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SUMÁRIO

AMATO E OS NASCI
Alfredo Rasteiro ............................................................................................................................................................ 4

PANACEIAS NOSSAS DE CADA DIA, “ONTEM E HOJE”


Fanny Andrée Font Xavier da Cunha ........................................................................................................................ 12

À PROCURA DA IDADE DO CANCRO NAS CENTÚRIAS DE AMATO LUSITANO


António Lourenço Marques ........................................................................................................................................ 22

ACHEGAS PARA O ESTUDO DA ECOLOGIA (...) DA BEIRA INTERIOR


António Manuel Lopes Dias ....................................................................................................................................... 26

TUBERCULOSE E IDADES DO HOMEM


Maria Adelaide Neto Salvado .................................................................................................................................... 32

O SANATÓRIO DAS PENHAS DA SAÚDE - TEMPLO DO TEMPO


Elisa Pinheiro ............................................................................................................................................................. 40

A IDADE MILITAR (...) DO HOMEM DA GARDUNHA


Albano Mendes de Matos ........................................................................................................................................... 42

A IDADE DE SER “RATINHO”


Maria da Assunção Vilhena Fernandes ..................................................................................................................... 48

A IDADE DO QUOTIDIANO
António Maria Romeiro de Carvalho ......................................................................................................................... 53

O FIO DE “LÂQUESIS”... NAS PALAVRAS DOS POETAS


Maria de Lurdes Gouveia da Costa Barata ................................................................................................................ 58

AS IDADES DO HOMEM - IMUNDÍCES E CONSPURCAÇÕES


Victor Saínhas ............................................................................................................................................................ 64

AS IDADES DO HOMEM - VIAGENS NO TEMPO E NA MEMÓRIA


J. Ribeiro Farinha ....................................................................................................................................................... 67

CONCLUSÕES - V JORNADAS DE ESTUDO ........................................................................................................... 71


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Medicina e História
É quase uma banalidade dizer que o estudo da história da medicina, infelizmente
descurado na formação universitária das últimas gerações de médicos, se apresenta
imprescindível para compreendermos, em toda a sua extensão, o estado dos
conhecimentos actuais, a natureza da própria prática médica e qual pode vir a ser
a sua orientação futura. Estudo indispensável também para atingir o mais cabal
conhecimento do Homem, se integrado no concerto da interdisciplinaridade. E que
só analisando esse passado, perscrutando nele o que foi efémero e o que persistiu
para alimentar o desenvolvimento de edifício tão assombroso, só captando a genuína
luz da vida transcorrida, que vivifica o presente, poderemos penetrar os fundamentos
das preocupações e de muitos dos problemas éticos que se erguem neste campo,
hoje, e que reclamam satisfação. Não pretendemos, obviamente, substituir-nos ao
papel que a Escola deve exercer neste domínio. Queremos tão somente contribuir,
ainda que de forma despretensiosa, mas com a exigência do rigor científico e do
contributo das diversas ciências sociais, para que o estudo deste nosso passado,
tão significativamente enriquecido pela obra de Amato Lusitano, não esmoreça e se
mantenha, dando seguimento ao trabalho vultuoso e muito profícuo de investigadores
notáveis, como foi o caso do médico historiador Dr. José Lopes Dias e do linguista
Dr. Firmino Crespo. A esta última figura, que acabamos de perder, devemos esse
trabalho notável que foi a tradução das Sete Centúrias de Curas Médicas, sem a
qual, a obra do grande médico albicastrense da Renascença seria menos conhecida
e talvez arredada da investigação dos estudiosos, que assim, a pouco e pouco, lhe
têm relevado a singular grandiosidade, marca eloquente daquela época e dos homens
que a fizeram. Dívida que aqueles que pela História da Medicina se interessam
jamais saldarão.
Escolheu-se para enquadrar os trabalhos das VII Jornadas de estudo “Medicina
na Beira Interior - da pré-história ao séc. XX”, a figura da Mulher nas suas relações
com a Medicina. A Mulher como alvo desta disciplina, mas também como agente.
Aqui, Amato Lusitano é de uma riqueza extraordinária. Esperamos que os trabalhos
que vão surgir sejam bem comprovativos de uma realidade fundamental, mas ainda
assim tantas vezes dissimulada.

A direcção
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AMATO E OS NASCI

por Alfredo Rasteiro*

Na Torre do Tombo, em Lisboa, neste mês de Luis e esteve muito socegado em Coimbra, onde
Novembro de 1994, esteve patente uma exposição Tomaz Rodrigues da Veiga (1513-1579) cuidava do
intitulada «O Testamento de Adão», inspirada num seu jardim botânico, atendia alunos, escrevia lições,
dito atribuído a Francisco I (1515-1547), quando se fazia versos, conversava e jogava cartas com o reitor,
interrogava sobre a divisão do mundo feita em 1494 não fazia ondas... Andres Laguna (1499-1563)
entre D.João II e Reis Católicos. trabalhou para Carlos V. Em 1544
Porém, o que figura no Génesis, Andreas Vesal (1514-1564) foi
3, 17-20 será qualquer coisa como: médico de Carlos V e em 1559
«Porque seguiste a tua mulher passou a assistir Felippe II. Em
e comeste o fruto proibido, terás 1564 Carolus Clusius (1526-1609)
que trabalhar. A terra produzirá orientava uma viagem de estudo de
espinhos e abrolhos e comerás Jacobo Fugger em Portugal.
erva. Comerás pão amassado com Ambroise Paré (1510-1590)
suor do rosto...» e o actual Chefe acompanha o chefe militar Monte-
da Igreja Católica, João Paulo II, Jean antes de pertencer ao
em Fevereiro de 1992, no Senegal, Conselho e ser Cirurgião do rei de
mantendo esta linha de pensa- França ...
Figura 1 - mento, reconhece que a pobreza No corrente ano de 1994, o
Amato ofende a dignidade humana e im- aparecimento, em Fevereiro, de
Lusitano in
DIOSCORIDIS
pede o exercício da Liberdade. uma tradução portuguesa do ro-
ANAZARBEI DE Cientes deste facto, muitos mance LA SENORA, 1992, de
MEDICA médicos desde sempre se Catherine Clément, evocando boas
MATERIA sentiram na obrigação de trabalhar relações entre herdeiros do
LIBROS
QVINQVE,
e embora alguns possam ter mais banqueiro Francisco Mendes e o
Venetiis, 1553 do que o necessário, haverá outros médico Amato Lusitano e a
que talvez passem dificuldades e apresentação entre 21 de Junho e
não têm apoios. Sempre assim foi e para melhor 4 de Setembro da exposição documental «Os Judeus
poderem cumprir obrigações livremente assumidas Portugueses entre os Descobrimentos e a Diáspora»
perante as comunidades em que se inserem, sem na Fundação Gulbenkian, foram actos culturais que
quebra da dignidade própria e provavelmente sem as podem ter contribuído para um melhor conhecimento
palhaçadas que algumas vezes se observam onde de Amato e dos Nasci no quadro da cultura portuguesa,
menor probabilidade haveria para que surgissem, na história do Renascimento europeu. Catherine Clem-
sempre houve médicos que tiveram de procurar apoio ent contactou Pierre Amado, da Ecole Pratique des
junto de detentores do poder instituido. O patrono das Hautes Études, da família a que pertenceu Amato e
Jornadas de História da Medicina de Castelo Branco falou com Alain Oulman, da família Benveniste,
João Rodrigues (1511-1568) foi médico das poderosas regressada a Portugal durante o holocausto nazi. A
famílias Mendes Benvenides, Nasci e Yahia, de exposição que esteve patente em Lisboa mostrou a
Manuel Cirne, Feitor em Antuérpia, do embaixador em bela medalha de Pastorino de Pastorini, 1553, da
Roma Afonso de Lencastre, de D. Jacoba dei Monte Colecção George Halphen, Paris, com o retrato de
e de Vicencio de Nobilibus, irmã e sobrinho do Papa Beatriz de Luna, Hannah Garcia Mendes, Gracia Nasci
Júlio III, buscou a protecção de Cosme de Médicis, (1510-1569), La Senora, Ha-Geveret, Glória de Israel,
de Hipolito de Este, Cardeal de Ferrara, do Papa Júlio casada em 1528 com o banqueiro de Lisboa Fran-
III. Garcia de Orta (1500-1568) acompanhou Martim cisco Mendes Benveniste, falecido em 1536, irmão
Afonso de Sousa e foi médico de vice-reis. Pedro do banqueiro da praça de Antuérpia Diogo Mendes,
Nunes (1502-1578) foi despachado para a corte de D. falecido em 1542, mãe de Brianda Mendes (1531-
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1599) dita Reyna ou Regina, casada em 1545 com até à página 175, até se despedir de Juan Rodriguez
João Micas, Miquez, Joseph Nasci (1515-1579), que nesta página é despachado numa viagem sem
presumível autor do BEN PORAT JOSEF, 1576, duque regresso para Salonica. Índice, dedicatória, invocação,
de Naxos, filho de Agostinho Micas, Miguel, Samuel texto, cronologia, elementos bibliográficos e
Nasci, que fora Lente de Prima de Medicina na agradecimentos, são 361 páginas.
Universidade Portuguesa, em Lisboa, entre 1515 e Creio que o bom nome de Amato terá de algum modo
1526, falecido em 1532. contribuído para que na terra portuguesa o epónimo
Antes de iniciar a minha tentativa de desenvolvimento Lusitano caísse em
do tema AMATO E OS NASCI seja-me permitido desuso, chamo a aten-
registar cinco curtos comentários ao interessante livro ção para o facto de que
de Catherine Clement: durante o século XIII
- Primeiro, de agradecimento, por se lembrar do sempre os portugueses
LUSITANO; se consideraram Hispa-
- Segundo, não creio que Amato tenha nos e se diziam Portu-
desempenhado algumas das tarefas que Catherine galenses, como o
Clement lhe atribui, pois mais depressa poderiam ter Pedro Hispano Portu-
sido desempenhadas por um amigo de Amato, Diogo galense (1210-1277)
Pires, dito Jacob Flavio, de Évora (1517-1597), que que foi Chefe da Igreja
até poderia ter tido alguma formação como médico e de Roma, mas que
cujo itinerário muitas vezes se cruza com o de Amato, após o discurso de Garcia de Meneses ao Papa Sisto Figura 2 -
poeta que até poderia ter acrescentado algum picante IV em 31 de Agosto de 1481 alguns adoptarão o Dona
Beatriz de
a umas pouco poéticas relações havidas neste ro- epónimo Lusitano, como L(ucio) Andr(e) Resendii Luna
mance entre o «Nasi» e uma Faustina, prostituta Lvsitani em 1 de Outubro de 1534 que encurtará o
veneziana. A obra poética e as viagens de Diogo Pires, nome na Oratio habita Conimbricae in gymnasio regio
a sua composição dedicada «AO MÉDICO JOÃO de Julho de 1551, assinada como L. Andr. Resendii
RODRIGUES, ESTANDO O AUTOR DE PARTIDA sem epónimo, e será simplesmente como
PARA LOVAINA» com recordações de Salamanca «Conimbricences» que em 1 de Outubro de 1552
(«águas alouradas do Tormes»), o poema DE Hilario Moreira dedicará a sua Oração de Sapiência
LVSITANORVM TVMVLO IN VRBE FERRARA, as ao «inuictissimum Lusitaniae Regem D. Joanem Ter-
suas composições ragusinas como as que dedicou a tium», enquanto por toda a Europa Homens orgulhosos
Simão Benesso, os louvores a Solimão e o EPITÁFIO das suas raízes no ocidente peninsular juntavam
DE AMATO LUSITANO, 1568, enquadram-se naquele Lusitano aos seus nomes, tal como Amato Lusitano,
ciclo, sem esquecer que uma tal hipótese exploratória seu sobrinho neto Filipe Montalto Lusitano (1567-1616)
é contrariada pela aparente ausência de qualquer obra e o seu companheiro de infortúnio Didacus Pyrrus
de Diogo Pires dedicada a José Nasci, que até poderia Lusitanus (1517-1597), Roderico a Fonseca Lvsitano
ser como aquelas em que são lembradas as searas (1550-1622) e seu sobrinho Gabrielis a Fonseca
da pátria distante, as uvas à espera da colheita, o Lvsitani, Stephani Roderici Castrensis Lvsitani (1559-
brilho das folhas de oliveira, ou simplesmente Rufa, 1637), Zacuto Lusitano (1575-1642) e muitos, muitos
tocadora de cítara e Mamertina Cloe, flautista de bairro, mais, parecendo-me demasiadamente curto e pouco
dadas à libertinagem, vergonhas do bordel de Valência elegante dizer-se que Lucio André de Resende terá
mesmo para Diogo Pires, pois «um poeta ou faz ver- deixado de usar o epónimo Lusitano porque ficaria
sos, ou bebe»: «Aut uersus facit, aut bibit poeta.»; com um nome muito comprido... Desgraçadamente,
- Depois, chamar Lusitano ao Amato, à semelhança porém, tais danças de nomes não traduzem apenas
de autores como Mario Santoro em AMATO incertezas relativas à identidade nacional, antes se
LUSITANO ED ANCONA,1991, I.N.I.C., Coimbra, não apresentam como contraponto a infelizes movimentos
é habitual na terra portuguesa em que a tragédia dos xenófobos que será impossível erradicar completmente
exílios forçados e a qualidade e número de quantos e que voltam sempre com afloramentos cíclicos de
adoptaram o epónimo impedem que se diga «Lusitano que são tristes exemplos as recentes alcunhas de
só há um, o Amato e mais nenhum». É certo que «mouros» e «cristãos novos» atribuídas por
Catherine Clement, na página 78 da tradução do seu profissionais da política a habitantes da margem sul
romance apresenta João Rodrigues de Castel(o) do Tejo e a militantes de última hora de algum partido
Branco (e) que se tornou o grande, o querido Amato de sucesso;
Lusitano, nosso médico, que por sua bondade e - Catherine Clément coloca Dona Garcia em 1553 a
paciência bem terá merecido o ápodo de «Angelicus» regressar sòzinha, «clandestinamente a Veneza, para
e que depois o nomeia por três vezes Amato Lusitano comprar a esmeralda do vice-rei das Indias». Não se
entre esta página e a página 105, mas depois passa tratava de nenhuma pedra «veryl», como aquelas que
a designá-lo simplesmente Lusitano umas 36 vezes Garcia d’Orta descreveu no COLOQUIO 43, quando
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diz que «na Índia ha berilo q he assi como Cristal, e a 1556 (Cura LXXXIV) e onde continuava em Maio deste
o em grandes pedaços de q faze jaros. e escudellas» ano (Cura XCVIII ) ao registar que um determinado
e de que em Lisboa se faziam lentes para óculos. indivíduo chegado há pouco a Pesaro fora seu
Amato sabia que Dona Gracia tinha adquirido um companheiro em viagem no Oceano Atlântico cerca
bezoário que pertencera a um vice-rei. Trata-se de de vinte anos antes, possibilitando datar com alguma
uma concreção que pode surgir em estômagos de segurança a sua partida de Lisboa para Antuérpia,
ruminantes e do próprio homem em resultado da que se terá realizado em 1536 e não em 1534 como
deposição de sais calcáreos sobre fibras de plantas pensava Maximiano Lemos.
e pelos ingeridos e que na época era utilizada como Este quinto conjunto de cem assuntos clínicos e
antídoto universal; respectivos comentários, inclui diálogos com o
- Finalmente, utilizo a grafia Nasci (príncipe), por sobrinho e discípulo Brandão, recorda no Caso LXX a
ser a que estava em uso na casa de Abraham aben Cura Lll da PRIMEIRA CENTÚRIA e a sua muita
Usque em 7 de Setembro de 1553 e figura na admiração por Vesálio e especialmente na Cura LXXXVI
CONSOLACAM AS TRIBVLACOENS DE ISRAEL, não deixa de lembrar a família de Leão Abravanel e
composto por Samuel Usque e dedicado à sua esposa Dona Luna, referindo lembrar-se de que
ILLUSTRISSIMA SENHORA DONA em Castelo Branco tratara um
GRACIA NASCI destinado a servir rapaz de nome Silva, certamente
como um «piqueno ramo de fruta recordado do infeliz caso clínico
nova a nossa nação Portuguesa». XX da SEGUNDA CENTÚRIA,
AMATO E OS NASCI trilharam Roma, 1551, em que ilibara de
na vida itinerários que parece negligência o médico Calaphurra,
coincidirem entre 1536 e 1553 e no que não conseguira salvar uma
ano 5320 da Criação do Mundo que filha de Leão Hebreu, atestando
para os Hebreus começou 3760 o que pensava Amato Lusitano
anos antes de Cristo, em Salonica, de Castelo Branco, em Ancona,
Amato Lusitano dedicou a em 17 de Maio de 1550.
CVRATIONVM MEDICINALIVM A partir da Cura LXIX, as Curas
CENTVRIAE QUINTA, 1560, ao da QUINTA CENTURIA referem-
Senhor José Nasci, «pessoa se a casos de Pesaro e é
ornada de ilustres e insignes especialmente interessante a
virtudes», com votos de felicidades Cura LXXIII, não pelas tropelias
na companhia de Regina sua que fizeram ao pobre doente que
esposa e da muito ilustre Senhora durante seis dias bradou por
Grécia e seus aderentes e esta socorro, mas por apontar a
Figura 3 - dedicatória mais parece uma preocupação de Miguel
Biblia de despedida. Registe-se que a relativamente ao estado de saúde
Ferrara,
publicação da QUINTA CENTÚRIA, de Lourenço de Gentílibus,
1552
quinta série de cem casos clínicos e respectivos notário em Pesaro, assistido por Amato e dois médicos
comentários e não a obra completa «sete volumes de Disauranos e este Miguel, preocupado com a saúde
um Ensaio de Medicina » como consta na página 175 de um notário moribundo, poderia ser a pessoa ornada
da tradução portuguesa do livro de Catherine Clem- de ilustres e insignes virtudes a quem a Centúria é
ent, surge numa época em que Amato reencontrara dedicada, o filho do lente de Prima de Medicina de
condições propícias ao estudo e à reflexão, podendo Lisboa Agostinho Miguel, João Miguel (Micas) / José
dedicar-se a doentes e aos livros, conviver com Nasci.
parentes e amigos, cobrar honorários clínicos Nesta QUINTA CENTÚRIA a referência a itinerários
parcimoniosos e, de alma limpa, fazer testamento, o que cruzam Ancona e podem ter a ver com actividades
célebre Amati lusurandum, onde afirma ter rejeitado da Casa dos Mendes, é digna de registo:
grandes salários e nunca ter procurado ser rico, - Cura IV - João Edido Gradu, teutónico, mercador
desejando apenas ser útil aos seus doentes, de Antuerpia,
recusando publicar livros sem outra ambição que não - Cura V - António Carrion, de 30 anos, vindo de
fosse contribuir de qualquer modo para a saúde da Nápoles, em trânsito para Bruges, Flandres, sua terra
humanidade. natal
A QUINTA CENTÚRIA oferece-nos dados muito - Cura XXIV - Joannito, teutão, mercador em Antuerpia
interessantes para o conhecimento do mundo em que - Cura XXVI - Naaman, sacerdote, vindo da Grécia,
viveu Amato, suas viagens e suas relações. Começa - Cura XLIII - João Thomasi, mercador em Veneza,
pela dedicatória a José Nasci e a partida de Ancona regressado de Antuerpia,
para Pesaro, onde já estava no dia 5 de Fevereiro de - Cura LVI - Luca, da Ligúria, marinheiro, regressado
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de Alexandria, cabedal, em Lisboa e Antuérpia, participavam na


- Cura LXI - Raphael Thadeu, florentino, trabalhador operação em quotas de 10, 12, 20 mil cruzados,
em Ancona, adoeceu em Antuérpia e regressou a Itália consoante as posses. Diogo Mendes e o sócio
para tratamento, manejavam as vendas, firmando o preço em Antuérpia
- Cura LXXVII - Maalem de Castro, cobrador de e certamente por sua influência as companhias
impostos no Egipto, de passagem por Pesaro alemãs perderam privilégios em Lisboa e o comércio
- Cura LXXXVII - Pisaurina casada com indivíduo que da Pimenta, objecto de especulação, proporcionou a
trazia víboras de Ancona Antuérpia um desenvolvimento extraordinário.
- Cura XC - Anna Pinta, senhora que viveu em Francisco Mendes casa com Beatriz de Luna em
Inglaterra, casada com indivíduo que passou muitos 1528, têm uma filha, Brianda, em 1531 e D. Gracia
anos na índia. fica viúva em 1536.
A aproximação entre os herdeiros de Francisco O cheiro da pimenta determinou uma actividade
Mendes e Amato terá sido consequência de recurso diplomática muito intensa por parte do rei português
aos serviços médicos do profissional de grande João III (1502-1577) e seus conselheiros junto do
prestígio João Rodrigues, nascido em Castelo Branco, papado, onde procuravam ingloriamente soluções
licenciado em Salamanca, conhecedor profundo da expeditas e patrocinadas. Clemente VII, expedira em
MATÉRIA MÉDICA de Dioscórides (40-90) e essas 17 de Dezembro de 1531 a bula CUM AD NIHIL MAGIS
relações sofreram e foram resultado de que instituiu o primeiro inquisidor, cabendo a nomeação
condicionalismos determinados por factores sob pena de excomunhão a frei Diogo da Silva, que
económicos e religiosos que terá recusado tal cargo, sus-
nem o Lusitano nem os Nasci penso em 17 de Outubro de
desencadearam. 1532, sendo os iudeus
Em 1535 Portugal foi assolado «perdoados» por bula de 7 de
por uma fome que obrigou o rei Abril de 1533 que deve ter ficado
a comprar cereais em Dantzig e tranquilamente esquecida em
na Flandres, mas em 1534, já alguma secretaria até novo
«D. João III devia por juros «perdão» de Paulo III, datado de
vencidos, dívidas das casas da 12 de Outubro de 1535, sem
India e câmbios de Flandres, que D.João III deixasse de estar
quatro anos das receitas do atento aos judeus, cerceando-
reino, ou oitocentos contos», -lhes até onde lhe foi possível
segundo Oliveira Martins, os direitos, as liberdades e as
História de Portugal, 1879, e garantias, como regista Maria
então, como hoje, a solução José Pimenta Ferro Tavares em
Figura 4 - mais fácil era procurar dinheiro JUDAISMO E INQUISIÇÃO,
Matiolo e onde o havia. O comércio 1987, surgindo por fim a
Amato em
europeu era dominado por famigerada bula da inquisição
desacordo
grandes firmas alemãs (Fugger, de 23 de Maio de 1536,
Welser, Hochstetter) e italianas (Affaitati, Frescobaldi publicada em 22 de Outubro, regulamentada em 18
e Gualterotti). de Novembro. Os principais prejudicados, o País todo,
A família Benveniste que após o decreto de expulção tristes portugueses que viviam embalados no gosto
dos reis católicos assinado em 31 de Março de 1492 da cobiça, nada fizeram e apenas um reduzido grupo
procurara refúgio em Portugal, sob orientação de dos então chamados cristãos novos, apoiados pelo
Henrique Nunes iniciou a Casa dos Mendes que príncipe D.Luis (?-1555) se dirigiu ao rei a solicitar
prosperou no comércio de pedras preciosas e benevolência.
especiarias. Por morte de Henrique Nunes seus filhos Ao contrário do que escreveu Aquilino Ribeiro em
tomaram conta do negócio, Francisco Mendes em PRINCIPES DE PORTUGAL, SUAS GRANDEZAS E
Lisboa e Diogo Mendes em Antuérpia e em 1525 MISÉRIAS, o infante D. Luis, aluno de Pedro Nunes
pagaram ao rei de Portugal cerca de um milhão de (1502-1578) e pai assumido do futuro Prior do Crato
cruzados pelo monopólio da Pimenta, que D. António (1531-1595), que dizem ser filho de uma
tranzaccionam por toda a Europa. Refere J. Lúcio de Senhora hebreia, mais do que «tipo acabado de
Azevedo em ÉPOCAS DE PORTUGAL parasita nacional» com seiscentos e trinta criados e
ECONÓMICO, 1928, que Diogo Mendes, associado barcos no mar, capaz do acto de rebeldia que foi a
a João Carlos Affaitati, mandava comprar pimenta em sua participação na campanha de Tunes em 1535, ao
Lisboa por seu irmão Francisco Mendes, montando o lado de Carlos V, contra as ordens de seu irmão D.
valor de cada vez a 600, 800, mil, até um milhão de João III, antes parece ter sabido comportar-se, até à
cruzados e mais. Outros negociantes, de menos sua morte em 1555, como um factor de equilíbrio na
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vida portuguesa, cuja moral entrara em derrapagem. contem psi honores, & in Anthuerpiam me recepi, vbi
Esgotadas as providências diplomáticas e septénium egi, & inde lilustrissimi ducis Ferrariae
comprovada a ineficácia das redes da corrupção, Herculis secundi iussu, Ferrariam veni, sub cuius
Beatriz de Luna / Gracia Nasci, sua filha Brianda / clientela sexennium moratus sun, vbi quoq; publice
Reyna / Regina, a irmã Brianda Luna e o sobrinho artem medicam professi sumus & multa à viris
João Miguel / José Nasci fogem para Antuérpia. doctissimis, in re anatomica & herbaria didicimus» e
O «Lusitano», que por essa época era apenas o estes dados são importantes para o conhecimento
doutor João Rodrigues, de Castelo Branco, estaria do itinerário de Amato que poderia ter Partido para
muito atento ao que chegava da Índia e organizava os Antuérpia dezoito anos depois de ter iniciado estudos
apontamentos que lhe permitiriam uma primeira em Salamanca e que, depois de sete anos em
abordagem da Matéria Médica de Dioscórides, o IN- Antuérpia, não teria partido para Itália antes da chegada
DEX DIOSCORIDES, que publicará em Antuérpia com de Luis Nunes.
data de 1536, o que não invalida a possibilidade de a No que se refere a contactos com os Mendes,
sua partida para o exílio ser apenas no final deste Maximiano Lemos chama a atenção para o IN
ano. Em Antuérpia Amato passou sete anos felizes, DIOSCORIDIS, Enarratio CXX, «De rosis» e Enarratio
observando doentes que por vezes lhe pagavam XXXIX, «De Cervi mascvli Genitale», que transcrevo
principescamente, como o encarregado da feitoria, da edição de Lyon,1558:
Manuel Cirne, «trecentos largitus est aureos ducatus» Contacto com Diogo Mendes: «De rosis», Enarratio
por uma febre terçã dupla, estudava matéria médica e CXX - «Ego verò noscens medicamentum
teria acesso ao jardim de Diogo Mendes, onde poderia potentissimum & fere venenum esse, eam monui, ab
colher plantas com interesse medicinal, como a illo abstineret, nec eo amplius vteretur: putanerat euim
Lactuca sylvestris «Nostra sylvestris Lactuca est, liberalissima haec domina, côditum illud ex rosis
quam semel hic Anthuerpiae, in horto nobilis Domini incarnatis à nobis dictis paratum esse, quo alias
Diodoci Mendi vidi» (Fl. 45 v, citado por Maximiano de Anthuerpiae saepe usa erat, ad quam, meis votis,
Lemos em Amato Lusitano, correcções e aditamentos, viuente Didaco Mendio huius cognato, & omnium
1922). mercatorum suae aetatis ditissimo: Sebastianus
Em 4 de Setembro de 1546 Amato estará em Ferrara Pintus, e Ferraria miserat, valut ad alios principes,
a assistir doentes, cultiva a amizade de António Musa tanquam donum praecipuum, & sanitati humanae
Brassavola (1500-1555) que o aconselha a aceitar um deserviens, Hae vero rosae moschatae in Hispania
convite do senado de Ragusa / Dubrovnick para raro videntur: sunt enim albae subcitrinae similes vt
abandonar Itália e incentiva Giovanni Baptista Canano paucis dicam, rosis caninis inter spinas nascentibus,
(1515-1579) a tornar-se anatomista de renome. Em quae ad sumum tria quatuor folia habet». Clientes de
Ferrara, com Canano, em 1547, descobre «ostíolos luxo, rosas encarnadas! Quando a rainha e senhora
ou operculos» na veia ázigos, observados em doze D. Isabel de Aragão se viu na necessidade de
corpos de homens e de animais e descritos na Cura administrar um decocto de pétalas de rosa ao seu
LIl da Primeira Centúria, Ancona, 1547 e na Cura LXX senhor e rei D. Diniz que tinha um frenesim
da Quinta Centúria, Salonica, 1560, salva do esbulho desgraçado, para ver se acalmava e governava a
que sofreu em Ancona e oferecida a José Nasci. En- república como era necessário, teve de contentar-se
tre 1547 e 1556 Amato vive em Ancona e recolhe com umas rosas pobrinhas e desbotadas de quatro
elementos para o IN DIOSCORIDIS ANAZARBEI DE pétalas, colhidas no meio de espinhos onde nem os
MEDICA MATÉRIA LÍBROS QVINQVE, cães as viam, mas que fizeram erguer este paíz que
ENARRATIONES, Veneza, 1553, publica as quatro a não esquece nem ao «Milagre das rosas».
primeiras centúrias e prepara a quinta. Contacto com Dona Gracia: - «De Cervi masevli
Os Comentários a Dioscórides registam pedaços Genitale ... Hispanicè, vergalho de cervo; Italicé, verga
da história de Amato e referem contactos com os del ceruo; Gallice, verge de cerf», Enarratio XXXIX -
Mendes. Assim, no libri 1, Enarratio CXXXVII, «Nom solum contra viperaae venenum virga cervi valet:
«Palmitos», em resposta a LVDOVICVS, Luis Nunes sed etiam vt testatur Rasis, ad colicas affectiones, &
de Santarém, professor em Lisboa de 1529 a 1535, vrinae retentionem, vel vt aliis placet, ad stimulandam
professor em Coimbra de 1541 a 1544, editor do venerem. Caeterum, circumfertur hodie lapillus quidem
DICTIONARIUM AELLI ANTONII NEBRISSENSIS, ex India ad Lusitanius primo aduectus, vt plurimum,
Antuérpia, 1545, «Amatvs: Scio certe, quum nos due magnitudine & figura glandis colore civeritio, ad
è Salmamticessi, nobili apud Hispanos gymnasio, in cyaneum inclinante, multis compositus laminis, quem
Lusitaniam reuerteremur, te publicè medice nam apud cerui lachrymam quidam, alijvero lapidem belzahart
Colimbrienses, regis mandato legisse, imo ibidem tibi appellant, & illum tanquam praestantissimum ac
in eo munere primas delatas recordor. Sed ego relicta divinum antidotum, cõtra omne genus veneni
Lusitania, vt qui in ab hinc decem & octo annis approbant, De quo Abinzoar libro sui Theisir testatur,
praesagieram, que nunc euenisse audio, regios se illo quendam deploratu à perniciosissimo ingurgitato
9

veneno liberasse, cui granorum bordei trium põdere A política anti-judaica do cardeal Caraffa, papa Paulo
belzoharti, in quinq; vncis aquae cucurbitatae IV, criou instabilidade por toda a Europa e D. Gracia
propinaverat.... viu as suas empresas confiscadas um pouco por todo
... Nunc quu haec literis commendabamus, illustris o lado, o que a determinou a deslocar-se a Istambul a
Domina Beatrix à Luna, mulier opulentissima, venetiis procurar a protecção do Solimão, já que nessa época
agens, lapillum vnum ex iis quos describimus ab Indiae o império Turco funcionava como uma sociedade
animali extractu à quodam nobili Lusitano, qui apud aberta e progressiva e por isso era muito diferente
Indos Pro rex fuerat, centum & triginta aureis ducatis das monarquias europeias em geral e do Portugal
emit: erat enim lapillus ille, vt hoc quoq; dicamus oualis europeu e zonas administradas por Roma, onde existia
sere magnitudinis. Caeterum, non ab re quoq; esset, uma autoridade dogmática bloqueadora de quaisquer
in praesenti postquàm de praestãtisimis antidotis con- iniciativas que não partissem da sociedade dominante
tra venena egimus, de vnicornio quoque memoriam in nomine Dei.
facere, sed quoniam capite de cornu cervi, de illo Dona Gracia, que fora obrigada a sair de Antuérpia
sermonem facimus, ideo supersedimus, lectorem ad e se vira obrigada a empurrar a própria filha para os
citatum locum relegantes.» ... «Raspas» de Bezoário braços do sobrinho a fim de evitar arranjos palacianos
eram antídoto poderoso contra qualquer veneno e e casamentos ruinosos com pretendentes impostos
serviam para as «dores de barriga» ou afecções pela regente D. Maria irmã de Carlos V e pelo próprio
cólicas, muito antes dos COLOQUIOS DOS imperador, vê-se em guerra com a cidade de Veneza
SIMPLES..., Goa, 1563, de Garcia de Orta que no que expulsou os Judeus em 1550 e se recusa a ceder-
Colóquio 58, ao tratar das «cousas novas», avisa lhe a ilha de Chipre para aí instalar a comunidade
serem de difícil obtenção e que lhe parecia não haver israelita expulsa, restando-lhe fugir para a Turquia em
«tantas como isso, poré(m) o tempo que descobre 1552, estabelecer residência em Constantinopla em
tudo a descubrirá, ... porq(ue) por mais meezinhas 1554 e enviar José Nasci junto de Selim, filho e
q(ue) (h)aja contra a peçonha mais sam neces(s)arias, sucessor do Solimão o magnífico (reinou de 1520 a
e tãbém parece ser que em Roma teria esta pedra 1566) pedindo-lhe que conquistasse Chipre, contactos
muyta valia» «brilhante» final, possivelmente em estes que valeram a Joseph Nasci o título de duque
lembrança do IN DIOSCORIDIS, publicado dez anos de Naxos, nas Cidades, em 1567, tendo Veneza ficado
antes e provável acha numa fogueira que serviu para sem Chipre em 1571. Por outro lado, como a França
queimar os ossos de Garcia d’Orta em 4 de Dezembro dos sucessivos governos de Henrique II, Francisco I e
de 1580. Carlos IX se recusasse a pagar uma dívida de 150 mil
Amato viajava. Em 1 de Maio de 1551 publica em escudos à Casa dos Mendes com a desculpa de que
Roma a SEGUNDA CENTÚRIA, dedicada a Hipólito eram Judeus, o imperador Selim II (reinou de 1566 a
de Este cardeal de Ferrara, um interessante livro que 1578) ordenou que fosse sequestrado um terço da
abre com o caso clínico da irmã do papa Júlio III e carga de todos os navios franceses que aportassem
insere uma Cura XXXI que toca ao sobrinho papal, em portos turcos até que a dívida fosse inteiramente
Vicêncio, governador de Ancona e é dedicada ao sumo saldada.
pontífice. Em 1553 Amato publica em Veneza os Autêntico ou forjado, existe um soneto atribuído a
comentários a Dioscórides, ao mesmo tempo que nos Luis Vaz de Camões (1524 - 1580) que canta La Se-
prelos de Abraham Usque, em Ferrara, surge a nora: é o Soneto LXIX das OBRAS DE LUIS DE
CONSOLACÃO ÀS TRIBULACOENS DE ISRAEL, de CAMOES, nova edição, tomo terceiro Paris, à custa
Samuel Usque, patrocinado por dona Gracia Nasci, de Pedro Gendron, 1759, página 398:
que no ano anterior patrocinara a publicação das duas ILLUSTRE Gracia, nombre de uma moça
edições da famosa BIBLIA, Ferrara, 1552. Primera malhechora en este casso,
Após o papado de Júlio III, que se dilatou sem A Mondonedo, a Palma, al coxo Trasso,
perigos para os Judeus de 1500 a 1555, reinou du- Sugeto digno de immortal coroça.
rante vinte e dois dias Marcelo II, sucedendo-lhe o Si en medio de Ia Iglesia no reboça
cardeal Caraffa, de 77 anos, que reinou de 1555 a El manto a vuestro rostro tan devasso,
1559, confirmou a Universidade dos Jesuitas de Évora Por vós diràn Ias gentes rezio, y passo;
e promoveu a política de desertificação intelectual que Veis quien cor el Demonio se retoça.
levou Andres Laguna (I499-1563) a deslocar-se para
Antuérpia e terá empurrado Amato para os braços dos Puede mover los montes siri trabajo;
Nasci, que muito o apoiaram perante os despautérios Con palavras el curso al agua enfrena;
de Pietro Andrea Mattioli (1501-1577) que não se coibiu Por Ias ondas hara camino enxuto.
de açular contra o Lusitano a voracidade dos esbirros
inquisitoriais com a viperina APOLOGIA ADVERSUS A verguenza su Patria, y rico Tajo,
AMATHUM CUM CENSURA IN EJUSDEM Que por ella hombres feva más que arena
ENARRATIONES, Veneza, 1558. De que paga al Infierno gran tributo.
10

