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HISTORIA HENORIA ESQUECIMENTO AKerime, mi palestina Encontros como o de hoje incitam a suspender o trabalho historiografico habitual para discorrer sobre seus fundamentos.! Tentagao bem-vinda, sempre que prevalegam a temperanga e o bom senso, Imaginem vocés se cada vez que comecissemos a escrever uma hist6ria tivéssemos que elucidar, previamente, todos os dilemas tedricos ou epistemoldgicos implicitos em sua trama. Seguramente nao conseguiriamos sair da primeira linha, paralisados pela vertigem que provocam as questées abismais cujo trato exige uma gindstica mental mais propria da reflexao filosdfica que da pratica historiografica. Mas a ninguém havera de causar espanto que, conforme cargan los anos y mengua la vista, uma quixotada nos lance atris de fingidos moinhos de vento. Clio agradecera a audicia, e o leitor o gesto. Receio que o tema de minha exposigio provoque neste auditério a mesma surpresa que ocasionaria uma prédica sobre as virtudes do pecado em uma congregacio de anacoretas porquanto me proponho a argumentar que, na historiografia como na vida, é tao importante o Esquecimento como a Mem6Gria; que a evolugao do conhecimento depende nao sé da capacidade de preencher vazios, mas também da habilidade para crid-los, e que a reconstru¢io do passado, ao mesmo tempo que se apdia sobre velhas e novas descobertas, reclama disposigao e método para esquecé-las. Internemo-nos pelo bosque dos paradoxos. E lugar comum afirmar que a historia é a memoria coletiva de uma sociedade; que um povo que esquece ou ignora seu passado tende a repeti-lo, sobretudo nos erros, revelando, assim, uma frustrante incapacidade para aprender com a experiéncia. Na mesma linha de raciocinio, a propensao da sociedade humana a reincidir no equivoco seria maior que a do touro para arremeter contra o vermelho vao da capa, e somente comensuravel com sua vocagdo para a morte. Linguagem metaf6rica 4 parte, tais formulagdes encobrem mais de uma falacia e varias ambigtiidades. Os sujeitos coletivos — a “sociedade”, 0 “povo” ou a “nagao” — nao existem do mesmo modo que o matador, que consegue imaginar a si mesmo para além das contingéncias da arena, ainda que, ao fazé-lo, corra 0 risco de ficar espetado nos chifres da tautologia. A sociedade carece de semelhante capacidade de desdobramento ou, melhor, de introspecgao, e nao pode, portanto, esquecer ou recordar. Em suma, ela é, fundamentalmente, um conceito. E, no entanto, sua realidade nao é menos contundente que a do touro, como o prova a multidao dos escornados por pensar que se tratava de uma inofensiva ficcao. Passemos a desatar 0 primeiro né do dilema. METAFORAS DA MEMORIA A memoria individual discorre entre dois instantes que lhe estéo inexoravelmente vedados: 0 nascimento e a morte — acontecimentos definitivos cujos registros apenas podem ser externos ao sujeito. Para dizé-lo com Neruda: “Nunca recordaremos haber muerto... ni de nacer tampoco guardamos la memoria”, tao simples quanto isso. O que nos sucede no transito de uma ponta a outra é passivel de inventario pessoal, sempre que a imagem do vivido, latente nos labirintos da alma ou patente nos sulcos do corpo, compareca A luz da consciéncia. Vejamos em que consiste esta faculdade especifi- camente humana que chamamos “recordar”. Num primeiro momento, ela permite a representacio das experiéncias, colocando lado a lado, como afirma Elias, eventos que nao sucederam simultaneamente.? Pareceria ser que, no complacente vao da meméria, 0 tempo se dissolvesse em um unico plano sincrdnico. Mas, paradoxalmente, 0 mesmo ato 12 de imaginagdo que junta os fatos separa-os e diferencia-os, seqtiencialmente, em um “antes” e um “depois”; introduzindo, assim, pela porta dos fundos, a dimensao diacr6nica. E, 0 que é mais curioso, todos os passados dessa série imaginada afloram no presente sem confundir-se com ele. Dessa maneira, a memoria contribui para organizar o torvelinho de nossas percepcoes, atualizando-as e fixando-as dentro de uma ordem reconhecivel e, ao fazé-lo, ajuda-nos a projetar o futuro. Mais importante ainda, através de operagdes tio complexas como espontaneas, a memoria fundamenta a identidade individual — aquela sensagio de que nosotros los de entonces, apesar do verso e do vivido, ainda somos os mesmos. Suspendendo o “mundo da agiao pratica”, ela, a memoria, permite-nos percorrer “toda nossa exist@ncia em sua originaria e ininterrupta singularidade.”* Assim, através da lembranga, atamo-nos a um passado que se dobra e se desdobra 4 maneira dos retabulos, descortinando imagens de nossa infancia, de ogros e de madalenas, as desconsoladas e as consoladoras e as recém-saidas do forno com suas formas lanceoladas.