Sunteți pe pagina 1din 418
PESSOAS, COISAS & GILBERTO FREYRE a co | = . IY, ‘ PESSOAS, COISAS & ANIMAIS. Gilberto Freyre Gilberto Freyre, “uma das glérias do pensa- mento brasileira", no dizer de mestre Celso Pedra Luft, é internacionalmente conhecido como sociélego. Sua obra principal nesse campo, Casa-Grande & Senzala, teva mais de uma edigdo em inglés e foi premiada nos Esta- des Unidos como a melhor obra sobre relagoes inter-raciais. Outro livro do autor muito apre- ciade no Brasil ¢ Sobrados @ Macambos. Dona Sinhé ¢ o Filho Padre, seminavela pu- blicada em 1964, projetou Gilberto Freyre como ficcionista. Dois anos antes surgira Tal- vez Poesia, antologia de poemas selecionados Por Ledo Ivo, Mauro Mota e Thiago de Melo, A Editora Globo, prestando mais um inesti- mavel servigo & cultura brasileira, langa agora Pessoas, Coisas & Animais, uma coletanea de ensaios, conferéncias e artigos de Gilberto Freyre reunidas e apresentados por Edson Nery da Fonseca, Registre-se que ¢ a primeira vez que a presente obra é publicada comer- cialmente, pois velo a lume no Natal de 1979 na forma de edi¢ao especial para MPM Propa- ganda — MPM Casabranca Propaganda fora de comércia. Vio portanto os leitores tomar contato com uma série interessantissima de trabalhos do "Mestre do Recife”, a maioria pu- blicada ha trés ou quatro décadas e por conse- guinte praticamente desconhecida. Constam alias escritos inéditos como, por exemplo, a conferéncia sobre Emilia Cardoso Ayres e 0 Siscurso sobre Rodrigo Melle Franco de An- drade. Num estilo simples e so alcance de todos, que @, diga-se de passagem, uma das suas ca- racteristicas, Gilberto Freyre aborda diversos assuntos. Na primeira parte da obra, “Pas- soas", destacam-se: 'S. Severino da Ramo’ reminiscéncia do tempo de menina; "0 Pe Ibigpins e suas maes-sinhds”, revelagdo de um {Continua na 2? abe} PESSOAS, COISAS & ANIMAIS 18 Série Gilberto Freyre Desenho de Getilio Delphin @ partir de uma fotografia de Berko, Alemanha Ocidental, GILBERTO FREYRE PESSOAS, COISAS & ANIMAIS 19 SERIE Enssios, conferéncias e artigos reunidos e apresentados por Edson Nery da Fonseca 24 Edigdo EDITORA GLOBO Porto Alegre + Rio de Janeiro 1981 Desta obra foi feita, no Natal de 1979, uma edi¢do especial para MPM Propaganda MPM — Casabranca Propaganda numeérada de 0001 a 8000, fora do comércio, Copyright © 1980 by Gilberto Freyre (Capa de Leonardo Menna Barreto Gomes Fotogratia de Clodomir Bezerra Planejamento gréfico de Maria Lais Fett Lima Direitos exclusivas de edi¢do, em lingua portuguesa, da Editora Globo S, A, Av, GetUlio Vargas, 1271 - 90000 Porto Alegre, RS. Rua Sarg. Silvio Hollenbach, 350 — 21510 Rio de Janeiro, RJ PESSOAS, COISAS & ANIMAIS 19 Série CIP-Brasii. Catalogacdo-ne-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RU, Freire, Gilberto, 1900- F933e — Passoas, coisas ¢ animais ; 1 série : ensaiog, conferincias e artigos / reunidos © spresentados Por Edson Nery da Fonseca, — 2. ed. — Porta Alegre — Ric de Janeiro ; Globo, 1981. 1, Freire, Gilberto, 1900+ — Coletanea |, Fonseca, Edson Nérl da Il, Tftulo DD — 869,98 CDU — 869.0 (81) Freire, G. 412 SUMARIO Apresentacdéo . . 1 PESSOAS Santos 6 quase santos §, Severino da Ramo 17 Sto, Antonio, militar no Brasil .. es 22 Um ortodoxo brasileiro do século XIX. . 25 O P.2 Ibiapina e suas Maes-Sinhas 30 Um homem que “‘seguiu Jesus”: Orlando Dantas . 35 Santos e homens . a ie 37 Um mundo necessitado de profetas, 1 41 Pai Addo, babalorixd ortodoxo .. . 44 Aco e contemplacdo dos franciscanos 47 Os carmelitas no Brasil 53 Santo e guerreiro ... auneate 56 Coro e outros CoreSes oii eee ee eee eee eee BD Poetas e ensaistas QO indianismo postico e cientifica de Goncalves TINGS po cia sscererauarorein a negecgyy: aceasta teal 62 O romantico Ribeiro Couto ...... seseeee 68 Augusto Frederico Schmidt, poeta e homem de agdO'.... wees came: 70 Moysés Vellinho e sua intarpretago do. Rio Grande do Sul . dae VET ew mney 73 Um critico na verdade criador: Roberto Alvim Corréa ........ aoe 76 Vianna Moog, ensaista literdrio e socio Tes Reena 81 Valdemar Cavalcanti, escritor . bees 83 O pensador Prudente de Morais, Neto | 86 Tobias Monteiro, mestre de jornalismo e de Historia do Brasil .... . 88 91 Quatro pintores e um inventor O drama de Pedro Américo ......, rors SF Telles Jdnior, mestre de Desenho e Hintor da mata pernambucana.......... 0.22.00 02008 101 0 esquecido Emilio, precursor, no comeco do século XX, da modernizacdo da pintura no Brasil .. 119 O brasileirismo teldrico de Portinari... 2.2.2.2... 130 O pessoal é 0 universal em Santos Dumont Santos Dumont é 6 mito do amarelinho eee 135 Universalidade de Santos Dumont . 138 Pensadores e homens de ac4o Martins Junior, jurista desgarrado num tempo que néo era aindao seu 2.0... ccc. eee eee ee ee 153 Teodoro Sampaio, colaborador de OR SEO ES: oo ccna csuouese sue eecer canna ea as eiaowre we aE 156 Monteiro Lobato e Urupés: uma revolugdo na literatura brasileira 60... cece eee eee eee 158 Silva Melo, cientistae humanista ..........-..... 161 Anisio Teixeira, renovador da educagdo e reformador social .. - 178 vill Rodrigo Mello Franco de Andrade, humanista e homem de acdo - 186 Epitacio Pessoa, bacharel antibacharelesco . . 197 Afranio de Mello Franco: seu bom-senso . . ve. 204 De Afranio a Gilberto Amado 6... 0... . eee a ees 209 Estadistas e politicos Ciéncia, humanismo e acao politica: o exemplo de José Bonifacio 211 OP Feijé e seu jansenismo caboclo , . 215 Rio Branco: a estatua ¢ o homem , . 220 Rui Barbosa: um quase défrogué desgarrado napolltiessss este Se eee as Joao Mangabeira, Rui Barbosa e a questdo social .. . Ruj Barbosa e a realidade brasileira Dois inimigos de Rui Barbosa .... Terei sido um anti-Rui? .......... Maua, m/stico do progresso industrial Maude Pedro ll ......0.5005 Virg (lio de Mello Franca: seu mado belo e leal de ser politico Getilio Vargas, artista pol{tico , COISAS Diarios e memérias . Citar ou ndo citar . Valores rotarianos e valores baianos A proposito de palavras inglesas na !{ngua portuguesa ,.,.. vette eee eee e ee SO Grandeza e decadéncia do charuto eae Bee O gaucho, parente do bedu/no . a seee. S41 Nacionalismo e internacionalismo t nas s historias em quadrinhas Paz, guerra e brinqueda A propésito de camas de noivos ........-... 2065. 350 Um circo e um antipalhago .... Em defesa da saudade . O pudor do lucro ...... 0.0. ANIMAIS Recordacao de Joujou ..... Arte de cavalgar no tempo dos flamengos . . Bichos reais e imaginarios Homens, casas, animais e barcos do S. Francisco .... 