, 17, 84. Grifos do autor.) ), Drumont, ibid., p. 152, 51. Benda, La jeunesse d’un clerc, Gallimard, 1964, p. 114. 60 responde pela negativa e prefere, in extremis, a defini- cao contratual da sociedade no lugar da idéia de alma coletiva, Precdria vitéria: os idedlogos mais vivazes na primeira metadé do século XX ensinam que “um povo deve se fazer uma concepgdo de seus direitos ¢ de seus deveres, inspirada pelo estudo de seu génio especial, de sua hist6ria, de sua posiggo geogréfica, das circunstin- cias particulares nas quais se encontra e nao pelos co- mandos de uma suposta consciéncia de todos os tem- pos e de todos os lugares *”. O que, prevé Benda, ar- risca a conduzir “A guerra mais total e mais perfeita que o mundo teria visto *”. 52, Benda, La trahison des cleres, op. cit., pp. 80-81. p. 152. 61 Parte II A trai¢ao generosa UM MUNDO DESOCIDENTALIZADO Em novembro de 1945, em Londres, foi estabe- lecido 0 ato constitutivo da Organizagio das Nagées Unidas para a Ciéncia e a Cultura, Nessa conferéncia preparatétia, convocada pelos governos do Reino Uni- do c da Franga, participayam us representantes de cer- ca de quarenta paises, animados, em sua maioria, por uma s6 preocupacdo, Tratava-se, segundo a bela ex- pressio de Torres Dodet, entao delegado do México, de “abordar na histéria humana uma era distinta dessa que estava por acabar"’, uma ordem no mundo na qual nenhum Estado poderia pér uma cortina em volta de sua populagao, “nem doutriné-la sistematicamente com 1. Conference des Nations Unies en vue de la création d’une organisation des Nations Unies pour ta science et la culture, Londres, 1945, p. 50. 65 ajuda de algumas idéias estreitas e rigidas *”. Uma épo- ca na qual reinaria “um verdadeiro espirito de paz” porque as idéias circulariam livremente de uma nacio a outra, e porque no lugar de serem domados, emburre- cidos, manipulados pelos idedlogos totalitarios, os indi- viduos seriam educados para servir & sua razAo. Foi, com efeito, a provacdo sem precedentes do nazismo que inspirou os fundadores da UNESCO. Uma vez que esse regime langou o mundo na guerra apoian- do-se sobre 0 despotismo, ou seja, a supressio das liber- dades, e sobre o obscurantismo, ou seja, a exploragao do preconceito e da ignordncia, a nova instituicfo mun- dial estava encarregada de velar pela liberdade de opi- nido e ajudar a vencer as opinides aberrantes que trans- formavam o édio em sistema de pensamento ou que ofereciam um élibi cientifico para a vontade de poder. Seu papel devia ser, portanto, o de proteger 0 pensa- mento contra os abusos do poder e esclarecer os ho- mens para impedir para sempre que os demagogos de- sencaminhassem seu pensamento. i Ligando 0 progresso moral da humanidade a seu progresso intelectual, situando-se sobre o duplo terre- no politico, da defesa das liberdades, e cultural, da for-) mago dos individuos, os responséveis governamentais) e as grandes autoridades intelectuais reunidas em Lon- dres reconciliaram-se espontaneamente com 0 espirito das Luzes. A era distinta, cuja emergéncia esperavam fa, vorecer, enraizava-se filosoficamente no século XVIII,\ { © pensavam a UNESCO sob o patrocinio explicito de| 2, Ibid., Clement Attlee, p. 34. 3. Ibid., Léon Blum, p. 35. 66 \ Diderot, de Condorcet ou de Voltaire, Foram esses au- | | tores, com efeito, que nos ensinaram que, se a liber- | \dade era um direito universal, somente podia ser consi-_| |derado livre um homem esclarecido. Foram elec que [ formularam, frente ao poder ptblico, estas duas exi- géncias indissocidveis: respeitar a autonomia dos indi- | | viduos ¢ oferecer-lhes, pela instrucio, o meio de serem | efetivamente auténomos. “Embora a liberdade fosse | respeitada em aparéncia e conservada no livro da lei”, | escrevia Condorcet, “‘a prosperidade piblica nfo exi- ge que 0 povo esteja em estado de conhecer os que sio capazes de manté-la, e nas ages da vida comum, o ho- mem que cai, & revelia das Luzes, na dependéncia de um outro homem, pode se dizer verdadeiramente li vre? “” Logo apés a vitéria sobre Hitler, a sombra tutelar dos filésofos parece pairar sobre o ato de constituigo da UNESCO e ditar os seus termos aos redatores. Com efeito, estes fixam, como objetivo para a organizaco, “assegurar a todos o pleno e igual acesso A educacio, a livre busca da verdade objetiva e’A livre troca de idéias e conhecimentos”. E esperam que essa coopera- go cultural dé ao mundo as maneiras de resistir vito- riosamente aos assaltos contra a dignidade do homem. Que homem? O sujeito abstrato e universal da Declaragio dos Direitos Humanos? A realidade incor- pOrea, 0 ser sem ser, a criatura sem carne, sem cor ¢ sem qualidade que povoa os grandes discursos univer- 4, Condotcet, Sur la nécessité de Vinsiruction publique, citado in Catherine Kintzler, Condorcet (L'instruction publique et Ja naissance du citoyen, Le Sycomore, 1984, p. 270. 67 salistas? O individuo, subtraindo tudo que o distingue? Desde as primeiras conferéncias da UNESCO, a ordem do dia muda imperceptivelmente: a critica das Luzes toma o lugar da critica do fanatismo, Recolocar em questo o humanisuiw abstrato prolonga c radicaliz’a reflexdo levada a Londres sobre os meios de imunizar ‘© mundo contra as doutrinas que tendem a negar a uunidade do género humano. Depois dos juristas e ho- mens de letras, sia os etndlogos que trazem seu teste- munho, ¢ reclamam do humanismo um esforgo suple- mentar para ser verdadeiramente humano, ou seja, para englobar, no respeito das pessoas humanas, formas concretas da existéncia delas. ‘A esse respeito, o texto escrito por Claude Lévi- Strauss, em 1955, a pedido da UNESCO e intitulado Race et Histoire, é exemplar. Submetendo-se a um exer- cicio que estava em condigées de transformar-se em ritual, Lévi-Strauss comega por retirar todo valor ope- ratério do conceito de aga. As diferencas existentes entre os grupos humanos se devem, escreve, “a circuns- tancias geogréficas, hist6ricas sociolégicas, e nfo a aptiddes distintas ligadas & constituigio anatémica ou fisiolégica dos negros, dos amarelos ou dos brancos”. Mas, acrescenta logo Lévi-Strauss, nao suficiente dis- tinguir a heranca social do patriménio hereditério, sub- trair os estilos de vida de toda predestinag&o genérica, combater a biologizacdo das diferengas — ainda é pre- ciso saber opor-se a sua hierarquizacao. As miltiplas formas que a humanidade dé a si mesma no tempo ou 5, LéviStrauss, “Race et histoire” in Anthropologie structurale II, Plon, 1973, p. 387. 68 no espaco ndo podem ser classificadas por ordem de perfeigio crescente: elas no so as balizas de uma marcha triunfante, “os estados ou etapas de um desen- volvimento tinico que, partindo do mesmo ponto, deve fazé-las convergir para 0 mesmo objetivo”. A tentagéo de colocar as comunidades humanas em uma escala de valores, na qual ocupamos nds mesmos 0 cume, é cien- tificamente tao falsa e moralmente tio perniciosa quan- to a divisio do género humano em entidades anat6mi- co-fisiolégicas fechadas. Ora, os pensadores das Luzes sucumbiram, se- gundo Lévi-Strauss, a essa tentagao. Completamente inebriados ao mesmo tempo pelo desenvolvimento do conhecimento, pelo progresso técnico e pelo refinamen- to dos costumes que a Europa do século XVIII conhe: cia, criaram, para dar conta disso tudo, o conceito de civilizacdo, Era transformar sua condiao presente em modelo, seus habitos particulares em atitudes univer- sais, seus valores em critérios absolutos de julgamento, € 0 europeu —mestre e possuiidor da natureza —no ser mais intercssante da criagdo. Essa visto grandiosa de ‘uma ascensio continua, de uma razéo cumprindo-se no tempo e da qual o Ocidente era de certa forma pon- ta-delanca, recebeu no século seguinte a garantia da etnologia nascente. Eis, por exemplo, o que escrevia Morgan em La societé archaique: ““Pode-se assegurar agora, apoiando-se sobre provas irrefutdveis, que 0 pe- rfodo do estado selvagem precedeu o perfodo de barbé- tie em todas todas as tribos da humanidade, da mesma maneira que se sabe que a barbérie precedeu a civiliza- 6, Ibid., p. 385. Gio. A histéria da humanidade é uma quanto & fonte, outra quanto a experiéncia e outta quanto ao pro- gresso’.” Confiantes dessa certeza, os europeus, no fim do século XIX, concluiram sua obra de colonizagao. Ten- do a Europa racional ¢ téonica encarnado o progresso diante das outras sociedades humanas, a conquista apa- recia como 0 meio ao mesmo tempo o mais rapido e o mais generoso de petmitir a entrada dos retardatérios na érbita da civilizago. As nagdes evolufdas estavam incumbidas de uma missao: acelerar a marcha dos néio- europeus em direcdo & instrugao e ao bem-estar, Era preciso, para a propria saide dos povos primitivos, reabsorver sua diferenca — ou seja, seu retardamento — na universalidade ocidental. “Porém, depois que descobriram a complexidade das tradigdes e das regras de vida nas sociedades ditas primitivas (gracas em parte as oportunidades criadas pela propria expansio colonial), os antropélogos, co- mo atesta Lévi-Strauss, nfio jogam mais o jogo. Depois de terem afagado o orgulho da Europa, dedicam-se do- ravante a alimentar sua mé-consciéncia. O selyagem, © barbaro, o primitivo: tantos clichés odiosos ou con- descendentes que so despojados de toda validade inte- lectual. Com essas caricaturas, o que se desfaz é a idéia de uma evolugfio linear de humanidade, é a discrimi- hago entre povos atrasados e povos evolufdos. Assim, quanto mais o Ocidente afirma sua preeminéncia mun- dial, mais aprofunda a dtivida etnolégica sobre a le- 7. Citado in Philippe Beneton, Histoire des mots: culture et civilisation, Presses de 1a fondation nationale des sciences politiques, 1975, p. 47. 70 gitimidade dessa dominagao. E no momento em que a UNESCO se propée a abordar um capitulo novo da hist6tia humana, Lévi-Strauss lembra, em nome de sua disciplina, que a era da qual trata-se de sair esté mar- cada tanto pela colonizacao quanto pela guerra, tanto pela soberba do Ocidente, que nega outras versdes possiveis de humanidade, quanto pela afirmacdo na- zista de uma hierarquia natural entre os seres, tanto pela megalomania do progresso quanto pelo delirio biolégico. E, aliés, fundar na natureza a diversidade dos modos de existéncia, ou fundi-los em um processo geral de desenvolvimento do conhecimento, das liber dades e das tecnologias, é tudo a mesma coisa: nos dois casos, segundo Lévi-Strauss, ocorre 0 mesmo einocen- trismo, que diz: “O que no eu — raga inferior ou forma ultrapassada da evolugio social — € bem me- nos que ew”. Para acabar com a presunc&io do homem branco, € necessério completar a critica da raga pela recolocagao do problema da civilizagdo. A humanidade no é nem idéntica a ela mesma, nem compartimentada em grupos dotados de feicdes hereditérias comuns Existe realmente multiplicidade, mas ela nfo é racial, existe realmente civilizagdo, mas ela nao é tnica. A etnologia refere-se, pois, a culturas, no plural, e no sen- tido de “estilos de vida particulars, néo-transmissiveis, petceptiveis sob forma de produg6es coneretas — téc- nicas, costumes, instituigdes, crengas — preferencial- mente a capacidades virtuais, e correspondendo a valo- res observaveis no lugar de verdades ou suposigées de- les, 8, Lévi-Strauss, Le regard éloigné, Plon, 1983, p. 50. n Esclarecer a humanidade para conjurar os riscos de regressao A barbérie: Lévi-Strauss retoma por sua vez a solene ambigaio dos fundadores da UNESCO, mas a pde contra a filosofia & qual estes so fitis, No proceso contra a harharie, as Luzes sentam doravante no banco dos réus ¢ no mais no lugar que Ihe reser- vavam naturalmente Léon Blum ou Clement Atlee: 0 do promotor. O objetivo permanece 0 mesmo: destruir © preconceito, mas para atingi-lo nfo se trata de volta- rem os outros a razio, € necessdrio voltar-se & razdo dos outros. A ignordincia ser vencida no dia em que, antes de se querer estender a todos os homens a cultura da qual se € depositario, se souber renunciar a sua univer- salidade; em que, em outras palavras, os homens ditos civilizados descerem de seu promontério imaginério reconhecerem, com humildade e lucidez, que cles mesmos sfio uma variedade de indigenas. Pois 0 obs- curantismo — que continua sendo o inimigo — se de- fine pela “recusa cega do que nfo € nosso”, e nfo pela resisténcia que a propagagio de nossos valores € de nossa forma de discernimenta encontra no mundo. Segundo Condorcet, o mal provinha da cisdo do género humano em duas classes: a dos homens que créem € a dos homens que raciocinam, Pensamento selvagem ou pensamento sébio, logos ou sabedoria barbara, amadorismo ou formalizagio — todos os homens ra- ciocinam, objeta Lévi-Strauss, os mais crédulos os mais nefastos, sendo esses os que se consideram os detentores exclusivos da racionalidade. © barbaro néio 9. LéviStrauss, Tristes tropiques, Plon, col, Terre humaine, 1955, p. 461. 72 € 0 negativo do civilizado, “é, a prinefpio, 0 homem que cté na barbérie™”, ¢ 0 pensamento das Luzes culpado de ter instalado essa crenga no coragio do Ocidente ao confiar a seus representantes a exorbitante inissdo de assegurar a promogao intelectual e o desen- volvimento moral de todos os povos da Terra. A SEGUNDA MORTE DO HOMEM E Lévi-Strauss fez escola. A exemplo da antropo- logia estrutural — e cada uma em seu pr6prio terreno — todas as ciéncias humanas perseguem o etnocentris- mo. E 0 caso, em primeiro lugar, da histéria: a fim de purgar o presente de todo impetialismo cultural, os historiadores nao desenrolam mais 0 fio do tempo, eles © partem e nos ensinam a ndo reconhecer em nossos ancestrais a imagem ou o esbogo de nés mesmos. Con- tratiando sua vocagiio milenar, que era de nos restituir ‘a meméria de nosso passado, eles o subtraem de nossa influéncia, marcam a ciséo que nos separa dele, o mostram em sua alteridade radical, frustrando assim nossas pretensdes englobantes. Segundo a forte expres- so de Michel Foucault, trabalham pata “por em peda- 0s tudo o que permitia o consolador jogo dos reconhe- cimentos"”. Tudo, ou seja, a permanéncia do ser como vir-a-ser, a estabilidade da natureza humana, bem como co esquema linear de uma maturacZo ou de um desen- yolvimento continuo. E assim que o saber histérico 10. Lévi-Strauss, “Race et histoire”, op. cit., p. 384. 