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Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 247-257, 1.sem. 1989. NATURAL, RACIONAL, SOCIAL: DISCUSSAO DE UMA SOCIABILIDADE Maria Helena Oliva Augusto* Comentério critico da obra de Made! Therezinha Luz ~ Natural, racional, social: razio médica ¢ racionalidade cientffica moderna, Rio de Janeiro, Campus, 1988. A obra que € objeto deste comentério examina a Medicina e a Sociologia co- mo formas de manifestagdo da racionalidade cientifica moderna, seu miituo suporte filos6fico, politico ¢ conceitual, ¢ suas repercussées na cultura e nas instituigdes sociais, através da discussao de certas concepgées, teorias e categorias estratégicas, consideradas biossociais, por se referirem a ambos os domfnios do conhecimento. * Professora do Departamento de Sociologia - FFLCH-USP, Coordenadora do Nécleo Temético Satide e Sociedade, do mesmo Departamento. 248 AUGUSTO, Maria Helena Oliva, Natural, racional, social: discustéo de uma sociabilidade. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, (1): 247-257, I.sem. 1989. Comentfrio erftico da obra de Madel ‘Therezinha Luz. Natural, racional, social: razio médica ¢ racionalidade cientffica moderna. Rio de Janeiro, Campus, 1989. Enfatizando 0 caréter histérico da racionalidade cientffica e tentando dimensionar criticamente sua modemnidade, a autora pretende explicitar alguns de seus tragos “‘es- truturais"” ou “constitutivos”’, perceptiveis pela andlise sécio-histérica. Pretende, tam- bém, discutir (‘‘mexer com”) alguns dos pressupostos bésicos dessa racionalidade cien- tffica, em especial ‘‘sua ‘neutralidade’ em face da histéria, e sua ‘independéncia’ em fa- ce das paixdes do sujeito”. Ao mesmo tempo, procura “‘aquela encruzilhada (...) em que verdade € paixo, razio e emocao, sentimentos e vontade, beleza e sentidos, se deram adeus” € manifesta o intuito de “ajudar a restaurar (...) essa unidade que conferiré a0 homem a felicidade de ser plenamente humano” (p. VIII e EX). Revelam-se, nesta declaragio de intencées, inquietudes bastante atuais e, também, alguns elementos polémicos do trabalho em foco. E importante, entretanto, antes de en- trar em sua discussio, salientar os momentos mais expressivos do desenvolvimento do texto. “O que se pretende fazer aqui é, antes de tudo, uma anélise sécio-histérica da ra- cionalidade cientifica moderna, de seus efeitos politicos, de sua insercao ¢ intervengo na vida social”, através do exame de um niicleo de categorias € conceitos estratégicos — racional, natural, social e vida, satide e doenca — comuns a duas disciplinas do social, a medicina e a sociologia, “que emergem historicamente num mesmo campo de repre- sentagdes sociais ¢ de formulagées tedricas disciplinares, num perfodo de tempo conti- giio, sendo continuo” (p. 2 € p. 6). Definida como racionalidade inaugural, a racionalidade cientifica moderna deve ser vista como 0 avanco hist6rico de uma forma especifica de racionalismo, filos6fico e social, que vem sendo moldada de Copémico aos atuais tecnocratas da ciéncia e € con- tempordnea da fase avangada do Renascimento (século XVI), no qual emerge também a representagdo do individuo como forca criativa independente, como sujeito de mudanga, pessoal € social. Funciona, ao mesmo tempo, como estrutura de explicacao ¢ ordenagao dos seres e do mundo, e como principio moral das relagdes dos homens entre si e com as coisas. Tanto quanto essa racionalidade, 4 qual estao referidas, as categorias em exame — a0 mesmo tempo, médicas € sociolégicas — sio representativas de um tipo especifico de sociabilidade e esto profundamente mescladas a politicas ou instituigGes sociais que a sustentam e singularizam, visando a normalizacao dos sujeitos ¢ a constituigao ou a re- produgiio de certas relacées sociais. A separacio entre Deus, 0 homem e a natureza é um primeiro trago constitutivo dessa racionalidade. O objeto natureza constitui-se com 0 Renascimento e, cada vez com mais énfase, adquire o cardter de alteridade, “‘estranheza”’, exterioridade, indepen- déncia e objetividade face ao homem, o que possibilita a busca sistemética