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O CAMPONES: UM TRABALHADOR PARA O CAPITAL MARIA DE NAZARETH B, WANDERLEY* RESUMO - O trabalho procura analisar 0 espago da produgdo familiar camponesa no interior da sociedade capitalist. Apés realizar uma reflexdo critica sobre a questo, tal como é colocada na literatura brasileira sobre o assunto, elabora uma formulagio tedrica, que tem como eixo 4 compreensio do camponés como trabalhador para o capital, diferente do assalariado mas, como este, agente e portador de forga de trabatho. A partir dessa proposta tedrica, tece algumas consideragGes sobre a reprodugdo do campesinato na sociedade brasileira. ABSTRACT - This paper develops @ theoretical perspective for analyzing peasant production within capitalist society. Drawing mainly from brazilian literature, a critical review is made of previous works relating peasant production with the larger capitalist society, Subsequently, it is argued that although peasants are not salaried workers, they nevertheless work for capital as an important source of labor. It concludes with some considerations about the reproduction of peasant production in brazilian society. INTRODUGAO A presencga do campesinato nas sociedades capitalistas ¢, provavelmente, uma das quest6es que suscita maiores polémicas. Tanto ao nivel tedrico, como ao nivel politico, muito j4 se falou e se praticou sobre ela e em fungdo dela, discursos e préticas que freqiientemente se entrechocam, pela diversidade de percepgdes e di- regdes que assumem. Em que consiste esta questo? Como ela tem sido postulada? Como situd-la no contexto atual da sociedade brasileira? O presente trabalho se propde a refletir sobre estas interrogacdes. 1 Professora de Sociologia do Departamento de Ciéncias Seciais da UNICAMP. Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 13 M. de N.B. WANDERLEY Pequeno produtor ou trabalhador rural? Autonomia ou sobordinagio? Elimi- na¢do ou reprodugdo? Eis o fio condutor das reflexGes aqui sugeridas, que se Ppropdem a colocar estes termos, ndo como elementos que se excluem, mas que se articulam dialeticamente. Seria melhor dizer: pequeno produtor e trabalhador rural ; autonomia versus subordinagao; eliminagao de uma forma particular da produg4o camponesa e reprodugdo de um trabathador no proletdrio para o capital. O DIRECIONAMENTO DAS INTERPRETAGOES NO BRASIL Sem a pretensdo de ser exaustiva, creio que é importante rever a evolugao da literatura brasileira sobre esta questo. Para isto, tomarei como ponto de partida, a obra de Caio Prado Junior, em particular o seu livro “A revolugao brasileira”, que constitui um marco importante desta evolugdo mais recente (Prado Junior 1966). Sua critica 4 chamada “‘tese feudalista” se impds e, de um certo modo, passou a ser uma referéncia fundamental aos estudos subseqiientes. Como a tese por ele criticada € por demais conhecida, darei énfase aos argumentos que Caio Prado Jtinior utiliza Para explicitar sua propria tese, em contraposigao aquela. Sua idéia central € que, contrariamente ao que ocorreu sob o feudalismo, nos paises que conheceram esse modo de produgdo, a economia camponesa nfo cons- titui a base das relagdes sociais existentes e predominantes no setor agricola brasi- leizo ¢, em conseqiiéncia, ela ndo € determinante de sua estrutura e de sua organi- zag4o econémica: Por exploragao camponesa, Prado Junior (1966) entende “a exploracao parce- ldria e individual do pequeno produtor camponés que trabalha por conta propria € como empresdrio da produgdo em terras suas ou arrendadas”. No Brasil, a seu ver, predomina, historicamente, a grande exploragdo que tem por base a grande propriedade ¢ o trabalho organizado coletivamente. As relacdes sociais de produc&g ndo sfio correspondentes a uma economia camponesa, mas se estabelecem enquanto relagGes particulares de compra e venda da forga de trabalho. “Com a abolicdo da escravidio, substituiu-se ds relagdes servis de trabalho a relag¢fo de emprego ou locagio de servigos, embora nem sempre o pagamento e a remuneragdo desses servigos (trabalho prestado) se fizessem em dinheiro - o saldrio propriamente - assumindo com freqiéncia formas mistas e mais ou menos com- plexas, como sejam, o pagamento in natura, concessfo do direito de plantar por conta prépria alguns géneros de subsisténcia etc” (Prado Jtinior 1966). Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 14 O CAMPONES: UM TRABALHADOR Este aspecto é de fundamental importancia no pensamento de Prado Junior, que assim, nega a existéncia de formas de renda pré-capitalista no interior da grande propriedade. Ele inverte os termos da postura até entéo predominante: nao € produ- tor quem paga uma renda ao grande proprietdrio por utilizar sua terra, mas é este quem remunera a forca de trabalho que utiliza, sob forma do direito ao uso da ter- ra, O elemento importante aqui é que, na perspectiva do autor analisado, o produ- tor perde a autonomia que teria se fosse um camponés. “© trabalhador livre de hoje se encontra, tanto quanto seu antecessor escravo, inteiramente submetido na sua atividade produtiva 4 dire¢do do proprietario que é 0 verdadeiro e tnico ocupante propriamente da terra ¢ empresdrio da produgdo, na qual o trabalhador nfo figura, sendo como forga de trabalho a servi¢o do proprieta- tio, e nao se liga a ela, sendo por esse esforgo que cede a seu empregador. Nao se tra- ta, assim, na acep¢do prépria da palavra, de um “camponés”. (Prado Junior 1966), Caio Prado Junior dé uma énfase especial 4 questao da parceria. Para ele, nao se trata de uma relacdo feudal ou semifeudal, no sendo possivel comparar a reali- dade brasileira a esse respeito 4s formas classicas da parceria existente na Europa. “Trata-se, entre nds, pelo menos naquelas instancias de real significagdo eco- némica e social no conjunto da vida brasileira, de simples relagdo de emprego, com remuneragdo in natura do trabalho”. . . . “A nossa parceria assimula-se, assim, antes do salariado, e constitui, pois, em esséncia, uma forma capitalista de relacdo de tra- batho, ao menos no que respeita suas implicagdes s6cio-econdmicas” (Prado Jinior 1966). Além disso, a parceria ndo constitui uma forma anacronica das relagGes so- ciais. Referindo-se especialmente a Sio Paulo, ele afirma que essa relagdo “sé se di- fundiu e tornou um elemento ponderdvel na economia do Estado, em época relati- vamente recente, posterior a 1930, ¢ ligada a uma cultura especifica, a do algodio”. Isto, por “circunstancias peculiares da cotonicultura e conveniéncias técnicas ¢ fi- nanceiras que lhe dizem respeito” (Prado Jinior 1966). ‘Na perspectiva do trabalhador, a parceria constitui “um tipo superior de rela- gdes de trabalho e produgdo, quando comparado as puras e tipicas relages capita- listas que so 0 salariado”, Apresenta, por outro lado, “um sistema superior de orga- nizagdo econdmica e padrdes mais altos de produtividade” (Prado Jinior 1966). Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 15 M. de N.B. WANDERLEY Finalmente, o autor manifesta-se contrario a posi¢Zo que defende a integragfo num programa revoluciondrio de luta pela eliminag&o da parceira. Caio Prado Jiinior chama a atengdo para as particularidades da estrutura social da agricultura brasileira, enumerando por um lado, o baixo nivel tecnolégico das grandes exploracdes, ¢ por outro lado, certas formas de exploragio da forga de tra- balho, entre as quais, o cambdo, a compra obrigatéria no barracdo, a reteneZo por dividas. No que se refere a primeira destas particularidades, ele afirma que:“é preciso no confundir “capitalismo” com tecnologia desenvolvida”, atribuindo essa confusdo a “concepgées apolegéticas do capitalismo”. Sobre as formas particulares de explo- raggo do sistema de trabalho vigente legalmente no Brasil até fins do século passado, a saber: a escravidao. Todas essas relacSes afetam profundamente as condig&es de vida do trabalhador rural, mas ndo constituem um entrave ao desenvolvimento do capitalismo, sendo, freqientemente, sua propria base ¢ estimulo. “O que sobra do escravismo representa, assim, um elemento de que o capitalismo se prevalece,e em que freqientemente se apéia, uma vez que 0 baixo custo da m&o-de-obra torna possivel, em muitos casos, a sobrevivéncia de empreendimentos de outro forma deficitdrios” (Prado Junior 1966). Prado Jinior nfo nega a existéncia de camponeses na agricultura brasileira, mas sua posicao a respeito é de que se trata de um “‘setor residual da nossa econo- mia agréria” (Prado Junior 1966), e de que ndo existe uma relagdo direta entre este setor camponés e a grande propriedade. A partir desta andlise, aqui rapidamente esbogada, o autor tira suas conclusdes de natureza mais diretamente politica. Em primeiro lugar, “é na situagdo sécio-econémica presente no campo brasi- leiro que se encontram as contradig&es fundamentais e de maior potencialidade revoluciondria na fase atual do processo histérico-social que o pais atravessa” (Prado Junior 1966). Em segundo lugar, no interior do setor agropecudrio, e, evidentemente, com repercussSo sobre todo o processo revoluciondrio, a contradi¢do principal refere-se as relagdes de emprego, e tem como objeto a luta por melhores condigdes de vida e de trabalho. Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1)-13-78, jan./abr. 1985 16 O CAMPONES: UM TRABALHADOR Esta conclusfo decorre, naturalmente, da andlise que faz sobre as classes sociais no campo: “‘os polos principais da estrutura social do campo brasileiro nfo sfo o “latifundidrio” ou “proprietério, senhor feudal ou semi-feudal” de um lado eo camponés de outro; e sim, respectivamente, o empresdrio capitalista e o traba- Ihador empregado, assalariado ou assimildvel econdmica e socialmente ao assala- tiado” (Prado Jinior 1966). Em conseqiiéncia, a luta dos trabalhadores se concentra no sentido da efetiva aplicagZo dos direitos trabalhistas, que lhes foram reconhecidos em 1963, pelo Estatuto do Trabathador Rural, posigao esta que lhe parece ter sido relegada pelas forcas politicas propressistas, que ele critica. Em terceiro lugar, e em decorréncia da conclusdo anterior, a questfo da reforma agrdria, entendida como a luta pela terra, nfo tem, para ele, o significado abrangente, nem o potencial revoluciondrio que lhe eram atribuidos. “A reivindicagdo da terra e utilizagio dela pelo préprio trabalhador, .. . se circunscreve no Brasil, praticamente a trés setores apenas, todos eles de importéncia secunddria” (Prado Junior 1966). Estes trés setores so a regio limitrofe entre a zona da mata e o agreste nor- destinos, as zonas pioneiras do pais, particularmente o oeste paranaense e 0 centro- -norte de Goids, e as zonas onde a pecudria se expande sobre as terras dos pequenos ocupantes. Em todas estas reas, a luta pela terra é localizada e sem maiores significagdes para 0 conjunto das relagdes sociais no campo. No caso especifico do Nordeste, © movimento de cardter camponés,que nasceu nas 4reas ocupadas pelos foreiros, nfio explica toda a dimens4o assumida pelas Ligas Camponesas. “Mas o que deu maior expresso e notoriedade as Ligas Camponesas ndo foram as agitacdes dos “foreiros” (arrendatdrios) e ocupantes de terras, e sim a ampla mobilizagéo dos trabalhadores dos canaviais que seguiu e acompanhou aquelas agitagdes, e na qual nfo se propés a questo da terra, e sim a luta por melhores condigdes de trabalho e emprego nos engenhos e usinas” (Prado Junior 1966). Caio Prado Junior (1966) retoma a explicagao que lhe parece correta sobre a insignificancia da luta pela terra. Além dela no constituir a contradi¢fo principal Cad. Dif, Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 7 M. de N.B. WANDERLEY no setor agricola, o autor estima que o trabalhador rural, na maioria dos casos, nfo est preparado para se tornar um produtor auténomo: ‘Faltar-lhe-iam mesmo, em tegra, qualidades e condigdes para isto e para seu estabelecimento por conta propria: tradigao cultural, conhecimentos, experiéncia, iniciativa, j4 para ndo falar em recur- sos materiais”. Por outro lado, esta luta ndo representaria nenhum progresso social. “Nada indica, antes muito pelo contrdrio, que a pequena produgio camponesa seja capaz de substituir, em igual ¢ até mesmo aproximado nivel de produtividade, a grande exploragio. Na maior e melhor parte das situagdes presentes na agropecudria brasi- leira, representaria por certo, um retrocesso” (Prado Junior 1966). Creio poder afirmar que o fundamental no trabalho de Caio Prado Junior é sua critica 4 teoria do feudalismo. No entanto, ele parece cair no extremo oposto, ao assimilar as principais relagdes sociais de produgo ao assalariamento e ao reduzir a express6es insignificantes a presenga de um produtor familiar e a importancia politica das formas de luta pela terra. Mesmo tendo admitido a necessidade de maiores estudos e reconhecido certas especificidades do processo histérico brasileiro, suas posigdes levantam muitos questionamentos. Algumas destas posigdes, vale lembrar, foram posteriormente assumidas pelo pensamento conservador e oficial no Brasil. Os estudos subseqiientes evoluiram essencialmente em dois niveis. Em pri- meiro lugar, a recusa em aceitar 0 capitalismo e o feudalismo como conceitos que por si mesmo explicam um processo histérico. Um esforgo foi feito, no sentido de explicitar as nogdes pouco convincentes de “sistemas mistos”, “formas espirias” © outras, incapazes de apreender a especificidade das relagdes. Em segundo lugar, orientagao de estudos e pesquisas para o conhecimento mais preciso dos diversos elementos do processo brasileiro, a fim de evitar generalizacdes e conclusdes abstra- tas. No que se refere mais diretamente a nosso objeto de reflex4o, a pequena pro- dugdo camponesa, parece evidente que a proposta analitica de Caio Prado Jinior foi repensada. Tentou-se, por um lado, observar melhor as especificidades, reconhe- cidas apesar de tudo, por aquele autor, das relages de trabalho no campo, isto é @ remunerago “in natura” dos trabalhadores. Uma tendéncia parece undnime no sentido de afirmar que, mesmo constituindo a forga de trabalho das grandes explo- Tages, estes trabalhadores apresentam uma caracteristica a que Prado Jinior Praticamente nfo faz alusdo, qual seja, a de que tem um acesso a terra e nela reali- zam um trabalho de cardter familiar, Cad. Dif. Tecnol., Brasflia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 18 O CAMPONES: UM TRABALHADOR Por outro lado, foram objetos de estudo as formas de reprodugdo do que havia sido admitido como express4o de uma economia camponesa, existente fora da grande propriedade. Para ambas as questdes, a diversificagdo de posturas vai ocorrer a respeito das explicagdes teéricas formuladas a partir de entao. A fim de dar maior clareza 4 minha andlise, tentarei agrupar as tendéncias que me parecem mais importantes, em fungdo de suas explicagdes teéricas, sem dar maior énfase ao objeto particular de estudo de cada um dos autores considerados. Por outro lado, procurarei concen- trar a atengao sobre a abordagem a respeito da pequena produgdo, embora para isto, © agrupamento proposto parte das concep¢des mais globais sobre a agricultura. Finalmente, néo tenho a pretensdo de apreender a totalidade dos estudos feitos, mas apenas revelar o direcionamento assumido pelo pensamento critico no Brasil, a partir da referéncia a alguns textos que me parecem fundamentais. Combinagao de modos de produgio Esta é uma das primeiras explicagdes que surgiram mais recentemente ;exemplo de sua formulago é a tese de Moacir Palmeira (1971). Defendida em 1971, seu tema é precisamente a revisio do debate feudalismo-capitalismo, tese !amentavel- mente ainda nao publicada. Interessa considerar menos a sintese que ele faz das questdes que centralizavam aquele debate, do que suas proprias conclusdes. Estas se baseiam na afirmag&o da complexidade das relagdes reais, que nfo podem ser com- preendidas e explicadas teoricamente a partir de posturas que guardam uma inegdvel coloracdo ideoldgica. Para superar os impasses deixados e criados pela referida polémica, Moacir Palmeira introduz na andlise, os conceitos de formagfo social, inspirando-se em autores franceses da atualidade. O verdadeiro problema, diz ele, ¢ o de entender © que tornou possivel o latifiindio, enquanto forma de organizagfo econémica e social, questo que julga nfo respondida, nem mesmo colocada, pelas diversas correntes que analisa. Em suas proprias palavras, trata-se, fundamentalmente, de saber “que modo de producdo ou que articulagdo de modos de produgao per- mitiu a emergéncia do latifindio” (Palmeira 1971). E sua resposta se distancia das posigdes até entao formuladas no Brasil. “A “combinagdo” identificada como responsdvel pela emergéncia deste tipo de “unidade econdmica” nfo coincide nem com a que é prépria ao modo capitalista de produgao, nem ao modo de producio feudal . . . parece-nos mais adequado ver no Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1}:13-78, jan.fabr. 1985 19 M. de N.B. WANDERLEY “sistema de plantation” um modo de produgao especifico, cuja légica ndo pode ser reduzida 4 dos modos mencionados” (Palmeira 1971). Segundo Palmeira (1971), 0 conceito de combinagao de modos de produgio, embora jamais assumido teoricamente, ja estava, de uma certa forma, presente em diversos autores brasileiros, particularmente naqueles que tentavam explicar as especificidades do processo histérico e das relagdes sociais fazendo referéncia a expressdes do tipo “modos” ou “sistema misto”. Ao identificar 0 que chama de “sistema de plantation’ a um modo de pro- dug&o, o autor chama a atengHo para o fato de que “nfo se trata de um modo de produgdo do mesmo status que os outros. Ele é dependente, na origem (idgica), de um outro modo de produ¢do: o modo capitalista. Isto é, ele ndo existe sendo na medida em que existe o modo de produgdo capitalista” (Palmeira 1971). No que se refere mais especificamente ao trabalhador rural, Moacir Palmeira © situa a partir da distingdo entre relagdes sociais e relagdes técnicas de produgdo. As primeiras sdo determinadas pela propriedade privada da terra, que realiza a sepa- ragdo do produtor direto dos seus meios de produgdo. No caso das relagGes técnicas, ele afirma: “Hd, certamente, também “separagdo” a propésito do objeto de trabalho (a terra); mas, gragas 4 cooperago simples e em fungdo da flexibilidade exigida pelo mercado internacional, esta relacao é de indiferenca no que se refere aos meios de trabalho. .. Assim, a“plantation"pode operar tanto 4 base de “relagdes de traba- tho” escravistas quanto de “telag&o de trabalho servis”, ou 4 base do salariado formal”. A condig&o-limite intransponivel € que 2 m&o-de-obra seja imobilizada e disposta a aceitar qualquer arranjo imposto pela conjuntura. Portanto, é bastante ldgico que o esforgo maior dos plantadores seja de “vincular” os trabalhadores 4 terra (ou ao estabelecimento)” (Palmeira 1971). Dessa maneira, a vinculagdo do trabalhador 4 terra nfo é negada, mas