11. Michel Foucault. “Nietzsche, a généalogic, histoire”, in Hommage a Jean Hyppolite, P.U.F., 1971, p. 160. 73 cerea, com predilegao, os dominios aparentemente tio constantes como a sexualidade, o sentimento, a vida familiar, os meios de ser, de comer, de morrer — e faz aparecer neles disparidades irredutiveis. Préticas heterogéneas surgem 14 onde acreditvamos ter neces: sidade de invariantes. Um caleidoscépio de diferengas se oferece a nossos olhos no lugar do processo ascen- dente ao qual tfinhamos o costume de identificar a histéria, As realidades que tinhamos por natutais sio constitufdas em objetos histéricos, mas sobretudo a prdpria cronologia é liberta de toda perspectiva de pro- gresso, Em suma, os historiadores desdobram a aven- tura humana em sua dispersdo, no lugar de reuni-la em uma forma tinica, ou de inscrevé-la sobre uma mesma linha evolutiva. E por essa atengéio as desconti- nuidades, por essa recusa de submeter o passado, o presente e o futuro a uma diregdo tinica, por essa essencial desorientacéo da histéria, perseguem, no tempo, o mesmo objetivo que os etndlogos, no espago: fazer justica, de uma yez por todas, a idéia simulta- neamente egocéntrica e primitiva segundo a qual “o homem é inteiramente refugiado em um sé dos modos hist6ricos ou geogréficos de seu ser” (Lévi-Strauss). Enquanto alguns se recusam a fazer uma hierarquia entre as diversas formas da vida coletiva, outros ata- cam a enganosa continuidade do tempo humano. © confronto com as épocas anteriores prolonga, assim, o trabalho de sapa operado pelas investigacées sobre as longinquas tribos da Amaz6nia, O rei esté nu: nés, europeus da segunda metade do século XX, nio somos a civilizacio, mas uma cultura particular, uma variedade do humano fugidia e perecivel. 4 E essa cultura é ela mesma plural, precisa imedia- tamente a sociologia. Sob o efeito da luta anticolonial, 08 socidlogos mais influentes e mais audaciosos dos anos sessenta combinam a abordagem marxista com a da etnologia. Descobrem uma sociedade dividida em classes, ¢ classes dotadas, cada uma, de um universo simbélico distinto. Essas classes Iutam entre si, dizem como Marx, e seus universos se equivalem, actescen- tam, inspirando-se em Lévi-Strauss: “A selegio de si nificagées que define objetivamente a cultura de um grupo ou de uma classe como sistema simbélico é ar- bitréria enquanto a estrutura e as funcGes dessa cultura nfo podem ser deduzidas de nenhum principio univer- sal, fisico, biolégico, ou espiritual, no estando unidas por nenhuma espécie de relacdo interna & ‘natureza das coisas’ ou uma ‘natureza humana’ ™”, E verdade que, entre todas essas culturas, somente uma é reconhecida como legftima. Mas atengao, previne © sociélogo, cuidado com as evidéncias familiares! A preeminéncia dessa cultura se explica pela posicao do- minante da classe da qual € oriunda e da qual exprime a especificidade — nao pela superioridade intrinseca de suas produgdes ou de seus valores. As classes domi- nadas sofrem uma humilhagao andloga em seus prin- cfpios e em seus efeitos aquela que as grandes metré- poles européias infligem aos povos colonizados. Suas tradigdes so desenraizadas; seus gostos, ridiculariza- dos; todos os saberes que formam a substdncia ea po- sitividade da experiéncia popular — “‘o saber do vento 12, Pierre Bourdieu et Jean-Claude Passeron, La reproduction (Elements pour une théorie du sysidme d’enseignement), Editions de Minuit, 1970, p. 22, 5 que sopra, da terra rica em signos sectetos, de matérias manejaveis ou nao, dos gatos que pressentem o frio proximo “” — s&o excluidos sem piedade da cultura legitima, Trata-se, dizem, de assegurar a comunicagio universal dos conhecimentos © de levar as Luzes aos que dela esto privados. Belo projeto, mas que dissi- mula, aos olhos do sociélogo, uma operagaio em dois tempos muito menos reluzente: desenraizamento a prin- cfpio, arrebatamento dos seres a esta rede de habitos ¢ atitudes que constitui sua identidade coletiva. Ades- tramento em seguida, inculcagao dos valores dominan- tes elevados & dignidade de significagées ideais. Culti- var a plebe é empalhé-la, purgé-la de seu ser auténtico para preenché-la, em seguida, com uma identidade de empréstimo, exatamente como as tribos africanas que se encontram “fantasiadas” de ancestrais gauleses, gragas a0 colonialismo, E o lugar onde se exerce essa “violéncia simbélica” 6 0 mesmo que os filésofos das Luzes erigiram como instrumento por exceléncia de libertagiio dos homens: a escola. Um exemplo: da imensa massa verhal que produz nossa sociedade, alguns raros discursos sfo designados a admiraco geral e adquirem o status de objeto de ensino. Esses discursos séo chamados literarios. Por que estes e nfo outros? Por que teriam propriedades especificas, uma superioridade palpavel e reconhecida por todos, uma beleza que os alcaria necessariamente acima da palavra média? A anélise estrutural descobre (ou ao menos acredita descobrir) que nao é nada disto e que todas as narrativas do mundo — quer estejam 15. Jean-Claude Milner, De l’école, Seuil, 1984, p. 14. 76 ae ow nao estampadas com a marca “literatura” — fazem referéncia a um sistema tinico de unidades e de regras. Sob o olhar nivelador da ciéncia, as hierarquias séo abolidas, todos os critérios de discriminagao sio cons- trangidus a confessar suas arbitraricdades: nenhuma barreira separa mais as obras-primas de todo o resto: ‘a mesma estrutura fundamental, os mesmos tragos ge- nerosos e elementares se encontram nos “grandes” ro- mances (cuja exceléncia € doravante acompanhada de aspas desmitificadoras) e nas formas plebéias da ativi- dade narrativa. E a ligdo da antropologia: “As socie- dades humanas, como os individuos — em seus jogos, sonhos ou delitios — nao criam jamais de maneira absoluta, mas limitam-se a escolher certas combine- Ges em um repertério ideal que seria possivel recons- tituir“". Nao se encontram dois mitos, dois sonhos ou duas confissdes parecidas, mas, afirmam os estru- turalistas, essas diferencas nao dao nenhum direito a julgamentos de valor, pois so variantes da mesma ati- vidade combinatéria, Conclusio: a definicao de arte € uma “aposta de luta entre as classes “ese tal texto é sactalizado ¢ oferecido ao estudo, 6 porque através dele 0 grupo dominante prescreve sua visio de mundo a0 conjunto social. Existe violéncia no fundamento de toda valorizagao. ; “Assim, a teoria sociolégica transfere para 0 pro- prio interior das sociedades ocidentais 0 cenério reve- lado pela antropologia para descrever a telagdo que 0 14, Lévi-Strauss, Tristes tropiques, op. cit., p. 203, 15. Pierre Bourdieu, La distinction (Critique sociale du juge- ment), Editions de Minuit, 1979, p. 50. 7 Ocidente mantém com as populagées néo-européias. Nos dois casos, com efeito, é 0 etnocentrismo que pune: “um arbitrio cultural” arroga-se © monopélio da legi- timidade, desvaloriza os modos de pensamento, 0 know-how e as artes de viver que nfo sfio os seus € 0 langam nas trevas da selvageria ou da ignoréncia. Como se sabe, a descoberta do Novo Mundo esté na origem do humenismo. Ao contato com os povos exéticos, 0 espirito de comparagio se introduziu na cidadela religiosa e arruinou, acs poucos, a autori- dade da revelacao. Saindo de suas fronteiras, vendo, “dia ap6s dia, um novo culto, diversos habitos, diver- sas ceriménias”, como diz La Bruyére em seu capitulo dos Esprits forts, os europeus tomaram consciéncia da relatividade de suas préprias crengas e do fato de que o homem podia manter-se sozinho, agir, refletir, distinguir o bem do mal, sem a luz da £6. Livre de Deus, 0 sujeito pensante tornou-se o fundador do mundo ¢ a fonte dos valores. No século XX, nfo é mais Deus, ¢ 0 proprio homem que a redescoberta das sociedades sem escrita convida a recolocar em questo. Os etndlogos, com efeito, denunciam a dupla mentira do homem em pro- gresso e do homem imutével. Para esses viejantes aten- tos, os europeus nAo fizeram outra coisa até o presente senfio projetar sobre os povos alégenos seus sonhos, sua arrogincia, ou sua idéia de razdo. Quando néo desprezavam esses povos por seu atraso, faziam deles bons selvagens: de qualquer maneira eta despojé-los de seus caracteres originais e servir-se deles, conferin- dolhes uma funcdo mitica para naturalizar a cultura ocidental. Ao dizer: “Eu sou o homem”, esta cultura 7 podia entdo, em s& consciéneia, devorar 0 resto do mundo, Se se quer agora que a baleia ocidental restitua © que incorporou, nao é suficiente conceder a indepen- déncia aos povos suibjugados, é preciso ainda pronun- ciar a equivalencia de culturas. E existem duas maneiras de realizar essa iguali- zago: alguns se esforcam em mostrar que em dltima instancia as miltiplas verses do humano provém de uma Idgica inconsciente, intemporal e anénima na qual “‘as formas sio fundamentalmente as mesmas para todos os espiritos, antigas e madernos, primitivos e ci- vilizados "”. Outros, mais radicais, recusam essa hip6- tese de uma Idgica comum e concluem, com Michel Foucatilt, pela “absoluta dispersio ”” dos sistemas de pensamento e das préticas sociais. Em todo caso, 0 homem morte como sujeito autdnomo e se transforma no campo de ago de forcas ou de estruturas que esca- pam & sua apreensfo consciente: “Onde hé palavras, diz justamente Foucault, 0 homem nao existe mais”, A obra politica da descolonizagao vem acompanhada, assim, de uma revolugaéo na ordem do pensamento: o homem, esse “conceito unitério de porte universal”, dé lugar & diversidade sem hierarquia das personalida- des culturais, 16, LévisStrauss, Anthropologie structurale, Plon, reed, 1974, p. 28. 17. Michel Foucault, Les mot et les choses, Gallimard, 1966, p. 397. 18, Foucault, “L’homme est-il mort?”, Aris, 15 jun. 1966, ci- tado in Luc Ferry, Alain Renault, La pensée 68, Gallimard, 1985, p. 41, 19, Edmond Leach, L’unité de Vhomme et autres essais, Galli mard, 1980, p. 338. 79 Mas nao é a primeira vez que uma tal revolugo acontece: Spengler se gabava de téla executado e, antes dele, vale lembrar, Herder reprovava Voltaire e seus epigonos por fazerem de seus valores lanternas © uniformizarem 0 mundo cob o pretexto de esclare- cé-lo, Ao homem, essa hipéstase do francés, cles jé opunham a inesgotdvel diversidade dos particularis- mos, Denunciando a profunda inumanidade do huma- nismo, e encurralando o particular, 0 histérico, o re- gional atrés de tudo o que se dé a aparéncia da uni- versalidade, a filosofia da descolonizagéo reata, pois, com Herder, A mesma cena se representa novamente, sobre uma nova escala. Nao € mais a Franga que esté em causa, é o Ocidente, tanto em suas relagdes com 0 exterior quanto em suas regras internas de funciona- mento. Mas a alternativa é idéntica: ou 0 Homem ou as Diferengas, ¢ a filosofia da descolonizagaéo com- bate o etnocentrismo com os argumentos e os conceitos forjados pelo Romantismo alemao em sua luta contra as Luzes. Compreendamo-nos: essa volta & nog&o romén- tica de cultura é inspirada na vontade de expiagdo e no por um sobressalto de orgulho tribal. Como Herder, os anti-humanistas contemporéneos mostram que o hhomem nao é somente um belo ideal, mas uma ficgao Util, um projeto comodamente invocado por uma civi- lizagdo singular, para impor sua lei, Como Herder ainda, eles desalojam do fantasma metafisico, celebra- do pelo pensamento das Luzes, um ser eminentemente material: 0 sujeito algado pelo Ocidente acima da du- ago e do espaco tem, com efeito, um corpo, uma iden- tidade, uma histéria. Como Herder, enfim, pensam que 80 " 4 “os homens nfo agem, enquanto membros do grupo, de acordo com 0 que cada um experimenta enquanto individuo: cada homem experimenta em fungao da maneita com a qual lhe é permitido ou prescrito se conduzir. Antes de cngendrarem centimentos externos, 0s costumes so dados como notmas externas, ¢ essas normas insensiveis determinam os sentimentos indivi- duais, assim como_as circunstancias nas quais poderdo ou deverdo se manifestar®”. Mas Herder falava antes de tudo para os seus; os filésofos da descolonizago falam para o Outro. Ajustando contas com sua propria tradicdo, se esforcam em dissipar a ilusdo de dominio total na qual se deleitou muito tempo a Europa, Contra ‘0 eu coletivo, tomam, sem exitacao, 0 partido do nio- eu, do proscrito, do excluido, do homem de fora. Querem reabilitar 0 estrangeiro: eis pot que abolem toda comunidade de consciéncia entre os homens. Se se colocam naquilo que os distingue das outras cultu- ras, é a fim de devolver a estas a dignidade que o im- perialismo ocidental Ihes espoliou. Se praticam 0 re- censcamento das diforengas, 6 para repatar os erros de sua propria civilizagdo, para desarmar a vontade de poder da sociedade que os vi nascer, ¢ para curat a filosofia de sua propensdo a sempre traduzir o outro na lingua do mesmo. Se exaltam a multiplicidade de raz6es particulares, € pata reconduzir esta que elevam a0 maximo de abertura e a0 maximo de modéstia. Xe- néfilos, abragam a causa dos humildes e dos deserda- dos, deeretam a morte do Homem em nome do homem, 20. LéviStrauss, Le totémisme aujourd'hui, P.U.R., 1962, p. 101. 