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Raízes
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Silo
Mitos 60
INTRODUÇÃO
Há muito tempo existe o afã por definir o mito, a lenda e a fábula; por separar o conto e o
relato pouco provável da descrição verdadeira. Foi realizado um grande trabalho para demonstrar que
os mitos são a roupagem simbólica de verdades fundamentais, ou melhor, transposições de forças
cósmicas a seres com intenção. Foi dito que se trata de eumerismos nos que personagens vagamente
históricos se elevam à categoria de heróis ou deuses. Chegou-se a teorizar para mostrar as realidades
objetivas que contém na deformação da razão. Foi investigado para descobrir, nessas projeções, o
conflito psicológico profundo. E, assim, essa enorme tarefa resultou útil porque nos ajudou a
compreender, quase em laboratório, como os mitos novos lutam com os antigos para conquistar seu
espaço. Não deve se entender isto que estamos dizendo como um sarcasmo no que rebaixamos as
teorias ao nível de mito. Pelo contrário, quando as teorias se soltam do âmbito científico e começam a
voar sem demonstração e,desse modo são tomadas como a própria verdade que se aceita sem crítica, é
porque aquelas se instalaram ao nível de crença social e cobraram a força plástica da imagem tão
importante como referência e tão decisiva para orientar condutas. E nesta nova imagem que se irrompe
podemos ver os avatares de antigos mitos remoçados pela modificação da paisagem, não somente
geográfica, senão social, à qual se deve dar resposta por exigência dos tempos.
O sistema de tensões vitais ao que está submetido um povo se traduz como imagem, mas isto
não basta para explicá-lo inteiramente, a menos que se pense em termos de linha simples e resposta. É
necessário compreender que em toda cultura, grupo e indivíduo, existe uma memória, uma acumulação
histórica em base à qual se interpreta o mundo em que se vive. Essa interpretação é o que configura
para nós a paisagem que, percebida como externa, está presa pelas tensões vitais que ocorrem nesse
momento histórico ou que ocorreram há muito tempo e que, residualmente, formam parte do esquema
interpretativo da realidade presente. Quando descobrimos as tensões históricas básicas de um
determinado povo nos aproximamos da compreensão de seus ideais, apreensões e esperanças que não
estão em seus horizontes como frias idéias senão como imagens dinâmicas que empurram condutas em
uma ou outra direção. E, desde já, determinadas idéias serão aceitas com maior facilidade que outras na
medida em que se relacionem mais estreitamente com a paisagem em questão. Essas idéias serão
experimentadas com todo o sabor de compromisso e verdade que têm o amor e o ódio, porque seu
registro interno é indubitável para quem o padece mesmo quando não esteja objetivamente justificado.
Exemplificando. Os temores de alguns povos se traduziram em imagens de um futuro mítico
em que tudo vai se acabar: cairão os deuses, os céus, o arco-íris e as construções; o ar se tornará
irrespirável e as águas poluídas; a grande árvore do mundo, responsável pelo equilíbrio universal
morrerá e com ela os animais e os seres humanos. Em momentos críticos, esses povos traduziram suas
tensões por meio de inquietantes imagens de contaminação e solapamento. Mas isso mesmo os
impulsionou em seus melhores momentos a ‘construir’ com solidez em numerosos campos. Outros
povos se formaram no penoso registro da exclusão e do abandono de paraísos perdidos, mas isto
também os empurrou a melhorar e a se conhecer incansavelmente para chegar ao centro do saber.
Alguns povos parecem marcados pela culpa de terem matado seus deuses e outros se sentem afetados
por uma visão polifacética e mutante, mas isto levou uns a se redimirem pela ação e a outros à busca
reflexiva de uma verdade permanente e transcendente. Com isto não estamos querendo transmitir
estereotipias —porque estas observações fragmentárias não explicam a extraordinária riqueza do
comportamento humano, queremos ampliar mais a visão que habitualmente se tem dos mitos e da
função psicossocial que cumprem.
Mas hoje estão desaparecendo as culturas isoladas e, portanto, seus patrimônios míticos.
Percebem-se modificações profundas nos membros de todas as comunidades da terra que recebem o
impacto não somente da informação e da tecnologia, senão também de usos, costumes, valores,
imagens e condutas sem importar muito o local de origem. A este fluxo não poderão subtrair-se as
angústias, as esperanças e as propostas de solução que tomando expressão em teoria ou fórmulas mais
ou menos científicas, levam em seu seio mitos antigos e desconhecidos para o cidadão do mundo atual.
Aproximar-se dos grandes mitos foi, para nós, reavaliar os povos desde um ponto de vista um
tanto especial, desde a ótica da compreensão de suas crenças básicas. Não tocamos neste trabalho nos
belos contos e lendas que descrevem os afãs dos semideuses e dos mortais extraordinários. Nos
circunscrevemos aos mitos nos quais o núcleo é ocupado pelos deuses ainda que a humanidade
desempenhe nesta trama um papel importante. No possível, não misturamos questões de culto,
considerando que já se deixou de confundir a religião prática e cotidiana com as imagens plásticas da
mitologia poética. Por outra parte, procuramos tomar como referência os textos originais de cada
mitologia, pretensão que nos acarretou numerosos problemas. Com isso, e a modo de menção, digamos
que a riqueza mitológica das civilizações Cretense e Micênica foram reduzida em um genérico capítulo
de “Mitos greco-romanos” precisamente por não podermos contar com textos originais daquelas
culturas. Outro tanto aconteceu com os mitos africanos, oceânicos e, de algum modo, americanos. De
todas as maneiras, os avanços que estão realizando antropólogos e especialistas em mitos comparados
nos faz pensar em um futuro trabalho que tenha por base seus descobrimentos.
O título deste livro, ‘Mitos Raízes Universais’, exige algumas aclarações. Consideramos ‘raiz’
a todo o mito que, passado de povo a povo, conservou uma certa perdularidade em seu argumento
central, ainda quando se tenham produzido modificações através do tempo nos nomes dos personagens
considerados, em seus atributos e na paisagem em que se insere a ação. O argumento central, aquele
que designamos como ‘núcleo de ideação’, também experimenta mudanças, mas numa velocidade
relativamente mais lenta que a dos elementos que podemos tomar como acessórios. Desta maneira, ao
não ter em conta a variação do sistema de representação secundário, tampouco convertemos em
decisiva a localização do mito no momento preciso em que este surgiu. Uma pretensão oposta à
mencionada não poderia ser sustentada já que a origem do mito não pode filiar-se a um momento exato.
Em todo caso, são os documentos e os distintos vestígios históricos que dão conta da existência do mito
e que se encaixam dentro de um calendário mais ou menos preciso.
Por outra parte, a construção do mito não parece responder a um só autor, senão a sucessivas
gerações de autores e de comentaristas que vão se baseando em um material por demais instável e
dinâmico. As descobertas que atualmente são acrescentadas pela arqueologia, pela antropologia e pela
filosofia —atuando como auxiliares da mitologia comparada— nos mostram que certos mitos, que
considerávamos como originários de uma certa cultura, na realidade pertencem a culturas anteriores ou
a culturas contemporâneas àquela recebendo assim suas influências.
De acordo ao comentado, não colocamos interesse especial em precisar os mitos em ordem
cronológica e sim em relação à importância que parecem ter adquirido em uma cultura determinada,
ainda quando esta seja posterior a outra, na qual o mesmo núcleo de idéias já estava atuando. Fica
claro, por outra parte, que o presente trabalho não pretende ser nem uma recompilação, nem uma
comparação, nem uma classificação com base nas categorias prefixadas, senão uma colocação em
evidência de núcleos de idéias perdulares e atuantes em distintas latitudes e momentos históricos. A
isto se poderá objetar que a transformação dos contextos culturais faz variar também as expressões e os
significados que se dão em seu seio. Mas precisamente por isso é que pegamos mitos que cobraram
maior importância em uma cultura e momento, ainda que tenham existido em outras oportunidades mas
sem cumprir com uma função psicossocial relevante.
Quanto a certos mitos que, aparecendo em pontos aparentemente desconectados guardam entre
si importantes similaridades, se terá que revisar a fundo se tal desconexão histórica efetivamente
ocorreu. Neste campo, os avanços são muito rápidos e hoje ninguém pode afirmar que, por exemplo, as
culturas da América são totalmente alheias às da Ásia. Poderá se dizer que quando ocorreram as
migrações através do estreito de Bering, há mais de vinte mil anos, os povos da Ásia não contavam
com mitos desenvolvidos e que estes somente tomaram caráter quando as tribos se assentaram. Mas,
em todo caso, a situação pré-mítica foi parecida nos povos que estamos mencionando e lá talvez se
encontrem pautas que mesmo se desenvolvendo separadamente em suas diversas situações culturais
tenham mantido alguns padrões comuns. Seja como for, esta discussão não está terminada e é
prematuro aderir a qualquer uma das hipóteses hoje em confronto. No que se refere a nós pouco
importa a originalidade do mito e sim, como observamos mais acima, a importância que este tem em
uma determinada cultura.
Colocamos em letra diferente o texto original do texto de nossa autoria para que possa ser
apreciado em toda sua riqueza. Em qualquer obra de reconstrução histórica (e esta, de algum modo é),
se distingue claramente o original do agregado posteriormente e acreditamos que o expediente da letra
ressaltada cumpre perfeitamente com esta função. Enquanto que em nosso texto se trata de conservar
um certo estilo comum com o original, em nada perturba a obra, ou melhor, acreditamos que facilita
sua compreensão. A citação de fontes consultadas e as notas que acompanham o texto servem à mesma
idéia.
I. MITOS SUMÉRIO-AQUEUS
Gilgamesh (Poema do senhor de Kullab)
Gilgamesh e a criação de seu duplo.
Aquele que tudo soube e que entendeu profundamente coisas. Aquele que tudo viu e que tudo
ensinou. Que conheceu os países do mundo... Grande foi tua glória. Grande é tua glória divino
Gilgamesh !
Ele construiu os muros de Uruk. Empreendeu uma grande viagem e soube tudo o que ocorreu
antes do Diluvio. Ao regressar gravou todas as suas proezas em um papiro. Porque os grandes deuses o
criaram, dois terços de seu corpo são de deus e um terço de homem.
Depois de ter lutado contra todos os países, regressou a Uruk, sua pátria. Mas os homens
murmuraram com ódio porque Gilgamesh tomava o melhor da juventude para suas façanhas e
governava ferreamente. Por isso, as pessoas foram levar suas queixas aos deuses e os deuses a Anu.
Anu elevou o reclamo a Aruru e disse estas palavras: 1 “Tu Aruru, que criastes a humanidade, cria
agora uma cópia de Gilgamesh: este homem em seu devido tempo o encontrará e enquanto lutem entre
si Uruk viverá em paz”. A deusa Aruru, ao escutar este rogo, imaginou em si mesma uma imagem do
deus Anu, umedeceu suas mãos, amassou um bloco de argila, modelou seus contornos e formou o
valente Enkidu, o herói augusto, o campeão do deus Ninurta. Todo o seu corpo é veludo, seus cabelos
estão penteados como os de uma mulher, são espessos como a trigo dos campos. 2 Está vestido como o
deus Sumuqan e nada sabe dos homens nem das terras. Como as gazelas se nutrem de ervas, como o
gado bebe água nas fontes. Sim, ele gosta de beber com os rebanhos.”
Com o tempo, um caçador encontrou a Enkidu e seu rosto se contraiu de temor. Se dirigiu a
seu pai e lhe contou as proezas que viu este homem selvagem realizar. O velho, então, enviou seu filho
a Uruk para pedir ajuda a Gilgamesh.
Quando Gilgamesh escutou a história da boca do caçador, recomendou a este que buscasse
uma bela servente do templo, uma filha da alegria, e levando-a com ele, a colocasse ao alcance do
intruso. “Deste modo, quando ele vir a moça, ficara aprisionado dela e esquecerá seus animais e seus
animais não o reconhecerão’. Assim que o rei falou, o caçador procedeu segundo as indicações
chegando em três dias ao lugar do encontro. Passaram um dia e mais outro até que os animais
chegaram à fonte para beber água. Atrás deles apareceu o intruso que viu a servente sentada. Mas,
quando esta se levantou e foi rápido até ele, Enkidu ficou encantado por sua beleza. Sete dias esteve
com ela, até que decidiu ir com seu gado porém as gazelas e o rebanho do deserto se separaram dele.
Enkidu não pode correr, mas sua inteligência se abriu, pensamentos de homem pesaram em seu
coração.
Voltou a sentar-se ao lado da mulher e esta lhe disse: ‘Por que vives com o gado como um
selvagem? Vem, te guiarei a Uruk ao santuário de Anu e a deusa Ishtar, até Gilgamesh a quem ninguém
vence’. Disto Enkidu gostou porque seu coração procurava um amigo e por isso deixou que a jovem o
guiasse até os férteis pastos onde se encontram os estábulos e os pastores. Mas o leite das bestas
selvagens ele o mamava e eis que aqui que lhe oferecem pão e vinho. Despedaçou o pão, o olhou, o
examinou, mas Enkidu não soube o que fazer com ele... A escrava sagrada tomou as palavra e disse a
Enkidu: ‘Come pão, oh, Enkidu !, é fonte de vida; bebe o vinho, é o costume do país’. Então, Enkidu
comeu o pão, comeu até saciar-se, bebeu o vinho, bebeu sete vezes... Um barbeiro raspou os pelos de
seu corpo e Enkidu se untou com óleos, como fazem os homens, e vestiu roupas de homem e se
mostrou como um jovem esposo. Tomou sua arma, atacou os leões e assim permitiu que os pastores
repousassem à noite. Mas um homem chegou até Enkidu, abriu a boca e disse: ‘... Para Gilgamesh,
rei de Uruk a bem cercada, se arrastam as pessoas ao cultivo ! As mulheres impostas pela sorte o
homem fecunda, e depois, a morte! Por vontade dos deuses tal é o decreto: desde o seio materno à
morte é nosso destino”. Enkidu enfurecido prometeu mudar a ordem das coisas.
Mas como Gilgamesh havia visto em sonhos o selvagem e havia compreendido que em
combate haveriam de se entender, quando seu oponente lhe interrompeu o passo, este se jogou com a
força do touro bravo. As pessoas se aglutinaram contemplando a feroz luta e celebraram como Enkidu
se aparentava com o rei. Ante a casa da Assembléia lutaram. As portas converteram em farpas e
demoliram os muros, e quando o rei logrou arrochar Enkidu ao solo este se apaziguou abalando
Gilgamesh. Por isto, ambos se abraçaram selando sua amizade.
O regresso.
Utnapishtim submeteu Gilgamesh a uma prova. Este devia tratar de não dormir durante seis
dias e sete noites. Mas enquanto o herói se sentou sobre seus calcanhares uma neblina descontrolada da
lã do sono caiu sobre ele. ‘Olha-o, olha quem busca a imortalidade !’, assim disse O Longínquo a sua
mulher. Despertando, Gilgamesh se queixou amargamente pelo fracasso: ‘Onde irei ? A morte está em
todos os meus caminhos’. Utnapishtim, contrariado, ordenou ao barqueiro que regressasse com o
homem mas não sem piedade por ele decretou que suas vestimentas jamais envelheceram, assim
novamente em sua pátria haveria de luzir esplêndido aos olhos mortais. Ao despedir-se O Longínquo
sussurrou: ‘Há no fundo das águas uma planta, o lício espinhoso é similar pois fere como os espinhos
de um roseiral, as mãos podes desgarrar: mas se tuas mãos se apoderam dela e a conservam, serás
imortal !’.
Gilgamesh entrou nas águas atando a seus pés pesadas pedras. Se apoderou da planta e
empreendeu o regresso enquanto disse a si mesmo: ‘Com ela darei de comer ao meu povo e eu também
haverei de recuperar minha juventude’. Logo, caminhou horas e horas dentro da obscuridade da
montanha até franquear a porta do mundo. Depois destes trabalhos viu uma fonte e se banhou, mas uma
serpente saída das profundezas arrebatou a planta e submergiu-se fora do alcance de Gilgamesh.
Assim voltou o mortal com as mãos vazias, com o coração vazio. Assim voltou a Uruk a bem
cercada.
O destino de Gilgamesh, que Enlil decretou, se cumpriu... Pan para Neti o guardião da Porta.
Pan para Ningizzida o deus serpente, senhor da Arvore da Vida. Também para Dumuzi, o jovem pastor
que a terra fertilizara.(5)
Aquele que tudo soube e que entendeu o fundo das coisas. Aquele que tudo o fez ver e tudo o
ensinou. Que conheceu os países do mundo... Grande foi sua glória !
Ele, que construiu os muros de Uruk, que empreendeu uma grande viagem e que soube tudo o
que ocorreu antes do Dilúvio, ao regressar gravou suas proezas em um rastro de estrela.