* Em suma, a memoria é principio de unidade e continui- dade, ponte que assegura o vinculo entre o sujeito e suas experiéncias. Sujeito e experiéncia: dois conceitos que, unidos por uma conjungdo copulativa, vém gerando, ha séculos, uma sucessiao de dividas sobre seus limites. Acaso 0 sujeito e suas experiéncias nao sio uma e a mesma coisa? Ou sera que as fungdes de conservagio e de orientagao que a memoria desempenha sustentam-se na existéncia de um ego subjacente a cada percep¢io e substantivamente distinto de todas elas? A questdo remete-nos, sem demora,’ao intrincado problema da consciéncia e 4s formas de entender o tempo, o passado, enfim, a hist6ria. Simplificando, é possivel discernir duas concepgoes arque- tipicas sobre o tema. Uma corrente, originada em Descartes, faz da consciéncia uma realidade aut6noma e irredutivel a experiéncia. Outra, pelo contrario, afirma que o eu nao é outra coisa que a corrente de percep¢ées, e que postular sua existéncia como algo distinto de tal sucessio é uma inferéncia gratuita. A primeira postura radicaliza a autonomia do cogito e tende a considerar a realidade uma extensdo daquele ou, 13, inversamente, o seu absoluto oposto. A vertente empirista, na sua versdo mais radical, reduz a consciéncia a série de seus cambiantes contetidos. Deter-me-ei na critica a esta Ultima, que € a que mais interessa aos propositos deste ensaio. A histéria de Funes el memorioso, contada por Jorge Luis Borges, € 0 mais perfeito exemplo de uma vasta memoria duplicante que, convertida em espelho, perde sua capacidade de abstragio e, em uma espécie de amnésia Aas avessas, pulveriza a nogao de sujeito e impossibilita a compreensio do passado.’ Aproximemo-nos do anti-heréi borgiano para aprender com sua experiéncia. Seu nome era Ireneo mas, como sucede amitide, mais significativo era seu apelido: chamavam-no “o cronométrico”, se bem que, antes de converter-se em uma maquina registradora, era um individuo meio distraido que “olhava sem ver, ouvia sem ouvir e se esquecia de tudo, ou quase tudo”. Até que um golpe acidental na cabega transfigura-o em seu antipoda: uma mente que vé ainda quando nao olha, grava tudo o que escuta e nao esquece quase nada. A nova vida do protagonista comega com um episddio especular, reflexivo, como convém ao tema do enredo: as vicissitudes de uma consciéncia incapaz de esquecer. O que primeiro Funes memoriza sao, justamente, as faganhas dos memoriosos registradas na Naturalis historia e, mais precisamente, a matéria do primeiro paragrafo do vigésimo quarto capitulo onde, através de quatro figuras classicas, reconhecemos as fungdes dessa faculdade humana e, por extensio, as tarefas do historiador: assim, a agao de Mitriades Eupator, que administrava a justiga nos vinte e dois idiomas de seu império, aponta para a ordem universal subjacente 4 multiplicidade dos fenémenos; na proeza de Ciro, rei dos persas, que sabia chamar por seu nome a todos os soldados de seus exércitos, identificamos a preocupa¢do pelo singular e irrepetivel; Simdénides, inventor da mnemotécnica, contribui com sua ciéncia para recordar e conservar os fatos, e Metrodoro, o repetidor, assegura, com sua arte, a fidelidade da repre- sentagao. Em comparagao a eles, Funes manifesta hipertrofia das trés Ultimas fungdes em detrimento da primeira — a capaci- dade de abstragao. Por este motivo, sua experiéncia pode ser instrutiva, particularmente para nos, historiadores. A maior virtude da mente de nosso personagem consiste em gravar, com precisao e sem trégua, todas as impressdes 14 que aportam as suas margens, e seu pior defeito nao poder apagd-las nem saber o que fazer com elas. As imagens instalam-se com tal completude na consciéncia do Memorioso que nao sé incluem elementos visuais, mas também qualidades associadas ao odor e ao sabor das coisas percebidas. De tudo isso resultam reprodugé6es tao fiéis e pormenorizadas que, se se trata de rememorar o sucedido em um dia, Funes leva um dia para fazé-lo, instaurando, assim, uma espécie de presente perpétuo. O detalhe insulso e o trago essencial apinham-se indiscriminadamente, reclamando a mesma atengio no momento do inventario. Ai radica, precisamente, o problema: soterrada pelo peso de infinitos particulares, a mente do protagonista nao avista o horizonte do conceito. Sem capaci- dade de abstragao nem discernimento, o valioso e o inservivel, a esséncia e o pormenor, tudo termina por misturar-se na cabeca do pobre Funes, como la vida en la vitrina de los cambalaches. Empanturrado de informagdes, 0 Memorioso acaba sendo incapaz de contar uma simples histdria, o que exigiria reconhecer nos fatos algum tipo de estrutura, sentido ou diregao — um desafio insuportével para semelhante prodigio. Ao raiar o dia, quando a visita se prepara para ir-se, o proprio Ireneo revela sem pudor a conseqiiéncia de seu deploravel estado: “Minha memoria, senhor, € como um depésito de lixo.” E, de fato, o € porque sua mente, sem condigdes de abstrair-se da experiéncia imediata, nao consegue suspender, sequer por um instante, a maré de imagens que a arrasta. Na hist6éria de Funes, o sujeito se dissolve na corrente de suas percepgoes ou naufraga nela, e sua fenomenal memoria termina por destruir, paradoxalmente, a propria identidade. Pode-se entender o drama de uma consciéncia’ que, de tao porosa e voltada ao mundo, chega a fundir-se com ele. Diluida em suas percep¢ées, ela se narcotiza, aplacando a dor insuportavel da vigilia: a magoa da vida consciente. Vida consciente que é, sobretudo, um processo de constante retraimento — descentramento diriam os psicdlogos — em