81 diferente, ¢ mébeis rigorosamente contrérios ao que estigmatizava Julien Benda em La trahison des cleres, os incitam a pronunciar, por sua vez, a decadéncia dos valores universais. RETRATO DO DESCOLONIZADO A filosofia da descolonizagio ajudou, sem divida nenhuma, os povos do Terceiro Mundo a se libertarem da tébua de valores em nome da qual havia sido possf- vel fazer sua escravizagio. As elites da Africa e da Asia que tinham interiorizado o olhar do colonizador encontraram um recurso contra a alienagio na idéia que diz que as culturas sfo equivalentes e que cada uma se justifica no interior de seu préprio contexto. Uma vez que as ciéncias humanas fizeram justiga a outros critérios além da técnica para medit 0 graut de ayango de um povo, a iiltima razo de ser da superio- ridade européia desabava, o Ocidente deixava defini- tivamente de fascinar suas vitimas. “Quilémetros de rodovias, de canais, de estradas de ferro”, “toneladas de algodio ou cacau exportados, hectares de oliveiras ou vinhas plantadas”, “doengas curadas, nfveis de vida elevados acima de si mesmos””” — esses argumentos estatisticos tradicionais, invocados pata justificar a obra colonial, perdiam seu poder de intimidacéo, a0 mesmo tempo em que voavam aos pedacos os Iugares- comuns sobre a psicologia dos indigenas. Costumes 21. Aimé Cesaire, Discours sur le colonialisme, Présence afri- caine, 1955, pp. 19-20. 82 desprezados em virtude de uma concepgao simplifica- dora do progtesso encontravam sua legitimidade per- dida; oculto ou desqualificado pela marcha forcada que 0 Ocidente se acreditou no direito de prescrever & hist6ria, todo um passado saia da sombra; “milhdes ae homens arrancados de seus deuses, de sua terra, de seus hébitos, de suas vidas, da vida, da danga, da sa- bedoria®” retornavam A posse de si mesmos: nao eram mais selvagens ou barbaros A espera da salvago, mas 08 depositétios de uma tradig&o venerdvel. Sob a égide da filosofia da descolonizagao, 0 con- ceito de cultura, que havia sido o emblema do Ocidente impetialista, voltava-se contra esse tltimo e qualifi- cava precisamente as sociedades sobre as quais se exercia sua tutela, O tema da identidade cultural per- mitia pois aos colonizados desvencilharem-se do mi- metismo, substituir a degradante parédia do invasor pela afirmacao de sua diferenca e transformar em mo- tivo de orgulho as maneiras de ser das quais se queria que eles se enyergonhassem. Essa mesma idéia, entre- tanto, despoja-os de toda poder perante sua prépria comunidade, Eles nao podiam pretender se situar fora, ao abrigo de seus imperativos, & parte de seus costumes, uma vez que é justamente daquele inforténio que ti- nham querido se livrar, sacudindo 0 jugo da coloni- zacio. Para eles, aceder & independéncia era, antes de tudo, reencontrar sua cultura. E légico que a maioria dos Estados nascidos sob tais auspicios fixaram por objetivo coneretizar esses reencontros. Ou seja, fixar solidamente os individuos no coletivo. Cimentar @ uni- 22, Ibid, p. 20. dade da nacdo. Garantir, sem fraqueza, a integridade € a coesio do corpo social. Velar, em nome da cultura, para que nenhume critica intempestiva venha pertur- bar 0 culto dos preconceitos seculares. Em suma, asse- gurar 0 triunfo definitivo do espirito gregério sobre as outras manifestagdes do espirito. Como mostra Hélé Béji em Desencantamento na- cional — um livro admiravel e desconhecido — essa forca de resisténcia que representava a identidade cul- tural sob 0 reino dos colonos se reverte, desde a par- tida deles, em instrumento de dominacéo: “Enquanto se trata de me defender contra a presenga fisica do invasor, a fora de minha identidade se deslumbra ¢ me tranqiiiliza. Mas a partir do momento em que esse invasor é substituido pela propria identidade ou mesmo por minha prépria efigie (nacional) posta sobre o eixo da autoridade, e me envolvendo com seu cuidado, ew nGo deveria mais ter, logicamente, o direito de contes- téela”, Nao nos revoltemos contra nés mesmos: a in- dependéncia encerra seus beneficiérios em um cons- trangimento de unanimidade que sucede sem transigao a autoridade estrangeira. Entregues a si préprios, os antigos colonizados encontram-se cativos em seu do- mfnio, impregnados dessa identidade coletiva que os havia libertado da tirania e dos valores europeus. T&o logo dizem: “Ganhamos”, perdem o direito de se ex- primir de outra maneira que na primeira pessoa do plural. Nés: cra 0 pronome da autenticidade reencon- trada, é doravante o da homogeneidade obrigat6ria; 23, Hélé Béji, Désenchantement national, La Découverte, 1982, p. 118. 84 era 0 espaco caloroso da fratemnidade combatente, & © verniz no qual a vida péblica se debilita e se congela; era o nascimento de uma comunidade propria, € 0 de- saparecimento de todo intervalo e, portanto, de toda possibilidade de confronto entre seus membros; era um grito de reyolta, é 0 soliléquio do poder. Néo havia lugar para 0 sujeito coletivo na I6gica colonial; nao hé, na ldgica da identidade, lugar para o indivfduo. © governo de partido tinico € a traducdo mais adequada do conceito de identidade cultural. Se a in- dependéncia das antigas colénias nao trouxe em sua esteira o desabrochar do direito mas a uniformizacao das consciéncias, a inchagéo de um aparelho e de um partido é atribufda aos préprios valores da luta anti- colonial ¢ nao A traigio desses valores pela burguesia autéctone ou a seu confisco em proveito das poténcias européias. A passagem do calor reyoluciondtio ao frio burocrético se faz por si propria, sem intervencdo de um terceiro mal-intencionado, e o desencantamento nacional, téo lucidamente descrito por Hélé Béji, é imputével, antes de tudo, a idéia de nagiio que preva- leceu no combate travado contra a politica imperial do Ocidente, Para se convencer disso, é suficiente reler Les damnés de la terre. Nesse livro escrito em pleno fer- yor insurrecional, Frantz Fanon coloca o individua- lismo em primeiro lugar dentre valores inimigos: “O intelectual colonizado aprendera com seus mestres que © individuo deve se afirmar. A burguesia cravara, a golpes, no espirito do colonizado, a idéia de uma socie- dade de individuos onde cada um se encerra em sua subjetividade, onde a riqueza é a do pensamento. Ora, 85 0 colonizado que tiver oportunidade de se misturar no povo durante a luta de libertagfo vai descobrir a falsi- dade dessa teoria*”. Desassociados por seu opressor, atomizados, condenados ao egofsmo do “cada um por si”, os colonizados experimentam, ao combater, a 6x- tase da indiferenciagéo. O mundo ilusério e doentio da dispersiéo das vontades toma o lugar da unidade total. No lugar de orientarem-se obstinadamente na di- tego da auto-afirmagao ou de cultivarem esterilmente suas particularidades, os homens imergem na “maré popular®”, abdicando de todo pensamento préprio, voltam para o seio de sua comunidade. A pseudo-reali- dade individual est4 abolida: cada um se encontra, se- melhante aos outros, portador da.mesma identidade. © corpo mistico da nacdo absorve as almas: por que haveria de substitui-las, uma vez proclamada a sobe- rania? Por qual milagre o individuo, ressentido ao longo de toda luta de libertacio como uma patologia do ser, apés a Vitéria, voltaria a ser um principio po- sitivo? Uma vez depostas as armas como a totalidade orginica, a unidade indivisa celebrada durante o combate se transformaria em associacio de pessoas auténomas? Uma nagéio cuja vocagao primeira é ani- quilar a individualidade de seus cidadios nfo pode desembocar em um Estado de direito. Frantz Fanon declara abertamente, e com toda veeméncia, 0 reptidio pela Europa. De fato, ele toma partido no debate entre as duas idéias que dividem a consciéncia européia depois da Revolugéo Francesa. 24. Frantz Fanon, Les damnés de la terre, Maspero, 1961, p. 33. 25. Ibid., p. 35. 86 E 0 Volk, com efeito, que ele opde A sociedade dos in- dividuos, € 6 espfrito nacional, “uma afirmagéo desor- denada de uma originalidade posta como absoluta*”, que pretende que suhstitua a colonizacao. Ele pode realmente “vomitar a cultura do opressor” e cons- tatar alegremente que, cada vez que esto em questo valores ocidentais, 0 colonizado “‘saca a machete, ou pelo menos se assegura de que esté ao alcance da méo™", mas seu livro se inscreve expressamente na linha do nacionalismo europeu. E a maioria dos movi- mentos de libertacdo nacional seguiram a mesma via: tendo Fanon como profeta, escolheram a teoria étnica da nago no lugar da teoria eletiva, preferiram a iden- tidade cultural — tradugao moderna do Volksgeist — ao “plebiscito de todos os dias” ou & idéia de “associa gfo secular”, Se, com uma regularidacc sem falha, esses movimentos de libertagio produziram regimes de opressio, é porque, a exemplo do romantismo politico, fundaram as relagSes inter-humanas a partir do modelo mistico da fusio, de preferéncia a0 — juridieo — do contrato, e porque pensaram a liberdade como um atributo coletivo, jamais como uma propriedade indi- vidual. Em seu nascimento, € verdade, a maioria desses novos Estados combinavam o desejo de restauragio com a ambic&o revolucionéria. Agressivamente nacio- nalistas, formavam ao mesmo tempo a nova Interna- cional dos explorados. Jogando sobre o duplo registro 26. Ibid., p. 29. 27. Ibid, p. 31. 28. Ibid., p. 31 87 do etnologismo e da luta de classes, reivindicavam al- ternadamente o titulo de nagdes diferentes e 0 de nagées proletérias. E aspirando reencontrar suas rafzes, queriam apressar 0 nascimento do homem novo. Por um lado, em nome da diversidade de culturas, com- batiam o universalismo, por outro, responsabilizavam- se por ele em nome da revolugao. Para dizer de outro modo, os Estados pés-coloniais reconciliavam, por sua prépria conta, Marx e Joseph de Maistre. Junto com este diziam: “O homem nfo existe, nao ha para- digma cultural comum para a humanidade; s6 tém uma realidade (¢ um valor) as diferentes tradig6es na- cionais”. Mas, com aquele, diziam igualmente: “O homem nfo existe ainda, e € aos condenados da terra que cabe realizar o seu advento”. O proprio Marx seria, sem dtivida, ofuscado por esses nipcias antinaturais com o nacionalismo. Para 0 autor do Manifesto comunista a causa estava expli- cada: os proletarios nfo tém pétria. “A nacionalidade do trabalhador, escrevia, por exemplo, nao € francesa, inglesa, alema, € 0 trabalho, a livre escravatura, o trd- fico de-si préprio. Seu governo nfo é francés, inglés, alemio, € 0 capital. O ar que respira em seu pais nfo € francés, inglés, alemio, é o ar das usinas ””, Aos her- deiros das Luzes que acreditavam poder organizar as nagdes sobre a base do contrato, Marx respondia que toda soviedade era de fato regida pelo conflito entre a burguesia e a classe operéria. Aos roménticos desejo- 29, Marx, “A propos du systtme national de l'économie politi- que de Friedrich List”, in Oeuvres 11, Gallimard, col. La Pléiade, 1982, p. 1.435. 88 sos de ressuscitar o espirito nacional, ele replicava que a burguesia, em seu cinismo sem limites, havia dissol- vido os antigos lagos, rompido com as lealdades tradi- cionsis, aniquilando o cardter exclusivo das diversas nagdes. No lugar do contrato sovial, a divisdo de clas- ses; no lugar dos particularismos, 0 mercado mundial © a interdependéncia universal. Que seja definida pela comunidade de cultura ou pela vontade dos individuos, a nagio era para Marx uma forma condenada, ¢ seu estilo chegava mesmo a vibrar com um fervor Iftico cada vez que evocava a unificagéo do mundo ¢ o de- saparecimento do espirito, Uma vez que esse progndstico foi sistematica- mente invalidado durante a segunda metade do século XIX, 08 sucessores de Marx foram obrigados a retomar a questo nacional. Apés longos debates entre austro- marxistas, bundistas * bolcheviques lixemburguis- ico dada em 1913 por Iosif Stalin que acabou por prevalecer: “A nagio é uma comunida- de humana, estével, historicamente constituida, nascida sobre a base de uma comunidade de lingua, de terri- tori, de vida econémica e formacao psiquica que se traduz em uma comunidade de cultura”. ‘As nagGes sao teimosas: Stalin se inclina diante da persisténcia desse fendmeno hist6rico. Mas essa conversio doutrinal nfo vai até a renegacio, Nagao por nagao, ele escolhe a menos mal, e € a concepeao * Membro de liga (Bund) de socialistas judeus na Europa orien- tal. (N. do T.) ** Partidarios das posicGes de Rosa Luxemburgo. (N. do T.) 50. Stalin, Le communisme et la Russie, Denosl, col. Médita- tions, 1968, p. 85. 