II.MITOS ASSÍRIO-BABILÔNICOS
Enuma Elish (Poema da Criação) 1
O caos Original
Quando no alto o céu nome não tinha e no baixo a terra não havia sido mencionada, do
Abismo e da Impetuosidade misturaram-se as águas . Nem os deuses, nem os mangues, nem os juncais
existiam. Nesse caos foram engendradas duas serpentes que por muito tempo cresceram de tamanho
dando lugar aos horizontes marinhos e terrestres. Elas separaram os espaços, elas foram os limites do
céu e da terra. Desses limites nasceram os grandes deuses que foram se agrupando em distintas partes
do que era o mundo. E estas divindades continuaram engendrando e perturbando, assim, os grandes
formadores do caos original.
Então, o abismal Apsu se dirigiu a sua esposa Tiamat, mãe das águas oceânicas e lhe disse: “O
comportamento dos deuses é insuportável, seu folguedo não me deixa dormir, eles se alvoroçam por
conta própria sendo que nós não lhes marcamos nenhum destino”.
Os deuses e Marduk
Assim falou Apsu a Tiamat, a resplandecente. De tal modo isto foi dito que Tiamat,
enfurecida, pôs-se a gritar: “Vamos destruir esses revoltosos, assim poderemos dormir”. E ela estava
nervosa e se agitava em voz alta. Foi desse modo que um dos deuses, Ea, compreendendo o desígnio
destrutivo estendeu sobre as águas um encantamento. E com ele deixou profundamente adormecido
Apsu (este era seu desejo), prendendo-o com correntes. E, finalmente, o matou: desmembrou seu corpo
e sobre ele estabeleceu sua moradia. Ali viveu Ea com sua esposa Damkina até que dessa união nasceu
Marduk.
O coração de Ea exultou ao ver a perfeição de seu filho, coroada por sua dupla cabeça divina.
A voz da criança ardia em labaredas enquanto seus quatro olhos e seus quatro ouvidos esquadrinhavam
todas as coisas. Seu corpo enorme e seus membros incompreensíveis eram banhados por um fulgor que
ficava extremamente forte quando os relâmpagos se juntavam sobre ele.
A criação do mundo
Após reforçar a prisão de seus inimigos e de selar e colocar em seu peito as Tábuas do Destino, o
Senhor voltou ao corpo de Tiamat. Sem piedade esmagou seu crânio com a maça, separou os condutos
de seu sangue, que o furacão levou a regiões secretas e, ao ver a carne monstruosa concebeu idéias
artísticas. Por isso cortou ao longo do cadáver como se ele fosse um peixe, levantando uma de suas
partes até o alto do céu. Prendeu-a lá e colocou um guardião para que impedisse a saída das águas.
Depois, atravessando os espaços, inspecionou as regiões e medindo o abismo estabeleceu sua moradia
nele. Assim criou o céu e a terra e estabeleceu seus limites. Então, construiu casas para os deuses
iluminando-as com estrelas.
Depois de criar o ano, determinou que nele houvesse doze meses por meio das figuras 6. A estas
dividiu até definir os dias. Nos lados reforçou os ferrolhos da esquerda e da direita, colocando entre
ambos a zênite. Destacou para Samash 7 a divisão do dia e da noite e colocou a brilhante estrela de seu
arco 8 à vista de todos. Encarregou Nebiru 9 da divisão das duas seções celeste ao norte e ao sul. Em
meio a escuridão encarregou Sin de iluminar, ordenando os dias e as noites.
“Para cada mês, sem cessar, darás a forma de uma coroa. No início do mês, para brilhar sobre o país,
tu mostrarás os cornos para determinar seis dias; no sétimo dia serás meia coroa. No dia quatorze
colocar-te-ás de frente ao sol. No meio do mês, quando o sol te alcançar na base dos céus, diminui tua
coroa e faça minguar a luz. E, quando desapareceres, aproxima-te do curso do sol. No dia vinte e nove
tu te colocarás novamente em oposição ao sol”. 10
Depois, voltando à Tiamat, pegou sua saliva e com ela formou as nuvens. Com sua cabeça produziu os
montes e de seus olhos fez fluir o Tigre e o Eufrates. E, finalmente, de suas tetas criou as grandes
montanhas e perfurou os mananciais para que os poços dessem água.
Por fim, Marduk solidificou o solo levantando sua luxuosa morada e seu templo, oferecendo-os aos
deuses para que lá se alojassem quando participassem das assembléias nas que deviam determinar os
destinos do mundo. Conseqüentemente, a estas construções chamou “Babilônia”, que significa a casa
dos grandes deuses”. 11
Ptah e a criação 1
Havia somente um mar infinito, sem vida e em absoluto silêncio. Então chegou Ptah com as
formas dos abismos e as distâncias, das solidões e das forças. Por isso Ptah via e ouvia, olhava e
percebia —em seu coração, a existência. Mas o que percebia tinha idealizado antes em seu interior.
Assim, tomou a forma de Atum e, devorando sua própria semente, pariu o vento e a umidade, os quais
expulsou de sua boca criando Nut, o céu, e Geb, a terra. Atum, o não existente, foi uma manifestação
de Ptah. Assim, inexistentes foram antes de Ptah as nove formas fundamentais e o universo com todos
os seres que Ptah concebeu dentro de si e que, somente com sua palavra, colocou na existência. Depois
de ter criado tudo de sua boca, descansou. Por isto, até o final dos tempos, será invocado: Imenso,
imenso Ptah, espírito fecundador do mundo. 2
As formas dos deuses são formas de Ptah e, somente por conveniência humana, Ptah é adorado
com muitos nomes e seus nomes mudam e são esquecidos; novos deuses substituem os antigos mas
Ptah permanece alheio a isto. Ele criou o céu como condutor e a terra circundou de mar; também criou
o inferno para que os mortos se apaziguassem. Fixou rumo à Rá de horizonte a horizonte nos céus, e
fez com que o homem tivesse seu tempo e seu domínio; assim fez também com o faraó e com cada
reino.
Rá, no seu caminho pelos céus, reformou o estabelecido e apaziguou os deuses que estavam
descontentes. Amava a criação e deu amor aos animais para que ficassem felizes, lutando contra o caos
que punha em perigo suas vidas. Deu limites para noite e para o dia e fixou as estações. Colocou ritmo
no Nilo para que regasse o território e depois se recolhesse para que todos pudessem viver do fruto de
suas águas. Ele subjugou as forças da obscuridade. Por ser quem trouxe a luz foi chamado de Amon-
Rá, por quem acreditou que Amon nasceu de um ovo que ao quebrar num estalo deu lugar às estrelas e
outras luminárias.
Mas a genealogia dos deuses começa em Atum que é o pai-mãe dos deuses. Ele engendrou a
Shu (o vento) e Tefnut (a umidade) e de ambos nasceram Nut ( o céu) e Geb (a terra). Estes irmãos se
uniram e procriaram Osíris, Seth, Neftis e Ísis. Esta é a Enéida divina da que deriva tudo.
O Antimito de Amenófis IV
Houve um faraó bondoso e sábio que compreendeu a origem de Ptah e a mudança de seus
nomes. Ele restabeleceu o princípio quando viu que os homens oprimiam os homens fazendo com que
acreditassem que eram eles a voz dos deuses. Numa manhã viu como um vassalo era julgado no templo
por não pagar tributos aos sacerdotes, por não pagar aos deuses. Então, saiu de Tebas para On 24 e lá
perguntou aos teólogos mais sábios qual era a verdadeira justiça. Esta foi a resposta: “Amenófis, bom é
teu fígado e as intenções que dele partem, e a verdade mais bondosa trará mal para ti e para nosso povo.
Como homem será o mais justo. Como rei será a perdição...mas teu exemplo não será esquecido e
muitos séculos depois de ti será reconhecido o que hoje será visto logo como loucura.” De volta de
Tebas olhou para sua mulher como quem esquadrinha o amanhecer, viu sua formosura e para ela e para
seu povo cantou um belo hino. Nefertiti chorou pela piedade do poeta e soube de sua glória e de seu
trágico futuro. Ela, com a voz entrecortada, o aclamou como verdadeiro filho do Sol. “Aknaton !”,
disse, e depois se calou. E, nesse momento, lançaram seu destino aceitando o justo porém impossível.
Assim foi a rebelião de Aknaton e o breve respiro dos filhos do Nilo, quando um mundo com o peso de
milênios cambaleou por um instante. Assim se retirou o poder daqueles que faziam com que os deuses
falassem suas próprias intenções.
Amenófis lançou-se na luta contra os funcionários e sacerdotes que dominavam o império. Os
senhores do Alto Nilo se aliaram com os sacerdotes acossados. O povo começou a ocupar posições
antes vedadas e foi resgatando para si o poder que deles fora retirado. Foram abertos os silos e
distribuídos os bens. Mas os inimigos do novo mundo pegaram em armas e fizeram o fantasma da fome
mostrar seu rosto. Morto Aknaton, todos seus feitos se tornaram conhecidos entre todos e se tentou
apagar esta memória para sempre. Não obstante, Áton conservou sua palavra.
IV-MITOS HEBRAICOS
Abraão e a obediência
Muitos gerações passaram desde os primeiros pais até o Dilúvio. Depois dele, quando Jeová
estendeu no céu o arco-íris para selar seu pacto com os homens, continuou se reproduzindo toda
semente. E assim, em Ur de caldéia, Taré pegou seu filho Abrão e Sarai sua nora e foram todos ao
Egito. Tempos depois regressaram para Hebron. O ganho e os bens de Abrão cresceram, mas seu
coração foi tomado pela tristeza porque na sua idade não havia conseguido descendência.
Abrão era já velho quando fez com que sua serva Agar concebesse. Mas Agar e Sarai se
tornaram inimigas. Por isso Agar saiu para o deserto e levou com ela sua aflição. Então, um anjo
apresentou-se a ela e lhe disse: “Tens concebido e ao dar a luz chamarás teu filho de Ismael porque
Jeová escutou suas preces. Ismael, portanto, significará “Deus ouve” e sua descendência será numerosa
e os povos dele habitarão os desertos não adorando a Deus porque o olho vê, senão porque o escuta o
ouvido. Assim rogarão a Deus e Deus os ouvirá”. Muito depois Sarai concebeu sendo já anciã, mas
seus descendentes e os de Agar mantiveram a disputa que começara entre suas mães mesmo sendo
Abrão o pai de todos e a todos quis ele como seus filhos.
Nesse momento, Deus disse: “Daqui por diante não te chamarás Abrão senão Abraão, porque
serás pai de uma multidão e Sarai será chamada Sara, como princesa de nações. Quanto ao filho teu e
de Sara, o chamarás Isaac.”
Aconteceu depois destas coisas, com as que Deus provou Abraão, e lhe disse: Abraão. E ele
lhe respondeu: Eis-me aqui. E disse: Pega agora teu filho Isaac a quem amas, e vá a terra de Moriah e
oferece-o lá em holocausto sobre um dos montes que eu te indicarei. E Abraão levantou-se bem de
manhã. E selou seu asno, e trouxe consigo dois de seus servos e a Issac, seu filho; e cortou lenha para
o holocausto, e se levantou e foi ao lugar que Deus lhe disse. No terceiro dia, levantou Abraão seus
olhos e viu o lugar ao longe. Então Abraão disse a seus servos: Esperem-me aqui com o asno, e eu e o
menino iremos até ali e adoraremos e voltaremos até vocês...E pegou Abraão a lenha do Holocausto e
a colocou sobre Isaac, seu filho, e pegou em suas mãos o fogo e o facão; e foram ambos juntos. Então
falou Isaac a Abraão, seu pai, e disse: Meu pai. E ele respondeu: Eis-me aqui, meu filho. E ele lhe
disse: Aqui está o fogo e a lenha, mas onde está o cordeiro para o holocausto? E respondeu Abraão:
Deus proverá o cordeiro para o holocausto, filho meu. E juntos iam. E quando chegaram ao lugar que
Deus lhe havia dito, edificou ali Abraão um altar, e dispôs a lenha. E estendeu Abraão sua mão e
pegou o facão para degolar seu filho. Então o anjo de Jeová lhes deu vozes do céu, e disse: Abraão,
Abraão. E ele respondeu: eis-me aqui. E disse: não estenda sua mãos sobre o menino, nem lhe faça
nada; porque reconheço que temes a Deus, porquanto não recusaste teu filho... Então, levantou
Abraão seus olhos e olhou, e eis que às suas costas um carneiro estava preso num arbusto pelos
chifres; e Abraão foi e pegou o carneiro, e o ofereceu em holocausto no lugar de seu filho. E deu
Abraão o nome daquele lugar: Jeová proverá. 7
Talvez até sua morte, ficou presente no coração de Abraão a angústia da terrível prova. Por
isso às vezes se diz: “Jeová repudia o sacrifício humano e mais ainda do próprio filho. Se ordena o
holocausto não devo acatá-lo porque seria desobedecer sua proibição. Mas rejeitar o que ele manda é
pecar contra ele. Devo obedecer algo que meu deus repudia? Sim, se ele o exige. Mas minha torpe
razão atormentada luta, ademais, com um coração de um pobre ancião que ama aquele impossível que
Jeová lhe deu tardiamente. Não será esta prova a devolução do riso que contive quando me foi
anunciado que nasceria meu filho? 8 Não será o riso que ocultou Sara quando escutou tal vaticínio? 9
Por algum motivo Jeová indicou o nome de “Isaac” que significa “riso”. Eu e minha mulher éramos já
velhos quando nos foi dito que teríamos este filho e não podíamos crer que isto fosse possível. Será que
Jeová brinca com suas criaturas como uma criança com areia? Ou será que, conhecendo sua ira e seu
castigo, não consideramos que ele também nos prove e nos ensine com a brincadeira divina? “. 10
V - MITOS CHINESES
O vazio central 1
O Tao é um recipiente oco, difícil de encher. Mesmo sendo freqüentemente usado ele nunca se
enche. É tão profundo e insondável que parece anterior a todas as coisas. Não se sabe de quem é filho.
Parece anterior aos deuses. 2
Trinta raios convergem até o centro de uma roda, mas é o vazio do centro que torna útil a roda.
3 Com argila se molda um recipiente, mas é o espaço que não contém argila que usamos como
recipiente. Abrimos portas e janelas em uma casa, mas é por seus espaços vazios que podemos utilizá-
la. Assim, da existência provém as coisas e da não-existência sua utilidade.
Tudo era vazio e Pangu dormia no interior do que estava unido, por isto que foi chamado
“infinita profundidade”. 4 Então despertou. De imediato, rompeu com seu machado o ovo que o
envolvia. E ele rapidamente se dividiu em milhares de pedaços. As coisas mais leves e as mais pesadas
foram em diferentes direções. Para evitar que novamente se juntassem, Pangu colocou-se no centro
vazio solidificando o céu e a terra. Ele foi como uma coluna que deu equilíbrio à criação. Depois
descansou e dormiu novamente até que seu corpo deu lugar a numerosos seres. 5 De um olho saiu o sol
e do outro a lua. Com seu sangue formaram-se os rios e os lagos. Os animais saíram de sua pele. O
cabelo se transformou em ervas e seus ossos em minerais.
Nestes primeiros tempos viviam na terra deuses, gigantes e monstros. A deusa mãe Nuwa, era
na sua metade superior muito formosa e em sua metade inferior se assemelhava a um dragão. Percorria
e visitava todos os lugares, mas finalmente descobriu que faltavam seres mais perfeitos e inteligentes
que os gigantes.
Então, foi até o rio Amarelo e modelou com argila os primitivos seres humanos. E os fez
parecidos a ela, mas em lugar de rabo de dragão colocou pernas para que caminhassem erguidos.
Vendo-os graciosos, decidiu fazer muitos. Para isto, tomou um junco (embarcação oriental) e foi
lançando gotas de barro sobre a terra. Estas —ao cair sobre ela— se converteram em mulheres e
homens. Deste modo, quando eles começaram a se reproduzir por si só, a mãe celestial se dedicou à
criação de outros seres.
Fushi, companheiro da deusa, viu que os homens aprendiam e então ocupou-se em ensiná-los a
fazer fogo esfregando madeiras. Logo deu-lhes cordas e mostrou a eles como se protegeriam da fome e
da intempérie. Finalmente, os outorgou a arte dos hexagramas ao que chamou I Ching. Com o tempo
este foi conhecido como o livro das transformações e da adivinhação.
Chegou o dia em que os imortais discutiram e, entrando em guerra, puseram em perigo o
Universo. Dilúvios e catástrofes assolaram a terra. Até que, por último, o Deus do fogo prevaleceu
sobre as águas. Todavia os gigantes quiseram disputar o poder com os eternos, mas os deuses em
indizível cólera cortaram suas cabeças, fazendo-as rolar até o fundo dos abismos obscuros.