385 Os sultées das ruas do Rio de Janeiro .. Presenga do cavalo . APRESENTAGAO Na primeira edicdo de Uma Cultura Ameacada: a Luso-Brasileira (Recife, 1940) estéo anunciadas, entre as obras subseqiientes de Gilberto Freyre, algumas que no foram ainda e, talvez, jamais venham a ser publicadas, co- mo Um Srasileiro na Espanha e quias praticos, histéricos e sentimentais da Bahia, do Rio de Janeiro e de Belém do Pard, semelhantes aos dedicados ao Recife (1934) e a Olin- da (1939), Esses dois guias foram — diga-se de passagem — pioneiros no género em todo o mundo. E no Brasil talvez tenham sido os primeiros livros para bibliéfilos, assim cha- mados pela primorosa apresentag4o grdfica e tiragens limi- tadas. Dentre os livros anunciados em 1940 havia um com o titulo escolhido para esta coleténea de trabalhos inéditos e dispersos do autor, publicada pela MPM Propaganda no Natal de 1979, em continuidade a uma série de edicdes artfsticas pelas quais a literatura brasileira Ihe ficard para sempre devedora, Tanto a selecdo dos textos como sua sistematizacao ficaram sob minha exclusiva responsabilidade, por honrosa delegagao do autor e da casa publicadora: delegagdo que, aqui, desvanecido, agradego, Também s8o meus os titulos atribuidos a maior parte dos trabalhos escolhidos, embora o estilo gilbertiano seja neles evidente, pois foram colhi- dos nos respectivos textos, tal coma os indexadores esco- hem as palavras-chaves em determinado tipo de indice: o KWIC, ou Key World in Context. Embora Pessoas, Coisas & Animais tenha sido 0 titu- lo genérico da colaboragdo de Gilberto Freyre em O Cru- zeiro, este livra néo se constitui apenas de artigos publica- dos na referida revista, mas também de outros que, em di- ferentes épocas, foram divulgados no Didrio de Pernambu- co, no Jornal do Camércio do Recife, em O Jornal, A Manhé& @ Jornal de Brasil, do Rio de Janeiro. Foram ainda incluidos trabalhos inéditos como, por exemplo, a confe- réncia sobre Emilio Cardoso Ayres eo discurso sobre Ro- drigo Mello Franco de Andrade, As fontes e as datas estdo indicadas no fim de cada artigo. Destacam-se neste conjunto de inéditos e dispersos de Gilberto Freyre a variedade tematica e a originalidade estilistica. Tanto uma como outra podem ser observadas jé nos artigos da primeira fase de sua atividade jornalistica, recentemente reunidos em dois volumes da obra Tempo de Aprendiz (Sao Paulo, IBRASA, em convénio com o Insti- tuto Nacional do Livro, 1979). E pena que os editores da referida obra — graficamen- te elogidvel — ndo tenham acrescentado ao texto um indice Onomédstico € temdtico. A omissdo de (ndices é um dos pe- cados mais graves e constantes dos editores brasileiros. Um autor inglés reclama indices até em obras de ficcdo, para que os leitores possam encontrar facilmente certos perso- nagens e determinados episddios, O jndice onomastico e tematico é ainda mais indispensavel em obras como Tempo 2 de Aprendiz: tanto por seu carater compdsito como pela ordenacdo cronolégica dos textos reunidos. Além de facili- tar a consulta, um (ndice como o sugerido evidenciaria o generalismo que cedo madrugou em Gilberto Freyre., Nao © generalismo superficial de quem trata de tudo sem se aprofundar em nada, nem o generalismo puramente con- ceitual dos pensadores abstratos, mas generalismo como viséo global e interdisciplinar de cada tema ou problema estudado: a abordagem sistémica de que tanto se fala hoje em dia. Fosse Gilberto Freyre um generalista por pure e sim- ples diletantismo e ndo teria certamente se antecipade a varios autores, brasileiros e estrangeiros, na defesa de certas idéias, conceitos e iniciativas. Hd neste livro, por exemplo, uma antecipagdo que é oportuno salientar, face 4 publica- So recente de uma obra que vem sendog insistentemente considerada pelos noticiaristas literérios — neste ponto e em outros, melancélicos repetidores de press release — co- mo pioneira em destacar a participagdo do povo na His- toria do Brasil, Qu muito me engano, ou foi em 1933 e através de Casa-Grande & Senzala que 9 povo entrou em nossa Histo- ria, Isto foi, alias, reconhecido pelo antropdélogo Darcy Ribeiro no inteligentissimo prefacio que escreveu para a edigdo venezuelana daquela obra de Gilberto Freyre (Cara- cas, Biblioteca Ayacucho, 1977, p. XI et passim). Em arti- go de 1942 — agora reproduzido em Pessoas, Coisas & Ani- mais — Gilberto Freyre volta Aquela sua tese de 1933. Ca- mentando uma observacdo do Prof. Castro Rebelo endossa- da por Lidia Besouchet — a de que “em torno de Maud po- de-se escrever a historia econdmica do Império” — escreve ele: “Nao € em torno de nenhum grande homem de fraque e cartola — nem mesmo o Imperador — que se pode escre- ver a histéria econdmica do Império, mas — a termos que escrevé-la em torno de alguém — em volta do escravo ne- a gro. Pais o negro é que foi o alicerce vivo do sistema mono- cultor, escravocrata e latifundidrio em que consistiu a eco- nomia — na verdade a civilizagao inteira — do Império”. Ha varias outras antecipacdes de Gilberto Freyre que este livra recolhe. Duas delas esto na segunda parte e se referem ao fendmeno da criagdo cientifica e artistica e ao Problema das histérias em quadrinhos, Os dois assuntos vém sendo ultimamente muito debatidos pelos especialistas em ciéncia da informacao (information science) e em co- municaggo de massas (mass communication). No Brasil, a Prioridade no trato de tais temas cabe, sem duvida, ao au- tor deste livro, como se pode ver pelos anos de publicacdo do artigo Citar ou Nao Citar’ (1943) e das crénicas sobre quadrinhos (1948 a 1951). Embora graduado em Ciéncias Sociais e apesar de suas importantes contribuig6es 4 Sociologia, 4 Antropologia e & Historia Social, Gilberto Freyre poderia ser definido como antiespecialista. Emprego o verbo no candicional porque o prefixo anti néo me parece inteiramente adequa- do & Weltanschauung gilbertiana, que parece caracterizar-se antes pela concilia¢ao do que pela oposi¢go entre contrd- trios. Admirador de Marx, por exemplo, mas fazendo reser- vas a muitas das idéias do genial pensadar, ele sempre se considerou, néo antimarxista, mas pds-marxista. E com a mesma disposicéo de tudo compreender, ndo se considera catdlico nem anticatélico, mas acatdlico; nfo pré ou con- tra as academias, mas inacadémico, Um autor assim open minded, com uma Weiltans- chauung téo generosamente abrangente, sd poderia ter como lema o conhecide verso no qual Teréncio dizia que, por ser homem, nada de humano reputava alheio a si. Com 17 anos, em discurso de “Adeus ao Colégio” (depois in- cluido em Aegigo e Tracicdo), Gilberto Freyre | citava em latim 0 verso de Teréncio: Home sum: humani nihil ame ailienum puta. Creio mesmo que a cosmovisio gilbertiana é 4 ainda mais amplamente integradora do que a terenciana. Sobre sua evalucdo intelectual existe significativa confi- déncia, porventura esquecida em nota de abertura de um livro publicado em 1935: aquela em que o autor afirma terem suas idéias de adolescente se modificado em varios pontos, “num sentido que