89 Sinica que acolhe no interior do pensamento tevolu- cionério contra a teoria eletiva. Pois pode, a rigor, ad- mitir, 20 lado do determinismo econémico, o condi- cionamento dos homens pela lingua, pelo territério, pela cultura; mas o que totalmente inaceitavel para ele é que se faca do ato de pertencer & nagao o fruto de uma adesio racional ou de um livre consentimento. Essa teoria estd, com efeito, em contradigdo flagrante com o principio fundamental do materialismo hist6- rico: “Nao € a consciéncia que determina a vida, é a vida que determina a consciéncia™”. Celebrado na alvorada da Revolucgo Russa reatualizado quando da luta anticolonial, com 0 acesso & categoria de cultura de povos situados fora da érea de civilizaco, esse casamento do marxismo com o 10- mantismo politico esté hoje se acabando. J4 que o im- perialismo soviético tem dado provas de uma voraci- dade pelo menos igual A do imperialismo ocidental, os Estados do Terceiro Mundo ¢ os movimentos de liber- tagao nacional ainda em atividade rejeitam cada vez mais a ideologia sucialista em beneficio do Volksgeist. A identidede cultural 6 para si sua Gnica justificacio: © fundamentalismo varre a fraseologia progressista ¢ a invocaco da coletividade passa doravante ao largo de toda referéncia & revolugio do proletariado inter- nacional. © comunismo conhece pois um declinio que pa- rece inexordvel: s6 que 0 que morre com ele nfo é 0 pensamento totalitério, é a idéia de um mundo comum 31. Marx, P. 1.057. ‘idéologie allemande”, in Oeuvres III, op. cit., 90 a todos os homens. Marx esté vencido, certamente, mas por Joseph de Maistre. Também 6 preciso no se es- pantar se, como escreve Octdvio Paz, “nisto que se chama Terceiro Mundo, sob diversos nomes e atribu- tos, reina um Caligula de mil faces™”. Entre os dois modelos europeus de nagfo, o Terceiro Mundo adotou macigamente 0 pior. E isso com a bénedo dos intelec- tuais ocidentais. Foi para concretizar, em efetivo reco- nhecimento, 0 respeito proclamado & pessoa humana que a etnologia e, com ela, 0 conjunto das ciéncias sociais, empreenderam a critica ao espirito das Luzes. Foi para curar os grandes principios humanitérios de seu formalismo, de sua abstragfo, de sua impoténcia que, desde 1947, o escritério da American Anthropo- logical Association submeteu as Nagbes Unidas um projeto de Declaracao dos Direitos Humanos cujo pri- meito artigo estava assim redigido: “O individuo rea- liza sua personalidade pela cultura: o respeito pelas diferencas individuais acarreta, pois, um respeito pelas diferengas culitiyais*”’. O impulso era generoso, mas to indbil quanto aquele do urso que esmaga o rosto do jardineiro para cagar a mosca que o incomodava durante o sono, No momento mesmo em que, com efei- to, € devolvida ao outro homem sua cultura, roubam- Ihe a liberdade: seu nome préprio desaparece no nome de sua comunidade, ele no é mais que uma amostra, © representante permutdvel de uma classe particular de seres. Sob 0 pretexto de acolhé-lo, recusam-the toda 32. Octivio Paz, Rire et Pénitence, Gallimard, 1983, p. 85. 33. Citado in Pascal Bruckner, Le sanglot de L’homme blanc, Seuil, 1985, p. 194, 4 margem de manobra, toda escapatéria, profbemshe a originalidade, emboscam-no insidiosamente em sua diferenca; acreditando-se passar do homem abstrato ao-homem real, suprimem, entre a pessoa e a coletivi dade da qual ¢ oriunda, o jogo que permitia subsistir e que se esforcava mesmo em consolidar a antropologia das Luzes; por altruismo, faz-se do Outro um bloco homogéneo e, em favor dessa entidade, sacrificam-se os outros em sua realidade individual. Por causa de tal xenofilia, as antigas possessées da Europa ficam pri- vadas da experiéncia democrética européia. RACA E CULTURA ‘A identidade cultural tem dois pontos fracos: 0 indiyidualismo ¢ 0 cosmopolitismo, Escutemos ainda uma vez Frantz Fanon: “A fraqueza cléssica, quase congénita, da consciéncia nacional dos paises subde- senvolvidos, nfo 6 somente a conseqiiéncia da mutila- ga0 do homem colonizado pelo regime colontal, E também o resultado da preguica da burguesia nacional, de sua indigéncia, da formagdo profundamente cosmo- polita de seu espirito*”. Nada, pois, compromete a independéncia: & amea- ca da desagregacao interna acrescenta-se a de um retor- no sub-tepticio do estrangeito, e o Estado Nacional, mal safdo do limbo, deve lutar constantemente em dois fronts: ele necessita, por uma censura vigilante, asse- gurar a fusio das vontades particulares e livrar a co- 34, Frantz Fanon, Les damnés de Ia terre, op. cit. p. 109 (Grifo do auton). 92 letividade especifica da qual est4 encarregado de qual- quer adulteracao. Jé diziam os romanticos alemdes que “tudo o que € estrangeiro, tudo o que se introduz sem azo profunda na vida de um povo torna-se causa de doenga e deve set estirpado se ele quiser continuar sio *"; do mesmo modo, é pelo medo da mistura, pela obsesstio pela pureza, pela mania de contaminagio que a identidade cultural substitui a arrogancia colonial. Apoiado na universalidade de sua civilizagao, co- locado, por conta prdpria, no centro da hist6ria, 0 homem branco desprezava os povos arcaicos, que ve- getavam em seu particularismo, Diante da alegria de ter sua particularidade reconquistada, 0 nacionalismo do Terceiro Mundo a defende da corrupgao exterior: 0 estrangeiro 6 recusado porque & outro, néo porque é atrasado. Para dizer cruamente: um racismo fundado sobre a diferenga caga o racismo desigual dos antigos colonos. Com efeito, a palavra racismo 6 enganadora: reine sob um tinico rétulo dois comportamentos cuja génese logica e motivagoes sao completamente dife- rentes. O primeiro situa sobre uma mesma escala de valores 0 conjunto das nages que povoam a terra, 0 segundo proclama a incomensurabilidade dos modos de ser; o primeiro hierarquiza as mentalidades, 0 se- gundo pulveriza a unidade do género humano; o pri- meiro converte toda diferenga em inferioridade, o segundo afirma o caréter absoluto, intransponfvel, in- conversivel das diferencas; o primeiro classifica, 0 se- 35, Joseph Gérres, citado in Jacques Droz, Le romantisme poli- fique en Allemagne, Armand Colin, 1963, p. 149. 93 gundo separa; para o primeiro néio se pode ser persa, aos olhos do segundo nfo se pode ser homem, pois nao existe entre o persa e o europeu medida humana comum; o primeiro declara que a civilizagdo 6 una, segundo que as etnias sao miiltiplas e incompardveis. Se 0 colonialismo € 0 resultado do primeito, o segundo culmina no hitlerismo *, Vé-se melhor agora o vicio fundamental da filo- sofia da descolonizacao; ela confundiu dois fenémenos hist6ricos distintos; fez do nazismo uma variante para uso interno do racismo ocidental e nao percebeu nesse episédio sendo a aplicagéo para a Europa “dos pro- cessos colonialistas a que até entdo sé tinham sido submetidos os arabes da Algéria, os cules da India e os negros da Africa”, Resultado: foi com as armas do Volksgeist que ela combateu os danos causados pelo etnocentrismo, foi com a cabega baixa que sustentou Frantz Fanon dizendo: “O verdadeiro é 0 que protege ‘os indigenas e nao vé os estrangeiros (...) e o bem 6 simplesmente 0 que Ihes faz mal ®”, mesmo quando se exprimia assim, 0 autor de Les Damnés de la Terre repetia quase textualmente os ataques de Barrés & jus- tiga em si ou A verdade absoluta. “A verdade é o que satisfaz as necessidades de nossa alma”, lé-se, por exemplo, em Les déracinés, E em Mes cahiers: “E 36. Sobre os dois racismos, ver, além do artigo inaugural de Jeanne Hersh, “Sur la notion de race” (Diogine, n2 59, 1967), Pierre-André Taguieff, “Le néoracisme différentia- liste”, Langage et société, n.° 34, dezembto 1985, e Arthur Kriegel, La race perdue, P.UF., 1985, 37. Aimé Césaire, Discours sur le colonialisme, op. cit., p. 12. 38, Fanon, Les damnés de la terre, op. cit, p. 35. 94 preciso ensinar a verdade francesa; ou seja, a que € a mais util para a nagdo”” Sem diivida, o conceito de raga foi arruinado pelos trabalhos convergentes das cigncias sociais e ci- éncias naturais. Arriscar-se, hoje em dia, a fundamen- lar na natureza as diferengas entre as coletividades humanas é excluir-se, em seguida, do saber. As desco- bertas itrefutéveis dos bidlogos e dos etnélogos nos impedem de pensar que o género humano est dividido em grupos étnicos claramente delimitados, providos cada um de uma mentalidade prépria transmisstvel por hereditariedade, Entre o inato e o adquirido, aprende- mos a fazer parte das coisas e deixamos de insorever no patriménio genético o que depende de fato da his- ria ou da tradicZo, Signo decisivo de um avango ao mesmo tempo intelectual e moral, discernimos 0 caré- ter relativo ¢ transit6rio dos tragos que hé pouco pen- sévamos estar entre os dados eternos da humanidade. Em suma, nds néo a fazemos mais: doravante, 0 argu- mento biolégico nao é mais pertinente; dos rituais re- ligiosos as técnicas industriais, da alimentaco a ma- neira de se vestir, das Letras ao esporte de equipe, sabemos que tudo é cultural. Mas os inventores da alma nacional o sabiam também. Foram eles os primeiros que opuseram a va- riedade irredutivel das culturas & idéia de natureza humana, e que transformaram 0 mundo irredutivel dos fildsofos em uma paisagem furta-cor feita da justapo- 39, Citado in Zeev Sternhell, Maurice Barres et le nationalisme frangais, Complexe, Bruxelas, 1985, p. 268. 95 sig&o das entidades coletivas. A teoria racial que yeio em seguida e por acréscimo nfo fez senéo naturalizar esta recusa da natureza humana, e, de maneira mais geral, de tudo o que poderia transcender a diversidade dos usos. As particularidades de cada povo foram gra- vadas nos gens, os “espiritos” nacionais transforma- ram-se em quase espécies dotadas de um cardter here- ditério, permanente e indelével. Essa teoria desabou. Mas onde esté 0 progresso? Como os antigos cantores da raga, os fandticos atuais da identidade cultural con- signam os individuos em seus domfnios. Como eles levam as diferengas ao absoluto e destroem, em nome da multiplicidade das causalidades particulares, toda comunidade de natureza ou de cultura entre os homens. A Renan, que afirmava: “O homem nfo pertence nem & sua lingua, nem a sua raca, s6 pertence a si préprio, portanto é um ser livre, ou ser moral”, Barrés dava esta resposta: “O que é moral é nao querer se ver livre de sua raga ®”. Para refutar Barrés, acredita-se que é¢ possfvel reintroduzir o delirio biolégico em termos de diferencas culturais proclamar: 0 que é moral nfo querer se ver livre de sua cultura e se opor, custe 0 que custar, & infiltraco do estrangeiro? Procedendo assim, perpetua-se, ao contrério, o culto a alma cole- tiva que surgiu com a idéia de Volksgeist e do qual o discurso racial foi uma versao paroxistica e proviséria. Com a substituicéo do argumento bioldgico pelo argu- ‘mento culturalista, o racismo nfo foi aniquilado: sim- plesmente retornou ao ponto de partida. 40, Ver Benda, La trahison des cleres, op. cit., p. 56. 96 A DUPLA LINGUAGEM DA UNESCO Em 1971, vinte anos depois de Race et Histoire, a UNESCO convida Claude Lévi-Strauss para abrir, com uma grande conferéneia, o ano internacional de uta contra o racismo, Todo mundo esperava ver 0 ilustre antropélogo demonstrar, uma vez mais, a nuli- dade do conceito de raga. Frustando os prognésticos, Lévi-Strauss escolhe levar a palavra raca a sério e voltar & questdo antiga das relagdes entre raca e cultura. Com a ajuda dos trabalhos mais recentes da genética das populagdes, dé a esse problema uma solugao rigoro- samente inversa Aquela que os sébios europeus do sé- culo XIX e da primeira metade do século XX haviam dado: “Sa0 as formas de cultura que os homens ado- tam aqui ou ali, seus modos de viver que prevaleceram no passado ou que prevalecem ainda no presente que determinam, em larga medida, o ritmo de sua eyolugao biolégica e sua orientacdo, Longe de ser preciso per- guntar-se se a cultura esté ou nfo em fungfo da raga, descobrimos que a raga — ou o que se entende geral- mente por esse termo — é uma fungfo entre outras da cultura *”, Apesar dessa reviravolta, a assercfio provoca es- c&ndalo. Lévi-Strauss choca seu auditério. Ele que, com Race et Histoire, de algum modo redigira 0 se- gundo ato constitutive da UNESCO, é agora acusado de heresia. Seu crime: ter devolyido ao conceito de raga uma legitimidade parcial. Era “reintroduzir 0 41, LéviStrauss, “Race et culture”, in Le regard éloigné, Plon, 1983, p, 36. 97 lobo no curral *”, Pode-se sorrir diante do zelo de uma instituig&o que leva a rejeigdo do pensamento racista até a recusa a priori de toda reflexfo em termos de raga, e que apés pedir a ajuda da ciéncia, excomunga a parte da producio cientifica rebelde a seu catecismo. Mas no caso presente a ironia nao basta. Com efeito, no momento em que a palavra raga torna-se tabu pare a UNESCO, o modo de pensar tipolégico ¢ o fetichis- mo da diferenga se reconstituem sob 0 abrigo do con- ceito irrepreensivel de cultura, Esté dito nas resolucBes atuais da Organizag&o que os seres humanos tiram toda sua substincia da comunidade & qual pertencem; que a identidade pessoal dos individuos se confunde com sua identidade coletiva®; que tudo neles — crengas, valores, inteligéncia ou sentimentos — provém deste complexo de clima, género de vide, de Mngua que era chamado outrora Volksgeist © que hoje se nomeia cultura; que o importante é a integridade do grupo e no a autonomia das pessoas, que o objetivo da educagéo nao é dar a cada um os modos de fazer a escolha na enorme massa de crengas, opinides, de rotinas ¢ de idéias recebidas que compde sua heranca, mas, ao contrétio, imergilo nesse oceano, mergulhar nele primeiro a cabega: “Longe de permanecer como dois dominios diferentes, cultura e educagéo se inter- penetram e deyem se desenvolver em simbiose, a cul- 42. Ibid, p. 15. ‘is a identidade cultural € 0 miicleo vivo da personalidade ividual e coletiva; € o principio vital que inspira as decisdes, as condutas, os atos percebidos como os mais autén- ticos” (Conférence de Mexico sur les politiques culturelles, Uneseo, 1982, p. 20). 98 tura irrigando e alimentando a educago, que se con- firma como o meio por exceléncia de transmitir a cul- tura e, portanto, de promover e reforcar a identidade cultural “”, Tirando do episédio nazista a ligao de que existia um liame entre barbdrie e auséncia de pensamento, os fundadores da UNESCO quiseram criar, em escala mundial, um instrumento para transmitir a cultura a maioria dos homens. Seus sucessores recorreram ao mesino vocabulério, mas atribuem-lhe um significado totalmente diferente. Continuam a evocar com énfase a cultura e a educacéo, mas substituem a cultura como tarefa (como Bildung) pela cultura como origem, e invertem a caminhada da educagio: 14 onde estava 0 “eu” deve vir 0 nds”, no lugar de se cultivar (e assim sair de seu pequeno mundo) é preciso doravante reen- contrar sua cultura, entendida como “o conjunto de conhecimentos ¢ de valores que nao é objeto de nenhum ensinamento especifico e que no entanto todo membro de uma comunidade sabe ®”, O mesmo que o pensar mento das Luzes chama de incultura e de preconceito. Lichtemberg dava, pois, provas de uma lucidez premo- nit6ria quando escrevia hé duzentos anos: “Hoje, pro- cura-se difundir por toda parte o saber, quem sabe se em alguns séculos néo existirdo universidades para restabelecer a antiga ignorfncia?”’