O Dragão e o Fênix 6
Quando ainda as águas não estavam controladas e os rios transbordavam arrasando os campos,
a deusa mãe procriou bons descendentes que terminaram ordenado este caos diluvial. Trabalhando no
controle dos rios, dos lagos, do mar e das nuvens, os dragões cintilantes navegaram pelas águas e pelo
céu. Com unhas de tigre e garras de águia, rasgavam as cortinas do alto com um tremendo estrondo
que, ao faiscar ante o embate descomunal, deixavam as chuvas em liberdade. Eles deram leito aos rios,
contenção aos lagos e profundidade aos mares. Fizeram as cavernas das que brotavam a água por dutos
subterrâneos que levaram muito longe para que surgisse em seguida, sem que o assalto abrasador do sol
as detivesse. Traçaram as linhas que se vê nas montanhas para que a energia da terra fluísse,
equilibrando a saúde deste corpo gigantesco. Freqüentemente, tiveram que lutar com os bloqueios que
provocavam os deuses e os homens ocupados em seus trabalhos irresponsáveis. De suas gargantas
brotava como fumaça a neve, vivificante e úmida, criadora de mundos irreais. Com seus escamosos
corpos serpentinos cortavam as tempestades e dividiam os furacões. Com seus poderosos chifres e com
seus dentes afiados, nenhum obstáculo era suficiente, nenhum ardil podia permanecer. E gostavam de
aparecer aos mortais. Às vezes nos sonhos, às vezes nas grutas, às vezes na borda dos lagos porque
nestes podiam ter moradas de cristal escondidas nas quais belos jardins eram decorados com frutos
brilhantes e com as pedras mais preciosas.
O Long imortal, o dragão celeste, sempre colocou sua atividade (seu Yang) a serviço do Tao e
o Tao o reconheceu permitindo que estivesse em todos as coisas, desde o maior até o menor, desde o
universo até a partícula insignificante. Tudo viveu graças ao Long. Nada permaneceu imutável salvo o
Tao inominável, porque ainda o Tao nominável mudou e se transforma graças a atividade do Long. E
nem mesmo os que crêem no Céu e no Inferno podem assegurar sua permanência. 7
Mas o Long ama o Feng, a ave Fênix que concentra o germe das coisas, que contrai aquilo que
o Long expande. E quando o Long e o Feng se equilibram o Tao resplandece como uma pérola banhada
na luz mais pura. O Long não luta com o Feng porque se amam e se buscam fazendo resplandecer a
pérola. Por isto, o sábio regula sua vida conforme o equilíbrio entre o Dragão e o Fênix que são as
imagens dos princípios sagrados do Yang e o Yin. O sábio se refugia num lugar vazio buscando o
equilíbrio. O sábio compreende que a noção gera a ação e a ação gera a não ação. Que o coração dos
viventes, que as águas do mar, que o dia e a noite, que o inverno e verão, se sucedem em um ritmo que
para eles marca o Tao.
No final desta idade, quando o universo tenha chegado a sua grande expansão ele voltará a se
contrair como pedra que cai. Tudo —até o tempo, se inverterá voltando ao princípio. O Dragão e o
Fênix se reencontrarão. O Yang e o Yin se compenetrarão, e será tão grande a atração que absorverá
todo o germe vazio do Tao. O céu é alto, a terra é baixa; com isto estão determinados o criativo e o
receptivo... com isto se revelam as mudanças e as transformações. 8
Mas ninguém pode saber realmente como eram nem como serão as coisas; se alguém o
soubesse não poderia explicar.
O que sabe que não sabe é o maior; o que pensa que sabe mas não sabe, tem a mente doente. O
que reconhece a mente doente como estando doente, não tem a mente doente. O sábio não tem a mente
doente porque reconhece a mente doente como a mente doente. 9
O tempo e os deuses.
Então não havia o existente e o não existente; não havia o reino do céu e do ar. O que havia
dentro e onde? O que protegia? Acaso havia água nesta insondável profundidade? Não havia a morte,
não havia algo imortal, não havia divisão entre o dia e a noite. Este algo, sem alento, respirava por sua
própria natureza; aparte deste algo não havia nada... Quem o sabe verdadeiramente, quem pode afirmar
onde nasceu e de onde veio a criação? Os deuses são posteriores à criação do mundo. Quem sabe,
então, de onde o mundo procedeu? A origem da criação talvez tenha formado tudo, ou talvez não.
Quem cujos olhos controlam o mundo, ele verdadeiramente o sabe, ou talvez não 18.
Mas os deuses e os homens foram criados e têm seu tempo. Sim, têm seu tempo.
Um dia dos deuses é igual a um ano dos mortais. Portanto, um ano dos deuses é o mesmo que
360 anos mortais. Existem quatro Eras (Yugas) que formam uma grande Era (Mahayuga) de 12 mil
anos divinos, correspondente a 4.320.000.000 anos ordinários ou um dia de Brahma. Mas, ao terminar
seu dia, o deus descansa e, então, ocorre um colapso no Universo. Enquanto Brahma dorme sobre sua
grande serpente tudo começa ser absorvido por ele. Os mundos desabitados se chocam entre si; a terra
toda se liqüefaz, todo líquido se evapora, todo vapor se converte em energia e esta energia cai dentro do
poder da noite de Brahma. E quando o deus desperta se abre uma grande lótus; a luz escapa e começa
um novo dia. Neste dia se sucedem 14 ritmos (Manvantaras) nos quais são criados os deuses e os
mundos; os peixes; as aves; os insetos; os animais e os homens. Cerca de 71 séries de Grandes Eras se
sucedem para cada um dos 14 ritmos. Cada ritmo, então, compreende 852.000 anos divinos ou
306.790.000 anos mortais nos que a energia divina vai se distanciando de seu centro. Assim, a história
da presente humanidade se encontra num ritmo e dentro deste numa das 71 séries de Grandes Eras.
Como cada grande era está dividida em 4 Eras desiguais, na primeira (Krita Yuga) transcorrem 4.800
anos divinos ou 1.728.000 anos ordinários; na segunda (Treta Yuga) 3.600 ou 1.296.000; na terceira
(Dvapara Yuga) 2.400 ou 864.000, e na quarta (Kali Yuga) 1.200 ou 432.000. Por conseguinte, o ser
humano tem que estar em todo este ciclo, 4.320.000 anos. Mas, como já se encontram na quarta Era,
desde sua criação transcorreram pelo menos 3.888.000 de seus anos.
Distanciando-se da criação original todos os seres decaem e, certamente, também o ser
humano segue essa tendência. A Krita é esta Era na que a justiça é eterna. Nesta Era, a melhor das
Yugas, tudo foi (Krita) e nada fica por fazer. Os deveres não se descuidam nem declina a moral.
Depois, com o passar do tempo, esta Yuga cai num estado inferior. Nesta Era não havia deuses; não
havia compras nem vendas, não se tinha que fazer esforço.
O fruto da terra se obtinha pelo mero desejo e prevaleciam a justiça e o desapego do mundo.
Não existiam enfermidades, nem involuções dos órgãos do sentido com o passar dos anos; não existiam
a malícia, o pranto, o orgulho nem o engano; nem tampouco disputas, ódio, crueldade, medo, aflição,
ciúmes ou inveja. De tal forma que o supremo Brahma era o recurso transcendente destes seres
perfeitos. Nesta época todos os humanos eram semelhantes no objeto de sua fé e no seu conhecimento.
Somente se usava uma fórmula (mantra) e um ritual. Somente havia um Veda. Mas na Era seguinte,
Treta Yuga, começaram os sacrifícios. A justiça decresceu em um quarto. Os homens aderiram à
verdade e estavam dedicados a uma justa dependência das cerimônias. Prevaleceram os sacrifícios,
juntamente com as artes sagradas e uma grande variedade de ritos. Se começou a atuar com fins
tangíveis, buscando recompensa pelos rituais e doações e já não se preocupavam com a austeridade e a
simples generosidade. Mais adiante, na Dvapara Yuga, a justiça diminuiu duas quartas partes. O Veda
se quadruplicou. Alguns estudaram quatro Vedas, outros três, outros dois e outros absolutamente
nenhum. Dividindo-se deste modo as escrituras, as cerimônias eram celebradas de forma muito diversa.
As pessoas ocupadas na prática de austeridade e donativos encheram-se de paixão. Devido à ignorância
do único Veda, os Vedas se multiplicaram. E com o declínio do bem, somente uns poucos
permaneceram fiéis à verdade. Quando o homem se separou do bem, na sua queda se viu atacado por
muitas enfermidades, desejos e calamidades causadas pelo destino, sofrendo muitas aflições, e foram
motivados a praticar austeridade. Outros perseguiram os gozos, a dita celestial e ofereceram sacrifícios.
Assim, o homem desistiu por sua iniqüidade. E no Kali Yuga, a justiça conservou-se somente em uma
quarta parte. Nesta era de obscuridade cessaram os rituais e os sacrifícios. Prevaleceram diversas
calamidades, enfermidades, fadigas e pecados como a ira. Propagou-se a miséria, a ansiedade, a fome e
o medo. As práticas geradas pela degradação dos Yugas frustaram os propósitos do homem. Assim é o
Kali Yuga que vem existindo a alguns séculos 19.
Mas a pequenez da história do homem não teria sentido se nele não existisse o Brahma.
Porque, o que são as 71 séries de Mahayugas nas que se cria e se destrói o homem se não um só dos 14
Manvantaras, e o que são estes se não um Kalpa, um só dia de Brahma. Em incontáveis reencarnações,
a essência humana irá se purificando. Retrocedendo e avançando de acordo às suas ações, irá
preparando suas vidas seguintes respondendo à lei universal do Karma. Mas dentro de cada ser
humano, na profundidade mais profunda está seu Atman. Assim, quando o homem chega ao Atman se
encontra com o que nele é Brahma. Entretanto, esta equivalência desconcertante somente será clara no
dia em que se renunciando a feliz contemplação chegue aos homens a compaixão do ser vivente e
liberado, conhecido pelos séculos como o Iluminado 20.
Glória à Brahma, que é chamado pela palavra mística (Om) 21 associada eternamente com o
universo tríplice (terra, céu e paraíso) e que é único com os quatro Vedas. Glória ao Brahma que é
considerado como a causa maior e misteriosa do princípio intelectual, sem limites de espaço ou tempo
e isento de diminuição ou queda... Brahma é invisível e imorredouro, variável na forma, invariável na
substância; o princípio primário, criado por si mesmo, de quem se diz que ilumina as cavernas do
coração e que é indivisível, radiante, não decadente e multiforme. Que sempre se adore este Supremo
Brahma! 22
Luz e Trevas
Veja que se trata dos espíritos primitivos que foram conhecidos e declarados desde antigamente,
como um casal que combina seus esforços opostos e, entretanto, cada um é independente em suas
obras. Os dois são um melhor e outro pior, tanto em pensamentos como em palavras e obras. 15
Quando se reuniram os dois espíritos no princípio das coisas para criar a vida e a essência da vida e
para determinar como deveria ordenar-se o fim do mundo, destinaram a pior vida, o Inferno, para os
maus e o melhor estado Mental, o Céu, para os bons. 16 Quando cada um terminou sua parte na obra da
criação, cada um deles escolheu o modo de formar seu reino, perfeitamente separado e distinto do
outro. Dos dois, o mau escolheu o mal, retirando disto e obtendo disto o pior resultado possível,
enquanto que o espírito mais bondoso escolheu a justiça. De tal modo escolheu aquele que se veste
empregando como manto as pedras sólidas do céu. e escolheu, também, quantos agradam a ele, Ahura
Mazda. 17 E entre estes dois espíritos, os demônios-deuses e aqueles que os adoram, são incapazes de
escolher retamente, posto que ficaram como que enganados. Enquanto se formulavam perguntas e se
debatiam em conselho, o Espírito Mal personificado se aproximou deles para que o escolhessem e fosse
sua comitiva. Com isso tomaram uma decisão fatal. E feito isto, se lançaram juntos do demônio da
fúria, para com ele e sua ajuda desonrar a vida dos mortais. 18 E as criações do Bem e do Mal lhes deu
um corpo estável, permanente e sempre capaz e esforçado... E quando se houver enfrentado a grande
batalha, que começou quando os Daevas 19 tomaram pela primeira vez o Demônio da Ira como aliado,
e quando se houver cumprido a justa vingança sobre estes desventurados, então, oh Mazda!, tua Santa
Mente dominando já dentro de teu povo, haverá ganho o reino para ti. 20 Dos dois primeiros espíritos
do mundo, o mais bondoso disse assim ao daninho: “Nem nossos pensamentos, nem nossos
mandamentos, nem nossa inteligência, nem nossas crenças, nem nossas obras, nem nossa consciência,
nem nossas almas estão de acordo em nada! 21”
X. MITOS AMERICANOS
O reino de Xibalbá é um mundo subterrâneo onde estão todos os danos dos quais pedece a
humanidade. De lá saem as doenças, os rancores e as lutas fratricidas. E para lá são arrastados
unicamente aqueles que fizeram o mal, porque antes que Mestre Mago e Bruxinho baixassem à Xibalbá
todos os humanos, e não só os maus, eram conduzidos para lá. Desde logo, houve um tempo em que os
pais de Mestre Mago e de Bruxinho, chamados Supremo Mestre Mago, Principal Mestre Mago,
andavam pela superfície do mundo. Quando eles pegavam seus escudos de couro, seus anéis, suas
luvas, suas coroas, seus capacetes e sua bola, os de Xibalbá se irritavam muito. E quando jogando,
faziam a terra tremer, toda Xibalbá se encolerizava. Até que um dia, os-de-baixo, mandaram até eles
seus embaixadores com a proposta de disputar o jogo de bola. Mas os de Xibalbá os traíram e os
sacrificaram. E assim ficou sem vingança esse ultraje feito ao Céu.
Então Mestre Mago, Bruxinho se regozijaram de ir jogar o jogo de bola. Foram longe para
jogarem sozinhos; terminaram o jogo de bola de seu pai. Então os chefes de Xibalbá os ouviram.
“Quem são esses que começam agora a jogar sobre nossas cabeças, que não se envergonham de fazer
a terra tremer? Supremo Mestre Mago, Principal Mestre Mago, que quiseram se engrandecer diante
de nós, não estão mortos? Que se vá, então, chamar esses”, disseram Supremo Morto, Principal
Morto, a todos os chefes. Então enviaram e disseram a seus mensageiros: “Ide dizer-lhes que venham.
Queremos aqui jogar com eles; dentro de sete dias jogaremos”, disseram os chefes.
Recebida a mensagem, Mestre Mago, Bruxinho recordaram a traição que aqueles de Xibalbá
haviam feito com Supremo Mestre Mago, Principal Mestre Mago. Então se dirigiram ao mundo
subterrâneo, aceitando o desafio. Desceram a rápida pendente e atravessaram os rios encantados e os
barrancos; chegaram às encruzilhadas malditas e foram até onde estavam os de Xibalbá. Os chefes
tinham colocado em seu lugar bonecos de madeira para que ninguém visse seus verdadeiros rostos (e
também ocultaram seus nomes para serem mais eficazes). Mas os visitantes de tudo sabiam e disseram;
“Saudações, Supremo Morto. Saudações, Principal Morto. Saudações, Tolhido Estendido. Saudações,
Reúne Sangue. Saudações, O do Abscesso. Saudações, O da Icterícia. Saudações, Vara de Ossos.
Saudações, Vara de Crânios. Saudações, Gavião de Sangue. Saudações, Dentes Sangrentos.
Saudações, Garras Sangrentas”. De todos descobriram o rosto e chamaram pelo nome; não ficou
nenhum nome omitido.
Os chefes, resmungando, convidaram-nos para sentar num banco, mas eles recusaram porque
era uma pedra queimante. Por isso os de Xibalbá lhes ofereceram acomodações na Mansão Tenebrosa e
lhes deram pinho aceso para iluminar e tabaco para fumar. Após essa noite, foram buscá-los para que
jogassem e os engendrados ganharam dos de Xibalbá. Os chefes os enviaram para que descansassem na
Mansão de Obsidiana, repleta de guerreiros, mas saíram ilesos e pronto para um novo jogo de bola que
também venceram. Foram presenteados, então, com um descanso na Mansão do Frio Imensurável, na
que o denso granizo se juntou como homenagem. Saindo dali, passaram pela Mansão dos Jaguares
onde as bestas ferozes fugiram espantadas. E assim, passaram pela Mansão do Fogo e pela dos
Morcegos, para irem jogar novamente e concluir o jogo com a derrota dos de Xibalbá. Então os chefes
ordenaram que fosse feita uma pedra ardente como um braseiro e pediram aos engendrados que
mostrassem seu poder atirando-se nela. Estes concordaram e se queimaram, se reduziram, ficaram seus
ossos brancos. E então os de Xibalbá gritaram: “Nós os vencemos!”. Depois moeram os ossos e foram
espalhá-los pelo rio.