e apaixonada de sua ordem verdadeira. AUGUSTO, Maria Helena Oliva, Natural, racional, social: discussdo de uma sociabilidade. Tempo 249 ‘Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1}: 247-257, I.sem. 1989. Comentério crftico da obra de Madel ‘Therezinha Luz. Natural, racional, social: razsio médica racionalidade cientffica moderna. Rio de Janeiro, Campus, 1989. sucesso dessa busca supée a observacao como pritica sistemstica da descoberta e da invencdo, resultando 0 experimentalismo — utilitério, exploratério, interventor e desbravador ~ como outro dos tragos constitutivos da racionalidade cientifica moderna. A partir de Descartes, afirma-se um dogma filoséfico importante, 0 da razdo como pro- dutora de conhecimentos, isto 6, como faculdade que descobre verdades perenes ¢ co- mo capacidade ~ garantida pelo método cientifico ~ que produz verdades. A sintese epistemolégica das ciéncias fisicas - modelo explicativo mecanicista, método experimentalista e dedutivista e linguagem matematizante ~ 6, assim, trago basi- co da racionalidade moderna. Todos os outros sistemas de expresséio de verdades (filo- sofia, artes, religides, aco politica, culturas, sistemas de saber passados, inclusive as disciplinas do social) foram desqualificados epistemologicamente e tratados socialmente como formas de expresséo incapazes de produzir o “‘verdadeiro” conhecimento (0 co- nhecimento cientffico). Nesse modelo tedrico, o natural 6 pensado como mecanismo dotado de leis que a razio pode descobrir se aplicar a0 objeto o método experimental ¢ quantitativista e a linguagem matemética, A matéria € analisdvel, redutfvel a seus elementos simples, da mesma forma que os conhecimentos que sobre ela se produzem. A fragmentagio do objeto em seus elementos constituintes, corresponde a pulverizacdo dos discursos cien- tificos, através da multiplicagéo de disciplinas, que tematizam sobre quaisquer objetos com uma possibilidade quase infinita de desdobramentos. O mecanismo tem uma proposta: a) de linguagem (matemética, geométrica) para as, disciplinas da natureza (fisica, astronomia, quimica, fisiologia, biologia), que depois se estende as disciplinas do social; b) de método (empirico, analitico-dedutivo) para 0 conjunto das disciplinas cientfficas em que se buscam as leis da natureza, as causas ¢ as formas de movimento, ¢ das “forgas” ou “‘poténcias” que o supdem; e c) de ordenagio ¢ exploragio da natureza, vista como um mecanismo, que pode e deve ser exposto pelos fildsofos naturais ¢ pelos cientistas. O método aparece como instrumento de exploragio da natureza ¢ a linguagem como expresso do método, de tal modo que hé uma tendén cia a confundirem-se nas ciéncias, sobretudo as da natureza, a partir do perfodo cléssi- co. Hoje, as metéforas mecanicistas nao sao levadas tao a sério. Entretanto, permane- ce dominante na maioria das disciplinas, sobretudo nos grandes ramos das ciéncias mais proximas da vida humana, a biologia e a medicina, a tendéncia a decompor o objeto em elementos, a compard-los por uma operagao analitica, ¢ a ordend-los numa totalidade racionalmente montada e hierarquicamente recomposta. © movimento tipico do conhecimento cientifico moderno é, portanto, pritico, transformador, interventor, classificatério, construtor de realidades. “A razéo moderna 250 AUGUSTO, Maria Helena Oliva, Natural, 1 Social: Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1 Made! Therezinha Luz. Natural, racional Rio de Janeiro, Campus, 1989. jonal, social: discuss de uma sociabilidade. Tempo 247-257, 1.sem. 1989. Comentério critico da obra de social: rario médica e racionalidade cientffica moderna. no apenas explica a realidade: modela-a”; dé-Ihe uma ordem especifica, com caracte- risticas préprias, identificdveis, ordenagao cujos efeitos sio de natureza politica ¢ so- cial. A ciéncia tornou-se 0 modo socialmente dominante de producao de verdades, teologia de nossa época, que operou uma dissociagao entre os mundos “natural”, “*hu- mano” ¢ “‘sobrenatural”. Trabalha com a suposigio filoséfica de que as leis da razdo sdo universais, aplicdveis tanto a0 mundo natural quanto ao