Que me permito “traduzir” e “adaptar” da seguinte II. Entre 1547 e 1556 vive em Ancona, deslocando-se
forma: por vezes a Veneza, a Roma e outros locais. Em 1556
Amato foge para Pesaro e em 1557 refugia-se em
GRACIA, nome ilustre, nome de moça Ragusa/Dubrovnick, passando a Salonica no final de
Quantas lágrimas choraste neste caso, 1558 e em 21 de Janeiro ro de 1568, a tratar pestíferos
Correndo contra o tempo e ao acaso, «aquele que tantas vezes reteve a chama da vida em
Quantos poetas terão a tua força! corpos que morriam, amado por muitos, nascido em
Se nas sombras da Igreja roça Castelo Branco, chegou ao fim dos seus dias longe
O manto que te encobre do devasso, da Pátria e descansa na Macedónia. Quando o azar
O povo reza e passo, bate à porta, é sempre a descer» (Diogo Pires: AMATI
Enquanto o demo se retoça. LVSITANI EPITAPHIVM, tradução livre). Não sabemos
como era a figura de Amato. O seu retrato vem
Mover montanhas é trabalho! reproduzido na portada da HISTORIA PLANTARUM
Páras o rio com a meia UNIVERSALIS de Johann Bauhin (1541 -1613) editada
E caminhas na água a pé enxuto. por Johann H. Cherler em 1650, em companhia com
outros dois autores de opiniões diferentes
Portugal tenha vergonha. «Dissentimus» - Matthiolus e Guilandinus. Infeliz e
Pelo Tejo Saíram homens como areia, ironicamente a única representação conhecida de
E pagaram tributo! Amato, que pertenceu a Annibal Fernandes Thomaz
e correspondente a uma destas três figuras,
Beatriz de Luna foi obrigada a fugir para Antuérpia reproduzida por Maximiano Lemos e Ricardo Jorge, é
em 1536, em 1549 partiu para Veneza, em 1550 fixou- uma gravura alemã do final do século XVII e parece
se em Ferrara, em 1552 seguiu para a Turquia. antes representar Matiolo em traje de combate...
Expulsa da Europa, Dona Gracia reinou em Tiberíades Amato será antes o único dos três que se apresenta
e construiu Safed, tentou criar condições para o em trajo civil, de cabeça recoberta com larga boina,
desenvolvimento de comunidades responsáveis e como quando herborizava.
introduziu a sericicultura na Palestina. Não se sabe Em toda a sua vida Amato sempre procurou
como nem quando La Senora se despediu do mundo. prestigiar a terra que lhe serviu de berço e a profissão
João Rodrigo nasceu em Castelo Branco em 1511, que escolheu e sempre se refere a Portugal e aos
uma vez que em 17 de Setembro de 1553, em Ancona, portugueses como «patria mea» e «lusitani nostri»
o Autor da QUARTA CENTÚRIA andava no seu ou «nostri portugalenses». Foi perseguido por razões
quadragésimo segundo ano de idade. Terá começado ditas religiosas... José Lopes Dias, numa obra
os estudos em Salamanca com 9 anos e quando teve infelizmente pouco divulgada, COMENTARIOS AO
idade para isso, entrou para a Universidade, depois «INDEX DIOSCORIDIS» DE AMATO LUSITANO,
de ter prati- apresentados no XXI Congresso Internacional de
cado Cirur- História da Medicina, em Sena (Itália), em Setembro
gia, durante de 1968, recorda o expressivo desabafo do grande
dois anos, albicastrense: «Que outra profissão julgou Cristo,
quando tinha grande e santo salvador do género humano, mais digna
dezoito de ser estimada que a medicina? Ele bem sabia que
anos. No fi- exceptuada a Teologia, nenhuma coisa havia de tão
nal de 1536 útil ao género humano como a medicina... - quaeso
fugiu para quot aliut officium Christus optimus maximus humani
Antuérpia, generis servatur sibi diligendu(m) proeter unã medicinã
num desses putavitiq (sic) nempe sciebat ille que(m) nihil sallere
barcos da posset, nullã existere re(m) Derinde humano generi,
carreira da theologiã excipio, conducibile(m) atq medicina...» (Liv.
Figura 5 -
Matiolo em Índia que II, XIX).
farda de passavam
combate, por Lisboa a
legendado caminho da
como se
fora Amato Flandres e
Lusitano que, en-
quanto nave-
gassem, quando chegava a primavera zarpavam de
novo para o Oriente. Sete longos anos em Antuérpia
e em 1545 reside em Ferrara, a convite de Hércules * Professor da Faculdade de Medicina de Coimbra
11

Resumo Cronológico 1547 - Amato reconhece «ostiolos» ou «opérculos»


na veia ázigos. Morte de Lutero.
1492 - Início da construcão do Hospital de Todos os 1549-1553 - Amato fixa-se em Ancona. PRIMEIRA
Santos. Fernando e Isabel expulsam os Judeus e CENTÚRIA, Ancona, 1549.
conquistam Granada. 1550 - Beatriz de Luna / Dona Garcia / La Señora
1494 - Tratado de Tordesilhas. fixa-se em Ferrara.
1495 - Morre D. João II. 1552 - BIBLIA DE FERRARA.
1500 - Descoberta do Brasil. Nascimento de Garcia 1553 - Amato: IN DIOSCORIDIS ANAZARBEI DE
de Orta. MEDICA MATERIA. Veneza. Samuel Usque:
1503 - Estatutos da Universidade. Regimento do Hos- CONSOLACAM AS TRIBULACOENS DE ISRAEL,
pital de Todos os Santos. Ferrara. Os Nasci fogem para Istambul.
1506 - Holocausto em Lisboa. 1555 - Morte de Paulo III. Morte de Marcelo II.
1510 - Hannah Gracia Nasci/Beatriz de Luna, nasce Coroação do cardeal Caraffa, Paulo IV.
em Lisboa. 1556 - Amato foge para Pesaro. La Señora embarga
1511 -Nascimento de João Rodrigues, de Castelo o porto de Ancona.
Branco. Amato Lusitano. 1557 - Amato instala-se em Ragusa/Dubrovnick.
1515 - Nascimento de João Micas/Joseph Nasci, 1559 - Amato fixa-se em Salonica.
filho de Agostinho Micas (Miguel). 1560 - QUINTA CENTÚRIA, com dedicatória a Joseph
1517 - Entre 1517 e 1522 o «doctor Micas» é lente Nasci.
de prima de Medicina na Universidade Portuguesa, 1568 - Amato morre em Salonica, no dia 21 de Ja-
em Lisboa e terá falecido em 1532. neiro (?), a tratar pestíferos.
1519 - O menino João Rodrigues inicia estudos em Garcia de Orta morre em Goa.
Salamanca (?).
Partida de Fernão de Magalhães para a volta ao Resumo Bibliográfico
mundo.
1521 - Morre D. Manuel. Amato Lusitano: CENTÚRIAS DE CURAS
1525 -D. João III inicia acções diplomáticas para MEDICINAIS, Tradução Firmino Crespo, Universidade
implantação da inquisição. Nova de Lisboa, 1980.
1528 - Beatriz de Luna casa com o banqueiro Fran- Castelo Branco, M.S.: «O amor e a morte ... nos
cisco Mendes Benvenides. antigos registos paroquiais albicastrenses».
1529 - João Rodrigues pratica cirurgia nos Hospitais CADERNOS DE CULTURA (Castelo Branco) 7, 7-
Santa Cruz e D. Branca. 32, 1993.
1531- Tremor de terra, recomeçam perseguições e Lopes-Dias, J.: COMENTÁRIOS AO «INDEX
assassinatos. Gil Vicente defende os Judeus. DIOSCORIDIS» DE AMATO LUSITANO, Gráfica de
Nomeação do primeiro inquisidor. S.José, Castelo Branco, 1968.
1535 - DIALOGHI D’AMORE. D. Luis participa na Maximiano-Lemos: AMATO LUSITANO. A SUA
acção contra Tunis. VIDA E A SUA OBRA, Eduardo Tavares Martins, Porto,
1536 - Partida de João Rodrigues para Antuérpia. 1907.
INDEX DIOSCORIDIS, Antuérpia, 1536 Estabele- Maximiano-Lemos: AMATO LUSITANO.
cimento da chamada santa inquisição em Portugal. CORRECÇÕES E ADITAMENTOS, Imprensa da
Morte de Francisco Mendes. Partida dos Nasci para Universidade, Coimbra, 1922.
o exílio. Rasteiro, A.: MEDICINA E DESCOBRIMENTOS,
1542 - Morte do banqueiro Diogo Mendes, em Almedina, 1992.
Antuérpia. Ricardo-Jorge: AMATO LUSITANO. COMENTOS À
1544-1545 - Chegada de Luis Nunes a Antuérpia. SUA VIDA, OBRA E ÉPOCA, I .A.C., Lisboa, 1962.
Partida de Amato para Ferrara. Concílio de Trento. Santoro, M.: AMATO LUSITANO ED ANCONA,
Os Mendes/Nasci, fogem de Antuérpia para Itália. Imprensa Nacional, Lisboa, 1991.
12

A Arte de Curar em Amato Lusitano (1511-1568) e o


Quotidiano Terapêutico Português no Século XVIII
PANACEIAS NOSSAS DE CADA DIA, “ONTEM E HOJE”

por Fanny Andrée Font Xavier da Cunha*

Figura 1 -
Laboratório de
química do
séc. XVIII

«O verdadeiro fim da química não é fazer ouro, mas A prioridade de algumas grandes descobertas cabe
preparar medicamentos.» aos portugueses, como consequência directa da sua
Paracelso experiência na Ásia, África e América, entre 1420-
1690.
Devido à sua industriosidade, o Homem disfruta de Bastaria citarmos o boticário Tomés Pires, o médico
alimentação uniforme, que lhe assegura a vida. Porém e naturalista Garcia de Orta (Índia), os viajantes Pero
o homem, para conservar essa vida, tem de Magalhães Gandavo, Gabriel Soares de Sousa
frequentemente de recorrera fármacos, e ao seu (Brasil), os missionários Padres José d’Anchieta,
emprego racional, para aliviar ou curar as doenças. Fernão Cardim, Frei João dos Santos, etc.
A arte de curar tem ocupado o Homem através dos Através destes viajantes científicos, e do seu poder
tempos. de observação, Portugal deu a conhecer ao mundo
Por essa arte se podem avaliar os progressos dos culto da época elementos e observações sobre várias
conhecimentos humanos, e podem mesmo doenças exóticas e sua terapêutica (uso do aloés, do
considerar-se dois períodos subjacentes a essa arte: ópio, do óleo dericino, da quinquina, do ruibarbo, do
ante e post Descobrimentos. copahu, etc).
De todos os tempos os navegadores, os cronistas, O conhecimento dessas novas doenças, dessas flo-
os naturalistas, os boticários, os missionários e os ras exóticas, tiveram um impacto considerável sobre
médicos portugueses contribuiram para o o progresso da Medicina.
desenvolvimento da ciência médica e ciências Para Portugal o século XVIII é um século de
subsidiárias (bioquímica e farmácia). progresso e de evolução nos métodos terapêuticos.
Os Portugueses e os Espanhóis foram os primeiros E se para Tácito 15 anos constituíam um lapso
viajantes europeus a adquirir e transmitir vastos importante da existência humana, que dizer dois
conhecimentos de doenças, de animais e plantas séculos? (grande mortalis aeve spatium)
(frutos, sementes, raízes, gomas, etc), completamente Este é o século das ciências exactas; das ciências
desconhecidos antes das Descobertas marítimas. naturais; das viagens e viajantes científicos; das
13

técnicas. É neste século, o das Luzes, que surge em segundo em 1751).


Portugal a 1ª publicação médica periódica, intitulada A sua Farmacopeia foi classificada por Pedro José
«Zodíaco Lusitano-Delphico, Anatomico, Botanico, da Silva como «um verdadeiro e colossal monumento
Chirugico. Dendrologico, Ictylogico,...», em Janeiro de da polifarmácia».
1794. Em 1766, A. Rodrigues Portugal publica a
No ano de 1726 fôra publicado por Brás Luís de «Pharmacopêa Portuense».
Abreu o livro «Portugal Médico», verdadeira glorificação Contudo, a 1ª farmacopeia oficial portuguesa, a
dos médicos. Na sua dedicatória ao Sereníssimo e «Pharmacopeia Geral para o Reino e domínios de
sempre Augusto Príncipe do Brasil, diz mesmo que Portugal» foi publicada em 1794, reimpressa em 1823,
«Ja houve quem entendeo, que não devia ser Príncepe, em Coimbra, de acordo com o Estatuto Universitário
quem não fosse medico...». de 1772.
O autor considera o legítimo Médico superior a todos É na 2ª edição da «Farmacopeia Lusitana», que se
os outros homens e que «a verdadeira Medicina fala, pela 1ª vez, em Química.
domina sobre todos os Monarchas...» Podemos mesmo considerar que a oficina do
É também neste século que se publicam as 1ªs farmacêutico foi o primeiro laboratório químico, e que
Farmacopeias, para servirem de guia aos o Dr. Curvo Semedo (1635-1719) foi o pioneiro da
farmacêuticos. Na 1ª metade do século XVIII era ainda indústria farmacêutica.
a «Polyanthea medicinal» de João Curvo Contudo, pelos fins do século XVIII ainda não se
Semedo,1697, uma verdadeira enciclopédia médica, tinham adoptado, em Portugal, as teorias químicas
«o novo evangelho dos médicos portugueses», a qual que noutros países iam
continha remédios verdadeiramente repugantes, tomando vulto. No dealbar
reeditada pelos tempos fora, que dominava. do século XVIII eram
Porém o verdadeiro século das Farmacopeias é o inúmeras as fórmulas
século XVIII. medicamentosas mais ou
A 1ª farmacopeia que se publicou em língua menos mágicas que
portuguesa foi a «Farmacopeia Lusitana» em 1704, enchiam as farmaco-
por D. Caetano de S.t° António, Boticário do Real peias: pós medicamento-
Mosteiro de S.ta Cruz de Coimbra, o qual diz no sos e mágicos, pedras,
«Prologo ao Leitor»: «moveume a sair a publico com etc.
esta obra, a experiencia certa, e continuada, da pouca, Ontem como hoje! Bem
ou nenhuma noticia que tem da lingua latina a mayor recentemente ainda um
parte dos Praticantes, que aprendem a arte diário fazia referência a talismãs mágicos, pós egípcios Figuras 2, 3
Pharmaceuthica; e ver também que (ou seja, por e cuecas magnéticas..., não esquecendo os e4-
Gravuras
impericia do latim, ou por falta de cabedal) não proclamados efeitos milagrosos de umas pulseiras! do Hortus
comprão, nem uzão aquelles livros, por onde segura, Mas regressemos ao século XVIII, bem semelhante Sanitatis
e acertadamente / podião dirigir-se, contentando-se no seu quotidiano terapêutico ao dos séculos (1517).
só com os treslados manuscritos de um methodo de anteriores, nomeadamente ao do século XVI, Alquimistas
trabalhando
obrar, a que elles chamão Pharmaca,...». aconselhado por Amato Lusitano. com
No Index encontramos a indicação de várias Aguas, Na «Pharmacopea Tubalense» vamos encontrar o substâncias
Vinagres e Vinhos; Electuarios (pérolas, safiras, pó de múmia que entrava na composição de pós para minerais
granadas, esmeraldas); Emplastros; Infusões; descoagularem o sangue e contra infecções da pele: então
empregues
Mucilagens; Óleos (de minhocas, de lacraus); Pedras: os pós de víboras; as pedras, como a pedra bezoar, e no
pedra sardónica, jacintos, granadas, esmeralda, coral; os metais suspensos do pescoço ou presos aos tratamento
Metais (ouro e prata); Pírulas; Pós (contra flatos; pulsos. Amato Lusitano, na CURA LXIV, 1ª de
cordiais com pedras preciosas; digestivos, epilépticos; Centúria-Duns envenenamentos con sublinsdo doenças.
para fluxos de sangue; para gallico; para lombrigas; (Sublimato) e sua cura, receita remédios vomitivos.
para sarna; pós restritivos); Triaga de Esmeraldas; Entre eles cita a pedra bezar (lapis bezarticum)
Vinhos; Unguentos (unguentos desopilativos de extraída do estômago de uma certa cabra da Índia;
curros, do baço, do estômago, do ligado); Xaropes e raspadura de unicórnio, e principalmente o vomitório
Zaragatoas. que levou a palma entre os outros: água de flor de
Em 1713, D. António dos Mártires (1698-1768), pub- laranjeira. Depois do vomitivo, passa ao antídoto: “feito
lica «Colectaneo Farmacêutico» ou «Farmacopeia de víboras a que chamamos teriaga”.
Bateana». Na CURA VIII, 1ª Centúria-De Febre Quartã,
João Vigier, no ano de 1716 publica a aconselha purgar com remédios que limpam a bilis
«Pharmacopêa Ulissiponense»; Manuel Rodrigues negra, como: pílulas de fumária da India, de pedra da
Coelho (1735-1751) publica a «Pharmacopêa Arménia, de lapis lazuli, chamada turqueza (cyaneus)
Tubalense» (o primeiro volume no ano de 1735; o e semelhantes. Aconselha igualmente dar teriaga
14

com vinho branco e em jejum. As «boticas» eram caixas de madeira ou de folha


No capítulo da petroterapia, Curvo Semedo, na de Flandres, de várias dimensões, que continham as
«Polyanthea medicinal», refere: «varios effeytos de drogas e medicamentos mais necessários e urgentes.
algumas pedras, remedios que obrão por virtudes Aliás uma parte importante da actividade
e qualidades occultas e que obrão por sympathia farmacêutica seria futuramente a produção de
e antipathia; pois vemos que as pedras de cobra, que medicamentos para as diferentes possessões do
vem da India, postas sobre a império, principalmente para o Brasil. Comparemos
mordedura de qualquer bicho as boticas «mais urgentes e necessárias» no século
venenoso tem huma virtude XVIII, com os remédios usados no século XVI por
occulta tão rara, que atrahe a Amato Lusitano.
si todo o veneno da mordedura; As boticas do Dr. Alexandre Rodrigues Ferreira,
e é digno de admiração ver que naturalista em missão científica ao Brasil, incluíam
estando algumas vezes a parte Sal de víboras; isto já em fins do século XVIII. Estes
mordida muyto inchada, se pós viperinos eram obtidos cortando em pedaços
desfaz toda a inchação em miúdos corpos, corações e fígados de víboras que
poucas horas...» depois eram secos e reduzidos a pó subtil.
«Vemos que a pedra Zafira, Delas constavam também olhos de caranguejo,
sendo de cor azul muyto subida roçada ao redor de almíscar oriental (excreção do Moschus moschiferus)
Antrás, ou Carbunculo venenoso, tem virtude occulta e Triaga ou Teriaga, a mais célebre das preparações
tão prodigiosa para fazer exhalar o veneno do Antrás oficinais farmacêuticas; ela era o electuário mais
como se fosse tumo pelo meyo de huma chaminé....». famoso, representante máximo da velha polifarmácia,
«A pedra de estancar, pendurada ao pescoço e panaceia universal.
supprime os fluxos de sangue; e o mesmo faz a pedra Tão antiga que já Camões a canta como antídoto
Emathitis, retida na mão até aquecer. A pedra de Aguia, dos venenos das setas:
atada na perna esquerda facilita o parto; e atada no
braço esquerdo, faz reter a crianca no ventre da mãy. Que o veneno espalhado pelas veias
A pedra Nephritica, que tem cor verde, trazida sobre Curão no ás vezes ásperas triagas.
a cruz das cadeiras, faz deitar as pedras dos rins». ....................................................
D. Caetano de S. António, na 1ª Farmacopeia Isto acontece às vezes, quando as setas
portuguesa inclui inúmeras fórmulas com pedras Acertam de levar ervas secretas.
nobres: pérolas, safiras, granadas, esmeraldas, coral. (Canto IX, est. 33, 27)
Unguentos com corais vermelhos são usados por
Amato na CURA LXXI,1ª Centúria «Dun Menino que Na sua CURA I, 1ª Centúria, feita em Portugal, em
sofria de disenteria» “R:.... de po de corais que se trata do curativo da mordedura de víbora, Amato
vermelhos....”, com o qual se untaria toda a região do Lusitano mandou aplicar ao sítio mordido um emplastro
fígado. feito de alhos e cebolas azedas... com teriaga à
Na CURA XXI, 1ª Centúria mistura. E para beber, uma poção de três dracmas
- «Duma febre despresada de teriaga dissolvidas em XV onças do mais puro
apos uma, pleurite....» refere vinho.
uma confeição cordeal fria, A teriaga era realmente aconselhada contra a
e que se preparava assim: peçonha, tendo como fundamento a víbora
R: de safiras, de jacintos, peçonhenta; ela continha mais sessenta e três
de esmeraldas, de carabes, mézinhas, como a pimenta, o ópio, a rosa damascena,
de coral branco, de coral a mirra, o gengibre, o ruibarbo, o aloés, a eoma arábica
vermelho, ...; de raspadura e betume da Judeia, e quase todas as drogas da Índia.
de marfim de chifre Note-se que o betume judaico ou «Asphaltus», por
queimado de Veado.... de goma arábica, de todos os ser originário do Mar Aspháltico «a que chamão Mar
sandalos,...de cânfora, de almíscar, de ouro e de prata, Morto», ainda nos nossos dias é utilizado contra a
do osso do coração do veado,». Destes ingredientes tosse.
se fazia um pó. O pó de víbora foi introduzido na fórmula primitiva da
O século XVIII é igualmente o século das «viagens teriaga pela 1ª vez, por Andrómaco.
filosóficas» e dos viajantes científicos. Estes faziam-se A teriaga de Veneza, teriaga fina, teve fama mundial,
acompanhar de «boticas». e só no ano de 1747 Veneza utilizou 2300 víboras.
Neste século o papel dos boticários, em O fabrico da teriaga, simultaneamente técnico e
consequência dos descobrimentos e das viagens por ritual continha inúmeros espécimens sem valor: chifre
mar, é de capital importância, porque são eles que de veados: pó de cloporte (crustáceo isopode), etc, e
elaboram as listas das boticas necessárias a bordo. um só alcaloide, a morfina.
15

Apesar da teriaga ter sido um dos remédios forçosamente benfeitora, donde o seu uso.
aplicados a uma doente por Amato, CURA XIII, 4ª A lista das enfermidades para que se dispunham
Centúria - De sintomas originados de plenite nos vasos remédios, era tanto no séc. XVI como no século XVIII
e ao mesmo tempo de excesso de sémen genital. bastante vasta; achaques da garganta, apoplexias,
Por se tratar de uma viúva e como os remédios pouco asma, bubões galicos, carbúnculo, catarro, chagas,
ajudassem, Amato aconselhou-a a casar pois já dizia desinteria, dores de cabeça, edemas, epilepsia,
Galeno: «De que Vénus é saudável para tais viúvas». escorbuto, erisipela, doenças eruptivas da pele,
A teriaga, a imortal Teriaga, herdada da Antiguidade, hemorragias, gangrena, inflamações, lombrigas,
foi usada em Portugal até cerca do século XIX, referida obstruções do fígado, do pancreas, pneumonias,
em todos os formulários oficiais. Panaceia universal, escrofulose, tísica, sarna, tinha, tumores,
não só como antídoto contra todos os venenos, como envenenamentos, vómitos, artrites, melancolia, paixão
também remédio para todas as doenças. amorosa diarreias, cólicas intestinais, úlceras,
A farmacopeia de D. Caetano cita três teriagas: a tumores, etc.
teriaga fina, ou magna, a teriaga reformada, apenas Para algumas destas enfermidades Amato Lusitano
com 11 componentes, e a dos pobres, apenas com apresenta Curas, e também a “Pharmacopea
cinco, e sem víboras. Tubalense” é pródiga em composições terapêuticas
A teriaga magna nunca foi preparada em Portugal, de grandes virtudes.
usando-se a italiana. Diz D. Caetano:«Esta receita Tanto no quotidiano do século XVI como no do século
da teriaga magna ou de Andrómaco, é a que se faz no XVIII, os medicamentos mais usados eram os
Grande Hospital de Génova, por ordem da sua estomáquicos, os eméticos, os purgantes, os
república, e a mesma que se faz em Veneza pelos calmantes, e os febrífugos, em cuja composição
melhores boticários daquela cidade, porém primeiro entravam as drogas que Tomé Pires e Garcia de Orta
que se faça, põe o artífice os simplices todos em deram a conhecer ao mundo, como o aloés, o ruibarbo,
público, depois de escolhidos, e os mostra ao Proto o tamarindo, a canela, a pimenta negra, o gengibre e
médico e aos mais doutores e boticários, para serem o ópio.
vistos por eles, e examinados; depois de reduzidos a As mais utilizadas eram: o aloés (Aloes socotrin),
pó subtil os tornam a ver, e com essa aprovação dá o cujas folhas carnudas contêm um suco amargo que
Senado licença para que se possa fazer teriaga, e só constitui o aloes oficinale, estomáquico e tónico, ou
a que se faz com simplices expostos a todos e é que purgativo consoante a
se pode gastar na dita cidade e mandar para outras dose. Esta indicação
terras; e se nesta nossa não houvesse o mesmo zelo, terapêutica era assina-
também se poderia fazer a dita teriaga». lada por Garcia de Orta:
Ora nas duas listas de boticas do Dr. Alexandre «conforta o estomago
Rodrigues Ferreira, o qual por indicação de Domingos por acidente, a que os
Vandelli, professor da Universidade reformada pelo físicos chamão de per
Marquês de Pombal, dava início a uma viagem de acidens scilicet, tiran-
estudo ao Brasil no ano de 1783, a qual lhe permitiu do-lhe os maus humo-
escrever a obra «Viagem Filosófica pelas capitanias res do estômago sem
do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá nucumento algum ou
1783-1792» encontram-se referidas 4 libras de Teriaga ao menos cõ pouco».
ou triaga magna; 3 de sal de víboras e 6 de de olhos Entra, nos nossos dias
de caranguejos. na composição de
Na 2ª lista encontramos a requisição de 1/2 libra de pílulas de aloés e
Triaga, como antídoto, de 2 onças de olhos de quina, e outras.
Caranguejos, como absorvente. Amato Lusitano, na
O sal de víboras, cuja preparação consta da CURA VI, 1ª Centúria -
Pharma-copea Tubalense, era considerado um dos Cura de lombrigas,
melhores remédios «que há na Medicina para as manda dar pílulas de
quenturas malignas, para as bexigas, Apoplexia, aloés e beber vinho generoso!
Parlesia, Affectos hystericos, peste, e para os venenos A canela, que também fazia parte do rol das drogas
coagulantes». estomáquicas pedidas por Alexandre Rodrigues
Os olhos de caranguejos, ricos em carbonato de Ferreira, em pleno século XVIII, também foi aplicada
cálcio entravam na composição de um unguento de em curas de Amato Lusitano.
caranguejo e de rãs, contra o cancro, e seriam Dela escreveu Garcia de Orta (col. 15): «He muyto
recalcificantes e também usados contra os vómitos gentil mèzinha para o estomago, e para tirar a dôr de
sob a forma de laudano, contra a cólera. coliqua, que he procedente de causa fria; porque tira
Na terapêutica persistia o mito da Natureza a dôr de improviso como eu muytas vezes». Faz o
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rosto vermelho e de boa côr; tira o mao cheiro da com certo calor não natural espalhado por todo o
boca». Isto é, a canela é um vasodilatador, e nos corpo. R: .... de ruibarbo do meIhor, meia dracma; de
nossos dias esta especialidade obtida por dissecação decocção confeccionada com foliculos de sene e
da casca da árvore da canela de Ceilão (Cinnaromum alguns tamarindos, quatro onças....
zeylanicum), é utilizada na cozinha e em pastelaria, O sene, também pedido por Alexandre Ferreira, é,
e como aromático nas pastas dentífricas; dela se extrai com o ruibarbo, ainda hoje utilizado na expressão:
um óleo essencial farmacêutico. «Receite o ruibarbo, receitar-lhe-ei o sene», para referir
Amato Lusitano usa-a na CURA X, 1ª Centúria - Duma duas pessoas que mutuamente fazem concessões
febre sanguínea, propinando: “R: de polpa de caneleira interesseiras. Visto serem ambos purgativos, não é
tirada recentemente, meia onça; de ruibarbo bom, uma difícil chegar a acordo.
dracma,...” Com este remédio a doente vomitou muito, Na CURA XVI; 1ª Centúria - Duma febre hórrida e do
expulsando alguns vermes. decocto de sene, utiliza o seno em decocto simples,
Na CURA XI, 1ª Centúria - Duma tersã e de ou associado ao gengibre, etc.
quantidade do xarope a usar, receita, além de um O gengibre (Zingiber officinale ROSCOE)
xarope, um purgante no qual entra também o ruibarbo, zingiberácea da Índia e da Conchichina, com um
e um bolo, constituído por casca de caneleira e rizoma de sabor aromático e picante, utilizado como
ruibarbo. condimento e droga medicinal, como estimulante
Tomé Pires, boticário e primeiro naturalista na Índia, estomáquico e diaforético, e que foi um dos primeiros
já por nós referido, descreve o ruibarbo (do latim produtos anunciados pelos descobridores
rhabarbarum, raiz bárbara) Rheum officinale Baillon e portugueses.
Rheum palmatum LINN), como uma planta de raízes A Pharmacopeia Tubalense considera-o incisivo,
e caules laxativos e tónicos, em carta escrita a EI- atenuante e estomáquico.
Rei D. Manuel, em 27 de Janeiro de 1516. Um purgante que veio até aos nossos dias, os
Cristovão da Costa chama-lhe «medicina singular e calomelanos ou calomelanos turquescos, dos quais
digna de ser venerada por toda a Humanidade», 1578. constavam 6 onças na 1ª lista, e 2 na 2ª, sendo
Ainda hoje considerado como tónico, amargo, utilizado não só como purgativo, mas também como
eupéptico e adstringente. vermífugo, antisséptico intestinal, colagogo, diurético,
Dentre os purgativos, a botica do Dr.Alexandre anti-infeccioso, e externamente, principalmente no
Ferreira incluía 4 onças de ruibarbo em pó, o qual é século XVIII, como anti-sifilitico, pois que se tratava
laxativo em doses médias e purgante em doses fortes, de um sal de mercúrio.
1/2 libra de seno (Cassia acutifolia DEL ); 2 de polpa O mercúrio já tinha uma longa história para uso de
de tamarindo, de jalapa em pó, purgante drástico doenças da pele, e manifestando-se o mal venéreo
(Exogonium jalapa H. BAILL), e os calomelanos com alterações cutâneas e das mucosas, passou a
(cloreto mercuroso sublimado, dos quais reza a Phar- ser também usado naquela doença.
macopeia Tubalense Químico Galénica: Usado e abusado a pontos de Spick referir que du-
«...medicamento mercurial, o mais usual na Medicina, rante a campanha da Austria, um correio saíu de Viena
entre todos os que se elaborão do Mercúrio, usa-se para Paris, em malaposta, com um cinto recheado
dele para tirar todas as obstrucções, para depurar a de moedas de ouro. À sua chegada dá com elas
massa do sangue, para untar as lombrigas, e para brancas e acusa os agentes do Tesouro de o terem
curar as Boubas, purga por câmara os humores roubado. Porém ele sofrera à partida de França um
serosos, e em particular se se misturar com algum tratamento mercurial enérgico.
medicamento hidragogo...Aplicado exteriormente cura Fricções e fumigações mercuriais eram o tratamento
a sarna, as pústulas venenosas, e as demais emoções preferencial.
da Cutis, mixto com unguentos, ou com água de cal, Amato Lusitano já o utilizava, como na CURA XLIX,
ou cozimentos mundifica, e desseca as ulceras 1ª Centúria De alguns infectados de sarna galicana
venéreas antigas...» aplicado em unguento feito de substancias aromáticas
Quanto à polpa de tamarindo, (Tamarindus indica e mercúrio (unguentum ex aromatibus e mercúrio
LIN), leguminosa arbórea das regiões tropicais obtida confectum.
da respectiva vagem reduzida a massa consistente, Na CURA XVIII, 4ª Centúria - De “choilades”, isto é,
ácida e doce, entrava na preparação do electuário escrófulas, e também de nodosidades, fê-las arrancar
de sene. Na antiga farmácia havia electuários anti- por meio de sublimado (cloreto de mercúrio) ou seja,
febris, diaforéticos, escorbúticos, soniferos, etc. sublimado corrosivo.
Dele diz Garcia da Horta «tâ mediçinal que não tem Quanto aos eméticos, ou vomitivos, muito usados
preço», col.59. por Amato Lusitano, as composições mais utilizadas
Amato usa de ruibarbo, de seno e de polpa de no século XVIII tinham como base a ipecacuanha, o
tamarindo na confecção de um purgante que aplica sene e o tártaro emético, com propriedades vomitivas,
na CURA LV - 1ª Centúria - um que sofria de afecções e que entrava na composicão do vinho emético.
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De ipecacuanha ou cipó emético, cujas procuravam-se os efeitos sedativos do ópio. Do ópio,


propriedades eméticas eram assinaladas, desde 1560 suco leitoso da papoula (Papa ver sonniferum LINN),
pelo Padre José d’Anchieta, constam na 1ª lista 4 do qual Tomé Pires escreveu: «os homens
onças, e na 2ª, 5. costumados a comêllo andam sonorentos,
No Brasil era o medicamento antidisentérico por desvairados, os olhos vermelhos; nem andam em seu
excelência. sentido. Custuma-se, porque hos provoca luxuria; he
A ipecacuanha ou cipó emético, rubiácea vivaz do de pranta de dormideiras.
Brasil (Cephaelis ipecacuanha RICH e WILT, Calliocca He boa mercadoria; gasta-se em grande cantidade
GOMES e BROT), ainda entra nos nossos dias nos e vall muito. Costuma-se a comer, os reis e senhores
seguintes preparados: tintura de ipecacuanha, vinho em cantidade de «avellã», a gente baixa come menos,
de ipecacuanha, xarope de ipecacuanha, composto. poque custa caro».
Também os electuários, mistura de pós A medicina utiliza-o ainda e sempre, assim como
medicamentosos, hoje caídos em desuso, mas aos os alcalóides que contém (morfina, codeína,
quais ainda se encontram referências, como na obra papaverina), como calmante e como sonífero e
de Aquilino Ribeiro, «Quando ao gavião cai a pena»: analgésico. Continua sendo uma droga preciosa. Entra
«um vinagrinho fenomenal que lhe vinha dum primo, em certos preparados opiados como o láudano.
mestre em pivetes e electuário», sendo a teriaga o Amato Lusitano, na CURA XLIV, 4ª Centúria - De
mais notável, constituíam terapêutica muito usada, disenteria curada com a poção de Filónio o Romano,
contendo a lista do Dr. Alexandre Ferreira o pedido de em virtude dos três opiados que continha, receita-o
frascos de todas as qualidades de vinagres. como medicamento estupefaciente, ou para dores
O uso de electuários já vinha de longe. Assim no fortíssimas ou para longas insónias.
Livro da virtuosa Benfeitona, do Infante D. Pedro, Nas listas do Dr. Alexandre Ferreira, encontramos
referencias são feitas aos electuários: «...e deu 6 onças de cada um dos láudanos que nela figuram.
leytoayro ao cavaleiro com q o fez dormir Láudano líquido, que é o Láudano de Sydenham, ainda
prollongadamente»...«e quall leytoayro trazerá usado, e o láudano opiado, citado na Pharmacopeia
espécies tão estremadas q faça delectaçom mais Tubalense, e do qual diz: «he louvado em todas as
saborosa». dores»; «he sagrada Anchora nos vómitos e cameras,
Amato Lusitano também os utiliza, nas CURA X, 1ª que acompanham as febres terçãs».
Centúria - Duma febre sanguínea e na CURA XV - Da O paludismo tem por principal sintoma a febre, febres
supressão da menstruação e de exantemas que intermitentes que surgem por acessos, com
aparecem por todo o corpo, terminando, neste último variedades chamadas terçãs, febre quartã, febre
caso com a prescrição de banho feito de água doce palustre, febre dos pântanos, etc.
em que foram cozidas rosas vermelhas. Conhecido desde a Antiguidade, existia em estado
Já vimos a importância que Amato Lusitano dava à endémico em muitos países.
água de flor de larangeira como vomitivo; na higiene Note-se que já no início do século XIX a febre era
corporal dá à rosa a importância que os antigos lhe um substantivo cujo singular era mais claro que o plu-
davam no Oriente, segundo a afirmação do árabe ral. No século XVI, era desconhecida a sua origem, e
Abd-er-Razzak:. “Esta gente não pode viver sem desconhecida a quinina, que ainda hoje é considerada
rosas, que consideram tão necessárias quanto os pela Organização Mundial de Saúde, como o remédio
alimentos!” mais eficaz contra o paludismo, pois que, se não
Chegados ao Oriente os Portugueses verificaram elimina o parasita no sangue, evita a crise.
que a rosa e o seu perfume eram um dos elementos Ora no século XVI Amato Lusitano procurava apenas
da higiene dos corpos. Com as pétalas de rosas se evitar a crise, e assim, na CURA VIII, 1ª Centúria- De
atapetava o chão das casas, para os pés descalços Febre Quartã, deu ao doente muitos e variados
das pessoas, homens e mulheres muito mais medicamentos, que ora diziam respeito à bílis negra,
cuidados que os dos europeus. ora ao baço.
Com pétalas de rosa (Rosa centifolia e Rosa Por fim deu-lhe um medicamento purgativo,
damascena MILL), rosáceas arbustivas da Ásia, comentando que tanto nas febres quartãs como nas
prepara-se água de rosas. Orta refere a Rosa persica falsas terçãs é bom conselho purgar-se no dia da
como “mézinha muito usada”; “e pera hum nome se aflição. Também diz ser de bom conselho dar teriaga,
purgar levemente tomão rosas em boa quantidade e no dia da crise, com vinho branco e em jejum,
cozenas muyto...” estabelecendo um método de alimentação especial.
Amato na CURA XXXIII, 6ª Centúria receita um lavacro Recomenda que o doente tome coisas salgadas,
para os pés do doente com rosas vermelhas, e um mostarda, pimenta, um purgante especial (dios
decocto de rosas secas. politicum) e um remédio de três espécies de pimentas,
Os calmantes mais usados externamente no século para deitar todos os dias nos caldos e na alimentação.
XVIII eram os láudanos e os bálsamos. Nos primeiros - Uma notícia da pimenta como agente terapêutico,
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já se encontra na Crónica de D. Dinis. do 7° dia. Na CURA XXVI, 4ª Centúria De una aflitiva