. Foi pela mesma ética que, por ocasiéo da vigé- sima Conferéncia Geral da UNESCO, foi adotada “por aclamagao” uma “Declaragao sobre a contribuigao dos 44, Ibid., p. 7. 45. Ibid., p. 4. 99 Srgdos de informagéo ao reforgo da paz e da compre- ensdo internacional, & promogao dos direitos do ho- mem e A luta contra o racismo, o apartheid e a incita- cdo A guerra”. Tratava-se de fundar uma noya ordem mundial da informaggo e da comunicagao, contraba- lanceando o poder das quatro grandes agéncias de im- prensa ocidentais — U.P.I., Associated Press, Reuter e A.F.P. — pelo desenvolvimento e a valorizagao das agéncias e das midias do Terceiro Mundo. “O estabe- lecimento de um novo equilfbrio e de uma melhor re- ciprocidade na informacao” devia permitir que se fi- zesse ouvir “a voz dos: povos oprimidos” (artigo 1), “9s objetivos ¢ aspiragées da geragio jovem” (artigo TV), “‘os pontos de vista apresentados por aqueles que considerariam que a informagao publicada ou difun- dida prejudicou gravemente a agdo que eles desenvol- yiam tendo em vista reforgar a paz ¢ a compreenséo internacional e promover os direitos do homem, ou lutar contra o racismo, o apartheid e a incitagio & guerra” (artigo V). Reprovava-se algumas agéncias que hoje detém o monopélio da informago livre por sufocarem a liber- dade através de seu monopélio e por imporem um sen- tido tinico para a comunicagdo entre os homens. Pois, para os autores do projeto N.O.M.L.C., um jornalista ocidental é um Ocidental antes de ser um individu, Sua proveniéncia modela seus propésitos. Ele se esforga em vao para criar um vacuo e abrir-se imparcialmente para o mundo exterior, mas seu olhar esta orientado, sua cultura nao se distancia jamais dele: onde quer que v4, ela o acompanha. Acreditando interpretar, estudar ou simplesmente ‘descrever os acontecimentos que se 100 desenvolvem em outras sociedades, ele ndo faz sendo refletir as prevengdes da sua, Por mais livre que se creia, por mais objetivo que se queira, permanece con- dicionado pelos valores singulares de seu universo mental. Quando o jomnalista nao serve diretamente aos interesses do Ocidente, obedece aos impulsos © as di- retrizes de sua identidade cultural. Em suma: na pior das hipéteses é um agente; na melhor, um sintoma; na maioria dos casos, um emissério. Para defender a li- berdade de informagio, seria preciso impedilo de causar danos, e isso de duas maneiras: afastando os povos de sua propaganda e opondo a voz do Ocidente as vozes do resto do mundo, com a condigo de que estas enunciem fielmente as “aspiragGes” de sua cul- tura, ou seja, abdicar claramente de toda iniciativa ¢ de toda originalidade pessoal. Projeto N.O.M.L.C. ou politica educativa, 0 con- trole social e a desconfianga em relago A cultura en- contram sua justificativa no préprio termo da cultura, Nem visto, nem conhecido, sob a bandeira imutével de uma palavra indiscutivel, a UNESCO propaga do- ravante os valores que seu mandato original The pres: crevia combater. E quanto mais o anti-racismo de hoje se assemelha com o racismo de ontem, mais a prépria palavra raga tomna-se sacrilégio. O que explica que, de- pois de ter inspirado a grande mudanga de cultura em identidade cultural, Lévi-Strauss tenha podido provo- car indignaco, sem por isso ter mudado substancial- mente de discurso. Mas o escandalo ocasionado pela conferéncia de Lévi-Strauss deve-se igualmente & sua recusa em clas- sificar sob a rubrica do racismo “a atitude de indivi- 101 duos ou de grupos que por sua fidelidade a certos va- lores tornam-se parcial ou totalmente insensfveis a ou- tros “””. Essa prudente reabilitagao de certas formas de intolerdncia foi julgada simplesmente intolerével pe- ‘los membros de uma Organizagao consagrada, desde seu nascimento, a favorecer a concérdia ¢ a fratetni- dade entre os povos. Pois se antigamente “o barbaro apostolado dos particularismos nacionais” se tradu- zia_em discursos odiosos e em uma celebragdio sem disfarce da vida guerreira, as declaragdes presentes da UNESCO sao resolutamente idilicas. S40 apenas ques- tes de paz, compreensdo, amor. Nenhuma inconseqiiéncia, entretanto, poderia ser atribuida a Lévi-Strauss. Nao se v6 por qual encanta- mento homens, mergulhados cada um em sua cultura, seriam tomados de uma paixfo espontinea pelos géne- ros de vida ou pelas formas de pensamento afastadas de sua tradig&o. Se, por outro lado, a riqueza da hu- manidade reside exclusivamente na multiplicagéo de seus modos de existéncia, se “'a honra de ter criado valores estéticos e espirituais que dao sentido a vida” voltam aos velhos “particularismos”, assim como es- creve Lévi-Strauss ¢ como o dizem, em outros termos, as grandes profiss6es de fé da UNESCO, entao a mi- tua hostilidade das culturas € néo somente normal, mas também indispensfvel. Ela representa “o prego a pa- gar para que os sistemas de valores de cada familia espiritual ou de cada comunidade se conservem e en- 46. LéviStrauss, Le regard éloigné, op. cit., p. 15. 47. Julien Benda, La fin de V'éternel, Gallimard, 1977, p. 82. 102 contrem em seus préprios fundos os recursos necessé- rios para sua renovagio*”, Mas Lévi-Strauss errou ao chamar as coisas por seu préprio nome e em combinar sua concepgao de cul- tnra com um elogio comedida & xenofobia. A UNES- CO, e com ela a filosofia da descolonizagao em seu conjunto, preferiu nao ir até o fim com sua prépria I6gica: © espfrito de guerra desemboca, pois, invaria- yelmente, em uma exortacao tmida e declamatéria do acordo universal; 0 didlogo é invocado em nome de uma religiéo da diferenga que o exclui absolutamente: © aniquilamento do individuo recebe 0 nome de liber- dade; e o vocdbulo cultura serve de estandarte huma- nista para a divisio da humanidade em entidades co- letivas insuperdveis e irredutfveis. 48, LéviStrauss, Le régard éloigné, op. cit., p. 15. 103 Parte III Estamos na direcao de uma sociedade pluricultural? O DESAPARECIMENTO DOS DREYFUSARDS A cada povo sua personalidade cultural; a cada cultura seus valores morais, suas tradigGes politicas, suas regras de comportamento. Faz pouco tempo que essa concepeao nao é mais o apanégio das povas do Terceiro Mundo em luta contra a supremacia ociden- tal. A cla se alinha igualmente a fragdo de opinigo piiblica que denuncia a “‘invasdo” progressiva da Euro- pa pelos imigrantes dos paises subdesenvolvidos. Para a “nova direita” (j4 que tal é o nome estrondoso que esse movimento ideoldgico se deu, quando de sua en- trada na cena intelectual, no fim dos anos sessenta), hoje os indfgenas séo os habitantes do Velho continen- te os colonos so os milhdes de homens que, confor- me a profecia de Houari Boumediene, abandonaram “as partes meridionais pobres do mundo para itrom- 107 per nos espagos relativamente acesstveis do hemisfério Norte & procura de sua prdpria sobrevivéncia”. Colo- nos famélicos sem diivida, mas que, por seu afluxo macigo, estariam em condigdes de submergir e desper- sonalizar os povos europeus. Contrariando os doutrina- rios da expansio colonial, esses prosélitos da identi- dade cultural nao impelem o Outro para fora da hu- manidade pensante. Fazem deles — com todos 0s c dados devidos a sua maneira de ser — os representan- tes de uma outra humanidade. Querem distancia da idéia imperialista de esmagar os particularismos ¢ di- fundir os valores ocidentais sem ter consideragao pela infinita variedade dos costumes humanos: querem sub- trair a Europa a influéncia nociva dos usos estrangei- 10s, preservar a distncia preferencial de sua sociedade em relagio ao mundo exterior. Protegidos por referén- cias etnolégicas, armados com citagées encontradas nas obras de Lévi-Strauss, de Leach, de Berque, lancam “como postulado politico geral que a humanidade exis- te no plural”, que suas diversas verses esto separa- das umas das outras por um abismo intransponivel, que nao existe critério universal em vista do qual se poderia julgar ou hierarquizar suas realizagGes. Con- cluséo: “E uma tragica ilusdo querer fazer coexistir em um mesmo pafs comunidades que tém civilizagSes di- ferentes. © confronto é, pois, inevitavel. Os grandes conflitos nao so conflitos de raca, mas de crenga e de cultura”. 1, Robert Jaulin, citado in Alain de Benoist, “Le totalitarisme raciste” in Eléments, n° 33, fev-mar. 1980, p. 15. 2, Michel Poniatowski, Paris-Maich, 8 nov. 1985, 108 Antes de denunciar esse terceiro-mundismo as avessas e a hipocrisia desse racismo sem raga, lembre- mo-nos de que os préprios etnélogos emprestaram do Romantismo seu conceito de cultura e que se pode mui- to bem reprimir a identidade pessoal perante a identi- dade coletiva ou encarcerar os individuos em seu grupo de origem sem para isso invocar as leis de hereditarie- dade. Para os campedes do vouloir-vivre europeu, 0 di- reito & diferenca nfo é um argumento oportunista, Ao proclamarem a igual dignidade de todas as culturas, nGo se apropriam para fins de propaganda das grandes palayras de seus adversérios, simplesmente recuperam seu bem. E se existe fraude, ela nfo reside senfo no epiteto com o qual fantasiaram sua doutrina. Pois no que diz respeito a fazer funcionar a diferenga, a “nova direita” tem sobre a esquerda imperialista o privilégio da anterioridade. E depois de um purgat6rio de quarenta anos cla estd conyertendo a direita tradicional a seus propési- tos. Uma vez que a imigracéo de uma mao-de-obra desqualificada e barata nfo é mais, com o fim do em- prego pleno, uma vantagem, mas um problema, a mis- tica do Volksgeist reencontra sua vivacidade perdida, genha, de inicio, os adversarios da descolonizagao (que descobrem ¢ difundem a especificidade do Ocidente depois de terem celebrado seu poder assimilador), di- fundem-se nos meios politicos respeitdveis e chega as vezes mesmo a inflectir os atos dos governos*. 3. Exemplo francés: a recente tentativa de reforma do c6digo da nacionalidade. Aparentemente 0 espfrito desse projeto era voluntarista endo diferencialista: para serem francesss, as ceriangas nascidas na Franga de pais estrangeiros, deveriam, 109 Herder esté, pois, presente em tudo. Agora que so levantados os tabus do pés-guerra, ele triunfa sem concorréncia: é ele quem inspira, ao mesmo tempo, a glorificagdo do egofsmo sagrado e sta dentincia mais ‘vecmente, a ctispagao sobre o cu colotivo ¢ a forma que toma o respeito pelo estrangeiro, a agressividade dos xendfobos e a bondade dos xenéfilos, 0 frio convite ao fechamento e ao belo risco de abertura aos outros. Aos que declaram despudoradamente que o espftito da Eu- ropa est4 ameacado de aniquilamento por todos os de- senraizados do Terceiro Mundo e que 0 tinico meio de assegurar 0 desenvolvimento harmonioso das comuni se a lei fosse votada, fazer expressamente o pedido entre dezesseis e vinte e trés anos, Mas nfo podiam aceder & nacio- nalidade francesa os jovens condenados # uma pena superior a seis meses de prisio ou a uma pena qualquer para delitos como golpes e lesdes voluntérias, roubo, uso ¢ tréfico de drogas. Esses indesejaveis se encontratiam imobilizados para sempre em sua dupla natureza de delingiiente e estrangeiro. Sua yontade expressa nao peseva nada contra o principio que produzia todos os movimentos de sua alma e que estando infecta ndo poderia ser francesa. Banidos da comunidade dos homens livres, estavam munidos, bem ou mal, de um passa porte do Norte da Africa, equivalemte técito do passaporte amarelo, Sob o pretexto de ndo fabricar franceses involun- térios, esse projeto reintroduzia como contrabando um es- quema essencial, irredutivel a toda filosofia da yontade. A teoria eletiva da nacio servia de cobertura a um dispositivo juridico cuja finalidade profunda era, ao contrétio, depurar a comunidade nacional, ou seja — velho fantasma do nacio- nalismo étnico — de desembaracé-la do mal ao reprimir a infiltracio dos estrangeiros, Por raz6es politicas, que néo me cabe analisar aqui, essa reforma néo foi concluida. Mas 0 ue importa no plano deste ensaio é que cla péde figurar — em lugar de destaque — no programa de um governo. 