lhe parece mais humano e me- nos humanista’’ (cf, Artigas de Jornal, Recife, Edicdes Mozart, p. 9). Hoje ele talvez pudesse dizer, parafraseando Teréncio: sou vivo: nada do que & vivo repute alheio a mim, Pois sua abrangente curiosidade se estende a pessoas, coisas e animals. Da juventude inquieta de Gilberto Freyre nos Estados Unidas, sabernas que em vez de limitar-se 4 rotina académi- ca das aulas, semindrios e laboratarios, incluiu uma varieda- de enorme de impressdes e de contatos, como ele proprio recordou, em 1934, para estudantes que 0 convidaram a falar na velha Faculdade de Direito do Recife. Vale a pena reproduzir, jpsis litteris, essa recordacdo, porque ela se insere num contexto muito expressivo de um dos aspectos do estilo gilbertiana: sua proustianidade, se me permitem o neglogismo. Num escritor mais cartesiano do que proustiano, 2 recordacdo ficaria reduzida 4 seguinte frase: “De uma adolescéncia passada quase toda nos Estados Unidos, re- cordarei hoje algumas experiéncias de possivel interesse para os alunos desta Escola e para os seus amigos aqui reu- nidos". No estilo proustiano de Gilberto Freyre a enume- ragio exemplificativa — nele muito freqiiente — est4 como que suspensa entre dois travess6es que fazem a frase esten- der-se por quase trés paginas (estou citando a primeira adic3o da conferéncia, adiante referenciada): “De uma adolescéncia passada quase toda nos Estados Unidos — em universidades, principalmente na de Columbia — e um pou- co por toda a parte, até por Greenwich Vilfage, que é em New York o bairro de artistas e de intelectuais mais ou 5 Menos neurdticos, vitimas do puritanismo das cidades do interior, em busca de uma libertacdo que as vezes se resol- ve em pura libertinagem; em revivals de negros no Texas e em Kentucky; na Universidade Catélica, entre Dominica- nos e Beneditinos, ascetas magros, angulosos, estudando quimica e teologia; em Salt-Lake City, a cidade onde no tempo de Joseph Smith se praticou tamanho excesso de poligamia, cidade quase vizinha da de Reno, que vive, ao contrario, de verdadeiro turismo de gente 4 procura de di- Vorcio; de uma vida, na América do Norte, que me fez sentir © poema em que Vachel Lindsay — uma das maiores vozes na jovem poesia americana — vasou todo 0 lirismo da mobilidade transcontinental: They tour from Memphis, Atlanta, Savannah, Tallahassee and Texarkana, They tour from St. Louis, Columbus, Manistee They tour from Peoria, Davenport, Kankakee Cars from Concord, Niagara, Boston, Cars from Topeka, Emporia and Austin Cars from Chicago, Hannibal, Cairo, Cars from Alton, Oswego, Toledo Cars from Buffalo, Kokomo, Delphi, Cars from Lodi, Carmi, Loami, Ho for Kansas, land that restores us When houses choke us, and great books bore us e ndo 36 senti-lo com relacao 4s cidades e aos lugares, mas com relacdo as classes ¢ aos grupos que as vezes numa mes- ma cidade grande, vertical, se distanciam mais que os conti- nentes; senti-lo com relacao as distdncias sociais — que ain- da sdo enormes na suposta terra da democracia — conhecer poetas negros de Harlem, indios de Arizona, caboclos das Filipinas, John D. Rockefeller Junior no palacete de New York em que, mais de uma vez, no meu tempo de Colum- bia, ele recebeu os estudantes estrangeiros; Calvin Coolidge 6 na Casa Branca; e num segundo andar de suburbio de Brooklyn tomar ché da Russia com o romancista Leon Kobrin, judeu da Litudnia que foi companheiro de jornalis- mo de Trotsky em New York; ver-se matar boi e se fazer chourigo nos grandes matadouros de Armour @ Swift e se imprimir o New York Times; e sobretudo conhecer a vi- da intelectual e artistica na intimidade — poetas como Vachel Lindsay com quem mais de uma vez jantei no Brevoort — ele sempre com um olhar triste que talvez fosse de saudade do mundo que ia deixar té0 cedo — aquele seu pais de fords rodando de Norte a Sul, de Leste a Oeste, onde tantas vezes viajou sem dinheiro, cantando seus poe- mas pelos povoadas, pelas granjas, entre os negros dos al- godoais, entre os montanheses, tomando banho nos rigs, dependurando as roupas pra secar nas drvores, como Amy Lowell, de quem fui héspede na sua casa de Brookline, a velha casa dos Lowell onde ela vivia rodeada de livros ra- ros, de jarros chineses e dé caixas de charutos de Manilla; criticos como Mencken; escritores como Carl van Doren; cientistas como Boas: sébios como Giddings e Seligman; de uma vida de estudante que incluiu uma variedade de im- presses e de contatos fora dos livros, das aulas, dos semi- nérios, dos laboratérios — recordarei hoje algumas expe- riancias de possivel interesse para os alunos desta Escola e para os seus amigos aqui reunidos’’. (O Estuco das Clén- cias Sociais nas Universidades Americanas. Recife, Edigao de Momento, 1934, p. 20-23, 22 ed. publicada na hoje ex- tinta revista Rumo, Rio de Janeiro, v. |, n° 1, p, 4-24, 1° trimestre de 1943.) Foi Alvaro Lins quem primeiro comparou o estilo de Gilberto Freyre com o de Marcel Proust, esclarecendo: “Ambos se afastam da linha dos estilos tradicionais das suas linguas. Ambos estao determinados pela introspecc#o é pela busca do ‘tempo perdido’, um no homem, o outro na sociedade. Ambos estado sustentadas por uma unidade 7 interior que contrasta com a desconexdo exterior, Ambos se destinam a exprimir nuancas e detalhes em literaturas dominadas pelas idéias gerais. Ambos apresentam um de Ariadna’ no meio de construcdes ds vezes verdadeira- mente labirinticas’” (cf. Jorna/ de Critica, Sequnda série, Rio de Janeiro, José Olympio, 1943, p. 212). O estilo de Gilberto Freyre nao é simples imitagado do estilo de Proust, mas conseqliéncia do que hé de proustia- no em sua atividade criadora, definida por Diogo de Melo Menezes nesta sintese magistral: “Seu fim, o fim de sua ati- vidade criadora, seria este: o de ressuscitar passados perdi- dos, o de revelar vida, o de compreender personalidades, o de ser fiel a realidade nesse esforco de ressurreicao, revela- ao € compreensdo da vida humana, tal como essa vida se vem condensando no Brasil” (cf. Gilberto Freyre. Rio de Janeiro, Casa do Estudante do Brasil, 1944, p, 249), A disposicao de compreender pessoas, coisas e ani- mais leva Gilberto Freyre a como que introjetar-se no ser de cada pessoa, coisa e animal que, assim, acaba fazendo parte de sua circunstancia, como diria Ortega y Gasset, Entre ele e o objeto de sua observacdo passa a ocorrer o que os gregos charmmavam dé empatia. Somente esse poder poético explica o seu estilo, assim definido pelo erudito, inteligente e sensivel critico Roberto Alvim Corréa: “"Es- tilo de poeta, por ser visual. De pintor, ou de homem en- tendido em linhas e cores, que, para existir, precisa olhar, ver, saber o que pensa e sente, vendo. Vendo a natureza com olhos de pintor, contando-nos como nele