O valor terapêutico da pimenta declinou; no entanto febre continua com grande dor de cabeça, depois de
a farmacopeia portuguesa ainda a emprega, em pílulas purgas e sangrias, mandou por duas vezes abrir a
arsenicais (ed. de 1936). veia da testa e correr até 6 onças de sangue, afirmando
Na CURA XI, 1ª Centúria - Duma terçã e da que após a 2ª abertura, a convalescença do doente
quantidade de xarope a dar, Amato, depois de praticar fôra total. Na CURA XXXVIII, 4ª Centúria - De febre
uma sangria, estabeleceu uma dieta de alimentação, errática que degenerou em quartã - mandou praticar a
mandando sangria, seguida da toma de purgantes; na CURA
dar um xa- XXVIII, Wª Centúria - De desinteria, depois de vários
rope, e de clisteres, como lhe aparecesse uma febre violenta,
seguida mandou fazer uma sangria de 15 onças de sangue,
um pur- bebendo de seguida um xarope, e dados clisteres com
gante na propriedades constrigentes, tal como o seguinte: R:
composi- de água de cevada...; de sebo de bode, ... ;de pelos
ção do de lebre, uma dracma. Misture e faça-se um clister
qual en- que será retido até ser possível. Por último utilizou
trava, en- defumaduras, em cuja receita se incluía laúdano,
Loja de tre outros incenso e outros símplices.
boticário do símpli- Ainda na 4ª Centúria, CURA XLVIII - De febre contínua
séc. XVII ces, o rui- com erisipela ulcerada; Apanhando a face e toda a
barbo, e cabeça, mandou primeiro fazer uma extracção de
de segui- sangue e dar um purgante, e de seguida mandou
da persuadiu-o a comer um bolo, na composição do aplicar duas sanguessugas nas hemorróidas, tendo
qual entravam casca de caneleira, e ruibarbo.”Depois o doente voltado a ter saúde, e CURA LXII - De febre
disso ficou bom”, afirma. contínua maligna; com exantema, chamada pulicaria:
Quão longe estava esta terapêutica da do século nesta tão grossa febre, de tipo maligno e de mau cariz,
XVIII, em que os febrífugos teriam por base a quinina! e como se tratava de uma criança de 6 anos, depois
Da lista da Botica que o Dr. Alexandre requisitou em de praticar a sangria, engendrou dois processos a fim
1788 constavam 32 libras de quina em casca e 16 de a melhorar. Um, ventosas às costas, outro,
libras da mesma em pó, e só de Água de Inglaterra, aplicação de uma sanguessuga às veias do ânus.
antiga água das sezões, talvez a 1ª especialidade Também em outros exantemas, chamados vanolas e
nacional, levava 12 garrafas. sarampos, refere que “todos os médicos doutos
Amato Lusitano achava de bom conselho dar permitem uma abundante sangria”.
purgantes,e, no dia da crise, dar teriaga com vinho No século XVIII também os clisteres (clisteis) e
branco e em jejum, e como febrifugo, duas heminas ventosas continuavam sendo pilares da terapêutica.
de água gélida. CURA XI, V Centúria Duma terçã e Os primeiros estão indicados na «Pharma-copeia
da quantidade de xarope a dar; CURA XVIII, 4ª Centúria Tubalense» como antiapopléticos; anti-cólicos;
De Um doente com febre, curado com beber água carminativos; !axantes e febrífugos. Também indica
gelada; deixou o doente beber água gelada até se «clister de Tabaco».
saciar, acabando por ficar totalmente são. Na lista O Dr. Alexandre R. Ferreira requisitára 30 ataduras
das doenças que afligiam os portugueses não para sangria, e borrachas de couro, com os seus
podemos esquecer o escorbuto ou mal de Luanda pipos prontos para os clisteis...9.
contra o qual se usava o xarope de tamarindos. As Doenças da pele requeriam o uso de calmantes,
astenias eram tratadas com estimulantes. como o Láudano opiado Ludovico, que levava
As hiperastenias reprimidas com sangrias. mercúrio; os calomelanos ou mercúrio sublimado
A sangria permanecia um dos pilares da terapêutica. doce, externamente usado como tónico, antisséptico
Aconselhada ou praticada por Amato Lusitano em e anti-sifilítico; o láudano líquido que é o Láudano de
inúmeras curas, como na CURA LXI, 4ª Centúria - De Sydenham, uma tintura de ópio com açafrão, canela
uma dupla terçã, em que primeiro mandou tirar ao e cravo da Índia. Utilizado como analgésico em
doente 6 onças de sangue, seguindo-se a tomada de aplicações sobre a pele, puro ou misturado, sob a
xarope e de purgante, com alimentação adequada mas forma de linimento com outros analgésicos.
bebendo vinho branco. Deste calmante requisitára o Dr. Alexandre 2 libras.
Na CURA XXV, 4ª Centúria - De febre sanguínea, No «Portugal Médico», 1726, é dito do Láudano opiado:
mandou, logo no segundo dia da doença dar ao doente «Deve ser hoje remédio familiar, pella admiravel virtude
um clister seguido de uma sangria de uma libra de de que he dotado para varios achaques», e cita alguns
sangue; e ainda uma 2ª sangria, o que, com a tomada casos de doenças e sua cura.
de xaropes fez com que o paciente ficasse bom antes Enquanto que a Pharmacopeia Tubalense diz:
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«Este é o medicamento anodino mais seguro, que VU De febre quartã, e na CURA L, 6ª Centúria,
tem toda a Medicina...tira todas, e quaisquer dores também o usa.
que sejão, suspende todas as hemorrhagias ou fluxos, Porém, na CURA V, 7ª Centúria, a propósito das
e todas as fluxoens, quer sejão do ventre, ou de outra novas drogas dadas a conhecer por Portugueses e
qualquer parte; modera as grandes inquietaçoens, e Hispânicos, comenta: “...de igual modo importa que
calor nas febres malignas, aproveita nos Frenesis, na se seja conhecedor não só dos remédios exóticos,
Mania, Melancolia, Epilepsia, dor de Colica, Artrictica, trazidos da índia e de outros países, mas se possa
na Gotta, nas queixas nephriticas, tira os vomitos, as utilizar dos caseiros fáceis de preparação ...”.Nesta
cardialgias, e outras muitas enfermidades; conforta cura utilizou vinagre muitíssimo forte. Conhecedor de
os espiritos, os nervos, e todas as demais partes remédios exóticos, de outros países além dos da Índia,
pincipaes do corpo humano...» utiliza na CURA XLV, 4ª Centúria - De artrite, a
De Bálsamo Catholico, composto de benjoim, salsaparrilha, bem como nas Curas LXll e ,X, 5ª
estoraque, incenso, etc, levava o Dr. Alexandre 1 libra Centúria, em xarope e em decoto. As virtudes da
e meia, como consolidante. salsaparrilha do Brasil foram referidas nos escritos
Deste bálsamo dizia Ph. Tubalense: «A este do Jesuíta Pe. Vasconcellos. A salsaparrilha era
Bálsamo se atribuem infinitas virtudes, por produzir conhecida no comércio europeu como salsaparrilha
em muitas enfermidades admiráveis efeitos...», o que de Lisboa. Os Hispânicos chamam-lhe Salsaparrilla
seria natural, atendendo às espécies que o (Similax officinalis KUNTH). Rica em saponinas, é
constituiam. benjoim, incenso, estoraque, etc. fármaco depurativo. Do Bálsamo Catholico ainda fazia
Garcia de Horta, nos «Colóquios», refere e descreve parte o Bálsamo Peruviano Sólido, o qual ainda se
o benjoim, resina aromática extaída do Styrax benzuin usa externamente como antipsorico, cicatrizante de
(Ilha de Sumatra), utilizada em medicina como úlcera, e gretas do seio. Donde o conselho dado aos
balsâmico e antiséptico. farmacêuticos para a sua utilização.
Diz Garcia de Horta «he quente e seco no segundo De láudano puro e bom também faz uso Amato
grão; aromatiza o estômago húmido e.... e conforta- Lusitano, na CURA XXXII, 2ª Centúria - Sobre cólera
o, faz bom cheiro da boca, fortifica os membros e morbus, na composição de um escudo estomacal,
acrescenta o coito» (col. 9) e a Ph. Tubalense diz: na qual entram a canela, o cravo da Índia, a noz
«He o Benjoim incisivo, penetrante, atenuante, moscada, o pau-aloés, resina, etc. Sândalos, cânfora
particularmente as suas flores sublimadas (ácido e ópio são utilizados na CURA LXXIII, 4ª Centúria - Da
bezoico), e servem nas enfermidades do Pieto; é erisipela ulcerosa que apanhava a face e toda a região
fortificante da cabeça, contra veneno, e resiste à do olho direito e na CURA XXI, 1ª Centúria - Duma
gangrena». Ainda nos nossos dias se usa como febre desprezada após um pleuzite, numa confeição
balsâmico e antiséptico. cordealfria, na qual além de inúmeras pedras entravam
Amato Lusitano, na CURA L, 6ª Centúria - De uma todos os sândalos, cânfora, ouro e prata, e...chifre
mulher que abortou no tempo certo de gestação e do queimado de veado e osso do coração de veado! Na
seu tratamento, indica uma fumigação de benjoim e CURA XXXIII, 4ª Centúria - De um menino que sofria
bálsamo do Perú na composição da teriaga. Depois de febre contínua; utiliza o sândalo em unguento, e
da fumigação aplicava «um pessário feito de em eleituário. O incenso usa-o, por ex. Na CURA XCV,
opobálsamo, que é trazido da região do Perú há pouco 1ª Centúria - Dor nos pés, na confecção de um
descoberta», aconselha o seu uso a todos os linimento, terminando a cura com um banho de água
farmacêuticos (e perfumistas), pois ele próprio o utiliza do mar. Aliás empregava banhos de água doce, por
na composição da teriaga. Em pleno século XVIII, para ex. na CURA XV, 1ª Centúria - Da supressão da
Ribeiro Sanches os boticários são os maiores menstruação e de exantemas que apareciam por todo
praticantes da Medicina: «São elles os que curam as o corpo em que mandou à doente “que tomasse
enfermidades, os que consultamos médicos famosos banho... feito de água doce em que foram cozidas
pelas queixas dos seus doentes e elles mesmos são rosas vermelhas”.
os que lhes vendem os remédios das suas boticas». Nas doenças de foro dermatológico um outro género
De uma outra resina, o incenso, Garcia de Horta de terapêutica, já usado pelos Romanos, recomeça
diz que os médicos indús fazem com ela unguentos nos fins do século XVIII a ser prescrito: a hidroterapia
e perfumes e que, comido é bom para muitas doenças e o termalismo.
de cabeça. Do seu valor fala o presente dos Reis Já no século XVI e XVII a balneoterapia despertara
Magos. o interesse de alguns médicos notáveis.
O mesmo quanto ao estoraque, do qual diz a Assim Zacuto Lusitano (1575-1642) aconselhava as
Pharmacopea Tubalense: “He o Estoraque termas (férreas, nitrosas, sulfúricas, aluminosas, etc)
Calamita, estomáquico e confortante do coração, e para o tratamento de várias doenças, principalmente
contra a malignidade de humores. he molificante, e artropatias, tão frequentes nos nossos dias, e,
resolutivo” Amato utiliza-o como emoliente na CURA imitando Amato Lusitano, aconselhava práticas
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hidroterápicas contra certas doenças febris. vacina de Jenner levou ao quase desaparecimento da
Cerca de fins do século XVIII também os banhos de doença. O mesmo quanto à varicela e ao sarampo.
mar e o clima marítimo comecam a ser aconselhados, A grande diferença entre curar e prevenir, já
como terapêutica. Aliás como vimos na CURA XCV, o proclamada por um médico nascido em Penamacor,
banho de mar para os pés já fora aconselhado por Ribeiro Sanches, o qual acima da medicamentação
Amato Lusitano, e a mudança de clima, seguindo os aconselhava profilaxia e higiene.
ensinamentos de Hipócrates, no caso de longas Higiene que também Amato Lusitano proclamava
febres, na CURA 4ª, 5ª Centúria - De febre Préctica através dos banhos, e de ar puro ou mudança de meio
introduzida depois de longas febres: “Mudar de solo ambiente.
pátrio é bom nas doenças prolongadas”. Nesta CURA Terminaremos com um dos Aforismos de Hipócrates
tratava-se do “meio ambiente” em que os doentes se (460?-377? AC). “O ferro (a cirurgia) cura aquelas
encontravam em que o ar do quarto era demasiado enfermidades que as medicinas não remedeiam; as
húmido, carregado e frio. que o ferro não cura são curadas pelo fogo, e as que
Alterado o” clima” do quarto, novamente Amato o fogo não trata, contem-se então entre as totalmente
Lusitano o levou a tomar o costumado banho no fim incuráveis”.
do qual bebia oito onças de leite de cabra. E A. Amato Lusitano utilizou todas estes meios da arte
Lusitano termina: “De modo que aquele que por todos de curar: as medicinas, a cirurgia e o fogo. Só não
era lamentado, agora aí está, vigoroso, alegre, dispôs da arte de prevenir a doença.
saboreando o seu leite familiar, como fazem todos os No século XVIII, com a vacinarão, uma nova era se
teutões. Este com frequência manda preparar de sua iniciou para a Medicina.
vontade um banho em que mergulha com o maior dos
prazeres”. * Museu Nacional da Ciência e da Técnica
Donde se conclui que a hidroterapia, tanto no século
XVI como no século XVIII era sobretudo usada no
tratamento das pirexias.
E a propósito de água lembremos a «Água Ardente»,
muito usada no século XVIII para doenças da pele e Bibliografia
da qual Curvo Semedo diz: «muytas Erysipellas se
curão com Água Ardente».
Nas erisipelas Amato receita um unguento.
Dentro das doenças infecciosas e contagiosas da ABREU, Brás Luís - Portugal Médico Lusitana -
infância mais frequentes no século XVIII, e que se Coimbra Off Joam Antunes. 1726.
manifestavam sob a forma de erupções cutaneas, CAMÕES, Luís de - Os Lusíadas, Estúdios Cor,
destacam-se o sarampo, a varicela e a varíola. 1971 (obra comemorativa do 4° centenário de Os
É sobre estas que ontem, como hoje, a Higiene e a Lusíadas 1540-1625).
Profilaxia alcançam as maiores vitórias, pois datam COELHO, Manuel Rodrigues - Pharmacopea
de fins do século XVIII as inoculações e a vacinação, Tubalense Chimico-Galênica, Roma Otf. Balio
como métodos preventivos da doença. Gerendini, 1740.
É um médico do século XVIII, Bernardino António COSTA, Cristóvão da - Tratado das drogas e
Gomes (o descobridor de um dos alcalóides da quina, medicinas das Indias Orientais. No qual se verifica
a quinina), o fundador da Dermatologia Portuguesa. É muito do que escreveu o Doutor Garcia de Orta.
também quem, com a Academia das Ciências, funda Lisboa, Junta Inv. Ultr.,1964.Ed. comemorativa do 4º
a Instituição Vacínica. centenário da publicação dos Colóquios dos simples
Com a vacina, princípio da Medicina preventiva, uma de Garcia de Orta
nova era se iniciava. E é aqui que reside a suprema CUNHA, Fanny A. Xavier da - Viagens e viajantes
diferença entre a medicina do século XVI e a de fins científicos. Sobre a flora exótica farmacêu-tira e
do século XVIII. É no ano de 1799 que é introduzida alimentar Lusíada. Actas, vol. II, «Congresso
em Lisboa a vacina de Edward Jenner (1749-1823), Internacional Bartolomeu Dias e a sua Época»,
vasiolae vacinas. Anteriormente às vacinações já se Comissão Nacional para as comemorações dos
faziam inoculações que tinham começado em Lisboa Descobrimentos Portugueses. Universidade do Porto,
em 1768. Porto, 1989.
Se considerarmos que a varíola em princípios do - António Nunes Ribeiro Sanches, Médico Higienista
século XVIII provocava uma morte por cada dez (1699-1783). Jornadas de Medicina na Beira Interior
doentes, e atacava uma grande parte da população, da Pré-História ao Século XX, «Cadernos de Cultura»,
apesar das inoculações fazerem diminuir Nov, 1989.
progressivamente o número de casos mortais, a varíola - O Fomento Industrial através do ensino (Sécs.
prosseguia na sua mortífera caminhada. Apenas a XVIII e XIX) Actas. Com. Vol II, 1º Encontro Nacional
21

sobre o património industrial, “Associação Portuguesa PAULO, Zeferino F.- Periódicos Portugueses de
de Arqueologia Industrial», Coimbra, ed., L. da, 1990. Medicina e Ciências Subsidiárias. Instituto de Alta
- The great maritime discoveries and world health, Cultura , 1944.
Escola Nacional de Saúde Pública; Ordem dos PINA Luís de - No segundo Centenário da 1ª
Médicos, Instituto de Sintra, Ed. Mário Gomes Marques Farmacopeia Portuense de António Rodrigues Portu-
and John Cule, Lisbon, 1991. gal (1766-1966). Sep. de «O Médico». Porto, n° 847,
- Contributos da missionação para o avanço das 1967.
Ciências. Congresso Internacional de História, PIRES Tomé - Carta de thomee pyres para El-Rey....,
Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas. Cochin, 27 de Janeiro. 1516 (fac similé).
Actas, vol. III-Igreja, Sociedade e Missionação, Braga SANCHES, António Nunes Ribeiro - Mémoire sur
ed., 1993 les bains de vapeur en Russie, considérés pour Ia
FRANÇA, Carlos-Doutor Alexandre Rodrigues conservation de la Santé & pour Ia Guérison de
Ferreira (1756-1815) História de uma missso scientifica plusieurs maladies par M. António Ribeiro Sanches
ao Brasil no século XVIII « Bol. da Soc. Broteriana», (lu le 5 Oc. 1779) In: «Histoire de Ia Soc. Royalle de
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século XIX, Lisboa, Publ. Academia das Ciências, II SANTO ANTONIO. D. Caetano de - «Pharma-copea
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Alexandre Rodrigues Ferreira (fim do Séc. XVIII). Sep. obra científica e social dos Farmacêuticos através
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Publicidade. 1947. Lisboa Off. Pascoal da Sylvia, 1716.
ORTA, Garcia de - Colóquios dos Simples e Drogas -Thesouro Apollineo? Galenico, Chimico, Chrurgico,
e Causas Medicinais da Índia. Ed. fac. similada da Pharmaceutico ou Compendio de Remedios para ricos
Ac. das Ciências de Lisboa Lisboa 1963. e pobres. Coimbra, Off. Luís Seco Ferreyra,1745.
22

À PROCURA DA IDADE DO CANCRO NAS CENTÚRIAS DE AMATO LUSITANO

por António Lourenço Marques*

A DOENÇA COMO OBJECTO DA HISTÓRIA (...) as práticas corriqueiras que preenchem, revelam
e cimentam o grupo social”(2).
Também a História patenteia a marcha vigorosa que A doença, isto é, certas situações de desarmonia
se verifica em mais ciências sociais, exemplificada do corpo, com os seus registos apropriados,
pelo entusiamo no estudo de tudo o que pertence à traduzindo muitas vezes relações conflituosas ou de
sua traça, como se sem exclusão de nada. Esta confronto, ou mesmo de simpatia com a envolvente
orientação para objectos só ilusoriamente social, pode representar um lugar privilegiado para
insignificantes e que foram, por permitir a apreensão de sinais
muito tempo, considerados e significados singulares e de
desprezíveis, revelou-se, antes realidades inapreensiveis ou
pelo contrário, tão enriquecedora insuficientemente apreensíveis
para o conhecimento que se de outra forma, não só rela-
pretende global, ainda que cionadas com práticas sociais
selectivo. determinadas, como também
O interesse por zonas com certos mecanismos
marginais, por minudências ou administrativos, ou com “a
trivialidades, contrasta assim com imagem que uma sociedade
os temas que prevaleceram tem de si mesma”(3).
antes, quando triunfava o estudo Ora, o historiador, desde há
focalizado nas instituições muito, compreendeu a im-
relacionadas como poder político, portância deste acontecimento
nos “grandes” acontecimentos, irregular, mas determinante, da
nos protagonistas excelsos, ou existência de cada indivíduo e
nas variáveis económicas, nos da própria sociedade. Por isso,
ciclos de moeda, etc. Aparecem a referência às doenças é
agora outros objectos, até comum, não escapando habi-
inesperados, como o sexo, a vida tualmente à trama dos seus
do casal e da família, a velhice, a relatos.
infância, a morte, o medo, as Mas a enfermidade pode
paixões, o pecado, as doenças, também ser observada doutro
etc, etc. São, apropriadamente, modo. Há mesmo doenças
sempre realidades da vida do homem, que ao serem rebeldes a uma explicação social.
estudadas, também na perspectiva do historiador, Assim, na perspectiva de uma abstracção, que o é
ajudam a melhor compreendê-lo, no presente, porque de facto, é uma entidade que congrega um conjunto
“iluminado pelo passado” e a “perceber as nossas de manifestações entrelaçadas. É uma construção
inquietações e dificuldades actuais”, no entendimento formada na base de queixas ou sintomas, certos sinais
de Vitorino Magalhães Godinho(1). No fundo, é um e algumas alterações inscritas na realidade física do
caminho que contribui para a não obrigatória, mas corpo, isto é, na anatomia e/ou na bioquímica,
certamente desejável, beneficiação do futuro. observáveis pelo contacto directo ou objectivadas pelos
Constata-se pois a ampliação dramática dos meios complementares de diagnóstico. “Aos
interesses da história. Avança-se para um nível mais elementos assim reunidos atribui-se um diagnóstico
palpável da vida, passando do corpo social, como do qual decorre um determinado tratamento destinado
objecto exclusivo de estudo, para o corpo físico que é a agir sobre os sintomas e se possível também sobre
o primeiro objecto cultural e com ele as manifestações as causas” (4) . “Todas estas noções, estes
que o envolvem, os próprios “gestos do quotidiano, pressupostos, estes encadeamentos, têm que ver com
23

um estadio do conhecimento, com uma ideia de antes de Cristo, há descrições pormenorizadas de


ciência. São forçosamente evolutivos. Por natureza a tumores. Os Vedas, que são os primeiros textos
medicina é histórica”(5). religiosos e poéticos da índia, datados de cerca de
1500 anos antes de Cristo, referem-se também a
A HISTÓRIA DO CANCRO tumores malignos e até a actos terapêuticos(6). Na
continuidade histórica, Hipócrates e Galeno tratam
O homem de cada época tem investido, em uma ou do tema com grande profusão.
várias doenças, a sua angústia diante da fragilidade Ora, as ideias que têm dominado a história do
da condição humana, com o corpo sujeito à cancro são: 1 - Se o cancro é uma doença local ou
degradação e à morte. São doenças habitualmente geral; 2 - A noção de metástase; e 3 - As indicações
difíceis de tratar ou incuráveis e que se prestam a terapêuticas, incluindo o papel dos cuidados paliativos
simbolizar muitos dos sentimentos negativos das Esta última faceta da terapêutica, cujo
pessoas. No século XV, foi a lepra, no século XVI, a desenvolvimento continua tão actual, quase como uma
loucura, no século XIX, a tuberculose e, no século XX, redescoberta, tem, curiosa e surpreendentemente, uma
mais particularmente a partir do seu meio, o cancro, definição bastante precisa, no século XVI, como
(hoje a sida, de certo vamos ver, de acor-
modo, disputa o do com o teste-
mesmo lugar). A munho legado por
impotência perante a Amato Lusitano, na
resolução de inúmeros obra ímpar e excep-
casos, apesar dos cional que são as
avanços da medicina, Sete Centúrias de
o carácter particular- Curas Médicas.
mente penoso dos A Cura 32ª da III
seus sintomas, a dor Centúria, dedicada
terrível, a deformação, ao cancro da mama
etc., com a morte (7), constitui uma
como horizonte in- síntese notável so-
transponível, promoveu bre o estadio dos
esta doença a algo que conhecimentos
simboliza, de facto, o acerca do cancro,
que há de mais naquela época.
assustador para a vida Esta cura descreve
do homem. a doença de uma religiosa, de trinta anos, sobrinha
Esta é a imagem actual do cancro, anteriormente do bispo de Ancona, Balduino de Florença. Amato
mais favorável. Durante muito tempo, foi considerado relata-nos os primeiros sintomas da doente que foram
como uma doença sem significado excessivo, apenas “abundantíssima transpiração” e “palpitações do
marcada pelo selo da gravidade, mas como muitas coração” sentidas cerca de dois meses antes do
outras. Sendo também uma dessas doença que não aparecimento de ‘`prurido na papila da mama direita”,
evidencia abertamente implicações sociais, não se de “picadas lancinantes” e de “febre”. É, nesta altura,
presta com facilidade à elaboração de uma história que tem o primeiro contacto com a doente, observando
no seu sentido social. Já o mesmo não se pode dizer “tudo como é preciso”. “A papila apresentava-se um
quanto à história científica, isto é quanto à história da tanto mais espessa”, como descreve. Perante esta
evolução dos conhecimentos sobre a sua natureza, o apresentação, Amato Lusitano diagnosticou “uma atroz
diagnóstico ou sobre as práticas terapêuticas que doença, que era sem dúvida um cancro”. Havia então
suscita. o hábito natural e muito salutar de informar os doentes
Conhecido e estudado desde a alta antiguidade, esta acerca da natureza e gravidade da doença
história reflecte bem a longa e lenta evolução do diagnosticada: “exponho em poucas palavras que era
conhecimento científico, com algumas aquisições doença gravíssima e perniciosa, de que se seguiria
certas, muito antigas, que prevaleceram e cimentam morte certa, a não ser que fosse curada por mão de
a ciência de hoje. O modelo da história desta doença Chiron e Esculápio”.
serve assim para perceber como se processou a A intervenção do médico, isto é, através dele, da
génese de saberes actuais, que correspondem, por medicina, é entendida como determinante quanto à
definição, à melhor “verdade” científica dessas evolução da doença e Amato lamentará sempre que
realidades, ainda que envolta em muitas incertezas e os doentes demorem a recorrer ao médico ou recusem
perplexidades. os seus conselhos(8).
No papiro d’Hebers, escrito entre 3730 e 3710 anos Embora as doutrinas de Galeno, na peugada de
24

Hipócrates, quanto à natureza das doenças, Mas esta intervenção devia ser acompanhada do
continuem a dominar (Amato é um profundo tratamento geral, que basicamente envolvia conselhos
conhecedor destes autores), há no entanto novidades relacionados com a qualidade do ar, a qualidade da
e esta cura reflecte a passagem para um cstadio novo, alimentação, tema extensivamente desenvolvido na
verificado a partir das descobertas da anatomia e da referida Cura 31ª da 1ª Centúria, os cuidados com o
fisiologia, que implicaram uma nova mentalidade do espírito e, obviamente, a terapêutica “evacuadora” do
médico, quer como motora do desenvolvimento quer humor responsável pela doença, isto é, as sangrias e
como seu produto. as purgas (14) . Estes cuidados, associados ao
A ideia sobre a formação do cancro é galénica. “O tratamento cirúrgico, eram fundamentais, pois assim
cancro forma-se do humor melancólico (...) conforme “não é de temer que sobrevenha outro (cancro) de
ensinou Galeno no livro De Atrabile”(9). Um excesso novo”.
deste humor, portanto uma causa geral, por um lado,
com repercussão em todo o organismo, apresentando A IDEIA DE METÁSTASE E A MEDICINA
sintomas gerais e, por outro, explicando a PALIATIVA
universalidade da localização do próprio cancro. “Os
tumores carcinosos costumam formar-se em todas Mas esta religiosa de S. Bartolomeu recusou o
as partes do corpo”. “Vimos muitos cancros nas ma- tratamento cirúrgico, aconselhado pelos médicos. Ao
mas, no queixo, nas regiões glandulares, como no fim dos dois anos, “em vez do pequeno tumor, sofria
pescoço, nas axilas e nas virilhas”, informa Amato de uma ulceração cancerosa, de grande tamanho” e
Lusitano, nesta cura excepcional. tinha “raízes de tal modo implantadas que era de crer
Mas é a actuação terapêutica que revela como o tivesse ocupado os pontos mais íntimos do corpo”
(15)
entendimento desta doença era ainda mais complexo . Que melhor descrição precisamos para
e, julgamos nós, mais de acordo com a realidade caracterizar a metástase, noção atribuída no entanto
científica da doença. a Claude-Anthelme Récamier (1774-1852), já no início
Se é certo que o ensinamento de Hipócrates é do século XIX?(16)
considerado, pois é lembrado por Amato, logo que A ideia de metástase é pois muito mais antiga e
fez o diagnóstico, (“todos os cancros ocultos o melhor tinha grande importância na indicação terapêutica.
é não os tratar. Os tratados levam depressa à morte, Amato recorda que Galeno chama “raízes do cancro”
os não tratados duram mais longo tempo”, Hipócrates, (...) a “veias repletas de sangue negro e melancólico
livro 6° dos Aforismos)(10), o contacto que vai ter com que se distendem pelas regiões circundantes” ao
a doente e portanto com esta doença, neste caso tumor. Mas ele fala na ocupação de “pontos íntimos
concreto durante um longo período de tempo, do corpo”, uma ideia mais precisa e mais de acordo
permite-lhe expor a actuação que julga mais adequada com a realidade científica deste aspecto determinante
e que deve ser aconselhada, de modo a que o doente da doença. A sua “verificação” determinava, tal como
a cumpra. Ele lamentará, mais tarde, após cerca de hoje, a decisão terapêutica.
dois anos da primeira consulta, e quando encontra o Outro aspecto a que Amato Lusitano não é insensível
cancro já em fase avançada, a recusa da doente em é a dor. Chama com insistência a atenção para este
não ter deixado nunca “arrancá-lo a ferro”. sintoma, que pode traduzir também o estado
E tal como na cura 31ª da 1ª Centúria, coloca em adiantado da doença, como se pode inferir no caso
primeiro lugar a hipótese da cirurgia, a que os doentes da mulher de Sebastião Pinto, desta Cura 31°. Quase
então, no entanto, dificilmente se submetiam, como antes de morrer, as “dores acompanhavam sempre
se compreende sem esse esteio indispensável que é esta chaga” e, por fim, foram “mais fortes e graves
a anestesia, só descoberta cerca de quatro séculos que nunca”.
depois. A recusa à actuação sangrenta era de facto Nestas condições e nesta fase da doença, “está
muito comum. “Começámos portanto o ataque à confirmado, pois, ser este um cancro que só admitia
doença, a ver se seria melhor usar cirurgia”. “Mandei tratamento benigno” É esta a palavra utilizada por
que fossem chamados dois ilustres cirurgiões (...), Amato, mais expressiva que as caracterizações de
mas quando estávamos todos de acordo, ela (a Galeno, que chamava a este método de curar ou à
doente) não acedeu”(11). “providência que convenha ao sofrimento” e “torná-lo
A remoção cirúrgica radical do tumor é efectivamente mais suave”, de “mitigatório, demulcente ou afagante”
o primeiro conselho de Amato, perante tumores “que e que “costumam os autores de medicina mais
ocupem um sítio adequado, à volta do qual se possa rudimentar chamar paliativo”. Amato diz que neste
devidamente executar um trabalho manual e caso, “se nada mais fizermos, é necessário que
principalmente afastado das muitas artérias e dos limpemos ao menos o pus, usando qualquer
pequenos vasos”(12). “O tumor canceroso, no seu início, substância líquida, não ao acaso mas já encontrada
deve ser arrancado radicalmente por operação por experiência ou indicação”(17).
manual”(13). A medicina paliativa é uma prática dos médicos,
25

muito antiga. E satisfaz-nos constatar como o inter- Notas


esse que actualmente cresce em relação a esta área
da medicina, sendo já uma especialidade médica bem
definida em vários países, não é novo. Os humanistas 1 - Vitorino Magalhães Godinho - A crise de história e as
do século XVI proclamavam-lhe o alcance e a suas novas directrizes, Lisboa, Empresa Contemporânea
necessidade, como demonstra o notável médico de Edições.
albicastrense. E não era uma actuação fora do 2 - André Lepecki - Doenças, as Ficções e a História,
Leituras, Público n° 839, 12 de Junho de 1992, p. 2.
exercício próprio do médico. “Necessária” e com
3 - Jacques Revel e Jean-Pierre Peter. - O corpo, o
cuidados precisos, provados pela “experiência e com Homem Doente e a sua História, in: Fazer História, vol. 3,
indicação” são palavras quase definitivas sobre as Bertrand Editora, Lisboa, 1987, p. 187.
atribuições deste tipo de medicina. 4 - Sournia, Jean-Charles - O homem e a doença, in:
O modo como estas questões sobre o tratamento As Doenças têm história, Terramar, Lisboa, p. 343.
do cancro são colocadas no século XVI e as próprias 5 - Ibid., p. 344.
atitudes assumidas, numa dinâmica de procura da 6 - A.Tchakline - Le cancer Problème du Siècle,
melhor solução para combater a doença, lembram- tradução francesa, Edições MIR, 1980, p. 11.
nos a realidade actual, que continua, como então, 7 - Amato Lusitano - Centúrias de Curas Medicinais,
trad. de Firmino Crespo, Vol. II, Universidade Nova de
com não poucas incertezas. Donde, deixarmos a
Lisboa, p.p. 220 - 224.
pergunta: Qual é então a idade científica do Cancro? 8 - Outro caso, como exemplo de um doente com
E voltamos a Vitorino Magalhães Godinho. O estudo cancro: “deixou passar oito meses nos quais não tratou
da história serve também para compreendermos quão de empregar nenhuma espécie de remédios, embora
profundas são as raízes das” perplexidades do nesse intervalo de tempo, aquele pequeno tumor se
pensamento actual “(18). Isto é, também a história da houvesse tornado grande” - João Rodrigues de Castelo
ciência, mesmo sem uma marca que seja claramente Branco (Amato Lusitano), Primeira Centúria de Curas
social, se é certo que procura proclamar as certezas Médicas, Cura XXXI, Trad. de Firmino Crespo, Livraria
e as conquistas que cimentam o seu edifício, comunga Luso Espanhola, 1946, p. 110.
9 - Amato Lusitano. Centúrias de Curas Medicinais,
das hesitações e das dúvidas que existiram ontem,
trad. de Firmino Crespo, Vol. II, Universidade Nova de
que ainda são de hoje e com certeza vão prevalecer. Lisboa, p. 223.
10. - Ibid., p. 221.
11 - João Rodrigues de Castelo Branco (Amato
Lusitano), Primeira Centúria de Curas Médicas, Cura XXXI,
Trad. de Firmino Crespo, Livraria Luso Espanhola, 1946,
p. 110.
12 - Amato Lusitano, Centúrias de Curas Medicinais,
trad. de Firmino Crespo, Vol. II, Universidade Nova de
Lisboa, p. 224
13 - Ibid., p. 222.
14 - João Rodrigues de Castelo Branco (Amato
Lusitano), Primeira Centúria de Curas Médicas, Cura XXXI,
Trad. de Firmino Crespo, Livraria Luso Espanhola, 1946,
p. 113
15 - Amato Lusitano, Centúrias de Curas Medicinais,
trad. de Firmino Crespo, Vol. II, Universidade Nova de
Lisboa, p. 222
16 - Marie-José Imbault-Huart. - História do Cancro, in:
As Doenças têm História, Terramar, Lisboa, p. 170.
17 - Ibid., p.222.
18 - Vitorino Magalhães Godinho. - A crise de história e
* Assistente hospitalar graduado. Consultor de as suas novas directrizes, Lisboa, Empresa
Anestesiologia. Contemporânea de Edições.
26

Notícias das Plantas Medicinais e Aromáticas da 2ª Centúria de Amato Lusitano


ACHEGAS PARA O ESTUDO DA ECOLOGIA DE VEGETAÇÃO DA BEIRA INTERIOR

por A. M. Lopes Dias*

Na “Charneca em Flor”, Florbela Espanca fala do sobre o organismo, mas não é assimilada e ocasiona
Rosmaninho e da Esteva e da nevrose de sua Mãe... alguma perturbação, tal como a açafroa e o agárico.
Medecina Nutriente é a que actua sobre o organismo,
A. NOTÍCIA DAS PLANTAS MEDICINAIS E após longas transmutações é assimilada ao corpo,
AROMÁTICAS DA SEGUNDA CENTÚRIA DE AMATO como os alhos e as cebolas. Após citar as palavras
LUSITANO de Galeno para depois o julgar, notando que não errou,
pois atacã-lo neste assunto é quase como subverter
1. Cria-se a ideia na Idade Média que o poder da toda a medicina(1).
mandrágora (Mandragora officinarum L.) 2. Desde a formação da biblioteca de
provinha de um factor divino: a sua raiz Assurbanipal em Nivive as tábuas de argila
de aspecto antropomórfico, teria sido de escrita cuneiforme mencionam já 150
inicialmente fabricada com a mesma plantas medicinais e o mesmo número de
terra com que Deus moldava o corpo de plantas tem o papiro de Ebers, egípcio,
Adão, o que teria dado lugar à que já tinha 3500 anos, mas refere-se a
supremacia da mandrágora sobre os colectores com cerca de 5000 anos(2).
outros vegetais. É notória aqui a Galeno referia no séc. Il d. C. mais de
preponderância atribuída às raízes como 450 plantas medicinais e insiste na
local privilegiado das propriedades necessidade de possuir uma sólida
mágicas ou curativa das plantas(1). Aos bagagem de ervanário e de botânico.
olhos dos Antigos, este orgão participava Ficaram célebres a abadia de Monte
do elemento terroso e estava em situação Cassino entre Roma e Nápoles e os
intermédia entre os elementos, como ensinamentos médicos nela ministrados.
entre o vivo e o morto, o que conferia um O tratado Circa instans de 1150, enumera
estatuto e poderes particulares(2). Diz 229 drogas vegetais, com novidades da
Amato que Galeno é por muitos medicina árabe e que foi escrito em
desacreditado, lamentado, escalpeliza- Salerno. Alberto o Grande, que ensinava
do, e tido como mentiroso (Cura 72, II medicina em Paris, escreve o De
Cent. Pág. 130). Galeno e os médicos Vegetalibus e refere-se a Avicena (980-
definem Veneno e convém saber que 1037) e ao Canon da Medicina, vasta
este, quando penetra e permanece no enciclopédia médica, que só foi traduzida
organismo vence e corrompe este, para latim, no séc XII por Gérard de
actuando com toda a substância, como Crémone. Avicena de origem persa, de seu
o da víbora, etc. Define Medicamento nome d’ Ibn Sina, médico e filósofo do
venenoso aquele que pelas suas séc. XI, foi também traduzido para latim
propriedades ataca o organismo, como em 1473(2). A obra de Guillaume de Salicet,
a cicuta, a mandrágora, o ópio. Diz que cirurgião italiano do séc. XIII, fala na
o Alimento nutriente é aquele que op- primeira parte do seu livro, das doenças
era muito pouco sobre o organismo, mas exteriores do corpo de causa interna. Na
que se desfaz completamente, como o segunda parte, descreve as chagas e as
figado de galináceos e a carne das aves contusões nas partes moles. E, na terceira
de boa qualidade. Nutriente Medecina parte, intitulada algebra (da palavra árabe
é aquela que embora actue no organismo al-djabr) que siginifica restauração e que
pelas suas qualidades, é todavia deu no contexto das matemáticas o termo
assimilada muito bem, como os frutos. algebra e que se ocupa de fracturas e
Da Medecina refere que quando actua luxações.
27

