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Resumo: Pelo presente ensaio analisamos o contexto de produção e difusão das teses
neoliberais em termos de suas repercussões sobre a educação e o mundo do trabalho no Brasil.
Nossa tese, ao considerarmos as proposições para as esferas da educação e do trabalho ao final
do séc. XX, é de que estas reeditam, pelo elemento discursivo da competência , argumentos e
propósitos equivalentes aos discursos dominantes nas circunstâncias de transformação e crise
capitalistas da transição entre os séculos XIX e XX, na consolidação da sociedade industrial
desenvolvida. A questão que nos guia e que pretendemos responder, pode ser assim formulada: o
discurso da competência como imperativo para o trabalho e a educação atuais, num contexto de
transformações tecnológicas e de crise estrutural da relação capital-trabalho, poderia estar
reeditando elementos discursivos do contexto de transformações observadas em fins do século
XIX, de modo a legitimar suas conseqüências negativas atuais na forma de uma dissimulação da
realidade ou, em termos marxianos, de uma farsa histórica? A análise dos dois períodos do
capitalismo nos indicaram que o postulado hegeliano-marxiano da “repetição histórica” torna-se
plausível mediante o renascimento ultraliberal observado a partir de fins do século XX.
Abstract: By the present essay, we investigated the production and spread of the neoliberals’
discourses, as for its repercussions on the education as well on the work in Brazil. Our thesis,
considering the ultraliberals proposals of inexorable transformations to education and labour at
the final of XXth century, is that these proposals reedit, by the competence discourse, arguments
and proposals equivalents to dominants discourses into circumstances of transformation and
capitalist crisis, between XIXth to XXth centuries transition at the industrial society
consolidation peak. Considering this, the question that guide us and which we intent answer
could be formulated in this manner: the competence discourse as imperative to the actual labour
and education, in a context of technological transformation and structural crisis of capital-work
relation, could be reediting discursive elements of the transformations observed at the end of
XIXth century, in way to legitimate the actual negative consequences in form of a dissimulation
of reality or, in Marxian terms, as a historical farce? The analysis of the two periods of
capitalism indicate us that the Hegelian-Marxian postulate of “historical repetition” become
plausible by means of the ultraliberal renascence observed since the end of the XXth century.
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Este artigo origina-se da tese de doutoramento do autor, intitulada O discurso da competência para o
trabalho e a educação em tempos neoliberais: a história reeditada como farsa?, defendida pelo Programa
de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos, SP, em maio de 2006, pesquisa
esta financiada pela CAPES.
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Atualmente, professor do Programa de Mestrado em Educação da Universidade Católica Dom Bosco –
UCDB, Campo Grande, MS.
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INTRODUÇÃO
Problematização
I
Karl Marx, na abertura de O 18 Brumário de Luis Bonaparte, ao comentar a
observação de Hegel de que os fatos e personagens mais importantes da história
aconteceriam, geralmente, por duas vezes1 , faz notar que Hegel poderia ter
acrescentado: “a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa” (MARX, 2003 p.
7). E esta obra de Marx é pródiga ao elencar fatos e personagens históricos que
caracterizaram a reedição 2 , tanto de forma trágica como de embuste, dos
desdobramentos da Revolução Francesa que vieram desaguar no bonapartismo.
Em nossos estudos temos podido observar que aquele aditamento de Marx à
observação de Hegel guardava consigo a força das evidências e fatos da própria história.
Marx complementa em seguida essa sua observação com elementos que, agora sim, nos
permitem compreender o caráter hipotético-científico no qual sustenta seu comentário.
Diz ele que:
“Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob
circunstâncias de sua escolha e sim, sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas
e transmitidas pelo passado.” (MARX, 2003, p.7 – itálicos nossos)
E, metaforicamente, acrescenta:
“A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E
justamente quando parecem empenhados em revolucionarem-se a si e às coisas, em criar
algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens
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Marx remete-se à obra de G. W. Hegel, Princípios de Filosofia do Direito, de 1821.
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Paul-Laurent Assoun, em sua obra Marx e a repetição da história, entende que seria mais adequado
falar-se de uma “reedição” de acontecimentos históricos, e não de “repetição” dos mesmos, uma vez que a
história não pode de fato repetir-se, mas sim, em termos marxianos, ser ideologicamente reproduzida. Daí
o sentido atribuído por Marx à observação de Hegel, de que a história “em seus grandes acontecimentos e
personagens” só pode “acontecer” de duas formas: a primeira como acontecimento em si (tragédia), a
segunda como reprodução burlesca (ou farsa), indo, por conseguinte, da tragœdiæ à comœdiæ (ASSOUN,
1979, p. 46, nota 5).