mundo humano. A partir da segunda metade do século XIX, 0 modelo positivista tornou-se hege- ménico nas ciéncias e 0 ideal das disciplinas do social passou a ser a “exatidao” das disciplinas da Natureza. Esse procedimento surgia como estratégia de legitimacao frente a racionalidade cientifica moderna e derivava da crenca na aplicabilidade dos métodos ¢ leis naturais as ciéncias humanas, permitindo maior “‘controle”” do seu objeto: as rela- ges sociais, a privacidade cotidiana dos afetos humanos ¢ seus hébitos individuais, a materialidade orginica de seu corpo. A aproximagio do modelo das ciéncias fisicas permitiu as ciéncias humanas cons- truirem sua percepciio do mundo ¢ das relagées em processo a partir de dicotomias e dualidades: normalidade-patologia, equilfbrio-desvio, harmonia-perturbacao, integrida- de-degenerescéncia. Nestas, o primeiro dos elementos tem sido sempre considerado si- nénimo de natural, racional, e/ou social, e 0 segundo, de rompimento de uma situagao “original” de ordem, cujo restabelecimento é buscado, Ao mesmo tempo, aquela apro- ximago condicionou os objetivos que as ciéncias humanas se propéem, de expor a de- terminagdo recéndita que possa existir em toda realidade, de prever os movimentos dos objetos que tematizam e, se possivel, de antecipar tais movimentos — prevenindo-os, impedindo-os, suprimindo-os ou conduzindo-os ¢ orientando-os, conforme 0 caso. Para Madel Luz, a medicina € disciplina social por produzir wn discurso natural sobre uma realidade social, ¢ nao porque um ramo subordinado da ciéncia médica ~ a medicina social — tematize a realidade capitalista como origem ou causa da doenca. E social, portanto, por seu objeto: 0 corpo do homem, decomposto em elementos consti- tuintes; 0 funcionamento e a desagregagio desses elementos; as relagées destes cle- mentos com este corpo; as mentes humanas; os sentimentos humanos; a sexualidade humana; seu sofrimento e morte através da doenca e também seu comportamento ¢ ati- tudes frente a esses momentos. Considera sociais todos esses aspectos do viver ¢ do sofrer que tém sido, histori- camente, objeto da medicina — doenca e morte, normalidade e patologia, equiltbrio e desvio ~, mesmo que tenham recebido ordenacéo tedrica como categorias biolégicas. Disciplina social, portanto, a medicina institui e normaliza estruturas e relagées sociais, a partir de enunciados “naturais” tipicos do seu campo de objetivagées. Neste tiltimo século e meio, tem sido mais social que a prépria sociologia e ambas se complementam AUGUSTO, Maria Helena Oliva. Natural, racional, social: discussio de uma sociabilidade. Tempo 251 Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 247-257, 1.sem. 1989. Comentério erftico da obra de Madel Therezinha Luz, Natural, racional, social: razio médica racionalidade cientffica moderna. Rio de Janeiro, Campus, 1989. de forma notdvel: o que esta tematiza em termos macro-estruturais, aquela o faz em ter- mos micro-estruturais, ou seja, dos individuos. So examinadas no texto a circulagdo e a complementariedade entre os conceitos das disciplinas da vida humana (sobretudo a medicina) e das disciplinas do social (so- bretudo a sociologia, a partir de Comte). O fato de as ciéncias naturais possuirem maior legitimidade propiciaré uma diregao preferencial para a migraco dos conceitos ~ do natural para 0 social — movimento que, em termos te6ricos, terd efeitos bastante produ- tivos na sociologia. Estes revelam-se sobretudo com Durkheim, 0 continuador da iden- tidade normal-patolégico para o funcionamento da vida social e o definidor da patologia social como desvio que confirma, ratifica e legitima a norma, em termos de principios de organizagao e de manutengao da vida coletiva: “(...) tanto a medicina como a sociologia, partem do patolégico para o normal: a primeira, tematizando 0 corpo individual; a segunda, o corpo social. Ambas tendem a deduzir 0 estado normal (do individuo, da sociedade) em fungao da manifestac&o, maior ou menor, de sintomas, (...)expressdo de desvios que se consideram patol6gicos. Estes supéem (...) um ‘estado-padrao’ normativo, uma ordem reguladora”’ (p. 111). Outro elemento enfatizado no decorrer do texto € 0 de que a medicina modema evidencia um deslocamento epistemolégico ¢ clinico: de wna arte de curar individuos doentes transforma-se numa disciplina das doencas. O alvo privilegiado da intervencao médica se toma, cada vez mais, 0 corpo individual, o que ajuda a constituir 0 individuo moderno, étomo de um corpo mais amplo. Doenga ¢ individuo doente tomam-se estranhos nesse processo: 0 sujeito “pa- ciente” converte-se em objeto da ordenagao social A medida que se desvia de um qua- dro de normalidade reconhecido. A questo da vida é transformada em questo metafi- sica: a medicina, aos poucos, veré na observacao dos individuos doentes, homens vivos, uma fonte de confusao, de des-conhecimento e excluird, como questées positivamente tematizaveis, a vida, a saude e a cura. “Tudo é desvio em potencial. Juntamente com a doenga (enquanto entidade], desfaz-se definitivamente, no grande universo da raciona- lidade médica, 0 conceito de satide” (p. 110). A satide passard a ser vista néo como afirmacao da vida, mas como auséncia de patologia; a “‘cura’” ser substituida pela ces- sagéo de sintomas. Da eliminagéo da doenca do corpo dos individuos, nasce a satide na medicina moderna. A autora destaca que o processo de instauragdo da racionalidade cientffica moder- nna como racionalidade dominante ndo significou sua existéncia isolada, Pelo contrério, sta seria uma razdo entre outras a disputarem a hegemonia durante a batalha, na qual 0 mundo da natureza e 0 mundo do homem deveriam ser conquistados. Pelo menos trés “raz6es”’ estariam, ent4o, presentes: a) a racionalidade cientifica; b) a moralidade ra- cional de origem religiosa; e c) a racionalidade animista, imanentista, mistica ¢ implici- tamente sensual das “‘ciéncias alquimicas” ~ astronomia, alquimia, magia (p. 66). 252 AUGUSTO, Maria Helena Oliva, Natural, racional, social: discussdo de uma sociabilidade. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(I): 247-257, I.sem. 1989. Comentério erftico da obra de Madel Therezinha Luz. Natural, racional, social: razo médica ¢ racionalidade cient{fica moderna, Rio de Janeiro, Campus, 1989, © longo processo que culminou com a identificagdo da racionalidade cientifica como razo natural e social, cuja expresso méxima se encontra no Século das Luzes, implicou deslocamentos e destruigées, mais do que evolucdo ou progresso. A afirmacéo de cada um dos seus tragos constitutivos — racionalismo, mecanicismo, dualismo, frag- mentarismo, metodologismo, quantitativismo, materialismo, evolucionismo — supés, portanto, o sufocamento e a negagao de uma caracterfstica oposta. A ruptura mais significativa € 0 estilhagamento do préprio sujeito em imimeros compartimentos. A razo converte-se em dominio da ciéncia; as paixées, da moral (éti- ca) e da politica; os sentimentos e os sentidos, das artes (estética). “Esta compartimen- taco terd o efeito de ‘negar’ socialmente o sujeito humano e de ‘neutralizé-lo’ episte- mologicamente, criando condig6es histéricas para tomnd-lo, como a natureza, objeto de ciéncia, (...) coisa passivel de intervengao, de transformagio, de modelagdo, de produ- cao” (p. 26). “Ruptura, descontinuidade, momento inaugural, so termos que nao devem ser si- nonimizados (...) com avango ou progresso, mas associados &: quebra, novidade, reor- ganizacdo, mudanca, mutagéo. Também a categoria da racionalidade nao deve ser identificada a idéia de ‘compreensibilidade’, no sentido weberiano de ‘tornar-se pro- gressivamente racional’, ou mais inteligfvel. Haveria af uma valoracdo positiva da razio cientifica como principio de ordenagao universal, estranha as intencées deste estudo” (p. 28). A apreciagao negativa da racionalidade moderna é, sem dtivida, elemento mar- cante a atravessar todo o texto. A argumentagdo desenvolvida € critica em relagdo & forma através da qual essa racionalidade se impés, impedindo o florescimento de outras presumivelmente mais satisfatérias, e A maneira pela qual opera, fragmentando ao anali- sar e disciplinando ao instituir modos de conduta e de ser qualificados como normais. E