No dia seguinte, os engendrados regressaram na forma de dois homens muito pobres e
dançaram na porta de Xibalbá. Levados ante os chefes, os mendigos mostraram muitos prodígios:
incendiavam algo que depois se regenerava; destruíam algo que se recompunha e então, animados com
esta magia, os chefes lhes pediram: “Matem um homem e depois o revivam!” Assim foi feito. Depois
pediram: Agora se despedacem entre si e juntem suas partes! “Assim foi feito. Estas palavras foram
ditas por Supremo Morto, Principal Morto: “Façam o mesmo conosco, sacrifiquem-nos!” Assim
disseram Supremo Morto, Principal Morto a Mestre Mago e Bruxinho. “Muito Bem, vossos corações
reviverão. A morte existe para vós? Devemos nos regozijar, oh chefes, de vossos filhos, de vossos
engendrados”, foi o que responderam aos chefes. Eis então que sacrificaram primeiro o chefe
supremo chamado Supremo Morto, chefe de Xibalbá. Tendo matado Supremo Morto, se apoderaram
de Principal Morto e o imolaram sem fazer seu rosto reviver. Então, vendo seus chefes mortos,
abertos, os de Xibalbá fugiram. Num instante estavam abertos, de dois em dois, como castigo seus
rostos...Todos os seus filhos, sua prole, foram para um grande barranco, enchendo como um só bloco
o grande abismo. Ali estavam, amontoados...Assim foi vencido o governo de Xibalbá; somente os
prodígios dos engendrados, somente suas metamorfoses, fizeram isto. Os engendrados se fizeram
conhecer pelos seus verdadeiros nomes e proclamaram a vingança de seus pais, Supremo Mestre
Mago e Principal Mestre Mago. “Posto que já não é grande vossa glória, posto que vossa potência já
não existe e, ainda que sem grande direito à piedade, vosso sangue todavia dominará um
pouco...Todos os filhos de Alba, a prole de Alba, não serão vosso; somente os grandes faladores serão
abandonados a vós. Os do Mal, Os da Guerra, Os da Tristeza, Os da Miséria, vós, que fizestes o mal,
chorai. Já não agarrareis todos os homens subitamente como vós o fazíeis”. E se dirigiram a seus pais
que tinham sido sacrificados em Xibalbá, em outros tempos: “Somos os vingadores de vossa morte,
dos tormentos que fizeram que vós sofreis”. Assim ordenaram os que haviam vencido, a toda Xibalbá.
Se elevaram em seguida por aqui —no meio da luz subiram de repente aos céus. E um foi o sol, o
outro a lua, e iluminaram a abóbada celeste, a face da terra.
NOTAS
I. MITOS SUMÉRIO-AQUEUS
1. O texto em negrito corresponde às XII tábuas assírias, que são recopilação de outras
anteriores aquéias derivadas, por sua vez, das sumérias, como demonstram os mais recentes
descobrimentos. A tradução para o espanhol foi realizada com base nas traduções do material
original de R. Campbell Thompson “The Epic of Gilgamesh. Universidade de Oxford, 1930, e de
G. Contenau “L’Epopée de Gilgamesh”, L’Ártisan du livre, Paris, 1939. Também participaram dos
trabalhos de Speiser e Bauer. A tradução dos últimos fragmentos deveu-se a Kramer, Heidel,
Langdm, Schott e Ungnad. O texto que utilizamos tem como fonte o “Canto de Gilgamesh”, G.
Blanco, ed. Galerna, Buenos Aires, 1978.
2. Supõe-se que o poema de Gilgamesh foi composto entre o final do terceiro milênio e
início do segundo, com base em materiais muito mais antigos. Concordamos com esta hipótese
baseando-nos no desenvolvimento da cerâmica. Com efeito, até a época da primeira redação, já
tinha sido inventado em Uruk o primeiro torno de olaria do mundo (H. 3500 A.C.). O instrumento
era uma roda cerâmica de 90 centímetros de diâmetro por 12 de espessura o qual girava-se com a
mão esquerda enquanto trabalhava-se o PEÇA com a mão direita. Dado o peso do volante, este
continuava girando por vários minutos, o que permitia aperfeiçoar a obra com as duas mãos livres.
Posteriormente é inventado (também na Mesopotâmia) o torno de pé. E, sem dúvida, no poema a
deusa Aruru cria o homem de barro sem maiores expedientes que suas mãos umedecidas. Este não
é um detalhe sem importância, já que ao se comparar a criação do homem com o mito egípcio
percebe-se que o deus Khnum dá forma ao corpo de barro no grande torno de oleiro (instrumento
surgido no Nilo na época dinástica). No poema sumério é feita alusão à criação do herói Enkidu
com “duplo”, como cópia de Gilgamesh , depois que Aruru imagina dentro de si mesma a imagem
de Anu. É possível que isto se refira à técnica de fabricação de figuras cerâmicas humanas que são
feitas com cópias de moldes ( “dentro de si” ) de um original previamente confeccionado. O feto de
Enkidu nascer de veludo ( “Todo seu corpo é de veludo, seus cabelos são espessos com a cevada
dos campos” ) pode se referir à presença visível de antiplásticos (cascas de cereais, palha, etc.) que
se misturava na argila para evitar que se desmanchasse, do mesmo modo que se faz em alguns
lugares para preparar adubos. O comentado anteriormente corresponde a uma etapa anterior à da
fabricação de cerâmicas e da utilização da roda de oleiro. A história, portanto, seria anterior à
época de al’Ubaid e muito anterior à aparição do mito de Marduk em que este queria criar o
homem através de seu sangue e de seus ossos, embora depois decida fazê-lo com o sangue de seu
inimigo Qingu. Neste caso, já estamos em presença da técnica de engobo ou de esmalte cerâmico
da qual há numerosos exemplos na Babilônia da época. E além disso, no British Museum está uma
pequena tábua em que aparece uma fórmula de esmalte, baseada em chumbo e cobre, escrita pelo
mestre babilônico Liballit possivelmente contemporâneo da redação do mito de Marduk. Poder-se-
ia objetar que, tanto no Gêneses hebreu como no Popol Vuh Quiche não se faz nenhuma alusão
mesmo quando ele existia. Quanto ao Gêneses, Deus cria Adão do barro e depois cria Eva de sua
costela (como no caso do homem de Marduk, com base no sangue e no osso) e lhe dá vida com um
sopro. Não há alusão ao torno, mas o sopro é sugestivo porque já pertence à época da cerâmica de
fole para elevar altas temperaturas no cozimento (cocção) que de outra forma não ultrapassavam os
800 graus dependendo das calorias da lenha de acordo às resinas que contivesse segundo a região.
Também pode-se dizer que a invenção do forno de tiro ascendente permitiu a elevação das
temperaturas chegando próximo de 1000 graus, mas a injeção de ar é resultado de ma técnica
posterior. Quanto ao mito Quiche o primeiro homem foi feito de barro pelos deuses, mas ele se
deformava com o tempo (etapa anterior à cerâmica da argila endurecida); depois os deuses fizeram
o homem com madeira mas também não ficou bom e foi destruído até que, finalmente, se
conseguiu fazer o ser humano de milho. Com isso se denota que o mito fica encravado na etapa
instrumental neolítica (pedra, ossos, madeira), anterior à revolução da cerâmica. Por outra parte, na
América não se conheceu o torno nem a roda, por isso não existe nenhuma alusão a esse
instrumento. É certo que nas três traduções clássicas do Popol-Vuh (Arciniegas, Recinos e Chávez)
há descrições de instrumentos e peças cerâmicas que coexistem com o mito da criação do homem
mas, pelo que parece, o mito é anterior à ao ambiente textual. Em síntese, no que se refere à criação
do ser humano por um deus oleiro, o mito mais antigo é o sumério. No entanto, poder-se-ia objetar
alguma afirmação a respeito da antigüidade de certas cerâmicas baseando-se na temperatura de
cozimento (cocção). Mas, afortunadamente, muitos problemas deste tipo tem sido solucionados a
partir dos trabalhos de Wedgwood sobre os vasos etruscos. O pirômetro que este pesquisador
desenhou ( permitiu(apesar da imperfeição de sua escala) já possibilitou que fosse determinada a
quantidade de calor absorvida por uma argila. Ao se conhecer a composição dela e submeter uma
réplica à cocção controlada pôde-se observar sua contração de acordo aos critérios estabelecidos
na escala. O critério utilizado foi que quanto maior o calor, maior a contração que não muda uma
vez que o corpo esfrie. Outro método consistiu em submeter um pedaço da amostra a temperatura
crescente até que se produzisse contração. Nesse momento, determina-se o ponto em que foi
ultrapassado o aquecimento original. Mas, atualmente a precisão da análise pirométrica é tal que
se pode chegar a determinar décimos de grau.
3. “Os fragmentos ‘Morte de Gilgamesh’ e ‘A descida ao Inferno’ são provenientes de
tabuletas sumérias encontradas em Nippur e que têm sido datadas como sendo da primeira metade
do segundo milênio A.C. Não se articulam com a estrutura atual do Poema, ainda que o segundo se
ache traduzido literalmente na Tabuleta XII assíria, última desta versão”. Canto de Gilgamesh
(O.C. p. 95?). Na tradução de A. Schott, o texto que aparece referindo-se ao parlamento de Enkidu
com Gilgamesh é este: “ -Veja, meu corpo que com ternura abraçavas, os vermes o carcomem
como roupa velha. Se a meu corpo que alegremente tu tocavas a putrefação o invade, enchendo-o
de pó da terra!...Viste um que morreu queimado em combate? -Vi-o bem, estava na noite silenciosa
deitado em seu leito e bebendo água pura. Viste um que caiu na batalha? Vi-o bem, seus pais
queridos seguravam-lhe a fronte e a esposa sobre ele se inclinou. Viste um cujos restos à estepe
foram jogados? Ai de mim! Também este eu vi. Não encontra paz sua sombra na terra! Viste um de
cuja alma ninguém cuida? Vi-o bem, o resto de comida na panela e as migalhas de pão na rua tem
que comer...”O país dos sumérios. H. Schmökel. Ed. Eudeba. p. 210. Buenos Aires, 1984.
4. A visão do Paraíso adornado de jóias parece estar relacionada com a sabedoria e, às
vezes, com a vida eterna. Esta última tem seus guardiões que, freqüentemente, são serpentes. No
mito cretense citado por Apolodoro as serpentes possuem a erva da imortalidade. No de
Gilgamesh, a serpente rouba a planta da vida que o herói já tinha conseguido. Sobre esses assuntos,
Graves diz: O paraíso celestial é desfrutado num transe esquizofrênico induzido pelo ascetismo, a
perturbação glandular ou o uso de drogas alucinógenas. Nem sempre é possível julgar qual destas
causas produziu as visões místicas de, por exemplo: Ezequiel, ‘Enoc’, Jacob Boehme, Thomas
Traherne e William Blake. Mas os jardins de deleito adornados normalmente se relacionam no
mito com a ingestão de alguma ambrosia proibida aos mortais; e isto indica uma droga alucinógena
reservada para um pequeno círculo de adeptos e que causava neles sensações de glória e sabedoria
divinas. A referência de Gilgamesh ao espinho cerval tem que ser, no entanto, um disfarce, porque
o espinho cerval era comido pelos antigos místicos não como algo iluminante e sim como um
purgante preliminar... Todos os jardins de deleite são governados originalmente por deusas; quando
se passou do matriarcado ao patriarcado foram usurpados por deuses varões... O paraíso de
Gilgamesh pertencia a Siduri, deusa da Sabedoria, que havia designado o deus Sol Samash seu
guardião; em versões posteriores da epopéia, Samash foi degradando a Siduri, convertendo-a em
mera taberneira”. Los Mitos Hebreus (Os Mitos Hebraicos), R. Graves e R. Patai. Alianza, p. 73.
Madri 1988. Quanto à relação entre a imortalidade, serpentes e o ato de roubar, Wilkins na sua
Mitologia Hindu observa que quando Garuda trouxe algo de ambrosia da Lua para o Nagas ou
deidades serpentes, como preço a pagar para liberar sua mãe da escravidão, Indra tentou persuadi-
lo para que desse a ele a ambrosia evitando desse modo que os Nagas chegassem a ser imortais.
Mas Garuda persistiu com seu projeto e fez a entrega da substância (numa vasilha) aos
seqüestradores. Enquanto os Nagas estavam se banhando, Indra roubou a substância. Estes,
acreditando que ambrosia devia ter se derramado sobre a erva Kusa (poa Cynosuroides), a
lamberam. Os afiados espinhos da erva rasgaram suas línguas; por isso é que as serpentes a têm
bifurcadas.
5. Do fragmento chamado “Morte de Gilgamesh”.
2. MITOS ASSÍRIO-BABILÔNICOS
1. O poema, escrito na Babilônia com base em material sumério, foi depois encontrado
na biblioteca real de Assurbanipal (s. VII A.C.).
2. Os onze monstros, mais seu chefe Qingu, são as doze constelações zodiacais que, como
estátuas (imagens fixas), colocará Marduk no céu.
3. O destacado por nós em itálico corresponde ao poema. Neste caso, trata-se da Tábua I de
Enuma Elish (Quando no Alto), v. 147 a 157. Poema babilônico da Criação. E. L. Peinado e M. G.
Cordero. Ed. Nacional. P. 98. Madri, 1981.
4. Tábua III, v. 134 a 138. Tábua IV v. 1 a 32.
5. A planta associada a Tamati e Qingu pode ter sido de uma espécie aquática e de
propriedades venenosas, que em pequenas doses seria curativa (o “sangue” de Qingu como doador
de vida). Tal idéia, aparentemente contraditória, não é estranha. Assim a lemos em Pausanias VIII,
17, 6 ss, que a água de Estígio tinha propriedades perniciosas, quebrando o ferro, os metais e a
cerâmica. Inversamente, estas águas possuíam qualidades de elixir da vida, como é o caso da
invulnerabilidade de Aquiles obtida através da imersão do herói nelas. Recorde-mo-nos do
Hesíodo: “Tal juramento fizeram em verdade os deuses, pela antiga água imortal do Estígio, que
por uma escarpada região corre”.(Teogonia. v. 805).
6. O zodíaco.
7. O Sol.
8. A estrela Sírio.
9. O planeta Júpiter.
10. Tábua V, v. 14 a 22.
11. Bab-El, significa “Porta de Deus”.
12. Tábua VI. v. 5 a 10. Os Igigi e os Anunnaki, entidades respectivamente dos céus e das
profundezas infernais.
13. Tábua VI. v. 11 a 16.
14. Tábua VI. v. 29 a 37. O sacrifício de Qingu permite que seja obtido seu sangue. Desse
modo ficam limpos de sua culpa os deuses e pode ser transmitida vida à humanidade. A frase:
“Esta obra foi incompreensível”, talvez revele a perplexidade do poeta babilônico, ou a falta de
indícios, frente a uma explicação insatisfatória que, possivelmente, em contexto mais completo,
tenha trabalhado a favor dos sumérios (dos quais deriva este mito). Na tradição caldéia foram
Marduk e Aruru os progenitores do homem. Esta deusa, no poema de Gilgamesh, é a que cria o
homem e depois o duplo do rei, a Enkidu, umedecendo suas mãos e modelando-o com argila. Outra
versão (transmitida pelo sacerdote Beroso) assinala que a humanidade foi modelada com argila à
qual se misturou o sangue de um deus.
15. Trata-se da pirâmide incompleta com degraus (zigurate), em cuja cúspide sempre havia
um pequeno templo que também era lugar de observação astronômica. O complexo de Esagila
compreendia outras torres, residências e muralhas fortificadas. As escadarias freqüentemente eram
substituídas por rampas. Nos espaços subterrâneos da pirâmide encontravam-se câmaras funerárias
ou rituais nas quais, para as festividades de Ano Novo (Akiture), “repousava” ou “morria” Marduk.
Posteriormente, este era resgatado da “montanha da morte” e através de complexas cerimônias
eram determinados os destinos do Ano Novo. É certo que o mito da morte e ressurreição já havia
tomado forma muito tempo antes em Sumé. A esse respeito, Schmökel comenta: “Sabemos hoje
que a problemática da vida, morte e ressurreição, expressada no mistério de Inana e Dumuzi, era
uma pergunta nuclear da antiga religião suméria... cabe perguntar se as sombrias descrições do
além nas epopéias de Gilgamesh, não deve ser considerada como uma reação contra esperanças
demasiado efusivas nesse sentido. Quem se entregava integralmente na fé de Inana como geradora
da vida e seu amado Dumuzi, que anualmente no outono descia ao inferno, acompanhado pelas
lamentações dos homens, sendo recebido com júbilo em seu regresso na primavera seguinte, podia
participar talvez nesse retorno, e chegar a ser ele mesmo um elo da eterna corrente do morrer e
nascer... E já vimos que, pelo menos na primeira dinastia de Ur, a crença no rei convertido em
Dumuzi surtiu efeitos dos mais estranhos: grupos inteiros de homens tomavam cicuta na tumba do
extinto soberano ou da defunta sacerdotisa, para desse modo acompanhar seu deus e reviver junto
com ele. Passemos por cima da questão do grau de espontaneidade em cada caso; o fato de que
esses homens e mulheres punham fim a suas vidas sem nenhuma coação visível, parece seguro”. O
país dos sumérios. O.C., p. 211.
16. Tábua VI v. 95 a 98. Parece que se trata de uma referência ao Dilúvio.
17. Tábua VII v. 120 a 123. “Cabeças Negras” é uma designação para os seres humanos.
Por outra parte, a redução de numerosos nomes de deus a Marduk mostra a face monoteísta da
religião babilônica, depois que sua divindade local se expandiu pela baixa e alta Mesopotâmia, pela
Ásia Menor pelo Mediterrâneo oriental. Outro tanto farão os assírios com Assur.