Uma quarta parte é dedicada à anatomia(9). tanto nossas como dos vizinhos peninsulares.
A escola de medicina de Montpellier pôs sempre Descobertas há muito poucos anos, como João
em causa os conhecimentos médicos livrescos e Rodrigues por vezes lembra. Como por exemplo, o
beneficia do conhecimento das medicinas árabe e opobálsamo do Perú, trazido dessa terra ainda há
judia espanhola, da protoquimiatria árabe e com auxílio pouco descoberta(1). A II Centúria é escrita a partir de
da alquimia, suscitará desenvolvimentos 1 de Abril de 1551(1) (4). O Balsamo do Peru, refere-se
espectaculares. ao suco obtido do Myroxyglum pereirae Royle,
O primeiro jardim botânico é criado em Pádua, em leguminosa, oriunda deste país da América Sul. É
1545, em anexo à escola de Medicina da sua diurético e era empregue nos catarros da bexiga, na
Universidade. Jacques Le Goff não está de blenorragia, entre outros(8). Também a
acordo com Maximiano de Lemos. Este propósito de outra composição, a teriaga,
diz que João Rodrigues na sua ida para diz que terá cada um dos símplices que
Ferrara, em 1541, tem o ensejo de entram na sua composição, escolhidos
aprofundar os estudos botânicos, onde mesmo dos confins do mundo, não nos
existia, à época, um jardim com plantas poupando a despesas. Estas afirmações
de raridade extrema(3). Anterior portanto, dizem bem a sua largueza de vistas, sem
ao jardim botânico criado em Pádua, em hermetismos (C.55, II Cent.).
1545, em anexo à escola de Medicina, Outra ideia que nos parece importante
como sublinha Jacques Le Goff(2). é a mudança que se opera nos
Em 1593 é criado o primeiro jardim tratamentos, o que demonstra muita
botânico francês em Montpellier. experiência, estudo e reflexão.
Brunfels, em 1530, publica o Herbarium Na associação de plantas para a
vivae icone e Fuchs em 1542, publica a preparação de determinadas terapêuticas,
História observa-se a preocupação de sintetizar e
stirpium. todas elas, de maneira geral, têm poucos
Amato Lusitano tinha publicado o Index símplices, ao contrário do que sucedia na
Dioscorides em 1536, e em Florença Centúria inicial.
imprime-se a Primeira Centúria em 1551 e Demonstra também o cuidado e
a Segunda Centúria sai dos prelos de conhecimentos de quem utiliza plantas e
Veneza em 1552. As Enarrationes saem substâncias químicas, em utilizar doses
em 1553 e os Comentários de Mattioli, em com maiores diluições, reduzindo a
latim, saíram em 1554 e a 2° parte em 1558, potência dos fármacos, acentuando que
sendo nesta que ataca João Rodrigues, doses mais fracas atingem resultados
assunto conhecido e que Maximiano mais rápidos e melhores para os doentes.
Lemos e José Lopes Dias já Dos produtos usados que não eram de
escalpelizaram(3 e 4). origem vegetal, desde o chifre de veado
Só no séc. XVII em 1633, é instalado em queimado até ao rútilo, dão um conjunto
Paris, o Jardim real das plantas medicinais, de 60 unidades na II Centúria. Ficamos a
hoje Jardim das Plantas. Em 1636 o jardim saber que estes produtos cresceram em
tinha 1800 vegetais, mas em 1641 estes relação aos indicados na I Centúria,
seres vivos aumentaram para 2360. embora levemente.
3. Estudamos as plantas da citada Contudo, os produtos não vegetais das
Segunda Centúria de Curas Médicas e o duas primeiras Centúrias comparados
seu conjunto de plantas terapêuticas. com os vegetais dos mesmos livros, dão
Depois de ponderado o numeramento uma relação de 20% e 80%
chegamos a um somatório de 170 plantas respectivamente favorável portanto aos
novas e que não foram enunciadas na I Centúria. últimos.
Estas são fruto da nova terapêutica e apresentam o Os produtos da fauna doméstica são o rol que
acréscimo de conhecimentos do seu autor. Já tinha aumenta os não vegetais da II Centúria. E relembramos
empregue na I Centúria 281 plantas de que falamos que na I Centúria os vegetais atingem 84%(5).
no nosso trabalho apresentado nas V Jornadas. Assim 4. Parece-nos útil dizer quanto à tradução do Dr.
temos o total nas duas Centúrias iniciais, a indicação Firmino Crespo nos merece o maior respeito, mas
de 451 vegetais, o que consideramos notável. Esta não desdoura o seu trabalho se apresentarmos
produção equivale a uma vida profissional intensa, não algumas achegas botânicas que são necessárias.
nos esquecendo que isto se passava em meados do A propósito da C. 44, Il Centúria, pág 91, na tradução
séc. XVI e começam a aparecer nesta II Centúria as aparece Erva gnafália, chamada Formentícia, e depois
plantas das descobertas ocidentais, do Novo Mundo em nota de rodapé, põe os sinónimos Formentila e
28

Formentilha, servia esta erva para o tratamento da Na Cura 7, II Centúria Amato fala da Erva ajuga a
disenteria. Como estas ervas têm muitos nomes vul- Camefites. F. Crespo chamava-lhe, impropriamente
gares regionais, além dos botânicos, apresento o tema “Chamaepitys (fr. ive) (N. do T.)”. Existem a Ajuga
numa transparência que facilita a leitura. (Folha reptans L. = Ajuga ou Erva-Carocha, a A. ive (L.)
transparência com os Potentillas). Schreiber = Abiga ou ainda a A. chamaepitus (L.)
Amato não escapeliza a destrinça das espécies. A Schreiber = Erva crina a que Amato chama Camefites,
dificuldade reside na ligação da História à Ecologia como é fácil de perceber(7).
da Vegetação. Mas é sobretudo para chamar a Na Cura 81, II Centúria, há a preparação duma
atenção, da necessidade de se usar um só nome vul- solução para possibilitar a um jovem obter filhos.
gar correspondente ao nome botânico das plantas, Aparece na tradução Eruca hortense. Mas não é
para evitar o caos. Estamos de acordo que de cada Eruca, mas sim Erica. E é E. cinerea L. da qual se
planta se eleja o nome vulgar actual mais usado a aproveitam as sumidades floridas. Da família das
nível nacional e que se leve em conta, se possível, as Ericáceas há ainda a E. australis L. conhecida em
designações dos países latinos para facilitar o vernáculo por Chamiça ou Urgeira (na Beira Baixa,
entendimento dos vegetais. Amato fala da água de em Vila Velha de Rodão há uma grande propriedade
gnafálio, donde se faz um vinho cozido contra a com este nome) e ainda a E. ciliaris L. de nome vul-
disenteria que Dioscórides muito elogia no seu livro gar Carapaça. Inclinamo-nos para pensar que a Erica
3° da Matéria Médica. empregue por Amato fosse a E. cinerea L.. Porém
não nos admirava que as outras espécies pudessem
(Cura 44, II Centúria) Tratamento da Desinteria ser empregues no mesmo sentido(7).
Ainda nesta C. 81, da II Centúria, F. Crespo fala de
FAM.ROSÁCEAS raízes de iríngio para excitar o impulso de Vénus, na
Nome Botânico Nomes vulgares sua tradução. Não é Iríngio mas sim Eryngium
campestre L., um afrodisíaco conhecido no vulgo por
Potentilla erecta (L) SETE-EM-RAMA Cardo corredor. Há ainda o Cardo marítimo = E.
Rãuschel TOMENTINA maritimum L. e ainda a Cardete = E. tenue Lam.:
(rizoma) TORMENTILHA Todos são da Família das Umbelíferas(7).
TURMENTILA A C.81 da II Centúria, fala do almíscar doce, da sua
TORMENTILA confeição, e se destina a afrodisíaco e João Rodrigues
ERVA GNAFÁLIA (A.) chama-lhe diamischos, segundo F. Crespo.
TORMENTÍCIA (A.) Conse-guimos chegar ao nome botânico que é o
TOMENTO (A.) Erodium moschatum (L.) L’Her. da Fam. das
Geraniaceas. Hoje chama-se Agulheira-moscada ou
Potentilla reptans L. CINCO-EM-RAMA Agulha-de-pastor-moscada, a Almiscareira, o Bico-de-
POTENTILA -cegonha-moscado, Bico-de-grou-moscado e ainda
POTENTILHA Erva-de-alfinete. Reparem que designações diferentes
QUINQUIFÓLIO dão ideia clara da planta. Entre nós aparece com
TORMENTILA (A.) relativa facilidade. E. malacoides (L.) L’Her. é outra
espécie conhecida por Maria-fia, Erva-garfo, a Marioila
Potentilla ausexina L. ou finalmente a Planta-de-garfos. A E. cicutarium (L.)
(planta florida) L’Her, é outra espécie conhecida pelo Bico-de-cegonha
e também por Repimpim.
(A.) - Designação de Amato Lusitano Para finalizar na Cura 81, Centúria II, F. Crespo
traduz o Cardamomo da Cardamine hirsuta L., no vulgo
Na C.73 II Centúria, o tradutor fala em Coshiarum e Agrião-Menor ou Cardamina-pilosa. A outra C.
em rodapé diz: “Será antes cochlearum? (N. do T.)”. pratensis L. é o Agrião-Menor ou Cardamina, a
Há de facto duas espécies: A Cochlearia officinalis Cardamina dos Prados ou a Enxadreia. São da Família
L.= coclearia, da qual se utiliza a planta florida. das Crucíferas. Mas na Cura 1, II Centúria, pág. 16,
Aparece ainda a C. officinalis subsp.officinalis L. fala-se de dois cardamomos. Donde concluímos que
conhecida por Cocleária ou Erva das colheres, que Amato já conhecia as duas Cardaminas.
os espanhóis também indicam. Temos ainda a C. Na C. 98, Centúria II, fala de um remédio à base da
armoracia L. = Rábano silvestre do qual se utilizam raíz de énula campana verde, para fazer face à
as raízes. Hoje em dia emprega-se para debelar as incomoda sarna crostosa. Junta num ungento de
úlceras. É esta espécie rica em Vitamina C, banha de porco com a raíz e diz que tem admiráveis
nomeadamente nas suas folhas. virtudes, a ponto de dizer que a sua acção mais
Amato empregava as pílulas de Coclearia no parece obra de bruxedo(1). Esta planta da família das
tratamento de uma chaga crostosa(6). Compostas, além do nome vulgar Énula é conhecida
29

ainda hoje, entre nós, por Énula-campana, é também altura João Rodrigues tinha 11 anos. Na Cura 39, II
em espanhol, em catalão e em italiano, no francês Centúria, menciona uma rapariga de Esgueira, a nove
por Inule-aunée, que é a Inula helenium L..Tem flores léguas de Coimbra, a quem chama cidade ilustre de
amarelas e os frutos são aquénios, é utilizado como Portugal. Diz que a rapariga de Esgueira era fidalga e
expectorante e antiespasmódica, serve para a falta que passou de Maria Pacheca a Manuel Pacheco.
de apetite e para as desordens estomacais e Amato pensa que ele ficou sempre imberbe.
intestinais e para a bronquite. Vegeta ainda a I. É bem conhecido o seu trajecto europeu por isso
crithmoides L. conhecida vulgarmente por Campana- não me refiro ao seu périplo pelas grandes cidades
da-praia ou Madomeira-bastarda. europeias da época renascentista.
Na pág. 98 turbith, está mal escrita, não deve ter o Na Cura 39 II Centúria, diz Amato: “Eu próprio vi em
h final. África”. Esteve naquele continente, não se referindo
5. Na Cura 95, Centúria II, que no rótulo tem “Do ao ponto geográfico ou áreas geográficas.
Cuidado A Haver No Tratamento Do Pano Ou Tremor
Inguinal E O Que É O Pau-Deguáiaco, Que Entre Nós B. ACHEGAS PARA O ESTUDO DE ECOLOGIA
Nasce Com o Nome de Buxo”. Em seguida diz que o DA VEGETAÇÃO DA BEIRA INTERIOR
pau de guaiaco trazido das ilhas recentemente
descobertas é o mesmo que os europeus chamam 1. Já referimos na primeira parte as ligações
buxo, como se torna evidente a quem confirmar(1). A importantes das diferentes culturas e que foram
identidade referia-se aos tratamentos pois as plantas enriquecendo a medecina e as outras ciências afins,
são ecologicamente muito diferentes. O guaiaco ou com os tratados publicados em edições renovadas e
pau-santo, é o Guaiacum officinale L. da Família das as traduções, que alargaram os conhecimentos
Rutáceas. Árvore das ilhas da Jamaica, de Cuba, de científicos. Assim como a indicação dos herbários e
S. Domingos e das Bahamas. Empregue na síflis, dos jardins botânicos tão importantes para o
nas afecções cutaneas, nas dores reumáticas, na alargamento dos conhecimentos das plantas. Amato
gota e nas escrófulas, etc. A decocção leva 50 g de foi aprofundando os seus conhecimentos de plantas
guaiaco, água e ferve numa hora, para obter um quilo desde os árabes aos chineses, apanhando as do
de cozimento, coa-se e depois de depor decanta-se(15). Índico e do Pacífico. As descobertas a Ocidente vão
O Buxo, o Buxus sempervirens L., da Família das abrir ainda mais o conhecimento de novas plantas
Buxáceas, da qual se praticam as folhas, as medicinais, aromáticas e comestíveis. A II Centúria
sumidades floridas e as raízes, como fazia Amato. O dá fé das muitas plantas novas das terras descobertas
buxo é arbusto ou pequena árvore, geralmente com 1 há pouco tempo. Vê-se a grande evolução que João
a 5 m. de altura. As folhas são opostas, inteiras e Rodrigues realizou. Sente-se que cada planta sua
glabras, a flor é branca esverdeada. Os frutos são conhecida foi experimentada e o aproveitamento que
cápsulas ovóides. Aparecem nos brejos calcários e faria de uma certa área das mesmas se foi alargando,
seus bosques. É marcadamente mediterrânica e está passando das folhas para as sumidades florais e
representada em Portugal. Tem como primos a buxina, destas para as raízes ou vice-versa. Amato Lusitano
alcalóides secundários, vitamina C, tanino e óleo foi um biólogo porque tratou dos seres vivos. A maneira
essencial. Como utilização actual, estimula a inteligente como percebeu que muitas plantas tinham
transpiração, alivia a febre e serve como laxante. Usa- nomes diferentes em diversas origens. Não havia uma
se para as infecções, a epilepsia, a malária, na calvície classificação sistemática. Quando se pronuncia nas
e no reumatismo(6). citações de plantas, atribui geralmente dois nomes à
6. Quanto ao conhecimento geográfico das plantas, mesma planta, como mais tarde foram classificados
fala da Erva dos Passarinhos (herban passerculorum) por Lineu com o Género em primeiro lugar e a Espécie
em Nisa e Castelo Branco, nas muralhas do castelo. de seguida. Só que Amato nos dois nomes que aplica
Indica as faldas de Serra da Gardunha para designar não os liga sistematicamente. As descrições
plantas. Fala nos nabos enormes do Sabugal deliciosas de muitas plantas de origens diferentes
possivelmente a caminho de Salamanca onde estudou. percebendo e afirmando que os climas não podem
De Herrera de Alcantara e das pepitas de ouro que dar a mesma cópia do ser vivo vegetal.
apareciam no rio Tejo e que muitas vezes empregava A noção de espécie, por vezes, ainda não era clara
no seu receituário. na sua destrinça, sobretudo quando as mesmas eram
Cita Almeirim, Santarém, Alcobaça, Pederneira, mais sofisticadas.
Oeiras e Lisboa. De Abrantes cita os melões moscatel O Conhecimento do meio era necessário para fazer
de cheiro. Cita Setúbal e Alcácer do Sal e de Extremoz as combinações de plantas que utilizava na sua
fala da água de medronho. Fala de Évora, a propósito terapêutica. Assim pode-se perceber que a relação
de Pierre Brissot, sábio botânico que percorreu a entre a vida vegetal e o meio terrestre não tinham
Península Ibérica a estudar as plantas medicinais, segredos para Amato, haja em vista as áreas
por volta de 1518 e que veio a falecer em 1522. Nesta geográficas que indica nos seus trabalhos, o que
30

permite considerá-lo um homem que abordou a Há pouco mais de um mês morreu o Prof. Dr. Abílio
Geobotânica “avant Ia lettre”, o que é o mesmo que Fernandes (94.I0.07) antigo director do Jardim
falar de Ecologia da Vegetação seu sinónimo. Botânico e Prof. Catedrático da Faculdade de Ciências
Foi proveitoso para a nossa percepção destes e Tecnologia da Universidade de Coimbra. Contava 88
grandes Mestres, nomeadamente Amato Lusitano e anos. Estudou os Narcisos tanto o rupícola como o
Garcia de Orta, com o estudo das plantas aromáticas, triandrus que não chegou a encontrar na Serra da
das medecinais e condimentares, e que devido à Estrela. Falou do N. confusus muito raro na Serra da
persistência e ao aproximar da base científica destas Estrela. O N. triandrus subsp. pallidulus (Graells)
plantas, que interessavam os homens de ontem mas D.A. Webb confundindo com a subsp. triandrus e
que interessam muito os actuais. Em área de facto era necessário esclarecer a distribuição
Geobotânica, como nos ensinou Amato, destes dois taxa, este último aparece em
a importância da nossa região das faldas Valhelhas (a 521 m.) e na Quinta do
da Serra da Gardunha, da Serra da Prado (acima dos 800 m.) perto da
Estrela que ele conhecia muito bem Guarda.
como já abordamos o ano passado(5). O N. asturiensis (Jordan) Pugsley, da
Aproveitamos a ocasião para falarmos Estrela, das Serras Montesinho, Gerês,
duma planta rara das faldas da Gardunha das Astúrias espanholas e nas serras do
que aparece nas orlas dos cerejais, noroeste. Tivemos ocasião de observar
acima dos 600 m, pertencendo ao este narciso, este ano, entre Oviedo e
domínio do Carvalhal do Quercus Gijon. Estamos plenamente de acordo
pyrenaica. Espécie pelo Anexo II da que se chame a este narciso, Narcisus
Directiva 92/43/CEE, considerada nardeti A. Fernandes ao narciso
prioritária dada a sua distribuição tetraploide (14+14 cromossomas) = 28
geográfica a nível mundial. Aparece só que com o decorrer do tempo se torna
nas freguesias de Alcongosta e do estável. Além destes estudos, felizmente,
Alcaide, com flores brancas ou rosadas, vamos ter trabalhos dentro da Ecologia
numerosas e dispostas num cacho da Vegetação, levados a cabo no parque
denso ou em panícula. O Asphodelus Natural da Serra da Estrela e aqueles
bento-rainhae P. Silva. é uma planta que a Codicor dedica na região de
da Família das Liliáceas. Foi descoberta Cortes.(13)
pelo grande botânico P. Silva e pelo seu Além destas regiões da Gardunha e
colector Bento Rainha que trabalhava estrelense, Amato também nos ensinou
com aquele botânico. Quem estuda esta a importância da região dos salgados de
Abrótea são os Engenheiros C. J. Pinto Salamanca. Assim como a taxa leonês
Gomes, professor em Évora e ligado muito ligado a Trás-os-Montes, nomeada-
familiarmente à nossa terra e as Colegas mente às Serras de Montesinho e
Sofia Castel Branco da Silveira e Paula Nogueira, extremidade de um sistema
Gonçalves na Reserva Natural da montanhoso descontínuo que se inicia
Malcata. Os frutos são cápsulas com 5- nos Pirinéus e se prolonga pelos Montes
7 mm, mitriformes, com rugas trans- Cantábricos, Montes Aquilianos, Montes
versais na deiscência. Este endemismo de Leon e Serra de Sanábria. Facto, aliás
faz parte de um trabalho desenvolvido no reconhecido, na carta Fitogeográfica de
âmbito do projecto (I.C.N.-Life) de Portugal de Franco (1984).(11)
Espécies Ameaçadas da Flora a Ainda na Beira Interior e nomeadamente
Proteger.(10) no concelho de Penamacor segue o
Em relação à arca estrelense, Amato “Estudo das Comunidades Vegetais da
fala do Rapôntico, ou melhor, a tradução Reserva Natural da Serra da Malcata”.
(12)
deveria ser rapôncio ou rapúncio a
Campainha-rabanete ou Espera- A Sul e com grandes afinidades com
do-Campo, cujo nome botânico é a Campanula áreas nossas da região ribeirinha do Tejo temos a
rapunculus L.da Família das Campanuláceas, planta flora alentejana. Do norte alentejano, nomeadamente
comestível actualmente. Amato fala dele para os os estudos de Malato-Beliz, Pinto Gomes, de
disentéricos. É também endemismo da nossa Serra Escudero e Lavado-Contador, no Parque Natural de
de Estrela a Campanula herminii, de flor anil. Já São Mamede, no distrito de Portalegre e servindo de
tinhamos falado da Genciana lutea, a argençana- fronteira com a Extremadura espanhola.
dos-pastores raríssima e também em perigo de As alergias médicas e a Ecologia da Vegetação.
extinção(5). Cinco anos de estudo em Évora (1989-1993) dão uma
31

panorâmica destes estudos no Alentejo médio. 5. LOPES DIAS, Manuel (1993), Estudo da Primeira
A análise estatística indicou que as rinites alérgicas Centúria de Amato Lusitano. O uso das plantas,
atraem em 54,3% dos casos que a Oleae e a Poaceae imagens de aromáticas da região da Serra da Estrela
são bastantes para a sintomalogia em Évora. Bastou e abordagem da sua composição florística. V Jornadas
o exame de 119 pacientes, com testes da pele e ver de Estudo da Medicina da Beira Interior, C. Branco.
os casos em que são positivos. As conclusões à 6. LAUNERT, Edmund (1982), Guia de Ias Plantas
medida que se fazem o estudo de muitos casos Medicinales y Comestibles de Espanã y de Europa,
facilitam a análise dos mesmos(14). Ed. Omega S. A., Barcelona.
Do lado espanhol e desde a nossa fronteira política 7. ROCHA, Fátima (1979), Nomes Vulgares de
acima do Tejo, trabalhos sobre a direcção do Prof. Algumas Infestantes e Respectivo Nome Botânico,
Doutor Ladero Alvarez, têm levado a cabo uma M.A.P, S.E.F. Agrário, D. G. Prot. da Prod. Agrícola,
cartografia de Ecologia da Vegetação, trabalho da Oeiras.
maior utilidade. 8. CHERNOVIZ, Pedro L.N. (1904), Formulário e
As Plantas ensinam as pessoas, nunca tiveram Guia Médico, 17° Ed Liv. de A.Roger e F. Chernoviz,
tonteiras políticas, só aceitam as naturais que são Paris.
sempre ténues. 9. JACQUART, Danielle (1994), Les Grands
Amato Lusitano estava de acordo com elas. Principes de Ia Medicine Médiévale, Les Cahiers de
Science e Vie, Ambroise Paré, nº 19, Fev. 1994, Paris.
* Engenheiro Agrónomo 10. PINTO GOMES, C. J., S. C. Silveira, P.C.C.
Gonçalves (1994), A Distribuição Geográfica e a
Ecologia do Asphodelus bento rainhae P.Silva, Painel
C.13, Colóquio Internacional de Ecologia de
Vegetação, Universidadede Évora 27-28. Outubro 1994.
Évora.
11. AGUIAR, Carlos, CARVALHO, Ana Maria (1994),
Flora Leonesa das Serras de Nogueira e Montesinho,
Painel C.19. Col. Int. de Ecologia de Vegetação,
Bibliografia Universidade Evora, 27-28, Outubro 1994, Evora.
12. REGO, Francisco Castro, GONÇALVES, P.C.C.,
Silveira S. C. da, Lousã, M. Fernandes (1994), Estudos
1. LUSITANO, Amato (1551), Centúrias de Curas das Comunidades Vegetais da Reserva Natural da
Médicas, Volume II, Tradução de Firmino Crespo, Univ. Serra da Malcata, Painel C.1., Colóquio Internacional
Nova Lisboa, Faculdade de Ciências Médicas, Lisboa, de Ecologia de Vegetação, Universidade Évora,
1980. Outubro, 1994.
2. LE GOFF, Jacques (1991), As Doenças têm 13. CODICOR, Ervanária (sem data), Cooperativa
história, Ed. Terramar, Lisboa. de Desenvolvimento Integrado de Cortes, Cortes do
3. LEMOS, Maximiano (1899), História da Medicina Meio.
em Portugal, Doutrinas e Instituições, Vols. I e II, 14. BRANDÃO, R. M., Lopes, M. Luisa (1994) Plants
Manuel Gomes, Edit.Livreiros de Sua Magestade e Ecology and Medicine of Allergies: A 5-Year Study In
Altezas, R. Garret (Chiado), 70-72, Lisboa. Evora (1989-1993), Painel B 12° Colóquio Internacional
4. LOPES DIAS, José (1971), Biografia de Amato de Ecologia da Vegetação. Universidade Évora, (Hos-
Lusitano e Outros Ensaios Amatianos. Separata de pital Distrital Évora). Outubro 1994, Évora.
Estudos de Castelo Branco, Rev. História e Cultura, 15. RASTEIRO, Prof. Dr. Alfredo (1992) Medicina e
Academia Portuguesa de História. Descobrimentos, Liv. Almedina, Coimbra.
32

TUBERCULOSE E IDADES DO HOMEM - A SERRA DA ESTRELA


NA VIDA, NA OBRA E NA MORTE DE SOUSA MARTINS

por Maria Adelaide Neto Salvado*

«A sua enfermaria no Hospital de S. José era uma Embora não se restringindo a idades específicas
romagem: não podia haver clínica mais douta nem nem respeitando hierarquias sociais, a tísica, como
mais sugestiva. era chamada na época, tinha no entanto uma
(...) falharia a cura por impotência, mas não a predilecção especial por duas idades do Homem: a
devoção do alivio, a consolação dos aflitos.» adolescência e a juventude plena.
Ricardo Jorge (Discurso proferido na sessão de Dois grandes poetas portugueses desse século XIX,
abertura da Sociedade de Medicina e Cirurgia do António Nobre e Cesário Verde - eles próprios
Porto, em 8 de Novembro de 1817.) acabando vítimas da implacável doença, traduziram
de modo pungente esta cruel predilecção de idades.
Tempos açoitados por mutações sociais profundas Assim retratou António Nobre o lento desvanecer
que arrastaram guerras e fomes, violência e revoltas, da chama da Vida de uma adolescente tuberculosa:
varreram Portugal durante o século XIX.
(...)
Sarar? Da cor dos alvos linhos
Parecem fusos seus dedinhos,
Seu corpo é roca de fiar...
E, ao ouvir-lhe a tosse seca e fina,
Eu julgo ouvir numa oficina,
Tábuas do seu caixão pregar!

Sarar? Magrita como o junco,


O seu nariz (que é grego e adunco)
Começa aos poucos de afilar,
Seus olhos lançam ígneas chamas;
Ó pobre Mãe, que tanto a amas,
Cautela! O Outono está a chegar...(1)
Leça, 1889

A crueldade da súbita extinção da vida em plena e


prometedora Juventude foi retratada deste modo por
Cesário Verde:

Pior que a devastação da guerra e a profunda Tinhamos nós voltado à capital maldita,
instabilidade política e económica foi, no entanto, a (...)
sombra ameaçadora que a tuberculose pulmonar Quando nos sucedeu uma cruel desdita,
lançou nesse século à escala planetária. Pois um de nós caiu, de súbito, doente.
Em mais de 3 milhões de pessoas orçou, segundo
as estatísticas da época, o número estimado de Uma tuberculose abria-lhe cavernas!
vítimas ceifadas anualmente por esta doença no Dá-me rebate ainda o seu tossir profundo!
mundo de então. (...)
Tendo em conta condicionalismos vários que se
prendiam com a incipiência e as lacunas dos serviços Pobre rapaz robusto e cheio de futuro!
estatísticos nos começos do século XIX, alcançou, Não sei dum infortúnio imenso como o seu!
por certo, valor significativamente muitíssimo mais Viu o seu fim chegar como um medonho muro,
elevado o número de mortes que esta doença E, sem querer, aflito e atónito, morreu!(2)
provocava. Considerado o maior especialista em tísica pulmonar
33

da sua época e uma das personalidades mais na fundamentação com que a Sociedade justifica o
fascinantes e cultas do seu tempo, José Thomaz de seu apoio à Expedição Portuguesa ao interior da África
Sousa Martins traduziu deste modo aquilo que ele Austral, empreendida por Silva Pinto, Roberto Ivens c
chamou de “cruel predilecção” da tuberculose pela Hermenegildo Capelo (1877-1879). Nela se declara
puberdade e idade viril: explicitamente que a Expedição Científica ao grande
“ ... a implacável moléstia rouba-nos anualmente sertã (africano se realiza na tentativa de encontrar
entre 12 a 15.000 vidas (...) meios que ajudem a solucionar ”os graves problemas
E vidas das mais úteis, porquanto a estatística das Ciências Geográficas e da economia comercial”.(5)
ensina, já desde o tempo de Hipócrates e Celso, que A Expedição Científica à Serra da Estrela, situada
a tísica pulmonar colhe o maior número de vítimas nos confins de uma região pobre e pouco atractiva,
nas idades que vão desde os 18 anos aos 35 anos”.(3) no Portugal profundo e real como agora se usa dizer,
Personalidade fascinante, clínico infatigável, surge pois como um desvio anómalo, como uma nota
eloquente e culto professor da Escola Médico- invulgar na costumeira actuação das Sociedades de
Cirurgíca de Lisboa, orador apaixonado (“com palavras Geografia Europeias.
de aço e palavras de oiro - aço que se faria lâmina Segundo S. A. Pereira, que acompanhou a
para ferir, oiro que se faria poalha para correr nas asas Expedição como representante e repórter do jornal
do vento, deslumbrado”(4), no dizer de António José Distrito da Guar-
de Almeida), - a sua ânsia de saber, a sua apaixonada da(6) e do jornal do
adesão às novas ideias que as descobertas de Pas- Porto Comércio
teur tinham trazido ao seio da Medicina, e o seu Português, a ideia
profundo entusiasmo pela nova ordem que norteava primeira da Expe-
na Europa a tentativa de cura da tuberculose, ligaram dição Científica à
até ao fim da vida José Thomaz de Sousa Martins a Estrela ficou a
esta região da Beira Interior. dever-se a Sousa
Martins. Daí ter o
Sousa Martins e a 1ª Expedição Científica à médico Sousa
Serra da Estrela Martins partilhado
com Hermenegildo
A Serra da Estrela exerceu sobre ele um longo e Capelo, explora-
perdurante fascínio. dor e geógrafo de
Na Europa de então, eram as montanhas o Eldorado renome, o presti-
dos tísicos. O tratamento pelo ar rarefeito das grandes gioso lugar de Pre-
altitudes constituia a nova ordem terapêutica em sidente da Comis-
matéria de tuberculose pulmonar. são administrativa
Foi na adesão a estes novos ventos que a da Expedição
curiosidade científica e o entusiasmo contagiante de Científica a uma Carlos
Sousa Martins se transformaram na mola região pouco Tavares,
impulsionadora da Expedição Científica à Serra da conhecida do interior português. Sousa
Estrela, organizada pela Sociedade de Geografia de “Aos literatos falava literatura; aos negociantes, Martins e
Emídio
Lisboa, em Agosto de 1881. negócios; aos pensadores, de ideias e de problemas; Navarro na
Fundadas ao ritmo das políticas expansionistas dos aos affectivos, de ternura e de afectos”(7) - assim célebre
estados europeus, as Sociedades de Geografia explica Fialho de Almeida, em carta a Casimiro José viagem à
privilegiavam como campo das suas investigaçãoes de Lima, o forte poder persuasivo de Sousa Martins. Estrela em
Agosto de
os países coloniais. Fornecer conhecimentos em Foi possivelmente esta força persuasiva contagiante,
1884
temáticas variadas que permitissem, quer aos aliada a uma invulgar comunicabilidade e eloquência,
governos quer a uma burguesia endinheirada, que ajudou Sousa Martins a convencer a Sociedade
intercâmbios comerciais vultuosos, alicerçados na de Geografia de Lisboa a lançar-se na Expedição à
exploração de matérias primas e fontes energéticas Serra da Estrela, desviando-a do rumo normal do seu
lucrativas, na instalação de mercados de escoamento campo de investigação.
da produção industrial europeia, era a verdadeira linha Intencionais razões científicas impeliam Sousa Mar-
que, a coberto do espírito de aventura e de fascínio tins para a Serra da Estrela e esse apelo da Serra
pelo exotismo, tão marcado nos valores do ajusta-se a uma faceta do carácter deste grande
Romantismo imperante na época, norteava a actuação médico que Miguel Bombarda em 1897 assim definiu
das Sociedades de Geografia pela Europa fora. “Pródigo de saber e pródigo de conquistas intelectuais,
A Sociedade de Geografia de Lisboa não fugia a durante trinta anos fez jorrar a flux mananciais de
esse vector de investigação colonial marcadamente ideias novas, de relações de teorias desenvolvidas.
economicista. Prova concludente desse facto ressalta Teorizador lhe chamam esses castos, que não
34