critica também quanto & naturalizagao dessa racionalidade ~ como razo intrinseca a0 homem e & sociedade — ja que ela é o resultado histérico da vitéria na batalha contra outras concepgées. A perda real de significados ¢ da possibilidade de apreensao holisti- ca do homem, sua vida e suas relagdes €, porém, do ponto de vista da autora, a dimen- sao mais expressiva de sua negatividade. © momento em que essa posigao fica mais claramente explicitada € aquele, no til- timo capitulo, em que a autora se utiliza da comparagdo entre dois tipos de racionalida- de médica — a clinica moderna e 0 vitalismo homeopatico -, insistindo na maior ade- quagao “humana” da segunda alternativa. Para tanto, arrola as caracteristicas marcantes de ambos, admite que se opdem de maneira incontestdvel e tenta provar como a homeo- Patia aponta para a possibilidade de articulagdo das multiplas dimens6es humanas numa totalidade organica — aquela em que se reencontrariam razo, paixdes, sentidos e vonta- de, estilhagados em compartimentos pela razo cientifica, da qual a clinica moderna é expressdo. AUGUSTO, Maria Helena Oliva. Natural, racional, social: discussio de uma sociabilidade. Tempo 253 Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1 7, 1.sem. 1989. Comentério erftico da obra de Madel ‘Therezinha Luz. Natural, racional, social: razSo médica e racionalidade cienffica moderna, Rio de Janeiro, Campus, 1989. A primeira das distingSes destacadas é a de que o vitalismo homeopatico, uma das teorias vitalistas em presenga no final do século XVIII e inicio do XIX, no se apre- senta como sistema explicativo das doengas ¢ suas causas, mas como um sistema racio- nal e experimentalista da arte de curar doentes: “O saber da clinica modema, orientado pela morte (anatomia patolégica), volta-se para a causa da doenga (agente patogénico) ¢ para sua origem espaco-temporal (locali- zagao organica e histéria sintomética), enquanto o saber da clinica homeopética volta-se para 0 individuo desequilibrado (doente) no sentido de reparar-lhe a energia da vida (curé-lo)’”’ (p. 125). As disparidades entre as duas medicinas estariam radicadas, ao mesmo tempo, no método, nas formas de intervengdo terapéutica © na concepgdo do processo satide- doenga: — enquanto a clinica médica utilizaria o método ‘‘dedutivo”’ e “Iégico”, a homeo patia seria “‘sistematicamente experimentalista”; — enquanto, na primeira, a intervencdo terapéutica seria “‘empfrica” e “arbitréria”’, penetrando no “‘interior invis{vel” do corpo do doente a procura das causas préximas da doenca, a segunda pretenderia ser mais prética ¢ de maior eficécia, na medida que visa © restabelecimento do doente; enquanto naquela haveria a separagdo entre o doente e a doenca, a partir da constituigao de um quadro classificatério de doencas ¢ 0 estabelecimento de critérios de patologia ¢ normalidade para a cl{nica, esta tomaria como ponto de partida 0 homem enquanto sotalidade indissocidvel, 0 indivéduo doente; e, enfim, ~ enquanto medicina oficial procuraria no doente a sua doenga, considerando a auséncia de sintomas sinal de normalidade ¢ excluindo a cura ¢ a saiide de seus objeti- vos, para a homeopatia, adoecer seria visto como processo vital do individuo enquanto totalidade bio-psfquica © o restabelecimento da satide, entendida como equilforio da energia ou forga vital, seria a finalidade da intervengao médica. A construgdo do texto encaminha o leitor para a seguinte concluséo, ainda que no de forma explicita: a homeopatia institucionalizada poderia conduzir as priticas de saiide para uma diregdo mais correta, qual seja, a da efetiva instauragéo do homem en- quanto unidade indivisfvel no centro de suas preocupacées. A simpatia por ela demons- trada ao examinar a modemidade cientffica do procedimento homeopético permite infe- rir uma certa adesio afetiva da autora a esta vertente. O que pretende enfatizar, entre- tanto, é a luta travada entre as duas concepgées no século XIX (luta ainda intensa no Brasil contemporaneo) ¢ a estratégia de silenciamento que a medicina oficial pretende - e tem conseguido, com algum sucesso — impor & medicina homeopética: “Trata-se de um conjunto de contra-estratégias politicas para conter o avanco da medicina homeopitica. (...) a luta politica contra a homeopatia néo se baseava apenas nas vantagens € posigdes sociais que a corporaco médica ligada & alopatia jé tinha se- 254 AUGUSTO, Maria Helena Oliva, Natural, racional, social: discussie de uma sociabilidade. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 247-257, L-sem. 1989, Comentério erftico da obra de ‘Madel Therezinha Luz. Natural, racional, social: razio médica e racionalidade cientffica moderna. Rin de Janeiro, Campus, 1989. dimentado na sociedade brasileira do século XIX. Ha diferengas (algumas radicais) nos modelos de saber médico, cujo desconhecimento sistemético pela medicina oficial no terreno da prova clinica, da experimentagao, transforma-se em estratégia de bloqueio e marginalizaco da homeopatia, ainda hoje praticada (...)” (p. 142 ¢ 143), O tema desenvolvido no trabalho 6, como jé foi dito, extremamente atual. Em vé- rias abordagens e de multiplas maneiras, a racionalidade dominante tem sido questiona- da, por fragmentar, unidimensionar e manipular os homens, despojando-os de sua con- digdo de sujeitos; por conduzir & perda da dimensio significativa da existéncia, humana © social, ¢ tomar possfvel a imposigao de formas autoritérias de sociedade, através da afirmagéo de seu cardter funcional e instrumental; por impedir percepgGes unitérias e/ou totalizadoras da natureza, do homem, da sociedade, e de suas relacées, 4 medida que, legitimada como razao cientifica, torna-se tinica forma “verdadeira’” de conhecimento do mundo; , enfim, por parecer levar & destruicao as proprias verdades, conceitos e se- res constituidos pela sociabilidade que expressa e que se apresentaram como valores a perseguir, nos iiltimos trezentos anos. Além de atual, portanto, trata-se de problemdtica bastante instigante visto que a conversio dessa racionalidade funcional em negacao da razao, pura irracionalidade, ameaga a vida no planeta, pée em jogo a propria sobrevivéncia da humanidade: “a mé- quina expeliu 0 maquinista; esta correndo cegamente no espaco”” (Horkheimer, 1976, p. 139). A procura de novas formas de ser ¢ pensar é fundamental. A escolha da racionalidade médica, social por seu objeto, como campo privilegia- do de observacao, ¢ a comparacéo entre dois tipos distintos da mesma, como forma de delimitar a perspectiva na qual o trabalho discutido se insere, s6 faz acrescentar interes- se ao tema. Enquanto a medicina oficial introduz distanciamento cada vez maior entre médicos € pacientes, fragmenta em ritmo cada vez mais intenso os corpos sob seu cui- dado, eleva progressivamente os seus custos pela especializacao extrema ¢ a introdugao de equipamentos sofisticados nos processos nommais de atendimento, e ~ por tudo isso ~ tem sido enfaticamente questionada por nao responder as necessidades de satide da po- pulacdo, a homeopatia tem sido colocada entre as possibilidades alternativas de condu- ¢40 dos cuiidados com a vida. Nao obstante, algumas observagées criticas merecem ser dirigidas ao trabalho em foco. Apesar das intencdes enunciadas, a autora nao consegue dar conta de seu objeti- Vo, que possui escopo muito mais abrangente do que 0 espago reservado para exami- né-lo. Trata-se de equacionar criticamente a racionalidade cientifica moderna, a medici- na, a sociologia, e a sociedade que estas explicitam, num perfodo de, pelo menos, qua- AUGUSTO, Maria Helena Oliva. Natural, racional, social: discussio de uma sociabilidade. Tempo 285 Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, I(1): 247-257, I.sem. 1989. Comentério erftico da obra de Made! Therezinha Luz. Rio de Janeiro, Campus, 1989. tro séculos. Resulta daf que, mesmo tocando em aspectos muitfssimo interessantes sobre 6s temas em debate, cujo aprofundamento é mais que desejavel, a andlise nfo chega a responder as expectativas que desperta. Discutir uma problemética tio ampla num texto tio reduzido implica, necessaria- mente, passar de forma ligeira por algumas questdes importantes. Destaque-se entre elas a ligacdo entre a emergéncia da nogdo