todo caso, um ir guardando distancias: primeiro, em relagio ao mundo fisico durante a infancia e, mais tarde, frente as proprias percep¢oes, até chegar a ver a si mesmo de costas, afastando-se. A condi¢ao do Memorioso, incapaz de aceder a esse ponto de vista, lembra o pesadelo tautoldégico da Idéia 15 hegeliana. Sob semelhante destino, fechar os olhos ou nao sonhar equivale a deixar que a realidade se extinga e, com ela, 0 sujeito que a contém. Por isso, a insOnia e o labor noturno sao para Funes tao essenciais no afa de nao se perder quanto para a Idéia seus incessantes ardis. Mas 0 que tudo isto tem a ver com nossos desvelos? Muito, sem divida, FUNES HISTORIADOR A trajet6ria do Memorioso pode ser entendida como uma admoni¢ao, se bem que extrema, sobre os perigos do historismo e do empirismo radical ou, mais concretamente. segundo Yerushalmi, sobre os “excessos da historiografia moderna”.® Identifiquemos alguns desses abusos, ainda que seja de forma caricatural, precisamente para salientar seus Principais tragos e problemas. Nao ha dtivida de que Ireneo leva vantagem naquilo que foi, desde sempre, a ambicao de todo historiador: a fixagao e o registro exaustivo do acontecimento singular — abandonar a especie, © género, a classe até alcangar a coisa em si e nomea-la de tal modo que entre o ser e a palavra nao haja ambigtiidade alguma. Em suma, a parabola da ressurreigao e a compreensao do passado em um tinico ato. Mas semelhante designio, vale advertir a quem ainda insiste em alcangé-lo redunda inexoravelmente no siléncio; a tinica visdo total . instantanea 6 a que precede a morte, 0 raio que fulmina antes de que se possa contar 0 enredo. 9 proprio Borges lembra-nos que Funes, como Locke, havia desistido desse propdsito porque Ihe parecia _ jogo impossivel: como evitar a ambigiiidade quando uma mente prodigiosa recorda “nao sé cada folha de cada arvore de cada monte, mas cada uma das’ vezes que as tenha percebido ou imaginado”?” Dado que nenhuma percepgao ou representacao é idéntica 4 outra e que todas se registram e conservam na mem6ria, entao, de que modo diferencia-las sem recorrer A generalidade do conceito? Resulta ébvio que cada ato de consciéncia ser outra percep¢ao carregada de incontaveis novos detalhes, esperando por um ntimero igual de inéditos nomes proprios. De modo que, como bem diz Nuno, esse 16 furor denotativo terminaria “por nao poder nomear nada a forgca de querer nomear tudo”. O pesadelo especular nao teria fim nem sentido, como tampouco os teria um relato historiografico que tivesse que identificar nao sé todas as suas fontes e referéncias bibliograficas, mas também as que estas contém, e assim indefinidamente até converter-se ele mesmo em um sistema de citagdes. A parabola remete-nos a lugares conhecidos. A figura de Funes alude a do historiador que, renuente a abstracao, alimenta a quimera de duplicar o passado, reconstruindo-o através de um relato gravido de fatos e vazio de conceitos. Com freqiiéncia, a historia escrita sob esse impulso torna-se, como a cabega de Ireneo, sentina de escombros, depésito de lixo. A caga ao documento em qualquer temporada e o apetite insaciavel pelos dados de que se jacta grande parte da produgio atual originam-se, com freqtiéncia, na mesma falacia que se adverte na estratégia narrativa de Funes, segundo a qual explicar um acontecimen- to equivale a reproduzi-lo em todos os seus pormenores e, portanto, quanto maior o nimero de informagées a mao, mais proximo se estaria de aprisiona-lo. O resultado desta classe de proezas é, em geral, uma mixdrdia de pérolas e desperdicios na qual resulta quase impossivel reconhecer os tracos de uma trama ou o corpo de uma simples histéria. Sem estrutura que o modere e norteie, o texto tende a engordar desmesurada- mente, até assemelhar-se ao mapa do conto que, projetado para ser completo e fidedigno em todos os detalhes, cresceu tanto que alcangou o tamanho exato do territ6rio que devia representar. Imaginem vocés a utilidade de semelhante portento para o viajante que busca o rumo nos caminhos da vida ou da histéria. Nao ha dtivida de que todo esforgo para duplicar a realidade acaba reproduzindo sua opacidade e desconcerto. Os espiritos engajados nessa tarefa vivem em um estado de perpétua angtstia; nunca admitem que tém materiais e pistas suficientes para estruturar um relato e continuam peregrinando indefinidamente 4 procura de novas fontes: o arquivo virgem, a Ultima referéncia, o dado esquivo, real ou imagindrio, talvez supondo, como Funes, que a Guerra dos Cem Anos exige cem anos para ser contada. O passado assim concebido torna-se um espetaculo atordoante e atemori- zador de curiosidades, muito parecido ao mundo de outro 17 famoso mnemotécnico descrito por Luria, seu médico, como “um labirinto de intermindveis digressdes”.