18. Tábua VII v. 161 a 162. São as palavras finais do Enuma Elish.
3. MITOS EGÍPCIOS
1. O formato que demos ao mito da criação corresponde ao da mitologia menfita e está
de acordo com a inscrição que mandou fazer em pedra basalto o faraó Shabaka, por volta de 700
A.C. Esta, por sua vez, é a transcrição de um papiro consideravelmente mais antigo. No Velho
Império, Átom era o deus principal —que às vezes foi relacionado com Rá, o disco solar, porém,
no Império Novo, Rá ocupa o lugar central com a degeneração de Atom e outros deuses. A fonte
que usamos mostra Ptah como o criador de tudo o que existe. Na mitologia egípcia existem sempre
dificuldades para acompanhar o processo de transformação de uma entidade divina. É muito
freqüente que um deus, totalmente desconhecido numa época, comece a surgir timidamente no
cenário histórico de épocas posteriores. Depois, sua figura toma corpo e às vezes ameaça absorver
toda a vida religiosa ou mítica de um longo período. O caso do Egito é exemplar neste ponto, dado
o longo período em que sua cultura se desenvolveu. De acordo com a Aigyptiaka (mencionada por
Flavio Josefo), a primeira dinastia começa por volta de 3000 A.C. (época tinita). Até a dominação
persa, grega romana, o Egito continua ativo e, portanto, em franca transformação. Com efeito,
mesmo na época dos Tolomeos, a mitologia continua desenvolvendo novas formas que nessa época
influem no mundo helenístico, como havia feito antes nos rudimentos da cultura grega. Estamos
falando, então, de 3000 anos de desenvolvimento contínuo e é claro que em semelhante período o
aparecimento e transformação de mitos provoca desconcerto, pelo excesso. Deste modo, uma
divindade pode ter características (muitas vezes opostas) a ela mesma no transcorrer de um milênio
ou mais.
2. O texto em itálico, neste caso, é o do primeiro Ato, segunda cena, de Aída, segundo o
libreto de Antonio Ghislanzoni. A fala do sumo sacerdote é esta: “Inmenso, inmenso Ftah, del
mondo spirto fecondator, ah!... ah... Noi t’invochiamo!”.
3. Uma lenda menciona especificamente Biblos. Fenícia era uma região da Ásia Anterior
na costa acidental da Síria que estando entre o Líbano e o Mediterrâneo chegava ao Monte
Carmelo pelo sul. Suas cidades principais eram: Biblos, Beirut, Tiro e Acca. Durante a dominação
romana foi anexado o território da Celesiria ou Fenícia do Líbano, passando a ser designada de
Fenícia Marítima a nação antiga. Usamos “Fenícia”, no relato, para ressaltar a mesma raiz de
“Fênix”, fabulosa ave que morria numa fogueira e renascia de sua cinzas. Em todo o caso, não
ignoramos que “Fenícia” deriva do grego Phoenika, ou seja, “país das palmeiras” e que os
habitantes dessa região se denominavam “cananeus” e não “fenícios”.
4. Alusão à preparação da múmia, de acordo ao comentado por Heródoto (História, II,
LXXXVI e seguintes).
5. Já se propôs fazer derivar a palavra “pirâmide” de um termo grego que significa “pastel
de trigo”, porque egípcios e gregos davam essa forma a certos pastéis (derivados, talvez, de outros
que serviam à prática cerimonial teofágica). Existem aqueles que opinam que os pastéis se
tratavam apenas de simples ornamentos graciosamente adornados. Pirâmide, do grego piramís, tem
a mesma raiz que pira, pyrá, e que fogo, pyr. “Pira” tem sido usado como a “fogueira” na qual era
queimado o corpo dos mortos, ou os corpos do sacrifício ritual. Não conservamos na antiga língua
egípcia o vocábulo que exatamente se refere à pirâmide em sentido geométrico. De todas as
maneiras, o nome grego desse corpo, e os estudos matemáticos iniciais em torno dele, bem podem
ser provenientes do ensinamento egípcio pelo fato deste ser comentado no Timeo de Platão —onde
o autor menciona os primeiros conhecimentos científicos de seu povo considerando-os de origem
egípcia. Estas considerações nos permitiram fazer um jogo de palavras no que a pirâmide em
questão acaba identificada com o torno de oleiro. Por sua parte, Heródoto (Ib. II, C e CI) conta uma
história a respeito do motivo da construção das pirâmides que as aproxima do tema osiríaco.
Recordando, além disso, a antigüidade do mito próprio da cultura cerâmica primitiva (na qual o
nascimento do homem se deve ao deus-oleiro), se pôde compor aceitavelmente o parágrafo
comentado ainda que com a licença do caso em questão. De sua parte , as pirâmides
mesopotâmicas (zigurates) também nos aproximam de uma concepção segundo a qual essas
construções não eram somente templos e lugares de observação astronômica, mas também
“montanhas sagradas” nas quais Marduk era sepultado e depois resgatado. Quanto às pirâmides
escalonadas e cobertas ou semi revestidas do México e da América Central (Xochicalco, Chichém
Itzá, Cholula, Teotihuacán, p. ex.), não temos elementos para afirmar que, além de construções
dedicadas ao culto e à observação astronômica, era-lhes dada função de sepulcro. E no que se
refere ao seu desenvolvimento histórico, as pirâmides do Egito evoluem das mastabas que já na III
dinastia estavam ligadas ao culto ao Sol em Heliópolis.
6. De acordo ao que se pode observar, p ex., no Papyrus of Ani, (Brit. Mus. N. 10, 470,
sheets 3 and 4).
7. A coroa branca e alta do alto Nilo e a vermelha e chata do baixo Nilo representavam a
procedência do faraó e seu poder sobre essas regiões. Ambas as coroas às vezes eram combinadas
para formar uma coroa dupla. Na época do Novo Império começou a ser usada a coroa azul de
guerra. Ao redor era colocado, freqüentemente, o Ureus, a cobra sagrada, que representava o poder
sobre as duas terras, ou então, as plumas de avestruz, que combinavam com a coroa alta. No caso
de Osíris a coroa toma caráter sacerdotal nos moldes da tiara—como ocorre com o tocado papal
(mas no qual se observa coroa de três níveis). Neste caso, se deriva a tiara pontifícia da mitra dos
bispos, mas seu estilo é mais exatamente egípcio.
8. O espanador e o cajado ou báculo, freqüentemente aparecem cruzando o peito dos
faraós. Nas representações de Osíris cumprem com uma função sacerdotal, tal como ocorre com o
cajado dos bispos cristãos.
9. O Ká não era o espírito e sim o veículo que visitava o corpo mumificado. Tinha algumas
propriedades físicas e era representado como “duplo”. Aparece assim nas distintas épocas do Livro
dos Mortos. Quando se representava o Ká do faraó costumava-se pintar ou esculpir duas figuras
iguais de mãos dadas.
10. A cruz de braços iguais era o símbolo de Anu, dos caldeus-babilônicos. A cruz Ankh
ou Ânsata era uma Tau com círculo e asa, símbolo do triunfo da morte e atributo próprio de Skhet.
Esta cruz foi adotada depois pelos cristãos coptas.
11. A Bá era o espírito não submetido às vicissitudes materiais. Costumava-se representá-
lo como um pássaro com rosto humano.
12. Amenti ara o inferno, o reino dos mortos.
13. Khnum, representado amiúde com corpo humano e cabeça de carneiro, era a divindade
principal da tríade de Elefantina do alto Egito. Esta divindade fez o corpo humano com barro e
deu-lhe forma com sua roda de oleiro. Esta, ao girar, tomava o caráter de roda da fortuna que
determinava o destino das pessoas desde o momento de seu nascimento. Beltz, citando E. Naville,
The Temple of Deir el Bahri, II, tablas 47-52, põe na boca de Khnum estas palavras quando este
cria uma importante rainha: “Quero obsequiar-te com o corpo de uma deusa. Serás perfeita como
todos os deuses e receberás de mim felicidade e saúde e as coroas de ambos os países e estarás no
ápice de todos os seres viventes por ser rainha do alto e do baixo Egito”. W. Beltz, Los mitos
egípcios. Losada. Pp. 97 e 98. Buenos Aires, 1986.
14. Thot, deus de Hermópolis. Era representado com corpo humano e cabeça de íbis. Foi
criador da cultura. Também assumia o papel de conduzir as almas para o Amenti. A equivalência
com o Hermes grego deu lugar à figura Hermes-Thot. Posteriormente, até o s. III D.C. os
neoplatônicos e outras seitas gnósticas produziram os Livros Herméticos (Poimadres, La llave—A
Chave—, Asclepios, La tabla de Esmeralda—A Tábua de Esmeralda—, etc.) que atribuíram a um
lendário Hermes Trimegisto (O “três vezes grande”) criador da ciência, das artes e das leis.
15. O sicômoro era uma espécie de figueira de madeira muito durável que se utilizava na
confecção de sarcófagos. Aqui também se faz alusão à árvore Djed, um tronco morto do qual saíam
brotos e que representava a ressurreição de Osíris.
16. ‘Dama do ocidente”, nome que nas invocações mortuárias usava a deusa mãe Hator,
situada na região ocidental da Líbia onde estava o reino dos mortos.
17. Anubis, com o corpo de homem e cabeça de chacal era o acusador na julgamento dos
mortos. Era conhecido, às vezes, como o “O Embalsamador” ou o “Guardião das Tumbas”.
Atribuía-se que Anubis tivesse ajudado no embalsamento de Osíris. Também surgia como “O que
está sobre sua montanha”, ou seja, a cargo da pirâmide funerária.
18. Os amuletos (ushabtis ou “os que respondem”) eram figurinhas de argila que eram
colocadas nas tumbas para acompanhar o morto ao país de Amenti, onde adquiriam tamanho e
características humanas, substituindo o defunto nos trabalhos mais pesados.
19. Hórus, com seus pais Osíris e Ísis, formava parte da trindade de Abidos. Era
representado com a cabeça de falcão e um disco solar sobre a fronte. Era considerado em seu
aspecto solar nascente.
20. Era um deus local de Coptos, Panápolis e de certas regiões desérticas. Era representado
como Príapo com o falo ereto. Era uma divindade regeneradora da corte de Seth. Foi chamado
“Touro de sua mãe”, filho e esposo de uma divindade que presidia o Oriente. Pode ter-se produzido
alguma troca com Seth, já que em algumas lendas ele é mostrado como um touro assassinando
Osíris. Por outro lado, bem pode existir uma relação estreita entre este antiquíssimo Min e o
legendário Minos de Creta representado também como um touro.
21. Apófis era uma serpente monstruosa que espreitava a barca do Sol. Com o tempo ficou
sendo identificada com Seth em seu aspecto demoníaco. Em algum Livro dos Mortos se fazem
invocações para que a barca na qual vai o defunto não se torne presa desta serpente.
22. A perda da cabeça dos deuses não significa sua morte e sim, mais exatamente uma
substituição de atributos. Muitas divindades, por sua vez, podem ser facilmente identificadas
devido a que levam na cabeça o totem do povoado ou região da qual saem.
23. Pareceu-nos ter importância marcar a história de Aknaton sob um subtítulo que faz
referência ao “antimito”. Na verdade se trata de outro mito raiz: o do deus único que como forma
de pensamento entra em forte colisão com panteões superpovoados. Se bem que na Mesopotâmia
tenham se observado algumas colocações monoteístas, é com o Egito e Aknaton (de 1364 a 1347
A.C.) que essa forma religiosa adquire vigor. A reforma de Aknaton dura tanto quanto seu reinado.
Segundo Beltz, as castas sacerdotais que concederam ao clero de Amon de Tebas uma primazia
honorífica, se entendiam freqüentemente com o tesouro e a salvaguarda das tradições nacionais.
Sua vitoriosa resistência às reformas de Aknaton não teve só um caráter religioso mas também
nacional. Depois que eles conseguir anular as reformas deste soberano herege sua influência e
força se tornaram mais fortes do que nunca. “Os templos converteram-se na maior potência
econômica do país. Os reis da vigésima dinastia eram marionetes nas mãos dos sumos sacerdotes
tebanos cuja função era, antigamente, hereditária”(Tókarev). Opostamente ao que aconteceu com o
cristianismo e o islamismo, a religião egípcia regressou à formas autóctones. Tendo progredido a
reforma política e religiosa de Aknaton, provavelmente, haveria surgido uma religião universal
com bastante anterioridade às hoje conhecidas. De todo modo, ainda que tenha sido apagados
oficialmente os rastros da heresia, sua influência transcendeu o Egito.
24. Heliópolis.
25. As traduções do Hino de Áton são numerosas. De nossa parte, fragmentamos a
transcrição de Estela Dos Santos, baseada, por sua vez, na Storia delle leterattura antica egizziana,
de Donadoni.
4. MITOS HEBRAICOS
1. Gênese 2, 9 e 2, 16-17.
2. Com base no livro V de O Paraíso Perdido, de J. Milton.
3. Gênese, 3, 4-5.
4. Neste relato à serpente interessa que o homem adquira a ciência mas impede que
aconteça o mesmo com a imortalidade, seguindo a tônica do mito de Gilgamesh “aquele que tudo
soube”, mas que regressou para morrer em Uruk.
5. Gênese, 3, 22-24.
6. Anúncio da Lei Mosaica.
7. Gênese 22, 1-14.
8. “Disse também Deus à Abraão: Tua mulher, Sarai, não a chamarás Sarai, mas Sara será
seu nome. E a bendizerei, e dela te darei um filho; sim, a bendizerei e virá a ser mãe de nações; reis
de povo virão dela. Então Abraão se curvou abaixando o rosto, e riu, e disse para seu coração: De
um homem de cem anos há de nascer um filho? E Sara, de noventa anos há de conceber?” (Ib. 17,
15-18)
9. “Então, disse: De certo voltarei a ti; e com seu tempo de vida eis que Sara, sua mulher,
terá um filho. E Sara escutava à porta da tenda da qual ele estava atrás. E Abraão e Sara eram
velhos, de idade avançada; e em Sara já havia cessado as regras das mulheres. Riu-se, pois, Sara
para si, dizendo: Depois de ter envelhecido terei deleite, e também meu senhor já velho? Então
Jeová disse a Abraão: por que riu Sara dizendo: será verdade que eu hei de dar a luz sendo já tão
velha? Há par Deus alguma coisa difícil? No tempo determinado voltarei a ti, e com seu tempo de
vida, Sara terá um filho. Então Sara negou, dizendo: Eu não ri porque tive medo. E ele disse: Isso
não foi assim, tu riste sim.”(Ib. 18, 10-16).
10. A questão de Abraão foi tratada dramaticamente por Kierkegaard em Temor e
Calafrio. Num dos possíveis libretos sobre o tema do holocausto diz: “Era bem de manhã; Abraão
levantou-se, abraçou Sara, companheira na velhice, e Sara deu um beijo em Isaac, que a preservara
do escárnio, e era seu orgulho e esperança para a posteridade. Andaram em silêncio; o olhar de
Abraão permaneceu fixo no chão até o quarto dia; e então, levantando os olhos viu no horizonte as
montanhas de Morija; e baixou novamente o olhar. Em silêncio preparou o holocausto e amarrou
Isaac; em silêncio tirou a faca; então, viu o carneiro que Deus proveu. Sacrifico-o e regressou...A
partir desse dia, Abraão tornou-se velho; não pôde esquecer quanto Deus tinha exigido dele. Isaac
continuou crescendo; mas os olhos de Abraão embaçaram; e não viu mais a alegria”. (O.C. p. 15.
Losada. Buenos Aires, 1979). De nossa parte, em vez de insistir na culpa como um motivo da
existência, destacamos certos aspectos retributivos do mito no que se refere à burla divina frente ao
riso motivado pela incredulidade.
11. Este é o tema de Jacó, mas também Moisés luta contra Deus. Assim é dito para nós: “E
aconteceu no caminho, que numa pousada Jeová saiu ao seu encontro e quis matá-lo”. Êxodo, 4,
24.
12. Israel, isto é “o que luta com Deus”, ou “Deus luta”.
13. Peniel, isto é “o rosto de Deus”.
14. Os lexicógrafos árabes explicam que a natureza do aleijão produzido pela lesão no
tendão femural da articulação do músculo, obriga uma pessoa a andar na ponta dos dedos. Este
deslocamento da cadeira é comum entre os lutadores e o descreveu pela primeira vez Harpócrates.
O deslocamento da cabeça do fêmur alonga a perna, aperta os tendões do músculo e produz
espasmo nos músculos, o que obriga a caminhar mancando, com o calcanhar constantemente
elevado, como o alijamento que atribui Homero ao deus Hefestos. A crença que o contato com os
jinn traz como conseqüência uma maneira de andar frouxa e algo desconjuntada é encontrada entre
os árabes, talvez como recordação da dança requebrada que bailam os devotos que acreditavam
estar possuídos divinamente, como os profetas de Baal no monte Carmelo (Reis XVIII, 26). Beth
Hogláh, próxima a Jericó, pode ter sido chamada assim por esta razão, porque hajala significa em
árabe requebrar ou saltar, e tanto Jerônimo com Eusébio chamam Beth Hoglán ‘o lugar da dança
do anel’. Os tírios bailam essa dança pela honra de Hércules Melkart. É possível, em conseqüência,
que o mito de Peniel originalmente se explique como uma cerimônia de requebros que comemora a
entrada triunfal de Jacó em Canaã.” Os Mitos Hebraicos. Op. Cit., p. 200, nota 7.