de individuo, a constituicéo do “‘paciente” en- quanto expressao do desvio em relacdo a norma bioldgica, e a ordenacao disciplinar da sociedade, A forma pela qual a reflexdo se exprime nao é clara, ao lado de uma grande repe- ligdo de idéias e imagens. Isto faz com que 0 nticleo central do argumento nem sempre fique explicito, exigindo do leitor um trabalho permanente de idas e vindas no interior do texto para no se perder no emaranhado de temas ¢ informagées novas que vao emergindo (ver, por exemplo, p. 32-34). A proposta mesma do trabalho parece, entretanto, conter ambigtiidades. Indica como opgao teérica a abordagem de Foucault, na qual o individuo é considerado repre- sentacao e efeito do poder, a “humanidade”’ percebida como construgéo discursiva, e a racionalidade moderna identificada como racionalidade inaugural, signo de ruptura, destruigdo e disciplinamento. Ao mesmo tempo, revela a intengao nostélgica de “‘ajudar a restaurar”” a humanidade plena, a unidade de paixdo ¢ razo, instintos e vontade, de- sejo © prazer, numa perspectiva holistica que supde uma interioridade do sujeito enfati- camente negada por aquela linha analitica (Foucault, 1977, 1977a, 1979). E dificil conciliar duas posturas que partem de pressupostos epistemoldgicos ab- solutamente distintos. A possibilidade de percepcao do individuo enquanto totalidade, capaz de uma existéncia auténoma como sujeito, exige um enfoque tedrico diferente daquele escolhido, por implicar alteridade e subjetividade, elementos ausentes de uma visdo que 0 supse, porque efeito do poder, “eficiente”, “produtivo” ¢ “docilizado” pela disciplina. Por outro lado, no ha como indicar a homeopatia enquanto 0 “outro” abafado pelo discurso ~ e pela pritica ~ da clinica moderna e supor possivel seu estabelecimen- to, enquanto “outro” (conservando as caracterfsticas que o singularizam e o diferen- ciam) na mesma sociedade disciplinar, Sua ago como saber médico dominante seria tio disciplinadora quanto o €, hoje, a da clinica. Quanto a isso, aliés, a prépria autora € bastante clara: ‘‘A partir do triunfo desta razao [cientifica] no final do século XVII, ne- nhuma teoria ou conceito pode mais fugir dos limites da morfologia do modelo cientifi- co, sob pena de ser considerada nao cientifica, portanto, nio verdadeira” (p. 120). De qualquer modo, mesmo trabalhando com as nogées de resisténcia ou contra- poder, presentes na abordagem adotada, nao se pode supor a idéia de restauragao ou de retorno a uma encruzilhada primeira. Trata-se da instituigdo de uma nova racionalidade, de uma outra relagao com (um)a (outra) natureza — nao aquela objetificada pela razao 256 AUGUSTO, Maria Helena Oliva, Natural, racional, social: discussio de uma sociabilidade. Tempo Social; Rev, Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 247-257, 1.sem. 1989. Comentirio erftico da obra de Madel ‘Therezinha Luz. Natural, racional, social: razio médica racionalidade cientffica moderna. Rio de Janeiro, Campus, 1989. cientifica -, da inauguragdo de uma nova orientagdo na maneira de construir, organizar € se localizar no mundo, de um novo modo de ser individual e social. A propésito, € possfvel estabelecer aproximagées entre 0 texto em exame € outras abordagens como, por exemplo, a de Horkheimer (1966, 1976), quando desenvolve anélise sobre a perda da dimensdo racional na civilizacdo moderna, ainda que se reco- nhega a diversidade de perspectivas. Esse autor mostra que, da forma como se efetiva atualmente, a racionalizagao progressiva tende a obliterar a prdpria substincia da razio nna qual se apéia. Para embasar essa conclusao, compara conceitos que exercem predo- minio em distintos momentos histéricos: uma concepgao objetiva da razio, que a afirma como principio inerente & realidade, e uma outra que a considera faculdade subjetiva da mente, Pela primeira, 0 grau de racionalidade de uma vida humana seria determinado por sua harmonizac&o com a totalidade; pela segunda, a razdo seria identificada com 0 funcionamento abstrato do mecanismo do pensamento, sendo apandgio exclusivo do sujeito. Ambos os aspectos estiveram sempre presentes, ainda