expli- cada de maneira diferente da referéncia a formas de renda feudal ou semi-feudal. Moacir Palmeira (1971) acrescenta: “Na plantation, qualquer que seja a forma de remuneragdo imposta pela conjuntura, nfo ha separacao visivel entre o “trabalho necessdrio” e o “sobretra- batho”, como ocorre, por exemplo, nas formas feudais. Todo o trabalho dos produ- tores diretos vai automaticamente ao proprietdrio”. Isto é claro no caso do escravo, Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 20 OCAMPONES: UM TRABALHADOR mas também no do trabalhador livre, em que “o fornecimento direto de bens de consumo, o pagamento de uma certa soma de dinheiro ou de um vale com o qual o trabalhador pode “comprar” suas subsisténcias no barracSo da propriedade ... ou ainda o direito de utilizagfo de um sitio. .. garantem sempre ao proprietdrio a possibilidade de recuperar uma parte do que cede ao trabalhador”. Como entender as relagdes de classe no interior deste modo de producdo? Moacir Palmeira (1971) coloca a questfo em dois niveis: “A oposi¢do proprie- tdrio-nfo proprietdrio, considerada como uma distribuigao de posicgdes “anterior”, tornando possfvel o processo de producdo, permite afirmar inicialmente que s&o “relagdes de classe” que sustentam 0 modo de produco em operagao”. Mas esta afirmacao, segundo ele, nfo explica a forma especffica destas re- lag&es, para o que ele introduz o conceito de mediagdo exercida pelo proprietério da terra. “A consideragio da “posig&o de mediagdo” dos proprietdrios, ao contrdrio, nos mostra que a posigdo da classe proprietdria nfo se esgota nas suas relagdes com a classe dos trabalhadores rurais, mas que ela é simultaneamente posicdo em relagdo a “estrutura de classes” do modo capitalista de produgdo”. .. “Esta “posigao de classe” dos proprietdrios, que se define por uma dupla relag%o, pertence a definigao mesma da classe proprietdria na “estrutura de classes” correspondente ao sistema de plantation” (Palmeira 1971). Esta dupla relagfo, no entanto, nfo é observada nos trabalhadores rurais. + as relagdes que definem a classe nfo-proprietdria sf relagdes apenas com a classe proprietéria”. Em conseqiiéncia, “embora sua produgio dirija-se ao mercado internacional ao qual se vincula indiretamente (através da classe proprie- tdria) sua pritica de classe (na producfo) se volta inteiramente para a terra da qual depende para sua sobrevivéncia” (Palmeira 1971). Palmeira (1971) conclui que, apesar de tudo, estes trabalhadores nao consti- tuem uma classe camponesa, “no sentido atribuido em geral a este conceito, o que suporia a posse efetiva dos meios de produg&o pelos “agentes” desta classe (indi- yiduos singulares ou “‘comunidades”), Para justificar esta conclusfo, ele se utiliza da distingfio, formulada por Bourdieu, entre condi¢ao de classe e posig&o de classe. No primeiro caso, levando-se em conta “as caracteristicas que dizem respeito imediatamente a sua prdtica de Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 21 M. de N.B, WANDERLEY classe”, corre-se 0 risco da “ilusdo feudal”, definindo-se uma tal classe simplesmen- te pela sua vinculagao com a terra. A abordagem “posicional”, ao contrdrio, permi- tindo apreender o “sistema” completo de relagdes de classes, nos mostra que encon- tramos nesta “estrutura de classes” um maior peso funcional da classe dominante” (Palmeira 1971). Em conseqiiéncia deste peso funcional, os proprietarios, apesar de seu caréter conservador enquanto classe dominante, so os unicos capazes de tomar iniciativas e de ter possibilidades de transformar © préprio sistema. “Esta tendéncia sé se inverte a partir do momento em que o isolamento dos trabalhadores rurais é rompido, isto é, a partir do momento em que este “sistema de posigSes” que constitui a “estrutura de classes” 6, em uma certa medida, transfor- mado” (Palmeira 1971). Esta ruptura atinge a forma de domindncia do politico que é prépria ao sistema de“plantation? mas é preciso considerar que “a flexibilidade inerente a este sistema e a posigSo da classe proprietdria abrem a possibilidade de mudangas mais ou menos profundas (no sentido que elas colocam em causa a dindmica prépria do “sistema”) sem uma mudanga necessdria anterior da “fungio” em torno da qual 0 sistema se organiza” (Palmeira 1971). E interessante observar que a referéncia 4 combinagdo de modos de produgio € retomada por varios outros autores, mas com conotag6es diferenciadas. Lygia Sigaud (1971), por exemplo, em seu estudo sobre a ideologia dos tra- balhadores rurais da zona da mata de Pernambuco, considera a “plantation aguca- reira” como uma formagio social e os trabalhadores rurais, como uma classe sbeial desta formago. Esta classe sera considerada, no entanto, a partir da especificagdo das diversas categorias ou tipos de trabalhadores, clasificados especialmente em fungdo da relagdo contratual que mantém com os proprietdrios. Lygia Sigaud enumera o mora- dor, o trabalhador da rua, o trabalhador residente no engenho, sem obrigagdes com © proprietério e que s6 trabalha com o empreiteiro, o trabalhador residente na cidade, que mantém um contrato formal de trabalho com o proprietério ou com a empresa, 0 pequeno proprietdrio ou foreiro e o “corumba”?. Ela se detém, em 2 Ver em especial o Capitulo I: “As Categorias”. Cad. Dif. Tecnol., Brasflia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 22 OCAMPONES: UM TRABALHADOR sua andlise, apenas no estudo da ideologia do morador, mas afirma, em suas con: clusSes, que “as outras categorias de trabalhadores que constituem a forga de tra- balho de plantation agucareira da zona da mata de Pernambuco possuem um conjunto de representagdes bastante semelhantes as do morador” {Sigaud 1971). As distingdes decorrem da “maneira como é vivida a relagfo com o proprietario, que seria ndo apenas diferente, mas também teria menor importancia para suas representagdes” (Sigaud 1971). Elas so consideradas como “variantes"de uma mesma estrutura que dizem respeito a uma “diferenca de posicdes no sistema de relagdes de produgio”. (Sigaud 1971). Sao estas referéncias que permitem 4 autora considerar conjuntamente, enquanto forga de trabalho das propriedades canavieiras, os trabalhadores assala- tiados, moradores ou nfo na propriedade, e os foreiros e corumbas, embora defi- nidos em seu texto, como camponeses. Uma outra utilizagio do conceito de combinagdo de modos de produgdo diferencia-se da de Moacir Palmeira. Neste caso, mesmo quando hd referéncigs ao “sistema de plantation”, é 0 campesinato que ¢ considerado como um modo de produgiio articulado e subordinado ao capitalismo. Adotando esta postura pode-se citar, entre outros, o estudo de Afranio Raul Garcia Junior (1975) sobre os foreiros da Zona da Mata pernambucana. Ele os entende como um “campesinato marginal a plantation”, conceito que permite “especificar a subordinag4o que ihe é prépria, ou seja, como os movimentos da plantation influem sobre o campesinato, e como seus movimentos influem no desenvolvimento da plantation” (Garcia Jénior 1975). Interessa a Garcia Junior entender a estrutura da producdo baseada no trabalho familiar que, segundo ele, “supe particularidades da economia camponesa, devido ao fato que tanto a unidade de produgao quanto a de consumo so constituidas por Tegras de parentesco e que o cardter familiar da divisto do trabalho é responsdvel por muitas de suas especificidades. Entretanto, isto nfo implica em nenhuma forma particular de circulagdo do produto, muito menos que a circulaco seja dire- tamente da unidade de produp’o para a unidade de consumo” (Garcia Jinior 1975). E esta especificidade que justifica a considera¢ao do campesinato como um modo de produgao. No entanto, também Garcia Junior explica em que sentido este conceito pode ser utilizado, no caso. Em primeiro lugar, o campesinato, a seu ver, “nfo seria um modo de produgio como concebemos o capitalismo, mas um modo de produgdo subordinado, que Cad. Dif. Tecnol., Brasflia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 23 M. de N.B. WANDERLEY pode se articular com vérios outros modos de producgio, ou que se insere em for+ magdes sociais diferenciadas, cujo movimento é dado por outro modo de produgio dito dominante” (Garcia Ninior 1975). Inspirado, entre outros autores, em Tepicht, ele esclarece o conceito de modo de produgdo que emprega. “Aqui usamos modo de produg%o em seu sentido restrito, isto éuma unidade precisa entre forgas produtivas e relagdes de producto ... O modo de produgao. camponés é compativel com variages de forgas produtivas que nfo rompam com as relagSes de produgao que lhe so préprias, que, grosso modo, poderiam estar localizados no trabalho familiar” (Garcia Hinior 1975). Em segundo lugar, e novamente referindo-se a Tepicht, Garcia Jénior (1975) afirma que 0 conceito de modo de produgao camponés no apresenta uma contra- digo antagénica fundamental, que especifique uma classe dominante, nem permite dar conta da estrutura politica em que estd imerso”. Também Otdvio Guilherme Velho (1976) considera o campesinato como um modo de producdo. Em seu livro “Capitalismo autoritdrio e campesinato” ele consi- dera que o elemento central para definir 0 campesinato é 0 conceito de subordi- nagio “Sugerirfamos, no entanto, que a produgfo camponesa, embora pudesse ser tratada como um modo de produgao, deveria,como complemento,ser vista como necessariamente subordinada, constituindo, portanto, um modo de produgdo subordinado” (Velho 1976). A viabilidade de reprodugao do campesinato difere em fungdo das formas que assume o capitalismo. No capitalismo burgués “existe 3 possibilidade de pequena produgdo transformar-se em produgio complexa, teproduzindo internamente as Principais contradi¢des de classe, ou ela ¢ destruida pdr forgas externas, embora ambas as possibilidades possam obviamente coexistir em graus variados. . .” (Velho 1976). No caso-do capitalismo autoritdrio, contudo, “haveria para uma maior ou menor propor¢ao do campesinato e variando com o tempo, uma espécie de pressio “a meia forga” que, fundamentalmente, no destréi o campesinato, nem permite a sua transformagdo, mas o mantém subordinado, continuando a extrair de varias formas um excedente dele ao mesmo tempo que controlando a acumulagdo da sua propria camada superior. O campesinato nfo ¢ destruido, mas é como que “confi- nado” aos limites de ym espago social dado” (Velho 1976). Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 24 O CAMPONES: UM TRABALHADOR Otavio Velho (1976) coloca, ainda, a questdo do tratamento do campesinato en- quanto classe. A este respeito, ele afirma: “Estamos supondo que o campesinato contenha, em seu seio, divisdes que, dependendo das circunstancias, podem vir a constituir o germe de contradigdes internas de classe. No entanto, enquanto campesinato, a pressfo “externa” sobre ele ndo permite que “explodam” e se revelem plenamente. Assim, 0 que predomina € @ posi¢do, basicamente a mesma,do campesinato como um todo diante do modo ou classe dominante”. Nao resta divida que, sob certas circunstancias, 0 campesinato assume um papel politico. Mas para Otavio Velho, este fato nao justifica o emprego do conceito marxista de classe, “visto como nfo se opde a outro grupo no préprio processo de produg4o””. Todavia, observa o autor, “na medida em que ¢ subordinado, efetiva- mente se opOe a outro grupo em outro nivel. Assim, dirjamos que o campesinato constitui o que denominaremos uma classe politica” (Velho 1976). Na segunda parte do seu livro, o autor consagra-se ao estudo do capitalismo autoritdrio no Brasil e do sistema que lhe é inerente, da repressfo da forga de tra- balho. A respeito da produgio camponesa, é possivel sintetizar suas andlises nos seguintes pontos: Em primeiro lugar, os trabaihadores da “plantation” ndo sao propriamente camponeses: “... o fato é que seu trabalho principal tinha a ver com a plantation, submetidos ao dono da plantation e a uma divisio do trabalho complexa que estava longe de algo que pudesse lembrar uma produgdo camponesa. Mesmo os Pequenos peda¢os de terra que cultivavam, apareciam freqiientemente como uma espécie de “doag%o” do proprietdrio em terra marginal da plantation, de fato constituindo uma maneira de permitir uma reprodugao barata da forga de trabalho” (Velho 1976). No entanto, reportando-se a outros autores que estudaram a zona agucareira do Nordeste, em especial Garcia Junior aqui jd citado, Otdvio Velho (1976) observa que “a transformagdo capitalista da plantation e o gradual desaparecimento de seu tipico morador tem sido seguida pelo aparecimento simultaneo de um proletariado tural e de um campesinato”. Em segundo lugar, fora da“plantation? desenvalve-se historicamente o que chama de campesinato marginal, inspirando-se em Kalervo Oberg: “individuos Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 25 M. de N.B. WANDERLEY conhecidos por vezes como caboclos ou caipiras que tentavam reproduzir-se basica- mente através de uma agricultura voltada para o auto-consumo, mantendo lagos frouxos com o mercado. .. Muitos desses individuos constituiam uma espécie de “exército agricola de reserva” para a plantation em seus momentos de expansdo ciclica” (Velho 1976). Esse campesinato marginal cresce, sobretudo, a partir da década de 20 deste século, ocupando as dreas de fronteira. Progressivamente, com a abertura de estra- das, ligando estas areas aos principais centros do pais, “essa agricultura camponesa comecou a ter um papel importante no abastecimento de arroz para o Centro-Sul. Ao passo que os camponeses do Nordeste tém produzido sobretudo para mercados locais, esse campesinato de fronteira adquiriu, num periodo de tempo relativamente curto, um grau bastante alto de integragdo vertical com o mercado nacional” (Velho 1976). Em terceiro lugar, péde-se constituir nas areas coloniais da regifo sul, um campesinato, que teve “uma importante fungdo no abastecimento alimentar das cidades em crescimento” (Velho 1976). Este campesinato manteve-se no entanto controlado pelo sistema, através de seu aparato legal (a Lei das Terras de 1850)e, com o tempo, parte dele se deslocou para as areas de fronteiras. . . Otavio Velho (1976) introduz uma importante observagao em sua andlise ao considerar que, apesar da impossibilidade de constituigdo de um “‘verdadeiro campe- sinato livre de massas”, houve, no Brasil, constantes manifestagdes e movimentos vinculados a uma reinvidicag3o por uma atividade auténoma, de cardter camponés. Canudos e Contestados, por exemplo, “com sua forma messidnica, servem para demonstrar a contradi¢&o entre o sistema dominado pela plantation e a exis- téncia de um campesinato livre. Todavia, jé ai, € interessante notar as duas pontas do dilema: 0 mesmo sistema que era incompativel com um campesinato de massas deu origem a tenses que trabalhavam no sentido de forgar a existéncia de um campesinato” (Velho 1976). Nao cabe, no presente estudo, uma andlise critica do emprego que tem sido dado aos conceitos de modo de produgdo e de formagao social. Mas gostaria de observar que a flexibilidade atribuida ao sistema de “plantation” (refirome em especial 4 tese de Moacir Palmeira) € de tal amplitude que este conceito - o de sis- tema de “plantation” - sobrevive, apesar das transformagées ocorridas, inclusive e sobretudo, ao nivel da substituigfo do trabalho do escravo pelo trabalho livre e do emprego de formas diferentes deste trabalhador livre. Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 26 OCAMPONES: UM TRABALHADOR Por outro lado, é importante ressaltar que as andlises feitas em termos de combinagdo de modos de produgdo trazem 4 tona a fragilidade deste conceito, cujo uso generalizdvel em qualquer situagdo - por exemplo, um modo de produgao camponés, no interior do modo de produgdo representado pelo sistema de“plan- tation” articulados ou subordinados ao modo de produgSo capitalista - esvazia sua capacidade explicativa e sua significagao mais precisa. Este esvaziamento parece-me tanto mais evidente quanto sua referéncia sempre acompanhado de ressalvas que © restringem: no se trata de um modo de produgao como os outras, ov mais espe- cificamente, como o capitalismo. A articulac4o entre forgas produtivas e relacdes de produce constituem o fundamento de qualquer modo de produgdo, nfo repre- sentando nenhum caréter réstritivo a este conceito - como pretende, por exemplo, Afrénio Garcia Jimior, mas 0 seu verdadeiro sentido. Se o “modo de produgdo camponés no representa uma articulagao especifica entre forcas produtivas e telagdes de produgdo, nfo seria isto um argumento para negar a natureza de modo de produgdo que se atribui ao campesinato?. A reproducao de relagdes pré-capitalistas, ndo capitalistas ou nfo especificamente capitalistas, articuladas e subordinadas 4 dominag&o do capital Esta explicag4o parece ser a tendéncia dominante nas pesquisas mais recentes. Porém, embora elas partam e cheguem a um ponto comum, os argumentos utili- zados por cada uma e os desdobramentos de cada andlise so diversificados. O ponto de partida comum € a afirmag&o de que a “formago social brasileiza” € capitalista ¢ que, portanto, é necessdrio explicar seus diversos elementos a partir da dinamica do processo, real da acumulaggo do capital. O artigo de Francisco de Oliveira (1975) a respeito deste processo desde os anos 30, certamente muito contribuiu para a adogSo desta perspectiva. Sem entrar em maiores detalhes, pois seu trabalho no tem propriamente por objeto a questo que aqui estou considerando, creio ser importante sublinhar a con- tribuigdio de Francisco de Oliveira, no sentido de deslocar a questo central dos debates para o ambito das relages agricultura-industria, cuja integragfo dialética € capaz de explicar as relacdes internas de cada setor. Esta integragdo tem como elemento-chave a possibilidade de reproducio na agricultura, da “‘expanso horizontal da ocupagio com baixissimos coeficientes de capitalizagao e até sem nenhuma capitalizagao prévia” (Oliveira 1975). Esta foi uma das condig6es da expansfo capitalista, que ao mesmo tempo favoreceu a manu- Cad. Dif. Tecnol., Brasflia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 27 M. de N.B. WANDERLEY tengdo, no setor agricola, de uma “alta taxa de exploragdo da forga de trabalho” (Oliveira 1975), Vale notar que o autor, ao se referir aos “padrdes primitives” predominantes na agricultura e 4 sua contribuicSo para a expansfo capitalista, enfatiza, por um Jado, o papel do proletariado rural, e por outro lado, daquilo que chamou “acumu- lagdo primitiva”, redefinindo estes conceitos em fung&o do processo histérico brasileiro (Oliveira 1975). Nao ha, por conseguinte, nenhuma referéncia a modos, relagdes ou formas nao capitalistas. Da andlise de Oliveira (1975) foi retida, em especial, a énfase dada ao processo de acumulagdo, cujo elemento dindmico esté fora da agricultura e, conseqiiente- mente, 4 integrag4o inter-setorial. Contudo, a partir desta perspectiva, volta o debate sobre a natureza das relagGes sociais na