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SAMIZDAT

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29
junho
2010
ano III

ficina
SAMIZDAT 29
junho de 2010

Edição, Capa e Diagramação: Editorial


Henry Alfred Bugalho
Lentamente, caminhamos para a última edição da Revista
Revisão Geral SAMIZDAT.
Maria de Fátima Romani Depois de quase três anos de publicação ininterrupta, esta
revista digital se prepara para seu encerramento neste mês
Autores de julho.
Ana Cristina Rodrigues Dezenas de autores passaram por aqui. Centenas de textos
Caio Rudá foram publicados. Seguimos em frente em nossas trilhas lite-
Cirilo S. Lemos rárias certo de termos deixado nossa parcela de contribuição
Giselle Natsu Sato
para as Letras, cientes de termos rompido várias das barrei-
ras que separam autores e leitores.
Henry Alfred Bugalho
Convido-os a acompanhar nossa despedida, mas também
Joaquim Bispo
convido-os a acompanhar nossas trajetórias futuras, cada
José Guilherme Vereza qual com sua própria fortuna, pois na SAMIZDAT se reuni-
Jú Blasina ram grandes e preciosos talentos.
Leandro da Silva
Léo Borges Henry Alfred Bugalho
Maria de Fátima Santos
Maristela Deves
Wellington Souza

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Obra Licenciada pela Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada


a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.
Todas as imagens publicadas são de domínio público, royalty
free ou sob licença Creative Commons.
Os textos publicados são de domínio público, com consenso
ou autorização prévia dos autores, sob licença Creative Com-
mons, ou se enquadram na doutrina de “fair use” da Lei de
Copyright dos EUA (§107-112).
As idéias expressas são de inteira ­responsabilidade de seus
autores. A aceitação da revisão proposta depende da vontade
expressa dos colaboradores da revista.
Sumário
Por que Samizdat? 6
Henry Alfred Bugalho

MICROCONTOS
Ju Blasina 9

CONTOS
A porta 10
Caio Rudá
O ar do tempo 12
Joaquim Bispo
A morte do Temerário 16
Ana Cristina Rodrigues
A filha do Crisóstomo 22
Maria de Fátima Santos

A vingança de Bento Julião 26


Henry Alfred Bugalho
Homem com violão 30
Cirilo S. Lemos

Fé 36
José Guilherme Vereza

Avaliações 38
Léo Borges

Sempre há uma verdade... (Final) 42


Maristela Scheuer Deves

O assassino. Em nome do Criador 44


Giselle Sato

ARTIGO
Geraldo Geraldes - o Sem-Pavor 48
Joaquim Bispo
O retrato como gênero 52
Joaquim Bispo
O que é certo ou errado quando não podemos
ser? 55
Leandro da Silva

POESIA
+ 2 tantos 56
Ju Blasina
O despertar de uma mulher 58
Caio Rudá de Oliveira
Casa de Platão 60
Wellington Souza

SOBRE OS AUTORES DA SAMIZDAT 62


O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada
http://www.flickr.com/photos/32912172@N00/2959583359/sizes/o/

ficina
5

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Por que Samizdat?
“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico,
­distribuo e posso ser preso por causa disto”
Vladimir Bukovsky

Henry Alfred Bugalho Inclusão e Exclusão se converte em uma ditadu-


henrybugalho@hotmail.com ra como qualquer outra. É a
microfísica do poder.
Nas relações humanas,
sempre há uma dinâmica de Em reação, aqueles que
inclusão e exclusão. se acreditavam como livres-
pensadores, que não que-
O grupo dominante, pela
riam, ou não conseguiam,
própria natureza restritiva
fazer parte da máquina
do poder, costuma excluir ou
­administrativa - que esti-
ignorar tudo aquilo que não
pulava como deveria ser a
pertença a seu projeto, ou
cultura, a informação, a voz
que esteja contra seus prin-
do povo -, encontraram na
cípios.
autopublicação clandestina
Em regimes autoritários, um meio de expressão.
esta exclusão é muito eviden-
Datilografando, mimeo-
te, sob forma de perseguição,
grafando, ou simplesmente
censura, exílio. Qualquer um
manuscrevendo, tais autores
que se interponha no cami-
russos disseminavam suas
nho dos dirigentes é afastado
idéias. E ao leitor era incum-
e ostracizado.
bida a tarefa de continuar
As razões disto são muito esta cadeia, reproduzindo tais
simples de se compreender: obras e também as p ­ assando
o diferente, o dissidente é adiante. Este processo foi
perigoso, pois apresenta designado "samizdat", que
alternativas, às vezes, muito nada mais significa do que
melhores do que o estabe- "autopublicado", em oposição
lecido. Por isto, é necessário às publicações oficiais do
suprimir, esconder, banir. regime soviético.

A União Soviética não


foi muito diferente de de-
mais regimes autocráticos.
­Origina-se como uma forma
de governo humanitária,
igualitária, mas
Foto: exemplo de um samizdat. Corte- logo
sia do Gulag Museum em Perm-36.

6
E por que Samizdat? revistas, jornais - onde ele des tiragens que substituam
possa divulgar seu trabalho. o prazer de ouvir o respal-
O único aspecto que conta é do de leitores sinceros, que
A indústria cultural - e o
o prazer que a obra causa no não estão atrás de grandes
mercado literário faz parte
leitor. autores populares, que não
dela - também realiza um
perseguem ansiosos os 10
processo de exclusão, base- Enquanto que este é um mais vendidos.
ado no que se julga não ter trabalho difícil, por outro
valor mercadológico. Inex- lado, concede ao criador uma Os autores que compõem
plicavelmente, estabeleceu-se liberdade e uma autonomia este projeto não fazem parte
que contos, poemas, autores total: ele é dono de sua pala- de nenhum ­movimento
desconhecidos não podem vra, é o responsável pelo que literário organizado, não
ser comercializados, que não diz, o culpado por seus erros, são modernistas, pós-
vale a pena investir neles, é quem recebe os louros por ­modernistas, vanguardistas
pois os gastos seriam maio- seus acertos. ou q­ ualquer outra definição
res do que o lucro. que vise rotular e definir a
E, com a internet, os au- orientação dum grupo. São
A indústria deseja o pro- tores possuem acesso direto apenas escritores ­interessados
duto pronto e com consumi- e imediato a seus leitores. A em trocar experiências e
dores. Não basta qualidade, repercussão do que escreve sofisticarem suas escritas. A
não basta competência; se (quando há) surge em ques- qualidade deles não é uma
houver quem compre, mes- tão de minutos. orientação de estilo, mas sim
mo o lixo possui prioridades
a heterogeneidade.
na hora de ser absorvido A serem obrigados a
pelo mercado. burlar a indústria cultural, Enfim, “Samizdat” porque a
os autores conquistaram algo internet é um meio de auto-
E a autopublicação, como que jamais conseguiriam de publicação, mas “Samizdat”
em qualquer regime exclu- outro modo, o contato qua- porque também é um modo
dente, torna-se a via para se pessoal com os leitores, de contornar um processo
produtores culturais atingi- od­ iálogo capaz de tornar a de exclusão e de atingir o
rem o público. obra melhor, a rede de conta- ­objetivo fundamental da
tos que, se não é tão influen- ­escrita: ser lido por alguém.
Este é um processo soli-
te quanto a da ­grande mídia,
tário e gradativo. O autor
faz do leitor um colaborador,
precisa conquistar leitor a
um co-autor da obra que lê.
leitor. Não há grandes apa-
Não há sucesso, não há gran-
ratos midiáticos - como TV,

SAMIZDAT é uma revista eletrônica


­ ensal, escrita, editada e publicada pelos
m
­integrantes da Oficina de Escritores e Teoria
Literária. Diariamente são incluídos novos
textos de autores consagrados e de jovens
­escritores amadores, entusiastas e profis-
sionais. Contos, crônicas, poemas, resenhas
literárias e muito mais.

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8 SAMIZDAT junho de 2010
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Microcontos

Oqdz...
Ju Blasina

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...Da Abundância

Tinha tanto de si mesma


que nada lhe cabia.

...Do futuro

Quero um dia ter meu eu


presente num passado bem
distante.

...Do seguro

Precisava soltar-lhe a mão,


para pegar o seguro. Mas
não estava muito certo.

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Contos

Caio Rudá

A porta
10 SAMIZDAT junho de 2010
Ela bateu a porta ria que o namorado, ta disso, instantane-
tão forte quanto ja- com quem acabara de amente foi embora.
mais imaginara que discutir duramente, Não mais voltaria.
pudesse fazer. Do viesse buscá-la? Cer-
lado de fora, de pé, tamente, não. Pouco depois, a
ajeitou-se. Cabelos porta se abriu. Cla-
penteados, ar de su- De fato, em seus ramente via-se uma
perioridade. Quem a cinco minutos à fren- face preocupada no
visse não desconfia- te da casa, ele não limite entre o inte-
ria da cena que ela havia aparecido. Ima- rior da casa e o lado
recém-protagonizara. ginou-se adentrando de fora. Olhos para o
a porta atrás, como se jardim, como se es-
Gesticulou, punhos nada tivesse aconte- tivesse à procura de
firmes. Sinal de raiva, cido. Hesitou, entre- alguém, e o rosto to-
talvez arrependimen- tanto. Concluiu que mado por um sorriso
to. Não sabia o que fazendo isso, daria o de canto de boca. O
sentia àquela hora. A braço a torcer. Era limpador de piscina
única certeza era uma a demonstração da apontava no passeio.
profunda e pausada sua fraqueza moral. Chegara para o servi-
respiração que po- Nunca fora orgulhosa, ço.
deria ser ouvida per- nem seria em qual-
feitamente não fosse quer circunstância,
o barulho da cidade dizia ela. Mas não se
grande em hora do tratava de empáfia.
rush. O que ela esta- Sua honra estava em
va esperando? Que- xeque. Ao dar-se con-

O lugar onde http://www.flickr.com/photos/hidden_treasure/2474163220/sizes/l/


http://www.flickr.com/photos/8078381@N03/3535090960/sizes/o/

a boa Literatura
é fabricada

ficina
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Contos

Joaquim Bispo

O Ar do Tempo
12 SAMIZDAT junho de 2010
“Estamos no promontó- variações de rumo. Assim Ao abrigo de um pro-
rio extremo dos séculos!... sendo, a nossa mesma grama secreto, foi, há
Por que haveremos de História pode ser encon- dois anos, enviado um
olhar para trás, se quere- trada numa das inúmeras explorador a um planeta
mos arrombar as misterio- fases já passadas ou futu- dum aglomerado globular
sas portas do Impossível?” ras, como em cada versão a 160 milhões de anos-
do que podia ter sido. luz de distância, onde se
Um dos episódios detectou que o atentado
Arrastando a brevidade de Sarajevo não resultou.
da nossa existência na singulares de consequ-
ências, aparentemente, Pretendia-se perceber
lama do nosso pequeno qual foi o pormenor que
mundo, esfrangalhamo- mais devastadoras da
nossa História recente, tal alterou o rumo da His-
nos de impotência, de tória e por quê, a fim
cada vez que a tragédia como decorreu aqui, é o
do atentado bem sucedi- de tentar evitar casos
nos atinge. Como seria semelhantes, no futuro.
perfeito podermos vol- do contra o herdeiro do
Império austro-húngaro, Como esse explorador faz
tar atrás e alterar o que o favor de ser meu ami-
correu mal, aquela nossa o arquiduque Francisco
Fernando, em 1914, na go, um dia contou-me o
palavra desbocada que seguinte:
teve consequências funes- cidade de Sarajevo, às
tas, aquela decisão que mãos de um estudante de «A minha missão era
comprometeu a nossa vinte anos, integrante de apenas seguir o estudante
vida, o episódio que um grupo nacionalista de radical Gavrilo Princip e,
desencadeou uma guer- inspiração sérvia. Quase como sombra, observar o
ra. Infelizmente, o tempo todos os historiadores que fazia, já que na Terra
parece caminhar numa estão de acordo que esse tinha sido ele a abater o
só direcção. Todas as ten- episódio desencadeou a arquiduque e a mulher.
tativas de viajar nele, se é Primeira Guerra Mundial, Nos dias anteriores ao
que existiram, falharam. que levou à Segunda, que atentado, reuniu-se vá-
A nossa única consolação levou à Guerra-fria, que rias vezes com os seus
é a ficção. Aí, temos exer- levou à hiper-potência correligionários da “Mão
cido a liberdade de viajar única e a outros males Negra”, combinando posi-
no tempo, nos dois senti- correlatos. Candidamen- ções ao longo do trajecto
dos conhecidos, à veloci- te, podemos pensar que, do alvo pelas ruas de
dade que o autor decidiu. se pudéssemos evitar Sarajevo e as armas que
E, no entanto, existem esse atentado, o rumo do cada um iria utilizar. O
modalidades indirectas mundo seria muito dife- grupo parecia animado
de viajar nele, ainda pou- rente; não teríamos pas- por um ódio violento
co exploradas: sado por aquelas guerras contra a recente anexa-
terríveis, e hoje teríamos ção austro-húngara da
http://images.suite101.com/643575_com_8uniquefor.jpg

Alguns filósofos admi- paz. A ideia é aliciante. sua Bósnia-Herzegovina,


tem que, devido à ex- Desgraçadamente, falta e falava frequentemente
tensão infinita do nosso aquele pormenor: con- da congregação futura
universo, toda a nossa seguir viajar no tempo. de todos os povos esla-
História está, também, a Nada que nos preocupe, vos, desde os sérvios aos
decorrer num número agora que sabemos detec- eslovacos, sob uma ban-
inimaginável de outros tar aqueles mundos onde deira comum – o cha-
mundos, não só a versão o rumo da História está mado pan-eslavismo. Até
que aqui testemunhamos, no ponto e na variante aqui, tudo como na Terra.
como todas as infinitas que nos interessa, e sa- O que me surpreendeu
variedades que resultam bemos viajar no espaço, foi a realização de uma
de outras tantas pequenas instantaneamente. exposição de artistas

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futuristas na cidade, a ser tas futuristas e radicais bolor acumulado – res-
visitada pelo arquiduque. do «Mão Negra». pondeu o pintor escultor.
O grupo infiltrara lá um – Também penso isso – – Sabes o que ouvi dizer?
elemento, como seguran- acompanhava Gavrilo. – Que, ao longo da vida, já
ça, o qual deveria detonar O mundo está submetido matou cinco mil veados
uma bomba escondida a impérios que oprimem em jornadas de caça, o
na escultura mais repre- os povos. feroz. Gosto desse laivo
sentativa, quando Francis- futurista dele, mas não
co Fernando estivesse a – Nós, os futuristas, quero conhecê-lo. Quan-
admirá-la. cantaremos as grandes do cá vier, não tenciono
multidões agitadas pela estar aqui.
Na antevéspera, Gavri- sublevação – enlevava-se
lo, com outro elemento, Boccioni. Pouco depois, despedi-
foi visitar a exposição. ram-se. Pareceu-me que o
A ideia era distrair al- – Só a Sérvia nos pode grupo não gostou destas
guém presente, enquanto salvar da pata do impé- últimas declarações de
a bomba era instalada. rio – declarava Jovanovic. Boccioni. Além disso, a
Por coincidência, estava – Com os nossos irmãos bomba já fora instalada
presente um dos artistas de outras regiões eslavas, na formidável escultu-
– o depois famoso Um- formaremos uma grande ra que agora está em S.
berto Boccioni. Gavrilo e nação que renovará o de- Paulo – “Formas Únicas
o companheiro mostra- cadente ocidente, confor- de Continuidade no Espa-
ram-se interessados nas me bem disse o grande ço” – a mais emblemática
obras expostas, e o artista Bakunine. da exposição, e que está
gostou do seu ar radical – A guerra é a úni- representada nas moe-
e da sua postura revolu- ca higiene do mundo das de vinte cêntimos de
cionária. Para ilustrar a – prosseguia Boccioni, Itália.
atmosfera que se vivia na alimentado pelo radica- No dia da visita do
Europa, mesmo dentro lismo dos visitantes, e arquiduque, 28 de Junho,
dos movimentos artís- citando o manifesto futu- a comitiva deslocava-se
ticos, relato alguns dos rista de 1909. – O patrio- em sete carros. O arqui-
diálogos mantidos pelo tismo, o gesto destruidor duque e a esposa iam
pequeno grupo: dos anarquistas são belas no terceiro. O primeiro
– Gosto destes teus ideias pelas quais vale a membro do grupo, Meh-
“Estados de alma” e do pena morrer.» medbasic, não disparou
“Tumulto na galeria” – Nessa altura – confes- por não ter bom ângulo.
começou Jovanovic, afas- sou o meu amigo – eu O segundo lançou uma
tando o artista da zona já duvidava que, com tal bomba que falhou o alvo,
das esculturas. – São incitamento, Gavrilo dei- mas feriu várias pessoas
violentos. xasse de executar o gesto do carro seguinte. Tomou
– Nenhuma obra que assassino pelo qual ficou rapidamente uma pílula
não tenha um carácter conhecido na Terra. de cianeto e lançou-se ao
agressivo pode ser uma «– Que pensas do rio que atravessa Sarajevo,
obra-prima – teorizava arquiduque que depois mas a pílula não fez efei-
Boccioni. – Já não há be- de amanhã visitará a tua to; foi retirado do rio e
leza senão na luta. exposição? – perguntou quase linchado. A polícia
ele ao artista. levou-o. Como cá.
Rapidamente, a conver-
sa derivou para temas de – Acho-o capaz de Eu não estava a ver o
patriotismo, anarquia e iniciar uma bela guerra, que é que iria ser dife-
insurreição, afinal, caros aquela que a Europa pre- rente. Os restantes mem-
a ambos os grupos: artis- cisa para varrer todo este bros, incluindo o que eu