® Outro vicio da memoria duplicante observa-se entre os historiadores que, reticentes em desempenhar qualquer papel ativo, entregam-se solicitamente a seus documentos na expectativa ingénua de que, deixando-os falar, eles dirao tudo por si mesmos. Este tipo de historiador, convencido de sua fungao meditinica, considera dever de oficio reproduzir fielmente as vozes do passado que somente ele escuta e, com tao magnifica desculpa, limita sua intervencio ao tedioso ato de abrir e fechar aspas. E, dessa forma, enquanto costura citagdes, pensa esportivamente que a explicagao vai aflorando a cada ponto. Cabe lembrar que se, por um lado, nao é tarefa de historiadores repreender ou corrigir os mortos, tampouco o é acreditar em tudo o que nos dizem — pelo menos como explicagao suficiente. E nao € porque os mortos tenham a intengao de enganar-nos ou de ocultar-nos algo, que as vezes também a tém, mas porque eles mesmos poderiam haver-se enganado ou nao ter chegado a perceber tanto quanto nds que lhes sobrevivemos e que, supostamente, temos mais luzes e elementos para interpretar o acontecido. O presentismo que acusa a memoria absorvente de Funes também encarna em um tipo de historiografia que assegura seu futuro, como Sherazade em As mil e uma noites, tecendo enredos sem fim sobre tudo quanto possa ser imaginado, e nos quais o relato desprovido de qualquer fulcro teleol6gico ou conceitual, da a impressio de estar sempre comegando, como a moda, e de que nunca terminarao de ser contados, como em um eterno taquipayanacu.? Dessa maneira, vestindo casacas pds-modernas, uma legiao de historiadores descobriu um recurso eficiente para nao perder a cabega e ainda ganhar o aplauso de um ¢erto publico que consome as pressas. No entanto, por mais que essas histdérias, vistas desde cima ou desde baixo, ou entretidas na comissura dos labios, proponham-se democratizar a memoria coletiva, o certo é que, de tanto fugir das idéias gerais, “acabam escravas dos registros sensoriais imediatos”.' Em suma, um positivismo ingénuo, sob distintas roupagens, continua vivissimo em correntes para as quais o passado é um corpo esparramado em documentos, e a tarefa do 18 historiador a de juntar os pedagos. Os que comungam com essa idéia participam de uma corrida tao desigual como a proposta por Zenao em sua famosa aporia e com idéntico resultado: a tartaruga, leia-se o conceito, estara sempre na dianteira por mais que Aquiles, o empirico, seja impulsionado, a cada instante, por uma nova saraivada de dados recém- descerrados. A razao é 6bvia: a histéria nao conhece outro idioma que nao seja o dos conceitos, e o acontecimento s6 se faz inteligivel quando é situado, como diria Paul Veyne, dentro de sua espécie, no marco de sua generalidade."’ Uma vez mais, o estritamente individual é inominavel; a sacrificada tarefa de reconstitui-lo desenterrando, todo tipo de vestigios é uma empresa que somente pode desembocar na tautologia ou no siléncio. Embore o mais freqtiente seja que alguma nogao de totalidade, mimetizada sob distintos nomes — objetividade, justiga, racionalidade, natureza ou progresso — filtre-se solapadamente na empreitada, provocando estragos ainda maiores pela falta de um controle critico sobre sua carga ideolégica. Isto nao significa que devamos levitar em planos metafisicos, descuidando do objetivo precipuo da histéria — 0 registro e a explicacio dos fatos —, mas simplesmente que saibamos assumir, a sério, o esforco estruturante e seletivo sem o qual o relato torna-se um caos de impress6es, talvez sedutor e divertido, mas seguramente pouco iluminador. Tampouco se trata de estreitar ou de hierarquizar o vasto horizonte do campo historiografico. Estou convencido de que em todas as ciéncias sociais havera sempre alguns espiritos apaixonados pelos meandros da ideografia e outros pelos desafios teGricos. E é bom que assim seja, posto que ambas as tarefas se reclamam e complementam. Também pode estar certo Yerushalmi quando diz que para os historiadores “Deus mora no detalhe”. Mas, ainda nesse caso, nao haveria outra forma de reconhecé-lo que nao seja atentando para o conceito, para alguma idéia de totalidade que, ao final das contas, é a que dignifica ou simplesmente da sentido ao detalhe, morando nele. A MEMORIA E SEUS INIMIGOS Desde suas origens, a hist6ria 6 um combate contra dois de seus piores inimigos: o esquecimento e seu grande aliado, 19 o tempo, cuja passagem incessante vai “apagando o peixe e seu palpitar”, vale dizer, o passado e sua lembranga. E antiga a idéia de que ser é perseverar no tempo e que a memoria é o recurso felino com que contamos para tal empresa. Mas a tarefa é por si mesma paradoxal porque 0 tempo é a substAncia dos fatos e, reflexivamente, da lembranga. Aniquilando o tempo, elimina-se 0 acontecimento, justamente o que se pretende preservar na memoria. Entéao como vencé-lo sem que a histéria se extinga com ele? A resposta dominante entre os gregos fez da Meméria uma faculdade orientada a reminiscéncia de esséncias intemporais em detrimento do devenir, de tal forma que, como assinala Ramos, para eles, recordar j4 nao era mais “explorar e reconstruir o proprio tempo da experiéncia, mas pelo contrario, fugir, emancipar-se do tempo para instalar-se em um passado primordial que contém o ser das coisas”,’? isto é, tudo 0 que a histéria nao pretende nem quer ser. Essa visio essencialista desemboca, com freqiiéncia, em uma concep¢io circular do tempo que, em suas multiplas versées, faz do passado, em sentido pleno, um presente