agricultura, desta feita, vista como © resultado da reproducdo de relagdes nfo capitalistas pelo capitalismo dominante. Alguns autores aceitam esta explicagdo teérica, sem, no entanto, rejeitar a anteriormente analisada, referente 4 combina¢o de modos de produgo. Cito, em particular, Loureiro (1977), que estudou a parceria numa grande propriedade de Goias. Baseando-se em Pierre Philippe Rey, ela afirma: “.,. a heterogeneidade da agricultura brasileira, por exemplo, tanto pode ser pensada hipoteticamente em termos de articulagao de modos de producao dife- rentes, sob a dominancia do modo de produgdo capitalista, quanto em termos de telagdes de producdo ndo capitalistas articuladas subordinadamente com relacdes de produgio capitalistas, sendo ambas as alternativas passiveis de comprovagao por investigagdes empiricas”’. Deste modo, no estudo de seu tema especifico, esta dupla perspectiva é consi- derada. Por um lado, “para a situagdo concreta que aqui estudo, a teoria da articu- lagZo de modos de produgio diferentes oferece pistas para a compreensfio da modalidade de parceria gerada dentro de uma empresa capitalista em fung%o da maximizacdo do rendimento do capital e da terra posta em exploragio, articulada ao assalariamento, sem cair em solugdo com “sistema misto”, “produto anémalo” do capitalismo etc.” (Loureiro 1977). Por outro lado, suas conclus6es indicam que a parceria na empresa conside- rada “é uma relacao de produg4o nfo capitalista que se encontra articulada sobordi- Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan-/abr. 1985 28 OCAMPONES: UM TRABALHADOR nadamente com a relagio de producdo capitalista de assalariamento” (Loureiro 1977). E esta segunda perspectiva que constituird o fio condutor da andlise, tanto ao nivel da quest#o especifica de que se ocupa, como ao nivel de agricultura brasi- leira em geral. A respeito deste uitimo, suas observacdes se dirigem no sentido de considerar as especificidades da acumulag4o capitalista no pais. “OQ desenvolvimento do capitalismo no Brasil, em sua dificuldade de gerar, além da renda da terra, o lucro para certos produtos agricolas (especialmente os géneros alimenticios de primeira necessidade), tem que recriar no campo o pequeno estabelecimento camponés, portanto, relagdes de produgSo que, embora estejam inseridas e articuladas na formacdo social capitalista, embora aparegam na base da economia capitalista, no s4o capitalistas” (Loureiro 1977). Subjacente a esta andlise parece estar, portanto, o reconhecimento de uma selativa fraqueza do capitalismo, que a autora aponta em seguida ao afirmar™ . . . tem-se af uma situac¢do em que a empresa capitalista nfo consegue concorrer com 0 estabelecimento camponés (com a propriedade “‘parcellaire” analisada por Marx) no bastecimento dos mercados urbanos com géneros alimenticios e matérias primas, isto é, a necessidade de acumulacdo de capital no conjunto da economia nfo per- mite que certos produtos alimenticios nesta etapa, consigam gerar, além do “sald- tio” e da renda, também o iucro” (Loureiro 1977). E Maria Rita Loureiro (1977) conclui a respeito: “o desenvolvimento do capitalismo na agricultura brasileira se faz, de um lado, pela expansfo de empresas especificamente capitalistas (especialmente nos ramos cujos produtos, alcangando Pregos mais elevados no mercado nacional ou internacional, permitem gerar, tam- bém, 0 lucro); ¢, de outro lado, pela expansfo do tipo de estabelecimento que, embora organizado sob a domindncia do thodo de produgao capitalista, apoia-se em relacSes de produgdo n4o capitalistas como é 0 caso deste que estudo”. A referéncia a uma fraqueza ou incapacidade do capitalismo na agricultura também ¢ encontrada no trabalho coordenado por José Francisco Graziano da Silva (1978), “A estrutura agrdria e a produgdo de subsisténcia na agricultura brasileira”. Este texto chega a uma conclusao, que considera fundamental, a saber, “a relativa debilidade das transformagOes capitalistas na agricultura. Isso significa que © capital nfo tem conseguido realizar a expropriagdo completa do trabalhador, nem revolucionar o processo de produc&o de modo amplo e dinamico”. Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 29 M. de N.B, WANDERLEY Esta debilidade ¢, em seguida, explicada mais detalhadamente: “A dificuldade do capital em transformar a agricultura brasileira se traduz, em particular, em quatro pontos: a) no papel determinante que assume a proprie- dade da terra; b) na persisténcia (¢ mesmo recriagdo da pequena produgdo); c) no fato de que, por maiores que sejam os meios e os recursos envolvidos, instru- mentais de politica agricola,ndo terem conseguido maiores progressos, a ndo ser em algumas culturas especiais e regides privilegiadas, e finalmente; d) no alto grau de exploragio a que se submete quer a mao de obra familiar, quer a mao de obra assalariada (Silva 1978). A mesma perspectiva de andlise da problemdtica agraria, a partir do nucleo central da acumulagdo capitalista é utilizada por José de Souza Martins e Sérgio Silva. Esses autores, no entanto, recusam, cada um a seu modo, a referéncia a uma fragilidade do capital e insistem no cardter da articulacdo intersetorial, antes ja considerado por Francisco de Oliveira. José de Souza Martins (1975) desenvolve sua andlise no sentido de mostrar como o processo de acumulagao desestimula o florescimento de padres empre- sariais no setor agricola. Analisando especificamente a modernizagao da agricultura em Sdo Paulo, Martins distingue dois tipos deste processo, Um primeiro, que considera “artificial”, “ocorre quando a modernizag4o apdia-se num raciocinio que néo leva em conta os requisitos da multiplicagéo do capital”. Um segundo, que denomina “empresarial” tem lugar, “quando as condigGes fundamentais para a adog4o de uma nova prdtica obedecem a imperativos do capital”. “A difusdéo da vocag4o empresarial - afirma Martins (1975), em outro texto - encontra uma barreira na propria expansdo da formagdo capitalista, nos elos perifé- ticos da corrente produzida pela expropriagdo sucessiva ¢ aos quais s4o transferidas as suas conseqiiéncias “irracionais”, sob a modalidade de vivéncia da insuficiéncia econdémica, mediante o aparecimento de categorias de produtores rurais nfo tipica- mente capitalistas...” Essas categorias nfo podem ser pensadas limitadamente como estdgios na evolugdo social em direg4o 4 constituigdo do modo capitalista de produgio, mas sdo pois, o resultado necessdrio desse mesmo modo capitalista de produgao”. Ao estudar os nicleos de camponeses gerados pelo processo de colonizagao a partir da segunda metade do século passado, Martins (1973) retoma a questdo das condigdes de reprodugio e de subordinag4o desta estrutura camponesa ds formas vigentes do capital. Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 30 O CAMPONES: UM TRABALHADOR Sua idéia central é a de que, ao se tornar proprietdrio da terra, o camponés vive contraditoriamente uma realidade, definida pelo capitalismo. “Quando o trabalhador realiza o ideal burgués de transformar-se em proprie- tério independente, nas condigdes indicadas, deslocase para uma posi¢do social em que o desempenho da condigZo de camponés pressupde a um sé tempo, ¢ con- traditoriamente, a realizag%o das concepgdes burguesas relativas 4 condicZo de proprietdrio da renda capitalizada, isto é, de capital, e a absorg4o dos resultados extremos do desenvolvimento desigual”. “Essa absorgao - explica ele -, se realiza essencialmente através do trabalho familiar auténomo, a partir do qual os camponeses da atividade econdmica agrd- ria - renda territorial, capital e trabalho - nfo se tornam independentes uns em face dos outros. O camponés ndo desaparece para dar lugar ds classes sociais que poderiam daf derivar (proprietdrios, burgueses e proletdrios) e, conseqientemente, capital ndo se liberta dos outros componentes para se reproduzir autonomamente segundo a taxa corrente”. E Martins (1973) conclui: “E nao se liberta porque um ou mais desses compo- nentes nfo estd, de fato, sendo remunerado. A libertag4o desvendaria a exploragao de uns setores econdmicos sobre os outros e de umas classes sociais sobre outras”. No seu texto sobre o sistema de colonato nas fazendas de café, José de Souza Martins (1979) explicita mais claramente suas hipéteses. “A producdo capitalista de relagdes ndo capitalistas de produgao expressa ndo apenas uma forma de reproducZo ampliada do capital, mas também a reprodugdo ampliada das contradigdes do capitalismo - 0 movimento contraditorio ndo sé de subordinagdo de relagdes pré-capitalistas, mas também de relagdes antagonicas e subordinadas n4o-capitalistas. Nesse caso, o capitalismo cria, a um sé tempo, as condigdes da sua expans&o pela incorporagao de dreas ¢ populacdes ds relacdes comerciais, ¢ os empecilhos 4 sua expans%o, pela nfo mercantilizagdo de todos os fatores envolvidos, ausente o trabalho caracteristicamente assalariado. Um com- plemento de hipétese ¢ que tal producHo capitalista de relagdes ndo-capitalistas se dd onde e enquanto a vanguarda da expansdo capitalista estd no comércio"(Mar- tins 1979). Esta hipétese foi formulada, segundo explica o autor, apés uma descoberta feita a partir da andlise da teoria da renda fundidria de Marx. Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 31 M. de N.B, WANDERLEY “Sendo a renda da terra de origem pré-capitalista, perde, no entanto, esse cardter, 4 medida em que ¢ absorvida pelo processo do capital e se transforma em renda territorial capitalizada, introduzindo uma irracionalidade na reprodugdo do capital. A determinagdo histérica do capital nao destréi a renda nem preserva o seu cardter pré-capitalista - transforma-a, incorporando-a em renda capitalizada, Fiz dessa constatag4o uma hipdtese que abrangesse ndo apenas relagdes pré-capitalistas, mas 0 que 0 proprio Marx e, mais tarde, Rosa Luxemburg definiram como relagdes néo capitalistas” (Martins 1979), Sérgio Silva (1976) é, a meu ver, o autor que mais avangou nas anidlises das implicagdes da denominagdo capitalista na agricultura brasileira. Em sua tese sobre a “expansdo cafeeira e origens da indistria no Brasil”, ele afirma:“. . . 0 desenvol- vimento das plantag3es de café ¢ dominado pelo capital, isto é, ... ele faz parte do desenvolvimento capitalista”. Por conseguinte, “também a dominagdo das telagdes capitalistas, mais precisamente, as formas concretas das relagdes capita- listas no Brasil durante essa época, explica a estrutura da propriedade fundidria na tegido do café...” Ele chama a ateng@o para a articulacdo, historicamente observada, entre as diversas formas de capital. “A transformac%o das plantagdes faz parte de um processo mais amplo ¢ nfo pode ser cortetamente explicada isoladamente. Em particular, a natureza capitalista dessas transformagées e 0 desenvolvimento do capitalismo que tem por base a economia cafeeira ndo podem ser determinados unicamente ao nivel das plantagGes” (Silva 1976). Além do cardter comercial ¢ bancdrio do capital envolvido na producdo, hé a considerar os investimentos dirigidos para o beneficiamento e transformagdo da produgao agricola. A quest&o do cardter capitalista da agricultura, reconhecido no estudo sobre a producio cafeeira, terd novos desdobramentos nos textos subseqientes de Sérgio Silva, nos quais, dando énfase 4 explicagao do chamado atraso da agricultura em telagdo 4 industria, ele introduz o conceito de dominagio indireta (Silva 1976). “Por dominagao indireta do capital, isto ¢ denominagHo indireta do capital sobre 0 trabalho, ou ainda, dominagao indireta das relagdes capitalistas de produgao na agricultura, entendemos que a produgio e, naturalmente, a sua expans4o nao dependem da acumulagao do capital na agricultura” (Silva 1976). Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan.fabr. 1985 32 O CAMPONES: UM TRABALHADOR E através deste conceito que ele pretende explicar as especificidades do processo histérico do capitalismo no Brasil; “A simples aceitago da predominancia de relagdes pré-capitalistas na agri- cultura é condigao necessdria, mas insuficiente, para a andlise da propria agricultura. E preciso ter sempre muito claro que tratamos do desenvolvimento do capitalismo: a nogdo de dominag4o indireta afirma que o fato fundamental ¢ a subordinagio das relagdes pré-capitalistas ao capital, dominante no conjunto da economia (0 con- junto da economia, talvez valha explicitar o Sbvio, inclui a agricultura). As relagSes pré-capitalistas s6 existem como formas subordinadas, mesmo se elas sfo predomi- nantes na agricultura. Enfim, a andlise das relagdes pré-capitalistas na agricultura €a andlise do desenvolvimento do capitalismo na agricultura” (Silva 1976). O conceito de subordinacdo utilizado por Sérgio Silva parece ser distinto no que inspirou as andlises em termos de combinagdo de modos de produgdo, pois, para ele, as contradicdes geradas por esta subordinagZo nfo so contradigdes entre relagdes capitalistas e pré-capitalistas. “Estas contradigdes desaparecem com a propria subordinagdo destas ultimas relagdes ao capital. Estas contradigdes que este estudo tenta esclarecer s4o as contradigdes do capitalismo no Brasil” (Silva 1976). Através desta postura tedrica, o autor tenta explicar 0 “atraso” da agricultura brasileira através da andlise dos precos 4 luz da teoria do valor. Em outro estudo, Sérgio Silva (1976) retoma a quest&o do atraso da agricul- tura, incorporando, se ndo estou enganada, pela primeira vez, depois de um longo periodo, a problemética das lutas sociais. “O Brasil se desenvolve sem que medidas radicais tenham sido adotadas para a transformagao dessa estrutura, nfo porque o Brasil prescinda dessas transfor- magoes para se desenvolver, mas, simpleSmente, porque as forgas sociais que lutavam Por essas transformagdes foram, pelo menos nesse particular, derrotadas. Apagar da hist6ria os conflitos sociais ndo pode justificar-se por nenhuma necessidade hist6- rica em geral, mas unicamente pelas necessidades de determinadas forgas sociais” (Silva 1976). Mantendo sua postura tedrica inicial, Sérgio Silva (1976) situa a quest4o da luta pela terra: “... ausa muitas vezes espanto ao cientista social o fato de que o trabalhador tural, mesmo quando desprovido de qualquer pedago de terra, jd transformado em Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 33 M. de N.B. WANDERLEY trabalhador assalariado, continue sonhando com um pedago de terra e coloque a terra como a sua reinvidicagdo principal. Na verdade, enquanto as formas modemas do capital sfo pouco desenvolvidas, a separagdo entre © trabalhador e os meios de producdo, em particular a terra, nao est4 plenamente realizada. Nesse caso, mesmo nao possuindo a propriedade dos meios de produg&o, mesmo tendo sido dela desprovido hd muito tempo e trabalhando em uma produgSo capitalista, a sua principal reinvidicagdo é, muitas vezes, o acesso a essa propriedade, em particular, © acesso a terra”. José Vicente Tavares dos Santos (1979) em sua tese recentemente publicada sobre “Os colonos do vinho”, oferece também uma importante contribuigio para a compreensdo do campesinato. Sua andlise se baseia num duplo fundamento, Em primeiro lugar, a afirmago de que o processo de trabalho do camponés nfo é destruido pelo capitalismo. “© processo de trabalho camponés continua sendo exercido do mesmo modo, isto é, a propriedade da terra e dos outros meios de produgao continua pertencendo ao camponés, a forga de trabalho utilizada ¢ a familia, o nivel de mecanizagao € baixo, enquanto que os insumos industriais utilizados sé tendem a reafirmar a viabi- lidade da forga de trabalho familiar” (Santos 1979). Em segundo lugar, o capital exerce um tipo de “subordinacado formal” do processo de trabalho do camponés, que ¢ vista, por um lado, como correspondente a uma fase do capitalismo em que “o capital ainda nfo domina toda a forma social da produgao” (Santos 1979), ¢ por outro lado, “como uma forma particular coexis- tente no interior do modo de produgio especificamente capitalista” (Santos 1979). Esta subordinagio interfere no processo de trabalho do camponés em varios niveis: “O modo de produgio capitalista imprime uma determinag4o fundamental ao processo de trabalho camponés, na medida em que converte a terra em equiva- lente de mercadoria, obrigando o camponés a despender uma soma de dinheiro para pagd-la e converter-se em proprietdrio privado da terra. Desta forma, os camponeses de Sdo Pedro estdo, desde sua origem, determinados pela produgao de mercadoria” (Santos 1979). Ao mesmo tempo, o camponés, segundo a concepgdo do autor, mantém a autonomia do processo de trabalho. “*. ..a condi¢&o de proprietdrio da terra e dos outros meios de produgdo assegura ao camponés 0 dominio sobre o processo de trabalho e assim lhe dd a condigio de trabalhador independente. Ainda que subordi- nado formalmente ao capital” (Santos 1979). Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 34 O CAMPONES: UM TRABALHADOR Em conseqiiéncia, tem-se, na produgao camponesa “um processo de trabalho no especificamente capitalista. ..” (Santos 1979), e no camponés, a “personifi- ago” deste processo e um participante “das classes subalternas da sociedade capitalista” (Santos 1979). N&o € possivel aqui comentar com mais detalhes todos os elementos levan- tados nestes diversos estudos que contémplei. Pretendo, portanto, enfatizar apenas um aspecto, que me interessa particularmente, a saber, a compreensfo da natureza das relagdes sociais existentes na agricultura do pais, em especial as que envolvem © pequeno produtor familiar. Parece-me importante retomar este angulo de andlise, que sempre surge como fio condutor dos estudos, mesmo estando convencida de que o debate, hoje, no se prende mais a uma visio fechada desta questo e que os estudos disponiveis conseguiram ir muito além, na busca de conhecimento mais profundo e especificado da realidade brasileira. Por outro lado, a perspectiva critica que me proponho desenvolver nfo tem a intengdo de ser pretenciosa. Esclarego, de inicio, que sou devedora, intelectual- mente, de todo o esforgo até agora empreendido e que as eventuais discordancias que revelo em relag3o.a um ou outro texto analisado em nenhum momento pretende desconhecer o mérito de suas contribuigdes. Finalmente, nto me eximo de uma auto-critica, pois a releitura de toda essa bibliografia obriga-me a rever varias de minhas préprias andlises, elaboradas em textos anteriormente publicados. Creio ser possivel perceber alguns pontos de convergéncia de todas as andlises apresentadas e iniciar minha proposta de revisdo critica a partir deles. Citarei em especial, dois destes pontos. O primeiro é que, apesar da diversidade de abordagens, hd um pressuposto teérico comum, nem sempre explicitado e assumido em graus diferentes, de que 0 capitalismo significa necessariamente a expropriacao total de todos os produtores diretos. A existéncia de trabalhadores que mantém, de uma maneira ou de outra, uma vinculagtio com suas condigdes de trabalho, suscitard interpretagdes que vao, grosso modo, em trés direcdes: — anegacfo do capitalismo, como fazem os defensores da tese feudalista; — a negacdo da base familiar da organizacdo do trabalho como condi¢&o para manter © argumento da natureza capitalista, a exemplo da concep¢ao de Caio Prado Junior, Cad: Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 35 M, de N.B. WANDERLEY — a referéncia a “algo” (modo, relacSo, forma etc) pré-capitalista, nfo capi- talista ou nao especificamente capitaljsta, quer quando claramente s¢ atribui esta adjetivagao a uma fraqueza do capitalismo, quer cuando ela é vista como a propria forma de operagdo do capital. ‘ © segundo ponto é que o conceito de camponés utilizado é, na maioria dos casos, um conceito do camponés feudal, seja para admitir sua existéncia, seja para negé-la. Observe-se a respeito, que o préprio Caio Prado Jiinior, ao reconhecer - apesar de apontar seus limites - a existéncia de um setor camponés, nfo reformula 0 con- ceito de camponés feudal que utiliza para negar sua existéncia nos setores princi- pais da agricultura brasileira. Os que “‘escapam’” a esta postura, 0 fazem pelo caminho mais facil, que ¢ 0 de nfo precisar 0 que vém a ser (do ponto de vista de sua natureza) modos, formas ou relagSes pré-capitalistas ou n&o-capitalistas. Retomemos, por exemplo, a andlise de José de Souza Martins. Partindo da constatagdo de que o capital transforma a renda fundidria pré-capitalista em renda capitalista, ele afirma que este mesmo processo de transformagao justifica a tecriago de relagdes pré-capitalistas ou no capitalistas. Ndo seria mais légico tirar a con- clusdo contréria, de que o capital nfo preserva o camponés ou as telagdes pré-capi- talistas em geral - mas que o(as) transforma? A renda capitalista é qualitativamente diferente, pois que transformada, da renda pré-capitalista. Nao é mais possivel denomind-la de pré-capitalista, embora continue sendo renda da terra. O camponés néo seria, igualmente transformado, de maneira a se tornar outra coisa que 0 cam- ponés pré-capitalista ou ndo-capitalista? A passagem de Martins a propésito da propriedade da terra pelo camponés parecia, inicialmente, levantar uma pista nova e de grande profundidade. De fato, a reproducao do camponés sob o capitalismo, passa por um novo crivo, o das leis do funcionamento do capital. Nao seria esta uma pista para considerar que 0 cam- ponés € algo novo criado pelo capital e que precisa ser compreendido nesta sua condigdo de novo e ngo através de referéncias ao que deixou de ser? Infelizmente, @ meu ver, esta pista nfo foi explorada pelo autor, que orienta de outro modo a seqiiéncia de seu pensamento, ao referir-se ao fato de que, através da propriedade camponesa, 0 capital nfo se liberta da propriedade da terra e do saldrio. E possivel, efetivamente, afirmar que o camponés realiza a renda fundidria e o lucro? Que o Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985, 36 OCAMPONES: UM TRABALHADOR capital (sob estas duas modalidades) no se liberta? N&o se poderia afirmar que € justamente por que o capital se liberta - via pagamento do prego da terra pelo camponés, por exemplo - que se pode falar na explorag4o entre setores e entre classes, a que Martins se refere? No caso dos estudos de Sérgio Silva, a andlise ¢ claramente colocada em termos de capitalismo, de tal modo que ndo é possivel entender, apds toda a sua explanagdo, 0 que neste caso ¢ pré-capitalista. A referéncia 4 face real do capitalismo no nosso processo histérico nfo seria suficiente para dar conta da realidade, sem que seja necessdrio recorrer a noges que implicam uma referéncia anterior ao capi- talismo? Tentarei, a seguir, expor meus préprios argumentos, a partir dos dois pontos a que me referi acima. UMA PROPOSTA DE ANALISE TEORICA O fio condutor de minha andlise pode ser explicado da seguinte forma: ndo testa divida que, sendo o capital uma relacdo social, que se estabelece entre proprie- térios dos meios de produg%o e vendedores de forga de trabalho, sua realizacdo histérica supde a separagio do produtor direto de suas condi¢des objetivas de trabalho. Este processo de proletarizagfo, ¢ evidente, realizou-se historicamente em todos os paises submetidos ao modo capitalista de produgio e se realiza, sob nossas vistas, no Brasil. Por outro lado, nfo resta diivida, igualmente, que o capital no proletariza a totalidade da forga de trabalho, particularmente na agricultura. Sustentar que esta forga de trabalho nao proletarizada é algo pré ou nfo capitalista, mesmo quando se introduz a referéncia 4 subordinagdo do capital, é explicd-la, de um certo modo e em graus diferentes, como outra coisa que o capital, estranha a ele, embora the seja Util ou necessdria. E afirmar que o capital explica sua presenga.- pela subordi- nagfo - mas ndo a explica em sua natureza intrinseca, pois que pré ou no capitalista; € negar o espago que © capital cria para sua reprodugdo e que a torna, por isso mesmo, no algo diferente do capital, mas um elemento do seu prdprio funciona- mento, portanto, um elemento capitalista. Nao é sem razZo que a referéncia 4 natureza pré-capitalista destas relagdes sociais implica na afirmag&o de um fraco desenvolvimento do modo de produgdo capitalista, na atribuigo de um cardter transitério a estas relagdes sociais, que Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 7 M. de N.B, WANDERLEY seriam superadas com a dominag&o definitiva do capitalismo. Como, até hoje, em todos os paises capitalistas, inclusive nos mais desenvolvidos, onde é inegdvel a dominagao do capital, e mesmo nos paises socialistas, a explorag%o familiar ndo foi destruida, a nogdo de transigéo se toma pouco util, pois muitas yezes subsitui 4 percepedo do processo de desenvolvimento propriamente capitalista. A partir de um certo momento, a dindmica do capital é que direciona as transformagdes € nao mais a dindmica da transigdo de um modo de producdo para outro. Minhas hip6teses, do ponto de vista tedrico, sdo as seguintes: a) sob a dominagao do modo de produgdo capitalista, o campesinato ocupa um espago criado pelo préprio capital, em seu funcionamento no setor agricola; b) este espaco ¢ o de um trabalhador para 0 capital, distinto do proletariado. Isto implica em afirmar que a expropriagio da forga de trabalho nfo se efetua exclusivamente através da proletarizagao, mas, também, sob outras formas, que redefinem o conceito - e a realidade - da propriedade das condigGes objetivas do trabalho; ©) por conseguinte, o campesinato, ao ocupar este espaco, se transforma qualitativamente ; o conceito de camponés pré-capitalista ou nJo capitalista torna-se inadequado para apreender esta nova realidade social e mesmo a deforma profundamente; d) a reprodugao do campesinato, nestas condigdes, depende, nfo necessaria- mente do grau de desenvolvimento do capitalismo, mas, fundamental- mente, das condi¢des histéricas do funcionamento do capital, o que tem a ver, de um lado, com a natureza e a intensidade das contradicdes eco- némicas deste mesmo funcionamento, e de outro lado, com razdes de ordem politica, isto ¢,o maior ou menor “privilegiamento” politico conce- dido a classe burguesa que opera no setor agricola. Meu referencial ¢ a bibliografia dos cldssicos marxistas, na medida em que pude ter acesso a ela. Precisamente sobre a questdo do campesinato, observa-se, atualmente, uma tendéncia a afirmar que Marx e¢ os continuadores de sua obra erraram ao prever a supressfo do campesinato pelo capitalismo. Tepicht (1973), um estudioso polonés da questdo agraria, por exemplo, declara: Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 38 OCAMPONES: UM TRABALHADOR “Um século nos separa da época em que Marx, no terceiro livro do Capital, constitui o modelo das relagdes de produgSo capitalistas na agricultura, modelo representado por trés personagens: © proprietdrio fundidrio, arrendatario-empresdrio capitalista e o operdrio assalariado agricola. Inspirado pela natureza destas relagdes na Inglaterra, Marx lhes atribufa uma dimensdo bem mais ampla: “Todos os outros paises da Europa ocidental, escrevia ele, seguem o mesmo movimento” (Marx 1974). Constatando a presenga e mesmo a predominancia da economia camponesa, inclusive nos paises da Europa ocidental, Tepicht se interroga como um marxista deve se situar diante deste erro tfo flagrante. Sua resposta é a seguinte: “‘inspirar-se no espirito e ndo necessariamente na letra, quando a prdtica a contradiz, corrigir, com a ajuda do método marxista os inevitdveis erros de dtica, sem recuar, se foro caso, diante da necessidade de ajustar o préprio aparelho conceitual” (Marx 1974). E uma excelente resposta, vdlida a meu ver, independentemente da confir- magao ou ndo, pelos fatos, da teoria formulada. Porém, embora no tenha nenhuma preocupagdo com a ortodoxia e admita que o referencial tedrico nfo pode ser utilizado como um dlibi para dispensar o esforgo pessoal de reflexdo e de conheci- mento das situagdes histéricas concretas, estimo que a andlise de Marx sobre a eco- nomia camponesa tem muitos aspectos - para mim fundamentais - que nfo foram claramente compreendidos e, por isso mesmo, considerados erréneos; conseqiiente- mente, se colocados em seu real contexto, foram confirmados historicamente. O ponto de partida de minha andlise é 0 conceito de propriedade. Dois as- pectos serfo particularmente enfatizados: a distingZo entre propriedade do traba- lhador; a afirmagao de que o capital transforma qualquer forma de propriedade, naquela que corresponde ao seu modo de producdo. Mais detalhadamente: a pro- priedade camponesa nao é uma criagdo do capitalismo. Elaa precede historicamente. A forma da propriedade camponesa com a qual o capital se defronta, em seus pri- meiros momentos, j4 é o fruto de um processo de transformagao de suas formas primitivas; o modo de produg%o capitalista intensifica estas transformagdes, de modo que a reprodugdo do campesinato pelo capital ndo pode ser confundida com a simples manutengao de suas formas anteriores. Estas consideragdes sfo, alias, vdlidas, igualmente, para qualquer forma de propriedade, historicamente precedente a forma capitalista de propriedade. Para Marx, a livre propriedade do trabalhador, em sua “forma integral e cléssica”, foi a forma normal e predominante nos modos de producfo da Antigiii- dade. Ela ¢ mantida, transformada, sob o feudalismo, e eliminada com a dominacao do capitalismo. Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan.fabr. 1985 39 M, de N.B. WANDERLEY O que vem a ser propriedade livre do trabalhador? “Por propriedade, entendemos que 0 individuo se comporta enquanto proprie- tario vis-a-vis das condigdes naturais do trabalho, encontradas como natureza inorganica de sua subjetividade” “... Como o individuo que trabalha é um indivi- duo natural e tem uma existéncia natural, a primeira condiga0 objetiva de seu tra- balho é a natureza, a terra, seu corpo inorganico. O individuo nfo tem somente um corpo orgénico, mas tem por sujeito esta natureza nfo organica. O individuo nao produz esta condicdo, mas a encontra, previamente, uma realidade anterior © exterior” (Marx 1968). Através desta propriedade, ¢ a prépria autonomia do trabalhador que ¢ a assegurada e reproduzida. “E evidente que a livre propriedade dos camponeses cultivadores é a forma mais normal da propriedade fundidria para a pequena exploragio, isto é,em um modo de producio onde a propriedade da terra 6 a condi¢So que permite ao traba- thador ser proprietdrio do produto de seu préprio trabalho e onde, seja ele proprie- tario livre ou ndo, o cultivador deveré sempre produzir com sua familia seus meios de subsisténcia enquanto trabalhador auténomo e isolado” (Marx 1974). Observe-se aqui, que Marx n4o estd considerando, mesmo nestes casos, © campesinato como um modo de produgdo, mas afirmando que a propriedade camponesa, isto é, a livre propriedade do trabalhador, € a forma de propriedade correspondente a determinados modos de produgio. Sobre esta forma de propriedade, acrescenta Marx, estabeleceram-se, histori- camente, relacdes sociais que Ihe sfo correspondentes. “O comportamento em relagio a terra, propriamente do individuo que trabalha é imediatamente mediatizado pela existéncia natural, mais ou menos trans- formada historicamente, do individuo como membro da comunidade, pela sua existéncia natural como membro da tribo etc. Um individuo isolado nfo poderia ser proprietario da terra, do mesmo modo que no poderia falar. Sem duvida, poderia ele suprir sua substdncia, como o animal. 0 comportamento do proprietério em relagdo 4 terra supde sempre a ocupacdo, pacifica ou violenta da terra pela tribo, comunidade que tem uma forma ainda mais ou menos natural ou j4 desenvolvida historicamente. Aqui, 0 individuo nfo se manifesta jamais isoladamente, como © simples trabalhador livre. Se se supde que as condigdes objetivas de seu trabalho Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 40 O CAMPONES: UM TRABALHADOR ihe pertencem, ele mesmo é colocado subjetivamente, como membro de uma comu- nidade, mediadora entre ele e a terra” (Marx 1968). Esta forma de propriedade e de relages sociais refletem o nivel de desenvolvi- mento das forgas produtivas que caracterizaram uma determinada etapa da formacdo da sociedade. “Originalmente, hd uma unidade entre uma forma particular da comunidade (tribo) e a propriedade da natureza a ela vinculada, em outras palavras, entre o com- portamento em relagdo as condigdes objetivas da produgao em sua forma natural e a existéncia objetiva do individuo mediatizado pela comunidade. Esta unidade, que se exprime pela forma particular da propriedade, tem sua realidade viva em um modo determinado da produgdo, modo que é tanto a relag%o mtitua entre os indi- viduos, como sua relagdo ativa e determinada com a natureza inorgdnica, modo de trabalho determinado (que é sempre atividade familiar ¢ freqiientemente trabalho da comunidade)” (Marx 1968). A servidio feudal submeteu a propriedade do trabalhador a um processo de transformagdo. Por um lado, ela a manteve como propriedades sobre os instru- mentos e os meios de trabalho, em particular, a terra. Mas, por outro lado, a vinculou a0 novo contexto das forcas produtivas ¢ das relagSes sociais que definem o modo de produgo feudal. Isto, em dois niveis, especialmente: em primeiro lugar, 0 proprio trabalhader passa a ser, como o afirma Marx, “parte das condigSes naturais de producdo de um outro individuo ou de uma outra comunidade” (Marx 1968). “, no fundo, o modo de existéncia do proprietdrio que deixou de trabalhar, mas cuja propriedade engloba o proprio trabalhador, enquanto servo etc., entre os meios de produgdo. A relagio de dominac4o representa aqui a relagdo essencial de apropriacio” (Marx 1968). Em segundo lugar, a propriedade do trabalhador sobre as condigdes objetivas do trabalho, ao ser mediada por uma classe de ndo trabalha- dores, manifesta-se no “direito de uso e ocupagao” que the € concedido, ao qual se superpdem outros direitos de toda uma hierarquia senhorial propria do feuda- lismo. Esta transformagao da propriedade do trabalhador no interior do novo modo de produgo é uma necessidade do préprio senhorio feudal, na medida em que ela é a base que assegura a producdo de um sobretrabalho, apropriado pelos proprie- térios ndo trabalhadores. Ela é adequada ao nivel das forgas produtivas entdo atingido, a que correspondem relagGes sociais especificas, a propria servidao. Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 4 M. de N.B, WANDERLEY Para o trabalhador, a serviddo constitui uma barreira 4 realizago plena de sua livre propriedade, na medida em que, precisamente, a mediacgao da classe de nfo trabalhadores retira-Ihe a propriedade da totalidade do produto de seu trabalho. E © que permite entender as numerosas revoltas camponesas, registradas em todos os paises, a0 longo da dominagao feudal. Estas revoltas se agudizaram e se tornaram mais freqiientes no periodo final da dissolugdo do feudalismo, 4 proporgio que a pressfo dos direitos senhoriais ultrapassava certos limites insuportdveis, que repre- sentariam a supressdo definitiva da propriedade livre do trabalhador. Os camponeses lutam pela livre propriedade, tolhida pela servidao. “As relagdes de propriedade dos tempos antigos foram destruidas pelas feudais, e estas pelas burguesas. Isto posto, a propria Histéria encarregou-se de submeter a critica, as relagdes de propriedade do passado” (Marx 1976). Com a dissolugZo do feudalismo, a propriedade camponesa independente, livre, que parecia beneficiar-se com a aboligdo dos direitos senhoriais, tenta renascer: “assim, a Yeomanry na Inglaterra, o campesinato da Suécia, da Franca e da Alema- nha Ocidental” (Marx 1974), Contudo, a pressfo das relagdes feudais segue-se, historicamente (e de um certo modo com ela se confunde, num primeiro momento), a violéncia da acumu- lago primitiva do capital?. A propriedade camponesa ter4, a partir de ent4o, seu destino dependente do modo capitalista de produgdo e das leis fundamentais de seu funcionamento. Em primeizo lugar, o capital correspondente a uma nova base técnica de produgdo, com a qual a propriedade livre do trabalhador esté em contradigao. “Este regime industrial de pequenos produtores independentes trabalhando por conta propria pressupde o fracionamento do solo e a dispersdo dos outros meios de produgio. Do mesmo modo exclui a concentragdo, exclui também a cooperagao sobre uma grande escala,a subdivisdo do trabalho no atelier e no campo, © maquinismo, a dominagdo cientifica do homem sobre a natureza, o livre desenvol- vimento das poténcias sociais do trabalho, o concerto e a unidade nos fins, nos meios e nos esforgos da atividade coletiva. Ele ¢ compativel apenas com um estado da produgdo e da sociedade estreitamente limitado” (Marx 1969). 3 Ver a respeito, além da andlise de Marx sobre a acumulagao primitiva, Postel - Vinay (1974). Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan.fabr. 1985 42 O CAMPONES: UM TRABALHADOR Em segundo lugar, o modo capitalista de produgdo estabelece um novo para- metro de realizagdo da propriedade da terra. “O sistema capitalista de produgdo, em seu comego, encontra-se na presenga de uma forma de propriedade que n4o lhe corresponde. Sé ele cria a forma que lhe convém, subordinando a agricultura ao capital: assim, a propriedade fundidria feudal, a propriedade de cla, a propriedade camponesa. . . sio metamorfoseadas na forma econémica correspondente a este modo de produgdo, quaisquer que sejam suas formas juridicas” (Marx 1974). Desse modo, sob o capitalismo, ¢ proprietdrio da terra, nfo quem detém simplesmente um titulo juridico, mas quem por possui-lo, apropria-se da expressdo economica desta propriedade, isto ¢, quem se apropria da renda fundidria capitalista. Por conseguinte, a propriedade camponesa terd que se transformar juridica- mente em propriedade privada e economicamente em equivalente de capital. Para © camponés, a terra ter4, agora, um prego, correspondente, em principio, 4 renda fundidria. Se ele consegue se apropriar desta renda, parcela da mais-valia, transfor- ma-se em um proprietdrio capitalista, isto é, proprietario de um capital. Deixa, por conseguinte, de ser camponés. Caso contrario, isto é, caso pague o prego da terra, com seu proprio trabalho ¢ ndo “recupere” o que ele representa - a renda fundidria capitalizada - esté sendo a base de uma relacdo, na qual, apesar de seu titulo juri- dico, nfo é ele o real proprietdrio capitalista, mas aquele que, de fato, realiza econo- micamente a propriedade da terra, isto ¢, que se apropria da renda fundidria, produ- zida pelo sobretrabalho do camponés. Num caso ou noutro, ndo se trata mais da propriedade livre do trabalhador, realidade que desapareceu socialmente, desde que se impés a “lei” capitalista da propriedade da terra. Observe-se, como ja dito, que isto acontece, nfo sé em relagao ao camponés, como em relagZo a qualquer tipo de proprietdrio fundidrio sob o capitalismo. Retomarei esta questZo mais adiante; antes, creio ser necessdrio analisar, 4 luz do referencial tedrico aqui utilizado, por que ¢ como 0 sobretrabalho do camponés se incorpora ao processo de acumulagio, ou seja, procurar entender as razSes da reprodugdo de um trabalhador ndo proletarizado pelo capital. Para isto, hd que retomar os pressupostos bdsicos da andlise de Marx sobre o desenvolvimento do capitalismo no setor agricola. Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 43 M., de N.B, WANDERLEY Ao analisar as transformagoes capitalistas da agricultura, Marx estabelece explicitamente alguns pressupostos basicos. “Partiremos, portanto, da hipétese de que a agricultura, como a industria manufatureira, esté submetida ao modo capitalista de produgdo, isto ¢, que ela € praticada por capitalistas que no se distinguem de saida de outros capitalistas, sendo pelo setor onde é investido seu capital e onde se exerce o trabalho assalariado que este capital mobiliza. . . Supor que o modo capitalista de produgio se apoderou da agricultura implica que este modo rege todas as esferas da producao e da socie- dade burguesa; portanto, que se realizam também em plenitude todas as condigdes do modo capitalista de produgdo: livre concorréncia de capitais, transferibilidade destes de uma esfera de produco a outra, mesma taxa de lucro médio etc”. (Marx 1974). Chamo a atengio para o fato de que o conceito de subordinagao utilizado por Marx, difere fundamentalmente daquele freqiientemente empregado a respeito da permanéneia de formas pré-capitalistas. Subordinago para Marx significa a trans- formagdo da agricultura em um campo de operago do capital. Na medida em que © modo capitalista de produc4o apodera-se da agricultura, a forca de trabalho é mobilizada pelo capital, a atividade agricola se industrializa e a terra se transforma em equivalente de capital. Este processo, no entanto, nfo se realizou historicamente sob uma tnica forma. Pode-se observar situag6es histéricas diferentes, cuja diversidade - sem negar a dominagdo capitalista da agricultura - indicard sobre a constituigao das classes sociais presentes no setor agricola e sobre a articula¢do entre os diversos setores econdmicos. Para maior clareza da exposi¢4o, serfio consideradas sucessivamente tués principais situagdes, levando em conta, para cada uma, a forma de produgio de mais-valia, sua distribuicfo entre as classes sociais, no interior do setor agricola € entre este tltimo ¢ os demais setores econdmicos. a) a primeira destas situagies é a que se realiza através da constituicfio de uma classe de empresdrios capitalistas agrdrios, distinta da classe dos proprie- tarios da terra, que atua diretamente no setor agricola, nele investindo seu capital e dirigindo a atividade produtiva. Esta forma foi privilegiada na andlise de Marx, que a explicitou em sua férmula trinitéria das telagdes sociais. E evidente que Marx se coloca numa postura teGrica especial. Tendo como objetivo explicar o capital, ele explica as classes que constituem os polos funda- Cad. Dif. Tecnol., Brasflia, 2(1):13-78, jan /abr. 1985 44 O CAMPONES: UM TRABALHADOR mentais desta relagdo social: os capitalistas, proprietarios dos meios de produgdo € os trabalhadores, vendedores de forga de trabalho. Os primeiros, em nada diferem dos capitalistas industriais, a ndo ser pelo local em que seu capital é investido, o setor agricola. Para fazé-lo, arrendam a terra - condigZo natural da produ¢do - aos proprietdrios fundidrios, aos quais, por esta razio, transferem parte da mais-valia realizada no processo produtivo que dirigem. Os proprietdrios da terra, que nos termos da formula trinitdria no se identi- ficam aos capitalistas agrérios, ndo sdo necessdrios ao capital e Marx toma sua exis- téncia histérica como premissa da teoria que formula. Porém, o capital cria,em seu funcionamento, um espago em que esta classe pode reproduzir-se, espago este que € representado pela possibilidade de realizag4o da renda fundidria, sem prejuizo do lucro agricola. Ao ocupi-lo, isto é, a0 se apropriarem da parcela da mais-valia correspondente 4 renda fundidria, os proprietérios sfo transformados, passando a integrar a classe capitalista. A separacdo existente, no proprio setor agricola entre proprietdrios e empre- sérios capitalistas, favorece e estimula a proletarizago da forga de trabalho. Os primeiros liberam seus trabalhadores, na medida em que abandonam a exploragdo da terra e a arrendam, n4o se ocupando mais do processo produtivo. Os empresdrios necessitam deles, livres de qualquer outra vinculagdo. Evidentemente, a dominagdo efetiva da exploracdo capitalista na agricultura passou por fases em que o trabalho assalariado foi obtido, inicialmente, de camponeses ndo proletarizados. Nesse caso, a pressfo da renda fundidria pré-capitalista favorecia a proletarizacdo definitiva do trabalhador. Mas este “modelo” nao se pretende universal e 0 proprio Marx é explicito aeste respeito. Referindo-se 4 Russia, por exemplo, ele afirma: “Mesmo do ponto de vista unicamente econdmico, a Russia pode sair de seu impasse agricola pela evolugdo de sua comuna rural; ela tentaria, em vdo, sair pela {introdugao do) arrendamento capitalista do tipo inglés, que contraria (o conjunto) todas as condi¢Ses rurais do pais” (Marx 1973). Este processo é realizdvel, e o foi na Inglaterra no periodo considerado por Marx, na medida em que as relacdes entre as classes dominantes e a operagao do capital na agricultura permitiam efetivamente a “remunerag4o” das duas classes de nfo trabalhadores presentes no setor agricola: ao proprietdrio de terra e os capi- talistas. Ora, a operag4o do capital neste setor depende de uma série de fatores, que diferenciam a agricultura dos demais setores econdmicos. Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan.fabr. 1985 46 M. de N.B. WANDERLEY Em primeiro lugar, a prépria barreira ao capital, representada pela proprie- dade da terra, cujo detentor disputa como o capitalista a mais valia produzida. A reproducdo do capital agrario s6 é possivel, neste caso, na medida em que a mais- ~valia, efetivamente captada pelo proprietdtio da terra, mantenha-se limites do sobrelucro, isto é, ndo atinja a parcela correspondente ao lucro médio do capitalista. Isto depende, fundamentalmente, das telagdes de forga concreta, historicamente observadas, entre as duas classes em questo. Em segundo lugar, a dependéncia da produgao agricola em relagdo as con- dicdes naturais, aleatérias e nfo controlaveis, amplia a margem de risco ao investi- mento de capital no setor. Sem entrar em maiores detalhes, bastaria citar as dife- Tengas que se observam entre a agricultura e indistria quanto ao tipo de trabalho, a disting%o entre processo de produgdo e processo de trabalho, a0 tempo de rotagao do capital e ao tempo de circulago do produto. Estas particularidades incidem diretamente sobre a viabilidade de realizagZo do Iucro, dificultando a livre circu- lacdo do capital entre os diversos setores econdmicos €, portanto, a configuragio da agricultura como um setor de investimento compardvel 4 industria. Finalmente, 0 desenvolvimento do modo de producdo capitalista revelou a existéncia de contradigSes entre o capital investido na produgio agricola e em outros setores econdmicos, na medida em que estes wiltimos se tornam progressiva- mente dominantes. Estas contradigdes dizem respeito 4 distribuigao da mais-valia entre os setores e se manifestam, sobretudo, na incidéncia dos pregos da produglo agricola - que devem incorporar 0 lucro médio do capitalista agrdrio - sobre a acu- mulagao industrial. Nestas circunsténcias, a presenga no proprio setor agricola, das duas classes que se apropriam da mais valia nele produzida, pode tornar-se impossivel, ou cons- tituir um obstdculo 4 prépria dominagao capitalista no conjunto da sociedade. O capital apoderar-se-4 da agricultura sob outras formas, como serd visto a seguir. 'b) a constituicao de uma nica classe que dirige e organiza a producdo agri- cola. Isto € possivel em duas situages distintas. Em primeiro lugar, quando © proprietério dispde de capital e realiza, ele mesmo, a transformagio capitalista da agricultura, Neste caso, ele se apropria, ao mesmo tempo, da renda fundidria e do lucro médio. Esta situagdo é, no entanto questio- nada por Marx, para quem a separag’io entre o proprietério da terra ¢ o capitalista € uma condigdo do modo capitalista de produgio. . Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 46 O CAMPONES: UM TRABALHADOR “A. Smith assinala que, em seu tempo, (e é igualmente verdadeiro no nosso, no que concemme as plantagGes nos paises tropicais ¢ subtropicais), renda e lucro nfo sfo ainda distintos, sendo o proprietdrio fundidrio ao mesmo tempo, o capitalista, como Cat&o, por exemplo sobre seus dominios; mas ¢ precisamente esta separagdo entre os dois que é a condig4o do modo capitalista de produgao. . .” (Marx 1974). Kautsky (1968), por sua vez, afirma que “esta fusfo do proprietdrio ¢ do capitalista numa tnica pessoa tem sido, até aqui, pouco comum na historia. Serd pouco comum na evolugdo ulterior do sistema de produgio capitalista”. Em segundo lugar, h4 uma situagZo em que a referida jungdo é apenas formal, mantendo-se a distingdo entre o proprietdrio da renda fundidria e o proprietdrio do lucro agricola. Ela se realiza através da transferéncia, para fora do setor agricola, da parcela da mais-valia correspondente 4 renda fundidria. Kautsky (1968) denominou de sistema hipotecdrio, em oposig&o ao sistema de arrendamento, aquele em que esta transferéncia se efetua pelo controle, externo a agricultura, do capital nele investido. Ndo dispondo de capital, o proprietério da terra, para evitar a alternativa entre o arrendamento ou o abandono de sua explo- taco, assume ele mesmo a atividade produtiva. Para isto, obém o capital que necessita junto ao sistema bancdrio, o qual exige, como garantia do empréstimo concedido, a hipoteca da propriedade de terra. Através dos juros, correspondentes ao financiamento, é a propria renda fundidria que é transferida para fora da agricul- tura. Deve-se observar que este sistema é utilizado nfo sé para as grandes proprie- dades, mas, igualmente, para as pequenas. O capital financeiro, deste modo, além de transferir a renda fundidria do setor agricola, concentra a propriedade real, na medida em que concentra a renda fundidria, e a incorpora diretamente ao processo de acumulag4o global. Neste caso, o proprietdrio real da terra ¢ o credor hipotecdrio, pois é ele quem se apropria de sua expressdo econémica capitalista, a renda fundidria. O proprietério formal da terra passa a ser 0 proprietdrio do capital produtivo, portanto, o verda- deiro capitalista agrario, que dirige a exploragao agricola. Note-se que este sistema hipotecdrio n4o contradiz os elementos funda- mentais da andlise de Marx, particularmente de sua teoria sobre a renda fundidria, a saber: Cad. Dif. Tecnol., Brasflia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 47 M, de N.B. WANDERLEY — a propriedade capitalista da terra é, em ultima instancia, a propriedade da renda fundidria ; — € proprietdrio capitalista da terra quem faz jus 4 apropriacgdo da renda fundidria; — © capitalismo implica numa separagdo entre a renda fundidria e 0 lucro, fragdes distintas da mais-valia social. Um cutro mecanismo de efetuar esta transferéncia a que se estd referindo, além do sistema hipotecdrio é a nacionalizagao da terra, que foi inclusive preconi- zada por Lenine, como medida a ser reinvidicada na fase burguesa-capitalista da tevolugao. A contribuigao de Lenine sobre esta quest4o merece uma observacdo mais detalhada. Com efeito, ao analisar as duas vias do desenvolvimento do capitalismo - prus- siana e americana - ele também supGe sistemas diferentes do arrendamento, basea- dos na diregao do processo produtivo por um tinico agente, num caso o grande proprietdrio, e noutro, um produtor originalmente camponés. Nao resta divida que sua postura sobre a questdo é eminentemente politica e ele a explicita num contexto especifico, de formulagio de um programa de ag&o de um partido revoluciondrio. Portanto, ele nao se refere diretamente, neste caso, 4 problematica da distribuicao da mais—valia, produzida no setor agricola. Seria possivel, contudo, levantar a hip6tese de que ambas as vias, consideradas por Lenine, tenderiam a realizar a trans- feréncia da renda fundidria para fora do setor agricola, a partir dos seguintes argu- mentos: — a andlise das duas vias, explicitada no Programa Agrario (Lenine s.d.) est4 vinculada 4 afirmagao da importancia, que ainda tinham na Russia, as relagdes de produgdo feudais. Neste contexto, a ndo-separacio entre as duas formas de mais—valia nfo se coloca, pois que é uma condicao do capitalismo. — a auséncia, naquele momento, de um setor industrial importante e dire- cionador do desenvolvimento agricola, anula (ou reduz)a necessidade de um controle, externo a agricultura, da renda fundidria, que ¢ ainda, largamente, de natureza feudal ; — ao combater a indenizagdo das terras distribuidas aos camponeses e ao defender a inclusdo no programa agrério da luta pela nacionalizaco da Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan.fabr. 1985 48 OCAMPONES: UM TRABALHADOR terra, Lenine est4, em ultima instancia, opondo-se 4 apropriagdo da renda fundidria pelos proprietdrios e antevendo o momento em que, ainda na fase capitalista da revolugio, a transferéncia da renda fundidria para fora da agricultura, serd uma necessidade para o fortalecimento da acumulagao industrial. — seu estudo sobre a agricultura americana esclarece melhor sua posicao a respeito. Por um lado, ele evidencia o obstdculo que representa para o desenvolvimento do capitalismo, a apropriagdo da renda fundiéria pelos proprietdrios da terra; “O infimo aumento do produto agricola (+1 ,7%) e a enorme elevagdo deu seu prego (+ 79,8%) nos mostra claramente o papel da renda do solo, tributo que os proprietdrios da terra cobram a sociedade . O atraso da agricultura, que vai a reboque do desenvolvimento da industria, ¢ utilizado pelos proprietdrios da terra, gracas 4 sua situa¢do monopolista, para embolsar milhares de milhdes” (Lenine s.d.). Por outro lado, Lenine (s.d.) revela a importancia.que assume, na agricultura americana, o recurso ao sistema hipotecdrio: “A porcentagem de propriedades hipotecadas aumenta constantemente em todas as regides do pais, sendo maior que em qualquer outra parte, na mais povoada, industrial e capitalista, no Norte. . . © aumento do numero de propriedades hipotecadas significa, em todo caso que, de fato passaram ao poder do capital. ..”. A forga de trabalho utilizada neste tipo de propriedade, em que se unificam formalmente o proprietdrio e o capitalista, nfo € necessariamente proletarizada em sua totalidade. Kautsky (1968) revela as dificuldades que esta forma de exploragao encontra para manter a seu servigo, o trabalhador que se proletariza. O recurso a concessfo de terras, em troca da prestagdo de trabalho, ou o emprego de trabalha- dores que j4 possuem sua prépria parcela, além de uma necessidade, é uma possibi- lidade no sistema aqui considerado, na medida em que o capitalista que mobiliza este trabalhador dispde também da terra. Lenine, igualmente, refere-se 4 mesma quest4o. “Entende-se comumente de uma maneira mecdnica a teoria segundo a qual © capitalismo supde o operdrio livre, despossuido da terra. Isto é absolutamente justo como tendéncia fundamental, mas o capitalismo penetra na agricultura muito mais tentamente que em outros setores e sob formas extremamente variadas. Freqientemente, a distribuicdo da terra entre os operdrios rurais é feita no interesse dos proprietarios e por esta razdo 0 tipo de operdrio rural dotado de um lote é proprio a todos os pafses capitalistas. Conforme os Estados, ele apresenta formas Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan.fabr. 1985 49 M. de N.B. WANDERLEY diferentes: o “cottager” inglés nfo é a mesma coisa que o camponés parcelar da Franga ou das provincias do Reno, e este ultimo nfo é também o “bobyl” ou o “Knecht” da Pnissia. Cada um deles contém os tragos de um regime agrério parti- cular, de uma histéria particular das relagdes agrérias, o que alids, no impede © economista de reuni-los todos em um s6 tipo, o de proletario agricola. A base juridica de seu direito 4 parcela de terra nfo tem nenhuma importincia para esta classificag4o” (Lenine 1960). E mais adiante, acrescenta, enfatizando a dupla referéncia de operdrio/cam- Ponés, de boa parte da forga de trabalho rural: “A massa do campesinato ocupa um lugar perfeitamente determinado no conjunto do sistema da produgdo capitalista, o de operdrios assalariados agricolas ¢ industriais” (Lenine 1960). c) O sistema considerado no item anterior elimina a barreira da propriedade da terra, ao transferir a renda fundidria para fora da agricultura, porém, mantém a base da existéncia de uma classe de capitalistas agrarios, na medida em que mantém as condigdes de realizagao do lucro agricola. Ha, no entanto, uma terceira forma de dominagao capitalista da agricultura, que realiza a transferéncia para fora do setor, da totalidade de mais-valia nele produzida, isto é, do correspondente ao lucro e 4 renda fundidria. Para que isto acontega, é necessdrio que o capital disponha de um agente que assuma a realizagdo de produgdo, sem reivindicar a participag&o que lhe seria devida, enquanto proprie- tario e enquanto capitalista. Este agente é 0 camponés. Trata-se, neste caso, também, de uma forma de eliminar barreira da renda fundidria. Porém, diferentemente da situagdo considerada no item anterior, a transferéncia da mais valia ndo esbarra no limite da apropriagfo, pelo capitalista, do lucro médio. Para Marx (1974), a propriedade da terra ndo constitui um entrave a explo- ra¢Zo camponesa; a0 mesmo tempo, o prego da terra, vendida ao camponés, pode ultrapassar 0 montante correspondente 4 renda fundidria e atingir a propria parcela do lucro médio. “B bem verdade que o juro do prego da terra que ele paga em geral a uma terceira pessoa, o credor hipotecdrio, constitui um entrave. Mas este juro pode, justamente, ser pago com a parte do sobretrabalho que, nas condigdes de produgao Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 50 O CAMPONES: UM TRABALHADOR capitalistas, constituiria o lucro. A renda avaliada por antecipago no preco do terreno e no juro a pagar por esta soma pode muito bem ser apenas uma parte capi- talizada do sobretrabalho do camponés que excede o trabalho indispensdvel 4 sua propria subsisténcia, que este sobretrabalho se realiza numa fracdo do valor da mercadoria, igual ao lucro médio, e ainda menos, num excedente em relagdo ao sobretrabalho realizado no lucro médio, isto é, num sobrelucro”. O nico limite 4 continuagao da atividade produtiva do camponés é, assim, dado pelo trabalho necessdrio 4 sua reprodugdo, uma vez repostas suas condigdes de trabalho. Por conseguinte, o camponés, sob o capitalismo, torna-se um agente que permite a apropriagdo por terceiros, da totalidade da mais valia por ele produzida, a qual é liberada, incorporada ao processo global de acumulagao e canalizada para os setores dinamicos da economia. A explora¢éo camponesa constitui, portanto, a base de uma das formas de dominago do capital na agricultura. “Assim, pois, 0 modo de produgdo moderno chega - sob duas formas, de certo: a do trabalho industrial assalariado do pequeno camponés e a da industria agricola do grande lavrador - ao fim do processo dialético, a0 seu ponto de partida: a supressdo do divércio entre a agricultura e a industria. Mas se na exploragdo cam- ponesa primitiva, a agricultura era, do ponto de vista econémico, o elemento deci- sivo e dirigente, esta relagdo agora se subverte. A grande industria capitalista passa agora a dominar. A agricultura deve obedecer ds suas ordens, adaptar-se ds suas exigéncias” (Kautsky 1968). Esta é a questdo fundamental: a premissa de Marx, segundo a qual o capital se apodera da agricultura, ndo é negada pela reproducdo do campesinato. Kautsky, no prefacio 4 tradugdo francesa do seu livro, aqui freqiientemente referido, insiste neste aspecto, ao mostrar a diversidade das formas da dominagdo do capital, uma das quais é precisamente, a que incorpora o camponés enquanto produtor direto, responsdvel pela atividade produtiva agricola. Em outras palavras, Kautsky (1968) revela que a proletarizag%o da forca de trabalho e a constituicao de classes capita- listas no setor agricola nfo é a wnica via da transformagao capitalista da agricultura. “... 