que o segundo tenha se tor- nado predominante no decurso de um longo process. Do mesmo modo que Madel Luz afirma ser a racionalidade cientifica moderna forma de ordenagdo do mundo, que impli- ca principalmente atribuigdo de ordens de sentidos, mais que sua decodificagdo, para Horkheimer, a crise atual resulta de que 0 pensamento modemo se tornou incapaz de conceber uma significacdo intrinseca a totalidade, ou a nega como ilusao, tormando a razio mero instrument, incapaz de perceber a verdadeira natureza da realidade e de determinar os principios que guiam a vida humana. “A neutralizago da razio, que a despoja de qualquer relagao com 0 conteido objetivo e de seu poder de julgar este tiltimo, ¢ que a reduz ao papel de uma agéncia executiva mais preocupada com 0 como do que com o porqué, transforma-a cada vez mais num simples mecanismo enfadonho de registrar os fatos’ (Horkheimer, 1976, p. 65). Entretanto, a transigao através da qual a concepcdo subjetiva se afirmou sobre a objetiva nao foi acidental, mas histérica; assim, ainda que se reconheca o fato de esse predominio indicar um processo de irracionalidade crescente, pela perda de significados que supée, nao hé como tentar um “retorno” ou “restauragao” do passado. “(...) somos 0s herdeiros, para melhor ou pior, do Huminismo e do progresso tecnolégico. Opor-se 208 mesmos por um regresso a estigios mais primitivos nfo alivia a crise permanente que deles resultou. Pelo contririo, tais expedientes nos conduzem do que ¢ historica- mente racional as formas mais horrendamente barbaras de dominacao social (...)"" (Hor- kheimer, 1976, p. 138). Para cle, portanto, a desejada emancipagao do homem e da sociedade nao se en~ contra no “‘restabelecimento” de quaisquer situacdes anteriores, uma vez que sua exis- AUGUSTO, Maria Helena Oliva. Natural, racional, social: discussio de uma sociabilidade, Tempo 257 ‘Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1}: 247-257, L.sem. 1989. Comentério critico da obra de ‘Madel Therezinha Luz. Natural, racional, social: razio mSdica e racionalidade cientffica moderna. Rio de Janeiro, Campus, 1989. téncia como realidade efetiva nao foi possibilitada por nenhuma das formas de raciona~ lidade historicamente predominantes, Afirma que no so vias separadas e independen- tes, ainda que sua oposicao represente verdadeira antinomia, devendo ser promovida intelectualmente a critica dos dois conceitos, para preparar sua conciliagao na realidade. Entretanto, essa conciliagéo sera possfvel apenas com a instauragéo de uma nova socia- Finalmente, ¢ importante identificar uma outra abordagem utilizada pela autora, ainda que nao oriente seu discurso explicito. Reconhecendo um estado de profunda cri- se mundial, complexa ¢ multifacetada, ameagadora da propria permanéncia da vida em nosso planeta, essa perspectiva aponta para a necessidade de uma estrutura econémica € social radicalmente diferente e propée uma nova visio da realidade — uma revolugéo cultural, na verdadeira acepgao da palavra. Esta, “‘baseia-se na consciéncia do estado de inter-relaco ¢ interdependéncia essencial de todos os fenémenos — fisicos, biolégicos, psicol6égicos, sociais e culturais”, “transcende as atuais fronteiras disciplinares e con- ceituais ¢ seré explorada no ambito de novas instituigGes” e € “uma concep¢ao sistémi- ca da vida” (Capra, 1986, p. 259). Supée, entretanto, uma dimenséo mistica e espiri- tualista que nfo se coaduna com uma anélise da sociedade disciplinar. Impée-se, por- tanto, a opcao. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS CAPRA, Fritjof. © ponto de mutagdo. Sio Paulo, Cultrix, 1986, FOUCAULT, Michel. O nascimento da clinica, Rio de Janeiro, Forense Universitéria, 1977. . Vigiar e punir. Histria da violéncia nas prisdes. Petr6polis, Vozes, 1977a. . Microfisica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979. HORKHEIMER, Max. Eclipse da razdo. Rio de Janeiro, Labor, 1976. . Sobre el concepto de raz6n. In: ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max. Séciologica. Madrid, Taurus, 1966. p. 257-271.

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