110 dades humanas 6 separé-las — os partidérios da hos- pitalidade retorquem com indignacdo: “J& que to- das as formas culturais so também vélidas, nés nao temos o diteito — nds franceses, nés europeus — de nos preferirmos. Nao nos é permitido erigir nossa cé- digo de conduta como norma geral. A consciéncia de nossa particularidade que nos acordou ontem de nos- sa propensio a dominar o mundo, legitima hoje, no contexto novo criado pela imigragao, a transformacéo de nosso universo familiar em uma sociedade pluricul- tural”, Pluricultural: palavra-chave da batalha engaja- da contra a defesa da integridade étnica; conceito fun- damental que op6e o sabor e as virtudes da diversida- de & monotonia de uma paisagem homogénea. Nao confiar nela, entretanto, Por mais condendvel que se- jam suas divergéncias, e por mais tensas que sejam suas relagdes, os dois campos professam 0 mesmo te- lativismo. Os credos se opdem, néo as vis6es de mundo: uns ¢ outros percebem as culturas como totalidades en- volventes ¢ dao a tiltima palavra & sua multiplicidade, Outrora, os dreyfusards spelavam a normas in- condicionadas ou a valores universais contra “a ver- dade francesa” e a razio do Estado. Hoje em dia, en- quanto ressurge a filosofia do antidreyfusisme, seus adversdrios — numerosos, determinados ¢ animados por uma furiosa clogiiéncia — fundam seu combate no fato de que todos os gostos esto na cultura, Nao hé mais dreyfusards. Admitamos, entretanto, que a identidade dos gru- pos humanos provém exclusivamente de sta cultura, no sentido que a UNESCO dé a esse termo: “*O con- junto de conhecimentos e valores que nao é objetivo ii de nenhum ensinamento especffico e que, no entanto, todo membro de uma comunidade sabe”, Suponhamos que a Franca, por exemplo, seja, como escreve Régis Debray, “uma recordagao de infancia”, “um refrao, uma reminiscéncia de espumas e fontes, de cascatas © de abismos”, “um modo de lidar com os motoristas de téxi, as torneiras, os garcons de café, os olhares das ‘mogas e o tempo que passa”, Jamais essa comunidade de automatismos poderd acolher o voto formulado pelo mesmo Régis Debray e transformarem um pafs sem Jules, sem Hippolyte, sem Ernest, um pais pleno de Boris e Ursula, de Djamila e Rachel, Milan ¢ Julio*”. E Hippolyte e nfo Djamila que, tendo nascido no pe- queno bosque normando ou tendo passado todas as suas férias de verdo na casa familiar em Dordogne, é francés até a raiz dos cabelos e com uma espontanei- dade inimitavel. Sao as geragdes de Ernest Jules que deram a Christophe, a Adrien e a Gregoire e no a Mi- lan (Kundera) ou a Julio (Cortézar) seu escarnecimen- to caracteristico, sua vivacidade travessa e ranzinza. Barrés era mais conseqiiente. Sabia que 0 incons- ciente é intratdvel, que nao pode ser nem dividido, nem mudado, nem adquirido — porque precisamente subs- titufa a identidade nacional. Quando ele dizia que se é francés por impregnacio e nfio por adeséo, era para opor aos estrangeiros um indeferimento. E preciso es- colher, com efeito: nao se pode celebrar simultanea- mente a comunicagdo universal e a diferenga no que 4, Debray, La puissance et les reves, Gallimard, 1984, pp. 183- 184, 5, Ibid. p. 186. 112 ela tem de intransmissivel; nao se pode, apés ter rea tado os franceses a seu pais somente pelos lagos da me- méria afetiva, povoar a Franca com pessoas que nao tém acesso a essa meméria e que nfo tim nada em co- mum sengo 0 fato de serem exclufdas. Hé uma con- tradicaio insuperdvel em querer fundar a hospitalidade sobre o enraizamento. UMA PEDAGOGIA DA RELATIVIDADE Das miragens do internacionalismo socialista & incontornavel realidade das culturas: tal é 0 itinerdrio espiritual reivindicado por Régis Debray. Nos tempos herdicos da guerrilha, ele participava da grande insur- reigéo dos povos escravizados contra os mestres do mundo. A época do entusiasmo passou: sem nada re- negar de sua juventude revoluciondria, o antigo com- panheiro de Che Guevara constata hoje que o homem tem raizes, uma genealogia, uma meméria étnica, em suma, que nao se define somente por seus interesses por suas esperancas. Antes de se engajar voluntaria- mente em um combate ou em uma carreira, embarcou bem ou mal, em um destino coletivo; antes de ser in- culto ou culto, burgués ou proletério, é cultural: imer- so, corpo e alma, na imanéncia de sua comunidade, E Debray experimenta por si proprio esse prima- do do grupo arcaico sobre o individuo francés. Francés, no é senfo ilusoriamente senhor de si. Sua conscién- cia € posterior a sua proveniéncia e, portanto, néo pode levar vantagem sobre ela: sua “pessoa profunda nfo é i ‘um bem pessoal, mas patrimonial *”. Ele desejaria que no pudesse subscrever esta bela declaragdo de Mon- tesquieu: “Se eu soubesse de alguma coisa que me foi ‘itil e que foi prejudicial a minha familia, eu a repeliria de meu espirito. Se soubesse de alguma coisa que foi til & minha familia e que nao o foi a minha pétria, ew procuraria esquecé-la. Se soubesse de algo que foi titil a minha patria e que foi prejudicial 4 Europa e ao gé- nero humano, eu a veria como um crime”. Uma tal pro- fissdo de £6, com efeito, inverte “o instinto de grupo, segundo o qual o género humano precede a Europa, que precede a patria, que precede a familia®”, E, se- gundo Debray, o homem se esforgou em vao para liqui- dar a moral do cla: suas maximas universalistas nao so senfo “luxuosas abstragdes””; no fim das contas, © aristocrata cosmopolita é sempre surpreendido pelo camponés, a voz do instinto o leva sempre ao curral. Régis Debray nem por isso renuncia ao ideal de fraternidade. Dé razfo a Barrés contra as Luzes. E, a0 mesmo tempo, combate resolutamente seus sucessores. Situado na confluéneia imaginéria de duas tradigdeo incompativeis — a Franca do solo natal e a Franca terra de asilo — subordina as escolhas étnicas de cada um a seus reflexos étnicos, incitando 0 édio pelo es- trangeiro. A maneira da UNESCO (mas com infinita- mente mais estilo), vai & guerra contra o chauvinismo © contra a segregacio s6 depois de ter feito do homem um ser puramente tribal. 5. Debray, Critique de la raison politique, Gallimard, 1981, p. 206. 6, Tbid., p. 455, 7, Ibid., p. 452, 114 Mas seria injusto estender essa critica a todos os partidétios da sociedade pluricultural. Estes, em sua maioria, recusam-se a se inclinar diante da poténeia do inconsciente coletivo. Nao ha neles nem resignaco ao tribalismo nem lirismo do solo natal. Para evitar que © homem se perca inteiramente em sua cultura, eles insistem, inversamente, na necessidade de contrariar a voz do instinto por uma pedagogia da relatividade. Es- pontaneamente 0 europeu gosta mais da Europa que do resto do mundo, de sua pétria mais que a Europa e mais de sua famflia que sua patria? Educar-se-do, pois, seus teflexos, e ele serd ensinado a vencer suas prefe- réncias naturais, Em 1985, 0 Collége de France remete ao presi- dente da Reptblica um relat6rio intitulado: Propostas para o ensino do futuro, O primeiro dos dez prineipios que uma escola moderna deve subscrever, segundo a institui¢ao académica mais eminente desse pafs, enun- cia-se nestes termos: “A unidade das ciéncias e a plu- ralidade das culturas. Um ensino harmonioso deve po- der conciliar o universalismo inerente ao pensamento cientifico e o relativismo que ensinam as ciéncias hu- manas atentas & pluralidade dos modos de vida, das sa- bedotias, das sensibilidades culturais ™, De acordo com o que pensam os sébios do Colle- ge de France, cabe & escola e, mais precisamente, ao ensino das ciéncias humanas, disciplinar nosso impulso primeiro que tende & negagiio do Outro. Por que as ciéncias humanas? Porque, fundadas sobre a compara- 8. Propositions pour Venseignement de Vavenir, Collige de France, 1985, p. 4. 115 ¢fo, mostram 0 que hé de arbitrério em nosso sistema simbélico. Porque redobram a transmissio de nossos valores pela dentincia de sua historicidade. Porque es- tudar uma obra, através delas, é recuperar 0 autor, prendé-lo em seu particularismo, recolocé-lo em seu contexto, do qual, & primeira vista, parecia ter se eva- dido. Porque na perspectiva delas, a cultura de prest- gio € apenas a expressfio fragmentéria de um campo mais yasto, que envolve a alimentac&o, 0 vestuario, 0 trabalho, os jogos, em suma “todos os hébitos ou apti dées aprendidas pelo homem enquanto membro de uma sociedade””. E porque ao inserir 0 cultivado no cultural, matam dois coelhos de uma cajadada s6: im- pedem-nos ao mesmo tempo de comprazermo-nos com nds mesmos e de conformarmos 0 mundo & nossa ime- gem nos curam do imperialismo e do tribalismo, da crenga de que somos os depositétios titulares do uni- versal e da afirmago agressiva de nossa especificidade. Europeu: essa identidade, sob 0 efeito de seu ensino, no é mais nem uma missdo, nem um motivo de orgu- tho, é um sistema de vida e pensamento modestamente classificado no mesmo nfyel que os outros. E cis Goethe de volta ao exotismo do romance chinés de cujo nfvel acreditava — ingenuamente — partilhar. Com a leitura dessa obra distante, vale lem- brar, Goethe tivera a sensacio embriagante de saltar as 6poces, atravessar as fronteiras, de ceder a um mun- do situado além da diversidade das nacdes. O que ele tinha experimentado nesse livro que 0 acaso pusera sob 9, Lévi-Strauss, Entretiens avec Georges Charbonnier, 10/18, 1961, p. 180. 116 seus olhos era a possibilidade de entrar em contato com homens oriundos de outras civilizagdes sem que a des- coberta das diferengas esgotasse o sentido dessa comu- nicagao. Impiedoses, as ciéncias humanas dissipam es- sa prosimidude ilusdria, intervompem a conversa ¢ de- volvem cada um & sua origem: Herman e Dorotéia para a Alemanha de 1800, e o romance chinés para seu Oriente natal. Com o desaparecimento da distingéio en- tre obra ¢ documento, desaparece também o sonho goethiano da literatura universal. Denegagao paradoxal. Pois ao encarregar as cién- cias humanas de ensinar o relativismo, os sabios do Col- lage de France perseguem 0 mesmo objetivo que Goe- the: persuadir os homens de que “nao existe nenhuma arte patristica, nenhuma ciéncia patridtica”. A finali- dade é idéntica, a divergéncia esté na argumentagao. Segundo Goethe, “‘a arte e a ciéncia pertencem, como todo o bem, ao mundo inteiro ””; por um lado, a bele- za é como os teoremas, estd sempre em movimento, des- taca-se de seu lugar de origem e se oferece generosa- mente an prazer de. todos; a ciéncia, por outro lado, no tem o monopélio da verdade: 0 que distingue os grandes romances dos simples arquivos é que aqueles no so somente materiais para os historiadores, mas formas de investigacdo do mundo e da existéncia. Cen- to e cingiienta anos mais tarde a Universidade rebaixa © romance a arquivo e reserva aos teoremas 0 privilé- gio de se emanciparem do momento de sua emergéncia e da regio da qual foram formulados. Desde as pri- meiras palavras do relatério estabelecido pelo Collége 10. Goethe, Eerits sur Vart, op. cit., p. 50. 117 de France, somos previnidos: € na ciéncia ¢ somente na cigncia que o homem se alga além dos esquemas perceptivos depositados nele pela coletividade da qual membro. Quanto ao resto — costumes, instituigdes, crencas e produgdes intelectuais € urtisticus — perma nece atado A sua cultura, Dissidente ou conformista, lirico ou escarnecedor, é a parte de um todo, o elemen- to de um sistema, o cantor de sua comunidade: 0 or- gulho e a violéncia nascem com o esquecimento dessa sujeicdo originéria, Um idiotismo que aspira & univer- salidade; uma provincia que se quer igualar ao mundo; um momento que se pretende eterno; uma diferenga que se cré um valor absoluto: eis o deslize culpavel, que as ciéneias humanas devem constantemente reme- diar. Em suma, nfo existe mais universal concreto a0 lado do universal abstrato, do qual os mateméticos for- necem 0 modelo? Flaubert nao é mais um “explorador da existéncia “", mas como Proust ou Cervantes, o re- velador de uma situagio, de uma regio, de uma cul- tura, e a beleza que Goethe dotava do maravilhoso po- der de trait a patria ao se dar para o mundo inteiro é doravante essa idéia patridtica por exceléncia que ele- va & dignidade de arquétipo uma forma episddica e local. Se se quer pér um fim no patriotismo, na arte, é preciso, pois, repatriar as obras, devolvé-las a0 grupo (étnico ou social) cuja especificidade exprimem. FE pre- ciso desaprender a classificar, a privilegiar, a hicrar- quizar. E preciso dispersar a beleza e a verdade (pelo menos a que nio traz a marca da pesquisa) ¢ dissolver, 11, Tomo de empréstimo essa expresso de Milan Kundera, Lart du roman, Gallimard, 1986, p. 63 118 assim, os dois componentes do valor na abundancia das “sensibilidades culturais”. E para extirpar, assim como Goethe, o chauvinis- mo da cultura, que se pede ao ensino do amanha para converter, como Herder, a literatura em folclore. Cha- mado & ordem da diferenca, eu, Ernest, Hippolyte ou Jules, no me exponho mais, ocupo, sem ultrapassar, 0 lugar que me é concedido no mundo. Consciente de que meus julgamentos tém uma histéria e um territério, ascendendo pelo saber 4 variedade dos patriménios, contento-me em ser 0 que sou. O que da, ao mesmo tempo, a Milan, a Julio, a Djamila, a Boris e a Rachel espago para existir fora de mim ou mesmo, quando a conjuntura o exige, ao mett lado. Os sabios do Collége de France permanecem fiéis ‘ao espirito da descolonizacio. Contrariamente a Régis Debray, nao adulam 0 nacionalismo francés ou o par- ticularismo europeu, eles o estigmatizam. Como ele, entretanto, quebram a continuidade cultural da huma- nidade ”, com o tinico e nobre designio de favorecer a aproximagao entre os homens. A CULTURA AOS PEDACOS O ensino do amanha quer “romper com a visio etnocéntrica da humanidade que faz da Europa a ori- gem de todas as descobertas e de todo o progresso™”. Essa vontade parece inscrever-se na grande tradi¢&o 12. Tomo de empréstimo essa expressio de Leszec Kolakowski, Leesprit révolutionnaire, Complexe, Bruxelas, 1978, p. 79. 15. Propositions pour Venseignement de l'avenir, op. cit., p. 12, 119 critica inaugurada na Europa com o advento dos Tem- pos Modernos. "Estamos todos obrigados a nés, em nds amontoados e temos a vista limitada ao comprimento do nariz”, j4 dizia Montaigne que conferia precisamen- te & educacdo o papel de retificar essa miopia constitu- tiva e de desfazer, pelo aprendizado da diivida, a ade- so esponténea do ser a seu cfroulo natal, Mas as aparéncias, as yezes, enganam: procla- mando a intransponivel pluralidade das culturas, ex- cluindo a ciéncia e somente ela da lei da relatividade, © relatério do Collége de France repudia o espfrito dos Tempos Modernos — sob a égide dos valores de davida e de tolerdncia, que so seu produto. A tolerancia versus o humanismo: assim se pode- ria resumir 0 paradoxo de uma critica do etnocentrismo que leva a centrar todo o indivfduo em sua etnia. S6 falar de cultura no plural é recusar aos homens de épocas diversas ou de civilizagdes distantes a possibili- dade de se comunicar em torno de significagdes pen- sdveis e de valores que se elevam além do perfmetro no qual surgiram. Longe de nogar cssa possibilidade, os Tempos Modernos a tinham transferido da religiéo para a cultura. Como escreve de maneira justa Milan Kundera: “Nos Tempos Modernos, quando o Deus medieval se transformou em Deus absconditus, a reli- gido cedeu o lugar & cultura que se transformou na rea- lizagao dos valores supremos pelos quais a humanidade européia se compreendia, se difundia, se identifica. va", Com a idéia de literatura mundial, o proprio 14, Kundera, “Un Occident kidnappé”, Le Débat, n° 27, nov. 1983, p. 17. 