08 meus esforgos me levaram, contra qualquer previsdo, ao resultado de que nenhuma delas (a exploracdo camponesa) se revestia de uma verdade geral, de que nfo deveriamos esperar na agricultura, nem o fim da grande, nem o da pequena exploragdo. Tfnhamos aqui, num dos polos, a tendéncia universalmente justa para a proletarizaga0. No outro polo, ... uma oscilaco constante entre os processos da pequena e da grande exploracdo ... A agricultura independente da Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan.fabr. 1985 51 M., de N.B. WANDERLEY indistria, quer seja camponesa, quer seja capitalista, deixa cada vez mais de ter © seu papel na sociedade. A industria subjuga a agricultura. Assim, a evolugdo industrial traga cada vez mais a lei da evolugdo agricola”. Deste modo, o capital nfo reproduz a propriedade livre do trabalhador. O camponés, a partir de entdo, deixa de existir enquanto representante de um modo de produgao anterior ao capitalismo ou como suporte de relagdes sociais pré-capita- listas ou no capitalistas, para sobreviver como um trabalhador para o capital. Eo que afirma explicitamente Lenine (1975): “© capitalismo condena 0 pequeno camponés a um eterno banimento, a uma delapidagao do trabalho, pois, cuidados escrupulosos com o gado, quando os meios ea forragem sio insuficientes, quando o rebanho é de mA qualidade, é mau 0 local etc... so equivalentes a um esforgo inutil de trabalho. A economia politica bur- guesa n4o coloca em primeiro plano, em sua apreciagao, o fato de que o capitalismo arruina e oprime o camponés, porém o “zelo” do trabalhador (que trabalha para © capital) nas piores condigdes de exploragio”. A consideragio de que a produgfo camponesa sé é predominante nas fases iniciais do desenvolvimento do capitalismo e que tende a ser suprimida com a domi- nagfo deste modo de produgdo deve ser entendida no sentido de incompatibilidade real entre a propriedade livre do trabalhador e o nivel do desenvolvimento das forgas produtivas e das relagtes de produg%o alcangado pelo modo de produgio capitalista. O camponés, neste caso, nfo é o agente portador e representante do capital, mas uma das modalidades de sua forga de trabalho, EF esta ética que permite entender a referéncia a expressSes como “classe de bérbaros”, “batatas num saco de batatas” etc, encontradas nas andlises de Marx sobre o campesinato. Sua condi¢fo de forga de trabalho para o capital é mais uma vez reforgada por Lenine: ““O pequeno cultivador ¢ forgado a opor as vantagens (da grande exploragao) um esforgo sem tréguas e a parciménia (ele nfo tem outras armas na luta pela exis- téncia), e € por isto que, na sociedade capitalista, estas qualidades de pequeno culti- vador sfo um fendmeno constante ¢ inevitdvel ¢ jamais um acaso. O economista burgués . . . chama isto de virtudes da economia, da frugalidade etc. . .e considera um mérito do camponés. O socialista chama isto “sobretrabalho” e “subconsumo” e atribui a culpa ao capitalismo” (Lenine 1975). Evidentemente, o camponés é um tipo de trabalhador diferente do assala- tiado. Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan.fabr. 1985 52 OCAMPONES: UM TRABALHADOR Em primeiro lugar, o capital necessdrio a aquisigdo da terra e a exploracdo agricola € obtido através de seu préprio trabalho, no interior da unidade familiar de produg&o familiar ¢, portanto, a base que permite a remunerac%o do trabalho em condigbes € niveis diversos do trabalho assalariado. O trabalho necessdrio nfo assu- me a autonomia do capital varidvel, confundindo-se com o fundo de consumo reti- rado do resultado geral da produg%o, apés a reposig#o dos meios de trabalho. A renda familiar é indivisivel, correspondendo 4 remunera¢40 obtida pelo trabalho coletivo de seus membros, solidariamente responsdveis pela subsisténcia comum. Privilegia-se, assim, o montante global da renda, em detrimento da remuneragio por unidade de trabalho efetivamente realizado. “Contrariamente ao capitalista, que no engaja novos fundos sem contar pelo menos com uma taxa proporcional de lucro, diferentemente do assalariado, que reivindicard para cada hora suplementar de trabalho, o mesmo,senfo mais, que o que recebe pelas suas horas normais, o “pessoal” de uma exploragio familiar fornece, para aumentar sua renda global, uma fragdo de trabalho suplementar, pago @ preco mais baixo, que faz baixar a média de seu pagamento coletivo” (Tepicht 1973). Mais especificamente, a unidade familiar absorve produtivamente uma forca de trabalho que Tepicht chama de “forga nao transferivel”, constituida pelo “tra- balho parcial de mulheres, criangas e velhos, além das margens do tempo disponivel do chefe da explorag&io” (Tepicht 1973). Esta forca de trabalho articula-se 4 forca de trabalho principal dos membros efetivamente ativos da familia, reformando em conseqiéncia, a renda global fami- liar. Além de tornar vidvel a realizagdo de certas atividades, no rentdveis numa exploracSo capitalista, a unidade camponesa “poupa” ao capital o Snus da subsis- téncia desta parcela da populacdo. Tepicht insiste sobre a importancia deste aspecto da produgdo camponesa, em grande parte responsdvel pela sua reprodugio, nfo s6 nas sociedades capitalistas, mas igualmente, nas experiéncias de reforma agraria dos paises socialistas. Em segundo lugar, o trabalho camponés materializa-se nos produtos de sua exploragdo, de maneira que a transferéncia do sobretrabalho realiza-se através da mediagio do mercado capitalista. Mercado diferenciado, sem duvida, que atinge a terra do camponés, seus meios de produg%o, os produtos de sua atividade, parte dos bens de consumo e, freqientemente, parte da propria forca de trabalho. Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 53 M. de N.B, WANDERLEY A este respeito, duas quest6es importantes devem ser colocadas. Uma pri- meira, diz respeito ao cardter subjetivo das decisdes tomadas no interior da unidade camponesa, considerado por Chayanov. Este tipo de andlise subestima as determi- nagdes mais globais e profundas do capital. E precisamente através da mediagao do mercado que o capital interfere na propria organizagdo interna da exploracao camponesa. Especificagéo ou diversificagdo; auto-consumo ou comercializagao, tecnologia utilizada, alocagdo da forga de trabalho s4o, entre outros, aspectos que escapam 4 decisdo autonoma do chefe da unidade familiar, na medida em que sfo determinados pelos mecanismos do mercado capitalista. Uma segunda questdo refere-se ao conceito de auto-exploragZo. No resta duvida que o trabalhador familiar ndo “calcula” em termos monetérios, o custo de sua forga de trabalho e a utiliza com o objetivo de aumentar a renda global da familia. Mas esta constatag4o nao pode excluir a interferéncia do capital que ¢,em Ultima instancia, quem se apropria do sobretrabalho camponés, portanto quem o explora, ao determinar, através igualmente do mercado, a margem de apropriagtio pelo camponés do resultado do seu trabalho, e, portanto, o grau de intensificagio de seu esforgo para a obtengdo do necessdrio a sua reprodugdo. A importancia que assume o setor camponés em cada sociedade depende, fundamentalmente, de uma dupla ordem de fatores: por um lado, a natureza e a intensidade das contradigdes geradas pelo desenvolvimento do capitalismo, em conseqtiéncia das especificidades de seu funcionamento no setor agricola; por outro lado, raz6es de ordem politica, que dizem respeito as relagdes de forga no interior das classes dominantes, e entre estas e as classes subalternas. Exemplos histéricos existem em que o setor camponés ¢ responsdvel pela parcela mais irnportante da producao agricola. Estudos recentes retomam, nestes casos, as andlises classicas aqui abordadas, considerando seus principais aspectos. Em primeiro lugar, é através dos. mecanismos de crédito que o sobretrabalho do camponés é extorquido e apropriado pelos setores dinamicos da economia. “O crédito hipotecdrio” - diz P. Coulomb (1973), a respeito da Franga -” é, des- de que a grande propriedade entra em declinio, o instrumento necessario para permitir aos camponeses as compras de terra e¢ a constituigao do capital produtivo. Mas € também por ele que a extor¢fo operada sobre a remunetaco dos camponeses parcelares assume o cardter de uma renda; neste sentido, trata-se de uma extorsfio periddica sobre o produto do trabalho” (Coulomb 1973). Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 54 OCAMPONES: UM TRABALHADOR Em segundo lugar, a presenga do campesinato nao significa a eliminagio econémica das classes capitalistas que atuavam anteriormente no setor agricola. Para M. Jollivet (1975), também a respeito da Franga, “com o desenvolvi- mento industrial, a burguesia territorial que havia sucedido a aristocracia fundidria preferiu vender suas propriedades e colocar seus capitais em investimentos indus- triais... a concorréncia existente entre os agricultores para a aquisigao da terra, com efeito, faz subir os pregos de modo tal, que o beneficio obtido com o arrenda- mento 86 pode ser mediocre” (Jollivet 1975). S6 um camponés pode assumir a exploragdo agricola nessas condigdes. “Assim, com o camponés, o capitalismo pode resolver o problema da proprie- dade fundidria, pois encontra nele alguém que ao mesmo tempo aceita assumir os encargos do proprietdtio e ndo exige mais a renda fundidria” (Jollivet 1975). “Pode-se formular a hipdtese de que certas funcdes que eram assumidas pela grande propriedade fundidria no comego da industrializagdo da economia (extragao da renda, concentragao das terras dos pequenos camponeses etc), so asseguradas pelo conjunto dos camponeses parcelares, gragas a0 jogo do crédito hipotecdrio” (Coulomb 1973). “Q crédito oferece, portanto, aos proprietdrios fundidrios, os meios_de realizar a renda capitalizada sob forma de venda das terras por pequenos lotes a um prego elevado, permitindo-lhes assim, dispor de um capital que seré mais rentdvel na industria...” somas importantes aparentemente imobilizadas na terra vio ser, gragas ao trabalho dos camponeses, que passardo toda uma vida para pagar sua divida, disponiveis para investimentos industriais” (Coulomb 1973). Finalmente, uma agricultura capitalista ndo significa, necessariamente, a reproducdo da explora¢do capitalista no setor agricola. “Na agricultura contempordnea - observa Vergopoulos (1977) a racionalidade imanente é colocada de lado, em beneficio de uma racionalidade global do sistema. A pequena produgdo camponesa é sustentada pelo capital para barrar 0 caminho ao capitalismo agrério. O centro da operacdo é sempre a renda. Ao mesmo tempo, esta operacdo suscita a situagdo perplexa de um capitalismo sem capitalista na agricultura. Os maiores capitalistas, no caso, sfc 0 Estado, os monopélios de comer- cializago e o capital bancario”. Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan-/abr. 1985 55 M, de N.B. WANDERLEY Outros exemplos histéricos existem em que a classe capitalista agrdria ¢ politi- camente “sustentada” pelo Estado, que cria as condigGes para a realizagao da mais- -valia por ela apropriada, contornando as contradigdes do capital através dos mais diversos mecanismos de politica agricola. Esta afirmag4o nos conduz a andlise da agricultura brasileira e das formas particulares de teprodugao do campesinato em seu interior. O CAMPESINATO NO BRASIL A proposta que pretendo formular, mantém a 6tica da explicagdo na operagdo do capital na agricultura, a partir das formulagées tedricas aventadas nas sessdes anteriores. Nesta perspectiva, trata-se de analisar as formas que o capital assume na realidade brasileira ¢ as razdes que o levam a reproduzir um trabalhador nfo proleta- rizado, bem como o resultado deste processo, isto 6,0 camponés reproduzido pelo capital. Mais precisamente, trata-se de desenvolver uma reflexdo que tem como ponto de partida e fio condutor as seguintes hipoteses: — © desenvolvimento do capitalismo na agricultura brasileira realizou-se tendo como base principal a grande propriedade, que assumiu historica- mente um papel preponderante, gragas 4 mediacao explicita e contundente do Estado. Este a gerou e a reproduz econdmica e politicamente, através de mecanismos especificos, desde a doagdo das terras em sesmarias, no periodo colonial, até os incentivos fiscais e financeiros da politica agricola atual; — 4 grande propriedade utilizou e ainda utiliza em boa parte, uma forga de trabalho nfo proletarizada, isto ¢, que mantém uma base familiar de produco de sua subsisténcia; 0 acesso a este tipo de exploracdo passa pela venda da forga de trabalho 4 grande propriedade. A dupla referéncia, de trabalhadores que mantém um vinculo com a terra - cujos elementos nao podem ser dissociados na andlise -, exclui a propriedade fundiaria campo- nesa, pois a exploracdo familiar se organiza no interior do latifindio, constituindo um elemento que o viabiliza econémica e socialmente; — fora da grande propriedade, a exploragdo familiar se reproduz, quer através da propriedade juridica da terra, quer da ocupacao sem titulo legal, como base de uma relago de produc4o/apropriagao do sobretrabalho camponés. Cad. Dif. Tecnol., Brasitia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 56 OCAMPONES: UM TRABALHADOR, Esta relagao se manifesta concretamente sob formas diversas, mas que tém em conjunto um denominador comum, que é a condigdo de viabilizadora de outras formas do capital, que se apropriam deste sobretrabalho, através do mercado capitalista. As condi¢des concretas de acesso 4 terra nfo liberam, no entanto, o produtor familiar, de outras formas de vinculagao com a grande propriedade, em particular através da venda temporaria de forga de trabalho. Neste sentido, a dupla referéncia de operdrio-camponés também é valida neste caso, mesmo quando se trata de proprietdrios juri- dicos da terra. — a referéncia a este duplo espaco de reproducdo do campesinato nao estd supondo uma hierarquia ou uma tipologia, nem uma sucessdo histérica de suas manifestagdes. Isto porque ndo seria possivel estabelecer uma crono- logia ou uma distingao estrutural absoluta entre as diversas formas de capital. Com efeito, a grande propriedade constitui, freqiientemente, um ptimeiro elo no sistema de comercializagdo da produgao agricola e dos insumos nela utilizados; da mesma maneira, em certas estruturas agro- -industriais, um mesmo agente articula a propriedade da terra e a proprie- dade dos meios de producdo industriais. Por outro lado, o camponés, apesar das especificidades de cada situagdo, guarda uma base comum no que se refere as suas condigdes de existéncia ¢ a seus interesses e objetivos. — hd uma questo camponesa no Brasil que diz respeito ndo sé aos pequenos produtores que estfo fora da grande propriedade - proprietdrios ou nfo de suas terras -, mas também aAqueles para os quais o assalariamento € a con- dicdo principal para o acesso, mesmo precdrio 4 terra. Esta questo se manifestou e se manifesta ainda ao nivel politico, em termos de uma luta pela reforma agrdria, através das reivindicagdes do movimento camponés e do sindicalismo rural. Ao mesmo tempo, ela esté presente nas estratégias dos pequenos produtores, em busca de uma maior margem da autonomia dentro dos limites de cada situago concreta e se traduz pela: a) luta pela reprodugao da unidade familiar independente da grande proprie- dade, 0 que justifica o intenso movimento migratério em busca de terras “livres”, o esforgo despendido para a compra da terra e mesmo a submis- sfio A venda da forga de trabalho para ter acesso a um pequeno sitio; b) luta contra a proletarizag4o, mesmo que o acesso 4 terra, neste caso, pro- teja apenas aparentemente o camponés da expropriagaio dos resultados de seu trabalho e das préprias condig&es deste trabalho; Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 57 M. de N.B. WANDERLEY c) luta pela ampliag%o da margem de apropriagao dos frutos do trabalho, que inclui as frageis estratégias de comercializagao, Nao creio ser necessdrio efetuar uma andlise histérica mais detalhada. Pre- tendo enfatizar a realidade mais recente, cuja periodizac4o, em fungdo do processo de acumulacao capitalista, distingue um primeiro momento, que se alonga entre os anos 30 e 60, ¢ um segundo, que o segue imediatamente até os nossos dias. Refe- réncias a situagdes anteriores serdo feitas, se julgadas necessdrias para a compreensfo do processo recente. E