a mesma repercute, ou simplesmente falando-nos de pintura, para ele um modo de por ordem em si préprio’”’ (cf. “Gilberto Freyre, Ensaista”, em Gilberto Freyre: Sua Ciéncia, Sua Filosofia, Sua Arte, Rio de Janeiro, José Olympio, 1962, p. 174-175). E indispensivel também recordar 0 fato biografico dele s6 ter conseguido aprender a escrever depois de mui- 8 to desenhar, Eratn desenhos expressionistas que irritavam © paisagismo realista de Telles Junior Lembrando tal fato, no ensaio sobre seu velho professor de Desenho, Gilberto Freyre informa que continua a haver dentro dele, secreta- mente colaborando com o escritor, “um aprendiz da arte de desenho que ndo se cansa de procurar reduzir a imagens suas sensacdes e até suas iddias. E ndo apenas suas observa- gdes de gentes e paisagens’’. Esse imagismo Luis Jardim ja salientara em 1935, ao observar que Gilberto Freyre "emprega palavras como quem quer reduzir tudo, des- de o mais abstrato ao mais concreto, ao maximo de suges- to ou mesmo de expresso plastica’. E concluindo seu prefécio a primeira edigdo dos Artigos de Jornal, escrevia Luis Jardim que “neste uso de imagens para exprimir idéias, quase sensualmente, como se a palavra ndo bastasse, é que também em parte consiste a sua forma original e for- te de expressdo”’ (op. c/t., p. 31 e 33). Neste livro — que organizei nao apenas desvanecido com a confianca do autor e do editor, mas deliciado coma releitura de algumas das melhores paginas do ensaismo em lingua portuguesa — hd exemplos abundantes do imagis- mo gilbertiano: um imagismo nada retérico ou superfi- cial, justamente porque responde a uma necessidade intima de expressdo; imagismo “claro, preciso e sintético”, tal como os poetas ingleses e americanos, que ele conheceu e com alguns dos quais conviveu na juventude, desejavam que fossem as imagens, Em seu livro The Poetic Image, Cecil Day-Lewis oferece uma definic¢go de imagem que caracteriza muito bem a prosa poética de Gilberto Freyre: “pintura feita com palavras”’, Veja-se como exemplo de “pinture feita com pala- vras’’ este pequeno trecho da obra-prima que é a evocacdo de uma “noite sinistra’’ em terras do Engenho S. Severino do Ramo: “Um desses passeios longos me fez voltar, tarde da noite, da cidade de Pau d’Alho ao engenho, a garupa do a meu tio Dedé, num cavalo chamado Bandinha, devido ao seu jeito caviloso de s6 andar de lado, Noite para os meus sete anos, sinistra, Tudo escuro. Chuva grossa. Trovdo. O rio j4 roneando de cheio, O vento gemendo nos pés de ca- na: gemidos de almas penadas. O préprio tio com medo; Mas — justica lhe seja feita agora — ndo tanto da furia dos elementos nem das almas do outro mundo como das se- nhoras furiosas € assustadas que nos receberiam na sala da frente do S. Severino, j4 com remédios caseiros contra os perigos do resfriamento ¢ indignadas com a doidice daque- le passeio em dia tao mau. Pois no vira 0 idiota do Dedé que a chuva estava se armando desde a hora do almoco? No vire o aluado isso? N&o vira aquilo? E patati-patata”, O curioso 6 que esses achados surgem de repente nos ensaios sobre temas, por assim dizer, mais severos, como, ao demonstrar que jd havia quest&o social entre nds, na época de Rui Barbosa, Gilberto Freyre fala de “‘um Brasil (. . .) j4 muito salpicado do negro e do pardo de bueiros de fabricas e de usinas; e no idilicamente verde em sua virgindade agréria ou sua castidade pastoril’”. Ndo sendo apreciador de retorica — “eu detesto teus oradores, Bahia de Todos os Santos!’ exclamou ele uma vez — Gilberto Freyre quase n3o qualifica os substantivos, como observou Lufs Jardim; substitui a superficialidade dos adjetivos pela forga dos advérbios; ou pela adverbiali- zacdo dos adjetivos e substantivos: adverbializagdo que, as vezes, se repete numa s6 frase, como, por exemplo, ao sa- lientar a dificuldade que teve Emilio Cardoso Ayres em “deseuropeizar-sé para integrar-se numa trans-Europa para ele, tao sofisticadamente europeu, paradoxalmente sedu- tora’; ou, ainda no mesmo ensaio-conferéncia sobre Emi- lio Cardoso Ayres, ao se referir 4 “mais tecnicamente civili- zada que artistica e intelectualmente sofisticada Escandi- ndvia"’, 10 A adverbializacdo em Gilberto Freyre daria pano para as mangas, isto é — falando menos gilbertianamente — for- neceria material para toda uma dissertac&o de mestrado em lingua portuguesa. Eis alguns exemplos, colhidos neste li- vro, aqui € ali: “monotonamente solene”, “livremente cri- tico”, “cruamente apologético”, ‘um pais virginalmente agricola’, um gato “orientalmente volutuoso”, “cores volutuosamente vivas”, “motivo rasgadamente ideolagico ou ostensivamente politico”, ‘‘solenemente ortodoxo em religido e em politica’, “'vitoriosamente solene’’, “civica e talvez artisticamente perfeito”, ‘‘rusticamente inacabado”’, “rigidamente académico ou corretamente oficial”, “figura convencionalmente herdica ou moral e civicamente exem- plar’, “melancolicamente secundarias”, "monotonamente correto”. E, como se vé, uma adverbializacdo que surpreende e agrada, porque apesar de, por vezes, insdlita, sempre se re- vela adequada. Inusitadas mas expressionisticamente opor- tunas sdo, por igual, suas associacées de elementos fisicos e morais, de que forne¢o, colhido neste livro, um s6 mas ge- nial exemplo: o "verde fidalgo dos canaviais”’. Talvez algum leitor preferisse que as pessoas, coisas e animais de que Gilberto Freyre fala neste livro se sucedes- sem sem qualquer critério de ordenacdo textual e como que aleatoriamente. O fator aleatdrio parece estar na mo- da, tanto em ciéncias exatas e bioldgicas como em cién- cias sociais e até nas artes: vide, como exemplos, 0 movi- mento browniano em Fisica, a biologia filosdfica de Monod e a musica estocdstica de Xenakis. Ao préprio Gil- berto Freyre néo agradam o que considera como excessos de ordenagdo que acabam “abafando virtudes bem mais interessantes qué a pura regularidade ou a simples boa or- dem” (cf. Prefécios Desgarrados, v. ||, p. 701). Mas a um biblidgrafo talvez deformado pelos estudos de classifica- cdo dos conhecimentos repugna misturar alhos ¢ bugalhos: "1 mistura gilbertiana de que resultaram — é forcoso reconhe- cé-lo — livros interessantissimos como Perfil de Euclydes e Outros Perfis (1944) e, mais recentemente, o proprio Alhos & Bugalhas (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1978). Optei, portanta, pela ordenagZo dos textos em trés Partes, subdividindo a primeira conforme cinco diferentes grupos de personalidades. Mas o classificador, como o antologista, acaba sendo o primeira a reconhecer as im- perfeigdes de seu trabalho. Creio, porém, que o critério sistematico é, no caso deste livro, muito mais expressivo do que teria sido o cronolégico, adequadamente adotado, entretanto, em Tempo de Aprendiz. A classificagZo