A LINGUAGEM MUSICAL COMO
POSSIBILIDADE DE ESTUDO
DO ESPACO GEOGRAFICO
Jost_Amtrico Cararo
A misica é onipresente no cotidiano do povo brasileito. Por meio do
radio, televisio ou internet, seja no trabalho, em casa, nos automéveis, nos
énibus, trens e metrés, de bicicleta, seja caminhando/correndo, na intimidade
dos aparelhos de ouvido ou abertamente. Também em intmeras manifesta-
ges populares, como o carnaval ¢ as grandes festas juninas no Nordeste,
por exemplo, ou ainda nas igtejas e bates, numa variedade de celebracées €
eventos/momentos.
E nas escolas? Em que situacSes e contextos o seu emprego ocorte?
Quais os principais desafios didatico-pedagégicos enfrentados pelo professor
¢ professora de Geografia que deseja usé-la em seu trabalho? Aqui, pretende-
mos compartilhar experiéncias, pistas indicios, além de anseios e contradi-
gdes que perpassam o trabalho com essa forma de linguagem.
Como estamos refletindo/dialogando sobre a misica, utilizaremos, 20
longo deste texto, varios fragmentos de cangdes, para ilustrat e reforgar aqui-
lo que desejamos transmitir. Comecamos pela bela composi¢ao “Fantasia”,
de Chico Buarque de Hollanda, que, em seu trecho inicial, acentua: “E se,
de repente/ A gente nio sentisse/ A dor que a gente finge/ E sente/ Se, de
repente/ A gente distraisse/ O ferro do suplicio/ Ao som de uma cangio/
Entlo, eu te convidaria/ Pra uma fantasia/ Do meu violio”.
Temos a impressio de que Chico Buarque compés essa miisica, inspi-
rado nos professores e professors, nos sentimentos e atitudes que precisam
norteat a sua acio educativa na atualidade. Nos imtimeros relatos que ou-
vimos, nas leituras especificas que realizamos, ficam patentes as angiistias,
imprevisibilidades, desampatos e incertezas que matcam o trabalho docente
cotidiano, Dificuldades ja bastante conhecidas/vivenciadas por nés profissio-
nais da educagio ptiblica, como os saldrios em geral insuficientes, as condi-
Ges, muitas vezes, precdrias das escolas, 0 pouco tempo para planejamento
das aulas, a indisciplina/apatia dos alunos e alunas etc., que se transformam.
em dores/aflicdes no fazer docente. Por outro lado, o quanto é necessatio
potencializar a resisténcia, enfrentando individual e coletivamente o medo, 0
desinimo e o ceticismo, ousando explorar as brechas disponiveis para uma|
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maior qualificagdo do ensino de Geografia. E como nos impele Chico Buar-
que: “Canta, canta uma esperanga/ Canta, canta uma alegria/ Canta mais/
Revirando a noite/ Revelando o dia/ Noite e dia, noite e dia/ Canta a cancio
do homem/ Canta a cangio da vida/ Canta mais”.
Assim, essa atitude docente ativa e comprometida com a aprendizagem
do aluno e aluna implica termos a clareza de que nem sempre o resultado
alcangado com o uso da linguagem musical em nossas aulas ser4 aquele que
desejévamos. As vezes, a nossa expectativa é positiva, mas nos frustramos
com 0 efeito limitado do que planejamos. Isso nao se aplica somente a misi-
ca, mas ao emprego de qualquer recurso/procedimento metodolégico.
‘Todavia, como nos recordam Jo%o Bosco e Aldir Blanc na misica “Jeiti-
nho Brasileiro”, “Topada também toca pra frente”. Nesses momentos, sobre-
tudo, nao podemos abdicar de aprender sempre, de no “entregar os pontos”.
Oportuna é a recomendagao de outro trecho dessa mesma musica: “Viver,
viver com a pulga atrés da orelha, quanto mais cogat/ Sortir, cantar, cantar
com 0 prego no sapato pra peteca no cair”.
Ferreira (2005) enfatiza uma vantagem e uma desvantagem no uso
da misica no ensino de qualquer disciplina. No primeiro caso, é a pos-
sibilidade de minimizar e/ou romper com o dominio do vetbalismo na
interagio docente-discente. Bem sabemos 0 quanto tem sido questionada
a quase hegemonia das aulas expositivas na pratica docente € seu efei-
to desmotivador na aprendizagem estudantil. Desse modo, a linguagem
musical é um segundo caminho comunicativo. Como desvantagem, esse
autor aponta a amplitude e a complexidade dessa forma de exptessio
humana, desafiando o professor e a professora a potencializar o sentido
da audicio, pesquisando e estudando a riqueza de géneros ¢ estilos, a fim
de melhor utiliz4-los em seu trabalho. Portanto enfrentar, com muita dis-
posiciio e comprometimento, “os pregos no sapato”, visando efetivar um
melhor ensino de Geogtafia.
Entendemos essa segunda dimensio mais como um desafio permanente
do que uma desvantagem. Lancat um olhat multifacetado acerca da utilizagio
da linguagem musical no ensino de Geografia nos interpela para a andlise de
fatores internos ¢ externos A escola e 4 nossa disciplina, os quais, interconec-
tados, tém implicagdes sobre a pritica docente.
Um dos aspectos que merecem um melhor exame de nds professores ¢
professoras é 0 de encararmos a mtisica também como uma ctiagao cultural.