chegam a compreender que a medicina até na sua temáticas desde a Arqueologia à Botânica, da
prática, é forçada a recorrer a hipóteses que Geologia ao estudo da Hidrologia (temperatura e
estabeleçam relações, a assentar teorias que sejam densidade das águas das lagoas), das aptidões
a estrêla de orientação”.(8) agrícolas dos solos, às vantagens da instalação de
As razões do interesse de Sousa Martins pela um posto meteoro-lógico visando a construção na
Expedição Cientí-fica à Estre-la de
Estrela corro-boram, s a n a t ó r i o s
do meu ponto de vista, semelhantes aos
esta afirma-ção de que funcionavam
Miguel Bombar-da. com êxito nos Alpes
Esse interesse não foi suiços.
mais do que a busca Embora não expli-
do alicerçar de uma citado, constituía no
teoria que apaixonada- entanto este último
mente orientou a in- objectivo a razão fun-
vestigação científica do damental da Expedi-
grande médico: a cura ção. O jornalista
da tuberculose pulmo- Emídio Navarro as-
nar pelo ar rarefeito dos sim o declara no seu
climas de altitude. livro:
Numa bela passa- “A grande expedi-
gem da carta-prefácio ção à Serra da
que escreveu como Estrela em 1881
apre-sentação do livro de Emídio Navarro, “Quatro dias quasi que teve por fim principal, embora meio
na Serra da Estrela”, Sousa Martins explicita os efeitos disfarçado, uma inspecção à Serra, de modo a
terapêuticos do ar dos climas de altitude. Escreveu: colherem-se os esclarecimentos necessários para
“Figure o meu amigo um leque de panno, atacado aquela empresa”.(11)
pela traça. Se o leque se conservar por largas vezes Sousa Martins foi nomeado chefe da Secção de
fechado, o insecto vai fazendo muito Medecina, coadjuvado pelo Dr. Jacinto Augusto Me-
descansadamente o seu ninho por entre as dobras dina, facultativo do Hospital da Marinha e pelo Dr. José
do panno, certo de que nem os excessos de luz, nem António Serrano, professor da Escola Médico-Cirúrgica
os impetos do ar, nem os resfriamentos da atmosphera de Lisboa.
lhe darão cabo da prole; mas se uma vez, o Dividia-se em 2 sub-secções esta Secção de
abandonado leque fôr aberto a um permanente banho Medecina: sub-secção de Hydrologia - Minero Me-
atmosphérico, então nem a traça, nem a sua raça se dicinal, chefiada pelo Dr. Leonardo Manuel Leão da
sentirão à vontade(...). Costa Torres, e sub-secção de Ophtalmologia chefiada
Ou emigram ou morrem (...). Pois o leque é o pelo Dr. Francisco da Fonseca, Médico Oculista.
pulmão que em muitos sítios tem pregas. E a traça é No entanto, apesar destas duas sub-secções, o
o micróbio da tísica, ao qual, um ar puro, quasi seco, grande propósito da secção de Medicina da Expedição
rarefeito e de temperatura pouco variável e pouco foi - afirmou-o Emídio Navarro:
elevada causa maior dannos do que S. Tiago causou “Estudar a applicação das excepcionais altitudes
aos moiros...”(9) d’essa serra ao tratamento de certas doenças
Era pois a comprovação científica da existência na pulmonares”.(12)
Estrela deste clima de temperaturas pouco elevadas A Sousa Martins coube a elaboração de todo o
e de fracas amplitudes térmicas diurnas e anuais, que programa da secção de Medicina da Expedição.
atraía Sousa Martins para a Estrela. A sub-secção de Hydrologia Minero Medicinal,
Em uma outra passagem do livro de Emídio Navarro, competia a “análise das águas thermaes de Manteigas
o grande médico clarifica de um outro modo os efeitos e Unhais da Serra”.
benéficos desses ares serranos: O sumário do relatório entregue à Comissão
“Rarefeito o ar dilata o pulmão e assim evita os Administrativa em 25 de Agosto de 1882 dá-nos conta
ninhos de productos morbidos; uniformiza a circulação dos trabalhos realizados por esta sub-secção. Síntese
respiratória e dessa arte contraria as tendências daquilo que se conhecia acerca das duas nascentes
congestivas e exudativas, tão nefastas aos tísicos”.(10) termais, estudo químico das águas, levantamento do
Em Agosto de 1881, a Sociedade de Geografia estado das nascentes e comprovação de uma
realiza a sua Expedição Científica à Estrela. Possuia sentença popular, vulgar, na época, na região da Beira:
ela um cariz marcadamente multidisciplinar, “Caldas de Manteigas para os rheumatismos,
abrangendo um leque variado de ciências e de banhos de Unhaes para os dermatosos”(13)
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O Dr. Leonardo Manuel da Costa Torres apresenta A beleza esmagadora e agreste de várias regiões
no final esta conclusão: da Serra, as dificuldades da subida de certos
“Careciam de reconhecimento analytico as águas penhascos, o fascínio mágico das lagoas, a
thermaes de Manteigas e Unhais da Serra. Fiz-lhes singularidade de determinados aspectos geológicos,
esse reconhecimento indispensável e o primeiro, e os efeitos da diminuição da pressão no organismo
d’elle resultou a sua classificação que é esta: águas destes homens da cidade, são alguns dos aspectos
thermaes alcalinas silico - sulplureas”.(14) que este livro faz renascer magicamente.
O programa de estudo da sub-secção de Mas nele, com uma força quase assombrosa,
Ophtalmologia consta do relatório que o Dr. Francisco ressalta a personalidade empenhada de um homem
Lourenço da Fonseca Junior entregou à Secretaria da em busca da concretização de um sonho: a de Sousa
Comissão Administrativa da Expedição datado de 28 Martins.
de Fevereiro de 1882. Os registos realizados no observatório
Um aspecto interessa relevar neste relatório: o que meteorológico fundado pelo Governo no Poio Negro
se prende com a mentalidade das gentes da região (em Fevereiro de 1882) a pedido da Sociedade de
serrana nos finais do século passado. A natural Geografia, tinham comprovado como Sousa Martins
desconfiança das populações analfabetas e isoladas supusera, a existência nesse local de excelentes
nestes confins do mundo, soube ser contornada de condições (de temperatura e humidade) favoráveis à
modo hábil, facto que espanta e confere uma dimensão cura da tuberculose pulmonar. Apenas um elemento
profunda ao trabalho desta sub-secção. A actuação negativo se registava nesse local: a predominância
destes médicos citadinos do século passado de fortes ventanias de quadrante de Noroeste.
sobressai pela sua consonância, com os princípios Foi a busca de outros locais, entre as altitudes de
que devem nortear os trabalhos de campo de um 1500 a 1800 m, possuindo iguais condições de
investigador em Ciências Sociais dos nossos dias. temperatura e humidade, mas mais abrigados desses
Assim relata o Dr. Francisco Junior o modo como ventos, que determinou a vinda de Sousa Martins à
procederam na recolha de material para o segundo Serra, no verão de 1884.
ponto do programa, designado por Pathologia Geral A escolha recaiu no Valle do Conde (1.700 m), en-
Ocular. tre dois outros lugares analisados: Corgo das Mós
“Tivemos de recorrer ao estratagema de charlatães (1600 m) e Santinha (1.500 m), local que num primeiro
de feira: necessitámos de, dias antes de nos relance pareceu a Sousa Martins reunir as condições
installarmos n’uma localidade, fazermos annunciar a mais favoráveis para a instalação de um futuro
próxima chegada de um médico oculista da capital, Sanatório.
que punha gratuitamente o seu préstimo ao serviço O aspecto do coberto vegetal guiou Sousa Martins
da humanidade enferma. Foi assim, graças a tal na escolha destes três locais.
expediente, que em Manteigas só n’uma tarde, fomos A existência de abundante vegetação,
procurados por 41 doentes da villa e suas principalmente arbustiva e herbácea, era indiciadora
circunvizinhanças”(15). de um local naturalmente abrigado de ventanias fortes.
Constituia, respectivamente, primeiro e terceiro Por razões que se prendiam com uma mais fácil
pontos do programa desta subsecção, o encontro das acessibilidade (proximidade de Manteigas e do
respostas às seguintes interrogações: observatório) era no entanto o Corgo das Mós o local
“1° - A diminuição da pressão atmospherica, pela que, numa fase mais imediata, apresentava maiores
altitude, exerce alguma influencia immediata sobre a facilidades para a construção de um Sanatório.
função visual? Com o intuito de reforçar as naturais condições de
3° - Qual a therapeutica indigena das doenças do abrigo desse local, Sousa Martins solicitou à Câmara
apparelho ocular?” de Manteigas o plantio, aí, de duzentas árvores.
A Expedição, inicialmente pensada como plurianual, Precursor da arborização da Serra foi, pois, este
acabou por se restringir a uma única viagem. médico genial de finais do século passado.
Mas Sousa Martins retorna à Serra em Agosto de A escolha criteriosa de coníferas, espécie melhor
1884, e, durante quatro dias na companhia de Carlos adaptada à altitude do local e menos propícia a uma
Tavares, professor da Escola Médico-Cirúrgica de alteração climática no sentido de um aumento de
Lisboa, médico do Paço (grande amigo do rei D. humidade, dá a dimensão da visão interdisciplinar e
Carlos) e do Jornalista Emídio Navarro, volta a do rigor científico que norteava a actuação de Sousa
percorrer os tortuosos caminhos da Serra. Martins.
Pela magia da escrita saída da pena de Emídio Mas uma outra razão motivou este seu retorno à
Navarro, com uma elegância de estilo que fez dele Serra em 1884: a visita a Alfredo César Henriques, o
um dos grandes jornalistas do seu tempo, perpassam primeiro doente tuberculoso que a conselho do próprio
ante os nossos olhos esses quatro dias vividos por Sousa Martins procurou nas altitudes da Estrela uma
Sousa Martins na Serra da Estrela em Agosto de 1884. via de cura. Este jovem, e cito as próprias palavras de
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Sousa Martins, anos mais tarde: “Se animou a ir, época praticada além fronteiras, deveriam ser nela
...iniciar a série de casos clínicos que houvessem de incluídas - eram, entre outros, alguns dos entraves
definir, pelo lado de observação médica, o valor que impossibilitavam em finais do século XIX qualquer
therapeutico de tal clima”(16). estudo fundamentado com base na Estatística Oficial
acerca da real incidência no nosso país quer da
O Clima de Altitude da Serra da Estrela e o tuberculose pulmonar, quer de qualquer outra doença.
Grande Sonho de Sousa Martins A metodologia que Sousa Martins utiliza na análise
dos dados fornecidos pela Estatística Oficial das três
Mas é num livro que Sousa Martins publica em 1890, cidades Lisboa, Porto e Coimbra, conferem a este
“A Tuberculose Pulmonar e o clima de altitude da Serra pequeno ensaio um notável rigor científico e uma
da Estrela”, que a sua ligação à Serra ressalta de invulgar modernidade.
forma marcadamente evidente. Partindo para cada uma das cidades da realidade
Encontram-se, neste pequeno ensaio, concreta do seu espaço físico e social, Sousa Mar-
materializados aspectos vários da brilhante e tins faz um levantamento de factores específicos reais
multifacetada personalidade deste médico. indutores de erro. A avaliação do impacte desses
Para além da sua “arte de expor com nitidez factores permitiu a Sousa Martins realizar estimativas
profissional”(17), dote que Teófilo Braga apontou como para Lisboa e Porto com menores margens de erro e,
traço notável da sua personalidade, que aqui se deste modo traçar um quadro mais aproximado da
evidencia em cada linha, este ensaio é prova evidente verdadeira realidade da situação da tuberculose
de uma postura que muitos dos que com ele de perto pulmonar no Portugal do seu tempo.
privaram são unânimes em referir: a sua imensa Quanto a Coimbra, embora ciente da imensa
receptividade às inovações, a sua inflamada febre de fragilidade que os dados da Estatística coimbrã
saber, a profundidade dos seus conhecimentos apresentavam, Sousa Martins utiliza-os sem qualquer
científicos e sobretudo a força contagiante do seu correcção.
entusiasmo na concretização de uma ideia que lhe As razões dessa atitude foram por ele apontadas
norteava a investigação e a vida. com precisão.
Mas, a par destes aspectos, ressaltam neste ensaio Entre os factores indutores de erro, no caso de
muitos outros não menos importantes: objectividade Coimbra, contava-se o modo como os dados eram
crítica, clareza, simplicidade e rigor na exposição de colhidos. Relativamente ao cálculo da mortalidade,
ideias científicas. os dados apresentados pela estatística diziam respeito
A objectividade crítica evidencia-se no modo como somente a enterramentos no cemitério municipal e
analisa uma diversidade de factos: dados da estatística abrangiam cinco freguesias (quatro da cidade e uma,
da época, inoperância do Governo em matéria de considerada na época como suburbana: Santa Clara).
Saúde Pública, estagnação de alguns médicos do seu Sousa Martins evidencia como um dos factores de
tempo manifestada quer na vinculação a ideias há imprecisão o modo como era calculado o número de
muito ultrapassadas, quer na falta de visão dos óbitos ocorridos dentro da cidade, visto serem eles
caminhos interdisciplinares que a Medicina, como diminuidos aos números de enterramentos feitos no
qualquer outra Ciência que toca o Homem, deve cemitério de Santo António dos Olivais, que não
percorrer. possuia na época registo oficial.
Modelar é a sua reflexão crítica às fontes Mas um outro factor, aquele que Sousa Martins
estatísticas. Estatísticas necrológicas incompletas, chamou de “condição especialíssima da população
pouco rigorosas e vagas que dificultam qualquer académica”(18) - o seu carácter flutuante, introduzia,
estudo fundamentado acerca da incidência de uma segundo ele, na Estatística coimbrã um duplo erro.
dada doença, contituiram a dura crítica apresentado Um deles (que António Nobre assim exprimiu:
por Sousa Martins. As causas dessa fragilidade são “Quando vem Junho eu deixo esta cidade/Batina,
apontadas com pertinência: modo pouco preciso como caes, tuberculoses céus” ...(19) prendia-se com o facto
a Estatística Geral realizava o apanhado das doenças de muitos estudantes que contraíam tuberculose em
(por aparelhos e sistemas orgânicos e não por Coimbra irem morrer no seio das suas famílias
espécies nosológicas); falta de obrigatoriedade, dispersas um pouco por todo o país. “Esses alliviarão
nalguns distritos, do certificado de óbito, que tornava a estatística” - escreveu Sousa Martins.
muda a estatística necrológica; ausência de Mas um outro aspecto da mesma realidade não
uniformidade na nomenclatura das doenças usada deveria, segundo Sousa Martins, ser menosprezado:
pelos diferentes clínicos; continuidade por parte de o daqueles que chegavam a Coimbra já portadores da
alguns médicos, no caso concreto da tuberculose tuberculose contraída algures por esse país fora e que
pulmonar, da vinculação à chamada escola dualista na cidade tinham o seu encontro com a Morte - esses
que excluía do grupo das tuberculoses pulmonares vinham sobrecarregar com óbitos a Estatística
muitas tísicas que, conforme dados da ciência da Coimbrã. Considerando estes erros como não
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passíveis de qualquer possível correcção, Sousa Mar- pequeno livro. Mas a estes aspectos outro se junta: a
tins, embora alertando para a fragilidade e imprecisão clareza com que Sousa Martins expõe a minimização
dos dados da Estatística de Coimbra, apresenta-os dos gastos na construção de infraestruturas
sem qualquer alteração. necessárias à valorização das riquezas climáticas da
Mas se a objectividade crítica é aspecto relevante Estrela. O pragmatismo com que aponta quais as
neste ensaio, não de menor importância são a infraestruturas essenciais que caberia ao governo
simplicidade e o rigor com que nele são expostas construir; o apelo aos investidores privados para a
ideias e teorias científicas. A correlação que Sousa construção, na Serra, de edifícios capazes de
Martins estabelece entre tuberculose e condições satisfazer as exigências da população doente de um
climáticas de um dado lugar é disso exemplo: estrato social elevado, - mostrando que a exploração
“Para uma determinada temperatura média, a desses edifícios poderia ser considerada uma
localidade em que as variações diurnas, semanais, verdadeira indústria, alicerçada numa garantida
mensais e anuais, forem menos amplas, será a clientela, constituida por todos os que não quisessem
menos propícia para o desenvolvimento da aventurar-se até à Suiça - são, entre outros, alguns
tuberculose”(20). exemplos. Nada esqueceu Sousa Martins. Nem as
O modo preciso como distingue clima de montanha medidas que o Estado poderia implementar no sentido
e clima de altitude, a correlação que estabelece entre de fomentar a atracção de capitais privados:
os factores latitude e altitude na localização das “Isenção de contribuições até período de 12 annos
regiões possuidoras dos saudáveis climas de altitude aos comerciantes e industriais que se quisessem
(os efeitos benéficos sobre o aparelho respiratório estabelecer nas altitudes de 1400 a 1800 m”(22).
provocados pelo abaixamento da pressão atmosférica São estes, entre muitos, os aspectos que conferem
com a altitude) são, do meu ponto de vista, belos a esta obra de Sousa Martins um conjunto de
exemplos que evidenciam a veracidade de um aspecto significativas virtualidades.
saliente nos testemunhos de muitos dos discípulos Na verdade, a argumentação inteligentemente
de Sousa Martins ou de amigos que com ele de perto fundamentada em que se alia uma reflexão profunda
privaram: a sua fabulosa capacidade de expor ideias acerca dos problemas reais a um conhecimento sério
científicas. das realidades locais dão a esta obra de Sousa Mar-
Assim, relativamente aos efeitos benéficos do tins qualidades que muitos dos actuais projectos de
abaixamento da pressão sobre o aparelho respiratório, desenvolvimento regional, para sacar subsídios
esclarece: europeus, estão longe de apresentar. Nunca tão
“(...) não só porque a defeciência do oxigénio em seriamente se pensou num desenvolvimento integral
pressão e em massa é nociva à vida de alguns das potencialidades da Serra da Estrela como Sousa
microorganismos que com o bacillo da tuberculose Martins o fez.
collaboram na destruição do pulmão e na infecção do Uma outra dimensão não esqueceu este médico
organismo nuns também porque a ampliação do tho- genial, esta demonstrativa do seu conhecimento
rax e a completa expansão pulmonar produzem a um profundo acerca dos efeitos psicológicos negativos
tempo o robustecimento do apparelho respiratório e o que a monotonia da vida num Sanatório de montanha
desalojamento dos seus microorganismos poderia despoletar nos doentes atacados de
destruidores(21). tuberculose pulmonar: o tédio.
Mas, numa outra perspectiva, um sabor Thomas Mann descreve magistralmente em páginas
estranhamente actual possuem mais passagens deste inesquecíveis da Montanha Mágica (no Sanatório, que
ensaio, que mostram à evidência que Sousa Martins para Sousa Martins era o modelo acabado: Davos),
foi um homem muito além do tempo em que viveu. esses efeitos deprimentes do tédio. Sousa Martins
O apelo à valorização daquilo que, neste século XX, preconiza duas medidas tendentes a combater o
se chama recursos endógenos de uma região, foi, no isolamento e de certo modo a atenuar a força negativa
caso da Serra da Estrela, magistralmente tratado neste desse mal do espírito entre os possíveis enfermos de
ensaio de um médico de finais de século XIX. um futuro Sanatório nas altitudes da Estrela. São elas:
O repto que Sousa Martins lança ao Estado no a instalação de um serviço telegráfico postal em
sentido de o sacudir do seu alheamento na Manteigas, e a redução das taxas dos telegramas a
rentabilidade de factores naturais que, noutros países todos os habitantes do futuro Sanatório.
da Europa da época, se tinham tornado fontes
palpáveis de riqueza; os argumentos com que alicerça A Serra da Estrela na morte de Sousa Martins
a chamada de atenção ao governo para a necessidade
da tomada de medidas na luta contra a tuberculose, Perdurável e forte foi a atracção de Sousa Martins
mostrando uma a uma as razões que tornavam esta pela Estrela. Em 1897, Sousa Martins desloca-se a
doença “uma força social negativa”(21), - por si só Veneza como delegado do Governo Português à
bastavam para dar a medida do interesse deste Conferência Sanitária Internacional. Aí se manteve de
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I6 de Fevereiro a 19 de Março, ocupando o honroso Não o sabemos ... Catorze dias passa Sousa Mar-
cargo de Presidente da sub-delegação encarregada tins na casa de Tavares Proença.
de estudar a profilaxia contra a peste na Europa. Mas não volta a recuperar. O que foi esta última
A insalubridade do clima da bela cidade italiana estadia na Serra surge-nos através da notícia com
agravou a doença pulmonar arrastada de que Sousa que o jornal O Século de I9 de Agosto de I897
Martins há longo tempo padecia. anunciaria a sua morte.
“ Em logar de ser um doente que precisava de
descanço e socego, continuou a ser um clínico; e
grande era a romaria de enfermos que iam consultá-lo
à casa onde elle estava na Serra.
E levou tão longe a sua philantrofia, o seu amor
pela humanidade enferma que n uma noite
tempestuosa, sendo chamado para ver gratuitamente
um doente, esqueceu-se de si, não se lembrou de
que elle também era um doente, e desceu a Serra,
indo ver o desgraçado que reclamava os seus socorros.
Foi talvez isso que lhe agravou a doença (...).(26)
Um mês depois, a 18 de Agosto de 1897 morre em
Cemitério Alhandra, apenas com 54 anos. No entanto e através
de Alhandra da carta de agradecimento que Sousa Martins
(1994).
Fialho de Almeida assim descreveu esse efeito escrevera datada de 10 de Julho de 1897 desprende-se
Entrada do
jazigo do Dr. nefasto de Veneza sobre Sousa Martins: uma certa esperança de melhoras. É este o teor da
Sousa Martins “chama voraz, corpo diáfano... Um sopro das lagunas última carta escrita da Estrela
podres de Veneza bastou para a chama aniquilar seu “Exmº Sr. Tavares Proença. Ao deixar hoje esta
pobre invólucro”.(23) magnifica vivenda onde, graças à bizarria de V. Ex°,
Tocado em Veneza pela asa da Morte, Sousa Mar- nos alojámos durante quatorze dias eu e minha família,
tins regressa a Lisboa e, já doente, retoma a 29 de venho renovar os meus agradecimentos, nunca
Março o serviço no Hospital de S. José. bastante repetidos, por tão grande favor. Do meu
A doença agrava-se vertiginosamente e é na Serra préstimo se algum V. Exª., encontrar, poderá V. W,
da Estrela que Sousa Martins vem procurar alívio. dispor sempre e em qualquer parte em que se ache
Assim, a 27 de Junho de 1897 Sousa Martins quem tem a honra de ser. De V. W, creado e V. Ex°
instala-se numa casa que Francisco Tavares de muito obrigado. J.T. de Sousa Martins”(27). Mas
Almeida Proença possuia na Serra, no local onde mais efémeras foram as esperanças de melhoras. Numa
tarde se ergueu o hotel das Penhas da Saúde. madrugada do verão de 1897, a Morte arrebatou-o...
Qual seria o estado de Sousa Martins nesta vinda
para a Estrela? Ele era conhecedor como ninguém A Premonição de António José de Almeida
de que as virtudes do clima de altitude no tratamento
da tuberculose pulmonar só actuavam em Premonitórias são, do meu ponto de vista, as
determinadas fases nos períodos primitivos da doença palavras que António José de Almeida escreveu num
quando as zonas infectadas fossem ainda diminutas.
Seria essa a situação? Ou animá-lo-ia a esperança
remota de uma cura em circunstâncias raras que ele
assim descreveu:
“Casos há em que a virtude curativa do clima
alcançou muito mais pois debellou a doença, em
período bastante avançado - incluindo o das
cavernulas e até das cavernas pulmonares mesmo
com febre héctica”(24)?
Ou seria mais grave o seu estado, aquele para o
qual era contra-indicada a permanência num clima de
altitude? Teria Sousa Martins agido do mesmo modo
que certos doentes, aqueles que contrariando os
conselhos médicos (e são estas as suas palavras):
“seguem a sua errada inspiração, com o que apenas artigo em 1897:
conseguem receber o golpe de misericórdia dado pelo “...Lá está na Alhandra no cemitério que eu antevejo
inopportuno e logo contraproducente remé-dio, assim discreto e gracioso... Está melhor do que nos
transformado em antecipador da morte”(25)? Gerónimos. O panteon seria o mais adequado
39

da política radical de Afonso Costa. Teve, porém, duração


efémera pois foi este partido oficialmente dissolvido no
congresso realizado em Lisboa em 30 de Setembro e
de Outubro de 1919.
(7) Carta de Fialho de Almeida a Casimiro José de
Lima, in Vida Ribatejana. número especial - Ano de 1962,
pp. 86, 87.
(8) Miguel Bombarda, in A Medicina Contemporânea,
1897, p. 276.
(9) in, Quatro dias na Serra da Estrêla, Porto, Livraria
Civilização.
1884, pp. 16, 17. No jornal O Campino de 2 de Agosto
de 1884 lê-se este anúncio:
“Emydio Navarro
Quatro dias na Serra da Estrella
(Notas de um passeio)
Um grosso volume com 12 phototypias e um prólogo
aogrande Sousa Martins; mas o cemitério da Alhandra de Sousa Martins. Envia-se pelo correio a quem remetter
está mais a propósito para o bom Sousa Martins”.(28) 1:250 reis ao editor Eduardo da Costa Santos, rua de
De facto hoje, neste final desencantado de século, Santo Ildefonso,10 Porto.
ao modesto cemitério de Alhandra, recortado na ampla (10) in, op. cit., p. I8.
imensidade das lezirias, onde o fluir sereno do Tejo (11) Emidio Navarro, op. cit., pp. 62, 63.
marca em cada instante a indubitável fugacidade da (12) Emidio Navarro, op. cit., p. 61.
vida, afluem cada dia muitas pessoas, tal como (13) Relatório dos Drs. Leonardo Torres e Jacinto
Augusto Medina - Sub-secção de Hydrologia Minero-
acontecia à enfermaria do Hospital de S. José ou ao
Medicinal, in Expedição Scientífica à Serra da Estrela em
consultório da rua de S. Paulo, movidas pela profunda 1881, Lisboa, Imprensa Nacional, 1883, p. 7.
crença de conseguir que a imensa Sabedoria e a (14) Relatório dos Drs. Leonardo Torres e Jacinto
envolvente Bondade desse médico ultrapassem as Augusto Medina, in op. cit, p. 23.
próprias barreiras da Morte e tragam uma Esperança (15) “Relatório do Dr. Francisco Lourenço da Fonseca
de cura aos seus corações atormentados. Junior”, in Expedição Scientífica à Serra da Estrela em
1881, Lisboa, Imprensa Nacional, 1883, pp. 5,6.
(16) Emídio Navarro, op. cit, p. 35.
*Docente na Escola Superior de Educação de Castelo (17) Teófilo Braga, “In Memoriam”, in Imprensa Médica,
Branco nº5, Lisboa, 10 de Março de 1943, p. 63.
(18) José Thomaz de Sousa Martins, A Tuberculose
Pulmonar e o clima de altitude da Serra da Estrela,
Lisboa, Imprensa Nacional, 1890.
(19) António Nobre, Só, Porto, Livraria Tavares Martins,
1968, p. 155.
Notas (20) José Thomaz de Sousa Martins. A Tuberculose
Pulmonar e o clima de altitude da Serra da Estrela, Lisboa,
(1) António Nobre, Só, Porto, Livraria Tavares Martins, Imprensa Nacional, 1890, p. 26.
1968. p. 171. (21) José Thomaz de Sousa Martins, op. cit, p. 27.
(2) Cesário Verde, O Livro de Cesário Verde, Lisboa, (22) José Thomaz de Sousa Martins, op. cit, p.
Edições Ática, 1959. p. 149. (23) Carta de Fialho de Almeida a Casimiro José de
(3) José Thomaz de Sousa Martins. A Tuberculose Lima, in Vida Ribatejana. número especial - Ano de 1962
Pulmonar e o Clima da Serra da Estrela, Lisboa, Imprensa p. 88.
Nacional, 1890, p.4. (24) José Thomaz de Sousa Martins, op. cit. p. 40.
(4) António José de Almeida, “Sousa Martins”. in A (25) José Thomaz de Sousa Martins, A Tuberculose
Medicina Contemporânea, 1897, p. 343. Pulmonar e o clima de altitude da Serra da Estrela, Lisboa.
(5) Citada em Suzanne Daveau, «A Expedição Científica Imprensa Nacional, 1890, p. 28.
à Serra da Estrela» in Finisterra . Lisboa 1989. (26) in Jornal O Século, 19 de Agosto de 1897, nº 5603.
(6) Distrito da Guarda - Semanário que se publicou na (27) Carta de Sousa Martins a Tavares Proença, in José
Guarda entre 4-8-1912 a 15-11-1919. Era um dos orgãos Lopes Dias, Miscelânea de Cartas e Documentos
do Partido Republicano Evolucionista. fundado em 1912 Albicastrenses, Lisboa, Editorial Império, 1966, p. 26.
por António José de Almeida. De tendência conservadora, (28) António José de Almeida, “Sousa Martins” in A
torna-se este partido o principal opositor e contestatário Medicina Contemporânea, 1897, p. 343.
40

O SANATÓRIO DAS PENHAS DA SAÚDE - TEMPLO DO TEMPO

por Elisa Calado Pinheiro*

“Colocarás a tua ruína nas mãos da natureza para seu tecto amplo para curar feridas da guerra e do
que esta a aperfeiçoe e a embeleze... só o tempo desenraizamento. Albergando, sem divisórias de
melhora as ruínas”. intimidade, uma multidão de “retornados”,
William Gilpin, Observations relative chiefly to ... transformada em comunidade pela necessidade, pelas
Cumberland and Westmorland. partilhas de espaço e de passado e pelas incertezas
de futuro, transplantada de outros espaços em tem-
“No entanto, não será o carácter de antiguidade de pos de aceleração brusca dos ritmos da história, o
uma história tanto mais profundo, perfeito e lendário Sanatório ofereceu o despojamento e o silêncio,
quanto mais próxima do presente ela se passou?”. transformados em concha de protecção num bastião
Thomas Mann, Montanha Mágica. quase inexpugnável.
Hoje, o edificio, apesar das marcas visíveis de uma
forte presença, carregada de dispares esperanças,
Na Serra da Lã e a Neve, subsiste, a meia encosta encontra-se exactamente no limiar que separa dois
coroando uma colina, o Sanatório das Penhas da tempos: o dos homens, ainda apreensível e bem
Saúde. marcado pelo ritmo das mudanças e o da natureza
Impõe-se pelo insólito de uma forte presença na que o cerca e nele penetra, feito tempo longo de
paisagem nua, pela imponente e extensa fachada, permanências incomensuráveis. O vento, as águas e
assumida qual fortaleza da montanha, e pela um ténue mundo vegetal coabitam já ali com o que
grandiosidade do figurino arquitectónico de catedral, resta das memórias dos homens.
com canones de decoração clássica e nacionalista, No espaço da antiga secretaria encontram-se hoje
revisitados de uma modernidade que foi beber à pelo chão, espalhados, os documentos de todo este
natureza envolvente não só a sua monumentalidade mundo que no Sanatório se encerra: são os livros de
como o contraponto da própria existência, a que ponto do pessoal e dos médicos, os livros de
Cottineli Telmo emprestou o traço, num projecto aquisições, as fichas médicas dos doentes e as
encomendado pela C.P., concluido em 1936, apesar requisições de exames de diagnóstico e
de inaugurado só em 1944. complementares, para além de toda a correspondência
Embora à escala da montanha foi uma obra feita à institucional e administrativa. A área da rouparia, está
medida dos homens, para os curar. Começou-lhes atapetada das fardas do pessoal e das roupas de
pelos corpos, nos tempos em que a esperança do ar internamento dos doentes. As radiografias e os restos
puro e rarefeito vencia, com a eficácia da prancha do mobiliário metálico estão espalhados por todo o
atirada a náufragos, as bactérias da “tuberculose edifício marcando fortemente as décadas de 40 a 70
romântica e burguesa” do país e, depois, as da do nosso século e referenciando quanto baste o tempo
tuberculose faminta e operária da região. Acabou-lhes dos tuberculosos, ricos e pobres. Os documentos
pelas almas. Em tempos ainda próximos, bastou o dispersos do Instituto de Apoio ao Retorno de
41

Nacionais e os cadernos escolares espalhados pelas Começamos a conhecer-lhe os meandros e as


várias salas e corredores chamam-nos aos anos en- personagens que por ele vagueiam e aceitamos a
tre 75 e 80 marcados pela chegada dos que albergou explicação de Joachim a Hans Castorp: “Aqui não
em longos invernos de isolamento e falam-nos da fazem muita cerimónia com o tempo das pessoas”.
escola que ali funcionou para os mais novos dos Adaptamo-nos e descobrimo-lo aos poucos,
“retornados”. Finalmente os graffiti nas paredes dão- descobrindo-nos a nós também e ao nosso tempo, o
nos as derradeiras imagens da última ocupação antes das maçãs calibradas e da produção normalizada, o
do abandono: São os Carnavais da Neve do Clube do viver industrializado. Documentamo-lo e fazemos-
Nacional de Montanhismo da Covilhã e os Encontros lhe a ficha, como também ali se preenchia a dos
Nacionais de Motards que ainda ecoam pelos salões internados. Descrevemo-lo. Recolhemos-lhe as
de arcaturas e colunata do 1° piso. marcas das telhas tipo marselha (Mourão, Teixeira
No Sanatório das Penhas da Saúde aprisionam- Lopes & Cª. Lda. da Pampilhosa) e do mosaico
se ainda as primitivas imagens do difuso espaço hidráulico dos pavimentos (SCIAL). Demoramo-nos na
sanatorial dos finais do séc. XIX que foi primeiro descrição da fachada, que se estende por mais de
corporizado na Montanha Mágica portuguesa, na 160 m de comprimento e onde os seus torreões em
área das Penhas da Saúde, através da construção, a flecha, varandins e solários, arcaturas e bandas
1.530 m de altitude, do Grande Hotel dos Hermínios, ritmadas de centenas de janelas lhe definem o figurino.
seguindo à risca as confiantes prescrições do Dr. Subimos-lhe a imponente escadaria de granito;
Souza Martins. Foi todo este ambiente de fim de entramos no átrio e apreciamos-lhe o encanastrado
século que moldou o programa arquitectónico e o férreo das elegantes portas dos elevadores, assim
figurino decorativo, do novo Sanatório dos Ferroviários, como os azulejos figurativos dos salões do 1° piso.
marcadamente de anos 30, mas com ainda bem No final, diagnosticamos - “Estado de Conservação:
visíveis pinceladas de uma “Belle Epoque” que aos degradado”. Imediatamente nos ocorrem as vias da
poucos se foi desvanecendo pelas mundanas terapêutica em uso nestes casos: recuperação ou
estâncias de veraneio e de restabelecimento físico reabilitação?
até ao deflagrar da 1° Grande Guerra. As marcas de Depois de um tempo em que as ruínas dignificaram
“hotel” mantiveram-se no Sanatório, disfarçando até os jardins dos mecenas do Renascimento e de um
aos anos 50, tanto quanto puderam, as de hospital. outro em que inspiraram os românticos oitocentistas
Só então, com o enquistar do Estado Corporativo, a que, com Byron, defendiam que elas enobrecem e
factura do 2° “post guerra” e os frutos do nosso surto embelezam os lugares, já que introduzem nele “algo
industrializador se lhe massificou a densidade e se de vida real que não pode pertencer a nenhuma parte
lhe empalideceu o brilho. É este o período que da natureza inanimada”, assistimos hoje à
corresponde às ampliações realizadas à custa das desvalorização de tudo o que revela marcas
galerias e ao aumento das enfermarias e das destruidoras do tempo. É a norma. O primado dos
instalações de apoio que lhe deram a sua última nossos dias é o da manutenção da juventude, mesmo
utilização como Sanatório. que aparente e recauchutada, o do terror da velhice, o
A História está, pois, bem marcada neste edifício da desvalorização do ritual participado da morte, do
pelas vivências dos homens que o habitaram. É em seu asséptico encobrimento, mesmo.
busca dela que o demandamos. Mas quando, feitos E quando testemunhamos o forte impacto das ruínas
Hans Castorp da “Montanha Mágica”, subimos até lá deste edifício, sobretudo ao nível das artes e dos
para, quais espectadores, o reconhecermos e artistas a quem continua a impressionar ainda hoje
analisarmos como fonte histórica, evidência de campo ocorrem-nos então as palavras de Carlo Carena
de uma época e como monumento que urge preservar, (Enciclopédia Einaudi, Ruina/Restauro, 1984, p.107):
é ele que nos domina e nos aprisiona numa “Esta vitalidade da ruína exclusivamente interpretativa,
multiplicidade de problemas em que nos enreda. subjectiva e antropológica, torna essencialmente cul-
Projectavamos uma passagem breve e, afinal, tural o discurso que sobre ela se faz”.
quedamos nele enredados. E quando nos ocorre a E perante as terapias de normalização da vida dos
estratificação que vigorava para os seus doentes: monumentos, vacilamos então no limiar entre a VIDA
“curados”, “melhorados”, “estacionários”, “piorados” e e a MORTE, o tempo dos HOMENS e o da NATUREZA
“falecidos” - e a sua repercussão em números. De tendo por única convicção a de que há “memórias”
uma breve análise efectuada a documentos dispersos, que urge preservar.
situados entre os anos de 1953 e 1967, poderá reter- Covilhã, Novembro de 1994
se que dos 4.264 tuberculosos que passaram pelo
Sanatório, 1.252 curaram-se, 1.694 melhoraram, 1068
mantiveram-se estacionários, 149 pioraram e 101
faleceram. E a nós como nos catalogará? *Assistente Convidada da UBI. Membro do Centro de
Entretanto, instalamo-nos. Vamos ficando. Estudo e Protecção do Património - CEPP
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A IDADE MILITAR E A LITERATURA TRADICIONAL


NO CICLO DA VIDA DO HOMEM DA GARDUNHA

por Albano Mendes de Matos*

As Sortes e o Grupo de Idade confirmação e se prontificava a pertencer,


temporariamente, a uma outra família, a família militar.
Os rapazes das povoações inseridas na região da Particularizando, descreve-se o ritual, ou conjunto
Serra da Gardunha, nascidos no mesmo ano, dos de ritos, na Aldeia do Alcaide, na primeira metade
finais do século passado até meados deste século, deste século, relativo à ida à inspecção médica, à
ao completarem vinte anos de idade, entravam nas partida para a vida militar e a algumas vivências na
Sortes, ritual pré-liminar para a entrada no serviço vida militar.
militar, constituindo-se em grupo informal, o Grupo de
Idade ou Conjunto de Idade(1), em que o essencial da Roubo Ritual das Flores
coesão grupal era fundamentado no factor idade,
espaço físico da aldeia e no espaço social da Alguns dias antes da inspecção, os rapazes iam
comunidade rural. A mesma idade,em pessoas do roubar vasos com flores, em quaisquer casas,
mesmo sexo, fundamenta a ideia de que as pessoas retirando-os das janelas e dos balcões, que eram
são semelhantes, agrupando-se por laços de afinidade. guardados em locais próprios, costume que pode ser
Os elementos deste grupo informal ficavam ligados, sobrevivência do rito de apropriação(3), na iniciação
tradicionalmente, por uma forte analogia de dos rapazes.
sentimentos de pertença ao grupo, interiorizados por Na noite da véspera do dia da inspecção, os rapazes
uma grande relação comunicabilidade e de das Sortes “arranjavam” o chafariz da praça,
solidariedade que fortalecia a coesão, manifestando-se ornamentando-o com as flores que tinham roubado,
por comportamentos festivos ritualisados, como o colocando-as em prateleiras, organizadas em
“baile das sortes”, descantes pelas ruas e refeições pirâmide, montadas em volta do chafariz. Em alguns
colectivas, com os componentes individualizados, anos, eram colocado um quadro com as fotografias
durante as manifestações, por uma flor ou um ramo de todos os rapazes das sortes, como afirmação so-
de manjerico, na lapela do casaco ou na orelha, ou cial do grupo ao qual pertenciam.
por uma fita na lapela, segundo os valores e os cos- Pela manhã, muitos alcaidenses deslocavam-se à
tumes da comunidade. praça para observarem o chafariz “arranjado”. Durante
O facto de pertencer a um grupo social, mesmo o dia, as mulheres e as raparigas retiravam os vasos
informal, encorajava a fortes laços de amizade entre com flores que eram sua propriedade.
pessoas e contribuía para diferenciação entre os
rapazes que tinham idade militar e os que tinham O Banho Ritual
idades inferiores. As Sortes promoviam uma amizade
institucionalizada quase sempre para toda a vida, Depois do arranjo do chafariz, muitos dos rapazes
desenvolvendo solidariedade de grupo, com iam a um tanque ou à ribeira tomar banho, um banho
experiências partilhadas, entre membros da colectivo, como que no ritual de purificação, observado
comunidade não ligados pelo parentesco, grupos que em diversas sociedades(4).
se sucediam anualmente, enquanto durou a tradição,
hoje em extinção. Ida às Sortes
A idade militar, como em todas as outras idades do
homem, era marcada por atitudes e comportamentos De acordo com o horário do Edital, os rapazes das
culturais que podem ser considerados como “ritos de sortes caminhavam para o Fundão. Iam a pé, em
passagem”(2), como uma fase de um ciclo que se grupo ruidoso, com um, dois e, às vezes, três
desejava marcar e revelar. Por exemplo, “dar o nome”, tocadores de concertina ou de acordeon, à frente,
indo à Secretaria da Câmara Municipal ou do Registo contratados para tocarem durante os rituais. Todos
Civil, era o primeiro dos rituais em que o rapaz dava a levavam ramos de manjerico na lapela do casaco. Até
43

aos anos vinte iam munidos de cacetes (varapaus), A Idade e a Vida Militar
para defesa pessoal, se necessário fosse, cacetes O Militar na Avaliação Social
que deixavam guardados à entrada do Fundão(5).
Submetidos ao ritual da inspecção médica, perante As comunidades rurais davam muita ênfase à
a Junta, os mancebos, agora assim designados, classificação por idades, especialmente a “idade
considerados aptos ou “apurados”, prestavam militar”, que era considerada um ponto-charneira en-
juramento de fidelidade à pátria, como rito “preliminar”(6) tre o ser rapaz e o ser homem, entendendo a vida
solene da idade militar. Como resultado da inspecção militar como uma “escola da vida”, na qual o rapaz
médica, surgia a hierarquização dos membros do era transformado em homem, subindo na escala so-
grupo de idade, em sub-grupos de “apurados” (aptos), cial, conjugando mesmo a “idade militar” com a “idade
“livres”, eufemismo de inaptos, e, por vezes, do casamento”(7). O ser militar ou ter sido militar era
“esperados”, estes a aguardarem nova inspecção. um factor de prestígio social, utilizado algumas vezes
Como sinais visíveis de diferenciação grupal, os como elevacão momentânea de “status”(8), com
rapazes compravam fitas que colocavam na lapela do nomeação para actos públicos, como “cabo de ordens”,
casaco, cujas cores eram símbolos nítidos das em festas, para manutenção da ordem.
classificações que lhes tinham sido atribuídas É de salientar que a vida militar surge como temática
vermelha, cor forte, significando valor, esforço e fonte na Literatura Tradicional, quase sempre em
da vida, para os “apurados”, amarela, cor fraca ou composições simples e ingénuas, de tendência
secundária, para os “livres” e cor branca ou neutra humorística, cantadas ou recitadas nas casernas e
para os “esperados”. As cores identificavam as lembradas toda a vida.
classificações dos rapazes no ritual das Sortes, que A vida militar, numa idade em que o indivíduo se
apresentava tonalidades festivas, com música, desfiles afirma homem, como “rito de passagem”, com maior
pelas ruas, lançamento de foguetes, jantar colectivo ou menor valorização, consoante a época e os
e baile, ao qual compareciam as raparigas da aldeia, contextos sócio-político e sócio-cultural, faz parte da
com as mães destas a assistir, sentadas em volta da fala quotidiana das gentes rurais, pois, fica como
sala. marco indelével na vida do homem, cujas vivências
Na perspectiva do mundo rural, especialmente na perduram ao longo dos tempos.
região onde se focaliza a temática desta comunicação, Algumas raparigas tinham receio de namorar ou
existiam categorias ou modos de ver que orientavam rejeitavam mesmo os rapazes que ficam “livres” nas
as concepções, particularizadas, a que estavam Sortes, porque “se não serviam para a tropa, alguma
sujeitos os corpos, que os catalogavam funcionalmente coisa tinham”, como foi já referido. Diz a literatura
segundo um discurso oficial geral, que era interiorizado tradicional:
pela ideologia camponesa. Os inaptos ou “livres” para
o serviço militar desciam momentaneamente na Quem não serve para a tropa,
escala da avaliação social, marcados por uma possível Também não serve para nada,
incapacidade para a prestação de um serviço ao País. É tacho velho sem fundo,
As raparigas candidatas a namoro interrogavam-se É bilha velha furada.(9)
dizendo que “se não serviam para a tropa, alguma
coisa havia”, segundo o código do sistema ideológico A Despedida
local. Fora deste campo de pensamento, estavam os
filhos dos “ricos” ou de algum “remediado”, cujos pais A ida para a vida militar era uma ruptura com o
metiam um “empenho”, para ficarem “livres”. quotidiano familiar e com a vida da aldeia. Era partir
No próprio desfile pelas ruas da aldeia, após a ins- para o desconhecido, para uma vida talvez perigosa,
pecção, os rapazes dispunham-se hierarquicamente, para uma situação de margem, que talvez
com os “apurados” à frente, com as fitas vermelhas proporcionasse riscos. Alguns rapazes submetiam-se
nas lapelas, seguidos pelos “livres”, estes menos a “ritos de Protecção”, como confissão e comunhão,
ruidosos. As fitas simbolizavam as qualidades físicas verificadas na aldeia do Alcaide, pedir a benção aos
dos rapazes, com alguma arbitrariedade, pois, uma padrinhos e aos pais e solicitar a protecção dos
inaptidão,considerada pela Junta Militar, não Santos e das Senhoras mediante promessas(10). Na
correspondia a uma inadaptação laboral ou social, generalidade, todos praticavam “ritos de despedida”(11)
numa idade em que o corpo era visto como uma dos familiares, dos amigos e das namoradas. A partida,
tecnologia, como um recurso no processo de algumas vezes dolorosa, como a primeira saída da
reprodução e de produção. No entanto, algumas comunidade, era bem definida cronologicamente,
vezes, era notória uma desordem temporal ou talvez como uma data muito significativa, no ciclo da
momentânea na personalidade dos “livres”, vida do camponês beirão. Assim a refere um serrano
manifestada nos seus modos e nas suas atitudes. da Gardunha, na sua despedida:
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A vinte e oito de Fevereiro, Pedi licença para entrar


“De mil novecentos e trinta e dois, E entreguei a minha guia.
“Disse adeus ao povo inteiro
E fui para a tropa depois. Quando da porta saía,
Logo me disse o quarteleiro:
Fui despedir-me dos meus, -Toma banho em água fria,
Naquele doloroso dia, Depois vem ao nosso primeiro.
Só talvez soubesse Deus
O que o meu peito sentia. A seguir vais ao barbeiro
O teu cabelo cortar,
Dos meus pais me despedia, Depois, diz o nosso primeiro,
Copiosamente a chorar, Vens-te a mim apresentar.(13)
A minha mãe só me dizia
-Filho, tu, vais-me deixar. O recruta era, por vezes, submetido aos “ritos de
entrada”(14) que colidiam com a sua mentalidade e a
De novo me veio abraçar, sua visão do mundo, como a perda de liberdade,
E eu segui o meu destino; transpondo as realidades da vida militar para uma visão
Assim, deixei o meu lar analógica com a vida conventual:
E o meu povo pequenino.(12)
Na peluda, não pensava
A Entrada no Quartel que havia de vir a ser praça;
Fui metido num convento,
Os rituais de entrada na idade militar seriam um Já não tenho liberdade.(15)
complemento dos rituais de transição da puberdade
para a maturidade. Rituais que visavam uma elevação A Atribuição do Número
de “status”, ainda evidente em diversas sociedades,
motivada e inculcada pelos chefes, pelo cumprimento A mudança de nomes ou a aquisição de nomes
de uma norma social, norma de pertença a um grupo adicionais ocorrem, muitas vezes, nas idades dos
ou a uma organização, com uma certa finalidade, que indivíduos como indicação de novos estados(16),
o poder exigia e a sociedade comparticipava. normalmente associados a ritos de margem. Por
A chegada ao quartel, a apresentação da guia de analogia, a vida militar, encarada como uma situação
marcha, o primeiro banho, o corte do cabelo, como de margem, em que o homem é retirado para um novo
medida higiénica e marcas distintiva de uma pessoa estado, fora da família e da sua sociedade, dava um
em situação de margem, numa classe de iniciação, número ao neófito-recruta, que passava a identificá-
ficam na memória da tradição popular. lo, retirando-lhe o nome, no tratamento estritamente
militar, pois, era introduzido numa nova família em que
Às portas do Regimento, tinha, simbolicamente, como pai o capitão e como
Estava uma sentinela; mãe o primeiro-sargento. Vejamos o que dizia, em
Logo naquele momento, 1952, um militar do Regimento de Cavalaria 8, de
A sorrir me disse ela. Castelo Branco:

-Entra que a tropa é bela, O meu nome do baptismo


Eu gosto de aqui andar, Já ninguém mo quer chamar;
É preciso é cautela, Número cento e setenta e oito,
para ninguém nos castigar. Foi o número que vim a usar.(17)

Ao ouvi-Ia assim falar, A Distribuição do Fardamento


Fiquei cheio de alegria,
pedi-lhe para me informar A distribuição de fardamento, como “rito de
Onde era a Secretaria. agregação” comunidade militar(18), é quase sempre
descrita com humorismo, quer por parte dos agentes
-Sobe essa escadaria, da distribuição, quer por parte dos recrutas a fardar.
Ao cimo a vais encontrar; Diz o sargento:
Com muita ou pouca alegria,
Vai-te lá apresentar. -A farda te quero dar
Eu subi, até que fui dar E mais o belo barrete,
Então com a Secretaria, Muito bem te deve ficar,
45

Deves parecer um cadete.-(19) Se não estamos caladinhos,


Logo nos vão para a figura.(21)
Diz o recruta:
Educação, Valentia e Competição
A camisa e as ceroulas
Fizeram-me logo tremer, A iniciação militar inclui a instrução militar como
Puseram-se em pé comigo, processo educativo dos cidadãos, levando-os ao
Vi jeitos de me virem bater. conhecimento de certos valores patrióticos e
civilizacionais, que vêm da tradição portuguesa,
As calças eram tão grandes, orientada para valores específicos de defesa e de
Que até metiam confusão; continuidade da Pátria, para além ensinamentos
Dentro das mesmas calças, conducentes à formação geral do cidadão.
Cabia outro figurão. A ideologia que envolvia a acção militar e o esforço
de mentalizar os jovens, e a sociedade de um modo
As botas eram tão grandes, geral, no sentido de valorizar o homem e o cidadão,
Que nem as podia arrastar; está espelhada na seguinte quadra, que reflecte a
Tenho a certeza que serviam evidência de que, para muitos beirões, a única escola
Para eu atravessar o mar, era o quartel.