dos textos por matérias chega a dispensar, em Pessoas, Coisas & Animais, o indice tematico, © maior numero de pessoas do que de coisas e ani- mais deve ser atribuido ao grande interesse do autor pelo género biogrdfico, do qual jé tratou em varias oportunida- des: inclusive em paginas incisivas de Sociofogia (12 ed., 1945, v. I, p. 183-184; 23 ed., 1973, v, |, p. 228-229) e, Posteriormente, nessa obra notdvel mas, infelizmente, quase desconhecida que é Contribuicdo Para Uma Socia- logia da Biografia (Lisboa, Academia Internacional da Cultura Portuguesa, 1968, v. Il; 28 ed.: Cuiabé, Fundacio Cultural de Mato Grosso, 1978, 404 p.). Varios dos perfis incluidos na primeira parte de Pessoas, Coisas & Animais foram escritos a propdsito de biografias de brasileiros ilustres. Sao verdadeiramente magistrais os comentarios de Gilberto Freyre sobre a ciéncia e a arte da biogratia, O que ele espera do biégrafo é que esteja sempre “ansioso por conhecer, compreender, interpretar, revelar, reviver per- sonalidades”; e ndo que nos apresente uma estdtua ou fotografia retocada. Procurando sempre o lado humana dos brasileiros que se destacaram nas letras, nas artes ou na politica, Gil- berto Freyre tornou-se autor de alguns dos melhores re- 12 trates desses nossas patricios, Em notdvel ensaio publica- do na edi¢do de 2 de julho de 1979 do semandrio Time (p. 40-41), depois de lembrar uma observacao de Lytton Strachey — para quem era talvez mais dificil escrever uma boa vida que vivé-la — Gerald Clarke escreve estas palavras que se aplicam muito bem aos perfis de Gilberto Freyre: A good biographer should combine the skills af the novelist and the detective, and add to them the patience and compassion af the priest. A maneira do Velasquez de Las Meninas — pintor e pintura que foram objeto de algumas de suas melhores pa- ginas — Gilberto Freyre se coloca entre varios dos perso- nagens que retrata, como que a espreitar-lhes detetivesca- mente as intimidades, a procurar em suas vidas o tracgo mais revelador, a qua/itd ma/tresse de que falava Taine, as “s(nteses draméticas’” 2 que ele mesmo alude nesta outra obra-prima de observagdo e de estilo com a qual conclui- mos a apresentaodo de Pessoas, Coisas & Animais: “Symons me parece ter inteira razéo quando diz que o biégrafo do futuro no serdé o puro scia/ar mas o indivi- duo ‘évido de personalidade’. Isto é — penso eu — ansioso por conhecer, compreender, interpretar, revelar, reviver personalidades. E sendo as personalidades, até mesmo para os sacidlogos, ‘sinteses dramaticas’ de épocas, meios, clas- ses, ragas, sub-racas, mowimentos, reacdes, revolugdes, o elemento dramdtico nunca Ihes falta, embora as vezes se es- conda dentro de grandes simulagdes ou aparéncias do que os ingleses chamam undramatic. Nem por nao ter havido tiro, duelo ou fome na vida de um Robert Browning ou na de um Thomas Hardy, deixaram eles de ter sido perso- nalidades dramaticas, E o mesmo é certo dos Mallarmé, dos Goncourt, dos Mark Twain, dos homens aparentemen- te mais tranquilos que tém criado obras literdrias superio- res ou realizado grandes experiéncias art/sticas’’, Edson Nery da Fonseca 13 PESSOAS Santos e quase santos S. SEVERINO DO RAMO* Alguém aludiu hé pouco ao fato de que, menino de sete ou oito anos, teria eu ido do Recife ao interior de Per- nambuco visitar a igreja de S. Severino do Ramo. Talvez para pedir alguma gra¢a a0 poderoso santo, hdo de concluir os maliciosos. Quando a verdade é que nem em tao remota meninice, nem depois de homem feito, fiz até hoje qual- quer viagem para pedir graca de santo ou obséquio de po- deroso, Gonheci a igrejinha de S. Severino do Ramo — 0 en- tdo “Rei dos Santos” do Brasil (Bahia acima, é claro, e res- peitados os direitos de N. Sr. do Bonfim) durante a longa temporada que passei no engenho do mesmo nome, per- tencente aos meus parentes Souza Mello, Descendentes de senhores de engenho arruinados do Sul de Pernambuco — que € a zona dos engenhos mais caracteristicos e tradicio- nais da velha provincia — mas nascidos ja no Recife, foi *Reproduzide de Autores & Livros (suplemento literario de A Manhé, Rio de Janeiro} v. II, n° 10, p. 156, 4 out, 1942, aquele engenho do Norte o primeiro que conhecernos, eu @ meus irmdos. Seguimos para §, Severino, perto de Pau-d‘Alho, de- pois da morte da nossa avé materna. E foi para todos nés uma aventura quase de meninos de romance de Robert Louis Stevenson, embora o preto de luto fechado nos as- semelhasse mais a orfaos desconsolados de Charles Dickens. Nao faltavam a S, Severino nem rio, nem mata, nem cava- los, nem negros velhos dos quais fomos logo aprendendo toadas que ainda hoje sabemos decor. Por exemplo, a que comeca; Ha quatro coisa no mundo que faz admiracdo. Uma dessas coisas era “‘quilograma dar aviso, antes do vapo chega’’. Lembro-me de que custei muito a me habi- tuar 4 denominagdo de “vapor” dada a “trem. A casa-grande esta ainda de pé. E 14 continuam a vi- ver, velhinhas, mas ainda fortes, as duas Souza Mello, se- nhoras do S. Severino da nossa meninice: nossas primas Calu e Marocas, Calu sempre magra; Marocas sempre gor- da. Jé nfo me lembro é do nome da parenta velha que fazia alfinim, Desapareceram os homens da familia que conhecemos ent&o, quase todos de délmas brancos sempre muito engo- mados, todos bigodudos come uns ciganos, tabicas na mao, um deles sempre de botas de montar a cavalo, Desapareceu Pedro Velho, também nosso parente, senhor da casa-grande vizinha que, alias, j& era um chalé; mas com um terraco téo alto que nos impressionou. Diferente de todos os chalés nossos -conhecidos: da Madalena, de Caxangd, de Dois Irmaos, dos Aflitos, da Capunga. Em S. Severino do Ramo nossa meninice se familiari- zou com a vida de engenho. Vimos fazer mel e acucar, tu- do explicado aos nossos alhos arregalados pelos primas ve- lhos; bebemas garapa; e os banhos de rio nos pareceram melhores que os de Caxanga, 18 Os passeios a cavalo eram, porém, a grande aventura, Passeios curtos, em cavalas pequenos, nanicos, quase do tamanho de carneiros, j& nossos conhecidos velhos; e assim mesmo com um ou dois moleques de lado, Passeios longos, os meninos 4 garupa das pessoas grandes, as vezes até a cidade de Pau-d'‘Alho, atravessando-se o rio e muitas terras de cana. ‘Um desses passeios longos me fez voltar tarde da noi- te, da cidade de Pau-d’Alho ao engenho, 4 garupa do meu tio Dedé, num cavalo chamado Bandinha, devido ao seu jeito cavilosa de sé andar de lado. Noite para os méus sete anos, sinistra. Tudo escuro. Chuva grossa. Trovao, O rio jd roncando de cheio, O vento gemendo nos pés de cana: gemidos de almas penadas. O préprio tio com medo; mas — justi¢a Ihe seja feita agora — nao tanto da furia dos ele- mentos nem das almas do outro mundo como das senhoras furiosas e assustadas