perpétuo e do conhecimento, uma teoria da anamnese. Mas nem todas as concep¢ées ciclicas advogam a repeti¢ao idéntica dos acontecimentos. A cada volta, uma pequena variagao, um detalhe, podem dar a aparéncia de mudanga — até recordar 0 que sucedeu alguma vez j4 seria uma forma de acrescentar novidade ao presente, um antidoto contra o pesadelo especular. Em 1616, Lucilio Vanini escreveu: “De novo Aquiles ira a Trdia; renascerao as cerimOnias e religides; a hist6ria humana se repete; nada h4 agora que nao tenha sido; o que foi, sera; mas tudo isso em geral, nio (como determina Platao) em particular.” Eis af uma formulagao precoce da tensao entre nomologia e ideografia. Do mesmo modo argumentara Paul Véyne que se Jodo sem Terra voltasse a passar pela segunda vez por aqui “o historiador narraria ambas as ocorréncias e nao se sentiria por isso menos historiador”. E nao importa se cada volta fosse totalmente igual a outra, continuariam sendo duas e, assim, “jamais se repetira a histéria, ainda que ela chegasse a dizer duas vezes a mesma coisa”.'* Mas basta mover um dos espelhos para que logo surja o semblante da divida: talvez nao seja sé a Historia a que se repete, mas também o historiador que 20 assim a imagina e conta a cada volta exatamente com as iesmas palavras. E entao? Entao, talvez seja melhor mudar de perspectiva e pensar que o passado é irreversivel, que nada nem ninguém pode altera-lo, nem sequer o esquecimento. E muito menos o historiador que o recorda. A felicidade do amante que se transmuta em pena ao dar-se conta de que era enganado em nada modifica a felicidade vivida ou sentida antes da penosa descoberta. Essa afirmacgéo borgiana sustenta-se em uma concep¢ao intransitiva do tempo. Este é, em definitivo, o estado de consciéncia do sujeito e cada estado de consciéncia é absoluto, como é aut6nomo o instante em que transcorre. Desse ponto de vista “nao ha histéria (do universo) como nao ha a vida de um homem, nem sequer uma de suas noites. Cada momento que vivemos existe, (mas) nao seu imaginario conjunto...” A idéia de simultaneidade, que suporia a nogao de um tempo homogéneo e objetivo, torna-se impossivel nesse mundo fluido. O que se tem em qualquer instante sao estados de consciéncia perfeitamente paralelos e incomunicados. E entao, dado que o tempo é um processo mental enraizado na subjetividade, como podem compartilha-lo milhares de homens ou ainda dois homens distintos? Sob o prisma da consciéncia individual, nado ha resposta possivel 4 pergunta formulada por Borges; o tempo acabaré sendo um adversario imbativel porque se encarna em nds mesmos, nos constitui e nos destréi igualmente: Nosso destino (...) € espantoso porque é¢ irreversivel e de ferro. O tempo é a substancia de que estou feito. O tempo é um rio que me arrebata, mas eu sou 0 rio; € um tigre que me destroga, mas eu sou 0 tigre; € um fogo que consome, mas eu sou o fogo. O mundo, infelizmente, é real; eu, infelizmente, sou Borges.'® Diante de tamanha descoberta, a meméria assemelha-se a um cavalo de Trdéia que, no momento de atravessar os muros da cidadela inimiga, devora os préprios guerreiros que leva consigo. Sem embargo, a batalha nao esta perdida; o historiador conseguira fazer da debilidade sua fortaleza, cavalgando sobre o dorso do inimigo. Halbwachs propde essa estratégia quando afirma que a vantagem da memoria 21 sobre o tempo e@ que ela sempre sabe como acabou o que uma vez ocorreu. Isto ¢, pode olhar para tras © unir os fios da experiéncia; a flecha do tempo nao consegue realizar esse prodigio.”” Mas, aqui, a idéia de tempo com a qual trabalha o socidlogo transcende o campo da subjetividade para postular-se como uma constru¢io social, na linha de Durkheim e de Elias. Sob essa 6tica, o tempo é a uma sé vez hist6rico e natural, uma nogio abstrata e uma ferramenta muito concreta, uma realidade coletiva e subjetiva, enfim, uma instituigdo social que se instala na consciéncia dos individuos até converter-se em “uma pauta de autocoacio” ao longo de suas vidas.'* A partir de tais pressupostos, sera possivel postular a simultaneidade dos acontecimentos — 0 engano e a felicidade sob um mesmo teto temporal — e vincula-los causalmente. Todo o indispensavel para que o historiador cumpra 0 papel de detetive. Mesmo admitindo que © morto nao ressuscitara, nem o arrependimento fara desaparecer os vestigios do crime, essa perspectiva esta longe de coincidir com a idéia de um “passado imutdvel, independente da experiéncia presente”. Pelo contrario, considera que o presente é que fornece sempre “os principios de selegao e descrigio” para a reconstrugao do passado,!” Nao obstante suas conquistas, 0 historicismo implicito em dita proposicao nao parece resolver satisfatoriamente o dilema da memGria. O que se verifica 6 um mero deslocamento do fenémeno especular que antes se situava no campo da consciéncia individual e que agora se transfere ao da “meméria hist6rica”. Esta, imaginada como uma sucessao potencialmente infinita de exegese, continua reproduzindo o pesadelo auto- reflexivo presente no principio da subjetividade. Que fazer? Talvez aliar-se ao inimigo, aprendendo a esquecer. A ancestral crenga