14 SAMIZDAT junho de 2010


vigiava, fugiram. Como Compreendi que o
na Terra, o arquiduque atentado na Terra foi Henry Alfred Bugalho
A
irritou-se fortemente pela bem sucedido devido GUI
recepção tão hostil e
mais tarde foi visitar os
feridos ao hospital. Como
apenas a uma circuns-
tância meramente casual,
e não foi tão decisivo
Nova York
sabes, foi nesse percurso
que, inesperadamente, o
assim. A atmosfera de
confrontação que se vivia para Mãos-de-VAca
seu carro surgiu na rua no continente, que até os
onde Gavrilo Princip movimentos artísticos re-
deambulava furtivamente flectiam, era determinada O Guia do Viajante Inteligente
e este aproveitou para por uma atitude belicosa www.maosdevaca.com
disparar. Um acaso in- das potências envolvidas,
feliz, que lançou a Terra cuja arrogância as inca-
numa espiral de guerras. pacitava de dialogar com
Ali, Gavrilo procedeu de as minorias subjugadas.
forma diferente. Postou- Aprendi que foram e são
se perto da sala de expo- essas potências as gran-
sições, esperando, talvez, des responsáveis pelas
que o arquiduque manti- guerras. Qualquer pretex-
vesse a visita programa- to lhes serve para prosse-
da. Não manteve. Acabou guir políticas de domínio
por voltar para Viena global.
sem um arranhão. Para o ano, tenho a
Fiquei feliz pelo re- incumbência de averi-
sultado, sem contudo ter guar que pretextos foram
uma opinião clara sobre usados para começar a
a causa da variação. Para guerra contra o Iraque,
uma melhor percepção em três pontos diferentes
da diferença resultante, do Universo.»
fiquei lá mais um mês.
Por essa altura, como na
Terra, o imperador Fran-
cisco José acusou a Sérvia
de fomentar a subleva-
ção em algumas regiões
ocupadas pelo Império,
fazendo várias exigên-
cias de controlo. Como
aqui, a Sérvia aceitou a
maioria delas, excepto as
inspecções dentro do seu
território, por considerá-
las uma violação da sua
soberania. Então, o impé-
rio austro-húngaro ata-
cou a Sérvia, a Rússia foi
defendê-la, a Alemanha
juntou-se ao império, e,
como aqui, o resto que tu
sabes.

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Contos

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Ana Cristina Rodrigues

A morte do Temerário

16 SAMIZDAT junho de 2010


Corria tranqüilo o ano do rico. de suas palavras. La Marche
Senhor de 1488. Na residência - Meu príncipe, não con- pensou. Havia verdade no que
do arquiduque Maximiliano sigo entender a sua pergunta. haviam contado ao seu jovem
de Áustria em Bruges, os ares Pois sabe muito bem que seu pupilo. Todas as noites, ainda
da primavera começavam a avô materno, Carlos da Bor- tinha pesadelos com a batalha
espantar o frio dos grandes sa- gonha, que Deus guarde sua de Nancy, o cativeiro depois
lões. As lareiras ainda perma- alma, morreu ao tentar recu- da derrota e a humilhação de
neciam acesas, mas a sensação perar a cidade de Nancy que ser levado a reconhecer um
de enregelamento já passara. caira nas mãos de seus inimi- corpo gelado e endurecido.
Olivier de La Marche seguia gos, os lorenos. Mas em momento algum Car-
em silêncio pelos amplos Ele balançou vigorosamente los havia sido abandonado por
corredores, com o cuidado a cabeça. seus soldados, que lutaram por
de quem já vivera por anos a - Sei disso, mestre. O ele e por sua casa até o fim.
mais do que o esperado. senhor mesmo já me contou. Felipe sorriu.
Ao ouvir passos leves e Mas Luís de Cléves falou- - Eu sabia que era mentira.
apressados atrás de si, parou me da história que corre na E que o senhor iria me contar
e virou-se. Mesmo com sua corte do rei de França. Entre toda a verdade, para que eu
idade avançada, o treinamento os franceses, diz-se que meu possa ensiná-la aos demais.
de soldado que recebera em avô morreu ao tentar fugir do O que ele poderia fazer?
sua juventude não havia per- campo de batalha, depois de Desmanchar as ilusões do
dido efeito. Reconhecera com ter sido abandonado por seus menino, que tinha no avô
acerto o andar do seu jovem soldados. Ficou estendido no materno, que não conhecera,
príncipe, filho e herdeiro do chão como se fosse um qual- um ídolo, em grande parte
arquiduque. Ele não tinha o quer, o rosto devorado pelos por influência do próprio La
mau costume de correr dessa lobos. E que o senhor, junto Marche?
forma tão pouco adequada, com outros de nossa Casa, - Venha comigo, meu prín-
muito menos atrás de seu pre- só o reconheceram por uma cipe.
ceptor e mestre de cerimônias cicatriz no flanco. Caminharam em silêncio
de seu pai. A cólera acendeu-se no co- até a biblioteca. Ali eram
- Meu senhor e príncipe. ração plácido do velho servi- guardados os ainda ricos
Pergunto-me o que poderá dor borgonhês. remanescentes da fabulosa co-
ter acontecido, para provocar - Que o Inferno carregue leção de livros dos duques da
tanta pressa? o degenerado e traidor que Borgonha, que antes ficava em
Ele parou, ofegante, olhan- lança essas infâmias ao ven- Dijon. Nos áureos tempos do
do para La Marche. Quando to. Pois, por minha honra, o duque Felipe, bisavô do meni-
finalmente recuperou o fôlego, único ser sujo o suficiente no, quando La Marche ainda
fez o velho nobre francês ficar para espalhar tais mentiras era jovem, dezenas de escri-
sem respirar. é Phelipe, que antes era de bas copiavam manuscritos,
- Mestre, como morreu Commynes. Foi conselheiro que depois eram levados para
meu avô? do duque, seu mais leal servi- as mais famosas oficinas de
Antes de responder, o velho dor e abandonou a causa do iluminadores flamengos, nas
servidor fixou o olhar nos nosso príncipe durante a noite, quais eram adornados com
traços delicados de seu pu- comprado que foi pelo infer- cores vivas e filigranas dou-
pilo. Tinha muito da beleza nal rei, pai do que está agora radas. As obras que compu-
da falecida mãe, suavizando a no trono. Traidores e perjuros, nham a biblioteca refletiam o
herança facial tão marcante os dois, rei e servo. E agora, vasto conhecimento humano:
dos Habsburgos. A boca era buscando as graças dos frívo- os grandes autores clássicos,
ligeiramente entreaberta, o los e sem honra, Commynes tanto em sua língua original,
queixo também era típico da mancha a memória daquele quanto em traduções rica-
família paterna, mas não tinha que foi o seu legítimo senhor! mente comentadas, os poetas,
a aparência de gárgula do pai Acenando com a cabeça, os trovadores, os cronistas...
e do avô, o imperador Frede- o jovem indicou o acerto um códice com os versos do

www.revistasamizdat.com 17
duque de Orléans, escrito mais desonrosa é a calúnia. E animais. Como o grande
pelo mesmo. O nobre poeta dentre as injúrias infundadas, caçador que era, interessou-se
era lembrado com carinho o pior tipo é o que ofende pelo livro e começou a ler.
por La Marche, em memória os que já faleceram. Mas a Nas páginas ricamente ilumi-
dos tempos em que o então verdade deve sempre apa- nadas, meu príncipe achou a
jovem escudeiro passara horas recer, e irei contá-la a você. solução para o problema que
agradáveis conversando sobre Naquele dia frio e desolado há muito o afligia. De todos
a arte da escrita. Mesmo em Nancy, no inverno de os nobres cristãos, de todas
alguns volumes impressos nas 1477, fui levado perante um as qualidades, ele era o mais
prensas dos países do Norte já cadáver. Na minha frente, um poderoso, com cinco títulos
ocupavam lugar de destaque corpo devorado por lobos, o ducais e inúmeras senhorias,
na biblioteca ducal. rosto em farrapos, congelado, mas ainda faltava a maior das
Na sala pouco iluminada, com cicatrizes recentes e uma honrarias, o título real. E a so-
La Marche vagueou entre mais antiga no abdomen. Eu lução seria encontrar a fênix,
os livros. Muitos eram de disse aos franceses que aquele ave miraculosa, e apresentá-la
escritores seus conhecidos, era o meu senhor e príncipe, ao Santo Padre em Roma, que
autores que estiveram um dia o duque Carlos, o Ousado, a não poderia negar mais o seu
a serviço da mais brilhante quem os franceses chamam pedido.
casa nobre de toda a cristan- até os nossos dias de “Temerá- Não precisou sequer olhar
dade. Seus olhos pousaram na rio”. No entanto, o corpo que para seu pupilo para saber
tradução dos “Feitos de Ale- reconheci não era o do seu que ele não tinha entendido.
xandre o Grande”, do romano avô, pai de minha senhora e - A fênix é raríssima, tendo
Quintus Curtius. Vasco de princesa, a falecida Maria, que sido avistada poucas vezes.
Lucena, o letrado português Deus a guarde. Pois Carlos es- Quando esta ave fantástica, de
que traduzira e comentara a tava a muitos dias de viagem penas de ouro e cobre, olhos
obra, em homenagem a Car- de Nancy, em peregrinação, de rubi. sente a hora da morte
los, então herdeiro do ducado, na busca por um tesouro que chegar, constrói um ninho e
havia sido um grande amigo o transformaria de direito no se expõe ao sol. Em poucas
do mestre de cerimônias. maior dos príncipes, o que ele horas, ela queima totalmente,
já era de fato. não sobrando nada além de
- Mas também o tempo Os olhos do jovem arrega- cinzas. E dessas cinzas, surge
levou-te, Vasco. E só restei eu... laram-se de espanto. um único ovo, de onde sai ou-
– sussurrou, a voz embargada. - Difícil de acreditar, não, tra de sua espécie. Ela é sím-
- Falou alguma coisa, mes- meu jovem? Mas foi o que bolo de Cristo, pois é o único
tre? aconteceu. Meses antes da animal capaz do milagre da
Acenou negativamente. batalha de Nancy, o duque ressurreição. E Cristo é o Rei
Sentou-se perto da lareira e reuniu o seu conselho. Esta- dos reis, portanto ter uma
indicou uma cadeira ao jovem vam presentes, além de minha pena dessa ave é levar consi-
príncipe. Antes de começar, pessoa, o chanceler da Bor- go um estandarte do próprio
levantou os olhos para as pin- gonha Nicolas Rolin, o sábio filho de Deus. Assim, seu avô
turas penduradas. Deteve-se português Vasco de Lucena, a seria finalmente considerado
no retrato de Carlos, pinta- duquesa Margarida e a jovem digno da coroa real.
do antes de assumir o título filha de meu senhor, ‘mada- - E onde ela vive, mestre?
ducal. Era tão jovem, deixara me’ Maria, sua falecida mãe. - Uma das páginas do livro
a vida tão cedo e de forma Reunidos em um amplo salão, continha as indicações para
tão injusta. Prometera jamais muito semelhante ao do cas- encontrar o pássaro. Nas
mentir ao seu pupilo, e o sen- telo d senhor arquiduque, seu terras distantes do Egito, perto
so de lealdade à memória de pai, ouvimos meu duque nos do mítico reino do Preste
seu senhor falava alto. Respi- contar que havia achado entre João, há um jardim que guar-
rou fundo e começou. os livros da grande biblioteca da dois exemplares de tudo
- Saiba, meu jovem senhor, uma obra rara, que tratava o que Deus já criou. Desde
que das armas da guerra, a das propriedades de todos o simples rato até os mais

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exóticos animais das Índias. ele desembarcou nas costas vam exaustos.
Dos tigres ferozes ao manso do misterioso Egito. As noi- Há muito que as cidades e
cordeiro. Pois lá também exis- tes estreladas sobre o deserto as estranhas construções fica-
tiria a única fênix de todo o o acolheram enquanto ele ram para trás. Conforme iam
mundo. atravessava resoluto o imenso seguindo o grande rio, o mun-
- Mas lá não haveria dois mar de areia. Segundo o livro do ia se modificando. Mais
exemplares de cada criação que lera, o lugar maravilhoso plantas surgiam aqui e ali, o
divina? habitado pela fênix era onde vento soprava mais fresco. E
- Sim, meu jovem. Mas a o grande rio, o Pai do Egito, súbito encontraram, surgindo
fênix é especial, pois só pode surgia, nas proximidades do por trás de uma coluna de
haver uma. Seu avô estava Éden. Semanas e mais sema- areia, um jardim maravilhoso.
decidido. Partiria em busca nas se passaram, enquanto As árvores brilhavam ao sol
dessa ave, para finalmente seguiam incólumes por estra- com folhas verdes de esmeral-
poder ser chamado de rei. Há nhas construções na areia, e das e frutos vermelhos feitos
muito reivindicava tal direito, por bandos de infiéis. de rubis. Havia duas de cada
mas apesar de todas as suas - Como eram essas cons- espécie de planta criada por
terras, títulos e honrarias, truções? Deus.
seus pedidos foram negados - Existiam várias. Uma Debaixo das copas frondo-
pelo Papa e pelo Imperador, representava um animal ma- sas das árvores, mesas co-
temerosos do seu poder. Com ravilhoso, corpo de leão, asas bertas com os mais diversos
a mais rara das criaturas de de águia e rosto humano. Era tipos de iguarias exóticas e
Deus em mãos, não haveria uma esfinge, que guardava deliciosas pareciam aguar-
como continuarem a negar a passagem de um tesouro. dar o início de um grande
o seu real valor. Nenhum de Aquele que o quisesse, deveria banquete ou festival. Ricos
nós concordou com o plano. responder certo a um enig- adornos de pedras preciosas
Era arriscado demais, homem ma. Os séculos passaram-se enfeitavam cada um dos ser-
algum havia ido ao Jardim das e nenhum homem acertou, viços. As criaturas fantásticas
Delícias e retornado. O duque e o castigo era ser devorado das lendas serviam-se, entre
estava irredutível, não aceitou pelo monstro. Pois bem, um sorrisos e cumprimentos.
nosso conselho contrário, e jovem príncipe, muito sábio, - Quais?
tampouco outra companhia, dizem que um antepassado de - Fadas, gnomos , duen-
além de um jovem escudeiro. senhor arquiduque, respon- des... E muitas outras, que
Beijou a sua filha na testa, deu corretamente. No mesmo não conhecemos. Por entre
enxugando as lágrimas que instante, a esfinge tornou-se as árvores, todos os tipos de
corriam pelo rosto da prince- pedra. animais podiam ser vistos.
sa, e recomendou que seguisse - Ainda existem esfinges Sempre em dupla, não mais
o seu coração. Recomendou- guardando tesouros? do que dois de cada espécie,
nos cautela e disse que vol- - Quem sabe, jovem amo? indo daqueles que vemos em
taria em breve, para retomar Não conheço as terras do nossos pátios até aqueles cuja
tudo o que lhe pertencia. Ao outro lado do ‘Mare Nostrum’. descrição conhecemos apenas
cair daquela noite, partiu. O mais longe que fui na vida por meio dos livros dos anti-
Disfarçado como merca- foi Londres...não passei da Ilha gos sábios. Em uma clareira,
dor, em poucos dias chegou Bretã e dos portos franceses. dois unicórnios descansavam
ao porto de Marselha. Com o Deixe-me continuar, lembran- ao sol, enquanto um casal de
vento a seu favor, meu senhor do que o que estou contando seus parentes alados, da famí-
e duque pouco demorou no foi relatado a mim pelo jovem lia do famoso Pegasus, alçava
mar Mediterrâneo. Apesar escudeiro que acompanhava vôo. Um par de grifos alisa-
dos inúmeros perigos da o duque. Acabou a comida, va as penas das asas com os
viagem no mar infestado de e a água escasseava... mesmo bicos aduncos. Nos caminhos
piratas, nada aconteceu. Um os estranhos animais que os que cortavam o lugar, ser-
bom sinal, sua viagem estava homens do deserto montam, pentes com torsos humanos
protegida pelos anjos. Então, chamados ‘camelos’, já esta- limpavam o chão cantando