que nos receberiam na sala da frente do S. Severino, j4 com remédios caseiros contra os perigos do resfriamento e indignadas com a doidice daquele pas- seio em dia téo mau. Pois nao vira o idiota do Dedé quea chuva estava se armando desde a hora do almoco? Nao vira o aluado isso? N&o vira aquilo? — patati-patata. Dessa “noite sinistra’’ guardo uma recordagdéo de aventura e de perigo, de que noite nenhuma, das minhas experiéncias de grande, sequer se aproxima. Nem da noite meio acre em que acompanhei Estdécio Coimbra na sua sai- da do Palacio da Governo de Pernambuco, debaixe de ba- las vindas da Rua da Aurora e vendo gente respeitavel cho- rar grosso; nem daquela, ainda mais dramatica, j4 na guerra atual, em que, no navio inglés Western Prince, a zigueza- guear ha dias, todo no escuro, pelos mares da costa da Afri- ca, 9 médico me chama meio misterioso 4 sua cabina para me encarregar de servicos de assisténcia numa das baleei- ras do vapor, em caso de torpedeamento; pois jamos atra- vessar dguas perigosissimas. Pelo que, passou 4s minhas 19 mos, num saco de borracha, os medicamentos de urgén- cia. Que eu fosse discreto e guardasse reserva para néo alarmar os passageiros, todos j4 com ordem de so dormir de salva-vidas. Creio que o meu grande medo naquela noite de chu- va e trovao, de volta de Pau-d’Alho a S. Severino pelo meio dos canaviais, vinha da impressfo da cantiga do Cabe- leira: Cada pé de cana era um pé de genie, Pais foi em canaviais de Pau-d’Alho — e talvez de S, Severino — que Cabeleira andou escondido, Cabeleira: um dos pavores da minha meninice. A voz de Fecha porta, Rosa, Cabeleira eh — vem Pegando mulheres Meninos também muitas vezes me encolhera cheio de medo, dentro de casa, E agora era aquela ‘‘Fecha porta, Rosa, Cabeleira eh-vem’’ que me dofa nos ouvidos a cada estrondo de trovdo, em pleno descampado de terras de engenho, sem porta ne- nhuma de casa que nos guardasse das garras do bicho: pois est4vamos nos préprios canaviais do monstro. Cabeleira morrera, sim, eu sabia que morrera, enforcado. Enforcado e dizendo que o pai é que lhe ensinara a matar. Mas isso de ter morrido néo contava para monstros. E eu sempre ouvira do bandido dos canaviais de Pau-d’Alho que tinha sido um monstro. Um monstro horrivelmente cabeludo, unhas enormes é amarelo que nem lobisomem. Rezei baixinho a Nossa Senhora e ao bom Deus; mas é espantoso que estando & sombra de S. Severino — o “Rei dos Santos’, cuja igreja era quasée a capela de engenho da casa j4 um pouco minha casa — no me pegasse com o Poderoso Severino, contra o perigo daqueles trovGes; contra o rumor de raiva daquele rio por onde talvez viesse 20 J4 descendo o Cabeleira, na sua canoa encantada, para nos apanhar de jeito quando féssemos atravessando as aguas. No sei se devo interpretar @ falta de fé em S. Severino como exemplo de que “santo de casa nao faz milagre’, O fato é que néo me entreguei 4 sua protegao. Sucede que dias antes me haviam mostrado, no alto da igreja, a meio caminho da torre, guardada numa espécie de sarcofago, a imagem do santo. Tivera o famoso S. Seve- tino do Ramo exposto aos meus olhos pelo ajudante do sa- cristéo, cujas melhores zumbalas ndo tinham sido para o santo, mas para nds, gente da casa-grande. Além do que, o Santo se chamava Severino, que era o nome do moleque com quem nos crigramos em casa, fazendo dele ora “‘ma- quina de trem”, que devia apitar, chiar e mover os bragos imitando locomotivas, enquanto nds o acompanhavamos como vagGes de luxo; ora simples cavalo de carro ou de cangalha. Tais associacées de idéias devem ter concorrido para diminuir, diante de minha imagina¢&o de menino, o prestigio m{stico do chamado Rei dos Santos, de modo a ngo me ter valido dele em noite t&0 angustiosa como a da volta daquele passeio a cavalo a cidade de Pau-d’Alho, Cabeleira. .. Este nem se chamava Severino — 0 nome do nosso leva-pancadas — nem tinha aquele rosto meio de moga, meio de mening, que eu vira um tanto desencantado dentro do sarcéfago da igreja. JA um negro do engenho me tinha dito, benzendo-se, mas sem as grandes demonstracdes de respeito pelo santo dos romeiras vindos de longe — até dos sertGes — que eu ja ver ’o alferes Severino’, O “alferes Severino’, que ha muitos anos os judeus tinham matado a bala. Onde? Ali mesmo, perto da casa-grande, Por isto os brances mandaram levantar uma igreja maior que todas as capelas de engenho. Outra diminuicdo de S. Severino diante do meu raciocinio de menino: “alferes Severino’, Simplas alferes @ morto a bala. Nem ao menos o corpo fe- chado as balas dos judeus, a Que me perdoe o bom santo — ainda hoje refugio de tanto cristo angustiado que lhe traz, em sinal de promessa cumprida, pés, m3os, cabecas, figados e rins de cera — por procurar explicagdes para a falta de fé que ndo deu anima 4 minha meninice de opor, sem hesitac#o nenhuma, sua do- ce figura a do terrfvel Cabeleira naquela noite de medo no meio dos canaviais de Pau-d’Alho. A verdade é que s6 me senti seguro junto de minha mie ja ansiosa por mim; e com as portas da casa-grande fechadas contra Cabeleira e outros monstros dos canaviais e das matas. Rezei mais a Nossa Senhora, pedi 2 béngdo a Papai do Céu e dormi sos- segadamente até o dia seguinte: um dia claro e de céu todo azul, com os passarinhos cantando nas drvores @ as lagarti- xas tomando sol no terrago da casa-grande. STO. ANTONIO, MILITAR NO BRASIL” O livro que o Sr. José Carlos de Macedo Soares acaba de publicar sobre Santo Anténio de Lisboa, Militar no Bra- sil, 6 dos que trazem ao acatolico novos motivos de enter- necimento por esse cristianismo mais do povo que dos dou- tores, que a Igreja sabiamente tem permitido 4 sombra de suas catedrais e abadias, dos seus seminarios e faculdades, Principalmente em Portugal ena Italia, os dois palses onde esse cristianismo liricamente popular mais tem rebentado em lendas cheias de significados profundos para os eruditos menos pedantes € para os tedlogos menos estreitos, Lendas que crescem com o vicgo, a frescura, a espontaneidade de flores do mato pelas pedras ilustres da ortodoxia, poeti- zando-se e fazendo-as confraternizar com a propria natu- reza. *Reproduzido da Jornal do Comércio (Recife) de 20 cur. 1842, 22 Esto neste caso as muitas lendas portuguesas e luso- brasileiras em torno dos trés santos mais queridos do nosso pove: Sto. Antdnio, 5. Jodo e S, Pedro. Sdo trés santos que a religiosidade do portugués e do brasileiro ha sé- culos vem associando a tudo que é significativo na nature- za e na vida do homem, seja qual for sua condi¢do: a dgua, a0 fogo, as ervas, aos passaros, aos peixes, ao carneiro, ao boi, as flores, aos frutos, aos cereais. E mais ainda, aos reis, 4s guerras, a defesa do solo contra toda a espécie de mou- ros, de hereges, de inimigos. Sao trés santos