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CANCLINI, Nestor García, Consumidores e cidadãos, Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1995
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modelos que nos faz cair, uma e outra vez, como se cada uma fosse a primeira, no
endividamento e na crise da balança de pagamentos.
Uma visão integral, porém, deve dirigir o olhar em direção aos grupos em
que se multiplicam as carências. A maneira neoliberal de fazer a globalização
consiste em reduzir empregos para reduzir custos, competindo entre empresas
transnacionais, cuja direção se faz desde um ponto desconhecido, de modo que os
interesses sindicais nacionais quase não podem ser exercidos.
Existem, portanto, dois movimentos de suspeita em relação à
globalização: o daqueles que não crêem que global se apresente como substituto do
local, e o dos que não acreditam que o modelo neoliberal de globalização seja o
único possível. Nesse segundo ponto, é preciso examinar o que a globalização, o
mercado e o consumo têm de cultura. Nada disto existe ou se transforma a não ser
por que os homens se relacionam e constroem significados em sociedade. Embora
pareça trivial evocar este principio, é com demasiada freqüência que os problemas
do consumo e do mercado se colocam apenas como questões de eficiência
comercial, e a globalização como a maneira de aumentar rapidamente as vendas.
Quais seriam as outras perspectivas possíveis? Há poucos anos pensava-
se no olhar político como alternativa. O mercado desacreditou esta atividade de uma
maneira curiosa não apenas lutando contra ela, exibindo-se como mais eficaz para
organizar as sociedades, mas também devorando-a, submetendo a política às
regras do comércio e da publicidade, do espetáculo e da corrupção. É necessário
então dirigir-se ao núcleo daquilo que na política é relação social: o exercício da
cidadania. Para vincular o consumo com a cidadania, e vice-versa, é preciso
desconstruir as concepções que julgam os comportamentos dos consumidores
predominantemente irracionais e as que somente vêem os cidadãos atuando em
função da racionalidade dos princípios ideológicos. Além disso, precisamos levar em
conta algumas mudanças.
Definição de consumo
O que significa consumir? Qual é a razão – para os produtores e para os
consumidores – que faz com que o consumo se expanda e se renove
incessantemente? A definição proposta por Canclini é:
“O consumo é o conjunto de processos socioculturais em que se realizam a
apropriação e os usos dos produtos. Esta caracterização ajuda a enxergar os
atos pelos quais consumimos como algo mais do que simples exercícios de
gostos, caprichos e compras irrefletidas, segundo os julgamentos moralistas, ou
atitudes individuais, tal como costumam ser explorados pelas pesquisas de
mercado.”2
Na perspectiva dessa definição, o consumo é entendido principalmente na
sua racionalidade econômica. Seria um momento do ciclo de produção e reprodução
social: é o lugar em que se completa o processo iniciado com a geração de
produtos, onde se realiza a expansão do capital e se reproduz a força de trabalho.
Sob este enfoque, não são as necessidades ou os gostos individuais que
determinam o que, como e quem consome. O modo como se planifica a distribuição
dos bens depende das grandes estruturas de administração do capital. Ao se
organizar para prover alimento, habitação, transporte e diversão aos membros de
uma sociedade, o sistema econômico “pensa” como reproduzir a força de trabalho e
aumentar a lucratividade dos produtos. Assim as ofertas e bens e a indução
publicitária de sua compra não são atos arbitrários.
Essa racionalidade, contudo, não é a única que modela o consumo. Uma
teoria mais complexa sobre a interação entre produtores e consumidores, entre
emissores e receptores, tal como a desenvolvem algumas correntes a antropologia e
da sociologia urbana, revela que no consumo se manifesta também racionalidade
sócio política interativa. As regras – móveis – da distinção entre os grupos, da
expansão educacional e das inovações tecnológicas e da moda também intervêm
nestes processos. Consumir é participar de um cenário de disputas por aquilo que a
sociedade produz e pelos modos de usá-lo. É um espaço de interação, onde os
produtores e emissores não só devem seduzir os destinatários, mas também
justificar-se racionalmente.
Uma terceira linha de trabalhos, os que estudam o consumo como lugar
de diferenciação e distinção entre as classes e os grupos, tem chamado a atenção
para os aspectos simbólicos e estéticos da racionalidade consumidora. Existe uma
2
Ibid., p. 53
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DOUGLAS
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assim, “as mercadorias servem para pensar”4. É neste jogo entre desejos e
estruturas que as mercadorias e o consumo servem também para ordenar
politicamente cada sociedade. O consumo é um processo em que os desejos se
transformam em demandas e em atos socialmente regulados.
Em situações plenamente modernas, o consumo não é algo privado,
atomizado e passivo, é também eminentemente social, correlativo e ativo,
subordinado a um certo controle político das elites. O gosto dos setores
hegemônicos tem essa função de funil a partir do qual vão sendo selecionadas as
ofertas exteriores e fornecendo modelos político-culturais para administrar as
tensões entre o próprio e o alheio.
4
Ibid