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uma estranha melodia. Duas respondessem. do escudeiro, um pequeno
esfinges, animais maravilho- “Pouco nos importa teu caminho abriu-se na frente
sos, leões com faces humanas nome e tuas senhorias, huma- do meu príncipe. Estreito e
e asas de águia, foram em no. Somos todos aqui filhos cercado, no seu início, por ar-
direção do meu senhor. diletos de Deus. Não como bustos espinhosos que rasga-
- Eram parentes da que vocês, traidores! Repare que ram a sua carne. No entanto,
fora transformada em pedra? em nosso Jardim há um par mesmo a dor aguda não o
La Marche havia esquecido de toda a criação, menos de fez esmorecer. Ao contrário,
que havia descrito a constru- vocês, filhos de Adão! Não fortaleceu seu espírito e ele
ção egípcia. são bem-vindos aqui!” prosseguiu. Sua roupa virou
- Bem lembrado, meu caro Arreganharam os dentes um farrapo indigno de cobrir
jovem. Não sei, mas é prová- e avançaram em direção ao tão majestoso homem. Quan-
vel que sim, já que estes seres meu senhor, que não recuou do pouco restava do pano
nunca foram comuns. A mais um passo. Ficou olhando que o vestia, a trilha alargou-
velha, de cabelos grisalhos sereno enquanto aquelas hor- se.
e expressão absolutamente rendas criaturas de pesadelo Essa senda larga atraves-
serena, se dirigiu ao duque. aproximavam-se. Podia sentir sava um pântano no qual
“Quem é você e o que o hálito quente e pestilento vapores pestilentos subiam
quer de nós? Porque invade o em sua face, e não retroce- do chão. Qualquer homem
Portal da Criação?” deu. A mantícora que antes deixar-se-ia vencer pela
“Sou Carlos, duque de Bor- falara começou a rir. Parou náusea e ficaria prostrado no
gonha, de Luxemburgo e do de mover-se e encarou o caminho. Mas meu senhor
Brabante, conde de Flandres, duque. não se abateu. O pouco que
senhor de muitas terras, des- “É corajoso para um hu- sobrara de sua rica túnica de
cendente de reis e príncipes mano, príncipe da Borgonha. seda ele colocou sobre a boca
das mais nobres casas. Vim Pode ir procurar a fênix. e o nariz, impedindo que seu
em busca da ave fênix, para Porém, depois não reclame se corpo fosse invadido pelos
poder me tornar rei!” conseguir.” miasmas da podridão que
Quando o último eco da E assim aqueles dois seres o cercava. Porém, isso não
palavra rei sumiu no ar, uma de infâmia abriram caminho evitou que insetos saíssem
sombra obscureceu o sol por para meu senhor. Com a daquela lama pútrida e co-
alguns instantes, e na frente segurança daqueles que pos- brissem o seu corpo, causan-
do meu senhor, surgiram as suem a verdadeira nobreza, do coceiras terríveis. Mesmo
duas criaturas mais assus- ele avançou. Nesse momento, assim o duque continuava seu
tadoras que ele jamais vira. separou-se do escudeiro, que caminho.
Também possuíam corpos iria assistir a grande aven- Conforme andava, o pânta-
como os do leão, mas seus tura de seu amo ao longe. no tornava-se menos inóspito,
rostos eram como o de Pois Carlos respeitava seus até que por fim todo o chão
demônios, com olhos rasga- servidores e não iria arriscá- ficou novamente firme e seco.
dos, negros como a noite e lo. Daquele local em diante, O duque Carlos, nu, o corpo
bocarras com duas fileiras de sua trilha não poderia ser a rasgado em inúmeros peque-
dentes, afiados como lanças, de outro homem, mesmo um nos cortes, estava defronte a
rabos iguais aos do escorpião. servo leal. O que contarei uma imensa montanha. Sua
Voavam graças a duas asas a seguir foi visto por esse pele latejava e ardia devido às
horrendas, como as de um jovem a grande distância, por mordidas de insetos. Os olhos
morcego. Meu senhor lem- meio de um espelho trazido ainda estavam enevoados dos
brou-se das gravuras do livro, por uma das mantícoras. A vapores pantanosos. Com ar
e concluiu que eram mantí- besta aconselhou-o a observar de desânimo, avaliou o seu
coras, bestas das mais peri- com atenção para que pudes- próximo desafio. Era como se
gosas e das mais detestáveis se narrar tudo exatamente a imensa pedra gargalhasse
que Deus colocou no mundo. como havia ocorrido. de sua impotência e fragili-
Não deixaram que as esfinges Depois de separar-se dade. As laterais eram escar-

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padas, íngremes e não havia o ninho quando está pronta percorrera parte da Europa,
outro caminho. Ele pensava para morrer e dar origem à sentiu lágrimas arderem em
em voltar quando ouviu o outra. Carlos sentiu um calor seus olhos. Onze longos anos
grito de uma ave de rapina. crescente no instante em que haviam passado desde o cerco
Ergueu os olhos e seu coração a ave começou a consumir- a Nancy e sua captura. Maria
encheu-se de alegria. O som se. Em suas mãos, a pena morrera poucos anos depois,
rouco fora emitido pela mais também estava em chamas. deixando dois filhos ao cuida-
mítica das aves, aquela que Tentou jogá-la longe, mas foi do de um marido semi-des-
buscava: a fênix, que fazia seu inútil. O vento fez com que truído por uma combinação
ninho em uma reentrância o fogo se alastrasse por todo de luto e vingança. Ao velho
na rocha, no ponto mais alto. o cume, incendiando o ninho, servidor, ele mesmo um viúvo,
Suas penas brilhavam ao sol, a sua ocupante... e Carlos, sobrara a educação de um
como o maior dos tesouros. duque da Borgonha. jovem que jamais herdaria as
Não hesitou mais um Assim morreu meu jovem terras borgonhesas.
instante sequer e colocou-se senhor, queimado com a fênix. Novamente La Marche
a caminho. Os muitos anos Porém, esta ave é eterna, e ao percorreu com o olhar o
de guerra e de sofrimentos ressurgir, trouxe consigo tam- recinto, que recendia a saber
fortaleceram meu senhor, que bém o espírito de meu senhor, e a tempos melhores. Perce-
começou a subir a montanha, que não virou rei. Tornou-se beu um volume aberto em
vagarosamente. As pontas imortal. Os nobres filóso- cima da mesa do escriba. Era
das pedras rasgavam sua fos afirmam que os defeitos o final de um dos trechos
pele, suas mãos sangravam humanos são expurgados da de suas próprias Memórias,
em rios, porém isso não o alma pelo fogo. Consumido que estivera ditando. Iro-
deteve. Fixou seu olhar e seu nas chamas da mais nobre nia do Destino, ou aviso da
pensamento no ninho. Neste das aves, qualquer mácula da Providência, era justamente a
momento, o duque provou carne foi limpa de meu amo. parte em que Carlos tinha seu
que valia por mil reis. Jamais É este o peregrino de sangue corpo reconhecido de for-
nenhum senhor havia tentado nobre do qual descende, meu ma tão vil. O velho serviçal,
tal proeza, nem mesmo os jovem amo. Ninguém em homem de inúmeras batalhas,
mais lendários soberanos. A corte alguma, muito menos na que debatera inúmeras vezes
dor não existia para o prínci- corte de França, pode difamá- com inimigos ferrenhos de
pe da Borgonha. Somente sua lo. Transcendeu a miséria da sua casa, com mãos trêmulas
vontade contava, e ela o levou corrupção humana e agora procurou a sua pena preferi-
ao seu destino. vive em eterno deleite no da, de um metal avermelhado
Ao chegar ao topo, meu Jardim das Delícias, junto que parecia faiscar com a luz
senhor sorriu para si mes- com outras criaturas amadas das muitas velas acesas na
mo. Finalmente. Depois de por Deus. Mas peço que não biblioteca. Escreveu uma frase,
tantas guerras travadas, de conte isso a ninguém. Não logo abaixo da cena em que
tantas batalhas perdidas, seu queremos que o maldito rei descrevia o corpo encontra-
sonho, que também fora o da França vá tentar destruir do pelos franceses em Nancy
do seu pai, iria realizar-se. A tão belo jardim por inveja do e retirou-se da biblioteca
ave apenas olhava, curiosa. duque. enquanto a tinta ainda estava
Não se moveu, nem mesmo Felipe sorriu para seu tutor, fresca no dito anexado ao seu
quando ele aproximou-se. e fez a promessa, satisfeito. trabalho.
Carlos pegou uma das penas, Agradeceu e saiu correndo, “Assim reconheci naquele
agradecendo ao majestoso ser, para retomar a atividade que corpo o meu senhor Carlos,
que reluzia com suas longas interrompera. O velho Olivier grande duque do Ocidente.
plumas douradas. de La Marche, descendente de Mas onde quer que esteja sua
Ele preparava-se para des- um pequeno nobre, criado na alma, que Deus seja piedoso.”
cer, quando ouviu novamente casa mais poderosa da França
o mesmo grito rouco. Lembre- e que a serviço de seus senho-
se, jovem, que a fênix só faz res, os duques da Borgonha,

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Contos

Maria de Fátima Santos

A filha de Crisóstomo

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– Teresinha… tomo ser pai viúvo, que lhe tornasse aquela ideia.
Assim chamou Crisós- Dona Maria Isabel Ben- Que nem fora há muito,
tomo Inácio encostado no quista, sua amada esposa, parecia-lhe a ele, Crisós-
balaústre da sacada como se finara mal parida, que tomo Inácio, e no entanto
se fosse em amurada de nem uma aguadilha Ma- já Maria Teresa fizera a
um barco. ria Teresa sugou de seu escola com a mestra, já
peito, Dona Maria Isabel estava na hora de decidir
O pai a querer saber com as miudezas infecta- se a fazia casadoira ou
dela, a querer que não das e a menina baptizada a internava no colégio,
se afastasse, chamava-a no mesmo dia em que a as freiras a tratarem de
sempre no diminutivo e, terra recebeu os restos de saber-lhe fé suficiente
no entanto, se ela estava, sua mãe: Crisóstomo Iná- para que professasse.
quando na hora da ceia cio a rentabilizar a vinda
se encontravam à mesa, Mas o medo de Crisós-
do padre até à aldeia. tomo Inácio nem era que
ou fosse qual fosse outra
a circunstância, que não Tratava-a por Maria a filha repetisse o acto.
por saber por onde an- Teresa, ou Teresa, abre- O medo ainda maior, era
dava, mesmo daquela vez viando, a não ser que a que Maria Teresa um dia
em que Maria Teresa teve chamasse, e era o caso se desse em levar a publi-
as febres – dias, e foram nesse fim de manhã: co aquela papelada, que
mesmo meses, ardendo Teresinha, tido ele dito, e escrevesse outras. Que ele
intermitente – era o pai a filha respondeu, sara- nem contara, em segredo
erguido no seu metro e coteando uma saia com de confissão, quando o
setenta e oito, magro, os folhos: padre veio em visita de
dedos polegares enfiados – Estou indo, meu pai. Páscoa. Vergonha que ele
nos bolsos do colete, a tivera de dizer que a filha
Maria Teresa longe, sal- tinha escritos, histórias,
tratá-la como era o cos- titando ao longo do ria-
tume dele: a Maria Teresa pensamentos, coisas que
cho, a responder de modo diria do demo, se bem
sabe… a menina Teresa que nem a ouviriam,
compreenda que… que ela invocasse a Deus
mesmo que tivessem essa mesmo os parágrafos
E em término de con- faculdade, as pedras que onde parecia discorrer
versa, tantas vezes: Maria pisava, quanto mais o pai dos sentires do corpo.
Teresa, eu disse uma vez lá longe, não tanto que,
e basta. repetindo o chamado, ela Uma coisa de loucos,
não o ouvisse, duas fitas pensava Crisóstomo, a vi-
E não havia apelo,
http://www.flickr.com/photos/freeparking/2165405742/sizes/o/

a dançarem nas abas lar- ver no pecado daquele se-


como será quando Maria gredo, e a pedir que Deus
Teresa implorar: Paizinho, gas do chapéu de palha,
e ela respondendo, agora lhe perdoasse se fosse
eu não posso prometer caso de estar a levantar
que nem mais uma letra, um tudo nada mais alto:
falso testemunho: que
e não me mande para o – Estou indo... seria coisa do mafarrico
convento. E ele sequioso que a aquilo que pressentia nos
E Crisóstomo Inácio, filha viesse, clamava, re- escritos da filha. Que na
implacável: Maria Teresa, petindo: cabeça de Maria Teresa
eu disse uma vez e faz-se. – Teresinha… borbulhariam ideias desa-
Nunca tratava a filha vindas.
A Crisóstomo fica-
pelo diminutivo. ra aquele medo de que Crisóstomo Inácio cha-
E isso seria por Crisós- Maria Teresa se fosse, que mando:

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– Teresinha… mido, a subir o relevo do o pai quem dissera:
*** pequeno morro que abri- – Tentaremos também
gava as casas dos ventos daquele lado.
Naquele Setembro, de norte.
Maria Teresa sentara-se Vivalma.
a olhar a água do regato Um dia inteiro cami-
nhando, e nem o som, Que na noite de lua
debaixo do ulmeiro. Ela em minguante, mal se
com os joelhos a tocarem que se ia esfumando – as
vozes a chamarem-na – e enxergava além do re-
a boca e os dedos encla- dondo de luz que enviava
vinhados uns nos outros nem a fome a demover
Maria Teresa de buscar o archote, ainda mais
em redor das pernitas bruxuleando, que soprava
magras, magicando. abrigo onde ficasse, onde
fizesse descanso para vento de norte.
Maria Teresa sem depois ir um tanto mais A cada compasso de
perceber que estava de- longe: assim como se me espera que faziam, como
cidindo, num silêncio de comandassem vozes, dirá se fora fim de busca,
segredo, o que seria a sua Maria Teresa quando os homens ruminavam
vida. Um arroubo, um contar de como foi gal- azedos a quem não sabe
desejo imenso que lhe gando o monte, um dia e criar filha sem mãe que
cresceu de sair dali onde depois o outro. a eduque: que é preciso
era a casa e, logo a seguir pulso forte e Crisóstomo
ao caminho, o povoado, e Começaram por buscá-
la pelo ribeiro, que o é manso, ruminavam no
ela desejando mundo. temor de lhe ir dizendo.
morro não era local de
Era ainda quando suas brincadeiras: não E no entretanto de
andariam as meninas da era costume. Andaram esperá-los, eram as mu-
sua idade a inventar brin- nisso os homens, a cal- lheres a afirmarem o que
quedos, mas, isso, Maria correarem as margens de até ali tinham calado, o
Teresa nem sabia. cá e de lá do fio de água. que nem tinham dito a
Encontraria o jeito de Poucos, que a aldeia era não ser na alcova, e agora
ludibriar os que havia mais um sítio: seis casas, conversavam de uma a
por perto: seu pai e Ger- a de Crisóstomo Inácio outra: que aquela menina
trudes, a rapariga que um nadinha distante do sofria de um mal, que a
fazia a lida e lhe ouvia os aglomerado porque fosse louca da casa a atacara.
contos: Gertrudes desper- a mais rica, porque fosse As vizinhas a desabafa-
cebida, que o tanto que de herança. rem o que traziam escon-
seria atenta o era medro- Nada de alguém ter dido: que seria de lhe ter
sa do que ouvia, folhas e visto a menina, diziam cuidado, que a menina
mais folhas cheiinhas de uns e outros ao fim do era dada a artes, que ela
rabiscos, que a menina primeiro dia, e repetiu-se imaginava coisas. Que
lhe lia rogando: que o até ao terceiro depois das sim, sabe… diziam
meu pai nunca desconfie. Ave Marias. como se enregeladas de
Mas foi Gertrudes Ao cair da noite, eram um medo de outro mun-
quem disse a Crisóstomo: os homens com archotes, do, como se, propalando,
a menina inventa coisas, as luzes a formarem fila exorcizassem o pavor de
e a mostrar ao pai o es- vasculhando, e depois a que viesse ter com elas o
conderijo dos papéis. dispersarem-se na subida mal de que sofria a filha
Mas isso foi só depois do pequeno serro, que de Crisóstomo Inácio, um
de Maria Teresa ter su- semelhava íngreme. Fora mal que raramente dava

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e atingira Maria Tere- na. estava em roda, o que
sa, como já sofrera dele, E ao olharem-lhe os ninguém vira e só ela
contavam de uma a cada olhos, veio-lhes à mente pensava.
outra, a falar ainda mais o que cada um ouvira de Ficou Crisóstomo cien-
baixo: a sua avó mater- sua mulher ou, em dia de te que a louca da casa
na, Dona Aninhas, que ocasião, teria sido a me- tomara em seus braços a
Deus guarde no seu seio, nina Dores que fazia os filha.
também escrevia folhas serviços a solteiros e viú-
e mais folhas de inventa- Doença incurável.
vos: podes crer, homem, a
dos. menina sofre, como hei-
E, como se contando de dizer, do mal da louca
de um pecado grave, de da casa, uma enfermidade ***
um mal que pega, per- grave.
signavam-se a dizerem: – Chamou, Senhor meu
E foi de terem sabido pai?
a menina do Crisóstomo pelas mulheres que, a
escreve, ela enche folhas. descerem a encosta e a E dizendo assim, Ma-
Coisas do demo, rema- trazerem numa mula a ria Teresa fez menção de
tavam, de novo a persig- filha de Crisóstomo, os uma vénia, a baloiçar os
narem-se. homens se iam benzen- caracóis que soltara do
do: em nome do Pai e do chapéu de palha.
No entretanto em que
a iam procurando, Maria Espírito Santo, a ver se E Crisóstomo Inácio, a
Teresa nem rezava e nem lhes fugia aquele calafrio sentir o coração a dizer-
adormecia, que a noite de terem olhado os olhos lhe de outro modo, fala-
lhe trouxera o arrepio do transparentes de Maria va-lhe:
medo a afugentar para Teresa como que a mos- – Amanhã partes para
um firmamento, que nem trarem mundos nunca o convento e não tornas.
as estrelas alumiavam, a deles sequer apercebidos.
Foi o início de uma
fé dela em Deus, e o de- E depois que desceram, estrada íngreme, a louca
sejo de mundo. Uns anos diziam as mulheres, que da casa imbuindo Maria
muito verdes enroscados assim tinham ouvido dos Teresa, a ser-lhe alento e
sobre si, o vento a pa- maridos: nem um choro, companhia para o resto
recer falar-lhe, ora toni- nem um pedir de perdão. dos seus dias.
truante, ora a soprar-lhe E faziam cruzes pela
segredos, de um modo e E nas noites sem lua,
testa e pelo rosto, e do- ainda o povo da aldeia
outro, assustador. Maria bravam-nas sobre o peito,
Teresa dormitou mais ouviria Crisóstomo Iná-
como se assim fazendo, cio:
de cansaço que de sono, fossem sendo perdoadas
tapada pela brisa quente, de pecados que estives- – Teresinha…
que era ainda sobras do sem cometendo.
ar de Verão aconchegan-
do Setembro. Foi nesse ínterim de
buscarem-lhe a filha, que
E ao dia seguinte, Crisóstomo soube que
marchou-se adiante, que Maria Teresa era possuí-
houve uma segunda noite da do poder de inventar
antes que a encontrassem: pela palavra, o poder
Maria Teresa no cimo do de dizer o que nem lhe
morro e eles a rodearem-

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Contos

A Vingança de Bento Julião


Henry Alfred Bugalho

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Ô, moço, até onde eu um destacamento de sol- de pena do bondoso cabo
saiba, esta briga vem de dados pra apaziguar os Pires:
muito tempo. O que falam ânimos. E mesmo que não — É uma pouca vergo-
é que tudo começou por houvesse novos ataques, as nha, um homem tão bom
causa dum bocado de terra, duas famílias continuaram carregando este par de
ali perto do ribeirão: algum se odiando por todos estes galhadas!
pelintra vendeu o terreno anos.
pro avô do cabo Pires e Mas o cabo Pires, ingê-
Se um Julião se encon- nuo, nunca desconfiava de
pro avô do Bento Julião ao trasse com um Pires na rua,
mesmo tempo. nada. Tinham dó dele, mas
eles mudavam de rumo; se onde estava a coragem pra
Os dois eram fazendeiros um entrasse numa casa, o falar?
e, mesmo que a terra fosse outro saía; se um se casasse
ruim — só dava pra pasto com uma guria, nenhum Um dia, seu Zé do bazar
—, nenhum deles iria abrir homem da família rival se cansou:
mão. podia se casar com achega- — Ô, cabo Pires, se eu
O antepassado do Ben- dos dela. E toda a cidade se fosse ‘ocê, corria pra casa
to ergueu uma cerca pra dividia: havia os partidários agorinha mesmo.
indicar a divisão, mas o dos Julião, e os dos Pires; — Por que, seu Zé?
outro foi lá e derrubou. Daí, ninguém se manifestava
publicamente, mas cada um — “Quem avisa, amigo
ele foi e ergueu outra cerca, é”, cabo Pires, e eu levava
que também foi derrubada. tinha sua predileção.
também a garrucha.
Ergueu uma terceira e, desta
vez, deixou uns capangas de Isto bastou pro moço,
O cabo Pires e Bento que, co’a espingarda na
tocaia. Julião eram pessoas com- mão, chegou em casa num
Quando os filhos e em- pletamente diferentes. piscar de olhos. Pegou
pregados do avô do cabo Todo mundo gostava do Bento Julião e a caboclinha
Pires foram pôr a cerca cabo Pires — crianças, ve- com as calças nas mãos, ou
abaixo de novo, os capan- lhos, coroinhas e principal- melhor, com as calças no
gas do Julião abriram fogo mente as meninas. Era um chão.
e encheram a rapaziada de rapaz bom, daqueles que só
chumbo. Foi uma correria, Cabo Pires deu tiro pra
sabe fazer o bem e falar a todo lado, matou a cabocli-
um chororô, mulher ber- verdade.
rando por causa do marido nha e acertou os fundilhos
morto, criança gritando Já Bento Julião era o cão do Bento Julião, que fugiu,
http://truewest.ning.com/forum/topic/listForContributor?user=0npq32xqgn9uc

porque o papai ‘tava no feito gente. Dava petele- sangrando e berrando, pela
Céu, uma comoção na cos na piazada, roubava as janela.
cidade. vendas, deflorava cabras e O cabo se tornou herói
havia rumores de que ele na cidade, além de bom
A guerra se instaurou. O tinha um pacto c’o diabo.
avô do Pires chamou uns moço, ele também honrava
Era tanta maldade numa só o que tinha no meio das
primos, que haviam lutado criatura que as pessoas até
no Paraguai contra Solano pernas. Ele se amasiou com
sussurravam quando men- uma polaquinha formosa e
López, e foi uma carnifi- cionavam o nome dele.
cina. Todas as noites, um teve dois pimpolhos.
invadia o terreno do outro, E não é que o filho-da- Foi então que o convo-
tocava fogo nas casas, de- mãe do Bento Julião se caram pro Contestado e,
golava os bois, e trocavam engraçou com a caboclinha por um par de meses, ele
tiros até o sol nascer. do cabo Pires? lutou contra os revoltosos.
A população da cidade Era o papo nos botecos e Quando voltou pra casa, os
estava aterrorizada, tanto nas vendas, cada um cochi- amigos o avisaram:
que o governador enviou chando sobre isto, mortos — Cuidado que o Ben-

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to Julião voltou querendo numa vila ali perto e ru- ber que tinha sido apenas
vingança. mou pr’aquela direção. de raspão, ele sacou a faca
O coitado do cabo Pires O cabo Pires estava can- da bainha e avançou como
quase borrou as cuecas, sado de rodar o mundo, por uma onça.
morria de medo que este mais que tentasse, não con- Desesperado, cabo Pires
dia chegasse. Ele não con- seguia se livrar do bicho- tirou outro projétil da bolsa
seguia mais dormir, pra homem que o perseguia. e tentava recarregar. A bala
não ser pego desprevenido; — Basta! Vou me bater c’o escorregou de seus dedos,
sempre mudava de rota, pra desgraçado — o cabo Pires catou outra, rapidinho, mas
não ser emboscado; e não carregou a espingarda — Ele Bento Julião estava chegan-
se separava mais do baca- é bom co’a faca? Mas quero do perto, faca brilhando na
marte. ver como ele se sai contra o mão e ódio saltando dos
Especulava-se o que Ben- meu trabuco! — e ria sozi- olhos. Cabo Pires enfiou
to Julião tinha feito neste nho, meio enlouquecido. a bala na culatra da arma,
tempo em que ficou desa- engatilhou e mirou. Mas
O sol estava nascendo. Bento já estava a um palmo
parecido. Dizia-se que ele Bento Julião chegou junto
tinha vagado pelos Campos de distância, faca cravada
com o vento da manhã. até o punho no bucho do
Gerais, pilhando, matando Veio andando pelas ruas,
e estuprando, mas também rival.
procurando um canto pra
havia histórias de que ele se enfiar e descansar, mas, — Por que tanto ódio? —
tinha virado tropeiro, ou no fim da única rua da vila, cabo Pires gemeu, perdendo
matador por contrato e que avistou um homem. as forças e caindo, olhos
carregava quinze mortes esbugalhados, fiozinho de
nas costas. A única certe- Era o cabo Pires. sangue saindo da boca,
za era que, na luta de faca, — Acabou, Bento, é agora estrebuchando igual porco
ninguém melhor que ele ou nunca! — cabo Pires ur- no abate.
havia, e Bento andava alar- rou, parecia até um animal Bento Julião limpou o
deando aos quatro ventos selvagem. punhal na calça, se ajoe-
que ia arrancar com seu Bento Julião se assustou lhou ao lado do moribundo,
punhal o coração do cabo com a transformação que segurou a cabeça dele e lhe
Pires. tinha ocorrido com seu fez um cafuné nos cabelos.
Numa manhã, a pola- inimigo, parecia mais brabo, — Todo mundo gosta de
quinha foi chorando contar mais duro, mais corajoso. você, cabo Pires. Te odeio
pro cabo Pires que tinha Bento teve até dúvidas de porque não posso ser igual.
visto o malvado rondando quem ganharia o duelo.
a casa. Ele tomou, então, C’uma das mãos tocou o E dizem até que ele
uma resolução importante: cabo da faca. chorava quando arrancou
mandou a polaquinha e os o coração do cabo Pires,
Ele se aproximou do como havia prometido.
barrigudinhos pra morar cabo Pires, este, por sua vez,
com os pais dela e ele ru- ergueu a espingarda, miran-
mou pro interior, pra fugir do no inimigo. Bento Julião
da morte. andou devargazinho, espe-
Bento Julião ficou puto rando o tiro. Cabo Pires
ao saber da fuga do ini- tremia, suor lhe escorria
migo. Foi atrás. Cruzou os pelo sobrolho, atrapalhava a
Campos Gerais e chegou visão.
até o Paraguai, depois des- Atirou. A bala passou
ceu até a Argentina e vol- arranhando a cara de Bento
tou pro Paraná. Descobriu Julião que, primeiro pensou
que o fujão estava entocado ter morrido, mas, ao perce-

28 SAMIZDAT junho de 2010


Ele tinha
nome dediante
“O Cantode
da si sua
lado visão ao concertista.
vampiresco, noturno,
aventureiro – enfim, o meu
chão
diante.a partitura do final
Sereia
SAMIZDATde Bach”, já que a
— Giulia Aquela mesma figura ca- de uma recente compo-
a mais difícil das missões:
Moon é, segundo fontes eu que passava as noites
bela melodia sempre se davérica, que levara tan- sição
SAMIZDATsua – a—primeira
Com tan-a

ficina
seguras (rsrs) um nome teclando com amigos so-
mostrava como um fatal tos a sucumbir,
turnos e escrevendo apontava-
contos tos autores,
lembrar quenacionais
estava eme
artístico. Como é o seu
cumprir a vontade de Deus
enome
irresistível convite ao
de batismo, e por
lhe seus
cruéis na terríveis olhos
Tinta Rubra. estrangeiros,
harmonia comabordando
a música
o vampirismo, é possível
além-túmulo.
que a opção pela adoção ausentes. E como todos os inacabada de Bach. Ter-
fugir de certos clichês
deQuase
um pseudônimo? Você
um ano após o outros,
SAMIZDAT também— OsMozart
vampi- minando,
do gênero,viu ou que a perna
ao fazê-lo
publica textos como “você paralisou-se.
ros são um dos Junto à ima-
temas
www.oficinaeditora.com
que, já estava olivre.
corre-se riscoCorreu
de desca-o
início das mortes, passava
mesma”, diferentes dos de tempos em sentiu
tempos,o racterizar o tema?
pela região umcomo
viajante gem macabra, mais rápido que pôde,
textos escritos Giu- voltam a ser moda. A que
austríaco,
lia Moon? excepcional cheiro da putrefação. As sem
GIULIA olhar paranão
— Bem, trás.existe
O
você atribui este fascínio