de que ser significa perdurar na meméria, deveria acrescentar-se outra que afirme, com igual conviccao, que para perdurar no tempo'também é necessario esquecer. Nao ha nada de extraordindrio ou novo em tal proposta. Mesmo desde a 6tica individual, o recordado é muito pouco com relagao ao incomensuravel alcance do esquecimento em nossas vidas. Essa é a prova mais contundente de que oeué algo mais que a consciéncia do passado. A idéia do ser que flui sem trégua e que é outro a cada instante, “trocando labios, pele, circulagdes”, redunda, paradoxalmente, na abolicao da 22 lembranga ou na adogao, inadvertida, de um ponto de vista meta-historico. Pois, como bem disse Nietzsche, um homem incapaz de esquecer veria “tudo desmanchar-se em pontos moveis e se perder nesse rio do vir”.”? Ha que se buscar um Ieito para esse rio sem margens: 0 esquecimento metddico. Antes de refletir sobre essa idéia, consideremos algumas das tendéncias que contribuiram para que a memoria historio- grafica experimentasse, na época moderna, uma espécie de amnésia do sentido. MEMORIA COLETIVA E MEMORIA HISTORIOGRAFICA Desde tempos remotos, Histéria e Memoria tém sido considerados termos, quando nao sinénimos, unidos umbilicalmente, ainda que 4s vezes de maneira conflitiva. Tanto é assim que a nocao de memoria e sua valoracao sujeitam-se as concepcdes vigentes, em distintas €pocas, sobre o que é ou deve ser a histéria. Servindo-nos da analise de Le Goff, consideremos, esquematicamente, alguns aspectos relativos a tais vinculos e sua transformagio no tempo.*! Um deles refere-se 4 tensao entre memoria oral e memoria escrita, que surge na Antigiiidade Classica e que perdura até hoje, envolvendo uma questado crucial: a instrumentalizagao da memoria histérica pelo poder. Inicialmente, a memoria articula-se positivamente a tradi¢ao oral, e o critério de veracidade nao se distancia de seus dominios, como pode verificar-se em Herdédoto. Com a invencgao e difusao da escrita, a Terra inteira transforma-se em uma superficie onde se inscreve a lembranga, provocando, entre outras coisas, mudangas na hierarquia dos sentidos: a vista ganha status, associando-se 4 idéia de verdade, e o ouvido passa a filiar-se ao enganoso canto das sereias. Logo surgira o interrogante sobre a eficacia da palavra alada para preservar a lembranga dos acontecimentos. Para Tucidides, a mem6ria oral, transmitida de boca em boca, afasta-se do logos e, propensa ao relato deslumbrante mas cadtico, distorce ° passado, enquanto “a imutabilidade do escrito é uma garantia de fidelidade”.” A polémica alcanga um ponto alto no Fedro de Platao, em que o deus Thot, inventor das letras e dos 23 dados, trava um duelo de argumentos com Tamuz, o rei solar. O primeiro considera sua nova inveng¢ao, a escrita, um remédio — dirfamos um calmante — para as afligdes da mem6Gria, enquanto o segundo afirma que, pelo contrario, a escrita aumentaré o esquecimento dos homens, que colocario sua confianga em signos exteriores em vez de dirigir-se a verdadeira fonte de todo conhecimento: 0 interior da alma “onde esta inscrito o discurso que € capaz de se defender sozinho”.* Sécrates, arquétipo da oralidade, teme que a palavra escrita contribua para o debilitamento da memoria e que o texto, sem compromisso com a verdade, transforme-se em um tabuleiro no qual as palavras rolem como os dados no jogo. Um claro prentincio do culto a superficie que se verifica nas modas literarias e historiograficas faz ja algum tempo. Se bem que ja é possivel entrever, desde entao, o pleito entre a memoria coletiva e a memoria historiografica, levara séculos até que o mesmo redunde em divércio. Até muito entrada a Modernidade, a transmissao oral e a transmissao escrita entrelagam-se e apéiam-se mutuamente do mesmo modo que o fazem a historiografia e a memoria coletiva. A grande mudang¢a ocorrera, sem dtivida, com a imprensa, que significara “a ttivializagao até a perversito da atividade de recordar”. Se, por um lado, a expansao da obra impressa ampliou dramaticamente o horizonte da meméria coletiva, por Outro, contribuiu para que o controle da mesma se transferisse gradualmente a instAncias institucionalizadas pelo Estado, reforgando o processo de centralizacgao e de expropriagao da comunidade que se observa, ao longo do periodo moderno, em toda ordem de coisas. A meméria coletiva, entendida como a rememoracao de uma experiéncia comum, fragmenta-se e encolhe-se sob 0 impacto da modernizacao que socava as redes da tradicao oral. Viver em sociedade sera, cada vez menos, “sindnimo de recordar juntos”.*4 A consciéncia comum, que Durkheim definira como um sistema de certa forma autOnomo e com vida propria, vai ocupando um espaco Progressivamente menor diante do desenvolvimento da identidade e da consciéncia individuais. Nao menos importante € 0 fato de que a meméria histérica ea memoria coletiva se separam. O que se verifica, na realidade, € quase uma ruptura entre ambas as dimensdes. Como em outras esferas da vida social, a histéria, como campo de 24 conhecimento, se espeqaliza, enquanto o historiador, conver- tido em um profissiond| da memoria, desprende-se da “vida organica de seu povo”*s © passado que brota de sua pena, como bem assinala Hilbwachs, agora difere daquele que palpita na memoria coléetiva “tanto em contetido como em sua maneira de reconstru-lo e torna-lo significativo” e, com freqiiéncia, situa-se em franca oposi¢ao aquele.”