Do jaleco não se fala, Todo o rapaz que é preguiçoso,


Ficam-me as mãos escondidas; Devia vir para soldado,
As mangas eram tão grandes, que aqui é que se aprende
Tinham dois metros de compridas.(20) A ser brioso e educado.(22)

A Disciplina Em momentos históricos e conjunturais,


sublimam-se alguns valores, que as sociedades
O rigor disciplinar exigido aos soldados, como um absorvem, mentalizando-as para certos ideais, como
potente meio de sugestão e de intimidação para a sublimação do”ser homem” aliado ao “ser soldado”,
inculcar nos homens a deferência pelos chefes e para com significativa ascensão social, como já foi referido.
fomentar a ordem e a coesão na instituição militar, é A maturidade de ser homem passa pela condigão de
referido, bem como as exigências do atavio da farda, ser soldado, com entrada, por direito, nos negócios
este insinuado como “rito de orgulho”, nas cantigas da aldeia e na organização das festas, por exemplo,
populares, criadas espontaneamente, como as para além da aptidão para defender o País. Na década
seguintes quadras: de trinta, escrevia um soldado do Batalhão de
Caçadores 6, de Castelo Branco:
Quando um minuto mais tarde,
Na forma quero entrar, Olha que um militar
Não querem saber de desculpas, quere-se valente p’ra guerra,
Logo me vão castigar. com valentia lutar,
E defender a sua terra.(23)
Se falo, tenho castigo,
Se me calo, sou castigado, A instituição militar fomentava, em nome da coesão
Não sei como hei-de viver, e do espírito de corpo, para além da valorização so-
Nesta vida de soldado. cial e patriótica, uma competição, quer entre os
individuos do mesmo aquartelamento, quer entre
Quando quero sair à rua, aquartelamentos diferentes, como realçam as
As botas levo engraxadas, seguintes quadras, relativas a soldados que serviram
A sentinela da porta em Unidades de Castelo Branco:
Logo se põe a examiná-las.
O soldado de Cavalaria
Então a sentinela me diz: É o espelho da Nação,
Quando põe o pé no estribo,
-Volta para trás rapazinho, Já leva a espada na mão,
Bota graxa nessas botas,
Não gastes o pré em vinho. Cada vez que vejo o oito,
Temos que andar direitinho, Me lembra o meu Regimento;
Em qualquer formatura; Minha espada, meu cavalo,
46

E meu lindo fardamento.(24) Hei-de escrever-te, bem sei,


Numa folha de papel,
Juramento de Bandeira cartinhas para a cidade,
Mandadinhas para o quartel.(29)
Tal como em muitas sociedades, em que se verifica
uma apresentação dos seus novos membros à As raparigas que viviam próximo dos quartéis eram
comunidade, os nossos militares, após um regime avisadas para não confiarem nos soldados, porque a
de margem e de aprendizagem ou iniciação, que é o tropa é passageira e os militares estão numa idade
tempo de recruta, são apresentados à sociedade, em de aventuras e brincadeiras:
manifestação pública ritualizada, o Juramento de
Bandeira, já não como simples indivíduos rurais ou Menina não se enamore
citadinos, mas como soldados, ou seja, como Do rapaz que é militar,
elementos defensores de uma sociedade ou dos ideais quando não, ele toca a caixa
superiores que norteiam essa mesma sociedade, por E então, põe-se a andar.(30)
que foram iniciados na instrução militar, como refere
um soldado, nos anos trinta: Os soldados, já nos fins do século passado,
galanteavam as raparigas, quando andavam pelas
Eu tratei de me apurar ruas:
Logo na instrução primeira,
Só para trás não ficar, Sou soldado, sirvo o rei,
Quando jurasse Bandeira.(25) E também sirvo a rainha;
Também meto sentinela
Os rapazes, retirados às famílias e à comunidade, À sua porta, lindinha.(31)
são apresentados às suas comunidades valorizados
como homens e como cidadãos, capazes de defender A Saída da Vida Militar
as suas terras, após o Juramento de Bandeira, “rito
patriótico” por excelência. Diz a quadra: Entre as quatro crises básicas e universais da
Humanidade, nascimento, maturidade, reprodução e
Estendi o braço à Bandeira morte, compreendidas no ciclo completo da
E quis por ela jurar, vida,sucedem-se acontecimentos biológicos e
A dar pela pátria a vida culturais, que podem designar-se por “idades”, vividas
E sempre do inimigo a saltar.(26) mais ou menos intensamente pelos indivíduos e pelas
sociedades. Como vimos, algumas atitudes perante
O Militar e o Namoro as situações e os acontecimentos, actuando como
respostas aos imperativos biológicos e às vivências
A Idade Militar coincide muitas vezes com a idade impostas pelas normas sociais, projectam-se como
do namoro, como é muitas vezes factor de rupturas conjuntos cerimoniais embebidos em ritos próprios,
amorosas. Todas estas vivências deixam os soldados que correspondem às diversas idades do Homem,
nas suas expressões poéticas, como o militar que se enquanto ser cultural.
queixa do abandono a que foi votado pela namorada: Podemos concluir que a Idade Militar, nos meios
rurais da região da Gardunha, marcou profundamente
Até da própria namorada o homem, que percepcionava o mundo sob a
Fui logo abandonado; perspectiva de uma “visão do mundo camponesa(32),
Na última carta me diz caracterizada por uma inferioridade cultural em relação
que já não liga ao soldado(27) ao homem citadino, pela ideia de casa, como unidade
social, elemento de identidade familiar e de trabalho,
A namorada protesta contra o comboio, objecto com a função social definida por bens económicos
visível do seu descontentamento, que levou o seu visíveis, como a posse da terra. Refere a poesia
rapaz para a vida militar: tradicional:

Ó comboio das oito, Quando for à disponibilidade,


Não te posso ver passar, Vou para a casa dos meus pais;
Levaste o meu amor E eles dão-me um papel,
Para a vida militar.(28) Para não me esquecer mais.

A namorada promete ao seu namorado que nunca o O soldado que está em casa,
esquecerá, enquanto ele estiver na tropa: A trabalhar no seu campo,
47

Quando há uma chamada, 3 - Idem, pg. 154.


A ferramenta vai para um canto.(33) 4 - Idem, pg. 158.
5 - Conforme depoimento de informador qualificado.
Como na entrada para a vida militar, há também um 6 - VAN GENINEP, obra citada, pg. 31.
7 - HOBEL, E. Adamson e FROST, Everett - Antropologia
ritual, no final do tempo, como que numa evasão para
Cultural e Social. Editora Cultrix-São Paulo-Brasil, 1981,
a liberdade da comunidade aldeã, verdadeiros “ritos pg. 167.
pós-liminares”, preparatórios para o reencontro com 8 - TURNER, Victor - O Processo Ritual- Estrutura e
os familiares e com os amigos, ou “ritos de saída”, Anti-Estrutura-Editora Vozes, Petrópolis-Brasil, 1974, pg.
com realce para as despedidas, que a literatura 202.
tradicional exprime: 9 - JOÃO GAMA, Casal da Serra. 63 anos.
10- Na aldeia do Alcaide, alguns miIitares prometiam
Tenho o tempo acabado, ao São Sebastião, protector dos militares, ou ao São
De novo vou ver os meus pais; Macário, uma prestação monetária, pegar no andor, ou
mesmo fazer uma festa ao primeiro Santo, para que os
entrar neste quartel,
protegessem na vida militar.
Juro que não volto mais. 11 - VAN GENNEP, obra citada, pg. 48.
12 - JOSÉ SIMÃO, Casal da Serra, 78 anos.
Fui um soldado fiel, 13 - Idem.
Cumpri a minha missão; 14 - VAN GENNEP, obra citada, pg. 39 e 83.
Digo adeus ao meu coronel 15 - JOÃO GAMA, Idem.
e adeus ao meu capitão. 16 - HOBEL e FROST, obra citada, pg. 165 e VAN
GENNEP, obra citada, pg. 69.
Digo adeus a toda a gente, 17 - JOÃO GAMA, Idem.
18 - VAN GENNEP, obra citada, pg. 89.
com grande satisfação;
19 - JOSÉ SIMÃO, Idem.
Digo adeus, muito contente 20 - JOÃO GAMA, Idem.
Ao primeiro do Esquadrão.(34) 21 - JOÃO GAMA, Idem.
22 - JOÃO GAMA., Idem.
* Mestre em Ciências Antropológicas. 23 -JOSÉ SIMÃO, Idem.
24 - JOSÉ MATOS, Casal da Serra, 91 anos.
25 -JOSÉ SIMÃO, Idem.
26 -JOÃO GAMA, Idem.
27 -JOÃO GAMA, Idem.
28 -JOSÉ MATOS, Idem.
Notas 29-JOSÉ MATOS, Idem.
30-JOSÉ MATOS, Idem.
1 - TITIEV, Moscha - Introdução à Antropologia Cul- 31 - JOSÉ MATOS, quadra ouvida ao seu pai, no
tural. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. 1979. pg. princípio do presente século.
263. 32 - CABRAL, João de Pina - Filhos de Adão, Filhas de
2 - VAN GENNEP, -Arnold - Os Ritos de Passagem, Eva, Editora D. Quixote, Lisboa, 1989, pg. 59.
Editora Vozes, Petrópolis-Brasil, 1978, pg. 31. 33 - JOÃO GAMA, Idem. 34-JOSÉ SIMÃO, Idem.
48

A IDADE DE SER “RATINHO”

por Maria da Assunção Vilhena Fernandes*

I - As Idades do Homem do Concelho de tiveram esse privilégio.


Proença-a-Nova Quando os filhos eram muitos, de ambos os sexos,
e não era possível empregá-los todos a servir, ficavam
Como em todas as sociedades, também aqui há em casa dos pais que os ocupavam nos trabalhos do
idades próprias para determinadas actividades. campo, bem mais cedo do que devia ser.
Nos primeiros anos em que tomei contacto com as
gentes do concelho de Proença-a-Nova, tive ocasião Os “Ratinhos” e o Desempenho da Tarefa
de verificar que as crianças desta região não passavam Contratada
pela idade de brincar por que passavam as de outras
terras e, felizmente, as dos nossos dias. Em geral, Chegado o mês de Maio, tempo em que as searas
as famílias eram pobres, tinham muitos filhos a quem já estavam maduras, muitos homens desta zona, para
não podiam proporcionar uma melhorar a sua precária situação
infância feliz. Assim, tinham de familiar, migravam para o Alentejo
aproveitar das crianças, mesmo (outros para Espanha), para fazer
as menores e mais fracas a ceifa. Era a esses trabalhadores
capacidades para ajudar à sua que chamavam os “ratinhos” não se
própria criação. Ainda na primeira sabe ao certo porquê, mas talvez
infância, por volta dos 3 ou 4 anos, pelo seu hábito de ratinhar ou
já lhes era imposta a obrigação regatear o prego de qualquer coisa
de cuidar dos irmãos mais novos, que compravam, ou por muito
afastando-os da fogueira, do sol economizarem, poupando em tudo
ou da chuva, se já andavam, e até com uma certa sovinice.
vigiar o bébé no berço, embalá-lo, O costume de ir ceifar às terras
dar-lhe a chucha para que não alentejanas vem de muito longe:
chorasse, etc, enquanto a mãe foram “ratinhos” os avós, os pais,
trabalhava. os filhos e os netos, durante
Depois vinha a idade de levar as gerações, e já não o são hoje,
cabras ao pasto ou acompanhar graças ao progresso que os
o pai na lavoura, para guiar os bois substituiu por ceifeiras mecânicas.
ou os burros no rego, às vezes, Antes delas, os “ratinhos” eram
com pouco mais de 5 anos. imprescindíveis nas ceifas, pela
Mais tarde, por volta dos 7 ou 8 escassez de braços alentejanos.
anos, chegava a idade de ir servir - os rapazes, em Habituados a trabalho duro na sua terra, os beirões
geral, para pastores, as raparigas para criadas. Disse- ceifavam com desembaraço e uma destreza
me uma senhora da Sarzedinha que, a primeira vez incomparáveis. Por isso, os lavradores alentejanos
que foi servir, não se lembra que idade teria, era tão esperavam com ansiedade a visita dos manajeiros
pequena que, para conseguir chegar à masseira para beirões que, na Primavera iam ao Alentejo tratar dos
onde devia peneirar a farinha para fazer o pão, a patroa contratos e ver as possibilidades de ganhar bons
tinha de lhe pôr o meio alqueire debaixo dos pés! proventos. Ao voltar, contratavam os homens que iriam
Na 1ª metade deste século, principalmente nas depois ceifar sob a sua autoridade. A regra era
aldeias, ainda não havia para todas as crianças a idade obedecer, ouvir e calar. Se se revoltassem, eram
de ir à escola, por falta de estradas, por falta de escolas despedidos. Nem sempre os manajeiros eram
mas, principalmente, porque os pais necessitavam trabalhadores do campo, mas sapateiros, barbeiros,
do trabalho delas. Raras foram as raparigas que etc., que aproveitavam aquela quadra para obterem
aprenderam a ler e também nem todos os rapazes bons lucros. Eram sempre tipos com astúcia: iam
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um ou dois anos a ceifar para aprender como jovens “ratinhos” estavam apenas na 2ª infância, no
funcionava o serviço, procurando a simpatia dos início da puberdade, alguns na adolescência. No plano
conterrâneos, dos manajeiros e dos patrões. Depois fisiológico, era uma idade crítica e, portanto, esse
já podiam entrar em acção... trabalho era um perigo para o seu desenvolvimento.
Contratados os homens para a ceifa, faziam-se os Estavam a crescer, eram geralmente mal alimentados
preparativos para a faina que durava 40 a 45 dias. na sua terra e, consequentemente, tinham fraca
Com os dias da viagem, eram quase dois meses de compleição física. Além disso, as modificações
ausência das suas aldeias. fisiológicas, que afectam o estado de espírito do
Como fato de trabalho, escolhiam as calças mais adolescente, não eram de modo a uma fácil adaptação
velhas que tinham, de surrobeco ou de cotim, ao novo trabalho. Mesmo no seu meio, ao tomar
remendadas por todos os lados, que, por não serem conciência do mundo que o rodeia, tem as mais
lavadas durante toda a safra, ficavam tão duras com o diversas reacções, ora mostrando uma timidez que o
suor que, quando despidas se aguentavam de pé ... impede de falar, de se abrir, mesmo com as pessoas
As camisas de linho grosseiro, nos tempos mais com quem lida de perto, ora tomando atitudes de uma
recuados, tiveram de ser substituídas por outras mais agressividade assustadora, ora, ainda, caindo numa
macias pois, com o movimento brusco e continuado instabilidade que lhe provoca alegria ou tristeza, fácil
dos braços, chegavam a ferir-se nas axilas. Adoptaram no riso descontrolado ou em crises de choro ou de
então as blusas de riscado azul e branco, aos silêncio.
quadradinhos, usadas pelos ganhões alentejanos e a O ambiente, a dureza do trabalho, o clima hostil, a
que, não sei porquê, chamavam garibaldas. Eram as opressão e as injustiças que era obrigado a suportar
“alfaiatas” que as faziam e também preparavam os durante esse período de 40 a 45 dias, não eram, de
velhos chapéus de feltro forrando-os de sarja e modo algum, propícias ao seu desenvolvimento físico
pespontando-os em círculos para os tornarem mais e à boa formação da sua personalidade. Mais ainda,
duros e impermeáveis aos raios ardentes do sol. Para todo o dia debaixo daquele sol de fogo em que o
protegerem a nuca, usavam o tradicional lenço de termómetro subia aos 40° (Fialho de Almeida diz que
algodão vermelho que, a maior parte das vezes, chegava aos 50°, estava sujeito a insolações e, se as
usavam sob o chapéu para ensopar o suor. Também searas eram próximas de zonas pantanosas, onde
fazia parte da “copa” do “ratinho” um par de safões de os mosquitos atacavam em enxames, e bebendo
pele de cabra que usava ora com o pêlo para fora, ora muitas vezes água de charcos, onde bebiam cães e
para dentro, conforme o tempo que fizesse; um peitilho burros e os porcos chafurdavam, não estavam livres
e uma “braçadeira” da mesma pele para proteger o de contrair doenças, como as febres quartãs que
peito e envolver o braço esquerdo, defendendo-o dos segundo Brito Camacho, eram frequentes e só se
golpes ou da aspereza da palha. Como adereços para curavam com sulfato de quinino ou sulfato inglês. Diz
proteger os dedos, faziam dedeiras de cana que José da Silva Picão que era importante a percentagem
usariam no indicador, médio e anelar da mão esquerda de doentes “ ratinhos” nos hospitais alentejanos, onde
ou dedeiras de cabedal. Levavam , pelo menos, duas nem todos se curavam.
foices. Era indispensável a manta para, durante a Alguns “ratinhos”, que eram contratados para a ceifa
noite, se protegerem da “maresia”e do sol, durante a da cevada, iam mais cedo. Parece que não era tarefa
sesta, esticada sobre alguns molhos de trigo fácil, porque às vezes, a cevada era muito curta e
empinados, quando não havia árvores por perto. O obrigava o ceifeiro a andar numa posição muito
fato que levavam na viagem só o voltavam a vestir no incómoda. Falaram-me de um padre já velhote que,
regresso. Na véspera da partida, preparava-se o farnel: no confessionário, quando lhe aparecia um penitente
broas, chouriço e uma cabaça de zurrapa para ajudar ainda novo, lhe perguntava: “Já foste à ceifa ao
a engolir. Alentejo? Já ceifaste cevada janeirinha de cabeça para
Alguns ceifeiros levavam consigo filhos ou sobrinhos baixo?” Se a resposta era afirmativa, dizia-lhe: “Vai
que não estavam a servir, para os iniciarem na profissão em paz, que todos os teus pecados já te estão
e para trazerem mais algum dinheiro. Eram garotos perdoados...”
de 12 ou 13 anos (mas conheço um que foi aos 8 Os que iam para a ceifa do trigo partiam em meados
anos só para guardar a “copa”(1) e dar de beber aos de Maio; partiam cheios de entusiasmo os garotos
ceifeiros). Como se não lhes bastasse já a tortura de que iam pela primeira vez e ignoravam o que os
trabalharem nas propriedades dos pais, iam iniciar- esperava. Era receio quase medo o que sentiam os
se no trabalho mais duro que se pode conceber - que já lá tinham estado, mas que escondiam dos
trabalho de escravos - sob o olhar atento dos adultos outros para que não os julgassem fracos ou medricas.
e também dos familiares que os tinham levado e não Para quem ficava, a partida dos “ratinhos” era sempre
queriam que os deixassem ficar mal, perante o uma ocasião de tristeza, lágrimas, prelecção das mães
manajeiro que os tinha contratado. aos garotos, das esposas e namoradas aos adultos.
Era essa a idade de começar a ser “ratinho”. Esses Iam a pé, alguns com a bagagem em burros, mas a
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maioria levava-a às costas, nalguns casos conterrâneos, ceifeiros e manajeiro, com a anuência
acompanhados pelas mulheres que levavam parte da dos familiares, que os exploravam ao fazer as contas,
carga à cabeça, até ao Tejo, à barca da Amieira, como veremos adiante.
principalmente. Chegados aí, elas voltavam para casa O que os patrões não queriam, principalmente, era
e eles, passado o rio, continuavam a pé, se a herdade que a percentagem de garotos fosse muito elevada
onde iam ceifar não era muito longe, ou tomavam o em relação ao número de ceifeiros. José da Silva Picão
comboio no caso contrário. De todos os lados surgiam diz a este respeito, que os manajeiros “arranjavam
“ratinhos”, em grupos que iam engrossando, formando contradanças de pessoal” conseguindo que os garotos
“legiões” de muitas centenas que depois se iam escapassem como homens, para o beneficiarem a
separando novamente conforme se aproximassem das ele e aos ceifeiros adultos. Uma “exploração vil, que
searas que iriam ceifar. Fialho de Almeida, que não os pais dos garotos consentiam, por irem feitos no
tinha nenhuma simpatia pelos beirões, escreveu: jogo...”
“...mais ou menos todos os temos visto descer em Durante toda a temporada da ceifa, os “ratinhos”
récuas para os trabalhos agrícolas do Alentejo (...) ou que também trabalhavam ao domingo, só
vir das ceifas de Espanha...” descansavam no dia de Corpo de Deus, se acontecia
À chegada ao lugar do trabalho, descansavam dois já lá estarem, e no dia de S. João que, em anos atrás,
ou três dias, alimentando-se do que tinham levado, era dia santo de guarda. Eram os únicos dias em que
não só para se recomporem da maçada da viagem, se lavavam e escreviam à família.
mas para se organizar o trabalho. Eu imagino o estado A idade de ser “ratinho”! Essa idade terrível começava
em que chegariam os garotos que tivessem feito todo na infância e continuava na maturidade enquanto o
o percurso a pé! homem se sentisse com forças para ceifar ou, ao ser
A faina começava antes do romper do dia, “joeirado”, sofresse a humilhação de receber como
formando-se a “camarada” ou corte, à ordem do um garoto.
manajeiro, com os adultos devidamente equipados de Ao nascer do sol, já com algumas horas de trabalho
foice em punho e capitaneados pelo “cabeceira” que no corpo, a “cabeceira” interrompia a ceifa, tirava o
ocupava a ponta direita e substituía o manajeiro quando chapéu e exclamava em voz alta: “Bendito e louvado
este tinha de se ausentar. A ponta esquerda também seja o S.S.mo Sacramento! Todos os ceifeiros o
era ocupada por um ceifeiro de confiança que tinha a imitavam e, pondo a foice ao ombro, rezavam as suas
obrigação de auxiliar o ponta direita na orientação dos orações da manhã. Os garotos também rezavam, mas
ceifeiros. Ganhavam como os outros, recebendo não interrompiam a “atada” para não se atrasarem.
apenas, no fim da safra, uma gorgeta do lavrador. Acabada a reza, comiam o desejum - pão com queijo
Para os jovens “ratinhos” era o seu “baptismo” de que tinham guardado, porque o patrão só dava três
ceifa, embora ainda não ceifassem... O seu trabalho refeições. Voltavam ao trabalho até às 7 ou 8 horas
era a “atada’, isto é, tinham de reunir em molhos as que era a hora do almoço. Este constava de sopas de
paveias que os ceifeiros deixavam no restolho, atrás alho, com sal e uma colher de azeite mal cheia por
do corte. Com o joelho em terra, atavam as paveias cada pessoa. Ao referir-se a essas sopas, os “ratinhos”
reunidas, com vários colmos de trigo unidos e torcidos diziam:
junto às espigas, ou com junça, correias de trovisco, “Sopas de larum-tum-tum
etc., sempre numa corrida para não se atrasarem. Água e sal
Muitos deles mal podiam com os molhos que faziam, E azeite nenhum.....
mas mostravam-se diligentes e lestos, talvez por Logo a seguir à fraca refeição, voltavam a ceifar e a
receio de censura ou de castigo. Esse trabalho era atar até ao meio dia - hora de jantar em que já podiam
fiscalizado pelo guarda da herdade para evitar que os matar a fome. (Referindo-se à alimentação dos
garotos aldrabassem o serviço, por inexperiência ou “ratinhos” no Alentejo, um velhote que conheci nas
pela pressa que lhes impunham os superiores e os Forneas e que foi 40 anos à ceifa, dizia que em
parentes. Quando alguns molhos, mal atados, se Espanha era bem diferente: “era sempre boda”.)
desfaziam o guarda ralhava-lhes e queixava-se ao O jantar vinha cozinhado do monte, trazido pelo
manajeiro que, por sua vez, também se zangava com “tardão” ou “manteiro” (que não era “ratinho”) em
os garotos. O guarda, às vezes, queixava-se dos “asadas” de cobre brilhando ao sol, dispostas nas
“ratinhos” ao lavrador, falando-lhe da pouca idade e cangalhas de uma cavalgadura que ele montava. Ao
capacidade dos atadores que eles traziam. O patrão avistá-lo, cada um fazia o seu comentário, mas só
furioso, ameaçava de, no ano seguinte não os aceitar: largavam o trabalho quando o manajeiro anunciava o
“...para o ano, nem um só desses fedelhos ranhosos... jantar. Este compunha-se, invariavelmente, de “olha”
as mães que os desmamem lá na Beira... Nada que de grãos de bico adubada com toucinho, a “bóia” ,
eu pago-lhes como homens e como homens trato...” excepto às sextas e sábados que era temperada com
E era verdade: o lavrador pagava a todos os “ratinhos” azeite. Nestes dois dias, a “bóia” era substituída por
a mesma quantia e eram os seus próprios metade de um queijo. Ao domingo, além do toucinho,
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também havia morcela. as horas, às vezes 10 horas da noite! Mesmo que


Era o manajeiro que vasava a “olha” para dentro de fizessem ver ao manajeiro que já era tarde demais,
cada barranhão (alguidar de lata, individual), onde os ele repreendia-os com azedume, e só os mandava
ceifeiros migavam sopas de pão de trigo. Também largar já noite cerrada, dizendo, como era habitual:
era ele que dividia a “bóia” em tantas rações quantas “Seja louvado Nosso Senhor Jesus Cristo!.
as pessoas. Se havia por perto alguma azinheira, cada Ao largarem a foice, rezavam as orações da noite,
um com seu alguidar na mão, dirigia-se para a sombra; estendiam a “copa” no restolho e deitavam-se em
caso contrário, comiam ao sol, sentados no restolho cima: eram as suas camas, onde iriam repousar pouco
ou com um joelho em terra. Entretanto, tiravam a colher tempo porque, na madrugada seguinte, já teriam de
do chapéu mas só começavam a comer quando o recomeçar. Poderemos dedicar-lhes este poema de
manajeiro dizia em voz alta:” Com Jesus!”. Comendo António Salvado:
ao sol, comida quente, o suor escorria-lhes pelo corpo
em torrentes. “No pequeno intervalo entre a noite e o dia
Todos os dias, o jantar era de grãos de bico! Alguns, o saberem que ‘aí’ estão é o seu único dom...
que foram “ratinhos”, ainda hoje não são capazes dos
comer, de tal modo ficaram enjoados.. Mas o pão de Respiram pelas horas consumidas, refazendo
trigo ... podemos dizer, sem receio de errar, foi a melhor um novo tempo entre o silêncio e a acção...
compensação que esta gente, que só comia broa (e E o seu perfil limitado é feito de alguma fé ...
centeio pelas festas), teve nos trigais do Alentejo. E a sua existência aberta é feita de alguma
Ainda hoje, que já não comem pão de milho, ao esperança.”
recordar as refeições da ceifa, comentam: “Que rico
pão!”. No caso dos “ratinhos” é a fé que os leva a dizer
Depois do jantar, dormiam a sesta, procurando, de que todo o sofrimento é “a vontade de Deus” e a
qualquer modo proteger-se dos raios de fogo que, esperança é não só que o tempo passe depressa para
segundo Fialho de Almeida, atingia a temperatura das voltarem para junto dos seus, com aquela miséria de
primeiras 20 léguas de areia do Sahara. O repouso mesada, que para eles era uma pequena fortuna, mas
era de uma hora ou hora e meia, em que os ceifeiros ainda a esperança de que “um dia” - não sabiam
dormiam um pouco logo acordados pelo manajeiro quando nem como - a sua vida havia de melhorar.
com o grito de “Ala arriba!”. Enquanto os homens Acabada a tortura da ceifa, vinha a euforia: alguns
dormiam os garotos continuavam a atar, depois de atiravam as foices ao ar, cantavam e dançavam como
terem esfregado com palha do restolho o barranhão se já estivessem esquecido tanto sofrimento. Os
de cada ceifeiro até os deixarem a brilhar. manajeiros recebiam dos lavradores as importâncias
O trabalho tornava-se um inferno a essa hora, só das respectivas empreitadas (com as costumadas
suportado pelo estímulo do dinheiro. A sede era gorgetas: às vezes um presente de queijos e a venda
abrasadora:os homens bebiam com avidez, com barata de algum “burranco reles...”)
grandes goladas, a água, nem sempre fresca nem de De posse do dinheiro, o manajeiro mandava reunir
boa qualidade que o “tardão” lhes vinha a trazer. os ceifeiros, longe dos garotos para que não ouvissem
Florbela Espanca, poetisa alentejana, sabia como o que se ia passar: estendiam uma manta no chão e,
era a planície, no tempo das searas sazonadas. aí, o manajeiro colocava, em montículos, a quantia
“Horas mortas ...Curvada aos pés do Monte que havia recebido do lavrador respeitante ao número
A planície é um brasido ... e, torturadas, de homens (incluídos os garotos) e procedia-se à
As árvores sangrentas, revoltadas, “julgação” ou “joeiração”, que consistia em tirar de
Gritavam a Deus bênção duma fonte!” cada quinhão destinado a cada garoto, metade, dois
Como as árvores, às vezes tão distantes da seara, terços, três quartos ou mais. Se achavam que algum
no brasido da planície, torturados, os “ratinhos “também homem era inferior aos outros no trabalho, também
pediam a bênção de uma fonte... de água fresca... ele sofria desfalque no seu quinhão. A soma desse
À tarde, meia hora antes do sol-posto, comiam a dinheiro subtraído aos quinhões dos “joeirados” era
merenda que era apenas o tradicional gaspacho (até depois dividida, em partes iguais, pelos adultos que
costumavam dizer:”vamos gaspachar”) e algumas “saíram por inteiro”. Muitas vezes, estas operações
azeitonas como conduto. Descansavam apenas o provocavam contendas bem azedas porque o
tempo para comer e ler algumas cartas dos familiares manajeiro e alguns ceifeiros procuravam, ao máximo
distantes, enquanto os garotos iam dar de beber aos explorar os garotos, achando alguns que, até um quinto
burros. Entretanto, o sol ia-se escondendo como uma já era demais. Como é evidente, “o direito da força
enorme bola vermelha e os ceifeiros continuavam a prevalece sobre a força do direito” e os garotos vinham
sua labuta, um pouco menos dolorosa, porque já corria de lá, a maior parte das vezes, com uma ninharia.
uma agradável brisa que lhes refrescava os corpos. Alguns ceifeiros chegavam a enganá-los do seguinte
Eles ouviam, ao longe, os relógios das torres a dar modo: “ Vocês podem receber «por inteiro», mas têm
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de pagar a «patente» que era sempre uma quantia “ratinhos”. Nas freguesias do concelho de Proença-a-
avultada a entrar para o monte dos adultos. Crianças Nova, a festa do Sagrado Coração de Jesus, que
sem maldade nem astúcia, só pelo prazer de ganhar deveria realizar-se na 6ª feira a seguir à festa do Corpo
«por inteiro» aceitavam muito contentes e, quando de Deus, pela ausência de tantos homens ocupados
chegavam à terra, atiravam um foguete por terem na ceifa, foi transferida para as Têmporas do Outono,
atingido aquela honra. aproveitando-se para agradecer as graças pedidas nas
O manajeiro recebia ainda a “manajaria”, quantia Têmporas da Primavera. Na aldeia do Padrão, cujo
que, segundo o contrato, era retirada do monte de orago é S. João Baptista, festejado pela Igreja em 24
cada ceifeiro, incluindo os garotos. de Junho, ainda hoje a grande festa tem lugar na última
No dia imediato ao das contas, efectuava-se a partida semana de Agosto.
para a Beira, nos mesmos termos em que tinham Os “ratinhos” foram muito importantes para a
chegado, apenas com a diferença de que levavam mais produção de trigo no país - escravos do século XX!
burros... Em 1957, ainda foram ao Alentejo (mas de autocarro)
Nas localidades de que eram naturais, esperavam- 150 ceifeiros do concelho de Proença-a-Nova.
nos com grande ansiedade, porque a sua ausência A idade de ser ratinho acabou! A classe extinguiu-se
tinha causado grandes modificações no ritmo normal nos anos 60, substituída pelas máquinas.
dos seus costumes. Durante gerações, a ceifa foi um
acontecimento importante nestas povoações. Apesar
dos bailes domingueiros se continuassem a fazer na
eira, não tinham a alegria habitual porque faltavam
muitos rapazes. As mulheres casadas e as noivas,
que tinham os seus homens no Alentejo, não dançavam
“porque não parecia bem”. Então os cantadores, que
tinham ficado, dedicava-lhes cantigas que, por vezes,
as faziam chorar. Notas
“O caminho do Alentejo (1) No Alentejo costumavam chamar “cope” ao fato.
Todo o ano é seguido:
Os homens com as passadas
As mulheres com o sentido.
Bibliografia
Faz calor que abrasa o mundo
Senhor, manda a fresquidão,
Que anda o meu amor na ceifa Almeida, Fialho de, Os Gatos e Separata Ceifeiros.
Faltado de compreensão. Livraria Clássica Edidora, Porto, s/d.
Camacho, M. Brito, Memórias e Narrativas
Eu venho do Alentejo Alentejanas. Prefaciadas e seleccionadas por Óscar
Enfadado do caminho Lopes, Colecção Textos esquecidos. Guimarães
Já por aqui não há quem diga: Editores. Lda. Lisboa, 1988.
- Assenta-te um poucochinho.” Espanca. Florbela, Sonetos, Livraria Bertrand. Venda
Nova - Amadora. 1978.
Até as datas das festas religiosas mudaram, Picão, José da Silva, Através das Campas,
celebrando-se, no dia próprio do santo, apenas a Publicações D. Quixote. Colecção Portugal de Perto,
missa assinalada no calendário cristão. A festa, Lisboa. 1983.
propriamente dita, com a procissão e a parte profana Salvado, António, Antologia, Tip. Jornal do Fundão.
só se realizava mais tarde, depois da chegada dos 1985.
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O CONCELHO DE IDANHA-A-NOVA EM MEADOS DO SÉCULO XX