tao populares que em Portugal e no Brasil suas festas se tornaram, ha séculos, mais de patio de igreja, de largo de matriz, de praca publica, de rua larga, de ar livre, de quintal de casa, de campina de subiirbio, de al- deia, de engenho, do que de interior de igreja ou fundo de oratorio. Trés santos sem aquelas restricées no seu culto que tanto escandalizaram um dia certo pobre homem in- quieto que decidiu aproximar-se da igreja e dos santos mais ilustres que os populares; mas com tanta infelicidade que, chegando a porta da igreja exclusivista, dedicada nfo sei se a §, Francisco de Sales, perguntaram-Ihe se era irmao. Es- pantou-se o homem, inquieto com a pergunta, mas respon- deu que sim: que era irmao dos cristéos por ser como eles criaturas de Deus. Metafisica que desagradou ao interlo- cutor, para quem irméao $0 significava irmao do Sant{ssimo Sacramento, Por conseguinte, naquela época — foi isto ha largos setenta ou oitenta anos — homem branco e de alguns haveres era sO quem tinha direito a vestir a capa vermelha de irmao do Santissimo. O culto de Sto. Anténio é dos que nos fazem esque- cer e perdoar o que hé de burocratico, sectario, esnobe e até pouco cristdo nos antigos regulamentos e, hoje, nas tradic¢des de algumas confrarias e de alguns colégios — onde ainda se vé com maus olhos o irmao preto, o menino ou a menina de cor — pelo que ha de realmente cristéo, demo- 23 cratico, fraternal na verdadeira Igreja e no verdadeiro cristianismo. Nenhum santo esta mais associado a vida cotidiana do portugués e do brasileiro que Sto. Anténio; nenhum culto exprime melhor que o dele o cardter essen- cialmente democratico do nosso povo. Identificando-se, como se identificou, com o regozijo dos saldados pela entrada do santo querido no Exército e por sua ascensdo de sargento a tenente-coronel, o brasileiro dos tempos coloniais e do Império prolongou af a velha tradicéo sentimental do portugués de associar os santos 4s guerras contra os mouros, de unir os anjos aos exércitos empe- nhados na defesa da sua terra e do seu lar. E desse culto — o de Sto. Anténio, militar no Brasil — que o Sr, José Carlos de Macedo Soares nos fala em paginas que rednem & erudicao a sensibilidade, ao rigor de docu- mentacées © senso de pitoresco, a paciéncia de beneditino 0 lirismo de franciscano, ao entusiasmo pela eloquéncia ¢ bondade do santo o realismo com que recorda: “no fim da vida, homem exageradamente gordo |. . .)". Um ensaio, este, que 6 nova e alta expressdo daquele gosto aristocrati- co pelo livro esmeradamente art/stico que no ilustre ho- mem piblico e historiador se concilia com o sentido demo- cratico da vida publica e da religido, para ele sempre liga- das ao dever de servir ao Brasil, ao povo brasileiro e a boa causa das relagdes entre os povos americanos, animados de sentimentos de cordialidade internacional, A vida, a saiide, a beleza da Igreja Catdlica, esta na diversidade de tendéncias que 4 sombra do Papa e em tor- no dos dogmas sé concilia com a unidade magnifica, Esta no fato de seus santos serem t& diversos: S. Jerénimo, Sto, Agostinho, $. Tomas, Sta, Teresa de Jesus, Sto. An- tonio de Lisboa, $. Bento, S. Francisco de Assis. Esta no fato de dentro da Igreja haver dominicanos e franciscanos, padres do Oratorio e jesuitas, Esté na wariedade de ten- dancias pollticas dos seus préprios Iideres brasileiros, de 24 suas grandes figuras de leigos em nosso meio, um dos quais acaba de dedicar obra tao esmerada de erudicao e arte a reconstituigao da vida de Sto. Antonio de Lisboa, Enriquecido com ilustragdes do Sr, Perci Lau, o en- saio do Sr. José Carlos de Macedo Soares sobre Sto, An- tonio é dos que nos dao o direito a sorrir satisfeitas do aperfeigcoamento da arte do livro no Brasil, Vamo-nos libertando, néo hé divida, da longa tirania de mau gos- to que dos fins do século XIX aos nossos dias prejudicou n&o sé @ casa como o mével tradicional no Brasil, alean- cando também a arte da composicdo e impressao de livros. UM ORTODOXO BRASILFIRO DO SECULO XIX * A historia do Brasil é tao cheia de padre e de frade que de longe parece a “historia eclesiastica’’ de que ja fa- lou um dos nossos mais finos escritores catdlicos: 0 meu velho amigo Sr. Luiz Cedro Carneiro Lefo. Dai ser tdo di- ficil deixar de falar de padres e frades quando se escreve do Brasil e de sua historia. A luta contra os holandeses teve no Norte — parti- cularmente na Bahia e em Pernambuco — sabor acentuado de guerra contra herege; e a vitéria dos revoluciondrios de 1817, um ar quase de festa de igreja, Alias, a maior cabeca de 17 foi uma cabeca de padre, e a lista de implicados na *Reproduzido do Jornal da Comércia (Recife! de 17 set. 1942. Quem acabou escrevenda um ensaia sobre Lopes Gama foi, nda Olfvio Montenegro, ma Waldemar Valente: O padre carapuceiro (Recife, Departamento de Cultura da Secretaria de Estado da Educagao e Cultura, 1969]. Q prefacio de Gilberto Frevre @ esse livto de Weldemar Valente ast inctu(de em Prefécios desgarra dos, v. I, p. 449-454, 25 revolugdo esté cheia de nomes de padres. “Revolucdo de padres", chamou-a mesmo um historiador. Vem a revoluco de 24 e é ainda sangue de frade o que mais a avermelha, Sangue de frade além de tinta en. carnada de panfletos também escritos por frades patrioti- cos e exaltadamente liberais. Por tras de nomes mansos de religiosos — “Amor Divino”, “Purificagao", “Paz'’, "Encarnagao'’ e "Concei- io" — encontra-se, na histéria do Brasil, muita figura sur- preendente de revolucionaério polftico. Muito coragao consagrado menos a Jesus que a Danton. Devoto menos de Nossa Senhora que da deusa Liberdade. E o que de longe parece clericalismo é, na verdade, exemplo de brasileiros com pendor para a politica que se tornaram abades ou monges, sem auténtica vocacdo religiosa. Entretanto, 4 Igreja, no. Brasil, ndo tém faltado leais @ bons ortodoxos. O caso de D. Vital — 0 famoso “testa calda’’ — embora o bravo pernambucano talvez tenha pe- cado pelo excesso de ardor, vendo em macons docemente @ brasileira os mesmos anticlericais que foram os pedreiros- livres da Italia e da Franca. Encontram-se na histéria do Brasil, entre os Dons Vitais e os Freis Canecas, padres e frades que foram ad- miréveis mestres de bom-senso, de amor a tradi¢fo — a catélica e a brasileira, que quase ndo se pode separar da catélica — neutralizando com seus escritos e seus sermées a acdo da ideologia afrancesadamente liberal de bacharéis em Direito, em Letras e em Matematica, e mesmo de ou- tros frades e abades, por um lado; e a dos mais papistas que o Papa, por outro lado. O padre-mestre Miguel do Sacramento Lopes Gama foi um desses mestres de bom-senso e de amor a tradicao, 26 Embora as vezes com seus excessos de panfletério, em face dos problemas essenciais do Brasil e da Igreja, foi bom padre — bom no sentido ortodoxo — e bom brasi- leiro. Dificilmente se encontrard brasileiro que tenha feito da defesa da tradicéo e do bom-senso causa tao chesterto- hiamente romantica e ao mesmo tempo tao pratica, rea- lista, dtil, © Prof. Olfvio Montenegro promete-nos um estudo demorado sobre o autor dO Carapuceiro, de quem acaba de ler um quase desconhecido tratado sobre a elogiéncia. E bom que apareca este estudo de histéria e critica litera- ria, Berm o merece o P.