* Por aug parte, a memoria coletiva muito pouco sabera da seppnsiraya especializada do passado que albergam arquivos ¢ bibliotecas. As razOes para os aludidos lapsos da memoria coletiva, desde entao um tdpico com ares de lamento, haverao de buscar-se na fragmentacao ou interrup¢ao das redes sociais através das quais se verifica a transmissio da experiéncia coletiva, antes que no desinteresse dos individuos em freqiientar a avultada produgdo dos historiadores. A historiografia, no esforco de constituir sua identidade como disciplina, sairaé em busca de sua prépria meméria e, aspirando aos valores cientificistas de €poca, Lett GHaIES ao papel de guardia do fogo sagrado. O conhecimento hist6rico, cindido da vida pratica, deixa de ser, entao, um guia da acao presente para converter-se em um conhecimento perfeitamente inutil. Ou, como prefere Paul Veyne, “um dos produtos mais inofensivos j4 inventados pela quimica mental” — com as conseqliéncias benéficas e problematicas que isto implica. Desde essa atalaia desarmada, uma legido de Funes se propora a tarefa de restituir todo o passado 4 consciéncia do presente.”” A proeza redundara no fetichismo do documento e na perda do sentido histérico, embotado pelo peso de um caudal de informagdes em que o valioso e o descartavel reclamam igual direito. de exibicdo. OS ESTRATAGEMAS DO ESQUECIMENTO E justamente nesse momento de rapida e acelerada expansdo da consciéncia histdérica que afloram as primeiras preocupacées sobre a necessidade do esquecimento como contrapeso 4 “quantidlade descomunal de indigestas pedras de saber, que ainda ocasionalmente roncam na barriga do homem moderno.* Niestzsche foi quem advogou de forma mais incisiva essa estratégia ao realizar a critica ao historicismo de 25 seu tempo. Na Segunda consideragdo extempordnea, espécie de inventario sobre o util e o daninho da histéria para a vida, conclui que o excesso de conhecimento, “o saber ingerido sem fome”, havia feito do homem de seu tempo um ser de cultura epidérmica e inservivel: Trata-se de saber esquecer adrede, assim como se sabe recordar adrede; € preciso que um instinto vigoroso advirta-nos quando é necessdrio ver as coisas nao historicamente e quando é necessirio vé-las historicamente. E eis aqui o principio sobre o qual o leitor esta convidado a refletir: o sentido nao histérico e o sentido histérico sio igualmente necessdrios para a sade de um individuo, de uma nagao, de uma civilizacio.” Desde entao, a possibilidade de uma ciéncia do esquecimento ou, ao menos, de um ars oblivionalis, veio a ser um tema recorrente na literatura e no ensaio social, embora nao tenha chegado a comover os historiadores. O que aqui se propode, olhando para o futuro, é algo menos herdico e mais pratico. Primeiro, tomar consciéncia das formas solapadas e metddicas através das quais o trabalho historiografico recorre ao esquecimento para construir seus discursos. Valeria a pena cogitar a hipdtese de que, do mesmo modo como todo individuo desaloja, incessante e inadvertida- mente, o turbilhao de imagens, sentimentos e percepgdes que é a existéncia cotidiana — e o faz justamente para passar de um presente a outro, para poder perdurar —, assim também o labor do historiador e seus progressos fundamentam-se, premeditadamente ou nao, tanto na meméria como no esque- cimento. O ponto de partida poderia ser a constatagao de que o conhecimento historiografico, exegético em esséncia, é sobretudo uma renovagao do sentido. Desse ponto de vista, a resposta ao dilema que toda mnemotécnica do esquecimento sup6e é radical: escrever uma outra hist6ria. Necessitamos reconhecer, indo além dos motivos ideoldgicos, as razdes epistemoldgicas que promovem rotineiramente a aboligao de uma parte da memoria historiografica, e identificar os modos como isto se realiza. Claro que a nocao de esquecimento com a qual se havera de trabalhar nao sera a de “auséncia irreme- diavel” mas, como na hipdtese freudiana, “presenca meramente ausentada’, como diz Nicole Loraux.*® Isto é, meméria latente, despertada e adormecida intermitentemente. Umberto Eco, 26 explorando as possibilidades de uma semidtica do esquecimento, sugere que, embora seja um contra-senso a procura de uma \cnica para esquecer, ao menos se poderia pensar em uma estratégia para confundir as lembrangas.*! Considero que ¢ essa, precisamente, a via historiografica mais trilhada: interpretagdes superpostas e recontadas de tal modo que nao se sabe, nem se pretende saber, qual é a correta. O relativismo historiografico pratica o esquecimento, como gostaria Eco, “multiplicando as presengas”.