15. O tema do aleijão divino muito se estende na mitologia universal. Desde o Hefesto
coxo que é jogado do Olimpo até os nativos Tereno e os da ilha de Vancouver. Os Ute de
Whiterocks, em Utah, praticavam “danças requebrantes”; isto também se lê num texto talmúdico
que faz referência à dança claudicante celebrada até o século II D. C. com o objetivo de propiciar
chuvas. Esta idéia do aleijamento divina também aparece na China arcaica. O fundador da dinastia
Yin, Tang, que lutou contra a Séqui e Yu, o Grande, fundador da dinastia Chang, eram
hemiplégicos e coxeavam. Comentários sobre isto em particular os encontramos em Frazer (O
Ramo Dourado, 4, vol. 7) e em C. Lévi-Strauss (Mitológicas II, Do Mel às Cinzas, F.C.E. México,
1972, Pp. 383-386). Neste ponto das danças claudicantes ou das atitudes de mancar realizadas com
o objetivo de propiciar chuvas opinamos que o ou os que realizavam o ofício do ritual simulam o
mal estar de algumas pessoas que, quando se aproximam as tempestades, sentem dores artríticas.
Nesses casos se trata de “tapear” o céu e, dentro dessa lógica, quando se manca é porque a chuva
vem, portanto esta não tem mais que ser produzida. No caso de Jacó, de sua luta e o aleijamento
emergente, acreditamos que mesmo podendo se tratar de um rito, este não estaria relacionado com
a questão das chuvas, e sim à mudança de estado do protagonista, que se confirma devido à
permutação de seu nome, para nada menos que o de Israel. Lembremos que no outro caso de luta
com Jeová, Moisés não ficou coxo mas se produz de imediato a circuncisão e tudo isto ocorre no
trajeto de volta ao Egito seguindo o mandato de Deus para resgatar seu povo da prisão do faraó.
Portanto, a anedota da “tentativa” de Jeová “matar” Moisés reflete também uma possível cerimônia
de mudança de estado.
16. Não podemos fazer menos do que transcrever alguns parágrafos do curioso estudo de
Freud a respeito de Moisés e do monoteísmo. Ainda que seus argumentos não estejam de todo
avalizados pela certeza histórica, são dignos de se ter em conta em alguns aspectos. Desde já, não
reproduziremos aqui os temas psicoanalíticos da tese. O trabalho de costura sob o título Moisés e o
monoteísmo (O. C. Volume XXIII. Amorrortu. Buenos Aires, 1980), trata de demonstrar no
primeiro capítulo que Moisés foi um Egípcio, e para isso cita um documento de Sargão de Agadé
(fundador da Babilônia, c. 2800 A.C.) no qual aparece a lenda do resgate das águas que circulava
em todo o mundo cultural da Mesopotâmia e, portanto, era conhecido pelos semitas nascidos na
Babilônia ou, como Abraão, em Ur da Caldéia. O escrito diz: “Eu sou Sargão, o rei poderoso, o rei
de Agadé. Mina mãe foi uma vestal; meu pai não conheci, tanto que o irmão de meu pai morava na
montanha. Na minha cidade, Azupirani, situada no vale do Eufrates, minha mãe ficou grávida de
mim, a vestal. Pariu-me escondido. Colocou-me num cesto de bambus, tapou os orifícios com
betume e abandonou-me na correnteza do rio, mas não me afogou a correnteza. O rio me levou até
Akki, o que retira a água. Akki, o que retira a água, com a bondade de seu coração me recolheu.
Akki, o que retira a água, me criou como se eu fosse seu próprio filho...”, etc. Mas adiante (terceira
parte, p. 57 e seguintes), Freud diz: “... a religião de Áton foi abolida e a residência do faraó
apontado como herético foi vítima de destruição e saque. Até o ano de 1350 A.C. foi extinta a
décima-oitava dinastia; a ela se sucedeu uma época de anarquia, na qual restabeleceu a ordem o
general Haremhab, que governou até 1315 A.C. A reforma de Akhnaton parecia um episódio
destinado ao esquecimento. Até aqui comprovado historicamente; o que segue é nossa continuação
hipotética. Entre as pessoas próximas a Akhnaton encontrava-se um homem que talvez se
chamasse Thotnés, como muitos outros dessa época; o nome não importa muito, mas apenas que
seu segundo componente devia ser “nose”. Ocupava um alto posto, era um sequaz convencido da
religião de Áton, mas, por oposição ao excessivamente pensativo rei, era um homem enérgico e
apaixonado. Para ele o final de Akhnaton e a apostasia de sua religião significava o fim de todas as
suas expectativas...No apremio do desengano e da solidão voltou-se a esses estrangeiros, procurou
neles o ressarcimento de suas perdas. Escolheu-os como seu povo, tentou realizar através deles
seus ideais. Depois de ser acompanhado pelas pessoas do seu séquito, abandonou com eles o Egito,
os santificou mediante o signo da circuncisão, distribui-lhes leis, introduziu-os na religião de Áton
que os egípcios acabaram de abolir”. E até aqui, Freud. No que se refere à circuncisão, sabemos
que ela já avia sido estabelecida antes de Moisés e, quanto a seu uso por diversos povos, inclusive
o egípcio, pode ser comprovada historicamente sem por isso derivá-la exclusivamente dos
habitantes do Nilo. Moisés pode ter sido egípcio, isso não nos parece de especial importância. O
tema de interesse encontra-se em que a influência cultural egípcia se fez sentir nessa porção do
povo judeu fixada na terra dos faraós. Os acontecimentos desencadeados por Akhnaton foram
muito próximos à época do Êxodo e as teses religiosas que Moisés sustentou também coincidiram
com as do reformador egípcio. Quanto ao interesse histórico experimentado por Freud, devemos
recordar que até 1934 circulavam numerosas hipóteses sobre a origem egípcia de Moisés, entre
outras as de Breasted e de Eduard Meyer que nosso autor freqüentemente cita fazendo eco na
discussão proposta. Desde logo que para Freud não era indiferente o tema da fundação religiosa já
desde o seu Tótem e Tabu, de 1913. Quiando no Moisés e o monoteísmoI se conclui que Moisés foi
assassinado por um grupo dos seus liderados, todos os antecedentes da questão, e especialmente a
relação pai e filho, não podem ser passadas superficialmente, pelo menos dentro da lógica
psicoanalítica ou da tradição antropológica representada por J. G. Frazer, de quem Freud era
tributário. Aquele que sustentava que o assassino dos chefes era uma tendência marcante ou
encoberta, mas existente em numerosas sociedades. Como por sua vez os chefes sabem ou intuem
isto, as pessoas têm que cuidar deles e cuidar-se deles (“He must not only be guarded, he also must
be guarded against”).
17. Êxodo 3, 2-16. Ver também: êxodo 6, 2-3.
18. Ib. 12, 37-38.
19. Segundo Eusébio e Julio Africano, Amenófis fez com que se construísse um canal que,
começando no Nilo na altura de Coptos, abaixo ainda de Tebas, penetrava por Cosseir no Mar
Vermelho. Este canal foi obstruído durante a invasão de Cambises. Por sua vez, Aristóteles
comenta que Ramsés II ou Sesostris, abriu um canal pelo istmo. Os trabalhos foram interrompidos
e depois retomados por Necos até que a obra ficou acabada com Dario. O canal começava em
Pátmos no Mar Vermelho e terminava no Nilo, indo até Bubasto. Os Ptolomeus o melhoraram e
Estrabão conta tê-lo visto sendo usado. Foi conservado pelos romanos até um século e meio depois
da conquista árabe. Ao que parece, o canal foi fechado e reconstruído por Omar, voltando a ser
navegável até 765, data em que Almazor decidiu inutilizá-lo para evitar que Mohamed-Ben-Abula
recebesse víveres de seus companheiros insurrectos. Para obter mais detalhes sobre a história das
canalizações egípcias, ver Rompimento do Istmo de Suez, de Cipriano S. Montesinos. No
relacionado à passagem dos israelitas por um lugar seco do Mar Vermelho tudo leva a pensar que,
com efeito, existia um sistemas de eclusas num ramal conectado com o Nilo, ou então (já que
faltam os dados históricos sobre este ponto), que estavam secos por obras de canalização dois
setores que depois haveriam de se ligar pela água. Se foi esse o caso, as paredes como represa de
contenção provisória permitiam terminar o trabalho de canalização. Provavelmente por uma dessas
paredes se deslocou a pesada equipe dos egípcios e bem pode ter-se produzido um
desmoronamento. Se esta explicação resulta difícil de acreditar, devemos recordar o projeto de
traçado indireto do canal de Suez, de acordo a Stephenson, Negrelli e Paulin Talabot. De acordo
com esse plano, conhecido como Linant-Bey, tratava-se de construir 24 eclusas comunicando o
Mar Vermelho com o Nilo. Por outra parte, na inauguração oficial do canal de Suez em 17 de
novembro de 1869 numerosos trechos chegavam escassamente aos 22 metros de largura e a
profundidade era de 8,5 a 9 metros. Não estamos, pois, falando de trechos tão gigantescos nem de
eclusas tão altas.
20. “E chegaram a Mara, e não puderam beber as águas de Mara porque eram amargas; por
isso puseram o nome de Mara”, Êxodo 15, 23.
21. “E na casa de Israel o chamou Maná; e era como semente de culantro, branco, e seu
sabor como de folhinhas com mel”, Ib. 16, 31. Aqui Maná quer dizer “O que é isto? “, em
referência à surpresa que mostraram os israelitas ao comerem as sementes que dava de presente
Moisés.
22. Êxodo 19, 18-21.
23. Ib. 20, 18.
24. Deuteronômio 33, 4-7.
25. Ib. 33, 10-12.
5. MITOS CHINESES
1. A doutrina do Tao é muito anterior a Lao Tsé e Confúcio (ambos viveram no séc. VI
A.C.). Existem rudimentos desta idéia na origem da cultura Hoang Ho. Por outro lado, no I Ching
ou Livro das Transformações (possivelmente anterior ao século X A.C.), se recorre àqueles
elementos que logo serão um antecedente importante na elaboração do Confucionismo e o Tao Te.
Se deve o I Ching ao legendário Fu Jtsi ou a Vem, antecessor da dinastia Chou, ou a uma sucessão
de autores e corretores. O certo é que sua influência foi grande na formação de numerosas escolas
de pensamentos, dando lugar também, a uma série de técnicas adivinhatórias e outras superstições
que chegam até nossos dias.
2. Tao Te Ching, Lao Tse. C. IV. Andrómeda, Buenos Aires, 1976 (tradução de J.
Fernandes. O).
3. Ibid. C. XI. Na tradução que faz Lin Yutang do chinês ao inglês (E daí se volta ao
castelhano por obra da A. Jwhitelow), se lê: “Trinta partes se unem circundando a nave; de sua não
existência surge a utilidade da roda....” (?). Sabedoria Chinesa. pag. 35. Nova, Buenos Aires, 1945.
4. “Profundidade é uma interpretação da palavra chinesa Hsuan que significa o
“infinitamente pequeno do Universo não descoberto pelo homem” (literalmente uma coisa pequena
coberta por um homem). A “infinita profundidade”, em chinês, literalmente significa “ a
profundidade da profundidade” ou “ a infinita pequenez da infinita pequenez”. (Tao Te Ching,
chamada 4 do tradutor ao capítulo 1).
5. Nesta versão livre, a volta ao sonho quer significar a contração ou o esfriamento de
todas as coisas depois da primeira expansão. O grande turbilhão segue ampliando-se, segundo o
taoísmo, mas em cada coisa começa a contradição que equilibra a união universal.
6. O Yin tem sido interpretado como uma força passiva, complementária ao Yang. Mas o
Yang, aparece como força posterior ao Yin. Isto suscitou não poucas discussões antropológicas as
que, associando-se o Yin ao feminino e o Yang ao masculino, se pretendeu que a anterioridade
daquela força é histórica e não conceitual. A conclusão que derivou é que trata-se da supremacia
feminina na época matriarcal, logo deslocada pelo patriarcado no que o Yang impõe sua atividade,
tal como aparece no Imperador Dragão (Yang) e na Imperatriz Feng (Yin).
7. Alusão aos mitos de pós-morte. No fragmento que acompanhamos se refletem algumas
destas crenças populares ainda que de distintas épocas, como o caso dos Oito Imortais que
aparecem recentemente no século XIII d.c. (durante a dinastia Yuan), ao lado de figuras temidas ou
veneradas nos séculos XI a II A.C. (período clássico da dinastia Chou). De todas as formas, trata-se
de um trabalho meritório que também dá certas pautas rituais. “ - Sabes que farão de ti? -perguntou
Tcheng-Kuang olhando-o atentamente! “ Depenar-te-ão vivo, arrancar-te-ão as unhas, os dentes e
os olhos, tirar-te-ão a carne por faixas e a jogarão aos abutres. Depois, os cachorros roeram seus
ossos. E quando transcorreram os cento e cinco dias do solstício de Yin, teus familiares não
poderiam ir a teu túmulo oferecer-te sacrifícios na festa da morte. Os garotos de tua aldeia lançarão
ao ar seus cometas, com legendas ilustradas dos oitos Sábios Imortais, e suspenderão suas
campanhias e suas lanternas. Milhões de lanternas se ascenderão neste dia na China, mas nenhuma
delas ascenderá por ti ... Nem queimarás enxofre nem folhas de artemísia em meio do pátio para
expulsar os demônios. Ching, o grande demônio que leva o registro da Vida e da Morte, terá escrito
já teu nome a porta do inferno, sobre o Magno oceano, no caminho que conduz a Fontes Amarelas,
onde habitam os mortos... Sung-Ti, a majestade infernal que habita a Estância das cordas Negras, e
o Senhor dos Cinco Sentidos, o temível Yen-lo e o implacável Ping- Tang, senhor dos Infernos, te
farão recorrer, uma a uma, suas câmaras de tortura numa infinita roda de suplícios. Não irás ao
Paraiso Kwng Sung, onde a Rainha Mãe do Oeste passeia entre seus pessegueiros, nem verás mais
o sol, Pai Yang, bela constelação de ouro, recorrer ao céu em seu carro de chamas. “A Flor do Tao.
A. Quiroga. Cárcamo, pp. 13 y ss. da edição bilingüe. Madrid. 1982. Com relação às lendas
chinesas, pode-se consultar algumas das fontes que dá Tao Tao Liu Sanders no final de seu livro
Dragões, Deuses e Espíritos. Anaya, Madrid. 1984.
8. I Ching. Dissertação de Ta Chuan. Tradução de A. Martinez B. Ed. Tao. Quindio.
Colombia. 1974.
9. Tao Te Ching. Op. Cit. LXXI
6. MITOS HINDUS
1. A literatura mística da Índia é com segurança a mais extensa do mundo. Por outro
lado, nela encontram-se concepções científicas, filosóficas e artísticas de grande interesse. Com
freqüência, essa enorme produção foi ordenada de maneira simples . Seguindo um esquema
elementar podemos dizer que os Vedas (quatro no total), foram seguidos por obras de exegese
como os Bramanas, Aranyakas e Upanishads. Os Vedas podem ficar em seu substrato mais antigo,
até o sec. XV A.C.; os Bramanas até o sec. VI a.C. e muitos dos Aranyankas, mais recentes em
geral, têm seu esboço quase contemporâneo aos Bramanas. Os Upanishads são os últimos escritos
que, ao fechar o ciclo védico, tomam o nome de “Vedanta”. O ciclo védico foi composto na língua
que portavam os invasores da Índia, conhecidos como “indu-europeus”, ou “indórios”. Esta língua
foi tornando-se irreconhecível a medida que transcorria o tempo até que se sistematizou a forma de
expressão clássica que conhecemos como Sânscrito, hoje em dia fora de uso mas que constitui algo
assim como o grego antigo para os ocidentais. De acordo a Max Muller, os Vedas foram
produzidos entre 1200 ao 800 a.C.; os Bramanas do 800 ao 600 e resto do 600 ao 200, mas o certo
é que não há nada nestes textos que indique em que data foram escritos e, no entanto, sua
transmissão foi durante muitos séculos de tipo oral. No que se refere à moderna mitologia hindu,
podemos mencionar as grandes epopéias (Ramayana e Mahabharata), aos Puranas (histórias
tradicionais, no número de dezoito) e os Tantras (uns cinco importantes). nesta primeira separação
que temos chamado “Fogo, Tormenta e exaltação”, nos limitamos a transcrever alguns dos hinos
dedicados às três mais importantes divindades do Rig Veda. Autores como Yaska, possivelmente
uma das autoridades mais antigas no comentário dos Vedas, considera que Agni, Indra e Surya (o
sol) constituem a trilogia fundamental do monumento literário que nos ocupa. Nos parece,
entretanto, que a suplantação de soma nesta trilogia, responde a uma troca importante na
perspectiva mítica dos autores posteriores, em relação a etapa védica original.