® Lopes Gama, conhecido também por Padre Carapuceiro por causa do nome do jornal que por alguns anos publicou em Pernambuco. Filho de médico, Miguel do Sacramento Lopes Gama nasceu na dltima fase do perfodo colonial. Mais exatiddo: nasceu no ano de 1791. O pai formara-se em Medicina em Coimbra, Chama- va-se Jogo Lopes Cardoso Machado e parece que tudo que escreveu foi sobre Medicina. O ano do nascimento de Miguel foi'um ano terrivel para a Provincia do Ceara; apareceram febres das entéo. chamadas miasmaticas com um furor que causOu muito susto e fez que se rezassem muito Sentor Deus, Misericér- dia. A pedido do governador daquela provincia, Lufs da Mota Feo e Torres, o de Pernambuco enviou para l4 uma comissio de médicos da qual fez parte o Dr, Jodo, pai do futuro padre-mestre Miguel e residente na cidade do Re- cife, Parece que por gosto da mae, de quem tomou o no- me — D. Ana Bernarda do Sacramento Lopes Gama — Miguel foi estudar para frade. Frade beneditino, Concluiu 0 noviciado na Bahia e 1a recebeu ordens sacras, Comecou 27 logo a ensinar. Voltando a Pernambuco foi designado para ensinar Retérica no Seminario e depois no Colégio das Artes. Ali ensinou longo tempo, Jubilou-se em 1838. Nesse ano, por ter de sustentar a familia, pediu e obteve secula- rizacdo, Foi entZo nomeado professor de Eloquéncia Na- cional ¢ Literatura no Liceu do Recife e no Almanaque Civil e Eclesidstico Para 1845 (M. F. de Faria), se encontra ‘© seu nome como diretor do Curso Jurfdico de Olinda: “o Comendador Padre-Mestre Miguel do Sacramento Lopes Gama, Aterro da Boa Vista”. Foi ao Rio de Janeiro varias vezes como deputado e na Marmota Fluminense escreveu umas Cartas de critica de costumes, de “um provinciano ao compadre". Mas o que o celebrizou foi O Carapucerro, jornal de critica de costumes brasileiros publicado em Pernambuco, que foi, quanto & técnica, uma espécie de avé brasileiro dAs Farpas, com menos ciéncia, é certo, mas com igual humor e igual violéncia na critica e na caricatura. Um colaborador dO Jornal das Familias, que ainda conheceu pessoalmente o P.© Gama no seu sitio do Man- guinho, diz que af por 1849 ou 50, Lopes Gama era “uma das glérias literarias do Império e debaixo do pseudénimo de Carapuceiro merecia o conceito do escritor mais casti- gado e chistoso daquela quadra”, Conceito que caiu de- pressa para tornar-se o bom do padre uma figura que hoje sO um ou outro remexidor de papéis velhos ¢ livros esque- cidos conhece e admira. Aquele seu sitio do Manguinho, Lopes Gama — que chefiara na Faculdade de Olinda a reac&o contra Betham e Hobbes, traduzindo do francés ensaios filoséficos em sen- tido aposto ao dos pensadores ingleses — gostava de con- vidar estudantes do Curso Juridico, recebendo-os entre seus livros e expandindo a vontade seu talento de conver- 28 sador um tanto sem papas na lingua, Tanto que Ihes atri- buem até ditos meio obscenas sobre o padre Dr. Barreto, “absalutista’’ conhecide por Dowtorzinho, Mas ndo eram s6 visitas. Diz a tradicéo que o P. Gama gostava de ter héspedes em casa. Mandava busca-los de cabriolé. Ficara-Ihe decerto dos beneditinos aquele jeito largo de senhores de engenho que esses fredes ganharam no Brasil, Dos beneditinos e das tradicées de familia. A casa do P.® Gama parece que estava quase sempre em festa, E provdvel que ele continuasse no Manguinho a tradicgo do ché com sequilhos da avo. Tradig¢ao que ele proprio recorda numa de suas paginas de louvador do tem- po ido: ché servido pela propria dona da casa “ao pé de uma banquinha, ja destinada para isso, e ali, debaixo de certas regras e compassos, fazia o cha, que os serventes iam distribuindo ao mesmo tempo que as torradas, os sequilhos @ os bolinhos’’. Entretanto, nfo era o P,© Gama um homem que se gastasse todo na vida de sociedade ou na arte da conversa, Como bom beneditino estudava e lia largamente. E tinha sua vida interior. O visitante do padre a quem ja nos referi- mos salienta © enorme oratorio de jacarandé com uma grande cruz negra por cima e uma lampada de prata ilumi- nando trés imagens de santos, que viu na casa do Mangui- nho, Af o panfletério rezava e fazia as suas devogGes, Que santos seriam 6 que nfo sabemos. O que é certo é que ndo perturbavam a jovialidade as vezes rabelaisiana do padre. Nem Ihe quebravam o ardor de panfletario com que mais de uma ocasido investiu contra os poderosos de sua as vezes “bestial provincia’, alguns deles contrabandis- tas de escravos e assassinos, Contrabandistas e assassinos cujos nomes ilustres ndo hesitou em publicar no seu famo- so O Sete de Setembro, jornal politico que dirigiu depois de sua “campanha alegre’ nO Carapuceiro. O P¢ IBIAPINA E SUAS MAES-SINHAS* Acabo de ler o livro que o escritor Celso Mariz escre- veu sobre o P.© Ibiapina, E um livro que revela ao brasilei- ro de hoje a capacidade de realizagio de um brasileiro extraordinario do século passado. Sozinho e em luta aspera com obstdculos de toda a espécie, Ibiapina levantou nos sertées do Nordeste, entre mandacarus e chiquechiques, uma admiravel organizagdo cristd de assisténcia social ao sertanejo, de educacdo do- méstica e industrial da mulher do interior, de amparo a Orfaos & a doentes, de combate as secas e ao cangaceiris- mo, 45 supersticGes e 4s pestes. Que de tudo cuidou o bra- vo missionaério, em quem as virtudes de cearense se aguca- ram em virtudes de santo, sem que nessa diffcil sublimaggo se perdesse a capacidade pratica de organizar, de adminis- trar, de desenvolver industrias tao caracteristicas dos ho- mens do Ceara, Noutro pafs cristéo a obra do P.® Ibiapina — suas boas e santas “Casas de Caridade” — seria hoje uma forga organizada a servico da Igreja e da obra de civilizac&o cris- ta dos sertées, Seria uma forga organizada semelhante 4 dos salesianos, $6 a nossa imprevidéncia de mestic¢os ain- da indecisos e desconfiades dos nossos valores mais inti- mos deixaria desconjuntar-se a formidavel organiza¢do do padre cearense, notdvel como obra indistintamente crista e notavel camo realizagdo arrojadamente cristd de brasi- leiros. E como tal, impregnada do melhor e do mais sau- davel dos brasileirismos. “Reproduzide de A Manhd (Rio de Janeiro) de G nov, 1942 @ do Disrio oe Pernambuco de 11 jun, 1942, ande o segundo artigo salu sob 0 titulo “O axemplo de Ibiapina’, 30

S-ar putea să vă placă și