* A revisio de passadas inter- pretacdes, obrigatéria nos textos historiograficos, permite, ao mesmo tempo, a continuidade e a afirmagao do principio da diferenga ou, em outras palavras, cria a sensagao de que conseguimos burlar a tautologia. Mas o caminho mais eficaz para esquecer com método, evitando que o documento se transforme em fetiche e a hist6ria em jornalismo, é fortalecer a dimensao conceitual ou teérica de nosso trabalho como reftigio contra o pesadelo reflexivo da consciéncia pds-moderna, a qual tem, entre seus pontos programiticos, a trivializagao do passado. E ela que melhor pode guiar-nos na tarefa de reconhecer o essencial e de evitar que o aluvido de informagées e de vozes tornem o discurso historiografico um ruido intoleravel. Esquecer com método significa, neste caso, aprender a jogar en la cisterna de lo que ya no tiene voz ni fuego aquilo que nao é relevante a explicagdo, assumindo o papel estruturante que nos cabe ao relatar uma historia. Em A estranha vida de Ivan Osokin conta-se 0 episodio de um jovem que pede a um mago lhe conceda o desejo de voltar a viver os ultimos doze anos de sua existéncia, de modo que pudesse evitar ou, melhor, apagar para sempre todos os erros que havia cometido no passado. O magico aceita, estipulando uma simples condigao: o jovem recordara tudo, desde que nao queira esquecer.** Mas como o que Ivan deseja ¢ precisamente esquecer, terminara por errar novamente. Do mesmo modo, a sociedade, por mais que os historiadores lhe recordem seu passado, voltara a equivocar-se porque o que necessita, como Ivan, é esquecer. Se ela perdeu algo, nao é a memoria e, sim, a nogao de valor. Que fique claro, entao, que 0 que se propés, durante esta exposi¢ao, nao foi a anistia nem a amnésia, mas aprender a esquecer para recordar o sentido. 27 NOTAS ' Conferéncia proferida pelo autor por ocasido de seu ingresso a Sociedad Boliviana de Histéria em 30 de janeiro de 2001. Traduc3o Tania Quintaneiro, Revisdo Vera Alice Cardoso Silva. * ELIAS. Sobre el tiempo, p. 86. > RAMOS. Revista de Occidente, p. 66. 4 7 ae Ac & ‘ ai i madalenas, do francés madeleine’, boliinhos estriados de forma oblonga muito apetecidos pelas criangas. , > BORGES. Funes el memorioso, Artificioss, P. 485-490. ° YERUSHALMI. Reflexiones sobre el olviclo, p. 25. ” BORGES. Funes el memorioso, Artificios}, P- 489. SLURIA. A mente ea memoria, p. 136. ° taquipayanacu é um desafio travado nosi Andes entre cantores que devem seguir a “deixa” colocada pelo Ultimo e que pode prolongar-se Por muito tempo segundo a esperteza e habilidade dos contendlores. Uma espécie de repentismo. "© NUNO. La filosofia de Borges, p. 99. " VEYNE. Como se escribe la historia, p. 17-18. " RAMOS. Revista de Occidente, p. 66. '’ BORGES. El tiempo circular. Historia de’ la eternidad, p. 393. '“ VEYNE. Como se escribe la historia, p. 47-49. BORGES. Nueva refutacién del tiempo. Owras inquisiciones, p. 762. © BORGES. Nueva refutacion del tiempo. Ouas inquisiciones, p. 771. "RAMOS. Revista de Occidente, p. 68. 'S ELIAS. Sobre el tiempo, p. 21. RAMOS. Revista de Occidente, p. 67. °° NIETZSCHE. Da utilidade e desvantagem! da histéria para a vida, p. 58. *! Le GOFF. El orden de la memoria. ?? GAGNEBIN. Sete aulas sobre linguagem, Memoria e historia, p. 30. 3 PLATON. Fedro, o de la belleza, p. 881-882. ** RAMOS. Revista de Occidente, p. 80. ® YERUSHALMI. Reflexiones sobre el olvido, p. 23. *° RAMOS. Revista de Occidente, ,P- 79. *” YERUSHALMI. Reflexiones sobre el olvido, Pp. 23. *® NIETZSCHE. Da utilidade e desvantagem da hist6ria para a vida, p. 62. ” Citado por Yerushalmi, p. 15-16. * LORAUX. De la amnistia y su contrario, p- 27. 3 ECO. Revista de Occidente, p. 25. » ECO. Revista de Occidente, p. 27. ® PRIESTLEY. Man and time, p. 128. 28 A NOGAO DE IDENTIDADE NA TRADIGAO RACIONALISTA E 0 TEMA DA MODERNIDADE A metdfora, como se sabe, é um dos tropos literarios ao qual recorremos, com suspeita familiaridade, para explicar os fendmenos que nao conseguimos traduzir ao cédigo das ciéncias. O espelho, por sua qualidade reflexiva, tem sido utilizado com freqtiéncia como um recurso analédgico para expressar o processo dle constituigao de identidades coletivas.' Os povos — diz-se — tém o costume de mirar-se em outras culturas, e é contra esse horizonte que acabam apreendendo sua propria idiossincrasia. No entanto, bem vistas as coisas, o espelho nao parece ser a metdfora adequada para captar o sentido dessa experiéncia. No processo de autodefini¢cao cultural, as sociedades reconhecem em suas vizinhas o que elas mesmas nado sao, enquanto o espelho faz exatamente o contrario ao refletir positivamente os objetos que incidem sobre sua superficie, oferecendo-nos, como assinala Eco, uma duplicagao perfeita, embora invertida, do “campo estimulante”.? E certo que a percepg¢iio que uma determinada sociedade tem de outra nada mais é, 4s vezes, que um fendmeno projetivo, um ato de exorcismo através do qual procura afugentar seus proprios fantasmas, e diz mais sobre ela do que sobre a cultura aludida. De qualquer maneira, subsiste o fato de tal percep¢ao, por mais deformada que se possa reputar, ter uma origem externa com respeito ao observador, coisa que nao sucede no caso da imagem especular, que é sempre “causal- mente produzida” pelo referente. Em suma, enquanto a representacao cultural coloca em relevo as diferengas, a imagem especular é tautolégica em relagdo ao objeto: as

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