http://www.flickr.com/photos/erzs/1357413280/sizes/o/
náuseas dominaram-no, uma lei que diga
som de sua composição que tais
estudante
GIULIA — de música,
O meu nome que temos por estas cria- e tais características são
real é SueliWolfgang
chamado Tsumori. “Giu-Ama- o que o fez libertar-se da servia de trilha sonora
turas? obrigatórias para um perso-
lia Moon”
deus é umQuando
Mozart. nickname paralisia, caindo
GIULIA — Acho que as de joe- para
nagema vampiro.
fuga, enquanto
Acho que
que adotei quando entrei lhos a largos
pessoas gostamvômitos. Em ele
de vampiros pensava
depende como,
do bom até de
senso o
soube da maldição, não
na Tinta Rubra. Ao in- porquea são, em primeiro cada autor. aquela
Um bom senso
se meio engasgos, tosses e momento, música
vésalarmou, disse
de escolher, comoapenas
os lugar, vilões com um bom que o faça reconhecer que,
que gostaria de
outros, um nome romenoouvir o ânsias, ouviu a frase mor- nunca havia lhe parecido
layout. São parecidos com sem algumas características
vampiresco
tal concertocom títulose de
fúnebre de tal: “Termine a música”. tão viva e tão mórbida.
os seres humanos, têm as básicas, o seu personagem
nobreza como “condessa”
conhecer o seu autor. Foi Confuso,
vantagens dadesnorte-
juventude Prometeu não mais
não é um vampiro, mastocá-
e “lady”, reuni dois nomes eterna, imortalidade, la.
alertado de que a história
curtos que tivessem algum
ado, Mozart tentou dons
se alguma outra criatura. Os
psíquicos, força física. É vampiros do meu livro
era
tipo verdadeira,
de significado de para
que as levantar apoiando-se No dia seguinte, o
um monstro que tem um Kaori são os vampiros clás-
pessoas
mim. Eu já não queriam
sempre gostei do no órgão,
arsenal de que
armas sua mão
variado: jovem Mozart já bebem
sicos: predadores, não se
mais estudar música,soava
nome “Giulia”, porque e atravessou
a força, o poder como se nadaa
psíquico, encontrava
sangue (e só pela cidade.
sangue), não
sensual, gracioso e fácil de sedução, a esperteza. Pode andamum a luz do dia,pelo
têm
ele poderia ser o próxi- ali estivesse. Caiu sobre “Mais levado
ser pronunciado. E “Moon”,
mo,
porquee osou
diaumafatalapaixo-
estava o vômito, começando a ou
agir com a “mão pesada” Canto da Sereia de Bach”,de
muita força e capacidade
com sutileza, dependendo se regenerar de ferimentos.
se
nadaaproximando...
pela lua, adoroNada ficar recobrar a razão e ten- diziam. Contudo, soube-
da situação. Mas também Mas já escrevi contos em
devaneando
disso sob uma lua
o espantou. tando
pode ser afastar-se
sentimental, daquele
frágil, se
quenaoshospedaria
vampiros são que ele
seres
cheia ou ler histórias que prenúncio
enfim, pode da
ter morte.
todas as fra- havia partido durante
microscópicos, por exem- a
Dia vinte
envolvam e oito,
noites “Toca-
de luar – quezas
De da mente
bruços sobrehumana,
a terra, plo. Os clichês
madrugada, ruins
são são
e salvo,
ta e Fuga
além em Ré
de achar Menor”,
a grafia de pois já foram humanos um apenas aqueles que são mal
tudo
“moon” como
muitohaviam dito,os sentiu
legal, com algo prendendo-o
dia. Para o autor, é um per-
após o sinistro concerto.
trabalhados pelo autor.
e“o”s
lá lado a lado,
estava lembrando
Mozart pelo
den-Bugalho
sonagempé. Não
muitoteve cora-
estimulante, No cemitério, ao invés do
Henry Alfred
dois olhos arregalados de
tro do cemitério. Com os gem http://www.lostseed.com/extras/free-graphics/images/jesus-pictures/jesus-crucified.jpg
e issodefazolhar
com que parao ver o
produ- esperado músico morto,

O Rei dos
espanto. Quando lancei o SAMIZDAT — Muitos
olhos fechados, deixava-se que
to daera. E novamente
criação a
tenha grandes foi encontrada apenas
primeiro livro, não havia chances de suplicou:
ficar bom.“Ter-E, autores da nova geração
extasiar
razão para com as compo-
assinar de outra
voz suave uma inscrição com
encantaram-se na terra,
os
para o leitor, é aquele vilão
forma, já
sições deque a maioria
Johann Sebas-dos mine a música”. Fazendo parecida
vampiros com o trecho
por causa dos de

Judeus
(ou vilã) bonitão, sacana
meusBach,
tian leitores
numme estado
conhe- uma desesperada
e malvado que adoramosoração jogos departitura.
alguma RPG, especial-
Desde
cia como “Giulia Moon”. E mental, tateou
odiar. Vilões o solo
assim até
sempre mente “Vampiro: a Más-
então, não se noticiou
de euforia sobrenatural. cara” (publicado no Brasil
assim ficou. Nunca publi- fizeram sucesso,
Subitamente, o som encontrar uma pois pedraadora- mais vítimas do “Canto
quei nada como Sueli,se
pois mos esses contrastes: beleza pela Devir). Você perten-
extinguiu. O jovem
Giulia continua sendo,des-
pelo pontiaguda. Com ela, da
ce aSereia de Bach”.
este grupo ou seu
com maldade, delicadeza
menos para
pertou mim, oemeu
do transe dirigiu começou a desenhar no
com crueldade, e assim por interesse é anterior? Qual

do www.revistasamizdat.com 29
w
gr nl
át
oa
is d
Contos

Cirilo S. Lemos

Homem com Violão

30 SAMIZDAT junho de 2010


A música é a única arte
que toca de fato o cora-
ção das pessoas. O resto é
papo furado.
(Escrevo isso no espelho
do banheiro com aquele
seu batom rosa.)
O violão já está largado
num canto faz tempo, a
caneta e o caderno cheio
de frases rabiscadas caídos
pelo chão, e você aí deita-
da, tão linda. O corpo mo-
reno se esparrama pelos
lençóis úmidos de amor e
sangue, me convidando a
beber mais de você. Mas
não quero acordá-la. O
dia foi tão puxado, teve
aquela correria toda do
seu trabalho, a casa que
precisou ser arrumada mil
vezes, a comida, a bagunça
que não consegui evitar.
Por isso é melhor que
eu fique aqui parado,
observando-a agonizar
com a pele arrepiada pelo
frio, seguindo o desenho
sinuoso do seu corpo com
os olhos inundados por
uma sensação quente que
só posso descrever como
– como o quê? Não sei
como descrever isso. Para
falar a verdade, não sei
como descrever mais nada
nesse mundo. Também
não sei mais o que pensar
depois de tanta confusão
que houve mais cedo. Você
mesmo falou que não se
importa com o que acon-
tece ao meu coração. Isso
http://www.flickr.com/photos/rogersmj/3369458862/sizes/o/

www.revistasamizdat.com 31
eu posso aceitar. Jogar na nos olha nos meus olhos / mundo.
minha cara que não tenho e sorrindo, diz para todo (O seu cabelo está tão
emprego, que vivo às suas mundo / que eu não sei lindo).
custas, que sou um sonha- viver sozinho / justo eu,
O seu câncer é tão se-
dor inveterado, essas coisas que sou um cara interes-
reno / aqui se faz, aqui se
eu até posso agüentar. Mas sado / mas não estou nem
paga, são as regras, pode
dizer que não sou capaz aí / depois do que passei /
ver. (Não está ficando bom,
de escrever uma letra de- decidi que não é tão legal
estou perdendo a inspira-
cente é demais. Deus me ser assim / um conselho:
ção).
fez para a música, querida. veja o que vai de encontro
ao seu orgulho / você não A faca está brilhando
Olhou-me com despre-
me entende, é o que diz / tanto, quase como se cho-
zo, desafiando-me a es-
nem quero entender. rasse. Deve estar com sede,
crever uma canção sobre
meu bem. Será que ela
sua nudez, não devia ter Fico de pé, o ruído
gostaria de mais um pou-
feito isso. A caneta parecia gorgolejante saindo da sua
co de sangue? Sangue seu?
pesar toneladas, a folha boca me dá uma ótima
Estou pensando seriamente
pautada em branco escon- idéia para um pequeno
nisso, mas tenho medo de
dendo o diabo do blo- solo. Apanho o violão e o
machucar você, sabe. Eu te
queio, os acordes que não dedilho suavemente, can-
amo e não quero que doa.
se acertavam e você de- tando para você:
bochando, rindo de mim, Ah, mas eu não con-
Agora sei que faço parte
testando meus limites. Não tei? Sábado passado uma
de algo que importa /
devia ter feito isso, eu sou nuvem me arrastou / fui
quando a única coisa ver-
um astro da música ainda levado para o Himalaia e
dadeira é a dor que sinto
não descoberto, e nós ar- só voltou o que restou /
por você / se pode abrir a
tistas de verdade temos al- foram meus ossos e uma
porta, abra, não me deixe
mas sensíveis e passionais, perna quebrada.
aqui / sei que posso rea-
agimos por impulso. Sem gir, mas é bem mais fácil (Noite passada tive um
pensar, fui em sua dire- assim / não fui eu quem pesadelo: atrás de cada
ção, beijei-a, deitei-a sobre perdeu o compasso / nem porta tinha vinte espelhos
nossa cama e, enquanto sou o cachorro que man- e todos refletiam sobre
a penetrava, espetei seu daram para o espaço. mim).
peito com uma faca. Então
O que é que eu sou? A lâmina da faca é tão
veio a inspiração, jorrando
fria, não é?
em torrentes caudalosas. Não pode duvidar /
que a minha alma já me Agora que sei dos ami-
Com a caneta de volta
perdoou / sou um porco, gos que tenho / fica bem
entre os dedos, arrisco as
mas ao menos sou honesto mais fácil alcançar o pé
primeiras frases.
/ gosto de presunto, mas de vento.
Deixa/nossa casa é não sou canibal / o que Carne macia a faca cor-
tão perto / e o meu futu- me importa se não pode ta que é uma beleza, assim
ro é incerto / mas ainda mais correr? / aqui não pouco acima da coxa. Não
arrisco o meu pescoço só pode mais ficar se minha vou negar que a quanti-
para poder te ver / en- alma já me abandonou / dade de sangue que brota
quanto você nem ao me- somos dois refugos deste

32 SAMIZDAT junho de 2010


me assusta. Nesse ponto ontem e o amanhã / con- der o chão para comprar
eu sou um pouco sensível, vergindo para se tornar o céu. Ninguém notou a
mas você entende, não hoje. Legal isso, não é? Eu sua dor e isso te incomo-
entende? sei que é. Tenho muito da. A vida não é justa, mas
Se o meu veneno te orgulho de pensar essas quem se importa?
atrai / o seu atrai a mim coisas sozinho porque sou Apesar de tudo, não é
também / o sangue ar- um poeta. Um poeta da tão ruim assim / o seu
terial não sufocou meu dor. E não somos todos? coração tem beleza.
medo. Seus olhos estão meio Misturei os antidepres-
(Está pingando sangue vítreos, será que é normal? sivos com mel para beber
no tapete). O corte não foi tão fundo sem sentir o gosto.
assim, não chegou nem a
Olhando pela janela Lembra, morena, quando
sair um litro de sangue.
percebo que o dia passou você apareceu para mim?
Mas esses olhos tão perdi-
e eu nem vi. Agora se Na primeira vez que eu vi,
dos, tão fixos, não sei não.
aquieta, é verdade, eu não não senti nada , mas quem
São olhos que fazem sorrir
menti. É sempre a mesma me mandou insistir? Isso
/ e que fazem chorar. Suas
história, “o que há com tudo é confusão / isso é
preces não funcionaram
você? Sua caixa de sapato confusão / estou confuso
desta vez, querida. Vou ti-
não contém mais o mun- e não vai dar / nasci para
rar da gaveta o meu disco
do, onde você vai viver?” você / embora eu não
de blues / enquanto o que
Sim, querida, estou do- possa entender / como
sobra de nós dois rodopia
ente e venho de outra di- ocupar todo o espaço e o
em meio ao pus (ei, isso
mensão, onde o ódio acaba tempo perdido / você está
meio que rimou, eu não
com as ilusões de que esse presente aqui / rasgando
gosto de rimas, prefiro
planeta ainda vai mudar. minha alma / minha deu-
versos brancos). As coisas
Não existe nenhum cora- sa fantasma / consumindo
estão tão confusas agora
ção cósmico de bondade meus sonhos / abraçou-
aqui na minha cabeça.
para nos amar por aí. me com seu filtro / me
Eu matei você ou você já
Tenho certeza que aque- abandonou no sol / fiquei
estava morta quando eu
la farsa do remédio não tão perdido / buscando
cheguei? Tanto faz. Estou
funcionou. O grande vazio seu rosto na multidão.
sempre gravitando em vol-
ainda está aqui. Quem Reencontrei minha dor /
ta do desastre, de qualquer
eu amo está contra mim, reencontrei minha luz /
forma. Não seria eu se não
todo mundo querendo me reencontrei minha deusa
fosse assim.
encher de remédios, até fantasma / trazendo para
(O dia está terrível. Não, mim minha cruz (nada
você, dizendo que era para
terrível está o ano). de rimas, versos brancos,
o meu bem. Mas sou um
artista, artista não precisa versos brancos).
de remédio. De terno e gravata,
estou pronto para morrer. Seu corpo está
Isso que vê em mim não gelado, querida. Acho que
Todo dia os meus
nasceu aqui, mas vem de você está mesmo morta.
olhos / encherão de água
você. Dessas suas tentati- Você me diria se estivesse
ao me lembrar de você. O
vas desesperadas de ven-

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morta?Vou enrolar você talvez não seja tão ruim. voltar, pode retornar, mas
nesse lençol com cuidado espero que me deixe aqui.
para os vizinhos não acor- Esse é o final – se for, mas
(Eu não tenho vonta-
darem, então te arrasto que triste o fim.
de própria, só uma bateria
para o jardim. Você gosta Sua cova está pronta,
anti-social).
tanto de plantas que acho querida, preparei-a da
que ficaria satisfeita em melhor maneira levando
ser enterrada no meio das Haverá estradas para em conta a falta de fer-
flores, estou certo ou não? perdidos como eu? Vou ramentas apropriadas.
Hein? Fale alguma coisa, chorar lágrimas de sangue Quando tudo mudou entre
querida, está me assus- para você saber que meu nós, precisei me erguer
tando com esse silêncio. amor é sincero, enquanto para superar. Eu te vejo ao
Seu riso impertinente me a terra te absorve. Para te voltar da prisão, mas agora
consumia, abria meu peito, salvar sou eu quem tenho não posso ver mais nada.
me fazia em pedaços, de morrer, e se eu mor- Nem quero sentir seu
onde é que ele está agora? rer vão me esquecer, não coração. Todos os meus
Não fui eu que planejei, quero isso para mim. O gritos mostram todo o
só aconteceu. Inocência, que eu quero é dor indo- meu desejo de te ver aqui.
direi ao senhor delegado, lor para sentir sem mentir, Enquanto o tempo passa
já foi uma virtude. Hoje e viajar sem sair do lugar. sua mortalha improvisada
eu não sei mais o que é. Quero livros escritos por me aquece e me faz pen-
Agulhas não me trazem mim / e queimados por sar se é possível para mim
juventude, estou acorrenta- mim / me deixa queimar. encontrar o céu (é o mes-
do. Com tantos crimes que mo que o inferno, pode ser
Tive outra visão en-
eu cometi, quem vai me frio e congelado). Passarei
quanto vomitava no ba-
perdoar? dormindo um dia infinito
nheiro e lavava seu sangue
Vou ter de encarar do meu rosto: a lua estava para descansar.
aquele abismo que fica sobre mim e me compre- Enquanto jogo os pri-
me olhando tentando me endeu, enquanto as árvores meiros bocados de terra
assustar. Eu nunca, nunca mais altas imploravam sobre seu túmulo carinho-
mesmo, estive tão seguro por atenção. O temporal samente improvisado, evito
assim como hoje. Estou tão por um segundo esteve sujar seus olhos tão belos
feliz. Eu vou saber o que para voltar, mas o vento e amendoados. No fim,
você pensou, vou te fazer o afastou para bem longe só levamos a música que
falar. São tantas as coisas daqui (ah, se eu soubesse ouvimos.
que sonhei, talvez eu rea- o quanto estava equivoca-
lize algumas delas. Mudar do ao pensar isso!). Pode

34 SAMIZDAT junho de 2010


O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada
http://www.flickr.com/photos/32912172@N00/2959583359/sizes/o/

ficina
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Contos


José Guilherme Vereza

36 SAMIZDAT junho de 2010


Zé Batista era um centro-avante guerreiro. o coroinha papa hóstia,que nunca deveria
Acreditava piamente que seu destino estava ter deixado de ser.
nas mãos
divinas e tinha uma fé inabalável de que E tome de promessas e gols perdidos. Prome-
seus gols te celibato, subir
não vinham de seus pés, mas dos desígnios escadarias de joelhos, jejum de uma semana,
lá de cima. churrasco nunca mais.
E nada do jogo sair do zero a zero desclassi-
Entrava em campo, três vezes sinal da cruz. ficante.