Dados para o Estudo da Vida Quotidiana na Raia Centro
A IDADE DO QUOTIDIANO

por António Maria Romeiro Carvalho*

1. As Fontes Escritas Utilizadas 3. Natalidade e Mortalidade

As Fontes utilizadas foram o Livro do Posto de A Fonte em estudo só nos fala dos vivos. Nada refere
Despiolhagem e Desinfecção, de Penha Garcia, dos mortos. Mas uma pesquisa no local conduz de
Monfortinho, Salvaterra do Extremo e São Miguel de imediato à informação de que rara era a família a quem
Acha, 1941. Este Livro encontra-se no arquivo da não morrera um ou dois filhos pequenos. Em alturas
Misericórdia de Idanha-a-Nova e não conhecemos de convergência de vários males - más colheitas,
qualquer outro nos Arquivos Paroquiais, das Juntas climas mais quentes, epidemias - aconteciam
de Freguesia ou no Arquivo da Câmara Municipal de autênticas mortandades. Como dizem algumas
Idanha-a-Nova. mulheres, «já nem o sino tocava, tantas eram as
mortes. Havia mulheres que nem despiam o luto: se
2. Composição do Lar não era familiar era vizinho ou amigo».
Doenças não faltavam e a ausência de médicos e
Existe vulgarizada a ideia que, no tempo dos nossos medicamentos, ausências estas agravadas pela falta
pais e avós, as famílias eram muito numerosas: pai, de higiene e por uma má alimentação, doenças como
mãe e cinco, seis, sete, dez ou mais filhos. Esta ideia a varíola, sarna, sesões, tifo ou doenças de pele
não corresponde à verdade. O mais frequente são os conduziam fatalmente ao cemitério.
lares com três membros - 22,5%. Os lares A uma forte natalidade corresponde uma igualmente
constituídos por dois a cinco membros, isto é, com forte mortalidade, dando razão a Cipolla, para 1950:
nenhum até três filhos, são 80% do total dos lares, com as taxas de 24,4 /1000 (natalidade) e 12,2/1000
enquanto 6,5% têm um só elemento. Com seis ou (mortalidade), Portugal é o país com as mais elevadas
mais membros, isto é, com quatro ou mais filhos, só taxas de entre um conjunto de países europeus
22% dos lares. constituído por Espanha, França, Inglaterra, Grécia,
É necessário imenso cuidado nas generalizações, Alemanha e Itália(1).
principalmente quando surgem de uma análise senti- O Concelho de Idanha-a-Nova, pelo menos até
mental. A admiração quase religiosa tida para com meados do século XX, possui uma demografia tipo de
aqueles pais, principalmente as mães, que criaram Antigo Regime: elevada natalidade e elevada
uma dezena de filhos e estes vieram a afirmar-se na mortalidade com cíclicos saldos negativos e rápidas
vida contra, muitas vezes, os dois ou o filho único das recuperações.
famílias mais ricas da aldeia, pode conduzir a Tentámos verificar o intervalo intergenésico, a fim
generalizações não correctas. de se analisar a fertilidade, mas não é possível
Contudo, a outra face da verdade é que a Fonte só qualquer conclusão. Os dados disponíveis são poucos
refere os moradores, os que estavam em casa, e, principalmente, a Fonte não informa quantos filhos
esquecendo os possíveis emigrantes. Mas, mais do teve o casal, se algum morreu e quando tal aconteceu.
que este facto, note-se que sempre são 22%, a quinta
parte dos lares da aldeia que têm quatro ou mais filhos. 4. Mortalidade Infantil
Um número suficientemente grande para se fazer
notado e permanecer na retina da memória individual A taxa de mortalidade é enorme, como atrás ficou
e colectiva. dito. Para ela contribui de forma esmagadora a
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mortalidade infantil, fornecendo quase metade dos significado decorativo, (mais visível na mantilha das
óbitos. Também por esta razão, permanece na «senhoras»), o xaile é o quente para o filhinho e a
memória individual e colectiva a alta fertilidade dos peça que, não só pela sua resistência, melhor passa
nossos avós(2). As causas, bem como os ambientes da mãe (avó) para a filha (mãe). O xaile é negro e, na
de nascimento e crescimento, são em tudo viúva, tudo tapa: o frio e a tristeza.
semelhantes às dos séculos anteriores.
Problemas derivados do parto, da amamentação, 6. Habitação
do trabalho árduo das mães, das águas, dos frutos e
da alimentação do bébé são uma permanência. A grande maioria das casas não excede a superfície
Sarampo e desidratação são doenças que de 30 m2 e os 4 metros de altura. Possui de um a
frequentemente matam. quatro compartimentos, divisões feitas, na melhor das
A todos estes problemas de mortalidade infantil hipóteses de paredes-«taipa». Possui nenhuma ou
típicos de Antigo Regime, dever-se-á juntar um novo: uma só janela. Casas com duas janelas não chegam
a mudança na relação família-criança. No centro desta a 20% do total.
relação é agora colocado o sentimento. Este facto A casa dominante tem um só piso e uma só porta
criou, estamos em crer, graves problemas de índole para o exterior. A pavimentação é de soalho, para o 1°
psicológica a todos os membros da família e andar e térrea, o caso do Ladoeiro (e possivelmente
certamente a toda a aldeia. Mulheres de luto de outras freguesias) é interessante: o chão das casas
carregado desde cedo e para toda a vida, em toda era bosteado, isto é, dilui-se o excremento de vaca
uma região (e um país), um ambiente de tristeza, de («bosta santa») em água e vassoura-se o chão.
redução de energias, de introversão e de maior ficando este brilhante como o ouro e bem cheiroso.
frequência dos ofícios religiosos, nomeadamente os Na Páscoa, época da limpeza geral da casa, do corpo,
mais macabros, os relacionados com o culto dos da alma e da aldeia, ia o padre «dar as Boas Festas»
mortos. Eis um tema para um estudo aprofundado: o a todos os lares e era um regalo este cheiro a lavado.
peso do negro das mães e das viúvas no Social da Regra geral, só há uma cama em casa: é a cama
aldeia portuguesa. Um estudo ainda não feito. do casal. Às vezes, há uma também para a filha, filhas
ou filhos, como a sardinha em lata, enquanto
5. Vestuário. O Lenço e o Xaile pequenos: uns com os pés para a cabeceira, outros
com eles para o fim da cama. Quando granditos, vão
O vestuário é pouco e praticamente reduzido a duas os filhos para o palheiro. Despem-se e metem-se nus
peças de cada elemento. São roupas femininas: saiote, na palha, que aquece e enchuga. Embora pouco
saia, corpete, blusa, camisa e o lenço, dobrado em dizendo, a média, só conhecemos para Penha Garcia,
três e atado pelo cimo da cabeça, ao queixo ou sabe- é de uma cama para nove pessoas.
se lá... São roupas masculinas: calças, casaco, Muitas casas têm quintal, como em Penha Garcia.
camisa, ceroulas, colete e chapéu. As crianças Mas a maioria, noutras freguesias, não o tem, como
usavam um macaco de perna curta e sem mangas, o demonstra São Miguel de Acha. Só algumas casas
com abertura atrás e à frente para que as necessidades -20%-têm estrumeira. Em Penha Garcia, a grande
fisiológicas fossem feitas sem problemas e com maioria das casas -84%- tem estábulo («loja») e
menos trabalho para as mães. Isto, quando não animais em casa, principalmente galinhas. Também
andavam à «pai Adão». outros animais, como suínos, vacas e jumentos
Calçado? O que traziam à nascença. Quando coabitam vulgarmente no Concelho.
chegavam a uma idade mais adulta, quando «já parecia
mal» e o bolso o permitia, o sapateiro fazia uns pesados 7. Higiene
sapatos, botas ou tamancos a partir de um dos dois
ou três moldes que a sua oficina possuía. A Fonte coloca duas perguntas aos inquiridos acerca
Mas voltemos ao vestuário feminino, porque a moda da higiene: se há hábitos de higiene em casa e se
é mulher. E voltemos ao lenço, a peça de vestuário têm a casa limpa. Tanto em Penha Garcia como em
que, segundo cremos, era a mais significante e São Miguel de Acha, as casas apresentam-se limpas,
insinuante. No trabalho e na festa, na rua e mesmo na quase totalidade dos casos -95%. Hábitos de
dentro de casa, o lenço era sempre usado pela mulher. higiene não existem em Penha Garcia -95%-, mas
Dobrado em três pontas e atado. No modo de atar e tem-nos São Miguel de Acha -75%.
no local onde era atado, um significado; lenço mais Estranho facto este fornecido pela Fonte quando se
caído sobre a testa até ao lenço totalmente caído sobre sabe que, mesmo hoje, não estão generalizados os
o pescoço, isto para além da cor e do desenho hábitos de higiene na população rural portuguesa.
decorativo, muitos outros significados: solteira ou Cremos haver aqui uma diferença acentuada de
casada, tímida ou extrovertida, séria ou brincalhona... inquiridor para inquiridor quanto à noção do que eram
O xaile é a peça da mulher-mãe. Para além de um hábitos de higiene. Não era hábito lavar as mãos antes
55

de comer, ou mesmo tomar banho mais que uma vez carne só mesmo de festa em festa. Vulgarmente, nem
por ano. Era hábito dormir com a roupa do dia e com mesmo se come a cabrita, a ovelha ou o porco que
ela iniciar outro dia de trabalho. Não havia retretes ou se criou. São o mealheiro do lar. Um almoço
casas de banho. Não havia higiene dentária, salvo o domingueiro feito de sopa de feijão vermelho e, por
alicate do barbeiro. Cuspir e escarrar para o chão de segundo prato, feijão vermelho cozido e regado com
terra batida ou de pedra de ferro, onde circulam cães azeite é manjar do Olimpo. O feijão grande é uma
vadios, era hábito ainda hoje conservado. raridade no Concelho de Idanha-a-Nova e o principal
Na rua se faziam despejos e lançavam penicadas. bem de troca com a olaria idanhense Um copo de
isto é, feses, urinas e águas sujas. Todas as ruas vinho feito das uvas dadas por Deus e quatro pés de
tinham lixo e muitas lixeiras. Na parte baixa da vinha ou o copo posteriormente bebido na taberna
povoação, geralmente junto a um curso de água, completa a refeição de Domingos e festas.
normalmente até seco no Verão, existe a maior lixeira Na dieta alimentar do Concelho têm certa
da aldeia e o principal local de recepção de dejectos importância os alimentos silvestres. São cogumelos
individuais e colectivos, um local de pastagem de cães, ou tortulhos, agriões, rabaças, criadilhas, amoras,
moscas e doenças. Só uma boa invernada limpava bolotas de azinheira, leitugas e baldregas. Carne de
estas lixeiras. Mais limpas, porém, seriam as caça é privilégio de uns poucos que têm arma ou pos-
capoeiras das galinhas que habitavam no vão das ses para adquirir caça aos caçadores da aldeia.
escadas ou do balcão e cujo estrume era ouro para O peixe é a sardinha ou o bacalhau. Raros e caros.
quatro pés de tomate e um metro quadrado de feijão Peixe do rio, igualmente raro. Aliás, «peixe não puxa
de embarrar plantados na horta. carroça».
No respeitante a todas as donas de casa terem a
casa limpa, nada nos custa a acreditar nos números 9. Idades
apresentados: qual a mulher que conseguiria resistir
às bocas das vizinhas? A população do Concelho de Idanha-a-Nova é jovem
e situa-se na faixa etária da energia e da produtividade.
8. Alimentação: «Encha-se o Tambor, seja do Noventa e um por cento dos recenseados, em 1944,
que for» situa-se na faixa etária mais activa: 20-64 anos. Cerca
de 20% da população andaria entre os 20 e os 45
A alimentação é má, já o dissemos. Essencialmente anos, enquanto 15% se situaria entre os 46 e os 65.
vegetal e primordialmente pão. O pão era o centro e o Não começou ainda a sangria da emigração para a
motivo primeiro do trabalho, para além de ser um bom Europa e para o litoral. Existe ainda o domínio do
definidor do estatuto social. Pão de trigo ou de centeio, Primário e da ruralidade, como se pode vislumbrar no
conforme as posses e a produção cerealífera da ponto dez.
povoação. Por exemplo, come-se quase só pão de
trigo no Rosmaninhal e quase só pão de centeio no 10. Economia. Profissões
Ladoeiro. Isto, claro, em épocas normais pois que,
em anos de crise, não existe regra e come-se até Através do Recenseamento Eleitoral de 1944,
pão de farelo se se o apanha. observa-se que a economia assenta no sector Primário,
A riqueza da aldeia é medida pela produção de trigo. já que 67% dos recenseados trabalha na agricultura(3).
O «pãozinho de Deus» é deificado: é pecado não o Os sectores Secundário e Terciário possuem números
colocar sempre de costas no cesto, ou não o beijar semelhantes entre si, 14% e 19%, respectivamente.
quando se apanha do chão. A similitude com o pão Se se ultrapassar a diferente designação, saber-
Corpo de Cristo é total e, no essencial, indiferenciável. se-á que os jornaleiros constituem 68% do sector
A maioria da população come caldo: uma sopa de Primário da economia do Concelho e 46% do total
vegetais temperada com sal e um pedaço de toucinho dos recenseados. É claro que há neste grupo social
ou farinheira. Conforme a posse da família e conforme vários matizes. Do que nada possui para além da
a povoação, entrava o azeite no tempero. Caldo logo roupa que lhe cobre o corpo e a sua imensa prole, ao
de manhã - almoço, e caldo à noite - ceia, com um que possui 250 m2 de horta, uma cabra, um jumento
pedaço de toucinho, farinheira, um terço de sardinha, e um casinha, vai toda uma pleiade de variedades.
ou nada. Indo trabalhar, levava-se a merenda, donde Haverá mesmo aquele jornaleiro que possui um bom
se comia o jantar e a merenda: pão, azeitonas, pedaço de terra e até meia dúzia de cabras e ovelhas
azeitonas e pão com um naco de toucinho ou enchido. que ocupam a mulher e os filhos jovens e ele só faz
Tudo isto depende da riqueza familiar, do dia e da alguns meses à jorna. Em todos, de igual, o trabalho
época. Domingos, festas ou dias santos e épocas de diário por conta de outrem a dominar as suas vidas e
ceifa tinham dieta melhorada. os orçamentos familiares. Uma prova clara do
Nestes dias, havia carne do talho ou da salgadeira, predomínio do trabalho assalariado nos campos
mas quase sempre e só carne de porco. Fartura de raianos e mesmo a sua proletarização.
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Se entendermos lavrador como o que trabalha dos comerciantes e dos guardas republicanos e
exclusivamente para si e nas suas terras (ou guardas fiscais, reformados ou em serviço.
arrendadas), o pequeno número destes lavradores
radicalizará a sociedade agrícola-rural em dois grupos: 11. Nota Final
proprietários e jornaleiros. No Rosmaninhal, Medelim
e Idanha-a-Velha, o sector Primário só tem De tudo o que ficou dito, poderá permanecer a ideia
proprietários e jornaleiros. Em São Miguel de Acha, que os nossos pais e avós viviam mal, pobremente,
apenas um grupo de 29 pastores impede uma igual esfomeados, sem divertimentos, sem sorrisos, sem
afirmação; contudo, aqui tudo parece indicar que estes vestuário e sem espaço. Enfim. tempos infelizes.
pastores são assalaridos e não donos. É vulgar tal pensar e afirmar, seja da parte de
Os assalariados agrícolas constituem um grupo, do estudiosos, seja da parte dos avós, seja da parte dos
netos. Pensar que os nossos avós eram infelizes
porque não tinham o que nós temos hoje - hipers
cheios de tudo o que é bom, auto-estradas,
discotecas...- é o mesmo que pensar que Cristóvão
Colombo era infeliz porque não tinha automóvel ou
não viajava de Concorde. Não se olhe para este
universo com olhos de miserabilismo. Ao contrário,
este viver deve encher-nos de espanto. Dando provas
de uma secular e eficaz gestão do lar, conseguiram
viver nestas limitações. Uma diferente gestão de
riqueza, espaço e tempo hoje já (quase)
incompreensíveis.

* Professor de História do Ensino Secundário.


Investigador do EDS - Instituto para o Estudo e
Divulgação Sociológica, UNL

Notas

1- C.M. Cipolla, História Económica da População


Mundial, p. 82
2 Dcf. António M.R. Carvalho, «População do Concelho
de Idanha-a-Nova (1860-1910)», pp. 32-34
3 Portugal possui a maior percentagem de população
activa trabalhando na agricultura na Europa Ocidental, a
par da Grécia que tem 48%. Dcf. C.M.Cipolla, Opos Cit.
p. 29

12. Fontes e Bibliografia

Fontes Informantes
total dos recenseados, que vai desde o mínimo, que O número de pessoas com quem falámos ao longo
é 37% - Alcafozes e Oledo - até ao máximo, que é de todos estes anos é de tal forma longo que se torna
54% e pertence a Monsanto. Para além do predomínio impossível aqui individualizar.
do sector Primário é pois visível a proletarização do
Concelho a par da influência dos empregos nas forças Fontes Escritas
militarizadas - 5% do total dos recenseados. Livro do Posto de Despiolhagem e Desinfecção de
Não há indústria no Concelho de Idanha-a-Nova, Penha Garcia, Monfortinho, Salvaterra da Extremo e
apenas oficinas. Não há operários, apenas artífices. São Miguel de Acha, 1941
Se concluirmos isto da análise do sector Secundário, Recenseamento Eleitoral do Concelho de Idanha-
o Terciário fala do predomínio das viúvas domésticas, a-Nova, 1944
57

Bibliografia CIPOLLA, Carlo M., História Económica da


População Mundial, Rio de Janeiro, Zahar Editores,
1977, pp. 143
ESTEVES, Maria Helena Geraldes. «O Trajo Popu-
CARVALHO, António Maria Romeiro, Introdução e lar». Trabalho Dactilografado, Idanha-a-Nova, 1993, pp.
Explosão do Capitalismo nos Campos de Idanha-a- 13
Nova a partir da Memória dos Vivos, Dissertação de NAZARETH, J. Manuel. O Envelhecimento da
Mestrado, U N.L.. 1993. pp. 143 População Portuguesa, Lisboa, Editorial Presença,
Idem, «População do Concelho de Idanha-a-Nova 1979, pp. 239
(1860-1910)», Cadernos de Cultura, n° 5, Castelo ROMAO, Maria Edite Caldeira, «Alimentação».
Branco, 1992. pp. 32-34 Trabalho Dactilografado, Idanha-a-Nova. 1993. pp. 14.
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O FIO DE LÂQUESIS...NAS PALAVRAS DOS POETAS

por Maria de Lurdes Gouveia da Costa Barata*

“ ... a fraqueza dos meninos, a impetuosidade dos Brinca instintivamente


jovens, a gravidade da idade viril e a maturidade da Como um bicho!
velhice têm qualquer coisa de natural, que deve ser Fura os olhos do tempo,
recolhida no seu tempo”. E à volta do seu pasmo alvar
De cabra-cega tonta,
Marco Túlio Cícero A saltar e a correr,
Desafronta
O adulto que hás-de ser!
Dizem que as fiandeiras da vida eram cruéis e nem
os deuses podiam intervir no seu trabalho: Cloto Miguel Torga (Coimbra, 16 de Março de 1960),
segura a roca, presidindo ao nascimento do homem; Antologia Poética
Lâquesis desenrola o fio, fazendo girar o fuso e Átropos
corta-o. É esta terceira Parca que mais afronta os Furar os olhos do tempo, porque é no tempo que
homens... tudo se volatiliza... ideia que Torga também guarda
O ser humano, porém, aproveita o girar do fuso de num verso doutro poema: “ Tempo - definição da
Lâquesis e assume o seu destino nesse durante, na angústia!”, uma angústia de que só se vai
esperança, sempre, dum longo fio desenrolado... progressivamente tomando consciência à medida que
Ninguém é poupado do corte de Atropos (e Parca, do Lâquesis maneja o precioso fuso.
latim parcere - poupar...). No entanto, quem não se lembra dos longos dias
Se foram geradas por Zeus e Témis (que encarna a da meninice, que nunca mais acabavam, do
justiça), outra genealogia as dá como filhas da Noite, tempo-para-tudo, do passar lento do tempo? A
filhas de Aqueronte... novidade e descoberta da vida, das coisas da Natureza,
Durante o desenrolar do fio se passam as Idades das coisas dos homens. O olhar virgem e demorado
do homem. A ponta do começo tem a atracção do sobre as coisas... Daí que o poeta seja comparado
que é novo, com vigor de crescimento: a graciosidade às crianças por nunca perder esse olhar especial.
da infância, um cais sempre evocado pelos poetas: A vida enche-se de maravilhamento que inunda a
“Branco, branco e orvalhado, / o tempo das crianças alma. (É evidente que falamos num plano genérico,
e dos álamos.” (Eugénio de Andrade, Da Memória, sem referir o drama dos homens que nunca foram
Coração do Dia); um tempo de olhar inviolado, tempo meninos, como diz Soeiro Pereira Gomes na
de gritos das crianças que “exaustas fixam mais e introdução do livro Esteiros, porque há crianças para
mais remoto / esse mar nunca mais atravessado.” quem a vida se revela exigindo-lhes de imediato forças
(António Salvado, Infância, O Corpo do Coração); são de homens).
“as lições da infância / desaprendidas na idade Depois vem o tempo do arrebatamento adolescente,
madura.” (Drummond de Andrade, Obra Poética, 2° (...)
vol.), ideia reiterada em corpos recém-chegados dos ombros da noite,
Vós, braços transparentes dos deuses, atravessais
PEDAGOGIA como raios de sol o coração dos sonhos!
Brinca enquanto souberes! (...)
Tudo o que é bom e belo filhos trémulos de sóis, vossos lábios com gosto
Se desaprende... de angústia,
A vida compra e vende lábios totais, pássaros elásticos do calor
A perdição. dourado dos beijos,
Alheado e feliz, povoais uma festa perfeita, a rápida festa absoluta
Brinca no mundo da imaginação, de viajantes suspensos sobre a Morte.
Que nenhum outro mundo contradiz! Vós, os de risos esbanjando as flautas
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dos instantes, destino na terra depois do Paraíso perdido, que Torga


intermináveis irmãos das grandes coisas sem defende dever procurar-se aqui e agora. Toda a sua
sentido, obra o documenta. Eis um momento:
concluindo os deuses inevitáveis do eterno!
Victor Matos e Sã, Horizonte dos Dias. CANTILENA DA PEDRA
Sem musa que me inspire,
com pujança de sonhos e de ideais no espanto de Canto como um pedreiro
descoberta do seu todo - corpo e alma - consciência Que, de forma singela,
de identificação dum corpo que o fará completar a Embala a sua pedra pela serra fora...
participação plena no mistério da vida. Upa! que lá vai ela!
Upa! que vai agora!
Nos muros adolescentes
apareciam na cal A pedra penitente que eu arrasto
iniciações sagradas, Tem o tamanho de uma vida humana.
riscos, traços, curvas, E só nesta toada a movimento,
sóis estreitos de Vénus Embora o salmo já me saia rouco.
- toda a geometria suja Upa! meu sofrimento!
dos alfabetos obscenos. Upa! que falta pouco...
Miguel Torga (30 de Julho de 1968),
Sinais que nos guiavam Antologia Poética
de muro em muro
para os lençóis de lama secreta O homem assume, por opção e liberdade, um
nas catacumbas. caminho que vai traçando. Nos desiludidos sonhos,
José Gomes Ferreira, Obra Poética ainda a esperança e a capacidade de edificar:
Completa, 3º vol.. (...)
No dentro da incerteza a construção se mostra
O adolescente torna-se crítico, agressivo perante edificada
uma sociedade que não tem espaço para a realização enquanto adormecemos à beira do regato seco
dos seus sonhos, culpabilizando os da sua espécie, ou bebemos na aridez dos sonhos destruídos
os outros homens, que não a souberam construir à a directriz traçada pela primeira alegria -
medida da aproximação, pelo menos, dum ideal. É quando os dedos aprendiam a tocar as coisas
tempo de rebeldia, de alma inteira, amando com pleni- simples.
tude, sem entraves, recusando, com recusas radicais. as coisas ternas da infância, a refazer
O tempo sempre a correr... e, num ápice, a pequenos barcos azuis sulcando o mar
responsabilidade de ter crescido - a profissão, o da esperança...
emprego, o querer construir o seu mundo familiar. Na
nossa sociedade começa cedo o travo do tempo que Pensar nos sons agudos dessa presença apagada.
vai definindo a angústia da dificuldade do futuro, que o recolher na palma da mão os frutos do-já-ter-sido,
jovem vê com a desilusão antecipada de ter de é caminhar até ao impossível, clarificar a solidão...
competir cada vez mais. (...)
Vem a idade madura, a manifestação da pujança António Salvado, Recôndito
física e intelectual, a consciência da realidade, que (do livro homónimo)
em nada corresponde aos sonhos de adolescente. O
aspecto material começa a pesar, e tanto, em alguns À medida que Lâquesis vai desenrolando o fio da
casos, que se escamoteiam os prazeres da fruição vida, mais cada ser humano se agarra a ele num amor
da vida por si própria. O prazer de viver, saboreando-o inesgotável. Viver é a certeza palpável, viver é dom
lentamente. Todavia, o Tempo não perdoa: “Tudo é misterioso que uma outra certeza perturba: a certeza
calmo e leve / como o teu olhar... / Uma ave breve / da morte, que faz despertar o homem absurdo, que
atravessa o ar... / (...) Já não sei quem sou. / Adoro- ainda ama a vida aspirada num hausto de sensações.
te, sabes? / No meu amor cabes / e... A ave? - Mas nessa idade madura, a força vital é a força da
Passou. (António Salvado, ANTOlogia). Natureza:
Cada vez mais, a luta incessante - o homem, um
Sísifo, carregando continuadamente a pedra até ao Senhor, deitou-se a meu lado
cimo do monte, para rebolar de novo e de novo E cheirava a maçã como no dia
recomeçar... Tremendo castigo dos deuses! Mas é aí Em que o primeiro pecado
que se assume a dignidade de ser homem: aceitar Furava a terra e nascia.
essa luta, não desanimando para não desmerecer - Era preciso lutar,
60

Cuspir-lhe o corpo, que vi do efémero e provoca a dor de cada ser por ser o
E era como um pomar!... próprio culpado do sofrimento, quando constata,
Senhor, eu então comi. tardiamente, que foi abdicando e adiando. O adiado
Miguel Torga, Relato (Coimbra, 27 de Fevereiro de nunca mais é vivido com a força dum certo tempo
1939), Ant. Poética marcado no fio de Lâquesis:

E os poetas são amantes da vida: Constrói com as tuas mãos o dia de hoje
que amanhã veloz o tempo não será
É o amor que me inspira. igual à força do momento agora...
Amo a vida, esta bela prostituta. (...)
Esta mulher tão pura e dissoluta António Salvado,
No mesmo instante, Difícil Passagem, p.51.
Que não dá tréguas a nenhum amante.
(...) Uma contínua aprendizagem do homem se
Miguel Torga, Ditirambo (Coimbra, concretiza no seu viver, uma aprendizagem tanto mais
25 /06/1958), Ant. Poét. formativa, quanto mais ele tem consciência das suas
quedas, quanto mais corajoso for, não desistindo da
Por isso, o mesmo poeta reitera este amor no Mad- luta, afirmando-se com autenticidade. Porque viver é
rigal dos cinquenta anos (18 de Julho de 1957, estar desperto e atento. “Quanto mais profundamente
Coimbra): se dorme, mais estremunhado se acorda com a
realidade. Ninguém vive indefinidamente entre
Com as mesmas palavras do passado, parêntesis” (Miguel Torga, Diário XV, p.95).
Digo que te desejo, vida! O homem colhe da plenitude de ser e de se afirmar
E como um namorado na pertinácia de não desistir nunca da vida. Porém...
Que desmede a paixão, já desmedida, subtilmente, o corpo começa a dar o sinal duma
Prometo espécie de juro pago na totalidade da entrega:
Ser-te fiel sem esperança.
Fiel à consciente VÉNUS ENVELHECIDA
Temeridade Arrefeceu a cor dos teus cabelos.
De amar intensamente O tempo tudo apaga e desfigura...
Sem mocidade... Que palha triga, sensual, madura,
O loiro resplendor que rememoro!
No homem renasce continuamente aquele Ícaro que Chove ou sou eu que choro
queria chegar ao céu, mesmo com asas de cera, que Desiludido?
o calor do sol iria derreter e precipitar no mar... O sol Como era quente o oiro da seara!
dos sonhos queima, mas a tentativa é válida. E no Ah, deusa sem tiara,
homem há sempre asas de Ícaro, substitutas de outras Mito desvanecido!
asas já derretidas... Miguel Torga (Miramar, 16 de Agosto
Mas o Tempo espreita cada minuto da sua espera: de 1963), Ant. Poét.,

ESPERA numa angústia, mesmo Pesadelo, como diz Raúl


Aguardo as minhas mãos, aguardo de Andrade: “Coisa estranha como a cor / Arrancada
enfim a forma desejada duma tela, / A alma absorta na dor / De não ter corpo
na espera longa permitida p’ra ela (Pontos de Vista - Poemas).
e tão sonhada, tão sonhada. Aquela consciência de que Átropos está sempre
Quebro o meu ser no fogo em que ardo, atenta ao fio, para o cortar, torna-se incisiva e
em cinza eterna a minha vida acutilante. Muitos homens apercebem-se sempre da
se desfaz!... Que frio sustém sua sombra. Têm mais mérito na teimosia da sua
no entanto a longínqua hora luta. Porque é lógico a presença da morte gerar o
para que eu me perca no tempo homem absurdo. Mas o coração e a alma têm a lógica
que me parece haver lá fora? da sua força: teimar na esperança de cada instante,
Ah! Tempo que o tempo retém poética da vida, no sussurro do carpe diem...
sem permitir que chegue o Tempo! A sociedade, exigente de produção material à vista,
António Salvado, Recôndito. estipulou que o homem tem uma terceira idade e tornou
necessário reformar o homem. Estipulou-se a velhice
É a crueldade do tempo sádica e masoquista em como uma doença... “ Não há nenhuma doença
simultâneo: faz sofrer pela agressão concreta do gosto chamada envelhecimento, como não há nenhuma
61

chamada adolescência. A velhice é uma invenção do par da fragilidade somática”, como dizia Freud,
homem” (Almerindo Lessa, Público Magazine, 22/08/ seguido, na mesma ideia, por Almerindo Lessa: “a
1993). idade cronológica (...) não tem nada a ver com a idade
Porém, a verdade é que a seguir a um período mais biológica, ninguém tem os anos do bilhete de
ou menos longo de maturidade, há um processo identidade”. Diz-nos Florbela Espanca (Pior Velhice,
desfavorável, de perda, constatado em todos os Sonetos):
homens, com maior ou menor relevo. Diego Diaz cita
Henry de Montherland, que afirma: “Sempre se diz Sou velha e triste. Nunca o alvorecer
que a borboleta saiu de uma lagarta; no homem, é a Dum riso são andou na minha boca!
borboleta que se converte em lagarta”. Gritando que me acudam, em voz rouca,
A angústia instilada por Cronos torna-se cada vez Eu, náufraga da Vida, ando a morrer!
mais pungente, porque há uma aproximação da morte (...)
- há a certeza da sombra de Átropos debruçada sobre
o fio, atenta e agoirenta. E dizem que sou nova... A mocidade
Sabemos que muitos jovens e homens em pleni- Estará só, então, na nossa idade,
tude de vida são colhidos pela morte. Inesperada. Mas Ou está em nós e em nosso peito mora?!
agora é tempo de a pressentir. Só que muitos não se
entregam a esse pressentimento, afrontando-o com Tenho a pior velhice, a que é mais triste,
a alegria do próprio viver: saborear, tocar, aspirar, ver Aquela onde nem sequer existe
e ouvir... mesmo que tenha de se encostar o ouvido Lembrança de ter sido nova... outrora...
para distinguir sussurros... um murmúrio de futuro,
uma ressonância de passado cheio de vozes que Muitas estatísticas têm também demonstrado que
povoam a memória. os seres humanos com trabalho intelectual
Se há momentos de desânimo, como conseguem maior longevidade.
Este prolongamento da vida é procura contínua do
CILÍCIO homem em elixires, como demanda de Graal, em
São tristes estes dias de velhice. tentativas de cientistas, como Sérgio Voronoff e os
O sol já não aquece, seus transplantes de glândulas de macacos, de que
Nenhum sonho apetece, havemos notícia de algum êxito, mas que hoje deixa
Os versos desfalecem ao nascer. a dúvida de ser germe do pesadelo SIDA - uma carga
Mas há não sei que sádico prazer, demasiado pesada para conseguir a juventude que a
Que infernal sedução, Natureza não quer preservar.
Numa melancolia assim desamparada. Nos nossos dedos tem corrido o fio de Lâquesis, o
É como ter razão fio anónimo dum qualquer ser humano, conferindo as
Numa causa perdida, mal julgada. medidas das Idades. Agora a tremura do fio quase no
Miguel Torga (Coimbra, 11 de Novembro fim... Digo tremura, porque esta fase pode
de 1982), Ant. Poét., apresentar-se-nos triste, com um travor de solidão e
amargura, numa época que deveria ser a da serenidade
há também sádico prazer, infernal sedução, que é e a da paz, não a dum tempo em que se traduz a
a sedução da vida. É esta que faz a velha história dos filhos que levam o pai, o velho, para
a montanha, deixando-lhe somente uma manta para
PRESCRIÇÃO se cobrir no espaço da morte. Decerto viria breve com
Deixa passar as horas o abandono e a solidão. Mas é esse espaço que vem
Sem as contar. até nós no correr dos dias: IDOSOS QUE NINGUÉM
Alheia a cada instante, QUER ENTREGUES À SOLIDÃO (Jornal de Notícias,
Vive, a viver a vida, a eternidade. 5 de Março de 1994); IDOSOS REJEITAM CENTRO
Feliz é quem não sabe DE DIA (Diário de Notícias, 9/10/94), e crónicas,
A própria idade alertas daqueles que têm maior consciência da
E em nenhum ano pode envelhecer. mesma-condição-um-dia, como, por exemplo, Maria
Dura encantada na realidade. Judite de Carvalho:
Negar o tempo é o modo de o vencer.
Miguel Torga (Coimbra, 30 de Junho “ Ei-los que esperam ao sol. Esperam o quê, quem?
de 1983), Antologia Poética Estão sentados, vegetais com raízes no dia de ontem,
esquecidos de quem são, de quem foram - foram-no
Um estado de espírito se insere na mensagem do há tanto tempo! - e com frio.
poeta e é este estado uma condição da capacidade Desconhecem este mundo em que subsistem e que
de amar - uma “sobrevivência da vida intelectual a os ignora. Desconhecem palavras como gerontologia
62