2. Fogo como figura de Agni. Em Agni se reconhecem distintos tipos de fogo: na terra
(incêndio, fogo doméstico e sacrifical); no ar (raio e relâmpago) e no céu (sol). Deve-se chamar
“comedor de madeira” e de gordura, este último em alusão a graça sacrificial que se derrama sobre
ele. Nasce por fricção das duas varetas sagradas e não tem pés, mãos, nem cabeça; em troca possui
numerosas línguas e cabeleiras de chamas. Sua voz é o crepitar. São consagrados a ele mais de
duzentos hinos do Rig Veda. Foi adorado também pela ramificação ária que deslocou-se até o Irã.
Lá tomou grande relevância na religião anterior a Zarathustra, continuou depois do reformador e
chegou até o atual culto dos Parsis (estes, depois do embate mulçumano mantém-se no Irã em
reduzido número de trinta mil, havendo emigrado a Bombaim um grupo que hoje representa a
maioria desta religião. Ao que parece muitos dos atributos de Agni terminaram absorvidos por |
ndra, mas em seu carácter sacrificial continua envolvendo a maior parte das divindades hindus.
3. Tormenta como figura de Indra. A rigor, a imagem de Indra é o raio mas aqui aparece
como condutor das águas após as haver liberado ao triunfar sobre Vrta, demônio fêmea que as
mantinha aprisionadas. Este Vrta pode ter sido um deus dos nativos contra os quais lutaram os
ários durante sua invasão à India ao penetrar pelo Punjab. Os povoadores que foram deslocados até
o sul, possivelmente canalizaram a água até seus campos de cultivo, encontrando-se em um estágio
de civilização mais avançado que os estrangeiros, mas não contavam com as armas de ferro que
possuiam as hordas invasoras. Os nativos são chamados “Dasyw” no rig Veda tratando-se
seguramente de grupos drávidas. Também se viu em Indra o deus que luta contra a seca e que
libera as águas benéficas do céu. Para este deus consagram-se ao redor de duzentos e cinquenta
hinos do Rig Veda (um quarto do total) o que mostra a importância que teve por estas épocas.
Posteriormente, foi perdendo força e muitos de seus atributos terminaram absorvidos por outros
deuses.
4. Exaltação como figura do deus embriagador Soma. Esta bebida corresponde ao Haoma
dos ários que invadiram o Irã. Até hoje se discute as características da planta produtora do Soma.
Parece possível que a bebida fora, com o tempo, obtida de distintos vegetais daí a confusão que
envolveu o tema. Segundo W. Wilkins em sua Mitologia Hindu, a planta em questão é a Asclepias
ácida de Roxburgh. Cresce nas colinas do Punjab, no Paso Bolan, nos arredores de Pooma, etc.
Mas já nas épocas em que foi escrito o Vishmu Purama, os intoxicantes estavam estritamente
proibidos, por isto o Soma não era exaltado como tal. Em todo caso, ali é relacionado difusamente
com a lua. Portanto, a pista se perde quase completamente. Segundo outros autores, a planta não é
senão uma variedade da zigophullacea. Poderia tratar-se das sementes do vegetal conhecido como
arruda assíria (Pegorum harmala) que foi usado pelos mesopotâmicos queimando-os nas
defumações sacrificiais. Não faltaram os que viram no Soma uma bebida fermentada do tipo da
cerveja, como a consumida pelos indu-europeus. Mas a teoria mais interessante partiu de A.
Hofmann. Este estudioso (descobridor do L.S.D.), afirma que se trata de um fungo: a Amanita
muscaria. Segundo ele, o que foi um enigma etno-botânico por mais de dois mil anos foi
descoberto em 1968. Em Plantas dos Deuses, ( em colaboração com R. Evans. F.C.E.México,
1982), Hofmann comenta que a Amanita se conhece como alucinógeno desde 1730 por
comunicaçao de um oficial sueco prisioneiro na Sibéria. Este informou que os xamãs a dissecavam
acrescentando depois leite de rena e procediam a ingerí-la mostrando os mesmos sintomas que se
observou entre os nativos do lago superior, do norte e centro América, afeitos às mesmas práticas.
No laboratório se comprovou que o princípio ativo não era a mescalina, como se pensava, senão
que conseguiu-se ilhar o ácido ibotênoco e finalmente, o bioquímico Takamoto obteve o alcalóide
chamado muscimole. Em toda essa investigação soube-se que no processo de secar o fungo ocorre
toda a transformação e o ácido se converte em muscimole. Outra observação importante foi
proporcionada também por aquele oficial que mencionamos antes. Ao que parece os xamãs
siberianos, depois procediam com o beber da urina e mostravam efeitos parecidos aos evidenciados
anteriormente. Os autores de Plantas dos Deuses, comentam que isto era possível, porque os
princípios psicoativos passavam à urina sem serem metabolizados, ou bem em forma de
metabolítos que ainda tinham atividade, o que é pouco usual em relação aos compostos
alucinógenos das plantas. Por outro lado, os Vedas fazem menção a que a urina de algum dos
participantes da cerimônia do Soma era recolhida em recipientes especiais, o que permite
estabelecer curiosas relações. Atualmente na India é conhecida a uroterapia na base da bebida, em
jejuns, da própria urina. Este não é exatamente o caso descrito mais acima, mas este costume bem
poderia ter suas raízes mais distantes na época védica da “medicina” do Soma. Com relação a
Amanita uma mistura românica da capela de Plkaincourault (final do sec. XII), mostra-a como a
árvore do Éden, enroscando-se ao redor da famosa serpente. No que diz respeito a substâncias
tóxicas usadas em cerimônias religiosas, os assírios já conheciam a cannabis no primeiro milênio a.
C. que, desde então, também era utilizava no Tibet e India com fins idênticos. Marco Polo mostra
em suas viagens o caso de Al-Hasan Ibn-al-Sabha, conhecido como “o velho da montanha”que
usava o haxixe (cujo nome deriva de “aschissim” ou “asesin”, que foi derivado como assassino), no
qual relata que Al-Hasan submetia um grupo de jovens por meio do tóxico e, depois, os lançava
contra seus inimigos. Seguramente, numerosos aromatizantes tiveram sua origem na aspiração de
fumaças de plantas alucinógenas queimadas com finalidade ritual. Dada a toxidade observada é
possível que, com o tempo, tais vegetais foram substituídas por resinas que hoje vemos utilizadas
na prática de muitas religiões, isto é: o incenso, a mirra e o estoraque, além de madeiras aromáticas
como o sândalo. Pode-se seguir uma pista similar na origem de certos perfumes que com o tempo
foram desaparecendo. Quanto a amplitude de uso , digamos que da enorme quantidade de espécies
vegetais terrestres, só cento e cinquenta foram empregados por suas propriedades alucinantes.
Destas, umas vinte no oriente e ao redor de cento e trinta no hemisfério ocidental, correspondendo
uma quantidade importante no centro e norte da América. Na origem das religiões universais,
observam-se alguns traços que não deixavam de sugerir a presença de substâncias alucinógenas. O
Soma, pela abundante referência que nós dá o Rig (ao redor de cento e vinte hinos), nos apresenta
como o terceiro deus importante da Índia na época védica, mas não podemos desconhecer que, em
tempos e lugares distintos, numerosas manifestações religiosas estiveram relacionadas com a ação
de tóxicos. Sobre a anormalidades da percepção e da representação ver nosso Contribuições ao
Pensamento (Psicologia da imagem - Variaçes do espaço de representação nos estados alterados de
consciência. Planeta, Buenos Aires, 1990).
5. Rig Veda I, 1, 2. Na tradução de F. Villar Liebana. ed. Nacional.Madrid, 1975.
6. Ibid. I, 31, 2.
7. Ibid. I, 36, 14 e ss.
8. Ibid. I, 60, 3.
9. Ibid. I, 78, 2. Possivelmente de uma ramificação da família destes gotama descendia o
Buda histórico. No Rig Veda menciona-se os Ruhuganas como pertencentes a este grupo ( I, 78, 5)
10. Ibid. II. 4, 5, e ss.
11. Ibid. I, 32, 1 e ss.
12. Ibid. Iii, 48, 1 e ss.
13. Ibid.Ix, 1, 5 e ss.
14. Ibid. Ix, 45, 3 e ss.
15. Ibid. IX, 48, 3 e ss.
16. Ibid. IX, 50, 1.
17. Ibid. IX, 57, 1 e ss.
18. Ibid. X, 129, 1 e ss. da tradução inglesa de R. Griffith.
19. Tendo como base a tradução de W. Wilkins do Mahabharata. Mitologia Hindu. Visão,
Barcelona, 1980.
20. Alusão ao ensinamento do Buda (500 A. C.) segundo esta doutrina, o ser humano pode
liberar-se da roda das encarnações e chegar ao Nirvana, espécie de dissolução desde o ponto de
vista das características sensíveis que configuram o Eu. A doutrina budista (a rigor uma filosofia e
não uma religião), foi convertida paulatinamente numa crença religiosa dando lugar, por sua vez, a
uma nutrida mitologia.
21. Freqüentemente, “Om” se pronuncia no começo de orações e cerimônias religiosas.
Originalmente, as letras que formavam esta palavra (a u m) representavam os Vedas. Com o tempo,
começou a denotar as três divindades principais do ciclo purânico, a saber: Brahma, Vishnu e
Shiva.
22. A oração foi tomada do Vishmu Purana. Em relação ao nome de Brahma, Monier
Williams diz: “Somente uns poucos hinos dos Vedas parecem conter a simples concepção da
existência de um ser divino e onipresente. Inclusive nestes, a idéia de um deus presente em toda a
natureza é um pouco difusa e indefinida. No Purushma Sukta do Rig Veda, o espírito único se
chama Purushna. Já o nome mais comum no sistema posterior é Brahman, neutro (nominativo,
Brahma) derivado da raiz Brih, ‘espandir-se’ e denota a unidade da essência expansiva, ou a
substância universalmente difusa do universo. Brahma é o neutro, sendo o simples ser infinito (a
única essência real e eterna) que, quando passa à essência manifesta se chama Brahman; quando se
desenvolve a si mesma no mundo se chama Vishnu e quando de novo se dissolve em si mesmo
num ser único recebe o nome de Shiva; todos os restantes e inumeráveis deuses e semideuses são
também novas manisfestaçoes do Brahman neutro, que é eterno”. Indiam Wisdom, pag. 12. Citada
por Wilkins O.C. pag. 106).
23. O título deste parágrafo, “As formas da beleza e o horror”, sintetiza essa sensação
contraditória que muito freqüentemente apresentam as divindades nas que se adverte sua dupla face
benéfica e sinistra. O primeiro caso que se apresenta é a transformação de Krishna frente ao herói
Arjuna. O segundo é o radiante Parvati capaz de triturar um monstro, absorver seu sangue e
devorar os restos para voltar ao lado de seu amado Shiva com a beleza e mansidão de sempre.
Impressionado por este estado contraditório que provoca seu amante, Baudelaire terminará
escrevendo seu Hino à Beleza que bem pode ser dedicado a estes deuses ambivalentes: “De um
negro abismo vem ou baixa dos astros? O destino, como um cão, te segue fiel e cego; vais
espalhando ao acaso felicidades e desventuras, governas tudo ainda sem responder a nada... Oh
Beleza, caminhas entre mortos e deles te escarnece! Entre tuas jóias o Horror não é a menos
apreciada... O que importa que venhas do céu ou do inferno, oh Beleza, monstro enorme, ingênuo,
espantoso, se teu olhar, teu sorriso, teus pés, me abrem a porta do infinito que amo e me é
desconhecido?”
24. Arjuna, um dos heróis da epopéia Mahabharata.
25. D’O Bhagavad Gjita, na tradução de J. Roviralta Borrell. Canto XI. Diana, México,
1974. O Bhagavad Gita é um episodio do Mahabharata, redatado até o século III A. C.
7. MITOS PERSAS
1. Zarathustra ou Zoroastro, viveu aproximadamente entre o 660 e 580 a.C. Sua prédica
começou no remoto distrito do Irã oriental. Do ponto de vista religioso sua figura é das mais
importantes. Quanto a sua existência pessoal é tão provada como a de Maomé p. ex., coisa que não
ocorre com muitos outros fundadores. Apesar de contar com elementos indo-iranianos e outros
primitivos, o profeta inaugura uma religião universal nova que se choca poderosamente com
outras. Sua cosmologia e sua cosmogonia, seu apocalipsismo e suas idéias de salvação iniciam um
ciclo religioso que junto a Isaías, Malaquias e Daniel (na Bíblia), terá enorme influência em vastas
regiões do Oriente e Ocidente. Mais adiante, o Zoroastrismo convertido em Mitraísmo avançará
novamente, desta vez na direção do Império Romano. Numa competição ferrenha com o
Cristianismo influirá sobre ele mas, mesmo quando aquela nova religião se impôs em aliança com
o poder político romano, os germens do mitrísmo cresceram em seu seio até se expressarem como
sérias heresias. O mesmo ocorrerá depois no Irã onde a invasão muçulmana terminará erradicando
quase totalmente o Zoroastrismo, mas muitas de suas idéias produzirão a heresia Xiita dentro do
Islã. Já no s. XIX, o Ba e a fé Bahai, constituirão uma nova transformação no ensinamento de
Zarathustra. Quanto ao aspecto doutrinal, atribui-se a Zarathustra a redação do Avesta ou Zend-
Avesta, mas ao que parece o profeta somente escreveu o Yasna (talvez somente 17 de seus hinos ou
Gathas). O Avesta (livro sagrado dos parsís) é constituído pelo Yasna (72 capítulos de liturgia
Parsí); pelo Vispared (24 capítulos de invocações); pelo Vendidad (outros 22 capítulos); os Yashts
(21 capítulos com invocações aos anjos e que constituem o Avesta propriamente sacerdotal) e o
Khordah Avestya ou Pequeno Avesta (livro de devoções sacerdotais e privadas). Para nossas
citações do Avesta, tomamos somente os Gathas e o chamado Vendidad-Sade. Os Gathas foram
escritos no Avestin, que era a língua da antiga Bactriana, mas os textos originais sofreram
numerosas vicissitudes desde a passagem de Alexandre pela Pérsia. Assim o material chegou até
nós: em língua Pehlevi, com grandes lacunas e, seguramente, interpolações de todo tipo. No que se
refere à certas divindades ou espíritos comuns na sua origem entre os ramos arianos que se
bifurcaram até Índia e Irã, devemos ter em conta que tomam um caráter oposto devido,
provavelmente, às guerras ou disputas que ocorreram entre aquelas tribos primitivas. Assim, Indra
e os Devas são dignos de devoção nos Vedas hindus, tomando um caráter sinistro no Avesta. Outro
tanto, ocorre com o legendário Yima do Avesta (“Djimchid, chefe de povos e rebanhos” para
Anquetil-Duperron, de acordo com a citação de Bergua), que nos Vedas aparece como Yama,
divindade da morte (Rig-Veda 1,38,5). Mas o Haoma (Soma para os Vedas) e Mithra (Mitra
védico), permanecem com características benéficas.
2. Alusão ao começo do Assim falou Zaratustra. Quando Zaratustra cumpriu os trinta
anos, abandonou sua pátria e os lagos de sua pátria e se retirou para a montanha. F. Nietzche
O.C. Vol. III pág. 243. Aguilar, Buenos Aires, 1961. Pelo que parece, a preocupação de Nietzche
pelo profeta persa começou, quando muito jovem, o viu em seus sonhos. Em correspondência com
sua irmã Elizabeth e com Lou Andreas Salomé, além de comentários a Peter Gast e a E. Rhode,
Nietzche descreve Zaratustra como alguém capaz de fundamentar uma nova moral e, portanto,
como um destruidor ou transmudador dos valores estabelecidos.
3. Referência ao sistema cosmológico e cosmogônico de Zaratustra, desenvolvido pelos
magos persas.
4. Kine, alma dos seres viventes e particularmente do ganho. Ahura Mazda, divindade da
Luz, chamado também Ormuz.
5. Yasna XLIV, 3. O Avesta. Tradução de J. Bergúa. Madrid. 1974.
6. Ibid, XLIV, 4.
7. Ibid, XLIV, 5.
8. Ibid, XLIV, 6.
9. Segundo Fargard, 2 e ss. O Vendidad-Sade. Op. Cit.
10. Ibid. Segundo Fargard, 7 e ss.
11. Ibid. Décimo nono Fargard, 52.
12. Ibid. Décimo Fargard, 17.
13. Ibid. Décimo oitavo Fargard, 29 e 31.
14. Ibid. Décimo quinto Fargard, 5 e 6.
15. Yasna XXX, 3.
16. Ibid. XXX, 4.
17. Ibid. XXX, 5.
18. Ibid. XXX, 6.
19. Ibid. XXX, 8. Refere-se à aliança dos espíritos Daevas com Ahriman, deus das Trevas
e o Mal.