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Marx e Engels indicavam essa característica do capitalismo da seguinte forma no Manifesto Comunista:
“A burguesia não pode existir sem revolucionar permanentemente os instrumentos de produção, por
conseguinte as relações de produção, por conseguinte todas as relações sociais. [..]) O permanente
revolucionar da produção, o abalar ininterrupto de todas as condições sociais, a incerteza e o movimento
eternos, distinguem a época da burguesia de todas as outras.” (Marx; Engels, 1987, p. 37).
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feito por homens, poderem os mesmos assumir o presente e determinar o futuro, como
produtos que são de suas próprias ações, passadas e presentes. Se os homens, entretanto,
não fazem sua história como queiram, isso se deverá, antes, ao fato de serem estes
alijados, pelas condições materiais e ideais que para si próprios instauram, de se verem
como agentes de si mesmos e de suas condições existenciais vitais.
Assim, enquanto Hayek empunha a bandeira da “liberdade” (pois que
representa o mais extremo liberalismo) e, em nome dela, declara que os indivíduos
humanos são livres para agirem no presente segundo suas vontades, mas que as
sociedades humanas estarão sempre sujeitas às conseqüências imponderáveis de tais
ações individuais no futuro — o que inviabiliza qualquer tentativa de se vislumbrar o
devir humano —, Marx nos fala de nossa atual condição de escravos, mas admoesta que
tal condição é determinada por nossa própria atividade sócio- histórica, que uma vez
intencionalmente apreendida (compreendida), pode ser voluntariamente transformada
em liberdade humano-genérica — uma condição que supera por incorporação a suposta
liberdade apenas particular e individual referida por Hayek.
Em outras palavras, o primeiro nos sugere que os caminhos humanos
transitam “do reino da liberdade ao reino da necessidade”, porque a medida de nossa
liberdade se encontra em nossa aptidão para respondermos adequadamente aos
imperativos que as circunstâncias nos impõem, e que esse é o princípio natural e
imutável de toda a história humana. O segundo nos diz que o humano trans ita do “reino
da necessidade ao reino da liberdade”, pois mais que nos adaptarmos a necessidades
diuturnas supostamente inelutáveis, o processo de humanização revela-se, antes, como
antítese da submissão plena às leis naturais, e que essa é, portanto, também a
possibilidade histórico-social de todo o devir humano.
A história adquire, assim, nos dois autores, sentidos antagônicos: em Hayek
a história da humanidade está subsumida à história da natureza biofísica e, portanto, é
uma história de adaptação ao meio e seus fenômenos; em Marx, a história da
humanidade é um processo que tem como base a natureza biofísica, mas que a ela
transcendeu, instaurando para si atributos próprios que representam a superação humana
das determinações meramente natural-adaptativas, em termos evolutivos e ambientais.
II
Essas reflexões iniciais são os elementos instigadores do presente estudo.
Estamos no princípio de um século amplamente anunciado pelo ideário hegemônico
contemporâneo como um período de “transformações revolucioná rias”, seja em termos
de inovações técnicas e científicas, seja em termos comunicacionais, que supostamente
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poucos sobre muitos, segundo a divisão social do trabalho e de classes que lhes foram
próprias (excetuados os modos de existência comunais primitivos). Entretanto, como nos
fazem notar Karl Polanyi (2000) e Robert Castel (2003), a peculiaridade do modo de
produção capitalista está na instauração de relações de mercado e salariais antes
inexistentes, fundadas agora na propriedade privada e na exploração da força de trabalho
socialmente destituída (sobretudo a partir do séc. XI) de seu locus comunitário de
habitação, de suas redes de proteção, de seus recursos próprios e comunais de
subsistência, bem como do conhecimento integral dos processos de produção. Ademais,
esse processo de desapropriação material e psicológica (em geral, brutal e coercitivo)
tornou possível não só o estabelecimento do trabalho abstrato (cujo produto objetivado é
alienado de quem o produz), como também a inversão histórica decisiva em que valores-
de-uso são sobrepujados por valores-de-troca, pressuposto essencial para a instauração
não só da produção de mercadorias (e, inclusive, da mercadoria trabalho) como da
obtenção de mais-valia, fundamentos da acumulação de riquezas capitalista (MARX,
1988a). Enfim, nos termos de Karl Polanyi (2000, p. 46), estes fundamentos são
absolutamente novos em relação aos modos de produção anteriores.