120 om Goethe nao fazia senfo reivindicar o privilégio de uni- versalidade outrora reservado & palavra divina para as mais belas obras do mundo. Deus se eclipsava, mas nao “o dom, talyez sobrenatural, de ver o homem ab- solutamente semelhante ao homem sob a diversidade das tradigdes hist6ricas que cada um continua *”, Ao mesmo tempo que 0 livro dos livros era destitufdo de stia maitiscula e reduzido & categoria de um livro a mais entre os outros, toda literatura — incluindo a Bfblia — tornava-se 0 espaco onde se operava a jungao entre as consciéncias estrangeiras, onde se inscrevia a apti- dao do espfrito em atravessar a hist6ria sem se abismar nela completamente. Profanacaio do texto revelado pela pesquisa critica, as ciéncias, o livre exerefcio do enten- dimento; promogao da literatura que, por sua vez, ates- ta a unidade do género humano ¢ a derrota dos parti- cularismos. Fim dos tempos biblicos por meio da substi- tuigo da tradicao pela argumentagio e da autoridade religiosa pela liberdade do espirito, Continuagio dos tempos biblicos pelo poder do desentaizamento confe- rido A palavra "”. No século dos nacionalismos, a Franca — este foi o seu grande mérito e sua originalidade — recusou o enraizamento do espfrito. Essa fidelidade ao universal 15, Lévinas, Difficile liberté, Albin Michel, 1976, p. 232. 16. Ao fazer 0 elogio da tradugéio (“uma das atividades mais importantes © mais dignas no intercdmbio mundial univer- sal”), Goethe se refere nominalmente ao exemplo da Biblia: “Quanto A empresa gigante da sociedade biblica, 0 que & ela sen a transmissio da Biblia a cada povo, em sua pro- pria lingua e em sua propria particularidade?”. (Borits sur Vart, op. cit., p. 265.) 121 causava admiragfo, ainda recentemente, em Gombro- wicz. Ele a dava como exemplo a seus compairiotas fascinados pela “‘polonidade” e se extenuando para se tornarem eles préprios produtos 0 mais embleméticos possivel de sua histéria coletiva: “Um francés que nfo leva nada em consideragéo fora da Franga é ele mais francés? Ou menos francés? De fato ser francés é justa- mente levar em consideragio outra coisa além da Franca”, Frase admirdvel e que explica a atraco que a Franga exerceu por longo tempo sobre os estrangei- ros perseguidos em seus paises pela bobagem odiosa do Volksgeist. Se, por exemplo, Emmanuel Lévinas, a0 deixar a Lituania em 1923, escolheu fazer seus estudos na Universidade de Estrasburgo, é porque “a Franca € um pais onde 0 apego as formas culturais parece equi- valer ao apego & terra ™”, A Franga nao se reduz a fran- cidade, seu patriménio nao se compée essencialmente de determinagSes inconscientes ou modos de ser tfpicos ou hereditérios, mas de valores que se oferecem & inte- ligéneia dos homens, e o proprio Lévinas tomouse francés pelo amor a Molire, a Descartes, a Pascal, a Malembranche — a obras que nao testemunham nada de pitoresco, mas que levando em consideragio outra coisa além da Franga, so contribuigées originais & li teratura universal ou a filosofia. Esso ideal est hoje em vias de desaparecimento. A humildade termina a tarefa que a arrogéncia nacio- nalista no soubera jamais levar a termo, e, onde a 17. Gombrowiez, Journal 1957-1960, Denoel, 1976, p. 25. 18. Lévinas, “Portrait”, in Les nouveaux cahiers, n° 82, outono 1985, p. 34. 122 doutrina da “Tetra dos Mortos” havia malogrado, os partidétios da sociedade pluricultural so bem-suce- didos: para permitir a0 Outro desdobrar seu ser sem obstdculos, dobram sua naclo sobre seu espfrito sin- gular, definem a Franga (c, por extensio, a Europa) por stia cultura e nfo mais pelo lugar central que a cultura supostamente ocupa, conferem a seu povo uma fisionomia distintiva e demostram-Ihe com obstinagéo que, dessa diferenga, nfo devem tirar nenhum orgulho. Vivemos 0 epflogo simulténeo dos Tempos Bibli- cos ¢ dos Tempos Modernos? Responder, em todo cas “Somos apenas uma cultura”, nfo é uma réplica a afir- magio gloriosa e vingativa da identidade cultural, ¢ uma capitulagio, Em seu cuidado em tomar o Velho Mundo enfim acolhedor, os apéstolos da coabitagao das culturas destroem conscienciosamente o espfrito delas: 0 que deixa & Europa somente o atrativo de sua prosperidade. O DIREITO A SERVIDAQ Outra caracteristica dos Tempos Modernos euro- peus: a prioridade do individuo em relagao & sociedade da qual 6 membro, As coletividades humanas nao sio mais concebidas como totalidades que conferem aos seres uma identidade imutdvel, mas como associagdes de pessoas independentes. Essa grande inversio néo anula as hierarquias sociais, modifica profundamente 0 olhar que dirigimos para a desigualdade. A sociedade individualista continua composta de ticos e pobres, de senhores e servos, mas — e esta mutagéio é em si revo- 123 lucionéria — nao h4 mais diferenga de natureza entre eles: “Que um comande, mas que esteja claro que poderia ser outro, que esteja entendido e assinalado que ndo é de maneira alguma, em nome de uma supe- riotidade intrinseca e encarnada, que se exerce a auto- ridade ””. Definidos até entao por sett lugar na ordem social, os individuos, repentinamente, saem da classificagao. Que se tornem todos sem casta e conquistem, diz so- berbamente Ernst Bloch, “o direito de rejeitar sua libré””. O hdbito nao faz mais o monge: ao cessar de ser identificado a seu status, arrancado de seu cla, de sua corporagdo, de sua linhagem, 0 homem aparece em sua nudez original. E perdendo o contato com toda referéncia religiosa que os Tempos Modernos cumprem a revelagdo biblica: existe apenas uma humanidade. A noo de Volksgeist, como j4 foi dito, foi for- jada com o propésito explicito de por um fim a esse escindalo e reabilitar os individuos: persas, franceses, espanh6is ou alemaes, temos todos uma libré nacional © somos obrigados, no interlor de nossa nagéo, a cumprir escrupulosamente a tarefa que nos destinou a histéria, Mediante a substituigéo do direito divino pelo direito histérico, a totalidade realiza, assim, sua revanche: 0 que esté fora da casta é reintegrado, cada um recoloca seu uniforme. A alternativa, entéo, € simples: ou os homens tém direitos ou tém uma libré; ou podem se libertar de 19. Marcel Gauchet, “Tocqueville, L’Amérique et nous”, in Libre, n° 7, 1980, p. 95. 20, Ernst Bloch, Droit naturel et dignité humaine, Payot, 1976, p. 158, 124 uma opressio, e sobretudo se seus ancestrais j4 a softiam, ou é sua cultura que tem a tiltima palavra, e como diz Marx, o seryo acoitado pelo chicote deve imperativamente engolir seus gritos de rebelido e softi- mento, “a partir do momento em que o chicote for um chicote carregado de anos, hereditatio e hist6rico*™” Hoje em dia essa opgdo estd turvada: os partidé- rios da sociedade multicultural reclamam pata todos os homens 0 direito a libré. Em seu louvavel desejo de devolver a cada um sua identidade perdida, fundem duas escolas de pensamento antagénico: a do direito natural e a do direito hist6rico, e — proeza singular — apresentam como a diltima liberdade individual o primado absoluto da coletividade: “Ajudar os, imigra- dos ¢, de infcio, respeitd-los tais como sao, tal.como concebem sua identidade nacional, sua especificidade cultural, seus enraizamentos esp: Existe uma cultura onde se inflige aos delingiien- tes castigos corporais, onde a mulher estéril é repudia- da, e a mulher adéltera, punida com a morte, onde © testemunho de um homem yale o de duas mulheres. onde uma irmé apenas obtém a metade dos direitos de sucessio destinados a seu irmao, onde se pratica fa excisfio, onde os casamentos mistos so proibidos e a poligamia autorizada? O amor pelo préximo requer expressamente o respeito a esses costumes. O servo deve poder beneficiar-se do chicote: priva-lo dele seria mutilar seu ser, atentar contra sua dignidade enquanto 21. Marx, “Pour une ctitique de la philosophie du droit de Hegel”, Oeuvres IH, Gallimard, col. La Pléiade, p. 384. 22, Pore M, Lelong, citado in Sadek Sellam, “Btre musulman en France", Etudes, maio 1986, p. 586. 125 homem, em suma, dar prova de racismo. Em nosso mundo privado da transcendéncia, a identidade cultu- ral cauciona as tradigdes barbaras que Deus nfo esté mais em condigdes de justificar. Indefensével quando evoca 0 céu, 0 fanatismo nio pode scr criticado quando se vangloria de sua antigiiidade ¢ de sua diferenga. Deus esté morto, mas o Volksgeist é forte. Entretanto, foi contra o direito de progenitura, costume fortemente enraizado no solo do Velho Continente, que os direitos do homem foram instituidos, foi as custas de sua cul- tura que 0 individuo europeu conquistou, uma a uma, todas as suas liberdades, foi, enfim, e mais geralmen- te, a critica da tradicio que constituiu o fundamento espiritual da Europa, mas isso a filosofia da descolo- nizagdo nos fez esquecer, a0 nos persuadir de que o individuo nada mais ¢ que um fenémeno cultural. “A Europa”, escreve Julien Benda em 1933, “seré um produto de vosso espirito e néo um produto de vosso ser. E se v6s me respondeis que nao acreditais na autonomia do espirito, que vosso espfrito nfo pode ser outra coisa sendo um aspecto de vosso ser, entfio eu vos declaro que nio fareis jamais a Eu- ropa. Pois nao existe Ser europeu™”, Com a prova do Outro, colocar em questo 0 ser tornow-se 0 signo dis- tintivo de um ser particular, de uma etnia precisa; a recusa de assimilar o que é bom ao que é ancestral apa- rece. como um traco de civilizacdo; a revolta contra a tradigao se transformou em costume europeu. Um grande nimero de europeus reconheceu que a Europa, © somente a Europa, fez do individuo um valor supre- 23, Benda, Discours a la Nation européenne, Gallimard, col. Idées, 1979, p, 71. 126 mo. Mas desculpam-se em seguida: “nfo ha do que se envaidecer. Por termos querido conformar o planeta de acordo com nossos caprichos, cometemos muitos danos irrepardveis. O tempo das cruzadas acabou; nao forcaremos mais ninguém a adotar a nossa percepgdo da vida social”. Envergonhados da dominago exercida por tanto tempo sobre os povos do Terceito Mundo, juram ndo mais recomecar e — resolugdo inaugural — decidem nao thes impor os rigores da liberdade & euro- péia. Com medo de serem violentos com os imigrados, os confundem com a libré que Ihes confeccionou a hist6ria, Para permitirlhes viver como Ihes convém, recusam-se a protegé-los contra os prejuizos ou abusos eventuais da tradigio da qual dependem. A fim de atenuar a brutalidade do desenraizamento, remetem- nos de pés e punhos atados, & discri¢ao de sua comu- nidade, e chegam, assim, a limitar a esfera de agao dos direitos do homem aos homens do Ocidente, acredi- tando ampliar esses direitos até inserir neles a facul- dade deixada a cada um de viver sua cultura. Nascido do combate pela emancipagao dos povos, © relativismo desemboca no elogio & servidio, Quer dizer que € preciso voltar as velhas receitas assimilacio- nistas, e separar os recém-chegados de sua comunidade étnica? O prego a pagar pela integragio deve ser a dissolugao de toda consciéncia coletiva? De forma al- guma, Tratar o estrangeiro como individuo e nfo obri- gélo a copiar suas condutas das maneiras de ser que vigoram junto aos autéetones, e poder-se denunciar a desigualdade entre homens e mulheres na tradiaio islamica sem com isso revestir os imigrantes mulgu- manos de uma libré de empréstimo, nem destruir seus 127 lagos comunitérios. Somente os que raciocinam em termos de identidade (e portanto de integridade) cul- tural pensam que a coletividade nacional, para sua propria sobrevivéncia, tem necessidade do desapareci- mento das outras comunidades, Quanto a si, 0 espirito dos Tempos Modernos europeus se acomoda muito bem a existéncia das minorias nacionais ou religiosas sob a condig&o de que sejam compostas de acordo com o modelo da nag, de individuos iguais e livres. Essa exigéncia torna ilegal todos os usos — ineluindo aque- les cujas rafzes se enterram mais profundamente na hist6ria — que ridicularizam os direitos elementares da pessoa. E inegével que a presenga de um ntimero crescen- te de imigrantes do Terceiro Mundo na Europa acat- reta problemas inéditos. Esses homens impelidos para fora de seus paises por causa da miséria e, o que € pior, traumatizados pela humilhagdo colonial, nfo podem experimentar, no que concerne ao pafs que os acolhe, a atragéo e a gratidfo que experimentam em sua maioria os refugiados da Europa oriental. Invejada por suas tiquezas, odiada por seu passado imperialista, sua terra de acolhimento nao é uma terra prometida. Con- tudo, uma coisa é certa: nfo é fazendo da abolig&o dos privilégios a prerrogativa de uma civilizagdo, nao ¢ reservando aos ocidentais os beneficios da soberania individual e do que Tocqueville chama “a igualdade de condigdes” que se caminharé em diteco da reab- sorgio dessas dificuldades. 