Isso nos remete a explicitar 0 que entendemos por cultura. Adotaremos, aqui,
uma perspectiva de cultura como sendo o(GEO)GRAFIAS E LINGUAGENS: concepgées, pesquisas e experiéncias formativas 203
[-] conjunto complexo e diferenciado de significagdes relativas aos varios
setores da vida dos grupos sociais e das sociedades por eles histoticamente
produzidas (as linguagens, a literatura, as artes, o cinema, a TY, o sistema
de crengas, a filosofia, os sentidos dados as diferentes ages humanas, se-
jam estas relacionadas a economia, medicina, 4s priticas juridicas, e assim
por diante). (FISCHER, 2003, p. 25)
Nesse sentido, as ctiagdes musicais que interessam ao ensino da Geo-
grafia expressam diferentes significados que seus autores atribuem As relagdes
deles das pessoas com os miiltiplos lugares onde vivem/convivem. Tam-
bém com as paisagens que conhecem diretamente ou por meio das imagens
divulgadas pela midia, nas contraditérias relagdes das sociedades com a natu-
reza, nas vis6es que socializam de povos que habitam os muitos territérios da
superficie terrestre, com suas praticas culturais e dilemas.
Tais significados espaciais e temporais no esto isentos das relagdes
de poder assimétricas que se estabelecem entre classes grupos sociais, o:-
ganizagdes e paises, Assim, diversas sio as canges brasileiras, cujos autores
assumem um inequivoco posicionamento de solidariedade defesa de grupos
sociais apartados de direitos humanos fundamentais, aprisionados em con-
textos espaciais injustos.
‘A essa altura, emerge a questio: tais ctiagdes musicais estiio tendo es-
paco-tempo no cotidiano das aulas de Geografia? Professores ¢ professoras
alargam suficientemente o sentido da audigio para ouvit/conhecer/difundir
outros ritmos diferentes e destoantes daqueles massificados na midia brasilei-
ra, sobretudo nas programagées radiofénicas e televisivas de maior audiéncia?
Estamos atentos aos gostos musicais de nossos alunos e alunas, procurando
incorporé-los em nossas praticas, interconectando-os também com a impres-
sionante variedade de outros géneros presentes em nosso pais? Um dos limi-
tes pedagégicos a serem enfrentados pelos professores e professoras no em-
prego dessa forma de linguagem no ensino da Geogtafia refere-se 4 “pouca
petcep¢io da mtisica como uma forma cultural que é consumida e que, n0
proceso de consumo, passa por mais transformagio” (KONG, 2009, p. 138).
Eis aqui um aspecto essencial pata aqueles ¢ aquelas que desejam i
cluir/ampliar a presenga da linguagem musical em sua pratica pedagégica: um
trabalho investigativo permanente acerca dos pesfis socioculturais dos alunos
e alunas com os/as quais convive, incluidos af os gostos musicais. O que ou-
vern? Por que ouvem? Como ouvem? Em que contextos e situagées escutam
miisicas? Que significados atribuem as mensagens difundidas em suas letras?
» Assimilam/internalizam mecanicamente tais narrativas? Quais delas podem
ser incorporadas ao ensino de Geografia?204
Certeau (1994) reforga essa constatacio de Kong, ao salientar que os su-
jeitos inseridos nos diferentes cotidianos nao sao receptores passivos e iner-
tes, pois, diante das variadas mensagens e apelos que recebem, af inclufdas as
miisicas que gostam de escutas, “posta-se uma produsio de tipo totalmente
diverso, qualificada como ‘consumo’, que tem como caracteristica suas astt-
cias, seu esfarelamento em conformidade com as ocasides, suas ‘piratarias’,
sua clandestinidade” (p. 94). Ou seja, na condic&o de ouvintes de diferentes
géneros musicais, os alunos ¢ alunas nem sempre se comportam passivamen-
te, internalizando acriticamente tudo o que escutam, mas enredam os conteti-
dos musicais com as aptendizagens cotidianas no espago-tempo doméstico,
com os citculos de amizades, na internet, nas rcligiées que frequentam, na
propria escola, etc.
Nessa atena de luta cultural em que se inserem as criagdes musicais, aa
qual saberes, fazeres e poderes conflitantes se enfrentam/imbricam, cumpre
analisat e compreender as dindmicas e complexas redes de interesses merca-
dologicos af presentes. Por consequéncia, é tarefa docente das mais impor-
tantes reconhecer/visibilizar/divulgar outros géneros musicais, contrapostos
¢ resistentes a tais logicas unidirecionais e padronizadas do mercado. Misi-
cas que atribuam significados miiltiplos as vivéncias espaciais nos lugares,
paisagens e territérios, em diferentes escalas geogréficas, valorizando outras
formas de viver, produzir e proceder. Assim, “a cultura é um campo onde se
define no apenas a forma que o mundo deve ter, mas também a forma como
as pessoas € os grupos devem ser, A cultura é um jogo de poder (SILVA,
2000, p. 133-34),
‘Aqui, vale outra ressalva, Para nds, no faz sentido referir-se A cultura
como algo puro, homogéneo, mas sim enfatizar, por meio da linguagem mu-
sical, os processos de identificagéo de culturas e lugares, que se constituem/
reconstituem por entrecruzamentos variados. Para Hall (2003), a globaliza-
gio em curso repercute sobre as identidades culturais de trés maneiras, As
identidades nacionais se fragilizam e desintegram, cedendo aos ditames d=
homogeneizacio cultural do mercado global. Simultaneamente, ocorre a re
sisténcia das identidades locais a essas forcas hegeménicas. Resultantes desse
embate, identidades hibridas se constituem. Ocorre, entZo, aquilo que o autor
denomina deslocamento ou descentragao dos individuos. As identidades _formativas. Curitiba: CRV, 2016, pp 201-220