III
Nesse exato momento histórico, e conforme têm argumentado e demonstrado
inúmeros pesquisadores sociais críticos, de que o processo de desenvolvimento do
referido modo de produção não só tem coincidido como também provocado conflitos
cada vez mais acentuados entre os interesses privados dominantes e o bem estar comum
da maioria das populações humanas, ainda que tais conflitos não nos sejam, por vezes,
imediatamente visíveis em toda a sua magnitude. Estamos precisamente no princípio de
um novo século e há, a nosso ver, farsas a nos envolverem, reeditando elementos do
passado sob o signo do ineditismo. E o que é anunciado é uma evolução, ou mesmo
revolução, tão natural quanto inexorável (e, portanto, inquestionável) para o progresso e
modernização de nossas sociedades, sob a regência perene do sistema capitalista, auge
de um processo histórico-natural pretensamente milenar e definitivo.
Nesse sentido, o movimento denominado “neoliberal” tem sido entendido
como o grande difusor ou mediador das “revoluções” em curso, a começar pelo âmbito
da economia política por ele defendida e aplicada desde os anos de 1980 pelo mundo, e
que atingiu seu apogeu na década de 1990. Temos evidências, por autores e estudos
variados, que o movimento neoliberal se caracteriza como protagonista de um
revigoramento intransigente dos fundamentos clássicos do liberalismo de mercado, cujo
expoente foi Adam Smith (GÓMEZ, 2003; SADER; GENTILI, 2000; BIANCHETTI,
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Note-se que o princípio da competência guarda diferenças semânticas, sociais e organizacionais em
relação ao que designa o termo qualificação para o trabalho (RAMOS, 2001).
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ver que o próprio problema e seus elementos ideológicos não são novos e remontam a
propostas e contextos muito semelhantes nos dois períodos aqui apontados, elementos
este que apenas se metamorfosearam em seus aspectos mais imediatos ou aparentes.
Em seu caderno de número 12, Gramsci desenvolvera a tese de ser o
princípio educativo imanente à escola elementar o conceito e a atividade do trabalho, já
que a ordem social e estatal é introduzida na ordem natural pelo trabalho (GRAMSCI,
1982, p. 77). Lembremos que a conjuntura de análise de Gramsci era então a crise
envolvendo o modelo tradicional de escola e o surgimento de um novo modelo, que
aspirava para si a condição de moderno e consoante com as necessidades de um mundo
industrial em franca mutação, e que parece então se contrapor ao anterior, negando-o
veementemente.
O movimento em questão remetia seus questionamentos e críticas à escola
tradicional em dois aspectos principais: primeiramente, os organizativos e
programáticos da educação tradicional, pondo-se em questão se a escola tradicional
seria ou não de fato “educativa”, e insinuando-a como essencialmente especulativa e
intelectualista; em segundo lugar, atacando os aspectos didáticos e metodológicos da
escola tradicional, em que se criticava a presença de procedimentos mecanicistas nos
processos de formação. Como fica evidente, o novo movimento pedagógico era aquele
identificado com a instauração de uma escola ativa, vinculada às necessidades de um
mundo industrial dinâmico e em expansão.
Para Gramsci, contudo, o problema central desse confronto não estaria
propriamente nos aspectos organizativos e metodológicos da escola tradicional, mas no
fato de que tal organização e programas eram na verdade a expressão de um modo
tradicional de vida intelectual e moral, pertencentes a uma tradição antiqüíssima que
estava morrendo (GRAMSCI, 1982, p. 81). Portanto, não adiantaria apenas mudar a
organização e programas em questão, sem que se compreendesse que eles são
determinados, antes e na verdade, pelas mudanças no próprio modo de vida dos homens.
Nesse sentido, na “velha escola” conteúdos como o estudo de línguas e da
história dos povos clássicos era um princípio educativo relacionado ao ideal humanista
personificado principalmente pela cultura greco-romana, sendo difundido e aceito em
toda a sociedade como essenciais (podemos pensar, aqui, na paideia grega e na
humanitas romana). Essa educação não tinha uma finalidade prático-profissional
imediata sendo, portanto, “desinteressada”, pois que o interesse era a formação de uma
personalidade plena e universalizada através do caráter cultural geral da civilização
européia.
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Processo analisado em detalhes por Marx em Maquinaria e grande indústria (MARX, 1988b).
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Considerações Finais
REFERÊNCIAS