128 Parte IV Nés somos 0 mundo, NOs somos as criangas UM PAR DE BOTAS VALE TANTO QUANTO SHAKESPEARE Os herdeiros do “terceiro-mundismo” no so os tinicos a preconizar a transformacdo das nagdes euro- péias em sociedades multiculturais. Hoje, os profetas da pés-modernidade pregam 0 mesmo ideal. Mas en- quanto os primeiros defendem, face & arrogancia oci- dental, a igualdade de todas as tradigGes, os segundos generalizam 0 emprego de uma nogdo que surgiu hd alguns anos no mundo da arte para opor as vertigens da fluidez as virtudes do enraizamento. O ator social pos-moderno aplica na sua vida os prinefpios que os arquitetos ¢ os pintores usam em seu trabalho; substi- tui como eles, os antigos exclusivismos pelo ecletismo; recusando a brutalidade da alternativa entre academi- cismo e inovagSo, mistura soberanamente os estilos; no lugar de ser isto ou aquilo, cléssico ou vanguarda, 131 burgués ou boémio, une & sua mancira as predilecdes mais disparatadas, as inspiracdes mais contraditérias; leve, mével e nao preso a um credo e paralisado em um dominio, gosta de passar sem obstéculos de um restaurante chinés a um clube antilhano, do cuscuz ao cassoulet, do jogging & religiéo ou da literatura A asa- delta. Brilhar é a palavra de ordem desse novo hedo- nismo que rejeita tanto a nostalgia quanto a auto-acusa- ¢40. Seus adeptos ndo aspiram a uma sociedade autén- tica, na qual todos os individuos viveriam confortaveis em sua identidade cultural, mas a uma sociedade poli- morfa, a um mundo matizado que colocaria todas as formas de vida & disposigao de cada individuo. Pregam menos 0 direito 4 diferenca que a mesticagem genera- lizada, o direito de cada um em vez da especificidade do outro, Uma vez que para eles multicultural significa bem abastecido, nao sao as culturas enquanto tais que apreciam, mas sua versfo edulcorada, a parte delas que podem testar, saborear e descartar apés 0 uso. Consu- midores ¢ nao conservadores das tradigées existentes, € o “cliente-rei” que neles tripudia diante dos obsta- culos postos ao reino da diversidade pelos idedlogos vetustos ¢ rigidos, “Todas as culturas séo igualmente legitimas tudo é cultural”, afirmam em unfssono os filhos mi- mados da sociedade da abundancia e os detratores do Ocidente. E essa linguagem comum abriga dois pro- gramas rigorosamente antinémicos. A filosofia da des- colonizagio retoma por sua conta o andtema dirigido & arte ¢ ao pensamento pelos populistas russos do sé- 132 culo XIX: “Um par de botas vale mais que Shakes- peare”, Além de sua superioridade evangélica, além do fato, dito de outra maneira, de que protegem os desa- fortrmados contra o frio de maneira mais eficaz que uma pega elisabetana, pelo menos as botas nao mentem: elas se dio, de uma s6 vez, pelo que séo: modestas emanag6es de uma cultura particular — em vez de como as obras de arte oficiais, dissimular piedosamen- te suas origens e constranger todos os homens a respei- té-las. E essa humildade é um exemplo. Se a arte nfo quiser perseverar na impostura, deve dar as costas a Shakespeare e se aproximar, tanto quanto possivel, do par de botas. Essa exigéncia se traduz na pintura pelo minimalismo, ou seja, pelo desaparecimento tenden- cial do gesto criador e pela aparigio correlativa, nos museus, de obras quase indiscerniveis dos objetos ¢ mesmo dos materiais cotidianos. Quanto aos escritores, devem adotar os cfnones desta literatura que é deno- minada menor, porque nela, diferentemente dos textos consagrados, é a coletividade que se exprime © nao © individuo isolado em seu génio, separado dos outros por sua pseudo meestria: terrivel ascese, e que além disso, desfavorece os autores que pertencem as nagées cultivadas. Para chegar ao par de botas, tém um ca- minho mais longo a percorrer que os habitantes dos paises subdesenvolvidos. Mas coragem! “Mesmo aquele que tem a infelicidade de nascer no pais de uma grande literatura deve escrever em sua lingua como um judeu tcheco escreve em alem&o ou como Ouzsbek escreve em russo. Escrever como um cio que cava seu buraco, um rato que faz sua toca. E, para isso, encontrar seu ww préprio ponto de subdesenvolvimento, sew prdprio dis Ieto, seu préprio terceiro mundo, seu proprio deserto " Esse niilismo classificador dé lugar, no pensa- mento pés-moderno a uma mesma admiragio pelo autor do Rei Lear e por Charles Jourdan. Com a condigao de que traga a assinatura de um grande estilista, um par de botas equivale a Shakespeare. E tudo em con- formidade: historias em quadrinhos que combinem uma intriga palpitante com belas imagens equivalem um romance de Nabokov; aquele que as lolitas léem equivalem a Lolita; um slogan de publicidade eficaz equivale a um poema de Apolinaire ou de Francis Ponge; um ritmo de rock equivale a uma melodia de Duke Elligton; um belo jogo de futebol equivale a uma coreografia de balé de Pina Bauch; um grande costureiro equivale a Manet, Picasso, Michelangelo; & pera de hoje — “a da vida, do clip, do jingle, das pequenas mensagens publicitérias”’ — equivalem muito bem Verdi ou Wagner. O jogador de futebol (© coredgrafo, 0 pintor e o costuteiro, 0 esctitor e 0 idealizador, 0 mésico e 0 roqueiro so, da mesma ma- neira, criadores, £ preciso acabar com 0 preconceito escolar que reserva essa qualidade a alguns e que mer- gulha outros na subcultura. ‘Assim, 0 empobrecimento do sapateito se opde & vontade de humilhar Shakespeare. Néo € mais a grande cultura que é dessacralizada, implacavelmente rebaixada ao nivel dos gestos cotidianos executados na 1, Deleuze-Guattari, Kafka, Editions de Minuit, 1975, p. 33 (Grifo do autor). 2, Jacques Séguéla, in Le point, 24, fev., 1986. 134 sombra pelo comum dos mortais — é 0 esporte, a moda, o lazer que forcam as portas da grande cultura. A absorgéo vingadora ou masoquista do cultivado (a vida do espfrito) pelo cultural (a existéncia ordinéria) € substitufda por um tipo de confusio alegre que eleva a totalidade das prdticas culturais 4 categoria das grandes criagdes da humanidade. Inutilmente as palavras sio as mesmas, pois o pensamento pés-moderno rompe completamente com a filosofia da descolonizagao. A seus olhos os “tercei- ro-mundistas” séo vitivos inconsoldveis da época au- toritéria, tal qual os defensores da pureza racial ou da integridade cultural. Alguns (de Herder a Lévi-Strauss) querem testituir aos homens sua libré perdida; outros (de Goethe a Renan) nao os convidam a se desfazer dela sendo para os comprimir em um uniforme: de que serve, com efeito, revogar a Tradiggo, se é para impor em seu lugar a autoridade indiscutivel da Cul- tura? Entre um Barrés que encurrala os individuos em sua especificidade e um Benda que hes prescreve, de onde quer que venham, 0 mesmo percurso canénico ritualmente pontuado de estagdes obrigatérias — onde esta o progresso? O anti-racismo pés-moderno desatua- liza ao mesmo tempo Benda, Barrés e Lévi-Strauss e opde a todos os trés este novo modelo ideal: 0 individuo multicultural. “A nogao de identidade ganhou mais com- plexidade. Nossas rafzes esto fincadas em Montaigne estudado na escola, Mourosie a televisio, Touré Kunda, © reggae, Renaud e Lavilliers. Nao nos colocamos mais a questo de saber se perdemos nossas referéncias cul- turais pois temos diversas, ¢ temos em comum a chance de viver em um pafs que é uma encruzilhada e onde 135 a liberdade de opiniéo e de consciéneia é respei tada®...” Eilo prevenido: se voc pensa que a confusio mental nunca protegeu ninguém da xenofobia, se voc’ se obstina em manter uma hierarquia severa de yalo- res; se reage com intransigéncia ao triunfo da indisct- Go; se Ihe € impossivel selar com a mesma etiqueta cultural o autor dos Ensaios e um imperador da tele- visfio, uma meditaco concebida para despertar o espf- rito e um espetdculo feito para embrutecé-lo; se nao quer, mesmo que um seja branco e outro negro, por um sinal de igualdade entre Beethoven e Bob Marley, € porque pertence ao campo dos canalhas e dos impo- tentes, Vocé é um militante da ordem moral e sua ati- tude 6 trés vezes criminosa: voc8 & puritano, priva-se de todos os prazeres da existéncia; despético, fulmina aqueles que, tendo rompido com sua moral do ment tinico, escolheram viver a la carte; tem apenas um desejo — frear a marcha da humanidade em busca da autonomia; enfim, partilha com os racistas a fobia da mistura ¢ @ prética da discriminacdo: no lugar de en- coraji-la, résiste & mesticagem ‘, 3. Harlem Désir, in Espaces 89, Liidentité francaise, Editions Tierce, 1985, p. 120. Harlem Désit é 0 presidente da orga- nizagdo 8.0.8, Racisme, que surgiu na Franga em 1984. 4, Essa chantagem funcionou plenamente nas grandes manifes- tagdes de estudantes que se desenrolaram em novembro de 1986, em Paris. Quando um editorialista nfo teve medo de afirmar que os estudantes estavam acometidos de “Aids men- tal”, Jack Lang, 0 antigo ministro da Cultura, muito popular entre a juventide, retorquithe: “E isto, pois, a cultura Chirac-Hersant: o desptezo pelos jovens, o édio pela misica, pelo rock, por Coluche e Renaud”, Coluche ¢ Renaud fazem 136 © que quer o pensamento pés-moderno? A mesma coisa que as Luzes: tornar 0 homem independente, tra- té-lo como adulto, em suma, para falar como Kant, ti rélo da condicao de minoridade da qual ¢ ele préprio © responsdvel. Com alguma nunca, a cultura néo mais considerada como o instrumento de emancipagéo, mas como uma das instancias tutelares que Ihe ape- recem como obstéculo. Nessa ética, os individuos terfio dado um passo decisive em direcdo & sua maioridade no dia em que o pensamento cesar de ser um valor supremo e tornar-se to facultativo e tio legitimo quanto uma terca ou o rock’n’roll: para entrar efeti- vamente na era da autonomia 6 preciso que transfor- memos em opedes todas as obrigagdes da época auto- ritéria, O elitismo continua sendo o inimigo, mas o signi- ficado da palavra é sub-repticiamente invertido. Ao dizer: “E preciso fazer pela cultura 0 que Jules Ferry fez pela instrugéo”, André Malraux se inscrevia expli- citamente na tradigao das Luzes e queria generalizar © conhecimento das grandes obras humanas; hoje, os livros de Flaubert retinem, na esfera pactfica do lazer, os romances, as séries de televisdo e os filmes 4gua- parte da cultura? A mésica, o rock, so as mesmas coisas? O rock 6 a forma moderna da mrisica ou sua regressio a um simplismo absoluto de um ritmo universal? Imposstvel dora- vante colocar estas questdes e criticar ao mesmo tempo as violéncias policiais ou o delirio metaférico de um doutrinétio em apuros, Entre o rock e a repressfio é preciso fazer sua escolha, HA pouco, o espitito defendia seus direitos contra a apologia fascista da forca bruta; hoje esté impedido de o fazer em nome do antifascismo, 137 com-agticar nos quais se inebriam as encarnagdes con- tempordneas de Emma Bovary, e 0 que é elitista (por- tanto intolerdvel) nao é recusar a cultura aos povos, € recusar a marca cultural a qualquer distracio que seja. Vivemos 0 momento dos feelings: ndo ha mais nem verdade nem mentira, nem esteredtipo nem in- vengdo, nem beleza nem fealdade, mas uma mirfade de prazeres, diferentes e iguais. A democracia que im- plicava o acesso de todos & cultura se define doravante pelo direito de cada um a cultura de sua escolha (ou a nomear cultura 0 impulso do momento). “Deixe-me fazer de mim o que eu quiser”: ne- nhuma autoridade transcendente, histérica ou simples- mente majoritéria pode modificar as preferéncias do sujeito pés-moderno ou dirigir seus comportamentos. Munido na vida de um telecomando como diante de seu aparelho de televisio, ele compée seu programa com o espirito sereno sem se deixar mais intimidar pelas hierarquias tradicionais. Livre, conforme o sen- tido dado por Nietzsche que diz que nfo mais se en- vergonhar de si é a marca da liberdade realizada, pode largar tudo e abandonar-se deliciosamente 20 imedia- tismo de suas paixGes elementares. Rimbaud ou Renaud, Léyinas ou Lavilliers — sua selegio é automa- ticamente cultural. Certamente, 0 ndo-pensamento sempre coexistiu com a vida do espirito, mas é a primeira vez na hist6- ria européia que ele habita o mesmo vocdbulo, que usu- frui do mesmo estatuto e que so tratados de racistas 5. André Bercoff, Manuel d’instruction civique pour temps in- governables, Grasset, 1985, p. 86 et passim, 138 ou reacionérios aqueles que em nome da “‘alta cultura” ousam ainda chamé-lo pelo seu nome. Sejamos claros: essa dissolucio da cultura no todo cultural nao acaba com o pensamento nem com a arte. E precico no ceder ao lamento nostdlgico pela idade do ouro, onde as obras-primas existiam aos montes. Velho como o ressentimento, desde suas origens, esse lugar-comum acompanha a vida espiritual da huma- nidade, O problema com o qual nos confrontamos é diferente e mais grave: as obras existem, mas, uma vez que as fronteiras entre a cultura e o divertimento nao so mais claras, ndo hd lugar para acolhé-las e dar-lhes sentido. Elas flutuam, pois, absurdamente, em um es- pago sem coordenadas ou balizas. Quando o édio pela cultura torna-se ele proprio cultural, a vida com o pensamento perde todo significado. Quando ouviu falar pela primeira vez de um cavalo de corridas genial, o homem sem qualidades de Musil, Ulrich, renunciou definitivamente a suas am- bigdes. Ele era entdo (1913) um cientista promissor, uma jovem esperanca da reptiblica dos espfritos. Mas para que perseverar? “Em sta juventude enclausurada, Ulrich ouvira falar muito pouco de mulheres e cavalos, escapata de tudo isso para tornar-se um grande homem, e eis que no momento mesmo em que, apés esforgos varios, talvez tivesse podido se sentir préximo do ob- jetivo de suas aspiracdes, o cavalo que o tinha prece- dido saudava-o de la*...”. Menos radical que seu herdi, Musil escreveu os dois primeiros volumes de O homem sem qualidades. 6. Musil, L’homme sans qualités, 1, Seuil, 1979, p. 51. 139

S-ar putea să vă placă și