Perdia gols, benzia-se, beijava medalhinha.


Fazia gols, apontava para os céus de olhos Um minuto de desconto. Última volta do
fechados, ponteiro.

ajoelhava e levantava a camisa escrita: Bola levantada na área, Zé Batista sobe mais
que o líbero,
Não fui eu, foi Ele.
a bola bate na sua nuca, goleiro vencido,
toca na trave,
Uma tarde, final do campeonato, o zagueiro tira em cima da linha,
o jogo matava a torcida num zero a zero volta na canela do Zé, que chuta por instinto,
eletrizante. meio torto,
Foram nove gols absurdamente perdidos por meio mascado, o goleiro escorrega e sai
Zé Batista. catando a maldita,
Bolas na trave, chutes a gol aberto, pênalti que entra no gol como uma galinha tonta e
para fora, fugidia.
goleiro defendendo com a ponta dos dedos,
bico da chuteira, sustos à queima roupa. Zé Batista em transe salta mais que o pró-
prio corpo,
Zé Batista corria de um lado para o outro na braços e pernas no ar fazendo um xis.
área, E desce já de joelhos, olhos cerrados,
estonteando os zagueiros, procurando a me- dedos apontando para os céus pelo milagre
lhor colocação. alcançado.
Enquanto isso, rezava ofegante e baixinho. E solta a voz:
http://www.flickr.com/photos/7amanito/3039338366/sizes/o/

Nos seus lábios, Pai Nossos, Aves Marias, - PUTA QUE O PARIU, SENHOR!
Salves Rainhas.
É agora, meu Deus, é agora, meus santos,
tem que ser agora, minhas nossas.

O tempo vai passando, a paciência se esgo-


tando.
Paciência da torcida, do técnico, do próprio
Ze Batista,
que jura, por um misero golzinho providen-
cial, voltar a ser

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Contos

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Léo Borges

38 SAMIZDAT junho de 2010


A mulher de casaco lógico, é retirar os obstá- diam. A tremedeira (que
perto da janela dormiu culos que estão bloque- pode ser de angústia, mas
com a boca aberta. Às ando suas felicidades, os em hipótese nenhuma
vezes, seu tronco tom- entraves que azedam a de frio) está claramente
ba pra cima da velha ao vida, mas todos, em últi- atrapalhando suas tentati-
lado que, tremendo como ma análise, são também vas de saborear o tabaco.
se estivesse tomando um avaliadores enquanto Uma pena, pois a fumaça
choque contínuo, ten- esperam. É regra que não e o fedor, calmamente
ta acender um cigarro. admite exceção, válida espalhados pelo mori-
Acho que não existe nada inclusive para a garota bundo ventilador de teto,
mais feio que isso, inco- de vestido curto que está revigorariam estas pesso-
modar quem está tentan- folheando uma daquelas as desanimadas. Um ou
do fazer alguma coisa. revistas fúteis, admiran- outro, é certo, iria esper-
Mas o pior é o casaco. do ou invejando atrizes near, reclamar. A mulher
Não por ser feio, mas televisivas. Com as coxas de casaco acordaria so-
por isso aqui estar uma à mostra, ela saiu de casa bressaltada (provavelmen-
sauna e ela estar vestida (claro que com a anuên- te tossindo), e eu veria,
com ele. Se bem que ele cia dos pais) para pro- enfim, alguém mudar de
também é feio (ou sou eu vocar. Como é deliciosa comportamento, transgre-
avaliando mal novamen- essa daí. Mas eu tenho dir, argumentar, gritar, “Ei,
te). de reprimir esse desejo, aqui não é lugar de ci-
Todos aqui, assim afinal é nova demais, tal- garro!”, “Onde está o dou-
como eu, têm problemas. vez não mais que quinze tor que vai me atender?”,
No meu caso são vários anos. Coisa feia (o desejo, “Preciso saber se meu
e acho que é por isso não ela). processo contra o banco
que minha memória me E aquele gordo que já andou!”, “Minha mulher
sabotou. Não me recor- não para de me olhar. me traiu pela quinta vez,
do qual profissional eu Está com raiva de mim, já é o momento do di-
procurei. Pode parecer achando que sou pedófi- vórcio?”, “Aqueles bonecos
estranho, até mesmo tris- lo. Ou não. Seu olhar é de mármore ainda estão
te (ou cômico, vai saber), meigo, um olhar muito atacando os meus croco-
mas não lembro se estou parecido com o meu para dilos!”.
na sala de espera do meu a menina, desejoso, jul- Por falar em gritar,
advogado, do conselheiro gador, cheio de luxúria. chegou um esquálido su-
matrimonial ou aguar- Abrindo meu coração eu jeito de óculos amparado
dando o psiquiatra. digo que sinto raiva de por um homem que solta
O que sei é que estou gordos, pois quase todos uns gritos ocasionais. Eu
http://www.flickr.com/photos/emiliano-iko/4250385537/sizes/o/

esperando uma solução são irônicos e se acham não me arrisco a dizer


para algo que me aflige. espertos, mas de homos- qual dos dois indivíduos
E o esquecimento já não sexuais não, já que eles vai se consultar, porque
é algo que me perturba expõem suas carências ambos aparentam estar
tanto, pois ele vem me com personalidade, sem muito doentes. É... pen-
dando tempo para que eu pudores, sem ritos, até sando bem, talvez eu es-
produza minhas versões, em salas claustrofóbicas teja mesmo num consul-
curta ou rechace aparên- como essa, e ninguém tório psiquiátrico, apesar
cias, avalie as circuns- pode contrariar, nem de nunca ter visto taman-
tâncias e as fisionomias, mesmo através de um es- duás na minha cama e
enfim, pratique mental- gar que evidencie tímida também de já ter visto
mente meu preconceito. desaprovação. muito corno gritar de rai-
O objetivo principal de A velha, o isqueiro e va e ciúmes, além de, em
todos aqui, e isso parece o cigarro ainda se digla- algum momento da vida,

www.revistasamizdat.com 39
ter ouvido os berros que qual estou nesta sala: por conseguem se ausentar
um lesado qualquer deu julgar sem conhecimento, do teatro em que estão,
quando se deparou com a por avaliar sem critério com que facilidade des-
imensa fraude que é este ou por supor sem neces- prezam responsabilidades
mundo. sidade. Quero abandonar e protocolos. É gostoso
O pequeno Cristo de esse vício silencioso, que cheirar essa omissão, toda
metal, com sua coroa de secretamente me corrói. fantasiada de seriedade,
espinhos, continua ali, Mas, para ser sincero, não e medir até onde nossa
crucificado e preso pelas sei se aqui existe alguém alma pusilânime vai.
costas a uma parede com capaz de deixar de lado Com aquele uniforme
negrumes de bolor, mui- seus sofrimentos mudos decotado ela deve real-
to bem combinada com (um paradoxo no caso do mente estar pensando
o semblante opaco dos que grita) para encarar que é atraente, que pode
que esperam. O que me uma batalha contra seus se desculpar através
incomoda é que ninguém próprios medos. Um bom de uma descompostu-
ainda se impacientou começo nesse sentido se ra cheia de falsa beleza.
com as discrepâncias daria através de um bate- Contudo, três segundos
desta sala mofada, com o boca com a cúmplice de observação bastam
calor absurdo ou a com por toda essa atmosfera para ver que nela tudo é
absurda falta de expli- envenenada: a secretária estranho e maléfico, tudo
cações, com os cacoetes – a maldita intermediá- é rude e descolorido, e
desesperados ou com os ria entre o problema e a que ela traduz bem o que
esperados desrespeitos, solução, entre o calvário essa sala é. Mas sua voz,
com as feiúras naturais e a alegria, entre o Gran- a doce voz das funcioná-
ou com as complacências de Salvador e o inferio- rias dos Grandes Salvado-
neuróticas. Nenhum dos rizado. Ela deve saber res, esta, pelo menos, deve
presentes ainda ques- bem de sua importância prestar.
tionou o tempo perdido para os enfermos, os
porque ninguém, e essa prejudicados, e talvez isso
é a dura verdade, sabe justifique sua posição no – Senhora, por favor,
muito bem o que quer. pedestal da indiferença. não é permitido fumar
Temem o que está por Além de indiferen- aqui dentro.
vir, o modo como virá te, ela é bastante vulgar, Nem isso.
e, principalmente, o que e também feia, mas se
será feito para minimizar mantém séria (juro que
os estragos caso o que não são avaliações, mas
venha, venha de maneira simples constatação). Não
hostil; o que se conhece está nervosa com a aglo-
é apenas a ânsia de que meração no recinto, com
o Grande Salvador (que os seres que chegam e se
nesse caso não é o Pai do escondem atrás de obso-
Cristo galvanizado) surja letas revistas de fofoca, de
trazendo o conforto das celebridades, de moda ou-
respostas certas. tono-inverno. E elas, a fei-
Meus olhos se mexem úra e a vulgaridade (que
e meus pensamentos ali interagem harmonica-
solidificam opiniões. mente), me incomodam,
Vim aqui para ser avalia- mas não a calma e a
do, não para avaliar. Vai indiferença (que também
ver esse é o meu grande se confundem), porque é
defeito, o motivo pelo bom ver como as pessoas

40 SAMIZDAT junho de 2010


O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada
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ficina
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Contos

Maristela Scheuer Deves

Sempre há
uma verdade....
(Final)

42 SAMIZDAT junho de 2010


O lugar onde
Depois que experi- entrei pela porta da fren- já estava com a
Eu a boa Literatura
mentei o gosto do sangue te de casa. Parei na porta boca a centímetros de
jorrando da garganta de do quarto de meus pais,
é fabricada
seu pescoço quando senti
um animal vivo, sucum- depois de meus irmãos, meu rosto queimar. Na

http://guisalla.files.wordpress.com/2008/09/machado1.jpg
bi inteiramente à minha mas me obriguei a ir sua aparente ingenuidade,
sede. Durante o dia, eu adiante. Quando vi uma minha avó recorrera ao
conseguia me controlar, réstia de luz vindo por mais básico dos truques
mas à noite escapava baixo da porta do quar- para se livrar daquilo que
pela janela e vagava sem to de visitas, porém, não eu estava me tornando:
rumo, atacando os gatos e me contive, e empurrei-a atirara água benta em
cachorros que incorriam devagarinho. meu rosto, e agora erguia
no erro de atravessar o na mão um punhado de
Sentada na cama, mi-
meu caminho. Deixava-os cabeças de alho.
nha avó me observava.
vivos, mas atordoados e
Notei seu choque ao ver Recuei, apavorada, mas
exangues, e provavelmen-
o quanto eu estava páli- ela conseguiu de alguma
te não sobreviviam mais
da e transfigurada, mas forma ser mais rápida.
do que um dia ou dois.
ela manteve a calma e o Agarrou-me e, com o

http://www.flickr.com/photos/ooocha/2630360492/sizes/l/
A única barreira que sorriso sereno. alho e a água benta, me
eu ainda mantinha, por fez sair novamente de
— Eu sei pelo que você
enquanto, era a de não casa e ir até a garagem.
está passando, minha
atacar humanos. Eram Depois, obrigou-me a di-
filha — declarou ela, sem
meus iguais, pelo menos rigir horas e horas, até o
alterar o tom de sua voz
ainda em parte, e o hor- lugar em que me encon-
sempre doce. — Aqui na
ror me invadia a cada tro agora: o porão úmido
cidade, todos iriam rir de
vez que eu pensava em e fétido de uma antiga
mim, mas já vi isso acon-
cravar meus dentes no casa de campo.
tecer antes, no interior,
pescoço alvo de alguém.
quando eu era menina. Não posso sair, pois há
Esse horror, no entanto,
alho plantado ao redor
era mesclado com um Ela ficou com o olhar
de toda a casa. A cada
prazer antecipado, um distante, perdida em pen-
dia, ela me traz água e
http://www.flickr.com/photos/drurydrama/3812983655/sizes/o/

arrepio de excitação, uma samentos, e eu vi a mim


um bife, a cada dia um
vontade crescente... mesma se aproximando
pouco mais passado. Vem
passo a passo do seu cor-
Minha mãe ainda me protegida por um colar
po frágil e indefeso. Eu
mantinha trancada no de alhos, e diz que vai me
não queria, eu juro, mas
quarto, mas, é claro, assim curar do meu problema,
era mais forte do que
como eu escapava pela que não pode deixar sua
eu. Minha sede crescia, e
janela para me alimentar neta virar uma vampira.
eu sabia que o gosto de
dos animais eu também Por vezes, penso que já
sangue humano seria mil
o podia fazer para chegar
perto de outras pessoas.
Uma noite, não resisti, e
vezes melhor do que o de
um animal...
me tranformei; noutras,
que estou tendo um pesa-
delo, um longo e maluco
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43
Contos

Giselle Sato

O assassino. Em nome do Criador

44 SAMIZDAT junho de 2010


Enquanto caminhava pe- atenção ao maltrapilho. suas possibilidades, Alice
las ruas vazias, ouviu a voz Em segundos, Jonas iniciou concluiu que o seu algoz
ordenando que fosse mais o massacre, cinco corpos era um louco, que balbucia-
atento, embora não ousasse agonizando na calçada va continuamente mantras
desafiar o Mental Superior, fria, alguns ainda gemiam desconexos em uma eterna
desta vez sentiu-se ofendido. e pediam ajuda. Não hou- canção de ninar: Crian-
Não achou justo: Logo ele, ve tempo ou estavam tão ças malvadas, céus e anjos,
um observador nato, sempre drogados que não puderam piedosos senhores do desti-
analisando todas as possi- reagir. Ignorou as súplicas no... Meninos e meninas em
bilidades e desafios... Con- e buscou o foco principal: segurança...
siderava-se um privilegiado, Agora precisava transmutar O mais assustador era a
amparado por um ser que e salvar a pequena alma que risadinha e os ruídos que
o tornava mais que especial, mantinha desacordada em emitia, sibilando, rangendo
quase um anjo. Intocável e seus braços. os dentes, passando a língua
acima de todos os comuns, Alice não tinha família nos lábios continuamente.
Jonas pensava ser ele o certa, vivia ora na casa das As mãos pegajosas descendo
enviado do Supremo. Sorriu tias, avós ou pelas ruas. Mo- e despindo Alice, que con-
deliciado, sob as roupas lar- rava onde deixavam e comia tinuou parada e muda. Ele
gas e disformes que oculta- o que conseguia pegar. Nun- forrou o chão com um pano,
vam a magreza e palidez de ca conheceu a mãe, muito fez com que ela deitasse e
quem jejuava continuamen- menos sabia quem havia derramou óleo de um vidri-
te, submetendo-se a longas sido o pai, sentia-se fruto nho escuro. Sacou o facão
privações e castigos. do acaso, um ser a mais no sujo de sangue, limpou e o
A esquina parecia perfei- mundo, sem compromisso colocou ao lado do corpo de
ta para um grupo de adoles- com ninguém. Não con- Alice. Entre os seios peque-
centes, ali podiam ser o que seguiu estudar por muito nos, ele derramou o sal que
bem quisessem, não havia tempo, logo estava andando tirou do bolso do casacão
censura ou regras. com gangues de drogados, surrado e recomeçou a
Uma menina seminua estranhamente não gostava murmurar os sons guturais.
dividia a atenção entre os de nada que alterasse sua Quando Jonas começou
rapazes, alternando abraços percepção. Com o tempo, a espalhar a mistura com
e afagos. aprendeu a fingir-se de bê- a ponta dos dedos, a jovem
bada e passava a noite sem viu que era hora de agir e
A dor chegou forte, no tomar um só gole, atenta a
topo da cabeça de Jonas, tentar sua salvação. Reuniu
tudo e todos. Precisava cui- todas as forças e flexionou
como deveriam ser as dar de si, por isso mesmo,
mensagens verdadeiras, era as duas pernas, acertando o
foi a única que desconfiou abdômen do homem com
preciso que beirassem o de Jonas a tempo e tentou
http://www.flickr.com/photos/ashleyrosex/3561699535/sizes/l/

insuportável. Jonas ajoelhou- toda a força. Ele caiu para


fugir, só não contou em ser trás e, imediatamente, ela
se imediatamente, encostado o alvo... Quando recebeu a
na parede, escutou a ordem pegou o facão e enterrou no
pancada na nuca, perdeu primeiro lugar que alcan-
para salvar a moça. Ele sen- as forças e Jonas arrastou
tiu a lâmina fria em contato çou. Depois disso, saiu cor-
o corpo leve ao beco mais rendo como se mil demô-
com a pele, sob a atadura próximo.
apertada em torno do dorso, nios a perseguissem... Não
pronta para fazer cumprir Ela não ofereceu resistên- olhou para trás, não quis ver
seu papel sagrado. cia alguma, para ele, a moça se ele estava em seu encalço,
era dócil como deviam ser apenas queria fugir o mais
Levantou-se em passos os cordeiros. Jonas lembrou rápido possível...
trôpegos, aproximou-se as palavras do mentor e viu
dos jovens simulando em- Nua, Alice escorregava na
ali o sinal. Fingindo estar calçada molhada, a chuva
briaguês, eles não deram desmaiada e analisando fina e gelada fustigava a