20. Ibid. XXX, 8.
21. Ibid. XLV, 2.
22. Ibid. LIII, 2.
23. Ibid. LI, 13.
24. Ibid. XLIX, 11.
25. Ibid. LI, 15.
8. MITOS GRECO-ROMANOS
1.- Sob este título englobamos uma quantidade de mitos dos que participavam não somente
gregos e romanos, mas também outros (povos) próprios do mundo creto-micênico que, desde já,
requereriam tratamento à parte. Se observará que os sujeitos tratados possuem nomes gregos e, em
nenhum caso romanos, já que os filhos de Rômulo absorvem seus mais proeminentes mitos da
cultura grega, usando apenas o expediente de mudar nomes e lugares em que se desenvolvem
alguns acontecimentos. De nenhum modo estamos dizendo que a cultura romana não tenha dado
lugar a lendas e mitos próprios, já que as sucessivas ondas de invasores sobre essas terras tiveram
que enfrentar nativos mais antigos e estes, desde já, contavam com formas míticas e religiosas mais
ou menos diferenciadas das novas contribuições. Por outro lado, a influencia cultural grega sobre a
romana não e o único fator que influi, já que numerosas “histórias” derivam de egípcios, frígios,
hititas, etc. Se vamos ao caso, na própria mitologia grega são muitos os nomes de deuses de origem
estrangeira. Por outro lado, uma coisa é a coleção (e muitas vezes transformação) de lendas e mitos
devidos a pena dos mitógrafos antigos e outra o papel que deuses, semideuses e outras entidades
exerciam no culto pessoal e coletivo. Na verdade, é aí que deve ser buscada a verdadeira
importância dos mitos, mais próximos do sistema de crenças que da simples expressão poética,
plástica e as vezes filosófica, como no caso do Platão —criador de “mitos” (Banquete, Fedon,
República, etc.), através dos quais explica sua doutrina. De nossa parte, temos utilizado os textos
de Homero, Píndaro, Eurípedes, Sófocles e Ésquilo por sua grande beleza expressiva e, desde já, a
Teogonia e os Trabalhos e Dias de Hesíodo que, sem o vôo poético das obras daqueles autores,
constituem verdadeiras peças de recopilação e “classificação”. Historicamente, os mitos que nos
ocupam circularam pelos países de língua grega desde o s. X A.C. até aproximadamente o IV da
era atual. Neste sentido, obras como as de Hecateo escritas no VI A.C. teriam sido de inestimável
valor mas, desafortunadamente chegaram até nós fragmentos duvidosos de seus quatro livros de
Genealogias. Não obstante, a obra daquele autor parece ter influído decisivamente em Ferecides,
que escreve sobre os primeiros mitos atenienses. Por certo que os autores posteriores não são
desprezíveis (e isto vale também para os romanos) mas, a medida que avança o tempo, o
emaranhado informativo cresce de tal maneira que tende a confundir-se a fonte original com a
criação recente. Os seres mais importantes mencionados neste capitulo de “Mitos greco-romanos”
são: Cronus=Saturno romano; Zeus=Júpiter; Hera=Juno: Rea=Cibeles; Hermes=Mercúrio;
Deméter=Ceres; Perséfone=Proserpina; Dionísio=Baco e Heracles=Hércules.
2- Teogonia. Hesíodo. v. 154 a181. Alianza. Madri, 1986. Hesiodo de Ascra, primeira
metade do s. VII A.C.(?)
3- As Erinias são três: Tisífone (“destruição vingadora”); Alecteo (“repugnante, hostil) e
Megera (“rabugenta”). Segundo A. Garibay, trata-se de personificações da idéia de reparação da
ordem destruída pelo crime. Têm, entre outras missões, o mandato de reprimir a rebelião do jovem
contra o velho. Vivem no Érebo e são anteriores a Zeus. Para A. Bartra são espíritos do castigo e da
vingança de sangue. Por ultimo, P. Grimal as considera nascidas de gotas de sangue com o qual
impregnou-se a terra quando da castração de Urano. Foram também chamadas “Euménides” e
“Fúrias” pelos romanos.
4- Teogonia. 460 a 474.
5- Ibid. v. 470 a 501.
6- Ibid. v. 686 a 692.
7- Ibid. v. 693 a 699.
8- Ibid. v. 717 a 720.
9- Ibid. v. 730 a 732.
10- As Troyanas. Eurípedes. Fim da cena XI na adaptação de J. P. Sartre. Losada. Buenos
Aires. 1967. Todo o citado em itálico corresponde à fala de Possêidon, mas nós nos permitimos
colocá-la na boca de Prometeu dado que se ajusta bem ao seu caráter e ao contexto geral no qual o
Titã desenvolve seu relato. Em todo o caso, a surpresa que produz a introdução de construções
como: “Fazei a guerra, mortais imbecis”, ou “fazendo-a então, arrebentareis todos!” é explicável
porque rompe o estilo épico e grave com uma dissonância zombeteira, quase vulgar, própria de
meados do século XX. Por outra lado, as constroções mencionadas não estão no original de
Eurípedes e correspondem à adaptação sartreana. Com respeito a Eurípedes, este nasceu em
Salamina em 480 e morreu em 406 A.C.
11- Prometeu Acorrentado. Ésquilo. Episódio II. Losada. Buenos Aires, 1984. Ésquilo
nasceu em Eleusis em 525 e morreu em 456 A.C.
12- Ibid. Episódio II, depois do primeiro Coro.
13- “Japetônida”, filho de Japeto. Japeto é, por sua vez, filho de Urano e Gea, e irmão de
Cronos e dos outros titãs (Oceano, Ceo, Hiperion e Crio) e titânides (Tetis, Rea, Temis,
Mnemosine, Febe, Dione e Tia). Os titãs e titânides pertencem à primeira geração de deuses
(chamados “deuses titãs”). Da linha de Japeto e Climene derivam Atlante, Menecio, Prometeu e
Epimeteo; assim como da linha de Cronos e Rea derivam Hestia, Deméter, Hera, Hades, Possêidon
e Zeus. Mas é a linha de Cronos (a dos chamados “crônidas”) a que se impõe. Epimeteo, irmão de
Prometeu (e seu inverso dada sua torpeza e falta de gênio) aceita como presente a Pandora da qual
se serve Zeus para arruinar os homens mais uma vez. De Epimeteo e Pandora nasce Pirra e de
Prometeu e Climene nasce Deucalion. Estes dois formam o casal povoador do mundo depois do
Diluvio que enviou Zeus num novo castigo. É graças a outra intervenção de Prometeu que o ser
humano chega a se salvar. Com efeito, Prometeu instrui a Deucalion e Pirra para que construam a
Arca. Depois, os sobreviventes da catástrofe fazem os humanos ressurgir atirando pedras para trás
(por cima do ombro), enquanto caminhavam pelos campos. Produto desta “semeadura”, vão
nascendo as mulheres e os homens. Todo o anterior ressalta a linha dos Japetônidas como
promotora da propagação humana.
14- Teogonia, v. 535 a 570 e 615 a 618.
15 - Ibid. v. 521 a 525.
16- Hinos Homéricos. II. A Deméter (em Ilíada II) Losada. Buenos Aires, 1982. A letra
em itálico de todo este parágrafo corresponde às distintas passagens do mesmo hino.
17- Sobre a Natureza. I e II. Metrodoro de Kio.
18- Hinos Homéricos. XXVI. A Dionísio.
9. MITOS NÓRDICOS
1- Sobre os antecedentes da literatura nórdica relacionada com os mitos, F. Durand faz a
seguinte revisão histórica: “Em 1643, o bispo irlandês de Skàlholt descobriu um manuscrito que
deu de presente ao rei da Dinamarca Frederico III. O Codex Regius continha a transcrição que nos
princípios do séc. XIII fez Snorri de um conjunto de poemas muito antigos, aos quais pôs o título
genérico de Edda. Mais tarde havia de ser encontrado o manuscrito de outro erudito, Saemund,
onde figuravam as mesmas obras, o que explicaria o plural: os Edda. Estes poemas foram
concebidos em época pré-literária; a maior parte parecia datar-se dos séc. VII e VIII, mas certos
filólogos tendem a datar os poemas mais arcaicos no séc. VI. É evidente que estes poemas
começaram a ser recitados na Noruega e também foram transmitidos de geração em geração até
que os colonos o levaram até a ilha de “gelo e fogo” e os escritores medievais o salvaram do
esquecimento assentando-os sobre VITELA. O resto da Escandinávia também participou na
elaboração desta obra. Assim, nos Gesta Danorum de Saxo Grammaticus figura a tradução latina
de poemas que podem ser qualificados como proto-éddicos. O grandioso poema danés do s. X, o
Bjarkemál, que Olaf cantou diante de seus homens em formação em Stiklestad, apenas se difere de
certas estrofes éddicas”. Los Vikingos, págs. 108 e 109. Eudeba. Buenos Aires, 1975. Deste modo,
resgata-se uma tradição que começou na época das migrações (entre os séculos III e IV) que foi se
estendendo por todo o mundo germânico. Mas a literatura mítica fica restrita ao ambiente
escandinavo. Se falamos de grupos de lendas ou escritos nórdicos mais ou menos épicos, podemos
achar produções tanto na Inglaterra como na Alemanha e em outros países. Mas aqui estamos nos
referindo a um tipo de literatura que se concentra preferentemente na Islândia. Isto é deste modo
devido a complexas situações , onde teve importância também o fator geográfico. Desde o
descobrimento e colonização da Islândia pelos noruegueses (até 874), até a primeira geração de
islandeses cristãos (ao redor de 1020), ocorrem numerosos fenômenos no mundo escandinavo que
bem podemos fazer coincidir com o “ciclo viking”. Época turbulenta, de expansão e conflito
contínuos, tem o seu revés com o avanço das potências continentais e do Cristianismo. Neste
período, valiosa documentação é eliminada ou perdida na Suécia, Noruega e Dinamarca. Na
Islândia se conserva uma enorme produção que continua, ademais, até já bem iniciado o século
XIII; tal é o caso da Edda Mayor, da que nós pegamos os cantos de temas mitológicos, deixando de
lado os temas épicos. Afortunadamente para as letras, surge a colossal figura de Snorri Sturluson
(1179-1241), que compõe numerosas sagas e resgata a mitologia nórdica, particularmente em seu
Gyufaginning (O Engano de Gulfi) e, em alguma medida, em seu Skhaldskaparmal (Discurso para
a preparação de poetas). A Edda Mayor em verso, e a chamada Edda Menor (ou Edda em Prosa, ou
Edda de Snorri), constituem as fontes mais seguras sobre a mitologia nórdica devida aos islandeses.
2.- Edda Mayor. Völuspá. 17 e 18. Alianza. Madri, 1986.
3.- Forma genérica de designar os deuses. Quando se fala de alguma deusa em particular, a
chamam Asinia.
4.- Espaço cheio de energia. Esse lugar se encheu e afundou pelo peso dos gelos quando
estes deixaram de fluir mas depois, quando em alguns lugares lutaram o gelo e o fogo vulcânico, a
escarcha das geleiras se fundiu e das gotas começou a se formar Ymir, o primeiro gigante de gelo
que tem em seu interior o calor vulcânico e algo da energia de Ginnungagap.
5.- É o lugar de gelo ao norte em oposição a Múspel, região mítica cálida do sul. Nesta
vive um gigante que defende o lugar brandindo uma espada de fogo e que sairá daí no final dos
tempos para incendiar o mundo.
6.- Uma fonte.
7.- A serpente que rói as raízes.
8.- Um dos Ases.
9.- Todo o citado é de Gylfaginning (O Engano de Gylfi), Texto mitológico dos Eddas.
Snorri Sturluson. XV. Miraguano. Madri, 1987. A perda de um olho em troca de um bem maior
também aparece espelhada em outras lendas e histórias como a seguinte que, ademais, nos ilustra
sobre o comportamento belicoso dos vikings: “Quando chegou à instância onde dormia Armónd,
sua mulher e sua filha, Egil abriu a porta e foi à cama de Armód. Puxou a espada e com a outra
mão pegou a barba de Amód e atirou-o ao pé da cama. Mas a mulher e a filha de Armód se
levantaram apressadamente e pediram a Egil que não matasse Armód. Egil falou que assim o faria
por elas ‘mas ele fez por merecer que eu o mate’. Então, Egil cortou-lhe a barba desde o queixo;
depois, lhe arrancou o olho com o dedo, de forma que o deixou pendurado sobre a bochecha;
depois, Egil e seus companheiros marcharam”. Saga de Egil Skallagrimsson. Snorri Sturluson. Pág.
270 e 271. Miraguano. Madri, 1988.
10.- A Canção dos Nibelungos. C. Mettra. Pág. 29. F.C.E. México, 1986.
11.- A entidade do passado. Deve considerar-se às nornas gravando em suas tábuas, quer
dizer, imprimindo suas runas mágicas nas que fixam o destino das pessoas. Não se trata, portanto,
de “fiandeiras” no estilo das Parcas romanas ou das Moiras gregas.
12.- A entidade do presente.
13.- A entidade do futuro.
14.- As citações correspondem a Gylfaginning. Op. Cit. XV e XVI.
15.- A mansão dos heróis. As valquírias, escolhem os valentes que morrem, mas também
decidem as batalhas. Estas mulheres guerreiras lembram ligeiramente às amazonas, mas sua ação é
um tanto indireta. Contamos com uma pista histórica na que as mulheres dos primitivos
germânicos já “participavam” e às vezes contribuíam para decidir as batalhas. É possível que esses
costumes contribuíram posteriormente à mitificação das valquírias vikings. Tácito (55 a 120 D. C.)
em seu Dos Costumes, Localização e povos da Germânia, nos diz: “E ao entrar na batalha tem suas
prendas mais queridas, para que possam ouvir os alaridos das mulheres e os gritos das crianças; e
estes são os fiéis testemunhos dos fatos, e os que mais os louvam e engrandecem. Quando se vem
feridos, vão mostrar as feridas a suas mães e a suas mulheres, e elas não tem pavor de contá-las
nem de chupá-las e no meio das batalhas lhes levam refresco e os vão animando. De maneira que
algumas vezes, segundo eles contam, restauraram as mulheres batalhas já quase perdidas fazendo
voltar os esquadrões que se inclinavam a fugir com a constância de seus rogos, e ao colocá-los
diante de seus peitos, e representar-lhes o próximo cativeiro a que isto se seguiria, o qual temem
muito mais impacientemente por causa delas, tanto, que se pode ter maior confiança das cidade que
entre seus reféns estão algumas donzelas nobres. Porque ainda se persuadem que há nelas um não
sei quê de santidade e prudência, e por isso não menosprezam seus conselhos, nem têm pouca
estima por suas respostas”. Incluído em As Histórias de Caio Cornélio Tácito, pág. 335 e 336.
Sucessores de Hernando. Madri, 1913.
16.- Tácito (op. cit. pág. 346), referindo-se à bebida embriagante (cerveja), e aos hábitos
alimentícios dos primitivos germânicos diz: “Fazem uma bebida de cevada e trigo, que quer se
parecer em algo com o vinho. Os que habitam próximo à ribeira de Rhin compram esta. Suas
comidas são simples: maçãs selvagens, veado fresco e leite qualhado. Sem mais aparatos,
curiosidades, nem presentes matam a fome; mas não usam da mesma temperança contra a sede. E
se lhes fosse dito para beber o quanto queiram, não seria menos fácil vencê-los com o vinho que
com as armas”. Nas Eddas se fala da hidromel que é uma bebida própria dos deuses e que não deve
ser confundida com a cerveja ainda que às vezes, figurativamente, sejam identificadas de modo
similar.
17.- A tradução que se tem dado de “Ragnarök” desde Wagner em diante é “Crepúsculo
dos Deuses”. Sem dúvida, a mais correta é “Destino dos Deuses”, que nós pegamos para intitular
toda esta cena.
18.- A Alucinação de Gylfi. Snorri Sturluson. 51. Na tradução de J. L. Borges. Alianza.
Buenos Aires, 1984.
19.- Völuspá, 58. op. cit.
20.- Ibid. 45.
21.- A Alucinação de Gylfi. op. cit. 51.
22.- Este parlamento final de Haki rememora ligeiramente à descrição de Snorri no
Ynglingasaga, a raiz da batalha de Fyrisvellir (na que Haki ficou gravemente ferido). “... Então fez
com que trouxessem sua nave, fez com que a carregassem com os homens mortos e suas armas, fez
com que a colocassem para flutuar, fez com que endereçassem o timão até o mar e içassem a vela e
acendessem uma pira de madeira seca sobre a coberta. O vento soprava da terra. Haki estava em
agonia ou já morto quando foi posto sobre a pira. A nave em chamas desapareceu então no
horizonte, e isto ficou por muito tempo gravado na memória”. Nas palavras que colocamos na boca
de Haki se reflete a amargura de um mundo que morre. Haki não é um viking que se converte ao
Cristianismo, pelo contrário. Mais bem dá a entender que a derrota frente à religião que avança (à
das “estranhas pessoas”) é na realidade um parênteses no que numerosas imagens e mitos nórdicos
invadem o vencedor.