importante esclarecer que me baseio nesta andlise, na bibliografia disponivel, inclusive e sobretudo, na contribuigo dos autores a que me referi na primeira parte deste trabalho. A pequena produg¢do familiar no interior da grande propriedade A partir dos anos 30, 0 processo de acumulacao capitalista no Brasil entra numa nova fase, 4 qual estd vinculada uma redefinigao de alianga politica entre as classes dominantes. Este processo se desdobra em diversos momentos que marcam sua periodizacdo. Sem entrar nesta andlise, cumpre apenas apontar seu direciona- mento ¢ verificar suas conseqiiéncias sobre a produgao camponesa, objeto central deste estudo, Grosso modo, pode-se afirmar que, a partir de entao: ~ ¢tia-se uma base interna de acumulacao mais s6lida, que favorecerd pro- gressivamente a instalagfo e a expansio de empresas multinacionais no pais; — assiste-se a uma crescente concentragio e centralizagdo do capital que Tepercutird sobre as real¢Ges entre as diversas classes sociais e sobre a divisio do trabalho a nivel regional e setorial; — a frago industrial da classe capitalista assume Progressivamente a domi- nagdo econdmica e a hegemonia politica. A crise dos anos 30 abalou a economia agro-exportadora e ameacou a repro- dugdo de sua base material, a grande propriedade. No entanto, apesar da reestrutu- ragdo politica que resultou da revolugio de 30, o Estado nfo eliminou os grandes. proprietarios da nova composig&o do poder e os sustentou, através de medidas politicas de protegdo aos efeitos da crise econémica, que significaram, concreta- Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 58 OCAMPONES: UM TRABALHADOR mente, a manuteng4o de suas formas tradicionais de reprodugdo. No que interessa mais de perto ao tema aqui estudado, vale considerar, em especial, a possibilidade do crescimento extensivo da producdo e da continuidade da utilizagdo da forga de trabalho nao proletarizada. Com efeito, o crescimento extensivo constituia historicamente um dos ele- mentos que permitiam a reproducao de grande propriedade, na base da exploragdo da fertilidade natural do solo, sem que fosse necessdrio o investimento de maiores somas de capital no processo produtivo. Durante muito tempo, inclusive, a propria terza fora doada, o que significava o controle gratuito desta fertilidade natural (Wanderley 1979), Quanto 4 forga de trabalho, apés a abolicdo da escraviddo, o escravo fora substituido por um trabalhador livre juridicamente, que no entanto, ndo era com- pletamente desvinculado de um trabalho familiar, exercido em uma pequena parcela de terra. Sob formas variadas, 0 morador, o colono, o parceiro, o arren- datério, trabalham em terras pertencentes aos grandes proprietdrios e transferem para estes, também sob formas diversificadas, o sobretrabalho que produzem. Todos eles viabilizam a grande propriedade, na medida em que, através do trabalho fami- liar, assumem total ou parcialmente, o custo de sua prépria reprodugio, ou os riscos da atividade agricola. Seria cansativo citar exemplos, pois esta situagéo da exploracdo familiar reproduziu-se praticamente sem excegdo,em qualquer regifo e em qualquer ativi- dade onde existia a grande propriedade, para a qual constituia, até bem recente- mente, a forma predominante de trabalho. Mesmo apés a superagao da crise, as relagdes entre grande propriedade e as outras formas de capital definem-se em termos de uma convergéncia de interesses, pelo menos no que se refere as questées fundamentais. Prova disso, é o fato de que os trabalhadores rurais no so incluidos entre os beneficiarios da nova legislagéo social, ent#o adotada, ¢ de que a Constituigfo de 1946 mantém o principio da intocabilidade da propriedade privada. Além disso, é inegdvel que o estimulo 4 industrializagdo e o conseqiente desenvolvimento urbano ocorrido no pais, favoreceram a expans4o da grande pro- priedade, em razo da elevacdo da demanda dos produtos agropecudrios. Esta convergéncia, contudo, ndo eliminava a necessidade de uma transformagio da grande propriedade, inclusive e sobretudo, como condiggo para sua propria Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 58 M, de N.B. WANDERLEY teproducdo. A questo situa-se ao nivel das conseqiiéncias do tipo de crescimento extensivo realizada pela grande propriedade. Com efeito, este processo em primeiro lugar esbarra num certo momento, no limite da disponibilidade de terras cultivaveis-do ponto de vista de sua fertilidade e de sua localizagdo - uma vez que a composig0 orginica do capital s6 excepcional- mente foi elevada. Isto ndo quer dizer que o latifiindio tenha ocupado toda a sua drea apropriada, mas que a expansdo das culturas, no seu interior, como além de suas fronteiras juridicas, atinge progressivamente os terrenos menos férteis e mais distantes, até ent&o abandonados ou ocupados com a exploragdo familiar. A expansfo chega a um Ponto em que um dos elementos que garantia a reprodugZo da grande propriedade, isto é, a valorizagfo da fertilidade natural da terra, comega a encontrar seus limites. A reprodugdo da grande propriedade, nestes termos, vinculava-se diretamente a possibilidade da produgdo da renda fundidria. Se até entao, esta renda pGde ser assegurada, pela garantia do préprio direito de propriedade e, particularmente nos momentos de crise, pela intervengfo do Estado no processo de comercializagaio, Para garantit os pregos dos produtos agricolas, a nova situagdo exigia uma agao governamental complementar, dirigida especialmente no sentido de tomar explo- raveis, isto é, produtoras da renda, as novas dreas ocupadas. Em segundo lugar, o crescimento extensivo da produgfo poderia provocar uma situacdo duplamente desfavordvel para o capital industrial. Por um lado, repre- sentaria uma redugdo da produtividade fisica das culturas, 0 que viria a repercutir, de um certo modo, sobre o comportamento das exportacdes, elemento indispen- sdvel da prépria politica de industrializag4o do pais. Por outro lado, poderia criar uma relativa independéncia da grande propriedade que, crescendo sem aumentar em Conseqiéncia o capital produtivo, tolheria a expansto do mercado para a produgdo industrial. As criticas que se avolumam sobre o cardter improdutivo do latifindio nfo pariem exclusivamente dos setores de oposigZo, mais vinculados a futa das classes subalternas. O proprio Getilio Vargas em seus discursos nfo poupava referéncias 4 necessidade de modernizar a produco agricola, pela incorporag%o de novas técnicas e de novos instrumentos de cultivo (Carvalho 1979). Finalmente, em terceiro lugar, a0 avangar sobre as dreas até ento exploradas pelas unidades familiares existentes em seu interior, ou sobre aquelas antes ocu- Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan.fabr. 1985 60 O CAMPONES: UM TRABALHADOR padas por pequenos produtores fora dela, a grande propriedade realiza progressiva- mente um processo de proletarizagio da fora de trabalho. Este processo est4 na origem do movimento camponés, que eclodiu em diversas regides do pais, no final dos anos 50. Luta contra a proletarizagao, torna-se em breve luta contra a grande propriedade ¢ reivindicagao pela propriedade camponesa. Aliando-se aos demais movimentos sociais da época, o movimento camponés constituiu uma ameaca propria manutengdo da alianga dominante. E em fungo destas contradigdes que so definidas as novas formas de articu- lag&o entre a grande propriedade e o grande capital. Este objetivo, que se concretiza no contexto uma nova reestruturagdo do bloco no poder, em 1964, reflete a clara opgao do Estado pelo projeto de “modemizagao conservadora”, que a partir de entdo se intensifica, em oposigfo 4 reforma agréria proposta pelo campesinato e seus aliados politicos. E bem verdade que o Estatuto da Terra foi promulgado nesse mesmo ano de 1964, Mas, dividido em duas partes, uma referéncia 4 reforma agraria e outra ao desenvolvimento agricola, esta ultima logo cedo substituiu a primeira, em termos de implementacio efetiva, em vez de complementd-la, beneficiando assim, os produtores capazes de absorver as medidas nela contidas. A partir de entfo, a politica agricola nacional € traduzida pelo bindmio expansio de fronteira agricola-modemizagdo da agricultura. No primeiro polo deste binémio, a questéo fundamental é a de garantir a rentabilidade dos empreendimentos da grande propriedade em dreas mais distantes do mercado. O Estado intervém, por um lado, através da criacao da infra-estrutura necesséria para reduzir os efeitos negativos deste distanciamento; e por outro lado, ao sustentar, sob formas diversas, a posig¢io de forga dos grandes proprietdrios diante dos antigos ocupantes destas‘4reas - em geral pequenos posseiros - ou daqueles que para elas também ocorrem. A aco do Estado tem um sentido claro: garantir a apropriago de renda fundidria pelos grandes proprietarios. A este respeito, no entanto, é importante salientar que o movimento da grande propriedade, em particular na dire¢do das regides Centro- Oeste e Norte, nao resulta necessariamente na exploracao efetiva da terra apropriada, sendo por demais conhecida a intensidade da especulagdo fun- didria que orienta a ocupacdo destes espacos. Este fato ajuda certamente a compre- ender um aspecto importante da classe dos grandes proprietdrios no Brasil. Na Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13- 78, jan./abr. 1985 61 M. de N.B. WANDERLEY verdade, a propriedade da terra, sua base material, constitui o elemento fundamental para sua defini¢do social. Porém, s6 excepcionalmente esta classe é apenas proprie- taria da terra. H4 uma mobilidade que a caracteriza historicamente e que dificulta a distingdo entre os representantes da propriedade da terra ¢ das demais formas de capital*. Esta mobilidade, que se observa nos dois sentidos, da agricultura em telagdo aos outros setores e vice-versa - é estimulada pelos préprios incentivos fiscais de origem governamental, oferecidos em fungio do objetivo da ocupagdo das regides de fronteira pela grande propriedade. Em conseqiiéncia, embora a apropriaco da renda fundidria seja uma condi¢gdo da exploragio de uma terra, esta exploragdo nfo é uma condig&o indispensdvel ao proprietario, pois este tem outras fontes de remuneragdo, no raro mais importantes. A terra apropriada pode perma- necer inexplorada e o seu proprietério utiliza-la para fins especulativos. Neste caso, a agdo do Estado, antes referida, viabiliza esta especulacao. A modemizagéo da agricultura é 0 outro polo da intervengdo do Estado, complementar ao primeiro. Os diversos incentivos crediticios, que integram hoje a politica agricola nacional, constituem os instrumentos que ampliam uma importante frente de acumulag&o no setor agricola, em beneficio, especialmente, do capital industrial e financeiro. A grande propriedade torna-se um mercado para os produtos de origem industrial destinados a agricultura: maquinas, implementos, insumos. Através do financiamento do capital produtivo aos proletdrios da terra, é a base técnica da produgdo que é transformada e com ela, a propria natureza da renda produzida. A renda fundidria, resultante da diferenga de’ fertilidade natural do solo, {renda diferencial I) é, deste modo, proporcionalmente substituida por aquela que se origina da diferenga de produtividade do capital (renda diferencial ID). A apro- priacdo, em primeira m4o, desta parcela do capital pelo Proprietério/dirigente da Produgao, praticamente elimina a distingdo, j4 naturalmente pouco clara, entre esta iitima forma de renda e o préprio lucro agricola. A origem, externa a propriedade, do capital nele investido, favorece a apropriacdo deste lucro, ou de parte dele, pelos setores nfo ‘agricolas. E preciso insistir, no entanto, que a modernizagdo assim definida, longe de visar a destruigdo da grande propriedade, tem por objetivo reforgd-la. 4 Ver,em especial, Silva (1976). Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 62 O CAMPONES: UM TRABALHADOR Com efeito, ela nfo representa, necessariamente, uma altemativa 4 concen- tragdo fundidria, nem mesmo 4 incorporagdo extensiva de novas dreas 4 exploragdo agricola. Pelo contrdrio, estes processos ocorrem paralelamente e nfo é raro que os ultimos reduzam, ou até anulem, os efeitos do primeiro, no que se refere 4 elevago da composigdo organica do capital. Além disso, os instrumentos de poli- tica agricola ndo sfo oferecidos indiscriminadamente. Seu cardter seletivo tem como principal critério, precisamente, a garantia supostamente mais eficaz,do ressarci- mento do capital financeiro oferecida pela grande propriedade. Por outro lado, os juros especiais e os subsidios oferecidos constituem um mecanismo que garante o lucro industrial, sem prejuizo da grande propriedade. Isto é, eles permitem transferir, para outros setores da sociedade, o énus da remunera¢io do capital industrial, que de outro modo recairia sobre a grande propriedade. Finalmente, ao viabilizar a realizagdo da renda e ao oferecer o capital pro- dutivo para a explorag4o agricola, o Estado amplia as possibilidades para que o capital de origem industrial, nacional ou estrangeiro, seja investido no setor agricola. A burguesia industrial, proprietdria da terra, no teria raz6es para se opor ao lati- fandio, que ela mesma passa a construir. Esta politica é seletiva por definigfio. Na verdade, ela expressa, claramente, nfio uma contradigdo antagénica no interior das classes dominantes, mas uma forma de sua alianca, que se assenta no objetivo de tornar a grande propriedade forte diante do projeto alternativo das classes dominadas e vidvel para o grande capital. £ neste contexto da evolucdo recente da grande propriedade que se pode perceber as transformagées da exploracdo familiar que se reproduzem em seu interior. A proletarizagdo da forga de trabalho efetua-se no bojo de uma luta, na qual os camponeses perderam uma batalha. Ela atingira uma proporgdo expressiva deste tipo de trabalhador/camponés, que reforgard, a partir de entdo, o contingente de trabalhadores completamente livres e expropriados. Esta expropriagdo, no entanto, embora atualmente predominante, nfo é absoluta e a situagZo dos trabalhadores em relagio 4 grande propriedade é, por conseguinte, heterogénea. Hd a considerar a distingo entre, de um lado, os traba- Ihadores explusos da propria fazenda onde trabalhavam e os que nela permanecem sem mais o direito ao sitio, e de outro lado, parceiros e arrendatdrios, que tém suas telagSes com a grande propriedade transformadas. No primeiro caso, a base familiar do trabalho camponés desaparece completamente, no segundo, nfo ¢ mais toda Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 63 M. de N.B, WANDERLEY uma parcela que ¢ entregue sob contrato, para que 0 produtor organize o conjunto da atividade produtiva. Observa-se hoje a tendéncia 4 intercalac3o de atividades confiadas a parceiros com outras, realizadas por trabalhadores assalariados. Em alguns casos, é permitida ainda a cultura intercalada de certos géneros, no periodo em que os parceiros assumem o trabalho principal da exploraco; em outros, também estas atividades sfo eliminadas, permanecendo, apenas, o cardter diferen- ciado da remuneragdo do trabalhador. Fora da grande propriedade, a pequena produgo também sofre os efeitos da transformago da grande propriedade e do grande capital. E o que serd visto a seguir, a partir de uma andlise que procura retroceder historicamente, para melhor situar a questdo. A explora¢do familiar e as outras formas do capital Durante um longo periodo histérico, pouco espago restava ds exploragdes familiares fora da grande propriedade. A ocupagdo da terra por meios legais era vedada ao camponés, pois o tinico titulo juridico reconhecido era o da sesmaria. A ocupagiio de fato, extra-legal, s6 poderia ser feita - sem que isto implicasse em cair na érbita do latifiindio - em terras distantes e indspitas. Estas terras sf0 gra- tuitas, sem dtivida, mas sua exploracdo tem limites de dificil superag4o. A capaci- dade de trabalho familiar esbarra ante a adversidade das condigdes naturais, 20 isolamento do produtor e precariedade dos instrumentos técnicos de que dispoe. E através de uma agricultura semi-némade, que se desloca sem se ampliar, que o “caboclo” consegue manter um nivel de consumo préximo ao minimo vital (Can- dido 1964), A ocupacdo progressiva, pela grande propriedade, de territérios interioranos, e a crise da escraviddo redefinem esta situagfo. Com efeito, a grande propriedade, ao avangar sobre novas terras, entra em conflito com a populacio nela instalada. Neste contexto, a legislac&o vigente, pelas exigéncias que impGe, jd ndo representa uma garantia para o controle exclusivo da terra em grandes dimensOes ¢ passa a ser um fator que tolhe a forca e o movimento do latifundio. A extingdo das sesmarias constitui o mecanismo que, abrindo o espaco da luta entre grandes e pequenos, substituiu as arias juridicas pela violéncia direta, em beneficio da grande proprie- dade. O pequeno produtor teria que incorporar-se ao latifiindio ou refazer sua exploragio, nas condigdes anteriores, em outra localidade mais longinqua, até quando o mesmo processo ndo 0 atingisse mais uma vez. Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 64 O CAMPONES: UM TRABALHADOR Vale observar que o conflito aqui referido dizia respeito mais a luta pela apropriagdo da terra. Mantendo-se vigoroso o sistema de escravidio, a grande Propriedade continuava a ter no escravo sua principal fonte de trabalho. Com a aboligfo daquele sistema, o conflito se desloca também para 0 controle da forga de trabalho dos pequenos produtores. A disputa pela terra, fonge de ser esvaziada, se amplia, tornando-se o locus de um conflito em que se confrontam mais clara- mente o objetivo da obtengo de bragos para a grande lavoura e o projeto de inde- pendéncia do camponés, As politicas de imigragZo e de colonizagao refletem o conteido deste conflito e a Lei das Terras de 1850 marca a posig&o de forca da grande propriedade. O colono que chega ao Brasil, bem como a populagdo local de pequenos produtores, tem, deste modo, a partir de entdo, fixado o espago de sua reprodugio fora da grande propriedade. A Lei das Terras, ao mesmo tempo que garante a fora de trabalho para o latiftindio, constitui um dos elementos definidores deste espago. Para obter os recursos monetdrios para a aquisi¢ao da terra, o camponés teria que contar com seu préprio trabalho, nas condicSes precdrias que eram as suas, inclusive, do colono em seus momentos iniciais de implantagao. Parcela maior da produgko deve ser comercializada. Altera-se, por conseguinte, a proporg&o do auto- -consumo no interior da unidade camponesa, tanto mais intensamente quanto pese sobre ela os mecanismos dos pregos do mercado. Aeste respeito, ¢ necessdrio chamar a atengdo para certas tendéncias freqiien- temente encontradas nos estudos sobre campesinato no Brasil. A primeira, diz respeito a tendéncia a superestimar a auto-suficiéncia em relag#o ao mercado. Parece-me que, mesmo nos casos em que o auto-consumo ainda é predominante, algumas necessidades bdsicas da familia s6 podem ser satisfeitas a partir de fora, © que supGes relagdes de troca, em que parte da producdo passa pelo mercado. Neste sentido, o nivel de consumo da familia ¢ estabelecido em funcdo da estrutura da comercializagao. Considerando que o quantum de trabalho necessdrio a aquisicgo dos bens nfo produzidos intemamente depende da relagHo que se estabelece entre o volume vendido e os pregos obtidos que, em geral, € desfavordvel ao camponés, este é levado a dispensar o consumo daqueles bens ou intensificar o seu trabalho para obté-los. Nao seria exagerado, portanto, afirmar que a comercializagao de uma parcela reduzida da produgdo ¢ um sinal, sobretudo de uma incapacidade em atingir a auto-suficiéncia. Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 65 M. de N.B. WANDERLEY A segunda diz respeito 4 natureza da producdo posta 4 venda. Esta no repre- senta sempre um excedente produzido além do necessdrio 4 reprodugo do cam- ponés. Pelo contrdrio, constitui a via que permite a complementagao dos seus meios de vida e a obteng%o de seus instrumentos e meios de trabalho. O camponés, por conseguinte, nfo escolhe entre plantar para vender ou plantar para consumir, mas vende como Unica alternativa para garantir as condigdes minimas de sua reprodugao. Deste modo, a distingZo entre auto-consumo e “excedente” comercializado nfio se identifica 4 distingao entre trabalho necessdrio e trabalho excedente. Se a proporgdo da producdo vendida em relacdo ao volume total produzido se eleva, isto decorre menos da formagdo de um produto excedente, que poderia cons- tituir a base de um processo de acumulagdo para o camponés, do que das condigdes em que seu trabalho se insere no mercado. Com efeito, a organizac%o do trabalho familiar depende, cada vez mais, dos mecanismos estruturais do mercado. Este passa a constituir uma mediagao indispen- sdvel 4 obtengo, pelo camponés, de seus meios de vida, da terra e dos instrumentos técnicos da produ¢So e da transferéncia, para fora da unidade familiar, do sobretra- balho nela produzido, ¢ que ird alimentar o processo global de acumulagio do Pais. A este nivel, os principais agentes desta transferéncia e que dela se beneficiam sfo aqueles de quem o camponés compra a terra - portanto, a quem transfere a renda fundidria -, e o intermedidrio do sistema de comercializag4o, que tem na manipula¢ao da produgZo camponesa no mercado, a fonte de seus lucros mercantis. Entre os primeiros encontra-se o proprio Estado, a quem, por forca da Lei das Terzas, estava atribufda a responsabilidade da venda das terras devolutas. Porém, tendo em vista que a legislacao estipulava que os recursos provenientes destas tran- sagdes deveriam ser canalizados para o financiamento da imigragdo de trabalhadores estrangeiros para a grande lavowra, nfo é abusivo concluir que a renda fundidria, transferida do pequeno produtor via Estado, é apropriada, em ultima instdncia, pelos grandes proprietarios. Além disso, a atribuigdo ao Estado da venda das terras devolutas nfo obede- ceu a um mecanismo tnico. Sucessivas legislagdes distribuem esta responsabilidade, em proporgdes variadas, entre o governo federal e os governos estaduais. B, excegio feita aos nucleos de colonizagfo oficiais, generalizou-se a tendéncia a venda destas terras em grandes dimensdes a particulares, individuos ou firmas, nacionais ou estrangeiras, que, especulando sobre o seu prego, as vendem em pequenos lotes. Cad, Dif, Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 66 OCAMPONES: UM TRABALHADOR Os exemplos so numerosos e encontrados nao apenas em fungdo do processo de colonizagao do século passado, mas em plena atualidade. No que se refere ao comerciante, as observagdes apresentadas sobre a vincu- lagdo do pequeno produtor ao mercado j4 indicam em que medida o camponés constitui um elemento viabilizador de seu lucto comercial. E comum se afirmar que o pequeno produtor assume a producao nos setores ndo rentdveis, que no interessam a grande propriedade. Na verdade, nfo se pode considerar esta auséncia de rentabilidade em sentido absoluto. A produgdo assumida pelo pequeno produtor é rentavel, s6 que nZo o é para ele proprio. O lucro que gera é apropriado pelos integrantes da rede de comer- cializagdo, proporcionalmente a capacidade de concentrar a produg&o dispersa das unidades familiares e de manipular sua oferta nos centros urbanos de consumo. E certo que este tipo de atividade ndo interessa aos grandes proprietdrios, pois estes tém outras alternativas, entre as quais, a propria atividade comercial. Toman- do-se comerciantes da produgdo dos pequenos cultivadores instalados em suas prprias terras, e também dos seus vizinhos pequenos proprietdrios, apropriam-se aeste titulo, do lucro comercial. Como ja foi observado, as recentes transformagdes econdmicas se orientam no sentido da crescente centralizagtio do capital. O capital comercial é dominado por oligopsénios e passa a constituir, progressivamente, um momento do processo da acumulagao industrial. Referindo-se 4 produgo de soja na Mogiana Paulista, Pedrosa Junior & Naka- no (1978) analisam esta centralizago do capital comercial. “Umas poucas empresas multinacionais (Anderson Clayton, Sambra, Cargill, para citar as mais importantes), juntamente com duas ou trés nacionais (. . .} controlam cada vez mais a comercializagdo da soja . . . Embora internamente as empresas nacionais (industrias ou cooperativas) controlem uma parcela razodvel da produgo, elas ndo possuem meios para influir nas condi¢des internacionais do produto, que sfo estabelecidas em um palco onde os atores sdo tfo somente as empresas internacionais (algumas ja citadas acima). Além do mais, essas mesmas empresas tém importncia considerdvel na comercializagao da soja no Brasil, o que contribui para fortalecer sua capacidade de manipulag%o das cotagbes internacio- nais”. Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 67 M. de N.B. WANDERLEY Em outros casos, como na produgao de milho na mesma regio, a integragdo é substituida pela concorréncia entre empresas nacionais e intemacionais, como revelam os mesmos autores, Para estes, “‘o importante a destacar em ambos os casos {soja e milho) é a presenga dominante do capital industrial no comércio dos pro- dutos agricolas. Em conseqiiéncia, a estrutura de comercializac&o tradicionalmente encontrada em outras regides e mesmo na Mogiana Paulista - algum tempo atrds - é substituida por uma comercializacdo mais centralizada. Isto €, a intermediacao anterior, realizada através de uma rede de pequenos e médios comerciantes locais, cede lugar 4 presenga dos agentes das empresas industriais” (Pedrosa Hinior & Naka- no 1978). Outra forma de atuag4o do capital industrial ¢ a sua articulagao com a agricul- tura, através da “integracdo vertical” no interior de complexos agroindustriais, nos quais a produgao agricola ¢ assumida por Pequenos produtores. Esta forma de arti- culagao tem como principal elemento caracteristico o fato de que o capital indus- trial evita 0 investimento na aquisigio da propriedade da terra e controla “do exte- tior” a produgdo da matéria prima agricola que necessita para a transformacdo industrial. Isto nao quer dizer que o industrial esteja “renunciando” a renda fundidria Ou que esta seja apropriada pelo pequeno proprietério. Estabelecendo contratos de Producgo com o pequeno produtor, é através do prego da matéria prima assim adquirida, que ele extrai deste ultimo o sobretrabalho, o qual nfo tem para o indus- trial a autonomia da renda e do lucro agricola, mas constitui a condigao para a rea- lizagdo do seu lucro industrial. E a este titulo que ele o percebe, pois a matéria Prima, paga ao nivel da simples reprodug&o da forga de trabalho de.quém a produ- ziu, representa de fato uma redug%o dos custos da produgao industrial. Devo insistir que este tipo de relacZo com a terra nfo decorre de qualquer contradic4o entre o capital industrial e a propriedade fundidria. A mesma empresa, que numa drea utiliza o trabalho de pequenos produtores, pode estar se tornando, em outra, proprietdria de grandes extensOes de terra. E possivel supor que a dife- renga se deva,em boa parte,as caracteristicas da estrutura fundidria local, aos esti- mulos oferecidos pelo Estado para a grande propriedade,em certas tegides do pais, ¢, ainda, a exigéncias econdmicas e técnicas da producSo realizada, A posigéo do pequeno produtor levanta algumas quest6es que precisam ser analisadas. Uma- primeira, refere-se 4 autonomia do camponés e o grau de iniciativa de que dispde ao n{vel da organizacao interna de seu trabalho. Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 68 OCAMPONES: UM TRABALHADOR O controle “do exterior”, acima apontado,nfo deve ser entendido como auséncia de interferéncia do industrial no processo produtivo. Pelo contrario, os contratos de produc&o prevéem normas de qualidade, de produtividade, de pregos de prazos, que reorientam a organizacdo interna da exploragdo agricola em todos os niveis. Mesmo nos casos em que hd este tipo de integragfo, nfo é dificil perceber 0 controle que o grande capital exerce sobre o pequeno produtor, através dos meca- nismos do mercado: tipos de cultivo, formas de comercializagao, a alocagao da forca de trabalho, os processos produtivos etc, todos objetos de um poder de decisdo que cada vez mais escapa ao pequeno produtor. Isto nfo quer dizer que ele ndo realize o seu préprio cdlculo econémico, nem desenvolva uma estratégia especifica. Mas é necessdrio nfo superestimar sua capaci- dade de iniciativa e situd-la em sua verdadeira dimenso. Na melhor das hipdteses suas iniciativas s4o limitadas e restritas ao estreito espaco estabelecido pelo capital. O camponés tenta aumentar o volume de sua produgio, alterando a organizagao interna do trabalho e intensificando seu esforgo produtivo. A substitui¢do do sistema de rotagfo de terras por outros que reduzam a area em pousio, é largamente utilizada; mas, a0 longo do tempo, ela provoca efeitos negativos sobre a fertilidade natural do solo. Com o empobrecimento deste, o tra- balho se intensifica, mas sem correspondéncia com o aumento do volume desejado. O deslocamento para outras regides, jd tradicional para este tipo de produtor, se amplia. Prova-o a expansdo das diversas frentes de imigrag4o, que progressiva- mente ocuparam o oeste dos estados sulinos, e as regides central e norte do pais. Mas esta iniciativa apenas permite a reprodugio, no mesmo nivel, da exploragio camponesa; obriga-a a deslocamentos cada vez mais distantes e nfo a liberta do mercado, nem da grande propriedade, que a seguem ou mesmo a precedem neste movimento. O pequeno produtor tende, igualmente, a especializar sua produgdo, concen- trando seus esforgos naqueles produtos que disponham de condigdes mais vanta- josas de precos no mercado. Esta medida, limitada em fung8o das possibilidades reais do pequeno produtor, acentua a alteragZo de sua relagdes com o mercado; embora no seja completamente anulado, o auto-consumo cede lugar as atividades destinadas 4 venda. Finalmente, 0 camponés tenta aceder aos mecanismos de comercializagao. O sistema cooperativo seré o instrumento utilizado para este fim, nas dreas onde predominam as pequenas exploragées. Baseada numa ideologia igualitdria e de soli- Cad. Dif. Tecnol., Br: silia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 69 M. de N.B. WANDERLEY dariedade, os pequenos produtores organizam-se em cooperativas, concedidas como uma institui¢f0 que deveria substituir o sufocante sistema de comercializagao capi- talista, assumindo suas fungdes de concentrador da producao agricola, porém, em beneficio de seus préprios membros. Veremos mais adiante as transformag®es por- que passou o movimento cooperativo. Finalmente, mesmo mantendo sua base produtiva, a exploragdo camponesa, para reproduzir-se, € obrigada a complementar sua renda com a alocagdo de parte da fora de trabalho que dispde, fora da unidade familiar de produgao. Aqui, de modo explicito, a propriedade da terra revela-se incapaz de eliminar a dependéncia do pequeno produtor em relagdo 4 grande propriedade, principal absorvedora desta forga de trabalho realocada. N&o foi por outra razAo, alids, que, desde 0 inicio, os pregos da terra foram fixados em niveis elevados e que os lotes vendidos aos colo- nos nfo ultrapassavam um certo limite, incapaz de garantir a suficiéncia econémica da familia. Este é 0 estreito espago estabelecido pelo capital ds iniciativas do camponés, espaco delimitado pela condi¢do, que é a sua, de trabalhador para o capital. Esta condic4o impede as possibilidades de acumulagdo, pelo proprio produtor, porém © torna - e é para isto que ele é reproduzido - um agente necessdrio da acumulagao, que se realiza a partir de seu sobretrabalho, mas fora de sua unidade de producio e ndo em seu prdéprio proveito. ‘Uma segunda questo, decorrente da primeira, diz respeito 4 Telagdo entre 0 nivel de tecnologia e a capitalizagao da pequena exploragao. Particularmente em algumas regides e em algumas atividades, observa-se que uma camada, considerada superior de produtores familiares, adota um nivel técnico acima da média. Esta questo, a meu ver, esté merecendo mais estudos empiricos, mas de um modo geral, € possivel levantar algumas hipéteses sobre ela: — tratar-se-ia, efetivamente, de uma camada de pequenos produtores que est conseguindo acumular’; — seriam produtores que tecnificam sua atividade por imposigao do capital a que esto atrelados, mas ndo acumulam para si (Fundagio Getulio Vargas 1979). 5 Ver em especial: Lopes (1977). Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan.fabr. 1985 70 O CAMPONES: UM TRABALHADOR De qualquer modo, creio ser arriscada e apressada a referéncia a uma suposta “via farmer” do capitalismo na agricultura brasileira. Mesmo admitindo que exista uma certa diferenciagdo interna entre os pequenos produtores, seu nivel de tecnolo- gia nfo parece compardvel 4 ja conseguida pelo “farmer” americano que serve de comparagdo para esta identificagfo e, em todo caso, este ¢ um setor de pequena expressdo quantitativa, nJo s6 entre os pequenos produtores, como sobretudo em relagfo ao conjunto da agricultura nacional, incapaz, por conseguinte, de determi- nar © direcionamento de seu processo de desenvolvimento. Finalmente, hd uma terceira questdo, ligada a significag’o do movimento cooperativista. Este movimento foi gerado, em muitos casos, no bojo de uma estra- tégia dos pequenos produtores, ou mesmo quando isto nfo aconteceu, foi e ainda € visto por eles como um instrumento desta estratégia. Nao resta duvida que a cooperativa pode funcionar neste sentido. No entanto, freqiientemente, o sistema Cooperativo se manifesta, nfo como uma altemativa qualitativamente diferente 4 dominacdo do capital, mas um dos mecanismos da estratégia deste mesmo capital que, mantendo o camponés em sua condig4o de produtor, integra-o mais profunda- mente no mercado capitalista dos grandes oligopsénios. Ele serd particularmente utilizado nas regides e nas culturas onde a existéncia, historicamente dada, da pequena produgdo é significativa. Sua atuacdo, ideologicamente legitimada junto a estes camponeses, reflete, assim, o direcionamento que o capital impde 4 produ- 40 camponesa. E através da cooperativa que o capital incorpora o pequeno produtor ao mer- cado de produtos industriais, ampliando o espago de sua acumulacao, o que é feito, na medida em que a cooperativa funciona como repassadora dos financiamentos bancdrios € garantidora dos contratos estabelecidos, condig&o para que os produ- tores adquiram os insumos modernos. Isto permite superar - ao nivel do capital - os obstaculos da debilidade econdmica do camponés e da atomizagdo de sua producao. Em outras palavras, esta é uma das formas de concentrar a produgdo camponesa e de transferir o sobretrabalho neka realizado para os setores dominantes da acumula- ¢4o capitalista. Algumas vezes, como o afirma Frantz (1979), a propésito da Cooperativa Triticola Regional Serrana - COTRIJUI, observa-se uma divisfo do trabalho entre cooperativas € 0 comércio privado, cabendo aqueles o comércio dos produtos da agricultura e a este, a representacZo local das indhistrias de insumos e equipamentos para o setor. O cooperativismo nfo libera o camponés sequer do grande proprietdrio, pois n4o é raro que este atue, no interior da cooperativa, revertendo em seu beneficio os servigos que ela oferece aos produtores. Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13- 78, jan./abr. 1985 7” M. de N.B, WANDERLEY Uma pesquisa, que estd sendo efetuada sobre a producto do algodfo na Parafba, ilustra esta situagao, Os pequenos produtores poderdo, sem nenhum obstdculo formal, pertencer 20 quadro de sécios das cooperativas. Porém, como cooperados, dificilmente conse- guem se apropriar das vantagens oferecidas por esta instituicfo. A deficiente estru- tura da politica de crédito rural dificulta o acesso dos pequenos produtores, fazen- do-os recorrer aos empréstimos privados oferecidos pelos grandes proprietdrios e intermedidrios da regiao que, geralmente, também sfo cooperados. O pagamento destes empréstimos € realizado pela entrega da produc&o do pequeno produtor ao agente financiador que a coloca, em seu préprio nome, na cooperativa. Em outros Casos, o pequeno produtor entrega sua produgdo na cooperativa, mas transfere © direito do recebimento da torta para 0 gado para o seu financiador” (Novaes 1978). CONCLUSOES Gostaria, a titulo de conclusao, de explicitar melhor o que se pode entender Por projeto de autonomia desta forca de trabalho especial. A primeira constatacdo a fazer ¢ que no hd uma separacio rigida entre cam- poneses ¢ trabalhadores rurais, no sentido de que constituem classes distintas, com interesses distintos. H4 a considerar que, apesar da diversidade de situdgdes concre- tas, que se traduz em estratégias de acfo igualmente diversificadas, hd um denomi- nador comum que os une. Este consiste na reivindicagdo do acesso a propriedade da terra em condigdes de estabilidade ¢ de suficiéncia ¢ representa, em ultima insténcia, a reinvindicagao do controle dos frutos de seu trabalho. O que estd em jogo é uma percepgfo particular da propriedade e do trabalho independente, que tenta se concretizar, enfrentando obstdculos, de um certo modo diferentes em cada caso. N&o seria impossivel supor que o grande temor é 0 da proletarizagio absoluta e completa; contra ela, as reagbes diferem conforme as condigdes reais que encontram, mas é para proteger-se dela que todas essas reagbes convergem, mesmo quando sua eficdcia é apenas aparente. Vejamos alguns destes casos particulares. O morador de um engenho, por exemplo, é um trabalhador rural, no sentido de que nJo dispde da propriedade de seus meios de produc&o. Mas é através do con- Cad. Dif. Tecnol., Brasilia, 2(1):13-78, jan./abr. 1985 72

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