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pele, mas nada a faria pa- ros, peritos e curiosos que, Torres engoliu o café
rar de correr. Era a segunda a muito custo, conseguiram morno que restava, Bor-
vez que encarava a morte, aproximar-se da cena do ges preferiu o antiácido de
se conseguisse chegar a crime: sempre, o dia mal começava
algum lugar seguro, muda- - Cara, em quase vinte e tinham certeza de que não
ria de vida, prometeu a si e anos, nunca vi nada pareci- haveria hora para terminar.
correu, correu... Sem atinar do. Seis corpos, uma meni-
por onde pisava ou ia, sem na com uma historia pra
conseguir gritar por socorro, - Parceiro, como este ma-
luco conseguiu se mutilar contar e um quebra-cabeça
completamente apavorada e a ser montado. Deixaram o
perdida. deste jeito?
local apinhado de curiosos
Jonas arrancou a faca da - Não sei. Dizem que cheios de suposições, eles
coxa e urrou de ódio, ainda tiram forças de Deus sabe- próprios ainda não tinham
avistou a menina dobrando se lá onde, mas este aí se a ponta da meada e, de
a esquina, mas não podia superou. Ele arrancou o qualquer forma, sabiam que
corrigir seu erro. Não havia próprio pênis, fez um monte não iriam descansar até
perdão, ele sabia o que tinha de talhos no rosto e depois destrinchar todo o enredo.
a fazer, a voz jamais se repe- cortou o abdômen de fora a Eram assim, dois obstinados
tia. Ele sabia que não faria fora. Devia estar muito doi- em apurar a verdade, que
falta a ninguém, há muito a do, se é que estava sozinho... não mediam esforços, o que
família o havia abandonado - O que a gente não tem os tornava um estorvo para
em um sanatório. O Mental que passar por este salário muita gente. Infelizmente,
Superior o encontrou e o de merda? Muito pouco pra de ambos os lados da lei,
tirou de lá, ordenou a exe- aturar estas coisas... Pior que haviam feito amigos e ini-
cução dos hereges e nem a investigação nem começou migos.
os parentes mais distantes e já tem mil especulações. A única certeza: O sen-
haviam sido poupados. Viu as tatuagens? Dizem timento de revolta que os
Jonas apagou seu rastro que é de uma seita satâni- unia contra o massacre
na terra dos homens, mudou ca. Que merda! Odeio estas presenciado. Era preciso
de cidade e só caminhava coisas de religião. resolver a questão, entender
nas sombras. Transformou O delegado Valdeci pas- o que havia acontecido e
as posses dos mortos em sou pelos detetives com seu apresentar os fatos.
dinheiro vivo e sobreviveu sorriso sarcástico de sempre Torres dirigia o carro
com o essencial. Era um à guisa de cumprimento, apressado, mentalmente tra-
servo, limpava as ruas dos fez uma meneio com a çava linhas de conduta do
maus e libertava os poucos cabeça, e caminhou em di- caso, as ruas já não estavam
escolhidos. Mas havia falha- reção a viatura parada. Uma tão vazias, era um domin-
do e seria castigado, puri- mocinha pálida e magrela, go bonito de verão. Borges
ficado em sacrifício para de olhos arregalados e ver- pensou que o tempo esta-
merecer a paz e misericór- melhos, os observava: va perfeito para passeios e
dia. Jonas reviu toda a vida lazer. Algum programa bem
e ensinamentos, os rostos de - Aquela é a sobrevivente.
Pegaram vagando nua pelo família, sentiu saudades dos
suas vítimas rodopiavam à filhos e discou para casa.
sua frente. Alguns tinham as parque há duas quadras
daqui. A única coisa que Nem percebeu que era cedo
bocas abertas, em um grito demais.
mudo e absurdo que apenas contou, foi que quando fu-
ele podia escutar. giu, o assassino ainda estava
vivo. A mídia já começou a
Cinco e quinze da ma- festa, preciso de respostas,
nhã, dois policiais estavam vocês sabem... Ah sim! Bom
parados na esquina de um dia, meninos!
beco sujo. Havia tantos car-

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O lugar onde
a boa Literatura
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Artigo

Joaquim Bispo

Geraldo Geraldes – O Sem-Pavor


Com a morte do emir rávidas em Marrocos momentânea fraqueza
em Marraquexe em 1106, e entram na Península, almóada e ignorando o
inicia-se um processo de tentando unificar as taifas tratado de Sahagún desse
enfraquecimento almorá- ali criadas e lutar contra ano. Em Sahagún, os reis
vida na Península Ibérica. os cristãos. São muçul- irmãos de Leão e Castela
A liderança militar no manos fundamentalistas decidem qual é o espaço
Garbe não é forte e os de origem berbere que de cada um na conquista
reinos cristãos tornam-se lutam por uma pureza do território muçulmano:
cada vez mais agressivos. maior da religião. até Sevilha, seria para o
Em 1147, Afonso Hen- Em 1158, Afonso Hen- rei de Leão; de Sevilha
riques conquista Lisboa, riques, a custo, toma para lá, para o rei de
Santarém, Almada, Palme- Alcácer e, em 1159, Évora Castela.
la e Sintra. e Beja (esta apenas saque- Em 1165, Geraldo toma
Entretanto, os Almóa- ada e aquela perdida em Trujillo, bem para lá da
das derrotam os Almo- 1161), aproveitando uma zona de Badajoz.

48 SAMIZDAT junho de 2010


Quem é Geraldo?: «no- ra, empresa bem difícil subisse acima das mu-
bre cavaleiro que serviu e árdua. Foi um feito ralhas da cidade que ele
D. Afonso Henriques, mas extraordinário, especial- procurava surpreender;
de quem se afastou para mente para um bando de e, quando a vigia muçul-
se eximir a um castigo homens não ligados a um mana dormia, encostava
severo por actos conde- exército estruturado. O as escadas à muralha e
náveis que praticara, indo, coração de Afonso Henri- era o primeiro a subir
por isso, refugiar-se, com ques abriu-se. Se alguma ao castelo e, empolgando
o bando de salteadores animosidade tinha para a vigia, dizia-lhe: “Grita,
que formou e capitanea- com Geraldo, como conta corno tens por costu-
va, em território sob do- a lenda, aqui lhe perdoou. me de noite, que não há
mínio islamita». Os seus Fê-lo alcaide de Évora, novidade”. E então os
homens eram: «moçára- que foi povoada por cris- seus homens de armas
bes e moradores de San- tãos e nunca mais voltou subiam acima dos muros
tarém». Os anos e anos a mãos muçulmanas. da cidade, davam na sua
de continuados combates Em fins de 1165 ou língua um grito imenso e
nas zonas de fronteira início de 1166, tomou execrando, penetravam na
incerta, produziram natu- cidade, matavam quantos
Pintura de Carlos Reis (pormenor) – Hotel do Buçaco

Cáceres e depois, impa-


ralmente homens desen- ravelmente, Montanchez, moradores encontravam,
freados, mais habituados Serpa, Juromenha, Alcon- despojavam-nos e leva-
a subsistir de rapinas, chel e ainda «Mourão, vam todos os cativos e
do que de trabalho. Os Arronches, Crato, Marvão, presas que estavam nela».
bosques dos territórios Alvito e Barrancos». Em Olhando para um
disputados por cristãos 1167 terá tomado Elvas mapa das conquistas de
e muçulmanos deviam e Monsaraz e em data Geraldo, percebemos que
estar repletos de «bandos incerta: Santa-Cruz e um dos objectivos que ele
de salteadores, provavel- Monfrag, na província de tinha, era isolar Badajoz,
mente compostos de indi- Cáceres. a forte capital da taifa
víduos de uma e outra com o mesmo nome, cor-
crença, (...) guerreando A estratégia de con-
quista desenvolvia um tando-lhe os abastecimen-
indiscriminadamente tos e os apoios vizinhos.
cristãos e muçulmanos». plano de surpresa, ata-
cando cidades longe Mas Geraldo não estava
Assolar campos e aldeias, apenas a apoquentar os
rapinar e conquistar cas- duma linha lógica de
progressão: de Trujillo, muçulmanos; as suas
telos para el-rei podia ser conquistas penetravam
um modo de vida. saltou para Évora, depois
para Cáceres e seguiu em profundamente no espa-
Ainda em 1165, tomou ziguezague inesperado, a ço de conquista definido
Évora, cidade muito im- que se juntava o processo no tratado de Sahagún e
portante e que Afonso do ataque: «avançava sem eram um perigo fortís-
Henriques tinha perdido ser apercebido na noite simo de isolar o rei de
quatro anos antes. «De- chuvosa, escura, tenebrosa Leão.
cidiu empreender uma e, (insensível) ao vento e Então, em 1168 «Fer-
proeza que o acreditasse à neve, ia contra as cida- nando Rodriguez de
no conceito do monarca des (inimigas). Para isso Castro, cunhado do rei
português para todo o levava escadas de madei- leonês», dirigiu-se a Mar-
sempre. Para isso planeou ra de grande comprimen- rocos onde passou cinco
conquistar aos Mouros a to, de modo que com elas meses junto do Califa.
opulenta cidade de Évo-

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«Por fim conseguiu uma riques) se feriu muito: e Fontes:
subvenção mensal e fir- quebrou a perna a el-rei
mou um pacto ofensivo- (...). Nisto, o cavalo que ia ASALA, Ibn Sahib.
defensivo, o qual logo foi ferido, não podendo mais História dos Almóadas
confirmado por Fernando suster-se, caiu com el-rei in LOPES, David. «O Cid
II. Este comprometeu- sobre a mesma perna, e português: Geraldo Sem-
se, assim, a que quando acabou-lha de quebrar de pavor», Revista Portugue-
tomasse conhecimento todo, de maneira que os sa de História, Tomo 1,
de uma expedição de seus não puderam mais Coimbra, Faculdade de
cristãos dirigindo-se a alevantá-lo nem pô-lo a Letras da Universidade
terra muçulmana, saísse cavalo». de Coimbra, Instituto de
a repeli-los sem perda Capturado com Geral- Estudos Históricos Dr.
de tempo. Talvez pedisse do pelos Leoneses, esteve António de Vasconcelos,
também o rei leonês o Afonso Henriques dois 1940.
auxílio de tropas muçul- meses prisioneiro do rei
manas». de Leão, seu genro, numa GONZÁLEZ GONZÁ-
Em Maio de 1169, situação de extrema LEZ, Júlio. História Gene-
Geraldo atacou Badajoz fragilidade política, mas ral de España y América,
e tomou a cerca, mas a este, cavalheirescamente 29 Tomos, Tomo IV, La
guarnição refugiou-se na apenas terá exigido: «Res- España de Los Cinco
alcáçova. Então Geraldo titui-me o que me tiraste Reinos (1085-1369), 2.ª
pediu ajuda a Afonso e guarda o teu reino». edición, Madrid, Edicio-
Henriques para sitiar a Assim, Afonso Henriques nes RIALP,S. A., 1990.
alcáçova. O perigo era teve que devolver os con-
grande para Leão e para dados galegos de Límia e
os muçulmanos. A notí- Toronho e todas as terras HERCULANO, Alexan-
cia chegou célere a todos. da Extremadura espanho- dre. História de Portugal,
Fernando II enviou uma la, da margem esquerda I, in AMARAL, Diogo
expedição, que chegou a do Guadiana. Ficava as- Freitas do. D. Afonso
tempo de evitar a con- sim desfeita a atracção da Henriques – Biografia,
quista da cidade pelos Galiza e, respeitando esse Amadora, Bertrand, 9.ª
Portugueses. Estes fica- pacto, só restava a Afonso edição, 2000.
ram entre dois fogos: os Henriques avançar para
Almóadas na alcáçova e Sul, através de território
SERRÃO, Joel (dir.).
os Leoneses a cercarem muçulmano, se quisesse
Dicionário de História
a cidade. Os Portugue- aumentar o seu reino.
de Portugal, 6 vols., vol.
ses tentaram escapar a Também Geraldo, cap- II, Porto, Iniciativas Edito-
esta situação melindrosa, turado, teve que devolver riais, reed., 1979.
fugindo precipitadamen- a Fernando II as terras
te, mas um pormenor «da conquista de Leão» e
deitou tudo a perder: «E a Fernando Rodriguez de
aconteceu que o cabo Castro, as terras «caste-
do ferrolho não ficara lhanas» de Montanchez,
bem colhido ao abrir das Trujillo, Santa-Cruz e
portas, e o cavalo, assim Monfrag.
como ia correndo, topou
nele com a ilharga de
guisa, (e D. Afonso Hen-

50 SAMIZDAT junho de 2010


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Artigo

O Retrato como Género


Joaquim Bispo

52 SAMIZDAT junho de 2010


Um retrato é entendi- relação.
do como a representa- No entanto, essa fixidez Ainda que se esteja
ção fidedigna, em duas inevitável é um obstáculo atento a esta limitação,
dimensões, do retratado, à representação infinita- não se pode esquecer que
e vive essencialmente da mente mutável da expres- o retrato é já, ele próprio,
representação do rosto. É são, sendo esta a comuni- uma tradução feita pelo
preciso que o desenho do cação do que realmente é artista. Até que ponto ele
contorno do rosto, e dos vivente – o espírito. conhecia o retratado, e
seus outros muitos ele- que grau de virtuosismo
Então, a semelhan-
mentos, represente fiel- detém que o apetreche
ça acontece quando a
mente o rosto vivo, como para transmitir esse
imagem consegue fixar
a luz do sol projecta o conhecimento de base,
alguma característica
perfil de alguém numa ou intuído aquando do
representativa do espírito
parede lisa. Fica, portan- trabalho de pintura? E
do retratado? Para isso,
to, excluída a caricatura, que faceta apresentou o
seria preciso conhecê-lo
que faz lembrar o visado, retratado ao pintor? Qual
previamente, quando não,
pelo exagero de algumas o verdadeiro retratado: o
a fidelidade só podia ser
características mais mar- que se expôs à pose; ou
legitimada a posteriori.
cantes, mas não devolve a aquele que só a si pró-
semelhança com o origi- O retrato pretende
prio se revela nos mo-
nal. É preciso que pareça conservar a memória da
mentos de retiro íntimo?
tão real como o verda- pessoa amada ou ad-
mirada, preservar de si O retrato, com todas
deiro, que pareça que “só
algo mais que o nome estas limitações de rigor
lhe falta falar”. Que pa-
e a recordação, que não de comunicação, detém,
reça vivo. O pintor con-
existirá para vindouros no entanto, muito prestí-
segue levar a mudez até
que não a conheceram. O gio no prolongamento da
à fronteira iminente da
nome é o seu sinal puro, memória e na revelação
fala. «A vida do retrato é,
o retrato o seu sinal me- da personalidade retra-
no fundo, a razão última
diado. O que é dado de tada. «A grande dificul-
da semelhança com o
si ao espectador é o que dade, qualquer que seja
original». Pretende-se sus-
este traduz, pelas várias a concepção adoptada,
pender o tempo, manter
tabelas subjectivas que vem da dupla natureza
o retratado no momento
usa, condicionadas pelo do referente: uma repre-
escolhido, muitas vezes
fisiológico e pelo social. sentação de uma repre-
num tempo que contém
«Nunca se olha para um sentação». O rosto não é
os afectos que se que-
rosto com indiferença». uma imagem estática e
rem preservar da morte.
O que se apreende é plena, «apenas um lugar
Pretende-se construir um
uma tradução tanto mais onde tudo se inscreve e
tempo que sobreviva à
falsa quanto menos se de onde tudo foge». Atra-
passagem do tempo. A fi-
conhecer do sujeito e do vés da imensidão plástica
xidez do retrato constrói
seu mundo, pessoal e de da fisionomia, atravessada
esse tempo eterno.