e reciclagem, inúteis, pesados aos filhos e mais ainda se levam a cabo por meio da força ou da velocidade
às noras e aos genros. Pesos mortos que têm de ser ou da agilidade do corpo, mas sim pela sabedoria,
alimentados, vestidos, alojados, suportados. E há pela autoridade e pelos bons conselhos”.
quem julgue que tem lugar no céu só porque os Outros homens há: os que sentem a tortura de se
alimenta, os veste, os aloja, os suporta.(...) Esperam sentir a mais, de serem desprezados e esquecidos,
portanto ao sol, quando há sol. Se chove têm a parede de apenas ouvirem palavra-grito: “veja o que está a
em frente, ou o écran em frente, ou ainda o transistor fazer!; Olhe que suja tudo!; Eu não aguento com este
ou um jornal lido, esquecido, lido de novo. Há quanto trabalho!” e sei lá que mais...
tempo os reformou a vida? Sem ordenado por inteiro, Nos humanos Bichos de Torga, é um cão, Nero,
naturalmente. Sem nenhum ordenado tantas vezes. que exprime a aflição de estar velho e às portas da
Pô-los de parte, só isso. São os velhos, os morte: “Que para chegar à miséria presente, antes
imprestáveis. Uma espécie de disposables deste tivesse morrido também. Ao menos, deixava
mundo que cada vez venera menos os velhos”. saudades. Assim, acabava de velhice, podre por
VELHOS, O Homem no Arame. dentro, a meter fastio a toda a gente. (...) Agora lia
nos olhos de todos o desejo de que partisse o mais
A última estrofe de O Guardador de Rebanhos depressa possível (...)”.
(Alberto Caeiro, Fernando Pessoa) teima numa Os homens consideram outros homens na terceira
jura de amor à vida, renovada em cada instante: “É idade, esquecendo que o tempo é cavalo louco que
talvez o último dia da minha vida. / Saudei o Sol também os vai derrubar, esquecendo que esses que
levantando a mão direita, / Mas não o saudei, dizendo- consideram velhos poderiam ser socialmente
lhe adeus, / Fiz sinal de gostar de o ver antes: mais produtivos (já que os seus negócios são sempre
nada”. números..) com actividades menos duradoiras (e a
São ainda os velhos da cidade de Lisboa, que pode ideia não é minha), proporcionando continuidade da
traduzir outra cidade qualquer, que falam nas palavras sua integração e colhendo frutos do saber de
do poeta Alexandre O’Neill: experiência feito e da autoridade decorrente. Mas o
que acontece? No final da vida, o homem sente-se
Em suma: somos os velhos. despojo - da família, da sociedade, dos outros
cheios de cuspo e conselhos. homens. Um extremo de horror pode ler-se em O beco
velhos que ninguém atura onde mora o rei Lear, de Eça de Queirós (Farsas,
a não ser a literatura Prosas Bárbaras).
Alberoni diz que o reconhecimento está sempre
e outros velhos. (Os novos presente na moral e esta não existe sem amor, não
afirmam-se por maus modos lhe bastando a razão que a sustentava em Kant. Se
com os velhos). Senectude os Centros de Dia e os Lares de Terceira Idade
é tempo não é virtude... cumprem prestimosa e prestigiosa missão, quando
equipados, não com luxos materiais, mas com seres
Decorativos? Talvez... humanos preparados e capazes de dar amor, são ainda
Mas por dentro “era uma vez...” insuficientes qualitativamente (para além da
(...) insuficiência do seu número): nunca passarão dum
(Tomai lá do O’Neill) meio, que terá de completar-se com a presença
assídua dos que povoaram o coração do homem velho:
Como em Velhos / 4, o poeta nos fala de Azeredo, os familiares, os amigos, os que amou.
representativo de muitos outros Azeredos, um outro Um mundo perturbadoramente desumanizado nos
sem nome - “Pouco a pouco arrumaram-no - é a vida! envolve: tentáculos dum polvo quotidiano, de corridas,
- / “num trabalho muito mais consentâneo / com as de máquinas, de competição selvática. E o que é
suas possibilidades actuais.” Que é o não-trabalho. preciso é ter tempo para o amor. Furar os olhos do
É este pôr de lado que transforma o homem- tempo (como diz Torga), se necessário. Mas também
considerado-um-velho num marginalizado, sentindo o é preciso este necessário, que passa por uma
sabor acre da inutilidade. Alguns (e sobretudo os que educação.
tiveram uma vida intelectual intensa, que neste transe Nuno Grande dizia no Jornal de Notícias (6/03 /94)
os alimenta) sabem defender-se e protestar e ocupar que “os povos que não respeitam os velhos destroem
o seu lugar na vida até ao fim. Constata-se a a respectiva identidade, porque não reconhecem a
produtividade e criatividade de grandes homens na própria memória” e que “é imperativo voltar a colocar
considerada terceira idade: recordemos Sófocles, os idosos na cúpula da família portuguesa”. Um pouco
Platão, Cícero, Kant, Goethe, Cervantes, Verdi, por toda a Europa se debate este problema.
Stravinsky, Miguel Ângelo, Ticiano, Goya, entre outros. Sem pretender demagogia, refiro um texto dum
Como diz Cícero, “os grandes empreendimentos não poster da Multinova, divulgado há alguns anos:
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PENSAM... MAS NÃO DIZEM CARVALHO, Maria Judite de, O Homem no Arame.
Felizes os que respeitam as minhas mãos (Textos publicados no Diário de Lisboa entre 1970 e
enrugadas 1975). - Lisboa Livraria Bertrand, 1979.
e os meus pés deformados. CÍCERO, Marco Túlio, Da Velhice e da Amizade,
Felizes os que falam comigo, apesar dos meus Introdução, comentários, notas e tradução directa do
ouvidos Latim por Tassilo Orpheu Spalding. - São Paulo:
já não entenderem bem as suas palavras. Editora Cultrix. s/d.. Col. “Clássicos Cultrix”.
Felizes os que compreendem que os meus olhos DACOSTA, Fernando, A Velhice é uma Invenção
começam a não ver e as minhas ideias a ficarem do Homem -Entrevista a Almerindo Lessa. In: Público
baralhadas. Magazine, n° I81, 22/03/93.
Felizes os que, com um sorriso, perdem tempo a DIAZ, Diego, A última Idade - A Arte de Envelhecer,
conversar comigo. Trad. Vasco Cabral. - Braga: Editorial A.O., 1981. Col.
Felizes os que nunca me dizem: “É já a terceira vez “Temas de Hoje”.
que me conta essa história”. ESPANCA, Forbela, Sonetos, 12ª edição. - Porto:
Felizes os que me ajudam a lembrar coisas de Livraria Tavares Martins, 1968.
antigamente. FERREIRA, José Gomes, Obra Poética Completa,
Felizes os que dizem que gostam de mim e que 3° volume. - Lisboa: Moraes Editores, 1978. Col.
ainda presto para alguma coisa. “Círculo de Poesia”.
Felizes aqueles que me ajudam a viver os últimos GOULÃO, Ana, “Os Idosos em Portugal: Doenças
dias da minha vida. da Idade e da Solidão”. In: Cadernos de Saúde, n°4 -
Lâquesis cansou-se deste fio... Átropos impiedosa 5 de Março de 1994.
corta. Os homens estremecem. É GRANDE, Nuno, O Papel dos Idosos. In: Jornal de
Notícias, 6/03/94.
ACONTECIMENTO MIJOLLA, Alain de, As Palavras de Freud. - Lisboa:
Por entre as lágrimas desceu Publicações Dom Quixote, 1983, pp. 155-166. Col.
uma palavra amarga e aflita... “Best-Sellers”.
O’NEILL, Alexandre, Tomai lá do O’Neill - Uma
(Parece que um Homem morreu). Antologia, Selecção de poemas e prefácio de António
Tabucchi. - Lisboa Círculo de Leitores, 1986.
António Salvado (Antologia Poética). QUEIROZ, Eça de, “Farsas” in Prosas Bárbaras. 2ª
edição. Fixação do texto e notas de Helena Cidade
Moura. - Lisboa: Edição “Livros do Brasil”. s/d.. Col.
“Obras de Eça de Queiroz”.
*Professora Adjunta da Escola Superior de Educação SÁ, Victor Matos e, Horizonte dos Dias - Poemas.
de Castelo Branco 2ª edição. - Coimbra: Edições TEUC, 1970.
SALVADO, António. ANTOlogia (1955-1975) -
Castelo Branco: edição do autor, 1985.
SALVADO, António. O Corpo do Coração. - Lisboa:
Edições Átrio, 1994.
Bibliografia SALVADO, António. Recôndito. Na Margem das
Horas/Narciso. 2ª edição. - Castelo Branco, Livraria
Amato Lusitano. 1972.
ANDRADE, Carlos Drummond de, Obra Poética. SALVADO, António, Difícil Passagem. 2ª edição. -
2º volume. - Lisboa: Publicações Europa-América, s/ Castelo Branco, Edição do autor, 1973.
d.. Col. “Obras de Carlos Drummond de Andrade”. TORGA, Miguel, Antologia Poética. - Coimbra:
ANDRADE, Eugénio, Coração do Dia / Mar de edição do autor, 1981.
Setembro. - Porto: Editora Limiar, s/d.. Col. “Obra de TORGA, Miguel. Bichos - Contos, pp.22-23.
Eugénio de Andrade’ - 3. 18°edição. - Coimbra: Edição do autor, 1990.
ANDRADE, Raúl d’, Pontos de Vista - Poemas. - TORGA, Miguel, Diário XV. - Coimbra: edição do
Fundão: Edição do autor, 1968. autor, 1990.
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“AS IDADES DO HOMEM: IMUNDÍCIES E CONSPURCAÇÕES”

por Victor Saínha*

As doenças infecciosas e as epidemias têm sido eficaz, para depois acrescentar, cinicamente, “mas
motivo de especulação desde os tempos mais não demasiado depressa”...
remotos. Poucos fenómenos naturais podem ser tão Parece que os cientistas lhe deram ouvidos... Com
aterradores ou inexplicáveis. efeito há doenças que parecem ter acompanhado
Nos tempos antigos, a explicação mais vulgar para desde sempre, como uma sombra negra, a vida sexual
as pestilências - que, em boa verdade, o homem de da humanidade. Encontram-se diversas descrições
hoje ainda tem uma certa relutância em abandonar - bíblicas, que não deixam margem para dúvidas quanto
era a de que elas eram uma manifestação do à existência de doenças ligadas à sexualidade já
desagrado dos deuses ou, segundo uma fórmula mais nesses tempos remotos, aventando alguns autores a
do nosso tempo, o castigo divino dos nossos pecados. hipótese de, por exemplo, a chamada “Peste de Moab
Na Ilíada de Homero a epidemia que grassou entre as poder ter sido um surto epidémico de Sífilis ou até
forças que cercavam Tróia foi atribuída à ira de Apolo eventualmente de Sida. o que nos parece uma hipotese
contra Agamémnon. Mais recentemente em 1832 e fantasista. Segundo John Gwilt, vice-presidente de
aquando de uma epidemia de cólera na Irlanda, Samuel uma firma farmacêutica americana, a Sida ter-se-ia
Hopkins Adams relata-nos que a opinião, durante propagado na época de Moisés, como o comprovaria
algum tempo aceite, era a de que a cólera atacava os a descrição de uma epidemia do Livro dos Números.
pecadores e os inúteis e todos aqueles que tinham A Bíblia menciona, com efeito, uma terrível pestilência
feito mau uso das suas vidas. que atingiu mortalmente vários milhares de judeus por
Preparando esta comunicação, e ao pensar naquilo estes terem mantido relações carnais com mulheres
que seria comum a algumas doenças infecciosas, moabitas. O nome bíblico desta doença, maggepha,
concluí que é efectivamente esta vertente designa de maneira geral uma pestilência que mata
culpabitizante e pecaminosa: a Sida é (foi) claramente muita gente mas é perfeitamente arbitrário identificá-
relacionada com comportamentos de risco, la com a Sida.
nomeadamente da área da sexualidade. O mesmo Mas já que falámos na Bíblia, iria deter-me um pouco
se passa com as Hepatites... na influência da cultura judaico-cristã sobre o conceito
“Os flúidos sexuais são perigosos e potencialmente de pecado, de culpa e mesmo de imundície que ainda
contaminantes”... hoje são associadas a algumas doenças infecciosas.
A tuberculose sempre esteve associada no O Levítico, 3° livro da Bíblia, na sua parte 15 refere-se
imaginário das pessoas, ao desregramento, à noite, às impurezas do homem e da mulher, às impurezas
ao excesso e não tenho dúvida que a ideia dos corrimentos e dos derramamentos seminais
prevalecente ainda hoje é a de que as pessoas “fizeram prescrevendo rituais de purificação e sacrifício de
por isso e só têm o que merecem”... animais em holocausto para obter a absolvição.
Em relação à Sida e até há pouco tempo, a maioria O 2° livro de Samuel descreve o “affair” de David e
dos cidadãos, “os bons”, via na doença a confirmação Betsabé: “entretanto aconteceu que David,
dos seus preconceitos acerca dos aspectos morais levantando-se da cama, pôs-se a passear pelo terraço
e infamantes de uma doença tão diferente de todas do seu palácio, e avistou dali uma mulher que se
as outras. banhava, a qual era muito formosa... Então David
«Esta doença - dizia uma senhora americana afecta enviou emissários para que lha trouxessem. Ela veio
homens homossexuais, drogados, haitianos e e David dormiu com ela. Ora, a mulher, depois de se
hemofílicos e, graças a Deus, ainda não se propagou purificar da sua imundície, foi para sua casa”.
aos seres humanos. Se ela atacasse toda a gente Ter-se-á também David purificado?
seria uma crise terrível». E acrescentou: “ É Deus O livro dos Números, parte 95, descreve-nos como
que pune os homossexuais”... Israel se estabeleceu em Sitim e, como o povo se
Um outro americano declarou esperar que os entregou ali a excessos com as filhas de Moab... Os
cientistas encontrassem depressa um tratamento mortos, na sequência do flagelo então aparecido,
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pioram em n° de 24.000. Ocidental” ao tempo da Expansão.


Este flagelo é muito sugestivo de Sífilis epidémica Igualmente graves foram as consequências da
e, na civilização hebraica, estas doenças eram intervenção eclesiástica no “diagnóstico” de casos de
consideradas “imundícies da carne”, fruto da lepra, cuja declaração carecia da sua apreciação até
desobediência aos preceitos divinos necessitando de finais do século XIV, quando se começou a privilegiar
expiação através de oferendas e holocaustos. a opinião dos médicos e cirurgiões.
Assim a tradição judaico-cristã introduz o factor Aparentemente, eram frequentes os erros de
mais determinante contra o desregramento dos cos- diagnóstico, e muitos parecem ter sido os casos de
tumes, impondo um sentimento de culpabilidade. doentes (cuja enfermidade nada tinha a ver com o
Este sentimento era desconhecido noutras bacilo de Ilassen) condenados a vadiar pelas florestas,
civilizações, como a grega, onde a homossexualidade pedindo esmola de terra em terra.
era relativamente bem tolerada e, as referências às Por outro lado, o exército de lázaros que se
doenças transmitidas pelo sexo, aparecem em acumulavam pelas estradas da Europa no Século XIII,
diversos escritos de autores famosos como Platão, representavam simultaneamente uma enorme e
Aristóteles e Hipócrates. Nas escavações de Pompeia, dispersa bolsa de seres humanos debilitados pela
foram encontrados preservativos feitos de bexiga ou fome, desarmados pela falta de higiene. Não admira,
intestinos de animais domésticos. Lembro que a por isso, que os relatos e indícios estatísticos sugiram
utilização do preservativo é incompatível, ainda hoje, o desaparecimento progressivo da epidemia após a
com as orientações oficiais da Igreja Católica... devastadora “peste de 1348”: estavam todos mortos
Em várias obras de medicina da China antiga, ou tão enfraquecidos que era mero preciosismo incluí-
encontram-se descriçôes inconfundíveis de doenças los nos censos populacionais. Tal como Tavares de
ligadas ao sexo. Sousa escreveu “infelizmente, declínio não significa
Durante a Idade Média estas foram consideradas extinção”.
“doenças vergonhosas” castigo de Deus pela cedência Situação semelhante à vivida hoje com a Sida, foi a
às tentações do “demónio da carne”. Inspiravam medo da eclosão da epidemia de Sífilis na Europa Ocidental,
e motivavam especulações irracionais, fruto do a partir dos finais do Século XV e Século XVI e que
obscurantismo cultural e religioso da época. provocou grande alarme nas populações, dado o
Muitas pessoas acabaram nas fogueiras da carácter particularmente agressivo, desfigurante e
Inquisição! muitas vezes letal que assumia esta “nova” doença.
Mas falemos um pouco da Lepra. Conhecida desde Mas tal não impedia os soldados de continuarem a
remota antiguidade na Babilónia, Egipto, Israel, Índia terem relações sexuais nos locais por onde
e China, frequente na Europa, especialmente nas passavam, quer durante as guerras, quer depois de
regiões orientais, a lepra conheceu “um extraordinário desmobilizados. Não poupou nenhuma classe social,
incremento” nos séculos XII e XIII. o próprio papa Júlio II parece ter sido atingido.
Segundo Tavares de Sousa, o ocidente Europeu viu- Curiosamente era de bom tom, na sociedade
se a braços com epidemias “e consequência de masculina, já ter tido uma ou outra doença venérea,
contágio no Oriente das populações deslocadas por sinónimo de aventura clandestina e sucesso junto do
motivo das Cruzadas”. “belo sexo”; exibia-se esse facto como se se tratasse
Horror, repulsa e um profundo sentimento de de cicatriz dum duelo bem sucedido. Mas a gabarolice
vulnerabilidade tornaram a doença um símbolo de dos “D. Juan” e “Casanovas” deu lugar a um prudente
impureza espiritual e carnal, que segundo Tavares de silêncio à medida que os avanços da ciência punham
Sousa “complicou singularmente o reconhecimento a nú as terríveis sequelas que podiam resultar dessas
da entidade nosológica específica, já de si difícil, e foi doenças.
a origem de inúmeros erros e de tremendas injustiças.” Durante o Século XIX e primeira metade do Século
Conscientes de se tratar de uma doença que se XX o epíteto siflítico era um estigma tão temível como
propagava por contágio directo, pessoal, a lepra o da lepra e do cancro ou da tísica (tuberculose).
inspirava atitudes extremas de segregação, uma Em Portugal há provas da existência de uma
espécie de “morte civil”, como lhe chamava Tavares enfermaria para siflíticos (casa das boucas) já em
de Sousa, que incluía, entre outras formas de 1504, no Hospital de Todos os Santos, que era na
segregação, a obrigatoriedade dos doentes (ou tidos altura um dos melhores da Europa. Vários intelectuais
como tal!!!) usarem vestimentas identificadoras da sua famosos foram vítimas da sífilis, como por exemplo
condição de leprosos, a interdição de falar com outros Guy de Maupassant e Friedrich Nietzsche.
sem estarem virados contra o vento, de entrar em Provavelmente de sífilis morreu também Erasmo de
igrejas e chegar-se a multidões. Roterdão, chegando alguns autores actuais a referir
Para assegurar completo ostracismo, encurralaram que terá sido a mais antiga vítima de Sida. Morto em
os lazarinos em leprosarias e gafarias, que diz Tavares 1556 com 69 anos de idade. Erasmo sofreu na parte
de Sousa “se contavam em milhares na Europa final da vida de febre com recaídas, de diarreias, de
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poliarterite nodosa, de tumefacções da pele e de uma Por iniciativa do médico Sousa Martins é construído
linfadenopatia generalizada. Certos indícios, fazem na Serra da Estrela um pavilhão para internamento de
supor que seria homossexual. Viajava muito e são- doentes com 54 camas e a Assistência Nacional aos
lhe atribuídas numerosas ligações amorosas. Mas os Tuberculosos, inaugurou no Outão, o seu primeiro
seus ossos, exumados em Basileia em 1930 e que sanatório marítimo com 36 camas em 1901, que é
se supõe serem os seus, mostram marcas de sífilis. seguido de um segundo sanatório marítimo em
Aliás, entre a Sida e a Sífilis existem semelhanças Carcavelos, e de muitos outros.
curiosas. Em 1901 é inaugurado o primeiro dispensário
A sífilis apareceu bruscamente em 1494 no exército antituberculoso em Lisboa e são inauguradas várias
de Carlos VIII que guerreava em Itália, e foi chamada colónias de férias para crianças pobres em vários
“mal de Nápoles” pelos franceses e “mal francês” pelos pontos do país, assim como novos dispensários são
italianos, espelhando a tendência enraizada para instalados.
encarar os estrangeiros como portadores de doenças Assim a erradicação da tuberculose é na prática
insólitas. um facto consumado em algumas populações e isto
Sífilis vem Syphilus, “o que gosta de porcos”, e antes mesmo do aparecimento dos tuberculostáticos.
Syphilus era pastor. O nome foi-lhe atribuído pela Isto foi possível à custa de medidas conjuntas de
inspiração poética de Girolamo Fracastoro. Saúde Pública e não de tratamento medicamentoso:
Há paralelismos curiosos entre a expansão da sífilis através de higiene pessoal e familiar, alimentação
no início dos tempos modernos e a epidemia actual equilibrada, disciplina de comportamento, diagnóstico
de Sida: a transmissão pelo acto sexual, a passarem precoce tratamento por isolamento na fase infectante,
do germe da mãe ao fecto, as implicações morais, o vigilância de cada caso e repouso - por terem
impacte sobre os costumes, o encerramento dos considerado a T. P. uma doença ou praga social, em
banhos públicos e dos locais ditos de deboche, as que o contágio era o factor de maior risco, a evitar por
reacções de rejeição social e mesmo, em certa todos os meios. A luta na prevenção da tuberculose
medida, a gravidade do mal. deu resultados eficazes mesmo antes da medicação
Também à semelhança da Sida o principal foco moderna.
difusor parece ter sido Hispanhola, a actual ilha do O mesmo pudessemos dizer em relação aos flagelos
Haiti. Durante a segunda metade do século XIX e o que nos afligem hoje...
princípio do século XX a T.P. esteve em expansão em
Portugal e em 1930 chegou a constituir 10% de todos
os casos de morte. * Médico Psiquiátrico
O primeiro estabelecimento de luta contra a
tuberculose para internamento de doentes em Portu-
gal foi fundado no Funchal em 1869 pela imperatriz D
Maria Amélia, viúva de D. Pedro IV com a designação
de “Hospício da Princesa D. Amélia”, em memória da Bibliografia
filha, ali falecida de tuberculose.
Em 1898, iniciou-se a luta organizada contra a
doença pela criação da Assistência Nacional aos - História da Sida - Mirk Grunek
Tuberculosos e da Liga Nacional Contra a - O Combate Sexual da Juventude - Wilhelm Reich.
Tuberculose, que se completavam num programa de - História da Saúde e dos Serviços de Saúde em
conjunto, de criação de estabelecimentos de Portugal, F. A. Gonçalves Ferreira.
diagnóstico e acompanhamento (dispensários) e de - Medicina Preventiva e Saúde Pública, Sartwell e
internamento (sanatórios), bem como de recolha de Maxcy-Rosenau.
fundos para tratamento dos doentes Foi sua promotora - Amor e Sexualidade no Ocidente - VV.AA.
a Rainha D. Amélia com o apoio do marido, o Rei D - A mulher e o prazer - Gilbert Tordjman
Carlos, e a assessoria técnica do médico D. António - Sexologia em Portugal, VV.AA.
de Lencastre. - A Medicina nos Descobrimentos.
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AS IDADES DO HOMEM - VIAGEM NO TEMPO E NA MEMÓRIA

por Ribeiro Farinha*

Numa recente visita à aldeia onde nasci - Figueira, distante já, pelas transformações que para bem ou
a 4 Km de Sobreira Formosa procurei dar ao meu para mal, os últimos anos trouxeram. Passo um pouco
filho Tiago que me acompanhava, uma ideia do que ao lado de “As Idades do Homem”, tema que será,
fora a minha infância ali, sem Rádio nem T. V., tão seguramenle, bem tratado pelos ilustres mestres das
diferente da sua na grande cidade, marcada pelos Ciências Humanas que todos os anos nos enriquecem
grandes avanços da Ciência, da Arte e da Tecnologia. com as suas brilhantes lições.
Pedra a pedra, rua a rua, casa a casa, fomos Chega-se à Figueira por uma via estreita que se
percorrendo o espaço mágico da minha meninice. E, bifurca à entrada e a contorna em forma de laço. Ao
pela minha cabeça, desfilavam acontecimentos com longo desta rua envolvente dispôem-se as casas ainda
eco de pessoas com quem partilhei jogos, aventuras habitadas que, com outras mais recentes nos
e cumplicidades, habitantes das casas hoje extremos da povoação, compôem os pouco mais de
silenciosas que, há algumas décadas, fervilhavam de duas dezenas de moradores actuais. Mantém a traça
vida. original de estreitas e angulosas quelhas convergindo
Era uma vida comunitária assente, sobretudo, na no Forno Comunitário ainda utilizado - Coração que
Agricultura. Os trabalhos sazonais eram, quase teima em bater em corpo debilitado. Mas o miolo da
sempre, partilhados pelos vizinhos mais chegados aldeia é um espaço em ruínas, parado no tempo, já
numa interajuda que se estendia às famílias atingidas com honras de visitas turísticas.
por fatalidades. Lembro-me, por exemplo, da tristeza Os balcões de pedra, envelhecidos mas solenes,
que entrava nas casas onde faltava a “salgadeira” e que levavam ao andar nobre da habitação dão, agora,
os “enchidos”, porque a peste levara o porco e afectara para buracos negros que foram portas e janelas; as
a economia doméstica. Nestes casos, os que podiam, boas casas de outrora com anexos, arrecadações,
partilhavam com os atingidos, algum toucinho e adega e tear, com marcas de várias gerações, “ninhos”
“enchidos”. E, se chovia de repente e havia grão na de ranchadas de filhos, estão abandonadas ou servem
eira ou pasto a secar as pessoas disponíveis saíam de palheiro ou curral aos animais que o povo ainda vai
correndo das suas casas, acudindo onde era criando. Das antigas famílias restam alguns vestígios.
necessário. Os mais velhos têm vindo a desaparecer, proles
Nos tempos da guerra a vida ali era muito dificil: inteiras emigraram... ficaram os que não sabiam ler e
não havia trabalho e o pão escasseava. Valiam às os remediados que, por falta de espírito de aventura,
famílias numerosas os produtos da horta e alguns litros não quiseram deixar o “Ninho”, ficaram com os pais e
de cereal e de azeite ou alguma peça de roupa usada, por ali constituíram família.
oferecidos por vizinhos mais remediados e sensíveis Um apelo interior faz-me recuar 50 anos. Como se
a estas carências, a mostrar que a solidariedade não sonhasse, repito gestos, repiso caminhos abertos por
era palavra vã. Para além disto, a “malta” nova tinha meus pais e avós onde por vezes me perdia nas
sempre a possibilidade de colher fruta aqui e ali, deambulacões iniciáticas. Pelos atalhos da emoção
mesmo correndo o risco de fugir à frente do dono ou deixo a memória planar até poisar nos lugares que
de ter os cães à perna, a lamber-lhes os calcanhares. guardam as marcas esbatidas dos meus primeiros
Como quem viaja no tempo ao sabor das passos. Mergulho, assim, na seiva das minhas raizes,
recordações, deixando de parte cronologias e naquela comunidade exemplar que ia passando, de
estatísticas aqui, lembro a minha terra, nesta simples pais para filhos, os seus saberes empíricos, tão
crónica de aldeia em que evoco um tempo outro tão importantes na minha aprendizagem, especialmente
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nas relações Homem/ Natureza/Bicho, no “Caqueiradas” do Carnaval, a que se seguia a fuga,


conhecimento dos efeitos dos ciclos das estações pé descalço a “dar à sola”, pelas quelhas alcatifadas
nas lides do campo, nos tempos para sementeiras, de mato.
enxertias, etc.. Com homens que não sabiam ler nos Depois, na quaresma, “serrava-se a Velha”, com
livros mas “liam” com alguma precisão, nas estrelas latas e chocalhos, à porta das mulheres idosas da
e no Pôr-do-Sol a previsão metereológica, os jovens terra. Umas corriam-nos à pedrada e à vassourada;
aprendiam a amar a Natureza... outras regalavam-nos com figos secos e castanhas,
Neste regresso imaginado às origens “entro” na com votos de que voltássemos no ano seguinte.
aldeia, de novo, a arredondar caminhos, a juntar as A noite de S. João era de festa, até altas horas, em
pedras e a alinhar os madeiros para levantar o pórtico volta da fogueira, no monte em frente à aldeia. A seguir
e reordenar o espaço íntimo. Depois de acamar as à quaresma começávamos a juntar grandes
telhas e fechar a cúpula é só atear o fogo na quantidades de lenha e pinheiros desbastados nas
lareira-fumeiro e repousar em paz ao som reconfortante redondezas. Os maiores, arrastados por juntas de bois,
do crepitar da fogueira ... Mas a azáfama continua no eram fixados em círculo, nos buracos abertos no chão,
meu espírito: regar a horta, apanhar os frutos, recolher para sustentar o recheio formando, assim, um cilindro
a lenha e preparar o forno para cozer o pão. Ir ao pipo compacto de lenha ressequida. Ao atear-se o fogo,
pelo vinho e, em seguida, estender a toalha, servir os as labaredas pareciam atingir o céu e obrigavam toda
manjares e partilhar o pão e o vinho - frutos retribuídos a gente a recuar com exclamações, numa mistura de
a quem com amor trabalha a terra. alegria e de temor!
É bom lembrar, hoje, o prazer de chapinhar os pés Um dos períodos mais marcantes da minha infância
na água fresca das ‘’levadas” da rega, o paladar da foi o tempo da escola, apesar das dificuldades dessa
fruta colhida da árvore e a novidade das primeiras época. Da Figueira para a vila, por entre pinheiros e
cerejas e dos figos lampos; o sabor quente do pão a hortas, os alunos da primária - dezenas, nessa altura
saír do forno, o reacender dos maranhos na cozedura e apenas uma menina, se não erro, este ano -
em dias de festa e a fartura das iguarias, em tempos animavam os caminhos jogando ao eixo, à bilharda, à
de carência, na semana da “matança” ou em dias de malha e à bola. Quando disponível esperava-nos à
boda; e, enquanto se esperava pelas filhoses do Na- saída o bonacheirão do Padre António, já idoso, que
tal, vivia-se o ritual da abertura do pipo e da prova do não perdia ocasião de se misturar com as crianças.
vinho novo pelo S. Martinho, acompanhado de De regresso a casa orientava as nossa brincadeiras
magustos, no aconchego das adegas. e inventava jogos para nos e se entreter. Todos os
Lembro com nostalgia os cantares na lavra das anos comprava piões aos rapazes, pequenas
sementeiras, nas desfolhadas, na apanha da lembranças às meninas e rebuçados a todos. Ainda
azeitona, com os ranchos a competirem alegremente; existe na Figueira, na casa da sua família, a pequena
os bailaricos ao som do harmónio e da gaita de beiços capela onde celebrava missa aos Domingos e, nos
e os namoricos furtivos a cada esquina; a curiosidade intervalos das leituras, nos ensinava a Doutrina.
a espreitar a cópola dos bichos e os mais atrevidos a O Padre António Laia era um homem bom que, longe
tentar surpreender as moças no rio, nos banhos de dos olhares da família, ajudava os mais pobres e não
S.João; as festas primaveris, misto de práticas cobrava dinheiro pelas missas que celebrava. Aqui fica
religiosas ancestrais com ritos pagãos, ligadas à a minha homenagem.
floração dos campos e às colheitas: rapazes e Dos tempos da Primária lembro as andanças pelos
raparigas, enfeitados com cordões de flores, campos à procura de ninhos e a armar abuises aos
colocavam nas portadas das casas ramos de oliveira, tordos e às rolas e as manhãs pelas hortas a montar
espigas e papoilas e cantavavam, de rua em rua, o armadilhas aos taralhões ... mas o que não posso
“Vito-Maio” aos moços, “Vito-Maio” às cachopas, uma deixar de evocar é a “Festa do Galo” pelo Carnaval
malguinha de castanhas, vou pedir por essas portas que, como outras práticas da nossa cultura popular
“Vito-Maio”, Maio, Maio ...etc... se perdeu, por estas paragens.
Por altura dos Reis, grupos de rapazes iam pelas Organizada pelos alunos com ajuda dos pais,
aldeias vizinhas, ao compasso da concertina e de consistia na angariação de fundos para comprar os
lanterna na mão, a cantar as “Janeiras” e recolher galos a oferecer aos mestres. Em cada classe, um
dádivas, geralmente produtos da lavra dos ofertantes grupo de trabalho esmerava-se a enfeitar a preceito
para, com o produto da venda, mandar rezar missas os andores com bandeiras, flores e serpentinas e,
pelas Almas... A “semana gorda” era de festa para a um pouco em segredo, adquirir os galos mais vistosos.
garotada: uns iam pelas casas, mascarados, a pedir No dia da festa os andores engalanados, carregados
dinheiro e doces, a que muitos habitantes pelos alunos e seguidos pelo séquito, desfilavam à
correspondiam na mira de identificar os incógnitos volta da escola com vivas aos professores. Percorriam
visitantes; outros, ao cair da noite, atiravam de as ruas da vila cantando quadras alusivas ao evento,
surpresa e com estrondo para dentro das casas, as recebiam uma chuva de confeitos das janelas e faziam
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o julgamento do galo: “Este galo é o mais lindo, que privilegiado para os serões das longas noites de
aqui vai neste caminho, é para o Sr. professor, que Inverno. Que saudades das histórias intermináveis
nos ensina com carinho”; “Este galo meu senhor, tem onde o real e o fantástico se casavam com a maior
as penas de galinha, é para o meu professor que já das naturalidades! Salvé Bernardino Coxo (ainda vivo)!
está carequinha”; “Este galo é ladrão, foi ao Vale do Salvé João Folga (já falecido)! (O meu Bem-Haja a
Serrão, comeu pinhos e melões, fez perca de sete tantos outros que, em versões livres e aumentadas
tostões, nós vamos ao juiz, carregados de correntes, de contos infantis e fábulas que mais tarde viria a
nosso mestre come galo, nós ficamos bem conhecer, animaram aquele cantinho!
contentes”, etc., etc... Também se falava ali, com menor interesse por parte
Não havia TV mas a “malta” divertia-se. dos atentos ouvintes, do tempo, das lides campestres,
Aos domingos, quando tudo abalava para a missa e das actividades profissionais, dos “artistas”: pedreiros
às compras na vila, a aldeia era da miudagem. Um e carpinteiros por exemplo. A atenção redobrava
dia, na ausência do dono, trouxemos para um recinto quando os mais velhos e experientes contavam as
aberto, fora do curral, um enorme carneiro que suas proezas da tropa, as conquistas amorosas e
tinhamos ensinado a marrar. Foi uma tourada, ou todo o tipo de aventuras da ceifa no Alentejo, das
melhor, uma carneirada, onde não faltaram cabeças caçadas, muito exageradas por parte dos mais
partidas... Também não faltaram reprimendas e fanfarrões. As misteriosas e estranhas histórias a falar
valentes tareias da parte de alguns pais... de mundos longínquos e maravilhosos apontavam
Tantas histórias! Tantas que não cabem neste “saídas” possíveis e cómodas para interrogações sem
relato... Em certas ocasiões ajudava o pastor Talaça resposta e para a compreensão de fenómenos que
na recolha do rebanho ou na assistência a reses com não conseguia entender...
partos dificeis. Sempre que podia, iludindo a vigilância Ouvindo-as, o meu pensamento transpunha
do pastor ou, quando bem disposto, com a sua fronteiras desconhecidas, elevava-se planando nas
cumplicidade, mamava o leite das tetas como um alturas como que a tentar ultrapassar a exiguidade
autêntico cabrito... Era assim, cheia de peripécias, a do lugar e a pequenez dos horizontes. Para mim, o
vida na aldeia dos anos trinta e quarenta. Um dia, mundo parecia acabar onde o céu tocava os pinheiros
para apanhar um lindo sardão que se escondera nas dos montes em volta. Levitava pelo reino do sonho
pedras do muro de uma horta, destrui a parede até sem distinguir, muitas vezes, a realidade da fantasia.
chegar ao réptil que dominei pelo pescoço. Atei-lhe Mesmo hoje, à distância, muitas das minhas
um fio a uma pata e, ufano, andei a exibi-lo na aldeia lembranças contém fragmentos que não sei já muito
até que o “Pirolito”, rafeiro reguila, o matou com uma bem se os vivi ou se apenas os sonhei...
patada. O choque foi tremendo e era ver o “Pirolito”, a Haverá certamente alguma relação entre os meus
partir dali, a fugir mal me avistava, adiando a tareia e “vôos” impossíveis pelos reinos da fantasia, a mania
eu a fugir do dono porque, como retaliação, pendurei que tinha de subir às árvores mais altas e aos telhados
o lagarto na aldraba da porta de sua casa e a tia Maria, para ver as coisas lá de cima... e a minha adoração
ao voltar da fonte com o “asado” à cabeça, ia morrendo por escadas e aves. O planar dos milhafres lá no alto,
de susto, partiu o cântaro e ficou encharcada... Du- pairando ao sabor das variações do ar, deixavam-me
rante tempos alerta e pé ligeiro foi preciso o “Ti Manel” extasiado a contemplar aquela maravilhosa dança,
me tranquilisar, de longe, para não fugir... Fizemos as frustrado por também querer voar e não ter asas!..
pazes e ele ofereceu-me figos secos para comemorar. As aventuras daqueles tempos viviam muito do
Pelos meus 13/14 anos tive direito a entrar no círculo “desenrascanço” já que, na falta de recursos técnicos
dos serões do forno, onde a malta miúda era corrida à para vencer dificuldades a necessidade lá ia aguçando
canholada, mediante suborno com “cigarros feitos”. o engenho. E, na falta de assistência médica as
Era preciso cair nas graças dos “mandões”, pessoas recorriam, muitas vezes, a práticas
respeitados contadores de histórias. E os maços de ancestrais com marcas muito profundas, ainda hoje,
tabaco, naquela altura, eram um luxo. na nossa região, que vão da simples utilização de
Além da função principal o forno era a praça, o jornal, ervas medicinais, tisanas, papas de linhaça e outros
ponto de encontro onde o Cabo de Ordem, ao som do produtos naturais, aos rituais onde se cruzam as
búzio, tocava a reunir para resolver problemas de in- mesinhas com rezas e benzeduras.
teresse comunitário. Área coberta, ao fundo a boca Assisti, vezes sem conta, pelas quelhas da aldeia,
do forno, uma cantareira lateral e um grande balcão entre o martelar compassado dos teares e celebrados
de pedra para as masseiras e os tabuleiros e a servir pelas mesmas mãos que criavam maravilhas a partir
de assento, ao serão. Tem ainda, na parede principal, do linho e da estopa, aos exorcismos contra o mau
uma tábua graduada com furos onde, por ordem de olhado e cobranto, por exemplo.
chegada, se coloca uma tabuleta a marcar a vez para Muitos dos jogos tradicionais em que então se
cozer o pão. participava já só os conhecemos por ouvir falar ou
Pelo calor que irradiava o “forno” era o local pela generosidade esforçada de alguns que teimam
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em não deixar morrer a cultura popular. Não quero habitantes. As mortes a semear orfandades, a doença
deixar de apontar o exemplo da Dra. Assunção Vilhena a atirar para a penúria famílias numerosas, as rixas
que, com “A Flor do Feto Real” e “Gentes da Beira por partilhas ou divisão de águas, a falta de pão, etc.
Baixa” (em vias de ser publicado) dá um importante - coisas tristes da vida que eram e continuam a ser,
contributo nesse sentido no que respeita, sobretudo, comuns às sociedades humanas..., mas, porventura
ao Concelho de Proença-a-Nova. terão tido ali menor expressão do que em outras
Devo terminar, que vai longa esta “Romagem de localidades o que me levou a exaltar os aspectos mais
Saudade”. Embora não fosse fácil, esforcei-me por positivos...
omitir acontecimentos trágicos que, ciclicamente,
abalavam a terra, e os dramas familiares que, em maior
ou menor grau, marcaram negativamente alguns dos * Artista Plástico
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VI JORNADAS DE ESTUDO

1- Dentro de uma coordenada de Medicina Portuguesa (SHMP),


interdisciplinaridade, marca domi- representadas nestas VI Jornadas,
nante do espírito que define a pelos seus presidentes, respectiva-
realização das Jornadas de Estudo mente Professor Doutor Nuno
“Medicina na Beira Interior - da pré- Grande e Doutor A. Fortes
história ao séc. XX”, decorreu a Espinheira. Todo um programa de
apresentação de 21 comunicações colaboração irá ser intensificado.
que, em conteúdo variado, desen- 5 - A exemplo de Jornadas
volveram os temas escolhidos para anteriores, também agora foi
este ano: 1 - Amato Lusitano na evidenciado o interesse em que seja
História do Renascimento Europeu; 2 - As Idades do levada a efeito a edição de obras de grandes vultos do
Homem. passado que, escritas em latim, não permitem uma
2 - Como consequência imediata, verificou-se um recepção alargada por parte dos investigadores. Fruto
saliente enriquecimento relativamente ao leque de palpável deste propósito será a oportuna edição do
Ciências Humanas, materializado nas múltiplas “Index Dioscoridis” de Amato Lusitano, cuja versão
achegas constatadas e que, sem dúvida, ajudaram à se encontra ultimada devido ao labor do Doutor Firmino
formulação de princípios que melhor caracterizam a Crespo, e para cuja apresentação pública contribuirá
existência do homem desta região, no decurso dos a SPHMFM.
tempos. 6 - Embora sem confirmação oficial, parece estar
3 - Ficou salientado que, embora a matéria essencial para breve, por parte da Câmara Municipal de Castelo
de estudo tenha como referente a realidade Branco, a implantação de um horto com as plantas
antropológica da Beira Interior, um alargamento medicinais usadas por Amato Lusitano, tornando-se
geográfico que permita uma relação com o exterior, assim realidade o teor de uma proposta surgida em
como aconteceu nestas Jornadas, poderá constituir Jornadas anteriores. Notícia que despertou nos
também motivo de enriquecimento no que se refere a participantes visível júbilo.
variadíssimos aspectos do trabalho de investigação. 7 - As VII Jornadas de Estudo “Medicina na Beira
Sirvam como exemplos as comunicações que Interior - da pré-história ao séc. XX” foram marcadas
versaram pura temática da história da medicina para os dias 10 e 11 de Novembro de 1995. Os temas
portuguesa ou conteúdos de âmbito mais geral que escolhidos serão:
se formalizaram em processos operatórios da 1 - A Mulher na obra de Amato Lusitano;
Psiquiatria, da Literatura, da Mitologia, do 2 - A Mulher da Beira Interior nas suas relações
Memorialismo... com a Medicina.
4 - Congratularam-se os presentes com o significado
de um trabalho preparatório que conduziu ao
estabelecimento de relações com a Sociedade
Portuguesa de História da Medicina e de Filosofia Escola Superior de Educação de Castelo Branco,
Médica (SPHMFM) e a Sociedade da História da Dias 11 e 12 de Novembro de 1994.

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