www.revistasamizdat.com 53
permanentemente por mas a curva que desenha substituído pela fotogra-
uma flutuação de formas, o contínuo das pequenas fia.
«o rosto esconde, reen- percepções.» «O que dá A unicidade de um
viando para uma última a ver o retrato é a forma rosto, com as suas pe-
instância “interior”». Qual de uma força: a forma culiaridades de origem
será, então, o modelo invisível, mas extraordi- interna e externa, pode
autêntico? nariamente pregnante, da verter a sua verdade no
A fidelidade à verdade intensidade com que um retrato, mas «o retra-
do referente exige co- rosto nos olha e que o to não é o rosto – é o
piar o modelo invisível. nosso olhar acolhe». «Não nome do rosto». O retrato
«O trabalho do artista se trata já, para o pintor, constrói uma singulari-
consistirá em restituir, de assemelhar, mas do dade paradoxal: dá ao
numa imagem visível, o devir», das forças e inten- rosto uma identidade,
modelo invisível». Por sidades que ele captou e mas descodifica-o para
isso, é preciso uma arte às quais deu forma. além do traduzível. Não
para olhar a superfície O retrato é uma ferra- nos esqueçamos de que
de um rosto e captar o menta apetecida e utili- se trata da representação
invisível ao nível da face. zada pelas personalidades de uma representação.
«Retratar não é, afinal, que gravitam na área do O original, não múltiplo,
representar uma repre- poder ou a isso aspiram. não representação, não
sentação, porque o rosto Ajuda a criar uma sub- existe – a primeira ima-
não é uma imagem, mas jectividade que sirva os gem é já uma multidão.
um complexo de sinais e intentos do retratado. As
de forças em movimento alegorias ou os símbo-
Resenha do ensaio do
que o puxam ora para los a que é associado, os
filósofo José Gil:
fora de si (…) ora para objectos que o rodeiam,
dentro de si, fixando-o assim como toda a or- «O Retrato» in José Gil,
numa figura estática, hu- ganização do quadro, et al, A Arte do Retrato:
mana, ilusoriamente una». induzem a subjectividade Quotidiano e Circunstân-
«A representação, (…) pretendida. cia, Lisboa, FCG – Museu
como cópia da relação Calouste Gulbenkian,
O surgimento da for-
que liga o modelo ori- 1999.
ma abstracta, abolin-
ginário à cópia sensível, do o referente exterior,
não busca a semelhança não serve as funções de
ou a analogia de formas, perpetuação de memó-
mas o lugar topológico ria da singularidade do
da génese da semelhan- homem, nem as funções
ça». O alvo que o pintor de engrandecimento e
aspira atingir não é «o legitimação do homem
conjunto de sinais ex- de poder. A arte abstracta
pressivos visíveis, nem o matou o retrato, que foi
fundo informe invisível,

54 SAMIZDAT junho de 2010


Artigo

http://purl.pt/5610/1/e-405-v_JPG/e-405-v_JPG_24-C-R0072/e-405-v_0001_1_p24-C-R0072.jpg
Leandro da Silva

O que é certo ou errado quando


não podemos ser?
Pessoas se comunicam pela qual se disseminou a é no agora que se edifica a
para sobreviver e para vi- língua portuguesa. Irrespon- própria realidade das pes-
venciar o que elas mesmas sabilidade em propor um soas deste tempo, então não
produzem. A língua portu- meio alternativo que possa existe nem povo, nem cul-
guesa é propriedade univer- contemplar o lado racional, tura, nem língua, nem um
sal, seu registro passou por atual, que seja parte de cada ser identificado com algo.
várias bocas e mãos, e ainda grupo comunicativo, em Se há uma brecha para
passa. Por ser universal e outra estrutura? se induzir ao esclareci-
sujeita a interferência hu- Uma língua que se es- mento de que a cada dia
mana, de acordo com uma palhou, de uma forma não- que passa, a humanidade
variedade infinita de con- automática, pela interação produz um tipo diferente
textos, a língua portuguesa que fomentou seu próprio de comunicação: os agentes
não é “língua portuguesa”, e conceito, ou seja, “língua da tal “luz”, hoje, pessoas
sim, uma identidade pró- ‘portuguesa’”. A língua de comuns, locais, sublocais e
pria de cada grupo comuni- quem venceu. A marca de internacionais – que subs-
cativo que a compõe. uma série de interações tituem as poucas vozes do
Irresponsabilidade em políticas, culturais, sociais, passado – são as responsá-
determinar toda uma rede jurídicas, sobretudo: uma veis.
de lusófonos como “lusófo- interação de guerra e explo-
na”, pois assim se justifica - ração.
mesmo imperceptivelmente Tal marca deve ser evi-
e de forma a acordar com denciada, até o esgotamento
o mito da imparcialidade – surreal das necessidades
toda a construção irracional comunicativas, pois se não

www.revistasamizdat.com 55
Poesia

+ 2 Tantos
Ju Blasina

Os meus sapatos
E no compasso sigo em frente
Caminho sobre princípios
Meu tortuoso caminho
Procurando neles um fim
Pisando sobre princípios
Um algo que renove
Que ora me levam, ora me atrasam
Meus meios, meus anseios
Mas que nunca me deixam descalço
Meus saltos, já gastos

E embora fúteis, dolorosos e inúteis


Calço meus princípios
São tão meus
Tal qual sapatos inadequados
Os meus princípios
Para o baile, para o pé
São só belos
Terá este encolhido
Ou o sapato cresceu?

Carrego neles dúbios erros


Serão deles, serão meus?
Ah dúvidas... Cadarços sem laços
Que já não atilham, já não enfeitam
Só aceitam confundir os passos

56 SAMIZDAT junho de 2010


Reflexos

Por que eu?

Pergunta que impera


Perante o espelho
Onde me enxergo
E enxugo o vermelho
Nos olhos do medo
Que me encara

No mesmo espelho
Vendo o tempo
Que me marca
Que me embala
E leva, aos poucos
Até a dúvida

Transformada
Quem é esta?
Quem sou eu?
E num reflexo nu
Vejo a resposta
Os olhos: amostra

Porque eu.

http://www.flickr.com/photos/natalialove/2893070159/sizes/o/

www.revistasamizdat.com 57
Poesia

o despertar de uma mulher

Caio Rudá de Oliveira

58
58 SAMIZDAT maio
junhode
de2010
2010
http://www.flickr.com/photos/kiuko/2971201940/sizes/o/
o despertar de uma mulher
é uma melodia serena
feito um balanço no parque
lá e cá, deslizando no ar
um movimento leve e paciente
cadenciado, contra o qual insurgem
lapsos de descompasso

não importam as intermitências


o despertar de uma mulher é sutil e elegante
é uma flor com hora certa para desabrochar

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Poesia

CASA DE PLATÃO
Wellington Souza

60 SAMIZDAT junho de 2010


Na gruta seca, grito:
em direção ao feixe de luz.

Ecôo
até desfalecer no sono urbano.

Desperto
velho – sozinho
durante um infarto no miocárdio:
obstruíram minha gruta
seca.
Talvez, agora, vazia.

http://www.flickr.com/photos/maubrowncow/565391508/sizes/o/

www.revistasamizdat.com 61
SOBRE OS AUTORES DA

SAMIZDAT
Edição, diagramação e capa

Henry Alfred Bugalho


Formado em Filosofia pela UFPR, com ênfase em
Estética. Especialista em Literatura e História. Autor
de quatro romances e de duas coletâneas de contos.
Editor da Revista SAMIZDAT e um dos fundadores
da Oficina Editora. Autor do livro best-selling “Guia
Nova York para Mãos-de-Vaca”. Mora, atualmente, em
Nova York, com sua esposa Denise e Bia, sua cachor-
rinha.
henrybugalho@gmail.com
www.maosdevaca.com

Revisão
Maria de Fátima Brisola Romani
Nasceu em SP em 1957 mas mudou-se para Salvador
em 1984 onde reside até hoje. É arquiteta e artista plás-
tica, além de tradutora (inglês e italiano) e revisora de
textos. Escreve poesias esporadicamente desde adoles-
cente e há cerca de um ano começou a escrever contos.
Pretende concorrer ao mestrado em Artes Cênicas na
Escola de Teatro da Ufba.

62
62 SAMIZDAT junho de 2010
Colaboração

http://www.photoshoptalent.com/images/contests/spider%20web/fullsize/sourceimage.jpg
Maria de Fátima Santos
Nasceu em Lagos, Algarve, Portugla em 1948. Vi-
veu a adolescência em Angola e reside em Lagos.
Licenciada em Física, é aposentada de professora do
Ensino Secundário. Já participou na SAMIZDAT e por
afazeres de vida afastou-se. Tem poemas em diversas
antologias, e publicou em Janeiro de 2009 um livri-
nho com pequenas histórias, aquelas que lhe voam
no teclado: Papoilas de Janeiro é o título, com ilus-
trações de TCA do blogue http://abstractoconcreto.
blogspot.com/ Muito material está publicado nos
blogues e www.intervalos.blogspot.com e http://tris-
teabsurda.blogspot.com/ Escreve pelo gosto de deixar
que as palavras vão fazendo vida. Escreve pelo gozo.

Maristela Deves
Gaúcha nascida na pequena cidade de Pirapó, co-
meçou a sonhar em ser escritora tão logo aprendeu
a ler. Escreve principalmente nos contos nos gêneros
mistério, suspense e terror, além de crônicas. Man-
tém ainda o blog Palavra Escrita, sobre livros e litera-
tura (www.pioneiro.com/palavraescrita).

Léo Borges
Nasceu em setembro de 1974, é carioca, servidor
público e amante da literatura. Formado em Comu-
nicação Social pela FACHA - Faculdades Integradas
Hélio Alonso, participou da antologia de crônicas
“Retratos Urbanos” em 2008 pela Editora Andross.

www.revistasamizdat.com 63
Giselle Sato
Autora de Meninas Malvadas, A Pequena Baila-
rina e Contos de Terror Selecionados. Se autodefine
apenas como uma contadora de histórias carioca.
Estudou Belas Artes, Psicologia e foi comissária de
bordo. Gosta de retratar a realidade, dedicando-se
a textos fortes que chegam a chocar pelos detalhes,
funcionando como um eficiente panorama da socie-
dade em que vivemos.

Jú Blasina
Gaúcha de Porto Alegre. Não gosta de mensurar
a vida em números (idade, peso, altura, salário). Não
se julga muito sã e coleciona papéis - alguns afir-
mam que é bióloga, mestre em fisiologia animal e
etc, mas ela os nega dizendo-se escritora e ponto fi-
nal. Disso não resta dúvida, mas como nem sempre
uma palavra sincera basta, voltou à faculdade como
estudante de letras, de onde obterá mais papéis para
aumentar a sua pilha. É cronista do Caderno Mulher
(Jornal Agora - Rio Grande - RS), mantém atualiza-
do seu blog “P+ 2 T” e participa de fóruns e oficinas
virtuais, além de projetos secretos sustentados à base
de chocolate e vinho, nas madrugadas da vida.

Leandro da Silva
Pampeano, gaúcho das tecnologias “rústicas” dos
ancestrais indígenas. Estudante de espanhol. Escreve
para complementar a realidade, crendo que todos
podem escrever e, que isso não é profissão e sim,
humanização. Relacionando sociedade, ideologia e
memória coletiva, principalmente. Sobre o pampa,
literatura de ficção científica e africanismo, unindo-
os ou não,.

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64 SAMIZDAT junho de 2010
http://www.photoshoptalent.com/images/contests/spider%20web/fullsize/sourceimage.jpg
Joaquim Bispo
Ex-técnico de televisão, xadrezista e pintor ama-
dor, licenciado recente em História da Arte, experi-
menta agora o prazer da escrita, em Lisboa.

episcopum@hotmail.com

José Guilherme Vereza


Publicitário, redator, executivo, professor, aluno, marido,
pai, filho, cunhado, tio, sobrinho, genro, sogro, amigo, bota-
foguense, tijucano, lebloniano, neopaulistano, escritor, leitor,
eleitor, metido a cozinheiro, guloso, nem gordo nem magro,
motorista categoria B, pedestre, caminhante, viajante, seden-
tário, telespectador, pilhado, zen, carnívoro, beatlemaníaco,
cinemeiro, desafinado, sinfônico, acústico, capricorniano,
calorento, alérgico a ditaduras, sonhador, delirante, insone,
objetivo, subjetivo, pragmático, enérgico, banana, introspec-
tivo, extrovertido, goleiro, blogueiro, colunista do Bolsa de
Mulher, colaborador do Mundo Mundano, tem livro publi-
cado, conto premiado, teve texto encenado no teatro, fez ro-
teiros para televisão, criou uma infinidade de comerciais e
aprendeu que aproveitar a vida intensamente é ser de tudo
um muito. Samizdat é seu mais recente energético..

Caio Rudá
Bahiano do interior, hoje mora na capital. Estuda
Psicologia na Universidade Federal da Bahia e espera
um dia entender o ser humano. Enquanto isso não
acontece, vai escrevendo a vida, decodificando o enig-
ma da existência. Não tem livro publicado, prêmio,
reconhecimento e sequer duas décadas de vida. Mas
como consolo, um potencial asseverado pela mãe.

www.revistasamizdat.com 65
Ana Cristina Rodrigues
Historiadora e escritora lusocarioca, fascinada
pela exploração de novos mundos: seja no passa-
do, no futuro ou em tempos que ainda não existi-
ram. Uma contista que se esforça arduamente para
tornar-se romancista um dia, além disso coordena
antologias, comunidades e coletivos de escritores.
Publicou contos em vários zines e antologias no Bra-
sil e no exterior, além do livro ‘AnaCrônicas’, uma
coletânea de contos curtos.

Wellington Souza
Paulistano, mas morou também em Ribeirão
Preto, onde cursou economia na Universidade de São
Paulo. Hoje, reside novamente no bairro em que nas-
ceu. Participou das antologias do concurso Nacional
de Contos da Cidade de Porto Seguro e do Poetas
de Gaveta/USP. Escreve poemas, contos, crônicas e
ensaios literáios em um blog (Hiper-link), na revista
digital SAMIZDAT e no portal Sociedade Literária.
“Escrever é um modo de ser outro ser”.

Cirilo S. Lemos
Nasceu em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense,
em 1982, nove anos antes do antológico Ten, do
Pearl Jam. Foi ajudante de marceneiro, de pedreiro,
de sorveteiro, de marmorista e mais um monte de
coisas. Fritou hambúrgueres, vendeu flores, criou
peixes briguentos. Chorou pela avó, chorou por seus
cachorros. Então cansou dessa vida e foi estudar
História. Desde então se dedica a escrever, trabalhar
como voluntário numa escola municipal e fazer feliz
a moça ingênua que aceitou ser mãe dos seus filhos.

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66 SAMIZDAT junho de 2010
O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada
http://www.flickr.com/photos/32912172@N00/2959583359/sizes/o/

ficina
www.revistasamizdat.com 67

www.oficinaeditora.com
Também nesta edição, textos de

Ana Cristina Rodrigues Jú Blasina

Caio Rudá Leandro da Silva

Cirilo S. Lemos Léo Borges

Giselle Natsu Sato Maria de Fátima Santos

Henry Alfred Bugalho Maristela Deves

Joaquim Bispo Wellington Souza

José Guilherme Vereza

68 SAMIZDAT junho de 2010

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